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20435/2177-093X-2016-v8-n2(09) 113
Resumo
Esta pesquisa, desenvolvida na comunidade ribeirinha de Porto da Manga, situada a 76 km da
cidade de Corumbá, MS, mostra que o adoecimento é uma construção social de responsabilidade
do Estado. No local, vivem aproximadamente 30 famílias, em torno de 200 pessoas, que, na sua
maioria, são coletores de iscas, pescadores profissionais e piloteiros. Para a coleta de dados,
foram convidadas 55 pessoas, das quais 47 aceitaram responder ao questionário semiestruturado,
e oito se recusaram a participar. Como metodologia, foi utilizada a análise qualitativa, com
observação participante. A omissão do Estado no campo da saúde, educação, habitação,
transporte público e segurança contribui para a produção do adoecimento dos ribeirinhos.
Dessa forma, o Estado, que deveria ser gerador de vida, é produtor de adoecimento e morte:
não só deixa morrer, mas faz morrer.
Palavras-chave: Comunidade; Coletores de iscas; Construção do adoecimento.
Abstract
This study developed in the riverine community of Porto da Manga, located 76 km from the
city of Corumbá, MS, shows that illness is a social construction for which the government is
responsible. Nearly 30 families live in the area, approximately 200 people, most of whom are
bait catchers, professional fishermen and fishing guides. Fifty-five were invited to provide
data. Forty-seven accepted to answer the semi-structured questionnaire and eight refused to
participate. The qualitative analysis methodology was used with participant observation. The
1
Endereço: Avenida Tamandaré, n. 6000, Jardim
Seminário, Campo Grande, MS, CEP 79117-900.
E-mail. jacirzanatta@gmail.com
matando lentamente aquela população rentemente não faz parte da região. Não
que busca se reinventar diariamente pretendemos estender em justificativas,
para não sucumbir ao esquecimento e a apenas trazer em defesa deste item o
tortura causadas pelo abandono e pelas fato de que os animais que mais são vis-
condições desumanas com que são leva- tos no Pantanal são bois e vacas. Esse tó-
dos a trabalhar para manter os clientes. pico será utilizado para tecer alguns co-
Percebe-se ainda que, na maior planí- mentários sobre a situação educacional
cie alagável do planeta, a vida e a morte encontrada na comunidade. Conforme
giram em torno das águas. São elas que afirma uma das entrevistadas Z_15, que
definem o local das moradias, quem en- tem 47 anos e mora na comunidade há
tra e quem sai do seu território. Elas re- 23, “aqui na manga tem cachorro que
gulam a vida e a organização dos ribei- pensa que é gente e vaca que pensa que
rinhos. A renovação passa pelo seu ciclo é cachorro”. A entrevistada manifes-
que possui poder sobre a vida e a morte. tou esse pensamento no momento que
Foram entrevistadas 47 pessoas, sen- fazia o relato sobre “Maria Perdida”,
do 21 do sexo masculino e 26 do sexo uma vaca que conseguiu subir no tercei-
feminino. Mas oito pantaneiros se recu- ro andar do prédio do hotel onde estão
saram a participar das entrevistas. Eles as duas salas alugadas pela prefeitura
não acreditam mais que alguma pesqui- de Corumbá e que servem como escola
sa ou mesmo algum pesquisador pos- para os pequenos ribeirinhos.
sam contribuir para alterar a realidade Escadas que um adulto tem dificul-
em que estão inseridos. As entrevistas dades para subir, pela distância dos
mostram que 85% dos ribeirinhos ga- degraus e por não possuir as mínimas
nham até um salário mínimo. Isso sig- condições de segurança, são utilizadas
diariamente pelas crianças. Mas, por que
te isso o que estão fazendo com aque- votantes. Isso mostra bem que o estado
las crianças. Roubando seus espíritos. está pouco se lixando para as regiões
Tirando delas a possibilidade de, pelo que não possuem representatividade
menos, ter um futuro diferente dos pais. política, como é o caso dos pantaneiros.
Z_08 tem 18 anos e mora na comunida- De acordo com Maffesoli (2007), exis-
de desde que nasceu. Ela defende que te um saber enraizado na existência co-
está na hora de ter uma escola para “os tidiana. E, esse saber que vem da sim-
alunos não subir no hotel e correr o risco plicidade, ganha força na expressão de
de cair de lá”. Essa situação de descaso um dos sujeitos desta investigação que
com a vida dos ribeirinhos está causan- mora na comunidade há 42 anos. Ele
do estragos irreparáveis. Estão tirando será identificado como Z_22, um senhor
deles o direito de sonhar. analfabeto de 56 anos que, mesmo sem
Outra pessoa entrevistada para esta nunca ter frequentado os bancos escola-
pesquisa foi uma senhora de 31 anos, res, sabe que “essa escola que tem aí é
aqui identificada como Z_30, mãe de alugada e o dinheiro que já gastou alu-
quatro filhos e moradora do Porto da gando essa aí, já dava pra construir duas
Manga há 20 anos. Ela é um retrato escola boa”. Temos que fazer essa per-
vivo da falta de perspectiva que atinge gunta: quem é o analfabeto? Quem o po-
a população pantaneira: “não tem nada der público pensa que engana? De tanto
pra valorizar aqui não. Nada”. Mesmo serem explorados, excluídos e por vive-
sentimento tem Z_43, um jovem de 28 rem à margem da sociedade, eles podem
anos que não conseguiu terminar nem ter perdido a voz, mas não deixaram de
o Ensino Fundamental, desistindo antes pensar a própria existência. Mas, quan-
de concluir o segundo ano. De acordo do as crianças chegam à adolescência,
com o morador “aqui pra nós não tem são obrigadas a enfrentar uma situação
De acordo com Arendt (2010), as pes- tam o acesso das pessoas. Dessa forma se
soas que vivem aprisionadas no traba- faz necessário prestar muita atenção aos
lho não conseguem conservar as mar- dados coletados. Caso contrário, corre-
cas da pluralidade uma vez que estão -se o risco de se pensar as informações
obrigadas a se experimentar apenas em levantadas fora da relação social onde
meio aos demais, na divisão de tare- elas foram produzidas. Quando isso
fas em vista do propósito de vencer os acontece, segundo Guareschi (2011), o
imperativos da necessidade de apenas ser humano acaba por se tornar o único
estar vivo. Diante dessa realidade, não responsável pelo seu êxito ou pelo seu
tem como não pensar nas afirmações fei- fracasso. Assim, legitima-se quem vence
tas por Sawaia (2011) quando a autora e degrada-se o vencido.
busca mostrar que
Cobra
O sofrimento ético-político abrange
as múltiplas afecções do corpo e da Mais do que as enchentes e as secas
alma que mutilam a vida de diferen- que assolam o Pantanal, o medo dos ri-
tes formas. Qualifica-se pela manei- beirinhos recai sobre os animais com os
ra como sou tratada e trato o outro quais são obrigados a dividir o espaço
na intersubjetividade, face a face ou e, muitas vezes, a alimentação. Com 53
anônima, cuja dinâmica, conteúdo anos, semianalfabeta e mãe de 10 filhos,
e qualidade são determinados pela Z_37 sabe dos perigos da profissão e
organização social. Portanto, o sofri- acredita que todo o cuidado é pouco. Ao
mento ético-político retrata a vivên- pensar no processo de adoecimento, ela
cia cotidiana das questões sociais relaciona com os riscos diários vivencia-
dominantes em cada época histórica, dos na coleta de iscas vivas. De acordo
Diante de um relato deste, a gente de? Tem que rezar pra não ficar do-
fica paralisado. Todos os problemas se ente. Principalmente quem não tem
tornam pequenos e perdem o sentido carro. Não tem nada, como é que
diante da experiência de morte descri- você vai? E se você não tem dinhei-
ta pela pantaneira. Mas a fala transcrita ro como você faz? O que você ganha
acima revela, nas suas entrelinhas, um morre tudo aqui [...] Ganha só pra
problema, aparentemente simples de se come. Se conseguir guardar um di-
resolver e que afeta todos os moradores: nheirinho é até sair o seguro e olha
a falta de transporte público. Com isso, lá [...] (Entrevistada Z_33, 52 anos).
o discurso de que o estado está matan- Diante de tudo o que se escutou dos
do lentamente os ribeirinhos também sujeitos que aceitaram contribuir com
cai por terra. O poder público não tem esta pesquisa, é importante prestar aten-
como matá-los de forma rápida para re- ção ao alerta feito por Sawaia (2011), ao
solver a situação; então, a impressão que mostrar que, para analisar as ambigui-
se tem é a de que ficam torcendo para dades existentes na exclusão, o pesqui-
que os animais do Pantanal terminem o sador precisa captar o enigma da coesão
serviço que o estado começou. social sob a lógica da exclusão na sua
As questões relacionadas com o trans- versão social e subjetiva. Uma tarefa
porte chamaram a atenção na hora das complicada, mas, ao entrar na vida da-
entrevistas. queles seres humanos tão singulares, as
Para nós ir na cidade tem que pagar questões subjetivas dos entrevistados
condução. R$ 150 para ir e R$ 150 começaram a aparecer e a fazer sentido
para voltar. Faz falta uma linha de dentro do que se propunha a investigar.
ônibus. A doença que a gente mais Por isso, a exclusão não é resultante
com Sawaia (2011), faz-se necessário teressante observar que, ao serem inda-
colocar, no centro das discussões sobre gados se também coletavam iscas vivas,
exclusão, a ideia de humanidade. Dessa todos foram unânimes em afirmar que
forma, é possível perceber que a temáti- sim. Percebe-se assim, que dos 47 entre-
ca da exclusão gira em torno do sujeito vistados, 31 sustentam a família das ati-
e da maneira como ele se relaciona com vidades ligadas diretamente à pesca.
o social. Assim, Sawaia (2011) defende É importante observar ainda, que
que, ao falar de exclusão, “fala-se de de todos os entrevistados, apenas uma
desejo, temporalidade e de afetivida- pessoa afirmou estar desempregada no
de ao mesmo tempo que de poder, de momento da entrevista. Ao fazer uma
economia e de direitos sociais” (p. 100). comparação com a faixa etária dos en-
Wanderley (2011) reforça essa postura trevistados, constata-se que os mais jo-
ao alertar para o fato de que os excluídos vens, com idade entre 18 e 29 anos, pos-
são rejeitados física, geográfica e mate- suem maior dificuldade de se aceitarem
rialmente do mercado e de suas trocas. como coletores de iscas. A pessoa mais
Eles também são excluídos, de acordo jovem que concedeu entrevista estava
com Wanderley (2011), “de todas as ri- com 18 anos e informou que era estu-
quezas espirituais, seus valores não são dante. Ao indagar sobre a série que es-
reconhecidos, ou seja, há também uma tava estudando, a entrevistada afirmou
exclusão cultural” (pp. 18-19). Mas, ape- apenas que tinha parado de estudar na
sar de toda exploração e exclusão sofri- 6ª série e que estava ali na comunida-
das, eles precisam se reconhecer uns nos de ajudando os pais na coleta de iscas.
outros como membros do mesmo grupo. As outras duas pessoas mais jovens da
A pesquisa revela ainda que, em al- entrevista, uma com 20 e outra com 21
gum momento, todos passaram pelo anos, declararam-se doméstica e mani-
tragédia, segundo ele, fez com que o ca- vidualmente a água que vão consumir.
samento não resistisse. Percebe-se aqui, Mesmo com todo o cuidado que tomam
que Backes, Da Rosa, Fernandes, Becker, com relação à medida dos produtos quí-
Meirelles, e Santos (2009) têm razão micos utilizados nesse tratamento, eles
quando defendem que a doença possui reclamam que, algumas vezes, erram a
caráter histórico e social, sendo que a na- medida e a água acaba ficando amarga
tureza social se verifica no modo carac- o que gera, segundo os entrevistados,
terístico de adoecer e morrer nos grupos dores no estômago e diarreia. A forma
humanos. Dessa forma, faz-se necessário como os moradores descrevem o trata-
ressaltar que, para Backes et al. (2009), a mento que recebem quando procuram
concepção de saúde como qualidade de os serviços de saúde mostra que eles
vida é condicionada por vários fatores não confiam no poder da ciência institu-
que englobam inclusive paz de espírito, ída pelo modelo biomédico. Também é
abrigo decente, equidade e justiça social. possível perceber a falta de perspectiva
Nota-se, no relato acima, que, além de de futuro, uma vez que dependem da
acarretar sofrimento psíquico, a doença coleta de isca para sobreviver e, por isso,
deixa marcas profundas, sobretudo em adoecer é, na concepção dos ribeirinhos,
quem foi por ela afetado, mas, em algu- inevitável.
ma medida, atinge também aos que o Diante do que foi exposto até aqui, é
cercam. importante ressaltar que, para Oliveira
Estudar a saúde e doença é, num pri- (2011 p.602), as representações sociais
meiro momento, perceber que não é pos- se articulam em redes interdependen-
sível desvincular a saúde do ambiente tes. Dessa forma, “pode-se inferir que as
concreto no qual o sujeito está inserido, representações de saúde e doença inte-
uma vez que o contexto influencia na ragem para determinar concepções es-
ser levadas em consideração quando se mente a água que vão consumir. Mesmo
pretende trabalhar a saúde de uma de- com todo o cuidado que tomam com re-
terminada população. lação à medida dos produtos químicos
É importante observar que a fala dos utilizados no tratamento da água, eles
entrevistados, além de ser carregada reclamam que, algumas vezes, erram a
de afeto, traz no seu bojo a visão social, medida, e a água acaba ficando amarga,
política, econômica e cultural da comu- o que gera, segundo os entrevistados,
nidade da qual fazem parte. Nessa li- dores no estômago e diarreia.
nha de pensamento, estão Guareschi e Para entender as causas e os sintomas
Jovchelovitch (2011), ao argumentarem das doenças enfrentadas pelos ribeiri-
que o caráter simbólico e imaginativo nhos, faz-se necessário compreender
dos ribeirinhos traz à tona a dimensão como as ações individuais e coletivas
dos afetos. Isso porque a construção da acontecem no contexto das relações so-
significação simbólica que a comunida- ciais vivenciadas no espaço da própria
de tem de si mesma é, ao mesmo tempo, comunidade. Dessa forma, é preciso va-
um ato de conhecimento do mundo que lorizar a cultura dos moradores da co-
a cerca, mas também é um ato afetivo munidade, que, por estarem à margem
que exige interação e participação com da sociedade, acabam buscando na sa-
os demais membros que compõem a bedoria popular a forma de combater os
coletividade. De acordo com Traverso- males que sofrem e enfrentam na difícil
Yépez (2001), a doença gera nas pes- luta pela sobrevivência. Assim, fica cla-
soas sentimentos de insegurança e te- ro o que Moscovici (2011) tentou mos-
mor, uma vez que a população de um trar ao afirmar que as pessoas não são
modo geral conhece cada vez menos o apenas processadoras de informações,
nem meros portadores de ideologias ou
Recebido: 20/09/2016
Última revisão: 16/11/2016
Aceite final: 18/11/2016
Sobre os autores:
Jacir Alfonso Zanatta - Doutorando em Psicologia da Saúde pela Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB), mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul (UFMS) e mestre em Psicologia da Saúde pela (UCDB). Formado em Psicologia pela
(UCDB), Jornalismo pela (UFMS) e Filosofia pelas Faculdades Unidas Católicas de Mato
Grosso (FUCMT). Professor da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), membro do
Comitê Científico e vice-presidente do Comitê de Ética na Pesquisa (CEP/UCDB). E-mail:
jacirzanatta@gmail.com
Márcio Luís Costa - Doutor e mestre em Filosofia pela Universidad Nacional Autonoma de
México. Especialista em Didática e Metodologia do Ensino Superior e formado em Filosofia
pelas Faculdades Unidas Católicas de Mato Grosso (FUCMT). É Coordenador do Programa
de Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
Editor da responsável pela revista Psicologia e Saúde e Presidente do Comitê de Ética na
Pesquisa (CEP/UCDB). E-mail: marcius1962@gmail.com