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PÓS-GRADUAÇÃO EM TERAPIA
COGNITIVO-COMPORTAMENTAL
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responsáveis pela condição sexuada, mortal e infeliz de toda a humanidade”.
Eternamente responsáveis pelos atos de maldade no mundo, as mulheres
atravessaram as mais diversas etapas da história sendo penalizadas pelo
pecado de Eva. Durante a Idade Média, as mulheres eram consideradas pela
igreja como ato desviante no meio social. Elas seriam a razão (e a justificativa)
para que os homens caíssem em pecado, e, portanto, deveriam ser vistas
apenas como ser responsável pela procriação (SILVA, 2014). Segundo o autor,
[...] a mulher sempre foi vista como inferior ao homem, devido a sua
sexualidade e responsável por conduzir a humanidade ao pecado, e o
cristianismo pouco fez para mudar essa situação; ele sempre confiou e
propagou que a mulher deveria estar limitada ao domínio masculino
(SILVA, 2014, p. 5).
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viu e tratou as suas mulheres. Até o início do século passado a mulher não tinha
direito a bens em seu nome, conta bancária ou qualquer outra posse, sem que
houvesse um marido ou pai (figura masculina) como avalista de suas finanças
(DUARTE; PAULINO, 2020).
Historicamente, a mulher ficou subordinada ao poder masculino, tendo
basicamente a função de procriação, de manutenção do lar e de educação dos
filhos, numa época em que o valor era a força física. Na síntese de Maria
Berenice Dias:
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Consequências sociais do machismo
O machismo se apresenta como um dos comportamentos sociais que
mais afetam a cultura da humanidade, pelos desdobramentos possíveis de um
mesmo ato. Se por um lado as mulheres são subjugadas e sofrem com o
machismo, por outro também alimentam em alguns momentos esta cultura, até
mesmo sem perceber (COUTINHO; MENANDRO, 2015).
Resultado da forma como foram criadas, as mulheres acabam por
reproduzir comportamentos machistas sem se dar conta, especialmente na
criação dos filhos, mas também na forma como tratam os homens. Ocorre que
a criação das meninas também é fortemente influenciada pela cultura do sexo
predominante, da força masculina em oposição à fragilidade feminina,
reproduzindo comportamentos geração após geração. Nesse sentido, é
possível utilizar as palavras de Simone Beauvoir:
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ao seu redor, normalmente envolvida com as tarefas da casa, e repreendendo
comportamentos que não julgue adequados à feminilidade. Seja pela
reprodução do comportamento que vivenciou em sua própria infância ou por
medo do que a criança sofrerá se agir diferente do padrão, a mulher acaba
criando uma nova mulher frágil ou um novo homem machista. Comprova-se,
portanto, que uma mulher não pode ser machista, pelo seu próprio gênero, mas
ela pode sim reproduzir a cultura machista:
A maior questão desse episódio talvez nem tenha sido a fala do ator, mas
sim a resposta da sociedade a ele. As próprias mulheres condenaram o ator,
dizendo que é sim obrigação do homem pagar a conta. Não seria esse um dos
casos onde o próprio comportamento feminino impulsiona a obrigatoriedade do
comportamento masculino dentro de padrões pré-definidos?
Espera-se do homem que abra a porta do carro, que pague a conta, que
sustente a casa, mas não se admite, por exemplo, que a ultima opinião na
criação dos filhos seja do homem. Se o impasse na educação dos filhos existe,
é a mulher quem dá a ultima palavra. O homem não pode impedir a mulher de
trabalhar, sair com as amigas ou realizar suas atividades sem que seja
considerado um machista opressor. No entanto, é constantemente motivo de
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chacota por ter que pedir autorização à sua mulher para o futebol com os
amigos (BEAUVOIR, 2016).
O que é socialmente aceito nos papeis de homens e mulheres é resultado
de uma criação que reproduz comportamentos seculares, como quando a filha
deve achar natural lavar a louça do jantar enquanto o irmão joga vídeo game
na sala, ou quando a sociedade não aceita que uma mulher não queira ser mãe,
ou vestir-se de maneira feminina, e até mesmo quando o sucesso na carreira
de uma mulher é questionado, considerando sua beleza versus sua
competência (GERALDO, 2021).
Mas o machismo também surge na visão e no comportamento das
mulheres, como quando uma mulher acha inaceitável que seu marido receba
um salário menor que o dela, ou quando julga um homem sensível como fraco
(GERALDO, 2021).
Conforme Geraldo (2021), a mulher espera naturalmente pela figura de
força e poder do homem. É enraizado em sua formação o fato de que o homem
estará ali para defende-la, para tomar suas dores e ser o cavalheiro com que
ela sempre sonhou (ou a ensinaram a sonhar).
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ocasiões, especialmente quando a mulher é a responsável por criticar o
comportamento de outra. Um desses exemplos é quando uma mulher usa a
roupa ou comportamento de outra para justificar o estupro, como se este fosse
um impulso masculino irrefreável. São comentários feitos de forma
inconsciente, mas ao ficar sabendo de um caso de violência doméstica, onde o
marido agride a esposa, é comum a pergunta “mas o que aconteceu” como se
houvesse história ou motivo que fosse suficiente para justificar ou validasse
uma agressão (GERALDO, 2021).
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A influência da cultura machista no
desenvolvimento psicossexual
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assumido como verdade, sem que seja analisada a sua origem ou finalidade
(ALVAREZ; GUTIERREZ, 2022).
Esses “efeitos de verdade” mencionados por Foucault (2014) foram os
principais responsáveis pela construção da hegemonia masculina, da cultura
do machismo, da desvalorização e alegada submissão feminina,
comportamentos que conduzem a desigualdade social até os dias atuais. A
frase que, de tão repetida, passou a ser verdade, se caracterizou como um
desses efeitos de verdade, tornando-se, portanto, uma verdade. E isso não se
restringe somente às questões de poder entre homens e mulheres, mas
também entre negros e brancos, pobres e ricos, e assim por diante. Segundo
Bordieu “os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos
dominantes, às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como
naturais” (BOURDIEU, 1998, p. 23).
Se a construção do poder masculino é apontada desde as sociedades
primitivas, influenciando fortemente a forma de tratar as mulheres, é somente a
partir do século XIX que esta construção ocorre também pelo poder feminino.
Resultante do cansaço dessas mulheres em serem subjugadas, diminuídas e
humilhadas, surge a corrente dos movimentos feministas, “contrárias aos ideais
moralizantes da igreja e da escola que difundiam um ideal feminino
caracterizado pela submissão” (COUTINHO; MENANDRO, 2015, p. 53).
Ainda nos anos 1950 os papeis naturais interpretados pelas mulheres
eram voltados ao cuidado do lar, à maternidade, ao casamento, tendo como
guia diversas publicações que ensinavam a mulher como tratar seu marido e
deixa-lo feliz. Mesmo com o aumento da participação feminina no mercado de
trabalho, a sociedade ainda via a saída da mulher de seu lar como algo
negativo, resultado dos efeitos de verdade multiplicados por séculos. Segundo
Duarte e Paulino (2020):
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interesses multiplicados por instituições influentes, como o estado e a igreja,
responsáveis por perpetuar estas relações de poder (SILVA; LAPORT, 2019).
Importante ressaltar que essas relações são naturalizadas e reproduzidas por
homens e também por mulheres (OLIVEIRA; PEDERSEN, 2018).
É exatamente nessa reprodução do machismo pelas mulheres que está
a questão da educação machista, a do desenvolvimento psicossexual do
indivíduo, que traz sobre si a herança cultural, convicções e sentimentos que
conduzem à determinação de poder masculino. E a educação machista é
reproduzida também pelas mulheres (CORTES et.al. 2015).
De acordo com o princípio básico da Terapia Cognitivo-Comportamental
(TCC), a forma como os sujeitos visualizam a realidade influencia diretamente
na forma como ela é percebida e reproduzida em suas ações. Ou seja, como o
indivíduo se sente e age influencia no modo como reproduz sentimentos e
pensamentos (SILVA; LAPORT, 2019). Essa forma de pensar é compactuada
por Aaron Beck (2013), que aponta que essas percepções da realidade são as
crenças mais centrais dos indivíduos.
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complexa, por incluir sentimentos depreciativos com relação a si próprio, como
a inferioridade, vulnerabilidade e incompetência. Na categoria de desvalor, os
sentimentos desvalorizam qualquer tipo de qualidade e até mesmo de
característica, ou seja, o indivíduo se considera uma pessoa ruim, sem valor e
insignificante. Já a categoria de desamor é relacionada principalmente ao medo
de não conseguir ter intimidade ou atenção em um relacionamento (BECK,
2013). Essa é a chamada tríade cognitiva, denominada por Aaron Beck (1997),
que pode potencializar os efeitos em pacientes deprimidos, considerando a
conjectura de que as emoções e comportamentos sofrem a influência da forma
como o sujeito vê determinado evento, e não necessariamente da forma como
ele realmente é (GOULART; PONTES-RIBEIRO, 2021).
Um dos eventos que pode ser analisado sob essa perspectiva é o existir
da mulher em uma sociedade que é voltada ao benefício e exaltação do homem
como figura de poder. É nítido que a mulher verá a situação de acordo com
suas próprias experiencias e convicções, e o homem desta mesma forma. A
maneira como cada sujeito interpreta determinado evento ou situação é
configurada em três categorias de processos cognitivos, sendo os
pensamentos automáticos, crenças intermediárias e crenças centrais, segundo
Beck (2013).
Os pensamentos automáticos se originam das crenças centrais, sendo
pensamentos rápidos e breves. Nos pensamentos automáticos não existe uma
análise aprofundada, sendo geralmente interpretados de maneira irracional e,
portanto, tidos como efeitos de verdades para o sujeito (BECK, 2013).
As crenças intermediárias são constituídas de suposições, regras,
atitudes e pressupostos sobre determinado acontecimento. Já as crenças
centrais se caracterizam como as percepções do sujeito sobre sua realidade,
do outro e sobre o mundo. Também nomeadas de crenças nucleares, já
analisadas neste texto, são desenvolvidas nos primeiros anos de vida, e por
esta razão, são profundas no cognitivo humano, fazendo com que as
informações recebidas durante a vida sejam naturalmente selecionadas e/ou
manipuladas pelo inconsciente para que estas confirmem sua crença, seja ela
verdadeira ou não (BECK, 2013).
É a partir das crenças centrais, ou nucleares, que comportamentos como
o machismo se desenvolve e se reproduz, criando pressupostos a respeito da
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fragilidade da mulher, estimulando a crença de que esta precisa (é dependente)
do homem para sobreviver ou ser feliz, que são desamparadas, desprovidas de
valor e indignas de respeito ou amor (MELO, 2020).
A partir da Teoria Cognitivo Comportamental, supõe-se que, quando uma
mulher passa a vida recebendo a informação de que o homem é, de alguma
forma, superior, que ela própria não pode ter certos tipos de comportamento,
ou outras características do machismo, são fortalecidas as crenças
disfuncionais pré existentes (BECK, 2013).
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Segundo as análises realizadas nessa pesquisa, conclui-se, portanto, que
o machismo não é presente somente nas atitudes dos homens, mas também
das mulheres, de toda uma sociedade que reproduz crenças negativas em
todas as suas instituições, tornando-as uma espécie de saber do senso comum.
As representações sociais estão sim presentes no cotidiano da
sociedade, determinando regras de conduta, pensamentos, ações, percepções
e interpretações da realidade, incluindo a visão que o sujeito tem sobre si
próprio e sobre o mundo.
Por fim, foi possível concluir que o machismo e seus resultados na
desigualdade social precisam ser discutidos em todas as esferas sociais,
iniciando pelas crenças transmitidas ainda nos primeiros anos de vida do
sujeito. É necessário desconstruir o modelo de dependência da mulher, de força
e providência do homem, para então assumir as características de cada
indivíduo como ser humano, sem que seja necessário considerar seu gênero
para qualificar suas habilidades ou ditar seu comportamento.
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