Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Odilon Amaral1
RESUMO
1. INTRODUÇÃO
Afinal, sobre qual lugar nós (e tantos outros) falamos? Para os seus
moradores, Noiva do Cordeiro é uma grande “família”, contudo, em
certos momentos, eles mesmos se definem como uma “comunidade”. Se é
difícil enquadrar Noiva do Cordeiro em apenas uma dessas definições, é
igualmente desafiador contar a história desse lugar. Não porque faltem
Certo e errado, macho e fêmea, pecado e virtude, sagrado e profano, urbano e rural, nós e
eles, natureza e cultura, preto e branco, selvagem e civilizado. Estas “oposições” são exemplos de
dualismos que fazem parte de sistemas de classificação pelo quais vão-se construindo significados
para que se dê sentido ao mundo social, “definindo, por exemplo, práticas aceitas ou não, grupos
incluídos ou excluídos […] a produção da diferença é um componente chave dos sistemas de
classificação” (PERDIGÃO, 2020, p. 34).
Segundo esse caminho, os modos de pensamento são estruturados em torno de polarizações,
muitas delas deliberadamente equivocadas (como machismo x feminismo), para se construir uma
diferença, “promovendo-se a marginalização daqueles que são definidos como “outros”, uma vez
que os termos que circunscrevem esses dualismos podem receber pesos desiguais e, assim,
pautarem-se por relações de poder” (PERDIGÃO, 2020, p. 35).
Até mesmo a palavra comunidade é frequentemente analisada por meio de dicotomias e,
segundo a pesquisadora e jornalista Juliana Perdigão (2020, p. 66), em vez de vir investida de um
necessário poder de resgate da solidariedade humana, é utilizada para designar grupos que estão à
margem dos recursos alocados pelo mercado, em tempos de competitividades e individualismo, na
era do globalismo neoliberal. Assim, aparece em debates como local x global; tradicional x
moderno; gueto x sociedade; povoado x cidade; rural x urbano.
Tal dualismo é manifestado e concretizado em instrumentos de dominação e opressão,
numa estrutura conceitual opressora, de viés machista, que visa, por exemplo “justificar” a
subordinação das mulheres pelos homens. “A base conceitual dessas estruturas de dominação está
localizada nos dualismos de valor hierarquicamente organizados: homem/razão/branco/cis/humano/
cultura de um lado, e mulher/emoção/negra/trans/animal/natureza do outro” (MODEFICA, 2023).
A história (ou a “contação” da história) da urbanização, segundo Brenner (2018, p. 241), até
então enraizadas em seus dualismos ideológicos, vem se desmantelando, para usar palavra do autor,
frente a formas emergentes de urbanização. “Isso vem acontecendo não só entre as noções de cidade
e campo, urbano e rural, núcleo e periferia, metrópole e colônia, sociedade e natureza, humano e
não humano, mas também entre as escalas urbana, regional, nacional e global”. Nesse esteio,
3
tendem a ser superados os “dualismos estáticos da teoria urbana popular (cidade/campo, urbano/
rural, interior/exterior, sociedade/natureza)” (BRENNER, 2018, p. 317)
No estudo aqui apresentado, contamos, de forma suscinta, a história da Comunidade Noiva
do Cordeiro, analisamos a chegada de serviços básicos e de infra-estrutura à comunidade, em ordem
cronológica, a partir de entrevista semi-estruturada feita às moradoras -que são as porta-vozes da
Noiva do Cordeiro. Em seguida, encaixamos essa cronologia em alguns dos aspectos da Economia
Política da Urbanização que explicam e são ilustrados pelos progressos da Noiva do Cordeiro, como
o conceito de rururbano, a economia popular e solidária e, principalmente, a noção do comum, por
meio de uma breve revisão bibliográfica.
As citações referentes à entrevista semi-estruturada, em sua maioria, foram mantidas com a
redação original, para dar maior identidade, originalidade e proximidade aos relatos reproduzidas.
Relatos orais apontam que Maria Senhorinha e Chico Fernandes foram excomungados, com a
punição sendo aplicada às quatro gerações seguintes da família. Essa exclusão também se deu no
nível social, com os moradores das comunidades do Vale do Paraopeba se afastando do convívio da
família formada a partir de um adultério. O preconceito nos anos que vieram, naquele início do
século XX, “foi forte o suficiente para silenciar o assunto em toda família pelas décadas seguintes,
até a morte do casal” (PERDIGÃO, 2020, p. 35).
Dona Delina tinha 16 anos quando, na década de 1960, casou-se com o pastor evangélico
Anísio Pereira, que tinha 43 anos à época. Ele se autodenominada como “o cordeiro que guiaria a
comunidade” (PERDIGÃO, 2020, p. 36) e ergueu uma igreja com o nome Noiva do Cordeiro. O
casal teve 12 filhos. A rotina de orações, vigílias e longos períodos de jejum dificultava o trabalho
na roça, levando a comunidade a um estado grave de miséria e privações. O pastor não deixava que
as mulheres cortassem os cabelos, usassem maquiagem e, muito menos, fizessem uso de métodos
contraceptivos. Muitas tiveram dez, doze filhos ao longo da vida.
Por volta dos anos de 1980, os jovens começaram a questionar as imposições feitas pelo
pastor. De acordo com Perdigão (2020, p. 41), a proibição de ouvir música, dançar, a pobreza e a
rotina de orações e jejuns foram afastando a nova geração da igreja. No início da década seguinte,
uma noiva (ironicamente…) quis ter uma festa com música no seu casamento, desejo que,
realizado, encheu a comunidade de alegria e orgulho. Com a morte do pastor, em 1995, chegou a
vez de “evitar menino e fazer fartura”, segundo a moradora que organizou a festa de casamento
(PERDIGÃO, 2020, p. 42). A igreja foi demolida e o trabalho na roça organizado de maneira
coletiva.
Um bar foi construído no lugar da igreja e foi estabelecido que ali não haveria mais qualquer outro
tipo de doutrinação religiosa.
Paralelamente, esse foi o momento em que, segundo Juliana Perdigão, a discriminação em
relação ao modo de vida da comunidade se tornou mais forte. Na região, foram alimentados boatos
de que a Noiva do Cordeiro era uma comunidade de prostitutas e alguns moradores deixaram de
frequentar espaços públicos e a escola (2020, p. 44). O isolamento foi ainda maior que nos
5
Figura 1 - Tela de celular com os grupos de trabalho da Noiva do Cordeiro. Fotografia cedida por Juliana
Perdigão.
6
As refeições são servidas na “Casa Mãe”, uma construção central com cozinha, fogão a
lenha, refeitório e 36 quartos. Cerca de 90 construções já foram erguidas em torno da casa principal.
hoje, segundo a comunidade, são cerca de 400 moradores, sendo em torno de 90% nascidos na
Noiva do Cordeiro, segundo a comunidade. Durante a semana, a maioria dos homens deixa o local
para trabalhar em Belo Horizonte e em mineradoras e indústrias da região de Belo Vale. Na casa
central, há um teatro com capacidade para 100 pessoas. Lá são feitas apresentações teatrais,
contando a história da comunidade, e exibidos shows musicais da dupla sertaneja local (Márcia e
Maciel) e um cover da cantora Lady Gaga, encarnada por Keila Fernandes, uma das produtoras
locais. Os shows da dupla viajam pelo interior de Minas e por outros estados, principalmente São
Paulo. As apresentações de “Keila Gaga” -que teve sua identificação como sósia da artista norte-
americana pela comunidade graças à chegada da internet- ganharam espaço em programas de
televisão e shows na parada LGBTQIA+ em Belo Horizonte, na Praça da Estação.
Figura 2 - Cena do Show do grupo de Keila Gaga no teatro da comunidade. Fotografia cedida por Juliana
Perdigão.
7
As atividades artísticas são mais uma fonte de renda para 50 jovens que se dividem como
bailarinos, cantores e produtores nos shows (PERDIGÃO, 2020, p. 63). Recentemente, o pequeno
bar que foi construído no lugar da antiga igreja foi reformado e transformado num enorme espaço
de lazer, com palco espaçoso e moderno, onde visitantes de fora da comunidade, inclusive,
passaram a frequentar, por causa das atrações que vêm de fora, fruto do intercâmbio criado com as
diversas viagens dos artistas da Noiva do Cordeiro (como Milionário e José Rico, Padre Alessandro
Campos -cantor e apresentador de tv, conhecido como “Padre Sertanejo”-, a dupla Gino e Geno,
Figura 4 - As atrações artísticas da Noiva do Cordeiro rompendo os limites da com unidade. Imagens: redes
sociais.
Figura 3 - Espaço para shows e lazer, onde era o antigo bar da comunidade. Fotografia do autor.
8
entre outros) e, também, por dar espaço a artistas da vizinhança, sem oportunidades em outros
palcos.
“Nóis é da roça!”
A afirmação acima é ouvida com frequência para quem pergunta sobre os moradores da
Noiva do Cordeiro. Em questionário respondido para este trabalho, uma comissão reunida pelas
moradoras refuta que a localidade esteja se tornando uma comunidade urbana:
De fato, a Noiva do Cordeiro pode ser caracterizada como uma comunidade rural que
passou por mudanças e adaptações ao longo do tempo, incorporando elementos de urbanização,
como diversificação econômica e acesso a serviços básicos. Porém sua história e evolução têm
algumas peculiaridades. Marques (2016, p.223) utiliza o termo rururbano para se referir a arranjos
socioespaciais como a Comunidade da Noiva do Cordeiro, porque, segundo a autora, o conceito
“valoriza o caipira e o provinciano que caracterizavam as comunidades outrora rurais que agora
estão em rápida mudança”. Mas não é complicado elencar uma série de variáveis cronológicas que
demonstram um processo, se não de transformação da localidade numa comunidade urbana, de
caracterização de um comunidade rural urbanizada -rururbana.
Neste estudo, analisamos a chegada de serviços básicos e de infra-estrutura à comunidade,
em ordem cronológica, a partir de entrevista semi-estruturada feita às moradoras - que são as porta-
vozes da Noiva do Cordeiro. Depois de décadas (quase um século!) de privações, a comunidade viu
enfim, a energia elétrica chegar até lá, em 1984, levada pela Prefeitura de Belo Vale. Segundo as
moradoras, a distribuição é feita “através de padrão colocado nas moradias, sendo que ainda tem
casas que usam luz emprestada, devido a [sic] burocracia exigida para extensão da rede elétrica em
algumas ruas” (sim! A comunidade tem ruas em seu interior).
9
Figura 5 - Rosalee Fernandes, filha mais velha de dona Delina, abre o projeto desenhado por Raul Belém
Machado. Fotografia cedida por Juliana Perdigão
Figura 6 - Antena de telefonia celular instalada pelas moradoras da comunidade. Fotografia do autor.
11
Desterro de Entre Rios (MG) e São Paulo (SP) e pagando em várias parcelas, os moradores da
comunidade conseguiram instalar uma torre repetidora de sinal de 30 metros. Com a praticidade do
serviço móvel, a comunidade não cogitou fazer maiores investimentos em telefonia fixa. Porém, o
equipamento, hoje, está à beira da obsolescência, deixando o serviço precário: “Dependemos
urgentemente de uma antena oficial de uma das operadoras Vivo, Tim, Oi ou Claro”, relatam.
Com relação aos uso e compra de terras, a comunidade relata que a única aquisição feita foi
ainda em 2013, “através do PNCF, Programa Nacional de Credito Fundiário, no MDA, Ministério
do Desenvolvimento Agrário, este terreno é usado somente para plantações”. O terreno foi agregado
à herança da família e as construções são feitas pelos parentes, sem necessidade de autorização: “As
casas são feitas na base de vaquinha e a mobília também, sempre que alguém decide construir”.
Ainda de acordo com a comunidade, hoje, existem 90 construções na área, entre casas e prédios.
Mais precisamente, são 83 construções habitacionais e oito de outras atividades comunitárias. A
comunidade possui seis prédios com 12 moradias, além de um prédio que abriga uma moradia, uma
loja de artesanato, um salão de costura e um supermercado comunitário. A Noiva do Cordeiro conta
ainda com uma Unidade Básica de Saúde, um escola, um centro de lazer, uma oficina mecânica e
uma miniloja de peças automotivas.
Uma característica marcante da comunidade é que, como é tudo propriedade comum, há um
grande rodízio entre os moradores. “
Mas toda essa movimentação é restrita aos integrantes da comunidade: “Não temos estrutura
física para acolher imigrantes, pois até maridos e filhos ainda precisam sair para trabalhar fora”.
De acordo com as moradoras, por volta de 30% da área da comunidade é ocupada por
moradias; 15% são dedicados à pecuária, as plantações ocupam cerca de 35%; e 20% são
compostos por reservas, para a conservação das nascentes. “As áreas reservadas à conservação
ambiental são exclusivamente por consciência dos moradores, visando a qualidade de vida de todos
os seres”, afirmam.
Em 2014, um outro garnde passo em relação à infraestrutura básica foi dado na Noiva do
Cordeiro, com a implantação do abastecimento de água por meio de uma empresa terceirizada
12
contratada pela Prefeitura de Belo Vale. Foi furado um poço artesiano “que deu tanta água, que
abastece também a comunidade vizinha, Roças Novas de Cima. A água não é tratada, “mas o
pessoal da saúde estão [sic] prometendo fazer a análise”. O processo de saneamento (esgoto) se dá
de duas formas segundo as moradoras: na “Casa Mãe”, onde mora a maioria das pessoas, existe
uma fossa séptica, idealizada por dona Delina e construída com recursos próprios. Nas outras casas,
fossa negra2.
Nesse mesmo ano, foi construída uma Unidade Básica de Saúde, mantida pela prefeitura, na
área da Noiva do Cordeiro. Uma vez por mês, a comunidade conta com atendimento médico de
geriatra, ginecologista, clínico geral, pediatra e assistente de dentista para avaliação. Antes, os
atendimentos eram feitos num quarto cedido pelos moradores. Eles não participam coletivamente de
qualquer plano de saúde privado e, em tratamentos que não são cobertos pelo SUS (Sistema Único
de Saúde), “fazemos vaquinhas para pagar todos os custos. A vaquinha é nossa companheira diária
para toda necessidade extra que alguém precise e não tenha condições de resolver sozinho”. Se há a
necessidade de se transportar algum morador para outra localidade, por motivo de saúde, a
comunidade diz que conta com o apoio integral da Prefeitura de Belo Vale.
Figura 7 - Unidade Básica de Saúde, instalada no alto do morro, no terreno da comunidade. Fotografia do
autor.
2 Asfossas negras são caracterizadas por uma escavação realizada sem revestimento ou tratamento adequado,
onde os dejetos são despejados (DE OLIVEIRA, 2015)
13
Aqui cabem parênteses e um pequeno avanço na linha do tempo, para exemplificar quão
coesa e organizada é a comunidade. Até o meio de 2023, a Noiva do Cordeiro não teve registro de
um caso sequer de Covid-19. Abaixo, segue o relato das moradoras:
instalação de uma unidade de ensino superior na comunidade. E sonhos são algo que elas costumam
realizar com alguma frequência…
Outra questão de infraestrutura básica, o transporte, é resolvido na base da solidariedade
entre os moradores e com o serviço prestado por uma empresa privada que, às segundas, quartas e
sextas-feiras, provê uma linha que leva da Noiva do Cordeiro a Belo Vale. A ligação da comunidade
à capital do estado passou por transformações recentes (2023). Um dos caminhos segue, saindo de
Belo Horizonte, pela BR-040 (Sul) até o trevo de Belo Vale (Pires), de onde se pega a MG-442,
uma estrada sinuosa, estreita, sem acostamento, passando por uma extensa área explorada pela
mineração, até se chegar ao centro urbanos e atravessar a cidade. O asfalto segue até certo ponto,
quando se tem que passar por uma estrada de terra, para, enfim, reencontrar o caminho
pavimentado, já próximo à entrada da comunidade. Uma alternativa é pegar o trevo de Moeda
(Itabirito), antes da saída para Belo Vale, na BR-040, e seguir pela LMG-825, atravessando a cidade
de Moeda. Até 2022, a ponte que passava sobre o rio Paraopeba, desmoronada, obrigava a se dar
uma volta por uma estrada estreita de terra, passando por várias fazendas, até se retomar a estrada
Bonfim/Moeda, ainda de terra, e se reencontrar com o asfalto no distrito de Roças Novas de Cima,
há cerca de dois quilômetros da Noiva do Crodeiro.
Em junho de 2023, antes de o autor visitar a comunidade pela primeira vez depois da
pandemia, ao ser perguntada qual o melhor caminho para se chegar até lá, a filha mais velha de
dona Delina, Rosalee, exclamou: “passa por Moeda! Está tudo asfaltado! Até que enfim!”.
Figura 9 - Estrada de acesso à Comunidade Noiva do Cordeiro, em 2018. Fotografia cedida por Juliana
Perdigão.
15
A Noiva do Cordeiro, nos últimos tempos, tem uma forte tradição de autossuficiência, com
grande parte dos alimentos consumidos sendo produzidos localmente. A agricultura e a produção
artesanal desempenham um papel importante na economia da comunidade, mantendo-a conectada
às suas raízes rurais. As plantações são variadas. Segundo as moradoras, a comunidade cultiva
milho, feijão, arroz, mandioca, abóbora, cenoura, beterraba, tomate, pimentão, cebola, cebolinha,
coentro, salsa, couve, almeirão, alface, espinafre, rúcula, vagem, agrião, tomatinho, baroa, inhame,
mexerica, couve-flor, laranja, chuchu, abobrinha, cana, limão, abacate, banana, repolho, brócolis,
café, ora-pro-nobis, taioba, dentre outros. As criações se dividem entre porcos, galinhas, bovinos:
“então temos carne, ovos, leite, queijos, requeijão, doces e manjares”. Toda produção excedente é
comercializada para fora. O lucro é usado para comprar o que não é produzido localmente e para o
pagamento do empréstimo feito para a aquisição das novas terras em 2013, prestação de veículos,
entre outras necessidades em comum.
Ao contrário das décadas de privações, o cultivo de alimentos traz muita fartura para a mesa
da Noiva do Cordeiro. O que não é produzido localmente é adquirido no supermercado comunitário.
Para os produtos de limpeza, elas compram a matéria prima e fabricam ali mesmo. Elas vão atrás de
16
Figura 11 - O casarão original da Noiva do Cordeiro em 2018 e em 2023, depois de recuperado e restaurado
pelas própria moradoras. Fotografias de Juliana Perdigão (esq.) e do autor (dir.)
Figura 12 - Placa antiga da chegada à comunidade, antes (2018) e depois do asfalto (2023). Fotografias de
Juliana Perdigão (esq.) e do autor (dir.)
17
A tomada de decisão tem participação direta. As células da economia popular são unidades
domésticas que dependem do trabalho próprios para se reproduzirem, fundadas em relações de
parentesco. Para Paul Singer, secretário da Secretaria Nacional de Economia Solidária de 2003 a
2016, a sociedade, para ser igualitária, necessita que a economia seja solidária, isto é, não
competitiva. A economia solidária faria parte de uma luta por uma “outra economia”, em oposição à
globalização neoliberal, ao uso desmedido do meio ambiente e à violação dos direitos humanos.
Ness espectro, quase que retratando a comunidade da Noiva dos Cordeiro ao novamente citarem
Singer, Fernandes & Diniz concluem que a forma de organização feminista é a mais adiantada no
sentido da construção de uma economia solidária e pode contribuir claramente para a crítica
feminista da economia popular e de sua herança patriarcal.
Vários elementos presentes na Nova do Cordeiro seriam alternativas aos limites da
economia popular: a igualdade racial, sexual, social entre os indivíduos; a organização do trabalho e
distribuição da produção pautadas pela reciprocidade; a (re)distribuição dos recursos e produtos de
forma igualitária; a associação em torno de modos de produção e gestão coletivos e diretos que
respeitem suas existências sociais; a crítica à globalização neoliberal, ao uso irrestrito do meio
ambiente e à violação dos direitos humanos; e a crítica feminista ao patriarcado e às formas
tradicionais de organização da atividade produtiva e da vida social (FERNANDES; DINIZ. 2018, p.
266).
18
“Ou seja, nada é comum por natureza: um recurso é tornado comum por uma prática coletiva de
gestão e cultivo (Dardot e Laval, 2015. apud TONUCCI; MAGALHÃES, 2017, p. 444). O comum
como substantivo envolve muito mais a construção de um princípio político”. Os autores
acrescentam que “o comum é antes uma relação social e um conceito político do que um bem ou um
regime coletivo de propriedade […] o comum é antagônico ao capital” (TONUCCI;
MAGALHÃES, 2017, p. 446).
Tonucci & Magalhães lembram que a defesa da política do comum deve ser encarada a
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
emancipação da comunidade, até que ela (mais uma vez, personagem feminina) se transformou
noma espécie de centralidade na região, dados os seus progressos econômicos (populares e
solidários), tecnológicos e sociais.
A presença marcante do comum, raiz da palavra comunidade, é chave para entender o modo
de vida dessa família que, praticamente, se transformou numa localidade próspera, com várias
construções, infraestrutura que poucas cidades de pequeno porte, mas emancipadas politicamente,
têm. Dividindo recursos, conhecimentos, mas também sentimentos, lembranças de sofrimento, a
comunidade se mantém fiel não às suas raízes históricas, mas às ambientais, culturais e sociais.
O motor do feminismo, na contramão das premissas individualistas e segregadas do
neoliberalismo, impulsionou uma economia pautada no coletivismo, na solidariedade e na
sustentabilidade. Nem por isso, a Noiva do Cordeiro deixou-se desligar do mundo exterior. Exerce
um intercâmbio comercial, econômico e, principalmente, cultural, tornando-se, mais uma vez, uma
referência regional e academicamente universal, estudada e reportada em vários continentes e
idiomas. Ainda que imprecisamente, às vezes, sob óticas preconceituosas que se recusam a entender
a emancipação feminina, a Noiva é exemplo peculiar e uma demonstração de que cabe uma
investigação maior e de mais fôlego sobre histórias que possam enriquecer o estudo de
comunidades urbanas ou que passaram por processos alternativos de urbanização no Brasil. E,
mesmo, de emancipação.
Por fim, terminamos com uma reflexão das moradoras, em resposta à entrevista que serviu
de guia a este estudo, comparando o passado doloroso ao presente emancipado e promissor:
“O que assistimos e ouvimos nos trás grande admiração, que o passado se transformou da
água para o vinho, tem hora que sacudimos a cabeça para ter certeza que é verdade e pensamos se
os mortos do passado ressuscitassem e assistissem essa modernidade tornaria [sic] a morrer de
susto”.
REFERÊNCIAS
BRENNER, N. Espaços da urbanização: o urbano a partir da teoria crítica. Rio de Janeiro: Letra Capital;
Observatório das Metrópoles, 2018. [1. O que é teoria crítica urbana?]
COUTINHO, Jefferson da Fonseca. Jovens de Noiva do Cordeiro organizam grupo artístico e sepultam
preconceito. Estado de Minas, Belo Horizonte, 22 de abr. de 2012. Disponível em: https://www.em.com.br/
app/noticia/gerais/2012/04/22/interna_gerais,290238/jovens-de-noiva-do-cordeiro-organizam-grupo-
artistico-e-sepultam-preconceito.shtml. Acesso em 04 de jul. de 2023.
21
DE OLIVEIRA, Souza Karyne Francielle. Fossas negras: um problema para o meio ambiente e para a
saúde pública. Faculdade de Educação e Meio Ambiente - FAEMA, 2015. Disponível em: http://
repositorio.faema.edu.br:8000/xmlui/handle/123456789/531. Acesso em 08 de jul. de 2023.
GAGO, Verónica. What are popular economies? Some reflections from Argentina. Radical Philosophy, n.
202, p. 31-38, 2018.
MODEFICA. A Lógica da Dominação Explica o Porquê Sexismo e Especismo Andam Juntos. 2016.
Disponível em: https://www.modefica.com.br/logica-da-dominacao-sexismo-e-especismo-ecofemismo/.
Acesso em: 02 de jul. de 2023.