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Colégio Pedro II – Duque de Caxias

Disciplina: Sociologia

Qual é a sua tribo?•


Helena Bomeny, Bianca Freire-Medeiros, Raquel Emerique e Júlia O’Donnell

Tribos urbanas: o encontro entre o arcaico e o tecnológico


Você já conheceu o sociólogo alemão Georg Simmel, que se preocupou em entender as
novas subjetividades metropolitanas, ou seja, os novos tipos sociais próprios da cidade grande.
Até hoje, os escritos de Simmel inspiram muitos autores a pensar sobre vários temas relativos
ao modo de vida urbano – afinal, como dizem nossas avós, “os tempos são outros” e os “modos
não são os mesmos” nas grandes cidades. Instituições tradicionais, como a Igreja, a família e o
Estado, disputam com a indústria do consumo e com a mídia a produção de referenciais de
identificação. Esse contexto de fragmentação e multiplicação de referenciais morais, políticos,
religiosos e estéticos tem levado alguns antropólogos e sociólogos interessados em compreender
a realidade das sociedades ocidentais a trabalhar com a noção de tribos urbanas. É claro que
não se trata de grupos étnicos unidos por culturas comuns, mas sim de grupos urbanos unidos
pela afinidade de interesses e gostos.
Um dos mais renomados cientistas sociais que olharam de perto o fenômeno das tribos
urbanas é o diretor do Centro de Estudos do Atual e do Cotidiano da Universidade de Paris V,
Michel Maffesoli, autor, entre outros, do livro O tempo das tribos (1987). Para ele, o neotribalismo
constitui o paradigma mais adequado para interpretar a sociedade contemporânea, que se
caracteriza pela combinação entre práticas arcaicas e desenvolvimento científico, entre
princípios “tribais” e novas tecnologias. O sucesso de histórias como O Senhor dos Anéis e Harry
Potter, em que o místico e os “efeitos especiais”, o mágico e o tecnológico se encontram, seriam,
segundo Maffesoli, sinais sociológicos de que os sujeitos urbanos estão buscando um
“reencantamento” para a vida. De fato, com a ajuda de recursos como a internet e as
comunicações digitais, diariamente são criados novos grupos, unidos pela identificação cultural,
sexual, religiosa, esportiva etc. Pense, por exemplo, na quantidade assombrosa de
“comunidades” – ou “tribos” – existentes em um site de relacionamento como o Facebook!
Para Maffesoli, estamos sempre representando papéis, tanto em nossas atividades
profissionais quanto no seio das diversas tribos de que escolhemos participar. Aliás, a questão
da escolha é fundamental. De acordo com nossos gostos – sexuais, culturais, religiosos etc. –
optamos por nos juntar a determinada tribo, a uma “comunidade emocional” ou a uma
“nebulosa afetiva”. Nas tribos, o que conta é o fato de estar junto, ainda que se trate de um
engajamento transitório e frágil. A motivação principal não é, por exemplo, ganhar dinheiro ou


In: BOMENY, Helena [et al.]. Tempos modernos, tempos de Sociologia. 2ª ed. São Paulo: Editora
do Brasil, 2013, p.266-271.

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ajudar a terceiros, mesmo que isso possa acontecer. Como o sociólogo francês as concebe, as
tribos são como redes de amizade que se reúnem com a função de reafirmar o sentimento que
o grupo tem de si mesmo.

Identidade ou identificação?
É interessante notar que, para Michel Maffesoli, o Brasil é um dos países em que melhor
se podem observar as dinâmicas do neotribalismo, porque entre nós o tradicional e o tecnológico
se combinam o tempo todo. De fato, no cenário das grandes cidades brasileiras, a todo momento
surgem novas tribos (wiccas, emos, patricinhas, pitboys), enquanto outras praticamente
desaparecem (darks, grunges) e outras, ainda, sobrevivem há bastante tempo (metaleiros,
punks, surfistas). Em sua maioria, essas tribos – ou “comunidades estéticas”, para usarmos a
expressão de outro sociólogo famoso, chamado Zigmunt Bauman – distinguem-se umas das
outras sobretudo por quesitos visuais e padrões de consumo, que se tornam elementos próprios
de sua identidade. Mas, se antes a noção de identidade, de um grupo ou de um indivíduo,
remetia à ideia de unidade, estabilidade e coerência, hoje não é necessariamente assim. Alguém
que durante a pré-adolescência se identificava como funkeiro, aos 14 anos pode se “converter”
em emo, e aos 16 passar a se apresentar como ex-funkeiro-ainda-emo-e-também-vegetariano.
É por isso que Michel Maffesoli propõe a substituição da noção de identidade pela de
identificação. Qual é a diferença entre essas duas noções? Enquanto identidade se refere a um
modo de ser estável e coerente, identificação diz respeito a “máscaras variáveis”, até mesmo
descartáveis, relações “informais” e “afetivas” entre os sujeitos. Se, no início do século XX, as
meninas praticamente já nasciam com uma identidade preestabelecida – deveriam se casar na
igreja, ter filhos e cuidar da casa –, uma jovem do novo milênio tem um leque muito maior de
possibilidades de identificação a sua frente, tanto em termos de vida afetiva, sexual e familiar
quanto de vida profissional.

Eu sou o punk da periferia”


É importante observar que, nas Ciências Sociais, as novas tribos são analisadas em sua
relação com o contexto mais amplo no qual estão inseridas. A pesquisa de campo feita pela
antropóloga Janice Caiafa no Rio de Janeiro na década de 1980, publicada sob o título
Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub, é um bom exemplo desse tipo de análise.
A autora oferece um mapa da experiência punk com base em sua música, estética e
comportamento, bem como em sua interação com o restante da cidade: “Os punks são jovens
entre 15 e 22 anos que se deslocam em bando, e não é difícil perceber que estão juntos e algo
os une”. Apesar da aparência por vezes agressiva e da transgressão de certas normas próprias
da adolescência, na maior parte do tempo, diz ela, os punks seguem pelas ruas “num
atrevimento tranquilo e sem revide”. A antropóloga critica o que chama de “definição negativa
do acontecimento punk” e afirma que não faz sentido vê-lo como “o resultado de um fracasso

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das instituições em assimilarem a juventude”. Em sua opinião, é preciso que os punks e outras
tribos sejam compreendidos como manifestações próprias dos novos arranjos sociais, que
permitem que se estabeleçam parcerias não mais baseadas nos pertencimentos familiares ou
partidários, mas nos gostos e nas atitudes.
Em sua pesquisa, Janice Caiafa observou que entre os punks, ou entre estes e os “outros”
habitantes da cidade, a troca de olhares era sempre rápida, assim como eram efêmeras as
relações estabelecidas. Como no caso de várias outras tribos, seus participantes não faziam
projetos para o futuro do grupo nem revelavam preocupações com o destino. Segundo a autora,
era o próprio consumo de adereços e produtos musicais que animava a existência dos punks
como tribo ou movimento.
Aliás, a relação das tribos com a sociedade de consumo é bastante complexa. Não apenas
os punks, mas várias outras comunidades ou movimentos veiculam uma mensagem
anticonsumista, mas isso não os impede de utilizar adereços e bens de consumo para comunicar
suas identidades e posições. Para Michel Maffesoli, há uma articulação clara entre o consumo,
a valorização da própria imagem e a formação das tribos. Assim, por exemplo, temos cabelos de
moicanos e correntes para os punks, couro preto e símbolos satânicos para os metaleiros,
pranchas e bermudões para os surfistas. Tais elementos distintivos tornam-se essenciais para
os membros da “comunidade”.
Também é interessante observar que as tribos urbanas recorrentemente se apropriam
dos elementos distintivos de outras tribos e os ressignificam. Um exemplo é a relação de
proximidade e afastamento entre os punks e os straight edges. Apesar de compartilharem com
estes últimos o gosto pelas músicas “pesadas”, pelo visual “agressivo” e pelo princípio do “faça
você mesmo”, os straight edges são avessos ao consumo de drogas ilícitas, álcool e tabaco, tão
comum entre os punks. Enquanto os punks pregam a permissividade sexual, os straight edges
falam em sexo consciente e com amor. Sua opção pelo vegetarianismo os aproxima de outra
tribo: a dos hare krishnas, grupo religioso de inspiração hindu, que também segue uma dieta
lactovegetariana. Cabe muitas vezes aos hare krishnas, com suas vestes brancas ou laranja,
que tanto contrastam com o visual straight edge, preparar a comida que é servida nas
“verduradas” (em oposição às cervejadas ou churrascadas), festas em que os straight edges
combinam shows (na maioria das vezes de hardcore/punk, mas nem sempre) com palestras,
exposições ou vídeos sobre temas políticos, culturais e ecológicos.

Uma escolha ou um rótulo?


Há outra constatação importante a respeito das tribos: nem sempre ser associado a uma
delas é uma escolha do sujeito. O caso explorado pela antropóloga Cláudia da Silva Pereira no
artigo “Jeito de patricinha, roupa de patricinha”, publicado em 2007, ajuda a entender isso
melhor. Como lembra a autora, de tão usado, o termo “patricinha” foi dicionarizado, ou seja,
mereceu um verbete em um dicionário da língua portuguesa. Segundo o Dicionário Michaelis, o

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termo significa “moça de classe social elevada; moça bem-vestida que usa roupas de marca ou
caras”. Mas, depois de realizar uma pesquisa extensa, que incluiu 100 questionários e
entrevistas em profundidade com meninas de 15 a 19 anos moradoras da Zona Sul do Rio de
Janeiro, Cláudia da Silva Pereira chama a atenção para pelo menos dois pontos importantes.
Em primeiro lugar, apesar da definição no dicionário, na prática não existe apenas um
tipo de patricinha, ou seja, o grupo não pode ser descrito em sua totalidade como formado por
meninas de argolas nas orelhas, cabelos lisos de escova, roupas de grife. A segunda ressalva é
importante e tem a ver com o que dizíamos há pouco a respeito do processo de reconhecimento
dos grupos: diferentemente dos punks, que apreciam ser reconhecidos como tais, poucas
meninas gostam de ser chamadas de patricinhas (apenas 9% das entrevistadas se assumiram
como tal). Trata-se, portanto, de uma rotulação externa ao grupo, uma espécie de acusação
dirigida a moças consideradas consumistas e fúteis.
A autora ressalta que, no caso das patricinhas, o principal fator de acusação não é o
financeiro, mas o estilo de comportamento: falar alto, mexer no cabelo, rir de tudo e de todos,
fazer comentários inoportunos e ser pouco inteligente. Esse estilo pode ser imitado (e
incorporado) por jovens de camadas médias e baixas. “A gíria patricinha”, argumenta a autora,
“foi apropriada pelo discurso de toda uma geração”, e com isso o grupo assim designado
transformou-se numa tribo, entre tantas outras que andam pelas ruas da cidade.
Após analisar sites favoráveis e contrários às patricinhas, Cláudia da Silva Pereira
identificou características convergentes na descrição do grupo (esnobes, preocupadas com a
aparência, consumidoras de roupa, admiradoras de grifes) e também pontos divergentes (como
a acusação de que as patricinhas são burras, alienadas, falsas e sem personalidade). Patricinhas
declaradas revelaram usar maquiagem, frequentar salões de beleza e sonhar em fazer plástica:
“Esses dados apontam para um investimento pessoal em hábitos de consumo que, até bem
pouco tempo atrás, pertenciam ao mundo adulto”, observa a autora.

Iguais, mas diferentes


Emos ou posers?
Apesar de parecerem grupos homogêneos, as tribos podem abrigar muitos conflitos e
diferenças. Essa é a conclusão a que nos leva o livro do antropólogo Raphael Bispo, Jovens
werthers: amores e sensibilidades do mundo emo, elaborado com base em uma pesquisa
etnográfica entre grupos de emos no Rio de Janeiro em 2007 e 2008.
Interessado em descobrir os elementos que compunham a “identidade emo”, então
bastante disseminada na cena roqueira da cidade, o pesquisador passou a frequentar eventos
que reuniam jovens dessa tribo, observando seu comportamento e realizando entrevistas. Ele
logo percebeu que a convivência entre aqueles jovens – aparentemente iguais para alguém de
fora do grupo – era marcada por fortes disputas e antagonismos.

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Os conflitos giravam em torno da questão da legitimidade de pertencimento ao grupo,
uma vez que os que se identificavam como “emos das antigas” buscavam desqualificar os novos
fãs do gênero, estigmatizandoos como “posers de emos”.
Mas como manifestavam seus ressentimentos os “emos das antigas”? O que diziam sobre
si e sobre os posers? E como estes reagiam às acusações?
No papel de acusadores, os “das antigas” afirmavam que os posers eram pseudo-emos,
impostores que aderiam ao estilo apenas por “moda”. Vestidos de preto, com blusas estampadas
com imagens de suas bandas favoritas, os “verdadeiros emos” viam com maus olhos a
superprodução dos novatos. Usando muitas cores e acessórios, os posers não mediam esforços
para ressaltar a aparência, o que fica ainda mais claro no uso generalizado de maquiagem e
unhas pintadas por garotos e garotas. Além disso, era constante a utilização de camisetas com
estampas de desenhos animados infantis. De acordo com os “das antigas”, esses novos emos
deturpavam a vestimenta do grupo com “brilhos e paetês”, “fantasiando-se para beijar na boca”.
E concluíam: “Tá tudo diferente”.
Outro ponto sensível é a associação entre os emos e a homossexualidade, que segundo
os “das antigas” foi construída e disseminada pelos posers. Os entrevistados diziam que os novos
adeptos compreendiam de maneira equivocada o valor dado às sensibilidades pelo emocore,
gênero que teria surgido em oposição à virulência do punk, mostrando ser possível falar de amor
fazendo uso de acordes agressivos e tons de voz exaltados. Para os acusadores, essa
sentimentalidade ganhou sentido em contraposição a outros grupos de rock, e não para incitar
o “homossexualismo e a pegação desenfreada”, como disse um dos jovens.
Um dos aspectos mais interessantes da pesquisa de Raphael Bispo é a constatação de
que, mesmo estigmatizados, os “novos emos não se veem como ‘posers’, não se preocupam em
ser vistos como ‘posers’ e nem costumam acusar outros de serem ‘posers’”. Para eles,
independentemente da opinião dos “das antigas”, “ser emo” é ser sensível e ouvir estilos
musicais variados, valorizando a liberdade para fazer o que desejarem. Não se consideram, por
isso, “menos emos” que os demais.
O que essa pesquisa mostra, enfim, é que, ainda que possam parecer iguais, os membros
de uma tribo são, muitas vezes, diferentes. Não há entre eles uma definição única de identidade
e um estilo de vida único. Assim como os emos, jovens de qualquer tribo formulam e vivenciam
suas identidades de grupo de formas distintas, podendo ou não surgir conflitos decorrentes
dessa variedade de experiências possíveis.
[...]

“Cada um no seu quadrado”


Punks, patricinhas, emos, metaleiros, surfistas, straight edges e tantas outras tribos,
comunidades ou movimentos que circulam pelas ruas das grandes cidades brasileiras nos
ajudam a refletir sobre o dilema que Georg Simmel já havia apontado como característico da

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modernidade: ser único ou pertencer a um grupo, querer ser reconhecido como indivíduo e
também como parte de um todo maior. As “tribos” prometem, de certo modo, singularização e
pertencimento: cada membro é diferente dos que não fazem parte de seu grupo e ao mesmo
tempo é “igual” aos outros membros da tribo. Pertencer à “comunidade dos vegetarianos”
significa, por um lado, estar em oposição aos que têm um tipo de hábito alimentar não
vegetariano e, por outro, identificar-se com qualquer outro ser sobre a face da Terra,
independentemente de sua cor, credo ou postura política, simplesmente porque esse ser
também não come carne.
Essas “comunidades” de gostos e comportamentos se contrapõem, por um lado, à ideia
de que todos são iguais em uma sociedade de massas, os gostos são homogêneos ou os
comportamentos se parecem porque todos estão informados pelos meios de comunicação. A
diversidade de tribos mostra que, ao contrário, há muitas maneiras de expressar o jeito de ser
próprio de cada grupo. Essa diversidade interessa à Sociologia porque ela revela as maneiras
distintas da vida em grupo. E revela também que a chamada modernidade é muita coisa, menos
o “tudo igual” que parecem sugerir algumas falas mais apressadas: os jovens são assim, são
assado, todos querem isso ou todos querem aquilo. Abrindo nossos olhos, apurando nossa
observação e exercitando nossa imaginação sociológica, percebemos o quanto é extensa, variada
e imprevisível a manifestação das vontades coletivas.

Recapitulando
As tribos urbanas estudadas neste capítulo são alguns exemplos que ajudam a refletir um pouco
mais sobre a diversidade dos tipos sociais que povoam as cidades grandes. As tribos urbanas
mesclam aspectos arcaicos (religião, tradição, fidelidades etc.) com a modernidade (tecnologia e
desenvolvimento científico). A sociabilidade urbana, marcada pelo anonimato, possibilita que as
pessoas se reinventem, recriem-se, reorganizem-se e socializem da forma que escolherem. Bem
comportadas ou rebeldes, as tribos ostentam padrões estéticos que se opõem às tendências
mais amplas da sociedade. Isso transforma os indivíduos identificados com cada uma delas em
consumidores de produtos que os singularizam como membros de uma comunidade particular.
Existe, portanto, uma intenção de distinção que parte dos adeptos das tribos. Por outro lado,
aqueles que não se identificam com uma tribo urbana ou não aceitam os padrões propostos por
ela podem rotular, estigmatizar seus integrantes e até alimentar uma dinâmica de discriminação
e preconceito contra eles.

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