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Por favor
não circulem além do seminário.]
SOBRE O RESUMO
Palavras-chave:
Introdução
1
Esse título faz referência ao documentário Mulheres da Pá Virada, produsido pelo Estudos
e Intervenção Marias Felipas atualmente em andamento.
2
Professora Doutora Cristina Fernandes Rosa, University of Roehampton London
3
Neste artigo, a categoria “mulher” é usada de maneira abrangente, incluídos todas pessoas
do sexo feminino como mulheres cis-, trans-, ou de identificação não-binaria.
4
O recorte deste artigo pretende discutir apenas a questão de gênero dentro da prática da
capoeira Angola. Entretanto, a autora reconhece que tais questões possam também ser
muita resiliência. Loucura total. Partindo desse ponto de vista, o comercial da Nike me força
a refletir no que significa estar escrevendo, em fevereiro de 2019, um artigo sobre mulheres
dentro de uma manifestação cultural de resistência historicamente negra e masculina. Afinal,
quem são essas mulheres e, parafraseando o comercial da Nike, que tipo the loucura elas são
capazes de fazer?
Rosângela Araújo, socióloga feminista e liderança do Grupo Nzinga de Capoeira
Angola [onde é conhecida como Mestra Janja] nos lembra que as mulheres hoje compõem
40% dos praticantes de capoeira no mundo (Araújo 2017). Como nos versos que o seu grupo
gosta de cantar: “capoeira é pra homem, menino e mulher.” Apesar de sermos muitas, na
minha própria jornada de capoeira na última década eu presenciei vários tipos de
discriminação de gênero. Também participei em muitas rodas de conversa onde foram
questionados, de uma forma ou outra, a hierarquia de gênero enraizada na malha dessas
comunidades. Foram levantadas, acima de tudo, as formas de violência oriundas de (ou
associada com) um modelo patriarcal de masculinidade tóxica. Questionamentos específicos
direcionam para a ridicularizarão ou desmoralização da mulher, o abuso da força física e o
assédio sexual. Outros apontavam para a questão da disparidade de gênero na graduação
através de títulos oficiais (i.e., mestra, contramestra ou trenel). As angoleiras encontram
várias resistências e empecilhos, mesmo quando já exercem essas funções em prática ou
estão preparadas para exerce-las. Mestra Janja conclui, na entrevista já citada acima, que:
A despeito de várias gerações de mulheres que tenham participado da capoeira, uma
das formas mais eficazes de subalternização e de violência é exatamente a
invisibilidade, e ao se invisibilizar a presença dessas mulheres, se nega aquilo que é
próprio as mulheres [...] aquilo que elas esperam da capoeira (2007).5
É importante lembrar que a hierarquia de gênero não é exclusiva da capoeira angola, mas
permeia vários segmentos da sociedade moderna. Muitas mulheres sofrem portanto outros
tipos de pressão externa, muitas delas atreladas à divisão hierárquica de tarefas familiares.
Por exemplo, a expectativa normativa de que a mulher deve priorizar o cuidado da casa, da
família ainda persiste em vários segmentos da sociedade Brasileira. Fora do Brasil, essa
pressão pode ser menor, mas nunca é completamente ausente. Assim, a dupla jornada de
trabalho e as pressões da sociedade restringem a atuação das mulheres na capoeira (i.e.
treinos, rodas, eventos, etc.) de forma desproporcional ao dos homens, especialmente nas
classes mais baixas. A trajetória de muitas angoleiras que conheci e entrevistei reflete um
ciclo vicioso de interesse inicial e dedicação, seguidos de pressão ou empecilho(s)
desproporcional e evasão. Um dos mais profundos questionamentos que encontrei foi a
persistência dessa dinâmica de poder dentro de uma manifestação popular de resistência
contra outras formas de opressão (ex. discriminação racial e de classe).
Partindo dessas constatações, eu gostaria de usar esse espaço abaixo para examinar o
outro lado dessa moeda. Se a situação continua tão desfavorável, porque a capoeira angola
(estilo que conheço de perto) continua a atrair tantas mulheres, independente de sua
identificação de gênero, raça, classe social, habilidade física, grau de instrução ou pais de
origem? E porque várias delas, ainda que não muitas, resistem e continuam lutando pelo seu
posicionamento e reconhecimento dentro dela? O que a capoeira angola oferece (ou tem
potencial de oferecer) aos seus praticantes? Ou seja, como essa arte marcial afro-brasileira
influencia, ou pode transformar, a maneira como indivíduos pensam e agem no mundo? Ao
mesmo tempo, como a presença de mulheres tem expandido o campo de atuação da capoeira
angola em prol da diversidade, da solidariedade e da emancipação de todos?
Iêêêêêêêêêê,
Iê, viva minhas mestras, que me auxiliaram nesta jornada de pesquisa.
Iê mestra Janja, mestra Paulinha, Mestra Gege, mestra Cristina, mestra Elma,
mestra Alcione, e todas as outras mestras e contramestras que cruzaram o meu
caminho e me ensinaram a jogar o jogo de mandinga.
Iê, vamos simbora!
Iê, que chegou a hora!
Metodologia
No inicio dos anos 80, a filósofa Iris Marion Young publica um artigo com o provocante
titulo “Throwing Like a Girl: A Phenomenology of Feminine Body Comportment Motility and
Spatiality” (tradução livre6 “Arremessando como uma Menina: A Fenomenologia do
Comportamento de Motilidade e Espacialidade do Corpo Feminino," 1980).7 Baseada nos
postulados teóricos da filósofa Simone de Beauvoir sobre a situação feminina no ocidente e
no conceito de “corpo vivido” do fenomenologista Merleau Ponti,8 Young questiona as
"modalidades básicas de comportamento do corpo feminino, suas maneiras de movimentar-
se, e sua relação espacial" (Young 1980: 139). A filósofa reconhece que a existência humana
é definida pelos limites de condições históricas, sociais, culturais e econômicas. Ela propõe,
portanto, que as “diferenças de gênero” que observamos, ou suas expressões, não de fatores
biológico. Estas diferenças resultam de hábitos e treinamentos culturais. De modo geral,
6
Todas traduções do inglês para português neste artigo são da autora.
7
O artigo de Young foi posteriormente incluído na coletânea On Female Body Experience
(tradução livre Sobre a Experiencia do Corpo Feminino, 2005), devido a sua significância
histórica.
8
Citação original: “basic modalities of feminine body comportment, manner of moving, and
relation in space” (139).
Young afirma, mulheres estão limitadas a determinados papéis e funções sociais dentro do
contexto patriarcal. Assim sendo, o patriarcado nega a subjetividade das mulheres, cujo corpo
é valorizado apenas como um objeto. Young propõe ainda que a objetificação das mulheres e
a limitação de sua existência corporal estão diretamente relacionadas a uma serie de códigos
sociais. Para Young, o continuo posicionamento do corpo da mulher como um objeto
contribui para inibir ou limitar o seu reconhecimento como sujeito autônomo. Esses usos
diferenciados do corpo, ela propõe, reforçam normas e expectativas sociais no nível
neuromuscular. Adiante, ela argumenta que as meninas e as mulheres não são dadas a
oportunidade de desenvolver as suas capacidades corporais plena no seu entrosamento livre e
aberto com o mundo, nem são elas incentivadas tanto quanto meninos a desenvolver
habilidades corporais específicas (152).9
Mulheres na sociedade sexista são [ou se tornam] deficientes físicos. Na medida em que
nós aprendemos a viver a nossa existência, de acordo com o que a cultura patriarcal nos
atribui, nos tornamos fisicamente inibidas, confinadas, posicionadas e objetivadas. Como
corpos vividos, não somos transcendências abertas e inequívocas que se expandem para
dominar um mundo que nos pertencem, um mundo constituído por nossas próprias
intenções e projeções.”10
Young conclui que as diferenças de gênero não existem a priori mas são sim produto de um
sistema opressor. O patriarcado, por exemplo, confina tanto o corpo das mulheres quanto a
identidade feminina a uma gama limitada de gestos e ações o mundo. Como uma bola de
neve, a maneira limitada com a qual as mulheres ocupam (ou são permitidas a usar) espaço e
seu próprio corpo, contribuem para a sua reclusão sociocultural e, assim sendo, produzem
uma existência corporal distinta dos indivíduos do sexo masculino.
Através de seu estudo pioneiro, Young contesta a expectativa de uma relação
determinista entre gênero e habilidade física ou mental, portanto aproximando o postulado de
Beauvoir que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher (1967),11 para as questões da ética e
da estética do corpo. Young propõe que a típica "existência corporal feminina" é podada em
sociedades sexistas pela restrição do seu desenvolvimento neuropsicomotor pleno desde a
infância, bem como pela ameaça de invasão da sua existência física e do seu espaço corporal
pelo sexo oposto (em caso extremos, por exemplo, o estupro). A autora propõe ainda que
tanto a capacidade de lançar uma bola de beisebol de maneira decisiva e calculista como a
capacidade de demonstrar coragem e ocupar espaço na sociedade são habilidades que se
aprende. Entretanto, em sociedades sexistas elas são encorajadas em indivíduos do sexo
masculino quase que exclusivamente, enquanto meninas e mulheres são desencorajadas ou
repreendidas ao se interessar por tais ações e posicionamentos. Young fecha seu artigo com
uma pergunta intrigante: "Será que o tipo de tarefa, e especialmente se essa é uma tarefa ou
9
Citação original: “For the most part, girls and women are not given the opportunity to use
their fully bodily capabilities in free and open engagement with the world, nor are they
encouraged as much as boys to develop specific bodily skills (152)
10
Citação original:” Women in sexist society are physically handicapped. In so far as we
learn to live out our existence in accordance with the patriarchal culture assign to us, we are
physically inhibited, confined, positioned, and objectified. As lived bodies, we are not open
and unambiguous transcendences which move out to master a world that belong to us, a
world constituted by our own intentions and projections. (Young 1980, p 152)”
11
O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, pp. 9.
movimento associado com um sexo específico, teria algum efeito sobre as modalidades de
existência corporal feminina?" (155).12
Os questionamentos de filósofas feministas como Young ao final do século 20
impulsionaram uma revisão da relação entre corpo, motilidade e política de identidade. Se a
identidade de gênero não é natural, mas sim uma maneira de ser-no-mundo, a qual se
aprende, seria possível questiona-los? Qual a relação entre o aprendizado de novas maneira
de usar o corpo e o espaço e o questionamento de sistemas de opressão como o patriarcado?
Essas ideias ajudaram a reconhecer o arcabouço de normas sociais associadas com a
existência corporal feminina e a sua presença em vários sistemas de representação como artes
cênicas. O patriarcado se faz presente em discursos normativos de técnica da dança que
privilegiam a leveza, a delicadeza, e a fragilidade do “feminino,” como o balé clássico e a
valsa. Desde então, as ideias de Young instigaram outros pensadores feministas a questionar
a essência universal da "existência corporal” de gênero e as categorias homem e mulher.
Uma dessas pesquisadoras é a filósofa Judith Butler. Nos anos 90s, Butler une
fenomenologia feminista com teorias linguísticas pós- estruturalistas e desconstrutivistas (e.g.
Kristeva, Irigaray, Derrida, Deleuze e Foucault) para problematizar a estabilidade discursiva
da categoria “mulher”. Em Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, tido
hoje como um dos fundadores dos estudos queer, Butler questiona a fundo a confluência de
sexo, gênero e sexualidade enquanto “essências biológica”. Assim como Young, Butler
argumenta que o binário excludente masculino/feminino e a expectativa de orientação
heterossexual são frutos de um aprendizado cultural imposto pelo contrato social
(patriarcado) desde que nascemos. A partir do conceito linguístico de atos falados (em inglês,
“speech acts”, ver Austin 1962), identificação é consolidada através da imitação e repetição
de ações e gestos diários. Para Butler, tanto a identidade de gênero quanto a orientação sexual
humana são resultado ou efeito da execução repedida de normas e regulamentações sociais.
Ou seja, o gênero feminino é o resultado de uma serie de atos performativos.
Subsequentemente, ela afirma, cada regime de inteligibilidade produz discursos normativos
sobre categorias de identificação como gênero e a sexualidade, os quais são internalizados
individualmente através de uma serie de técnicas e aparatos de dominação.
Dando seguimento aos questionamentos em torno dos “regimes de inteligibilidade”
que disciplinam movimentos corporais e identidades sociais, a pesquisadora em dança Susan
L. Foster investiga como os discursos de dominação com respeito a gênero e orientação
sexual são inscritos nos corpos de forma disciplinar, mas também como esses corpos podem
resistir algumas normas e regras sociais ou até criar suas próprias maneiras de existir no
mundo. Trazendo as ideias teóricas feministas, linguísticas, e descontrutivistas de volta para
as discussões da “existência corporal”, em Choreographing History (tradução livre,
“Coreografando História”, 1995), por exemplo, Foster reconhece que as normas sociais têm
um grande papel em modelar e restringir o que os fenomenologistas chamam de corpos
vividos. Porém, indo além de Foucault e Butler, Foster argumenta que ao se movimentar, e
principalmente quando selecionam seu próprio repertorio de movimento, corpos são (ou se
tornam) agentes capazes de articularem ideias a partir de uma escritura corporal (em inglês,
bodily writing, 1995, 16). 13 Mais adiante, no seu artigo “Choreographies of Gender”
(tradução livre: “Coreografias de Gênero” 1998), Foster pondera que uma das falhas das
teorias de gênero emergentes, principalmente o conceito de performatividade proposto por
12
“Might the kind of task, and specifically whether it is a task or movement which is sex
typed, have some effect on the modalities of feminine bodily existence?”
13
Em Choreographing History (1995), Foster defende o reconhecimento de corpos em
movimento enquanto agentes, ou seja, sujeitos de seus próprios atos.
Butler, é a prioridade que esses teóricos dão a discursos verbais– i.e. ao ato de falar e ao
poder da palavra -, enquanto que os corpos vividos e a estrutura das suas relações com o
mundo nunca são criticamente considerados. Para Foster, não é suficiente postular que o
gênero é performativo. Enquanto fermenta teórica, coreografia possibilita a) a investigação
dos códigos informando as expectativas de comportamentos corporais em uma comunidade e
suas varias articulações14 e b) como esses códigos são interpretados e executados em vários
contextos.15 Para Foster, a analise crítica de ambas as regras gerais (coreografia) de gênero e
as suas execuções variantes (performatividade)16 oferece uma maneira melhor de entender
como o gênero feminino foi construído como o “segundo sexo” e, assim, como questionar,
transformar ou superar discursos de opressão.
Segundamente, minha analise abaixo, se ancora na minha pesquisa da estética Afro-
Brasileira em práticas de movimento. No meu livro Brazilian Bodies and their
Choreographies of Identitication: Swing Nation (tradução livre “Corpos Brasileiros e as sua
Coreografias de Identificação: País do Suingue,” 2015), por exemplo, eu mapeio de uma série
de princípios estéticos que chamo de estética da ginga17, cultivados em manifestações Afro-
brasileiras como o samba, a capoeira, o reisado e o carnaval, mas também presente em
manobras de futebol, nos filmes de Carmen Miranda e em espetáculos teatrais como da
companhia de dança Grupo Corpo. Como minha pesquisa demonstra, essa estética da ginga,
funciona como um arcabouço etino-cultural, sobre o qual seus praticantes recuperam-e-
14
Citação original: "framework of decisions that implements a set of representational
strategies"(17). Foster argumenta que a performatividade de categorias de identificação como
o gênero constituem maneiras individualizada pela qual cada individuo adquire, adapta,
executa, aperfeiçoa e, assim sendo, põe em prática uma serie de normas ou expectativas
socioculturais particulares do meio onde vive. Portanto, a categoria gênero pode ser melhor
compreendida como uma coreografia; uma espécie de partitura basilar ou “arcabouço de
decisões para a implementação de uma serie de estratégias de representação” (1998, 17)
15
Uma das principais críticas de Foster para com trabalhos como teoria da identidade de
género de Butler é que, em seu argumento do corpo vivido nunca totalmente considerado por
suas açoes. O entendimento da performatividade do genero proposto por Butler, por exemplo,
prioriza fala e reiteração e nunca examina sua interligação à corporeidade.
16
Enquanto conceito teórico, ela conclui, o conceito de coreografia funciona como uma lente
analítica com a qual podemos analisar a relação entre varias diretrizes sociais que dizem
respeito ao gênero (e sexualidade) e suas manifestações em realidades corporais distintas (em
inglês, corporealities). Em suma, Foster define coreografia como uma estrutura altamente
codificada de práticas de movimento, relacionado com outros sistemas de representações em
um determinado contexto, em que os organismos se comportam e interagem. Em última
análise, seu argumento promove uma compreensão mais ampla dos mecanismos pelos quais
as relações de poder de gênero são estabelecidas, apontando para formas em que suas
características opressivas podem ser recalibradas.
17
Durante o século XX, elementos desta estética não-europeia, até então reprimida, ignorada,
ou tida como inferior, começam a ser celebrados, em contextos específicos, como
característica única ou distinta daquele local e/ou nação. Produções artísticas que alcançaram
âmbito internacional, desde musicais de Carmem Miranda ao repertorio da companhia de
dança Grupo Corpo, incorporando elementos destas práticas “de negro”, principalmente os
movimentos do samba e a capoeira. Nestes casos, a estética da ginga é interpretada como
símbolos da identidade nacional ou essência de brasilidade.
inventam os conhecimentos estético e formas de saber conectados à herança africana no
Brasil.
Abaixo eu discuto alguns elementos desse sistema de organização corporal
Afrocêntrico: o alinhamento dinâmico de corpo polirrítmico e policêntrico e o uso de
improvisação participativa na organização do jogo (pergunta-e-resposta).18 De forma geral,
corpo polirrítmico e policêntrico, ou corpo de mola, imagina o corpo humano como uma
estrutura com mais de um centro que é, portanto, capaz de produzir mais de um ritmo ao
mesmo tempo. Assim, os corpos que gingam, eu proponho, cultivam uma maneira de ser e
agir no mundo ancorada no trânsito dinâmico entre pontos, ritmos ou potências, que evita
posições fixas. Em minha análise, eu utilizo ferramentas do teórico de dança Rudolf Laban
(ver Esforço, 1947). Seguindo sua metodologia, eu observo como os angoleiros e angoleiras
utilizam variáveis básicas como tempo, espaço, peso e fluidez em suas manobras
policêntricas e polirrítimicas. No caso da capoeira angola, essa logica corporal policêntrica e
polirritimica é aditiva. A ginga não é simplesmente o movimento entre ataques e defesa: esse
princípio estético está tanto na base da movimentação individual de cada um como nos
diálogos com outros jogadores, na conexão com a música sincopada e com toda a roda. Ao
invés de dicotomias excludente e hierárquica, como corpo versus mente, ou certo versus
errado, os diálogos corporais são pautados pelo trânsito contínuo entre dois ou mais
elementos (e.g., entre um pé e mão, entre quente e frio; entre ataque, defesa e finta; entre
agressão, sedução e brincadeira) certamente apresenta alternativas à logica Ocidental
patriarcal/colonial.
Como demonstro, a estética da ginga encontra uma grande ressonância com o que o
historiador de arte Robert Farris Thompson chama de estética do “cool". No seu artigo
precursor "An Aesthetic of the Cool: West African Dance" [tradução livre: “Uma Estética do
Cool: A Dança da África Ocidental”] (1966), e em publicações subsequentes (1973, 1988),
Thompson abre uma das primeiras discussões acadêmicas sobre dos princípios estético de
vários estilos músicas e danças do Oeste Africano. A partir desse conceito de “cool” ou
“coolness”19, o historiador de arte identifica características como a importância da percussão
e de ritmo sincopados, da individualidade e dos diálogos improvisados, e do humor e ironia
na performance.20 Ao longo do tempo, as considerações de Thompson sobre a estética
Africana ocidental e sua presença no Novo Mundo impulsionou vários estudos sobre arte e
cultura em todo o chamado Atlântico negro. Dentre outros, o sociólogo Júlio Tavares (1984)
traçou uma correspondência entre o entendimento do conceito de coolness, dentro da
comunidade do jazz do Harlem, em Nova York e da ginga da capoeira observada na favela da
Mangueira, no Rio de Janeiro. Da mesma forma, a pesquisadora de dança Brenda Dixon
Gottschild (1998) seguiu os passos de Thompson para mapear as premissas de uma estética
africanista na diáspora e avaliar a sua presença nas produções artísticas dos Estados Unidos.
Complementando Thompson, ela sugere que em práticas de movimento encontramos, mais
especificamente: o corpo policêntrico e polirrítmico, a contraste forte de emoções (high-affect
juxtaposition) e a celebração de energia vital jovem (ephebism). Além de Thompson e
18
No seu livro Samba: Resistance in Motion, por exemplo, Barbara Browning define samba
como "um diálogo complexo, no qual várias partes do corpo falar, ao mesmo tempo, e em
aparentemente diferentes línguas" (2).
19
O conceito de coolness se refere à gíria dos Negros Norte-Americanos que significa calma,
tranquilidade, ou estar de “cuca fresca” (nem muito frio ou apático nem muito esquentado ou
agitado).
20
No original: 1) apart playing and dancing); 2) dominance of the percussive concept of
performance; 3) multiple meter4) call-and-response; e 5) songs and dance of derision.
Gottschild, Margareth Drewal (1992) chama atenção para o conceito ioruba de “brincadeira
séria” e de “festa” (éré/siré, em ioruba), presente nos dois lados do Atlântico Negro. Depois
de observar detalhadamente manifestações Afro-brasileiras eu aponto para outros dois
princípios estético recorrentes: a dissonância cenestésica (knestetic dissonance) e a
delineação de caminhos sinuosos ou de serpente (serpentine pathways), este certamente
ligado à simbologia do espiral na cosmologia Bantu (Centro-Oeste da África).
Drewal (2003) ressalta também o conceito de improvisação participatória,
fundamental para o entendimento de várias performances de matrizes africanas como
egungun de tradição ioruba. Desde danças coloniais até o hip-hop, o sucesso desse tipo de
improvisação participatória cultivada em comunidades negras da diáspora enfatiza o contexto
específico de cada improvisação e o parceiro com quem está improvisando. Para Jacqui
Malone, no Novo Mundo, a improvisação das danças negras "é um processo aditivo ... uma
forma de experimentar novas ideias; essa mentalidade é a contribuição mais importante da
África para o hemisfério" (1996, 33). Ela requer habilidade individual de discernimento e
escolha de movimentos, gestos, ou intenções, no encontro. No caso da capoeira angola, em
particular, a improvisação participatória é a mola mestra do que chamo de estética da ginga.
O corpo policêntrico e polirrítmico se organiza num jogo de pergunta e respostas entre vários
elementos ou fatores. Por exemplo, diálogos rítmicos entre pés e quadris ou pés, quadris e
ombros; movimento entre dentro e fora, posicionamento do corpo em pé, de ponta cabeça, ou
transitando horizontalmente entre os dois). “A variedade intrínseca do treinamento da
capoeira garante que a arte não se limita a uma coisa só”, observa o fenomenologista Greg
Downey (2005, 39). “Ao invés, alunos reinventam capoeira através de suas formas
idiossincráticas de praticá-la, ainda que sob o olhar atento e o pulso forte do mestre”(ib.
idem.).21 Através de perguntas e respostas, angoleiras e angoleiros utilizam várias táticas, ou
melhor, se “desdobram” à vontade, com base no contexto do jogo (natureza do evento,
ambiente musical), com quem está jogando, e a maneira calma (ou “cool”) com que
respondem às informações, sensações e emoções que se desenrolam na “conversa” do jogo.
Na roda de angola, os diálogos improvisados entre movimento e música estão tanto
ancorados em fundamentos tradicionais (e.g. estrutura da bateria e variações rítmicas
tradicionais) como na maneira individual que cada um executa tais fundamentos
(improvisação de uma cantiga, respondendo ao que acontece na roda). Através do jogo de
corpo, por exemplo, cada um aprende a negociar seu lugar no mundo, incorporando
vocabulário de movimento variado e adaptando-os no jogo, em relação ao outro jogador e ao
toque do berimbau. Esses jogos de pergunta e resposta gera brincadeiras corporais onde o
encontro com o(s) “outro(s)” modela a construção do “eu”. Assim, a improvisação
participatória da capoeira angola interliga a individualidade de ação no jogo com a
reciprocidade na colaboração da roda. Em última análise, o diálogo improvisado entre
jogadores, produz flutuações nas posições do sujeito e do objeto, materializam o que Drewal
chama de “subjetividades nômades” (1992). É a partir desse entendimento de improvisação
participatória na construção de identidades flexíveis ou nômades, que investigo os benefícios
dessa prática e sua relação com questões de gênero.
Finalmente, gostaria de ressaltar que esse artigo faz parte de um trabalho mais amplo
de pesquisa, ainda em fase inicial, denominado movimentos de sustentabilidade. Em linhas
gerais, essa pesquisa interdisciplinar investiga iniciativas centradas no intercambio entre
sustentabilidade e práticas como capoeira angola, butô japonês, meditação indiana, e roda de
tambores nos EUA. Mais especificamente, esse projeto entende sustentabilidade como uma
21
“The variability inherent in capoeira training guarantees that the art itself is no single thing.
Rather, students reinvent capoeira in their own idiosyncratic fashions, even under the
watchful eyes and steady hand of a mestre”
serie de ações dinâmicas entre esferas concêntricas –como as camadas de uma cebola.
Portanto as negociações de sustentabilidade, se desenvolvem de forma aditiva, que vai desde
sistemas de organização corporal até as lógicas estruturando as comunidades, seus espaços, e
seus conhecimentos. Em prática, eu proponho a analise da sustentabilidade de modelos não-
hegemônicos, observando seus diferente níveis: 1) o cuidado de si (ecologia individual):
processos de emancipação diversificada, onde cada um é entendido como um ecossistema ou
ecologia individual; 2) o cuidado com o outro (ecologia social): processos de solidariedade
inclusiva, onde cada grupo ou comunidade é entendido como um ecossistema ou ecologia
social; 3) o cuidado com o meio-ambiente (ecologia espacial): processos de resiliência
territorial, onde a terra e todos seus habitantes e recursos são reconhecidos como um
ecossistema ou ecologia ambiental. Estas três “ecologias” são analisadas em relação a um
quarto nível 4): o cuidado com as ideias (ecologia dos saberes e das maneiras de saber):
processos de justiça cognitiva pós-abissal, que busca a expansão geopolítica e biopolítica da
produção de conhecimento através da visibilidade e valorização de fundamentos estéticos e
filosóficos não ocidental.22
A seguir eu reflito sobre a influência da ginga no jeito que os angoleiros se orientam
no mundo e, assim sendo, discuto como essa prática corporal pode vir a beneficiar praticantes
do sexo feminino. Eu examino, mais especificamente, como os corpos policêntricos e
polirrítmicos se movimentam e as táticas de domínio de jogo que eles improvisam na roda da
capoeira. Observo também como cada um constrói uma maneira de ser-no-mundo a partir de
seu esforço individualizado e das suas escolhas de movimentação em suas improvisações
participatórias com parceiros diferentes. Parafraseando Young, eu observo como os jogadores
e jogadoras expandem-se para dominar um mundo que lhes pertence, um mundo constituído
por suas intenções e projeções próprias. Entrelaçando o questionamento final de Young com
minha pergunta inicial, seria possível que a capoeira Angola, enquanto tarefa ou movimento
historicamente praticados por homens negros e mulatos, portanto de identidades masculinas
não-hegemônicas, possa ter algum efeito sobre “as modalidades de existência corporal
feminina”? Nesse sentido, como os conhecimentos estéticos inseridos nessa manifestação de
resistência etino-cultural molda, e talvez transforma, a maneira pela qual mulheres se
posicionam no mundo e interagem com os outros (independentes de suas expressões de
gênero, etnias ou orientações sexuais).
Resultados e Discussão:
1- A articulação da ginga na capoeira angola
22
Referencias incluem Félix Guatarri (1983), Milton Santos (1992); David Harvey (2004);
Helena Katz (2005); Christine Greiner (2011), Martha Eddy (2014) e Boaventura de Sousa
Santos (2018),
23
CD Pastinha (Re-editiçao do LP Praticando Capoeira), faixa 4, 3:27.
No trecho citado acima, Mestre Pastinha insinua que essa postura corporal do capoeirista não
era um defeito no sistema de locomotivo, mas sim uma construção performatica. Ou melhor,
um jogo de corpo que o capoeirista cultivava no seu jeito de ser e estar; seu andar “torto”,
sinuoso e sincopado. Contrário à expectativa corporal da época, o gingado do capoeirista era
visto como uma característica da raça negra. Eu imagino esses capoeiristas atravessando a
cidade com seu andar gingado, não tão distante do que os Negros Americanos – e Thompson
– chamam de “coolness”. Eu também imagino o orgulho com que eles andavam e o
reconhecimento que tinham na comunidade.
De acordo com Mestre Pastinha, “o jogador de capoeira deve ser calmo, tranquilo e
analítico" (1964, 32). A fim de manter essa calma calculista durante uma batalha corporal, os
jogadores devem primeiro manter uma postura física conscientemente relaxada. O corpo
policêntrico e polirrítmico (figura 1), mantém um fluxo contínuo através de diálogos entre 1)
pés (alavancas propulsoras), 2) quadris e ombros (balanças horizontais) e 3) espinha dorsal
(eixo flexível vertical). Qualquer tipo de tensão muscular desnecessária dificulta a fluidez da
ginga. Todos os sentidos trabalham em conjunto para obter uma percepção difusa de si, do
seu parceiro e do ambiente da roda.24 Essa postura atenta, mas relaxadas, pode ser comparada
com a sensação corpórea de estar de pé em num pequeno barco ou prancha no mar. A prática
dessa atenção descontraída através do movimento contínuo ajudam esses indivíduos a
manterem a calma e o controle em situações de risco ou luta, e mantendo várias opções (de
ataque e defesa) “abertas” durante as improvisações.
24
A ênfase neste nessa postura relaxada, mas atenta, que é por vezes chamado de "trance da
capoeira" (ver Decânio Filho, 1997), leva os jogadores para agir e reagir prontamente, mas
sem perder a tranquilidade. As vezes, angoleiros sustentam uma transição suave e continua
em cada passada, outras vezes esse fluxo contínuo é intercalado com qualidades de
movimento como dissonâncias sinestésicas ou rápidas transições de efeito.
serpentina ensina as angoleiras novatas a conquistar seu próprio espaço no jogo, achar um
“jeitinho” de se posicionar de enquanto evitando confrontações diretas.
Com base nas observações de Mestre Pastinha, discuto abaixo três formas concretas de que a
ginga informa as táticas que os jogadores articulam através do movimento.
A capoeira angola cultiva várias situações de luta, através das quais os angoleiros e
angoleiras adquirem confiança, coragem, forca e destreza física. Assim como outras artes
marciais, praticamente todos os golpes de ataque – e.g. armada, rabo de arraia, chapa,
cabeçada e rasteira - tem o objetivo de deslocar o oponente ou pelo menos ameaçá-lo com tal
possibilidade, atacando o seu psicológico. Mais importante, movimentos que partem do
quadril e projetam os pés ou cabeça em direção ao oponente funcionam como táticas de
agressão. Essa exibição viril de força, vigor e articulação muscular, normalmente associadas
a uma a existência corporal masculina, permitem que os jogadores afirmem sua presença e
negociem sua visibilidade de forma ampla e direta. Ao contrário da descrição que Young faz
acima sobre a restrição do comportamento feminino, a capoeira angola ensina indivíduos que
vivem em um contexto de opressão, sejam esses negros, índios, ou mulheres, uma
oportunidade de praticar esse conjunto de valores e encená-los fisicamente, ou incorporá-los,
no ambiente protetivo e permissivo da roda.
Ao contrário da exibição de virilidade e agressividade controlada, os jogadores podem
também usar a ginga para alcançar, como disse Mestre Pastinha, “a suavidade e graça de um
bailarino”. Esforços sutis e delicados como girar nas pontas dos pés ou fazer um pião de mão,
flexionar o torso de forma sinuosa e desenrolar gestos suaves que evocam leveza e
vulnerabilidade, estão associados à táticas de atração. No entanto, a sinuosidade atrativa com
a qual os jogadores deslizam de lá pra cá no jogo, articulando movimentos que lembram
manobras de circo e passos de dança, raramente é encenada em vão. Essas e outras táticas de
atrair o outro, são muitas vezes utilizadas com o intuito de distrair ou ludibriar o outro, fintar
direções ou ocultar intenções de ataque. As variações de ginga de forma mais elegante ou até
dançada, por exemplo, pode ser utilizada pra distrair e confundir o outro antes de um ataque
direto ou para seduzi-lo para uma “armadilha” de jogo. Os jogadores demonstram a eficiência
dessa tática ao executar, como Mestre Cobra Mansa defende, manobras que são bonitas, bem-
feitas, e executadas na hora certa. Movimentos acrobáticos ou de flexibilidade, como a ponte,
são muitas vezes seguidos por contra-ataques imprevisíveis, portanto eficientes.
Além da agressão e atração, angoleiros e angoleiras partem ginga para torcer o corpo
em posições absurdas e risíveis, como inversões lúdicas, saltos desajeitados ou posturas
engraçadas, imitando a flora e a fauna. A flexibilidade da ginga permite as jogadoras e
jogadores articular uma série de esforços persuasivos baseados no que Drewal chama de
“brincadeira séria” (éré/sére, em ioruba). Resumidamente, esses esforços lúdicos ou táticas
de brincadeira consistem no uso do quadril em conjunto com expressões físicas cômicas ou
zombaria, ironia, paródia ou até mesmo riso. Jogadores habilidosos podem usar sua ginga
para simular metáforas brincalhonas como fingir estar bêbado ou balançando as pernas no ar
como as folhas de uma bananeira. Essas atitudes lúdicas de humor, tipicamente relacionada
com a criança que nos habita, dá aos jogadores a oportunidade de relaxem e manter uma
atitude aberta de jogo. O uso dessa tática impede, em última análise, que o jogo se torne
muito agressivo e fatal, ou seja, muito quente e destemperado.
Atração, agressão e brincadeira são táticas complementares que trabalham juntas, com
outras não discutidas aqui, na construção de jogos dinâmicos e des/equilibrados. Jogadores
são aconselhados a não se apoiar muito em uma determinada tática e adquirir uma reputação
“fixa”. O uso predominante dos esforços de luta, pode levar o jogador a ser interpretado (ou
rejeitado) como violento ou hiperagressivo. Por outro lado, a predominância de esforços de
brincadeira dentro de um repertório personalizado de luta pode ser entendida como falta de
objetividade ou visão de jogo. Vale ainda ressaltar que não existe uma fórmula de como
combinar essas e outras táticas. A malicia do jogador consiste em cultivar várias táticas,
tendo em vista seus atributos físicos, seu nível técnico, o contexto específico do jogo, e o
parceiro ou parceira. Por exemplo, uma jogadora que é mais alta e visivelmente mais forte
que sua parceira pode evitar estrategicamente o uso extensivo de manobras agressivas, que
faria a outra a se fechar totalmente, inviabilizando o diálogo. Entretanto, os esforços que
imitam dança ou brincadeira podem ajudar a deixar a outra “a vontade” e, a partir daí, aplicar
uma rasteira e cabeçada bem dada. Da mesma forma, um jogador menor, ou mais jovem, que
o companheiro de jogo, ele pode utilizar manobras mais amplas e elegantes como forma de
expandir sua cinesfera e, assim, ganhar espaço no jogo. Ao final, roda cria uma oportunidade
de improvisar outros jeitos de agir e se portar. O jogo de pergunta e resposta convida a
transitar entre elementos tipicamente associados com existência corporal masculina, feminina
e infantil. E, como os homem, mulheres e crianças, participam da roda juntos, todos estão
livres para improvisar mudanças de táticas, dependendo da situação, e da sua disposição de
jogo. Desta forma, o jogo da capoeira tem o potencial de encorajar o que Young descreve
como “transcendências abertas e inequívocas que se expandem para dominar um mundo que
nos pertencem, um mundo constituído por nossas próprias intenções e projeções” (citado
acima), independente da sua identificação ou expressão de gênero.
Conclusões
A capoeira angola não é um jogo com um objetivo final (ludus). As pessoas no centro
improvisam interações abertas e lúdicas (paidia) que testam e cutucam as capacidades físicas,
mentais, e emocionais umas das outras. A prática oferece a todos a oportunidade de
experimentar outras maneiras de usar o corpo no tempo e espaço, através de interações
improvisadas na roda, na bateria e no jogo em si. A partir do vocabulário de movimentos da
angola, cada um improvisa maneiras de articular a) agressão: presença física, força, agressão
e coragem, b) atração: espirais e formas arredondadas, leveza, graça e vulnerabilidade e c)
brincadeira: humor, mímica cômica, riso e palhaçada. Visto que o jogo é improvisado dois a
dois, de forma espelhada, cada um tenta afirmar, negar, ou subverter essas expectativas
corporais (físicas, intelectuais e emocionais). Em prática, angoleiros e angoleiras praticam
negociações corporais de poder, de conhecimento, e de ser, onde a agressão se entrelaça com
outros recursos como a brincadeira, atração, dissimulação e indefinição. Além dessas
negociações corporais, a roda de capoeira angola funciona como uma espécie de laboratório
de experimentação sem posições fixas, onde os participantes trocam de função, cantando,
tocando instrumentos e, um dia, também liderando as rodas. Ao mesmo tempo, a capoeira
também cobra: questiona hábitos enraizados na musculatura ou “experiência corporal” e
movimentos feitos sem pensar. Por exemplo, cai numa rasteira não é problema, mas quem
perde o controle quando isso acontece.
Eu retorno ao comercial da Nike, e ouço agora com mais atenção a voz pausada de
Serena:
Se mostramos emoção, somos chamadas dramáticas. Se queremos jogar contra os
homens, somos loucas. E se sonharmos com oportunidades iguais, estaremos nos
iludindo. Quando defendemos alguma coisa, estamos desequilibradas. Quando nos
damos bem, há algo errado conosco. E se ficarmos bravas, somos histéricas,
irracionais ou simplesmente loucas.
Uma mulher correndo uma maratona foi visto como louca. Uma mulher no boxe era
(coisa de) louco. Uma mulher dando uma cestada? Louca. Treinadora um time da
NBA? Louca. Uma mulher competindo com seu hijab, mudando de esporte,
aterrissando um “Frontside Double Cork” 180 [graus], ou ganhando 23 “Grand
Slams” [prêmio de tênis], dando à luz, e voltando para mais? Louca. Louca. Louca.
Louca. E Louca.
Ao final, abro um sorriso: Sim, na capoeira angola somo todas loucas, por desafiar os limites
da existência corporal feminina normativa. Todas as rotuladas como “mulheres”,
principalmente as mães, por todas suas escolhas e desafios de “começar de novo”. Todas nós
nos beneficiamos da ânsia de liberdade embutida nessa prática de resistência, apesar dos
encontros e desencontros com masculinidade tóxica da sociedade patriarcal. Na verdade, a
prática da capoeira angola traz benefício para todo mundo: homens, mulheres, crianças e não
conformistas. No amadurecimento de cada um, ganhamos mais compreensão dos efeitos de
várias performances de agilidade, destreza, forca, flexibilidade, planejamento estratégico e
teatralidade. Quanto maior o leque de mobilidade e articulação, melhor será o desempenho
das improvisações participatórias.
O que é certo é que as mulheres tem especificamente contribuído a capoeira angola. A
postura feminista de angoleiras, por exemplo, tem beneficiado necessariamente a todos e a
todas que questionam formas de opressão estruturais. A luta contra a discriminação de gênero
é anterior a luta contra discriminação racial. Ela é raiz do patriarcado, que antecede formas
mais modernas de dominação, como o colonialismo, o capitalismo e o racismo. Portanto,
discussões feministas trazem para que a capoeira angola uma expansão do exercício de
emancipação e empoderamento do individuo, e de sua comunidade. Neste sentido, existem
hoje várias organizações, grupos de estudo e coletivos de capoeiristas que continuam a
questionar a hierarquia de gênero dentro da capoeira e a propor outras maneiras de jogar
capoeira, dentro e fora da roda. Algumas organizações, como os grupos Nzinga (Mestra
Janja, Mestra Paulinha e Mestre Poloca) e Nzambi (Mestra Elma) se empenham também na
formação de capoeiristas da manutenção de espaços de pertencimento e cooperação (dentro
dos grupos) e, e associações como os coletivos Chamada de Mulher e Grupo de Estudos e
Intervenção Marias Felipas, constroem redes largas de solidariedade (entre grupos). Esse
último realizador do documentário “Mulheres da pá Virada” (em fase de execução e
homenageado no título desse artigo). Falta ainda comprovar como essas manobras possam
funcionar ou ser empregadas como movimentos de sustentabilidade.
Referências Bibliográficas
SOBRE AS AUTORAS
A Dra. Rosa é professora (senior lecturer) do Departamento de Dança da Universidade de
Roehampton. Foi pesquisadora do Centro Internacional de Pesquisas da Freie Universität de
Berlim “Interweaving Performance Cultures” (Alemanha, 2012-13) e já ensinou em várias
universidades nos EUA. Em seu livro Brazilian Bodies and Their Choreographies of
Identification: Swing Nation (Palgrave McMillan, 2015), Rosa analisa como os princípios
estéticos do Atlântico Negro cultivados em manifestações afro-brasileiras contribuíram para a
construção do Brasil como uma comunidade imaginaria. Seu atual projeto de pesquisa aborda
a relação entre dança e sustentabilidade. Ela concluiu seu PhD da Universidade da Califórnia,
em Los Angeles (UCLA).