Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SINOPSE
Em três cenas o texto conta a história de uma personagem misteriosa que não
se revela estar entre os vivos, mas deixa uma lição de vida e humildade na
contracena da festa de Nossa senhora do Rosário dos Pretos, padroeira da
Vila Operária, onde vivem Isabel, Lourival e Josefina. É uma experimentação
reflexiva que deixa a plateia na dúvida sobre trajetórias da consciência
humana.
Personagens
Isabel – Artesã
Lourival – Boêmio
Josefina – Benzedeira
Josefina – Tá ficando uma belezura, dona Isabel, a senhora tem muito gosto de
fazer essas toalhas coloridas... Olha essa!
Isabel – São seus olhos, dona Josefina, todo ano na festa da padroeira a gente
sente o coração acelerar, um gosto bom, a novena, você benzendo o povo...
Josefina – (Em segredo) Parece que tudo degringolou depois que aquele
home estranho veio morar aqui...
Isabel – Deus seja louvado, os Orixás e as Nkisis que nos protejam, a nossa
padroeira é forte!
Isabel – O mais estranho é que ele veio morar na casa do finado Aleluia, diz
que é vendedor de panelas, mas só vende em outros lugares...
Isabel – Trambolho é?
Josefina – Pois se viu, viu demais, não é nada do que a senhora está
pensando, ele foi pedir pra benzer o peito porque tava sentindo um chiado...
Josefina – Benzi e benzo a hora que ele precisar, por sinal ele é muito
carinhoso...
Lourival – (Cantando)
Josefina – (Véu cobrindo a cabeça) Ele canta tão lindo, não é dona Isabel?
Isabel – Não!
Isabel – Panela!
Isabel – Panela!
Isabel – Panela!
Isabel – Panela!
Josefina – O que foi dona Isabel? Seu Lourival, pega umas folhas pra eu
benzer essa mulher...
Josefina – Não!
Isabel – Ele estava aqui com aquela capa preta e aquele chapéu estranho...
Lourival – Sim!
Isabel – O que o senhor sabe sobre aquele homem estranho?
Lourival – Eu já soube que era ele depois que ouvi os primeiros rojões...
Lourival – Nunca vi o rosto, só sei que ele passa com o saco de panelas e
segue rua abaixo...
João – Prometi ao meu pai que nunca incomodaria a sua vila natal com a
venda de panelas, o barulho incomodava as pessoas, ele mesmo fabricava no
socavão da sua casa, sempre aprendeu tudo sozinho, pediu-me que não
contasse a ninguém sobre a minha mãe...
Lourival – Alguns mistérios entre o céu e a terra não são desvendados pelas
nossas mentes limitadas... Eu, por exemplo, só via seu João passar bem cedo,
mas nunca vi o seu rosto, no máximo respondia: Bom dia! Isso era madrugada
a fora... Parece a voz de um homem sofrido, na verdade eu nunca soube que o
velho Aleluia tinha filho...
João – Na hora que surge uma dúvida como essa a melhor coisa é ir buscar
resposta no passado, pensem na relação de vocês e dessa vila com o velho
Aleluia, as dívidas, as relações... Já se perguntaram o que um vendedor de
panelas viria fazer nessas bandas? São muitas perguntas sem respostas, não
é?
Isabel – O que ele quer dizer com isso? Já estou ficando assustada!
Lourival – São mitos mistérios, mas não tenha medo dona Isabel...
João – Vocês não lembram? Aleluia penou sozinho por mais de três anos,
adoeceu e ficou se tratando com ervas dentro da sua própria casa, ninguém
dessa vila acompanhou a sua saga final, ele se tornou um velho esquecido,
entregue a própria sorte, um dia, de madrugada, a alvorada da festa da
padroeira abafou o seu grito de socorro e ele fechou os olhos para sempre,
quem iria se importar com um velho doente?
João - Como hoje, o corpo do velho Aleluia ficou exposto na porta da sua casa,
a Mãe Preta o carregou e ninguém percebeu a sua ausência durante três anos,
por isso ele não faria falta naquele dia... Aleluia é mais um homem preto
esquecido pela sociedade, como tantos outros homens e mulheres pretas não
fazem tanta falta, é como se fossem invisíveis...
Isabel – Ele está dizendo que nós não estamos cuidando bem dos nossos...
Isabel – Eu nunca mais vou esquecer o vendedor de panelas que nos trouxe
uma lição de vida... (congelam)