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Festival de Arte 2007 . INTERNOEXTERNO .

DEART FACS UFU

Relações entre a Arte Contemporânea e o Feminismo.

Talita Trizoli.1

Resumo:

Nesse artigo, propõe-se investigar a influência do movimento feminista na arte


contemporânea. A fim de melhor contextualizar a pesquisa, são discutidos
primeiramente aspectos das definições de Gênero e da construção da identidade
feminina no ocidente para com isso identificar quais pontos foram afetados pelas
premissas ideológicas feministas/femininas na produção artística pós-moderna. Após
essa análise, são introduzidos dados históricos da arte americana após a década de
1960, sobre a trajetória da influência do feminismo na arte no século XX, para então
verificarmos quais artistas, homens e mulheres, abordavam temas, materiais e
técnicas relacionados à ideologia feminista.

Palavras-chave:

História da Arte, Arte Feminista, Crítica de Arte, Gênero.

Para entendermos as conexões ideológicas entre o movimento feminista e


a arte contemporânea, é relevante discutir primeiramente a definição de
Gênero, e o modo com que a identidade feminina ocidental fora construída no
decorrer dos tempos, para então verificarmos como, onde e porque o
feminismo “infiltrou-se”, ou melhor, “aliou-se” à arte. Segundo as afirmações de
Joan Wallach Scott, presente no artigo Gender and the politics of history, o
termo Gênero possui na coletividade duas demarcações:
Minha definição de Gênero tem duas partes e vários subconjuntos. Eles
são inter-relacionados, mas devem ser analiticamente distintos. O núcleo da
definição repousa em uma conexão integral entre duas proposições: gênero é um
elemento constitutivo de um relacionamento social baseado em diferenças
percebidas entre sexos, e gênero é um modo primário de significar
relacionamentos de poder. 2

Partindo dessa premissa, atenho-me à primeira definição, onde Gênero,


como área de estudo, abarca as respectivas divisões sexuais e
comportamentais que os indivíduos, do sexo feminino e masculino, sofrem do
grupo social ao qual pertencem, a fim de determinarem sua identidade, caráter,
função e espaço sócio-físico. As relações de dominação pelo sexo serão
discutidas dentro da primeira premissa no decorrer do artigo, pois darei maior
importância aos componentes estruturadores do gênero feminino no ocidente
cristão a fim de rastrear a formação da identidade feminina e

1
Graduada em Artes Visuais pela UFU, e pesquisadora do Núcleo de Pintura e Educação da – UFU.
2
SCOTT, Joan Wallach. Gender and the politics of history. E.U.A.: Columbia University Press, 1998, p.
42.
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consequentemente, sua presença na produção de arte do século XX. Na fala


de Héritier, sobre os modos de dominação masculina para com o feminino:
A sociedade ocidental, para quem a observa, caracteriza-se por uma clara
dominação masculina. A subordinação da mulher é evidente no domínio do
político, do econômico, do simbólico. Há poucas representantes femininas em
órgãos locais ou centrais de governação... No plano econômico, as mulheres estão
a maior parte das vezes confinadas a esfera doméstica... Quando tem actividades
fora do campo doméstico, é raro que as mulheres consigam ascender ao topo, aos
cargos de responsabilidade, de direção, de prestígio, na sua profissão.
No plano simbólico, orientado pela tradição e pela educação dada aos
filhos, as actividades valorizadas e apreciadas são as que os homens exercem. 3

Seguindo tal raciocínio, resta à mulher como espaço físico, a casa, como
espaço psicológico, a família e como atividade principal a obediência e
devoção ao masculino e suas necessidades. Mesmo com os avanços obtidos
com o movimento feminista e a rápida mudança de valores desencadeada pela
globalização no mundo, não é difícil encontrar vestígios de comportamentos
misóginos e machistas tanto nos atos, quanto no inconsciente de nossos
contemporâneos.
Sendo assim, a construção da identidade feminina, ainda se erige sobre
as estruturas da identidade de seu companheiro e/ou pai. A mulher é objecto
4
de uma operação que remete para outros. As respectivas identidades que a
sociedade “determinou” para o feminino, (isso até a mudança de valores da
revolução feminista, da revolução sexual e a massiva inserção no mercado de
trabalho no período da industrialização), estão relacionados com a necessidade
de controle sexual e de ser útil a algum homem, seja esse homem filho, pai,
marido, irmão. Segundo Basaglia:
A religião ou o mito querem-na submetida, inventando a culpa: a filosofia
considera-a inferior e chega a discutir se terá uma alma ou se será destituída dela;
a lei não a considera como pessoa jurídica e impõe-lhe uma tutela; a literatura não
sabe se a há-de vestir de anjo ou de demônio, para não lhe emprestar a máscara
da “persona”; a ciência – de modos diversos e com palavras diversas – define o
seu estado de inferioridade fisiológica. É uma orquestra de vozes que, no decurso
dos séculos, transmitem a mesma mensagem: os limites que a natureza te deu são
intransponíveis, aceita o lugar que te é reservado e serás agradável ao homem que
te quer assim. 5

Existem dois tipos de controle que a sociedade aplica ao feminino e que


auxilia de maneira agressiva a formação de nossa identidade: o controle sexual
e o controle do trabalho.

3
HÉRITIER, Françoise. Masculino/Feminino, p. 11, in: EINAUDI, Op cit.
4
BASAGLIA, Franca Ongaro. Op Cit, p. 165, in: EINAUDI, Op Cit.
5
Idem, p. 175. Grifo meu.
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O controle sexual, exercido pelas autoridades médicas, religiosas e


jurídicas, ocorre tanto pela necessidade masculina de legitimização da
paternidade6 quanto pelo desconcertamento frente à desconhecida sexualidade
feminina, tratada durante muito tempo como algo monstruoso, anormal e que
precisava ser reprimido pela sua indefinição e agressividade ao universo
masculino. Segundo MacKinnon´s:
Objetificação sexual é o processo primário da sujeição da mulher. Ela une o
ato com a palavra, construção com expressão, percepção com coação, mito com
realidade. Homem fode mulher; sujeito, verbo, objeto. 7

Ainda com os argumentos de Héritier:


Deste modo, não é o sexo mas a fecundidade que estabelece a diferença
real entre o masculino e o feminino, e a dominação masculina, que convém agora
tentar compreender, é fundamentalmente o controlo, a apropriação da fecundidade
da mulher, no momento em que esta é fecunda. 8

Já o controle do trabalho ocorria, até meados do início do século XX,


principalmente com o confinamento da mulher dentro do espaço privado da
casa, designando a ela então atividades domésticas, como a limpeza, a
educação dos filhos, a cozinha, a costura e o cuidado com si própria para o
agrado do olhar do homem e dos vizinhos.
Em um texto sobre o desenvolvimento visual do arquétipo da Noiva,
afirmo sobre a construção do “eu” feminino:
Por um lado, pintam-nas todas como destinadas a serem boas mães,
seguindo o exemplo da Virgem Maria, naturalmente zelosas com seus filhos e com
a casa, obedientes ao extremo a seus maridos e pais, e por “natureza”, sendo
assexuadas e abstênicas. Já por outro, elas têm sua natureza, seu “eu”, conectado
diretamente a figura do demônio, ao primeiro pecado da primeira mulher, Eva. São
representadas também como objetos de tentação, disseminadoras de conflitos e
doenças, criaturas inconstantes e indecifráveis tanto no corpo como na mente, ora
infantis, tolas, ora megeras vingativas, assassinas ciumentas e furiosas.
Segundo essa análise, que apresenta bem o pavor masculino frente a
indecifrável natureza feminina, nada de bom e/ou puro pode vir de uma mulher
livre, não controlada pelos parâmetros masculinos. Uma mulher sem família, sem
pai, marido e filhos é um ser “não humano” e antinatural, ameaçador à ordem
vigente9. Mesmo as viúvas, as velhas, as solteironas e tantas outras
6
If reproduction was the key to patriarchy for some, sexuality itself was the answer for others.
SCOTT, Joan Wallach, Op Cit, p. 34.
7
MACKINNON, Catherine. Feminism, Marxism, Method, and the State: An Agenda for Theory. p. 541,
1982. Apud SCOTT, Joan Wallach, Op Cit, p 34.
8
HÉRITIER, Françoise. Masculino/Feminino, p. 23, in: in: EINAUDI, Op cit.
9
Na Vida de Antônio, essa multidão de rostos e corpos femininos, que assaltava a imaginação dos
monges, é associada ao demônio. Era outra a imagem da mulher emergente nesses escritos: a
diabolizada, carnal, que devia ser execrada do espírito. A única imagem que reabilitava a mulher era,
como vimos, a da virgem, a da mulher sem sexo.
VAINFAS, Ronaldo. Casamento, amor e desejo no ocidente cristão. São Paulo: Ática, 1986, p. 16.
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representações dadas às mulheres durante séculos que não a de esposa e filha,


apresentam em si certa dificuldade de encaixe dentro da estrutura social.10

Nos raros momentos de desprendimento feminino do universo regido


pelos valores masculinos, interessa-me nessa pesquisa a inserção feminina no
universo artístico devido à natureza de nossa discussão. Tendo já levantado
algumas premissas sobre o “eu” feminino, podemos adentrar nos ecos
femininos e feministas da arte contemporânea.
Os primeiros sinais de diálogo, entre o mundo artístico e o movimento
feminista, se deram em meados da década de 60 nos EUA. Ou pelo menos os
primeiros registros de exposições e publicações encontrados, que se
posicionavam juntamente ao discurso ideológico feminista, datam dessa época.
O desenvolvimento desse diálogo coincide com o advento do próprio
feminismo no país, que surge em meio ao “Movimento dos direitos civis”,
(período em que a população reinvidicava a igualdade de direitos e condições
sociais), além do movimento estudantil na Europa em maio de 1968, na França
e ao desenvolvimento do pós-estruturalismo. 11
São deste período as manifestações públicas e passeatas em prol da
inclusão de trabalhos artísticos de mulheres em galerias, museus e coleções
de arte. Constam também daqui as primeiras performances vinculadas à
ideologia aqui estudada, e o Feminist Art Program, criado em Fresno, na
California Institute of Art, pelas artistas-professoras Judy Chicago e Miriam
Schapiro, como resposta à ausência feminina na teoria, mercado e produção
de arte americana.
O feminismo influenciou a arte durante cerca de 40 anos, quanto às
preocupações sobre a formação e normalização da identidade feminina, e seu
respectivo locus no mundo. Mas deixemos bem claro logo de início: arte
feminista, ou feminina, não é um movimento artístico, mas sim um modo
específico de interagir com o mundo e com a produção em arte. É um meio de
vida, como afirmam as autoras aqui discutidas. E, importante ressaltar também,

10
TRIZOLI, Talita. Noiva (As)Sexuadas. 2006. Trabalho apresentado no XV Encontro Regional de
História, São João Del Rey, 2006. No prelo.
11
A concepção pós-estruturalista baseia-se na negação das “verdades absolutas” dos estruturalistas. O
estruturalismo, nada mais é que uma corrente de pensamento das ciências humanas que se inspirou do
modelo da linguística, e que apreende a realidade social como um conjunto formal de relações e que
explora as respectivas inter-relações (as "estruturas") dos elementos formadores de uma cultura, e o
processo de formação de seus significados no meio ao qual pertencem. Para maiores informações vide:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Estruturalismo>. Acessado em 07 de fevereiro de 2007.
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arte produzida por mulheres não é necessariamente feminista/feminina. Ao


definir o feminismo como uma convicção, eu estou tentando acentuar a noção
de que ele também é uma maneira de interpretar o mundo e o trabalho. 12
Na fala da crítica Lucy R. Lippard, na citação a seguir, fica mais claro essa
diferença de um movimento de arte com temática feminista, e a influência do
feminismo na arte, e porque não se pode defini-lo como um movimento
artístico. A autora afirma que essa relação surgiu na década de 70, mas
atenho-me a afirmação de Peggy Phelan sobre o desenvolvimento inicial no
final da década de 60.
E a arte feminista não era um movimento – ou era um movimento, e ainda
é, mas não um movimento artístico, com as inovações estéticas e exaustivas
implicadas. Assim como Hesse apontou, críticos conservadores discutem que nada
aconteceu durante os anos 70, com o que eles pretendem dizer que nada
aconteceu exceto a arte feminista, a qual ainda que receba o nome de “movimento”
artístico não o fez baseada no estilo, mas no conteúdo. Outra razão é que ela
ainda ocorre. Esse mesmo conteúdo, colocado em fogo lento nos anos 80, tem
agora ressurgido no trabalho dos mais jovens e emergentes artistas, com uma
fúria. 13

Na década de 1970 do século XX, surge o primeiro programa de arte


feminista, já citado parágrafos acima, além de ligações com o Ecologismo,
14
ocasionando um ECO-Feminism, e tendo a artista cubana Ana Mendieta
como cabeça das respectivas conexões. A performance é a atividade mais
marcante na produção artística do período, com referências à violência
doméstica, ao estupro, e a busca pela definição e formação da identidade e
sexualidade (Psicanálise e Conceptual Art). Lippard afirma que:
Não é acidental que tanto do diálogo sobre se há e o que é uma imagem
feminista seja centrado sobre conceitos sexuais. Se as mulheres são mais
obcecadas pela sexualidade que os homens, é porque nós fomos criadas e
condicionadas a pensar em nós mesmas e nossos descendentes em termos
sexuais. Sexo é uma maneira de obter nossos desejos e é também a chave para o
amor e a afeição dos quais nós deveríamos ser tão dependentes.... E para melhor
ou pior, nossas interpretações também são condicionadas pela persuasiva
influência de Freud, que listou como representações simbólicas da genitália
feminina “todos os objetos que compartilham entre si a propriedade de diminuir um
espaço ou são capazes de agir como receptáculos como poços, buracos e
cavernas”. 15

A presença da sexualidade feminina e da eroticidade nos trabalhos da


época estruturam-se principalmente na premissa já discutida acima de que, a
identidade feminina é construída de acordo com seu papel sexual na sociedade

12
PHELAN, Peggy. Survey, p. 20, in: RECKITT, Helena. Art and Feminism, U.S.A. Phaidon Press, 2006.
13
LIPPARD, Lucy. The Pink Glass Swan. Select essays on feminist art. U.S.A. WW Norton, 1995, p. 25.
14
Artista cubana radicada nos E.U.A. Falecida em 1985.
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ocidental. Temos assim os trabalhos de Nancy Spero da década de sessenta


sobre a obscenidade da guerra do Vietnã, e a performances de Yoko Ono, e
Carole Scheemann que figuram essa linha de pensamento.
Um dado importante a ressaltar nessa fase do feminismo, é que arte
feminista produzida nos EUA é diferente da feita na Inglaterra e Europa, a qual
começa a aparecer no final da década de 70 do século XX. A principal
diferença apontada por Phelan é que, enquanto na Inglaterra e Europa, as
artistas mulheres estão ligadas intimamente com a teoria e crítica, na América,
há certa preferência pela manufatura, deixando a reflexão em segundo plano,
no entanto, com a prática artística e o desenvolvimento do discurso, ambas as
ações entrelaçaram-se, desembocando na terceira fase da arte feminista.
Na década de 1980, há então o advento de uma crítica forte ao
essencialismo16 na arte e aparecem também os primeiros sinais de aversões
quanto a aspectos racistas, conservadores e eurocentristas dentro do Feminist
Art. Essa década fora marcada por um retorno ao conservadorismo político e
teórico dentro do movimento feminista e artístico. Peggy Phelan faz o seguinte
comentário sobre esse período:
Ironicamente, entretanto, o aspecto mais apelativo do pensamento pós-
estruturalista veio de sua crítica às estruturas hegemônicas e elitistas do poder.
Adicionado a isso, o começo dos anos 80 foram dominados pelo retorno do
conservadorismo político na forma do governo de Ronald Reagan nos EUA e de
Margareth Thatcher na Grã-Bretanha. Isso parou, se não paralisou completamente,
o financiamento público à espaços de exibição, performances e imprensas
alternativas que tinham sido fundamentais no desenvolvimento do trabalho
feminista em anos anteriores.
Enquanto a virada conservadora estava tomando conta das políticas de
maior atenção, a dominância da mulher branca no feminismo, e especialmente
dentro da teoria acadêmica feminista, começou a ser denunciada como sua própria
forma de conservadorismo.17

Já Lippard afirma, em um de seus artigos, que a principal característica da


arte feminista da década de 80 é uma espécie de radicalismo propagandista,

15
LIPPARD, Lucy, Op Cit, p. 72 e 74.
16
O essencialismo é a doutrina segundo a qual os particulares (pessoas, cadeiras, árvores, números,
etc.) têm pelo menos algumas propriedades essencialmente. Um particular tem uma certa propriedade
essencialmente quando esse particular não poderia existir sem ter essa propriedade.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Essentialism&action=edit.> Acessado em 07 de
feveriro de 2007.
No contexto da arte feminista, Phelan assim define esse essencialismo na arte:
What has come to be called the essentialism debate might be better understood as a series of
investigations into the relationship that is enframed by language… The initial critique of essentialism in the
early 1980s rested on the impossibility of a ‘universal’ feminine, a central system of expression that could
be discerned across culture and across media.
PHELAN, Peggy, Op Cit, pp. 36 e 37.
17
Idem p. 30.
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onde a diversidade de gêneros adquiri voz e representa plasticamente seus


problemas e exigências sociais. Podemos verificar essas duas premissas nas
fotografias de Cindy Sherman e Carrie Mae Weens, e nas pinturas de Sonia
Boyce. Segundo Lippard:
Houve um tempo no meio dos anos 80 no qual todos pareciam concordar
que a arte feminista era a mais “quente”, radical, de ponta (eu odeio esse termo) na
área. Esses entusiasmo era provocado pelo interesse pós-moderno no gênero, e
isso aconteceu em uma época em que realmente a maior parte dos trabalhos
politicamente efetivos e vivos estava vindo de grupos ativistas gays como ACT UP
e Gran Fury que tinham causas políticas urgentes (AIDS e homofobia) para
abastecer suas declarações antiestéticas. 18

Em 1990 prevalece a crítica teórica e política na produção artística. Uma


miscelânea de engajamento político e filosófico invade a manufatura na arte da
década de 90, devido à overdose de conteúdos psicanalíticos e
questionamentos sexuais que houve na década passada. A marca principal da
produção do período é o constante intercambiamento do político e teórico, o
que resulta em investigações e questionamentos sobre a misoginia existente
na história da arte e as bases da dificuldade de inserção, e automática
exclusão das mulheres no mercado de arte. A história da arte e o mercado de
arte não estão isentos dos valores morais da sociedade ao qual pertencem.
Eles refletem suas ânsias, preconceitos e pensamentos vigentes. Zoe Leonard,
Sarah Lucas, Jenny Saville, Orlan e Hananh Wilke materializam esses
aspectos recém apontados em suas poéticas. Nos comentários de Isaak
acerca dessas implicações:
Enquanto é aparente que as críticas recebidas das suposições
metodológicas de outros campos poderiam ser aplicadas com milhares de
implicações à discussão da história da arte, a disciplina continua a empregar a
metodologia que reproduz a hegemonia cultural da classe, raça e gênero
dominante. A devida auto-análise da história da arte foi trazida à tona, em grande
parte, por mulheres artistas e historiadoras da arte.
A história da arte tem mascarado como um discurso socialmente e
politicamente insignificante envelopando-se no que Hadjinicolaou chama de
“retórica de eloqüência vazia”. Uma importante parte do projeto feminista tem
exposto essa máscara... 19

A história da arte tem servido para racionalizar o material sobre o qual o


patriarcalismo em sociedades capitalistas repousa: o controle do homem sobre o
poder de trabalho, sexualidade e acesso à representação simbólica da mulher....
Quando feministas começaram a intervir em grandes construções de
diferença da cultura, o que resultou na exclusão de mulheres artistas da história da
arte e exibições de arte, eles descobriram que o mito dominante sobre a natureza
da arte e dos artistas – a celebração do individualismo masculino criativo
18
LIPPARD, Lucy, Op Cit, p. 20 e 21.
19
ISAAK, Jo Anna. Feminism & Contemporary Art. The Revolutionary Power of Women’s Laughter. Great
Britain: Routledge, 1996, p. 47.
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encontrado em tantos discursos artísticos-históricos – não era algo que poderia ser
apontado como um exemplo de falsa consciência ou como uma forma arcaica e
portanto, suscetível à reformas. 20

Tais problemas e questionamentos são discutidos desde a década de


1970, mas a formulação, e investigação teórica do problema só ocorreram na
década de 1990. Phelan explicita sua opinião sobre essa produção teórica-
reflexiva do período:
Intersecção se tornou a chave para o desenvolvimento de uma crítica
rigorosamente intelectual, política e estética da estrutura da opressão, da conquista
imperialista do espaço e uma investigação da máscara, paródia, repetição e
mímica como formas de intervir na lógica da representação. Essa crítica era o
centro de grande parte da crítica e teoria da arte feminista nos anos 90. 21

A arte feminista é pluralista, portanto não é aconselhável dizer arte


feminista, mas artes feministas, no plural. Ela defende as diferenças na
subjetividade de seus artífices e espectadores. Mesmo com as críticas ao
racismo interno, e algumas desavenças de aspecto ideológico e teórico, o
discurso principal desse grupo reafirma a valorização das diferenças,
colocando em cheque o ideal de sujeito universal, ou melhor, a subjetividade
artística universal, que aceitava em seus parâmetros apenas os geniais
homens brancos.
Tanto que, ao longo desses 40 anos, os artistas homens também
passaram a discutir as mesmas preocupações em seus trabalhos devido à
diversidade de materiais e as grandes possibilidades de questionamento e
investigação do eu e dos afetos. Como diz o curador Paulo Herkenhoff, no
catálogo da exposição Manobras Radicais, ao se referir aos trabalhos de cunho
femininos/feministas, foi aberto espaço para um “território sensível” e, arrisco-
me dizer, inesgotável. Quanto a essa apropriação por artistas homens de
procedimentos “artísticos” vinculados culturalmente ao feminino podemos citar
22 23
como referência José Leonilson e Luiz Hermano , no âmbito nacional, e o
norueguês Hans Hamid Rasmussen24, no internacional. O feminismo abriu uma

20
ISAAK, Jo Anna. Op Cit, p. 48.
21
PHELAN, Peggy. Survey, p. 22, in: RECKITT, Helena. Op Cit.
22
Artista brasileiro nascido em fortaleza e integrante da geração 80. Falecido em 1993. Vide comentários
no site http://www2.uol.com.br/leonilson/ e no livro de CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira.
São Paulo: Lemos Editorial, 1999, p. 121 a 127.
23
Artista cearense residente em São Paulo. Vide site http://www.nararoesler.com.br/ e livro de
CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira. São Paulo: Lemos Editorial, 1999, p. 121 a 127.
24
Artista algeriano, residente em Oslo. Participou da 26ª. Bienal de São Paulo. Vide Catálogo BIENAL
DE SÃO PAULO, 26. 2004, São Paulo. Artistas Convidados. São Paulo: Hans Hamid Rasmussen, 2004.
Catálogo de exposição, p. 198. e o site http://www.du-store-verden.no/.
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nova arena de possibilidades interpretativas na arte devido à sua maneira


peculiar de encarar o mundo. Segundo a artista plástica inglesa, Mary Kelly:
O movimento das mulheres deu ao sujeito de práticas ideológicas uma
nova perspectiva ao atingir as questões da subjetividade e do inconsciente,
questionando a formação da “masculinidade” e “feminilidade”, e, mais
crucialmente, examinando as relações patriarcais que dão forma à toda prática
social e grifam a “tradição visual como um todo”. 25

Tais questões estão muito presentes na arte contemporânea, seja ela


executada por um artista homem ou mulher, pois, como nos afirma Lucy
26
Lippard: Claro que arte não tem gênero, mas artistas têm. Alguns desses
artistas até negam ou evitam a relação com as teorias feministas, mas os
elementos, materiais e práticas estão tão presentes nas composições e
discursos que fica difícil não perceber as conexões, sejam elas intencionais ou
não. Marcia Tucker nos afirma a respeito disso em seu livro Bad Girls: “Além
disso”, algumas mulheres que recusam o termo categoricamente tem atitudes,
idéias e comportamentos que eu chamaria de totalmente feminista, enquanto
outros que descrevem a si mesmos como tal não se comportam como se
27
fossem. Afinal, a arte contemporânea, assim como a arte das décadas de 70
e 80, fala ocasionalmente, ou constantemente, dependendo da poética, sobre
questões do corpo, de gênero, de sexualidade, de identidade, de autobiografia
ou memória, da infância e relações maternais, de estupro, e violência
doméstica, de abuso sexual e de relações de poder, discute direitos
reprodutivos (aborto), crimes passionais, dor, prazer, desejo, afetos e
determinações biológicas e sexuais à formação do indivíduo.
Uma outra característica presente em algumas recentes poéticas desde a
década de 90, mas que está ausente do parágrafo acima, é a relação próxima
ao consumo que a mulher, desde a industrialização, possui, e que pode ser
apontada como resultado da educação dispensada às elas desde a infância, ou
seja, os papéis destinados a nosso gênero: boas esposas, mães e rainhas do
lar. Isso é bem apontado por Isaak em certos trechos de seu livro Feminism &
Contemporary Art. The Revolutionary Power of Women’s Laughter.
Uma das teorias de aproximação da produção de arte feminina a esse
universo relaciona o consumo à mulher devido à sua condição “naturalmente

25
KELLY, Mary. Imaging Desire, U.S.A. MIT Press, 1998, p. 13.
26
LIPPARD, Lucy, Op Cit, p. 83.
27
TUCKER, Marcia. Bad Girls, U.S.A. MIT Press, 1994, p. 04.
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passiva”. O consumismo feminino é fruto da construção de um ideal feminino


voltado exclusivamente às necessidades masculinas da sociedade, e tal
comportamento estereotipado está presente em nosso imaginário coletivo há
tempos, e ocasionalmente, impediu que a crítica de arte, marchands e
curadores enxergassem o trabalho de mulheres artistas por sua qualidade
técnica, representativa e discursiva. Durante grande parte da história da arte
ocidental, as mulheres figuravam como musas ou assistentes e não como
artistas criadoras. Não era permitido, ou melhor, sequer cogitado que uma
mulher pudesse criar arte. Essa condição é determinada pelo meio
dominantemente masculino, o qual as feministas, artistas ou não, tanto lutaram
para modificar. Segundo Isaak, acerca dessa mudança de panorama nas artes
e suas adjacências:
Perguntar se o que estava em evidência no mainstream foi “feito à ordem
para mulheres”, como se isso aconteceu devido à algum alegre acidente, é falhar
em perceber que a verdadeira natureza da arte contemporânea mudou devido ao
poder da persistente crítica que as mulheres assumiram para si em suposições
chave sobre arte, história da arte, e o papel dos artistas. A convergência da crítica
feminista, a descentralização pós-modernista do assunto, e reflexões teóricas
sobre gênero, sexualidade, política e representação forneceram o momento para
um número de artista feministas que são, de fato, os artistas mais inovadores
trabalhando hoje... 28
A intervenção feminista na história da arte envolve olhar não apenas os
conteúdos desse discurso, as premissas insinuadas daquela história, mas também
aquilo de que ela finge não tratar, particularmente o mito de sua economia, política
e inocência sexual. 29

Deixando de serem espectadoras, as mulheres tomam a “liberdade” de


serem criadoras, e de determinarem suas imagens artísticas, de elegerem seus
tópicos plásticos. O movimento feminista na arte vem então para desconstruir a
premissa de mulher objeto de desejo. De musas inspiradoras para o olhar do
artista, passamos a ser o olho. Por fim, Heloisa Buarque de Holanda nos
afirma, no catálogo Manobras Radicais:
O grande legado do feminismo para as novas gerações foi o privilégio,
milernamente negado às mulheres, de explicitar sua raiva. A arte e a literatura do
século XXI são a prova disso. Assim como descobriram a estratégia para
radicalizar essa raiva: não perder a ternura. 30
28
ISAAK, Jo Anna. Op Cit, p. 02.
29
Idem, p. 06.
30
HOLANDA, Heloísa Buarque de. HERKENHOFF, Paulo. Op Cit, p. 146.
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E não perder a ternura, por mais grotesco e penoso que seja, é


essencialmente, um aspecto feminino. Seja no dia-a-dia, vivendo na mais
extrema miséria, na mais confortável e luxuosa torre de marfim, ou então
produzindo arte.
A relação entre arte e feminismo ofereceu ao olhar de artistas, críticos,
teóricos e ao público, a possibilidade de questionamento das normas sociais e
morais vigente sobre o prisma do estético e do inusitado, para o período. Ele
abriu espaço no seio artístico para as técnicas, as expectativas e os hábitos do
universo privado, da casa onde a mulher abita, para o interno.

BIBLIOGRAFIA

CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira. São Paulo: Lemos


Editorial, 1999.
EINAUDI, Enciclopédia: 20. Parentesco. Portugal: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1997.
HOLANDA, Heloísa Buarque de. HERKENHOFF, Paulo. Manobras Radicais,
São Paulo: ARTVIVA Editora, 2006.
ISAAK, Jo Anna. Feminism & Contemporary Art. The Revolutionary Power
of Women´s Laughter. Great Britain: Routledge, 1996.
LIPPARD, Lucy. The Pink Glass Swan. Select essays on feminist art.
U.S.A. WW Norton, 1995.
PATEMAN, Carole. O Contrato Sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1993.
PHELAN, Peggy, and RECKITT, Helena. Art and Feminism, U.S.A. Phaidon
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