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Resumo
O desafio deste ensaio teórico é propor uma necessária reflexão sobre a prática das lutas
enquanto conteúdo disciplinar nos cursos de graduação dos profissionais de Educação
Física, trazendo para a discussão as implicações que as diferentes manifestações das
lutas e seus diversos segmentos impõem ao processo de formação dos profissionais da
área. Além de contribuir para a compreensão de como esta diversidade que compõe o
universo das lutas pode ser incorporada na prática pedagógica de Educação Física
enquanto manifestação da cultura corporal, houve a preocupação de apresentar algumas
sugestões para sua implementação na formação inicial em Educação Física.
1. INTRODUÇÃO
Lutar pela sobrevivência é uma característica inerente a todo ser vivo, mas
nenhuma espécie se dedicou tanto ao refinamento do ato de lutar quanto a raça humana.
Desde as eras mais remotas, a luta pela sobrevivência e pela liberdade tem feito o ser
humano adotar várias formas de combate. A necessidade em superar a fragilidade de
seus recursos biológicos exigiu que o Homem tornasse seus movimentos mais eficazes
para garantir o domínio e uso de espaço, para desenvolver tecnologias de caça e pesca,
por razões religiosas, nos rituais e festas, ou por razões lúdicas (TRUSZ e NUNES,
2007, p. 181-182).
A partir do constante contato com situações de conflito corporal – inicialmente
contra os animais, depois entre seus semelhantes – conforme as condições geográficas e
outros aspectos, a criatividade humana ampliou as possibilidades do ato de lutar,
desenvolvendo situações específicas para a aplicação dos gestos de combate.
Da simples reação natural em defesa própria, a belicosidade humana evoluiu
para complexos sistemas de defesa e ataque manifestados em diferentes formas
organizadas de lutas. Em todos os lugares do planeta, tanto no Ocidente como no
Oriente, as lutas em suas diferentes manifestações – na forma de Artes Marciais, jogos
de luta, danças guerreiras, métodos de defesa pessoal ou esportes de combate – fazem
parte da história da humanidade.
Acompanhando sua própria evolução, o homem vem sistematicamente
estudando, padronizando, treinando e transmitindo de geração em geração uma série de
movimentos específicos para conseguir dominar o seu semelhante por meio da dor e se
sair vitorioso de um combate. Cada uma das lutas criadas possui uma lógica própria e
tem sua própria dinâmica, condicionada pela visão de mundo do povo que a
desenvolveu. Afinal, "todos os homens são dotados do mesmo equipamento anatômico,
mas a utilização do mesmo ao invés de ser determinada geneticamente depende de um
aprendizado que consiste na cópia de padrões que fazem parte da herança cultural do
grupo" (LARAIA, 2006).
As particularidades de cada uma das lutas desenvolvidas têm despertado a
atenção de inúmeros de curiosos que acompanham séries televisivas, como por
exemplo, Mestres do Combate (Fight Quest - Discovery Channel) e Arma Humana
(Human Weapon - History Channel). A cada episódio de ambas as séries é mostrada
uma modalidade de luta de um país.
Os documentários demonstram que, na maioria dos casos, a base de sustentação
das lutas teve suas origens nas características morfológicas e culturais dos habitantes
dos lugares onde foram desenvolvidas. Em algumas ocasiões os gestos são de criação
própria, em outras imitam animais e/ou instrumentos de trabalho, ou ainda lutadores
mais experientes.
A título de curiosidade, apenas para ilustrar a enorme variedade que há no meio
das lutas, está aqui transcrita uma pequena lista das lutas que podem ser encontradas em
diversas mídias, como por exemplo, no livro Martial Arts of the World: An
Encyclopedia (GREEN, 2001).
As lutas mais conhecidas são as japonesas (Ninjutsu, Sumo, Karatê, Kendo,
Kyudo, etc.), as chinesas, denominadas genericamente de Kung Fu ou Wu Shu (Tai Chi
Chuan, Pa Kua Chang, Wing Chun, ...), as coreanas (Hapkido, Taekwondo, Taekkyon,
...) e as tailandesas (Muay Thai e Krabi Krabong). Ainda entre as lutas asiáticas,
destacam-se o Bokator na Birmânia, Pradal Serey do Cambodja, Angampora do Sri
Lanka, Kateda tibetano, Vo Vi Nam e Qwan Ki Do vietnamitas, Kuntao e Silat
indonésios e o Kali (Arnis) filipino. No Paquistão encontra-se o Pakwindo e Pehlwani;
Sambo e Systema russos. Da Polinésia se conhece o Lima Lama e na Nova Zelândia
sabe-se do Mau Rakau, Taiaha e Tewhatewha (WIKIPEDIA, 2008).
Nos diversos momentos históricos do ocidente, há citações de atividades
marciais. Os famosos Cavaleiros da Távola Redonda, os Cruzados, os Templários, os
Cântaros, os Albigenses, os Condottieri italianos e os Cavaleiros Teutônicos tinham
uma enorme perícia nas “armas brancas” e desenvolveram diversos métodos de
combate do corpo a corpo, como o Borzaghino dos cavaleiros italianos e a associação
inglesa do antigo pugilato ao Kick, uma antiga técnica de combate corporal que usa os
pés durante as lutas (TORRES, 2005).
Os cavaleiros medievais podem ser considerados equivalentes aos samurais
japoneses e dedicavam boa parte de suas vidas ao treinamento de lutas. Os plebeus
europeus também desenvolviam suas técnicas de defesa, organizadas como Savate na
França, Raufen na Bavária (Alemanha), Purring e Gouren na Grã-Bretanha, o Hopak
ucraniano, a luta corsa, o Bataireacht irlandês (WIKIPEDIA, 2008), entre outras. A
Península Ibérica foi o berço do Baratero, a luta dos ciganos espanhóis (LORIEGA,
2005) e do Jogo do Pau português (OLIVEIRA, 1972).
Na África encontram-se o Laamb, Borey e Dioula (Senegal); Isinaphakade
Samathongo e Nguni (África do Sul); Dambe e Igba Magba (Nigéria); Evala e Zvaha
(Togo); Abotri (Sudão); Bassula e Gabetula (Angola); Gwindulumutu (Congo); Tahteeb
e Sebekkah (Egito); Dula Meketa e Re-Efi-Areh-Ehsee (Ethiopia), entre muitas outras
(WIKIPEDIA, 2008).
A diáspora forçada dos africanos para as Américas fez nascer muitas lutas no
Novo Mundo. Nos Estados Unidos surgiu o Jailhouse Rock com seus vários estilos
como o Closing Gates, 52 Blocks, 42, Strato, PK, Mount Meg, Comstock, Gorilla,
BarnYard, (CENTURY, 2001), além do Kicking and Knocking e a Ram Fight.
Na América Central, a violência da escravidão também gerou diversas lutas. Em
Cuba, o Mani (ou Bombosa); Koko Makaku em Curaçao; Bénolè (ou Bénolin) e
Mayolet (ou Mayolé) em Guadelupe, além do Sové Vayan (ou Sovayan); Pinge, no
Haiti; Bangaran na Jamaica; Danmyé e Ladja na Martinica e o Moringue das Ilhas
Reunião. Descendo para o sul, os afro-descendentes criaram a Broma venezuelana, Susa
no Suriname e a Capoeira no Brasil (WIKIPEDIA, 2008).
O pequeno rol mencionado acima não inclui os sistemas híbridos de defesa
pessoal de criação mais recente e os métodos militares de combate. A maioria são lutas
centenárias que, com o passar dos anos, sofreu mudanças quanto ao caráter técnico.
Além de mudarem sua estrutura de manifestação belicosa para se transformarem em
expressões da cultura corporal, englobam, entre outras coisas, a defesa pessoal, o
exercício terapêutico, a expressão corporal, métodos próprios de treinamento, um
arcabouço ritualístico e filosófico particular.
Sobre este assunto, Green (2001) destaca que tal fato se deu, principalmente, em
decorrência do avanço técnico dos materiais bélicos e devido, principalmente, às
mudanças sociais e suas conseqüências que promoveram determinações jurídicas
voltadas para a normatização e controle das condutas sociais dos indivíduos que
praticavam tais lutas.
Como não é possível oferecer uma disciplina para cada uma das modalidades, a
tendência é propiciar uma formação mais geral para todas as áreas, focalizando os
aspectos mais específicos da formação. Dentro desta lógica, o conteúdo voltado às lutas
pode se configurar como uma disciplina única, abrangendo diferentes práticas. No
entanto, é fundamental estabelecer metodologias de trabalho sintonizadas com a teoria,
onde os discentes de Educação Física possam observar, analisar e assimilar conceitos,
procedimentos e atitudes que os auxiliem a compreender melhor os processos
envolvidos na aprendizagem das diferentes manifestações do ato de lutar.
Para facilitar o entendimento das diversas expressões do lutar humano, o docente
dispõe de variadas maneiras de organizar a disciplina, como os aspectos históricos
(cronologia e desenvolvimento), definições (jogos de luta, danças guerreiras, Artes
marciais, esportes de combate), classificações quanto à indumentária, espaço físico,
forma de graduação, métodos de treinamento, entre outros.
As lutas são embates de domínio, que visam subjugar o adversário por meio de
técnicas de controle (Luta Livre), expulsão de uma determinada área (Sumô), quedas
(Judô), marcação de pontos (Karatê), nocaute (Muay Thai), etc. Para estabelecer a
submissão do adversário, existem lutas armadas (Kendô), lutas que não incluem o
treinamento de qualquer arma (Boxe), mesmo que algumas treinem a defesa contra elas
(Jiu-Jitsu), e aquelas que desenvolvem práticas com e sem armas (Kali, Wu Shu).
Considerando a temporalidade, algumas lutas podem ser classificadas como
tradicionais, ou seja, lutas que mantém os traços originais e vem sendo transmitidas de
geração em geração da mesma maneira (Tai Chi Chuan, Wu Shu); outras são
consideradas modernas, por terem sido criadas mais recentemente, a partir das
experiências dos antigos mestres, mas adaptadas ao mundo atual (Aikido, Jiu-Jitsu
Brasileiro).
As lutas formadas a partir da união de vários estilos (Kajukenbo, Kickboxing),
bem como os sistemas militares contemporâneos de defesa pessoal (Krav Maga,
Kombato) e os conjuntos de técnicas utilizados nos confrontos de “Vale Tudo” tem sido
abordadas pela mídia por meio dos princípios operacionais que conduzem suas ações
(NAKAMOTO et al., 2004), como o ato de agarrar (grappling) ou tocar (stricking). Tais
classificações se tornaram populares nos eventos televisionados de combate entre estilos
diversos de artes marciais, como o Ultimate Fighting e similares.
Os estilos “strikers” são baseados em golpes predominantemente de impacto,
como socos, chutes, joelhadas e cotoveladas (Karatê, Kickboxing, Muai-Thay, Tae
Kwon Do). Grapplings são os estilos baseados predominantemente em chaves, quedas,
imobilizações, movimentos de arremesso, estrangulamentos, torções e as defesas contra
estas técnicas (Jiu-Jitsu, Judô, Luta Greco-Romana). Também existem lutas mistas, que
reúnem técnicas de bater e derrubar (Capoeira, Hapkido, Ninjitsu, etc.).
Em relação ao ensino-aprendizagem, tradicionalmente as lutas são consideradas
suaves, quando o praticante tem mais liberdade para usar sua criatividade e adaptar a
luta para suas condições físicas e mentais, ou duras, quando o praticante tem que se
adaptar à luta. Nas lutas “duras” é comum a prática de seqüências pré-programadas
(katas, katys, hians, etc.) cuja execução é exigida nos exames de troca de graduação.
Diante de tamanha diversidade no que se refere às lutas, acredita-se que uma
única disciplina não possa contemplar todos os conteúdos. Uma vez que a diversidade é
um ponto fundamental para garantir uma Educação Física de qualidade, os cursos de
formação em Educação Física devem ofertar um mínimo de conhecimento útil sobre o
maior número de manifestações de cultura corporal relacionadas às lutas. Somente por
meio da diversidade é que “valoriza-se a dimensão das múltiplas leituras da realidade e
a conseqüente ampliação das possibilidades de comunicação e de relacionamento entre
as pessoas” (FERREIRA, 2006, p.37).
Um aspecto a destacar é que, mesmo que fossem usados todos os semestres do
curso de graduação em Educação Física, não se conseguiria apreender os conhecimentos
necessários para transformar um graduando, sem conhecimento prévio do assunto, em
um mestre de uma única arte marcial, processo que normalmente demanda uma década
de estudos e treinamentos intensivos. Tão improvável é, também, preparar um leigo em
tão curto período de tempo para ser um campeão de alto nível em qualquer modalidade
de esportes de combate.
Sabendo-se que são poucos os alunos de Educação Física que atuam com o
ensino exclusivo de determinadas Lutas/Artes Marciais, e os que o fazem tem contato
direto com essas lutas na qualidade de praticante, torna-se evidente que o
direcionamento menos correto da disciplina é o de fazer os discentes executarem
técnicas de um único estilo.
Neste sentido, por meio de atividades corporais criativas e solidárias, deve-se
proporcionar aos alunos do curso de Educação Física o contato com conteúdos das lutas
que os possibilitem a “aprender a ensinar”. A abordagem nas aulas de lutas nos cursos
de Educação Física, portanto, deveria ser direcionada para a prática da intervenção
supervisionada, onde a prática não é um fim em si mesmo, mas uma estratégia para
entender o fenômeno estudado e atingir os objetivos pretendidos (DEL‟VECCHIO e
FRANCHINI, 2006, p. 106).
Durante a prática da intervenção supervisionada, em atividades com ênfase nos
procedimentos de observação (de forma direta ou indireta), os graduandos seriam
responsáveis pela problematização do cotidiano profissional, experimentando as etapas
de diagnóstico, elaboração (definição de objetivos, conteúdos, metodologia e avaliação),
aplicação e avaliação de programas, sempre com a supervisão do docente responsável
pela disciplina.
Os temas são muitos e podem incluir: a natureza do homem e sua relação com as
lutas, como a dicotomia da agressividade, uma manifestação natural do ser humano, e a
violência na sociedade e no contexto cultural contemporâneo; a influência das lutas no
comportamento dos praticantes; o estudo filosófico de diferentes categorias (percepção,
experiência, sensibilidade, intuição); a responsabilidade civil e criminal de professores e
praticantes de lutas; o adestramento e tolhimento do poder de crítica dos praticantes; a
especialização precoce (treinamento sistematizado para crianças); o autoritarismo do
mestre e a relação de poder entre os indivíduos; as práticas de imolação corporal nos
treinamentos e a dor como instrumento para o desenvolvimento.
Os cursos de extensão universitária que oferecem práticas de lutas também
podem contribuir como meio de aproximação das técnicas não acadêmicas e científicas.
Em sua maioria, tais cursos são abertos para a comunidade em geral e podem minimizar
a falta de vivência reflexiva dos profissionais de Educação Física a partir da busca de
interação de conhecimento destes profissionais com atletas/praticantes de lutas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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of 52 Blocks is Brooklyn's baddest secret. Details Magazine, p. 77-79, ag. 2001.
___Martial Arts in the Modern World. Santa Barbara: Praeger Publishers, 2003.
LORIEGA, J. Manual of the baratero, or: the art of handling the navaja, the knife,
and the scissors of the gypsies. Brochura, editado pelo autor, 2005
NAKAMOTO, H.O; PUCINELI, F.A.; DEL VECCHIO, F.B. et al. Ensino de lutas:
fundamentos para uma proposta sistematizada a partir dos estudos de Claude Bayer. IN:
Anais do 3° Congresso Científico Latíno-Americano de Educação Física da
UNIMEP. 9 a 12 de junho, Piracicaba/SP, p. 1297, 2004. [cd-rom].
RAMALHO, P. Luta, sinônimo de paz. Nova Escola, Belo Horizonte, ed.155, set.
2002. Disponível em: www.novaescola.abril.uol.com.br. Acesso em: 08/06/2008.
SEVERINO, R. O Espírito das artes marciais. São Paulo: Ícone Editora Ltda, 1988.