Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
36212018 3713
Artigo Article
na vivência de pessoas em situação de rua
Abstract This research aimed to analyse how Resumo O objetivo do estudo foi analisar como
homeless people experience drug use and the as pessoas em situação de rua vivenciam o uso de
intertwining between it and their cultural envi- drogas e seus entrelaçamentos com suas culturas
ronment and life style. An etnographic study has e estilos de vida. Realizou-se um estudo etnográ-
been conducted which identified the macrosocial fico, que identificou as estruturas macrossociais
structures through the National Movement of através do acompanhamento do Movimento
the Homeless (Movimento Nacional da Popu- Nacional da População de rua, e as microsso-
lação de Rua) monitoring and the microsocial ciais, por meio das trajetórias individuais dos in-
ones by means of its interlocutors’ individual tra- terlocutores. Os dados foram coletados mediante
jectories. Data were collected upon participant observação participante, registrada em diário de
observation, registered in a research field journal campo e entrevistas semiestruturadas. A análise
and in semi-structured interviews. The analysis foi realizada pela síntese da geração dos dados
was carried out by data generation synthesis durante todo o processo de trabalho. Os resul-
over the whole working process. Results reveal a tados apontam uma cultura da rua, em que
street culture in which drug builds a collective a droga surge como um estilo de vida coletivo,
life style that sets relationships and identities construindo relações e identidades de resistência
which withstand stigmas. Life stories unveil so- aos estigmas. As histórias de vida revelaram o
cial suffering and exclusion besides non-adapta- sofrimento social, a exclusão e a não adaptação
tion to society conventional and formal aspects. ao sistema convencional e formal. Assim, as pes-
Therefore, homeless people have their own social soas em situação de rua possuem uma organiza-
1
Escola de Enfermagem, organisation that helps them to endure the diffi- ção social que ajuda a suportar as dificuldades
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). culties in being accepted by society as well as the de aceitação da sociedade e a inadequação dos
R. São Manoel 963, Rio inadequacy of the social services that should as- serviços que as atendem. A droga faz parte dessa
Branco. 90620-110 Porto sist them. Drug is part of this culture as a way of cultura, enquanto mais um modo de vida, que
Alegre RS Brasil.
alinee_basso@hotmail.com living and it needs to be understood and worked precisa ser compreendido e trabalhado de forma
2
Departamento de with by health professionals through a conscious aberta e consciente pelos profissionais de saúde.
Assistência e Orientação and open approach. Palavras-chave Pessoas em situação de rua,
Profissional, UFRGS. Porto
Alegre RS Brasil. Keywords Homeless people, Drug users, Mental Usuários de drogas, Saúde mental, Antropologia
3
Departamento de health, Anthropology
humanas, Universidade
Federal do Pampa. Jaguarão
RS Brasil.
3714
Silva AB et al.
Na plateia, um diálogo chama a atenção, um como eu suportava viver na rua sem a droga, can-
ex-usuário de drogas relata que não está preocu- sei de ouvir do tipo tu não vai aguentar cara. Um
pado com pessoas que fazem uso funcional da dia tu vai cair, não tem como suportar essa falta de
droga, e sim com as que fazem uso disfuncional, tudo sem usar a droga... (R5)
por exemplo as pessoas da Cracolândia. O pro- [...] Já ouvi também de companheiros da rua:
fessor expõe sua experiência na cracolândia, e diz Se tu não usar droga esse lugar não é pra ti, aqui só
perceber que o uso abusivo e a dependência es- estão quem usa droga... (R5)
tão intimamente ligados à necessidade daquelas [...] Posso te dizer, isso quero te relatar, que tem
pessoas em sobreviver às suas vulnerabilidades, preconceito com as pessoas que não usam drogas
à falta de oportunidades, ao descaso no cuidado na rua. Se ela não usa, tu acabas ficando de fora,
formal e à falta de políticas públicas. Refere, en- como se eu fosse o errado. Aquilo que ele falou lá do
tão, que a droga passa a ser um artifício de vida, disfuncional. Aí se tu não usas a droga tu és disfun-
a única possibilidade de inclusão social naquele cional naquele sistema... (R5)
contexto. Ouvi atentamente R5 e sua afirmação “Você
O conceito de disfuncional é descontruído tem que ouvir também quem não usa drogas, só
pelo professor ao dizer que em toda a sociedade assim tu vai entender como é as ruas”, retumbava
haverá pessoas que não se adaptam ao modelo, em meus pensamentos. Assim, consegui levantar
não por estarem erradas, mas por não se senti- o argumento: para as populações de rua, pode
rem pertencentes a ele. Fala que o cuidado a es- haver um estilo de vida em que a droga possui
sas pessoas deve ser pensado de forma diferente, um valor social, cultural e simbólico que também
pois a retirada da droga seria a real morte, e que o demarca a sobrevivência. Ou seja, como naquele
grande desafio era incluí-las com suas diferenças debate, “a droga é um artifício de vida e não de
no sistema. morte”.
Esse debate instiga a refletir sobre as dife- R5 aborda em seus relatos que sua sobrevi-
rentes maneiras do uso de drogas na sociedade, vência nas ruas foi sempre conturbada quando
é possível relacionar a cracolândia às pessoas associada às relações em grupo. Sempre buscou
em situação de rua, pois percebe-se algumas si- a companhia de um amigo com ideias parecidas
tuações em comum: a falta de oportunidades, o ou a individualidade. A afirmativa à vida nas ruas
descaso das políticas públicas e a sobrevivência foi possível a relacionando a uma frase que R5
a suas vulnerabilidades. Na saída da palestra, an- sempre repetia: “a gente se acostuma”.
dando pelas ruas com um militante, ele relata al-
gumas dessas situações: Situação 2- Vivência microestrutural: João
R5 é um militante do movimento, não usa e e suas relações com o grupo de pessoas
nem nunca usou drogas, viveu muitos anos na em situação de rua
rua e agora está em um abrigo por motivos de
saúde. É um homem de estatura média, bran- Andando com João, um de meus interlocu-
co, com olhos e cabelos claros. À primeira vista, tores privilegiados, chegamos a um parque, onde
quando o conheci, acreditei que era um apoiador havia várias pessoas em situação de rua, homens,
do movimento, não por sua aparência, mas mui- mulheres, crianças comendo churrasco, que ga-
to mais por sua forma de se relacionar. Aparen- nharam de uma turma de pessoas que usava o
tava ser muito sério, com a linguagem bastante espaço público para fazer um almoço coletivo
rebuscada, mas essa postura séria foi dando lugar entre amigos na rua. O pessoal (pessoas em situa-
a um homem delicado que gostava de conversar ção de rua) cumprimentou primeiro o João, bem
sobre questões da rua. animados em vê-lo, após, João me apresentou, e
[...] Tu trabalhas com drogas, acho que tu tens uma das pessoas do grupo disse: Eu conheço já
que ouvir também pessoas que não as usam nas está menina, está sempre com a gente nas ativida-
ruas. Isso porque tu vai entender melhor esse tema. des, nas coisas do jornal, se dá com o pessoal... (R6).
Talvez tu vai entender até o que professor disse de Aos poucos, os olhares desconfiados e o des-
uma forma mais prática. Tipo a gente na rua so- conforto com a minha presença foram mudando
fre tudo que é violência, desrespeito, falta as coisas, para a descontração. Terminaram de comer e nos
mas a gente se acostuma. Mas a grande maioria convidaram para dar uma volta pelo parque, a
usa a droga para suportar isso, e os que não usam ideia era fazer uma roda para utilizar maconha,
são considerados os inadequados... (R5) éramos seis formando uma roda. No ritual de
[...] Pois é, posso te dizer que nunca usei dro- uso de maconha, uma das pessoas fechou o ba-
gas, nunca mesmo. E as pessoas nunca entenderam seado, enquanto conversavam sobre diferentes
3717
cultura como um estilo de vida que não é indivi- seus aspectos negativos da vida com poucos re-
dual, mas coletivo; o uso da droga os une frente cursos e muito sofrimento para esses sujeitos e,
aos problemas comuns que vivem pelas ruas. ao mesmo tempo, é um modo de resistência, a
Há um tensionamento na noção de normali- partir de um mundo de significados e identida-
dade, em que o desviante não possui o propósito des que o reforçam e os tornam sobreviventes:
e a intenção exatamente do desvio. Na realidade, a organização em grupo parece ser o mais forte
ignora a existência da regra – em que o “normal” desses significados.
não é exatamente o ligado a instituições e com- A segunda situação traz um momento com
portamentos convencionais –, à qual a maioria João que, a partir de sua presença, coloca em cena
das pessoas da sociedade é submetida ao longo a possibilidade de contato com o grupo de pesso-
do tempo, no caso, para o indivíduo “desviante” as em situação de rua. Observa-se que esses con-
não existe a reputação a zelar, pois, conforme textos são ricos de informação sobre a forma de
suas noções e experiências, seu comportamento organização das pessoas, uma organização ligada
é adequado9. à vida em grupo, a partir das aldeias: comunida-
R5 narra que o fato de não usar drogas o co- des coletivas na rua.
loca em posição de desvio, ele se torna “disfun- João diz desejar a mudança de vida, a saída
cional” naquele sistema. Essa ideia é abordada das ruas e a diminuição do uso de drogas. Para
por Becker9, em que uma sociedade “normal”, tal, as instituições da rede de saúde e assistência
legitimada pelos modelos convencionais e pelo são acionadas, tanto o abrigo que está lhe permi-
biologicismo do uso de drogas, R5 está correto, tindo ter um teto para moradia quanto o CAPS
pois consegue viver sem drogas. No entanto, o AD, no qual faz seu tratamento em saúde basea-
“normal” para essa sociedade de rua é a utiliza- do em medicações, as quais ele não quer usar e
ção da droga, fazendo com que R5 seja o outsider, em redução de danos que ainda lhe permite al-
o outro, o diferente naquele lugar. guns rituais de encontro com amigos da rua.
Observa-se que o mundo social dos mora- O ritual de uso de drogas na rua é entendido
dores de rua é considerado uma subcultura, pois como parte dessa organização social. O uso do
a grande maioria das pessoas não escolhe esse cigarro e da maconha são um modo de “estru-
mundo e sim é empurrada pelas circunstâncias turas de vida”. As estruturas de vida são compre-
sociais: essas pessoas vivem uma vida precária, endidas enquanto atividades regulares, tanto as
sofrem violências e estigmas constantes, e não há convencionais quanto as relacionadas à droga,
políticas públicas e redes formais adequadas para que estruturam os padrões da vida cotidiana. Isso
suas necessidades, e estão mais vulneráveis a do- inclui as relações pessoais, os compromissos, as
enças e ao uso de drogas. Então, partilham de um obrigações, as responsabilidades, os objetivos e as
mesmo destino, sobreviver a essas circunstâncias expectativas12.
e à difícil vida nas ruas e becos das grandes ci- Para João, a vida nas ruas só é possível com o
dades10. uso de drogas, pois elas fazem parte daquela rea-
A noção de subcultura está associada à socie- lidade social. O fato de seu tratamento lhe permi-
dade complexa, pois se trata de diferentes classes, tir o uso da droga, ainda que só a maconha, a par-
religiões, etnias. Pode-se exemplificar com a cul- tir da redução de danos, lhe permite também o
tura burguesa que criou um conjunto de normas contato com alguns de seus amigos na rua, os que
e regras dominantes: tradições, heranças – hu- restaram. Suas relações com os amigos ainda são
manismo, cristianismo – e a origem pode estar positivas, ele ainda se sente pertencente ao grupo.
vinculada à noção de classe social da burguesia. Os rituais de uso de maconha são comuns nesses
Assim, as culturas que não são dominantes – as encontros, que podem não durar muito tempo,
minorias – possuem comportamentos, crenças, mas demarcam a relação: eles têm a possibilidade
valores em comum, opondo-se às culturas domi- de conversar, relembrar histórias a partir do uso
nantes, e são consideradas subculturas11. da droga.
As pessoas em situação de rua e o uso de dro- Desse modo, a utilização das drogas é um ri-
gas são percebidos como uma subcultura, pois tual de socialização e fortalecimento de relações.
revelam um universo de significados bastante Também é um território de reconhecimento,
particulares que se opõem às culturas dominan- marcando um local de convivência entre os usu-
tes. Porém, a partir da etnografia, observa-se uma ários de drogas no espaço da rua. O grupo as-
cultura da rua, pois a definição de subcultura ain- sume papel de acolhida e afeto, na ausência de
da é considerada pelo senso comum uma cultura laços familiares, promovendo sentimentos de
em subdesenvolvimento. A cultura da rua revela igualdade13,14.
3719
meio às dificuldades. Observa-se que as pessoas à “droga doença” e à “droga crime”. Para tal, os
em situação de rua possuem uma organização profissionais e a sociedade necessitam de infor-
social que os ajuda a suportar as dificuldades de mação, discussão e práticas que considerem esse
aceitação da sociedade e a organização falha dos tema.
serviços que não compreendem seus modos de A pesquisa etnográfica torna-se um impor-
vida. tante meio de diálogo, interação e compreensão
Dessa forma, as pessoas em situação de rua da complexidade do tema das drogas, saúde e
são estigmatizadas e vinculadas à imagem de cri- cuidado para as populações como as de rua, que
minosos e drogados. A possibilidade de conhecer possuem estilos de vida diferenciados, dinâmicas
e compreender sua cultura possibilita a reflexão e diversidades que precisam com urgência ser en-
da necessidade de novos modelos de cuidado em tendidas e incorporadas nas reflexões e ações do
drogas e saúde, que não se vinculem somente campo da saúde.
Colaboradores
1. Centro de Assessoria Multiprofissional (CAMP). Eco- 12. Macrae E. A Subcultura da Droga e Prevenção. Centro
sol pop rua: formação em economia solidária com Pes- de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas (CETAD);
soas em Situação de Rua. Porto Alegre: CAMP; 2017. Universidade Federal da Bahia (UFBA); 2003, Salva-
2. Brasil. Ministério da Saúde (MS). A pesquisa nacional dor. p. 1-8. [acessado 2018 Jul 17]. Disponível em:
sobre a população em situação de rua. Brasília: MS; http://www.neip.info/downloads/t_edw5.pdf
2008. 13. Grund JC. Drug use as a Social Ritual Functionality,
3. Matos ACV. Atuação dos consultórios na rua e a aten- Symbolism and Determinants of Self-regulation. Rot-
ção à Saúde das Pessoas em Situação de rua. [disserta- terdam: Erasmus Universiteit; 1993.
ção]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do 14. Ferreira RZ. A teoria dos dons e dádivas entre grupos
Norte; 2016. de usuários de crack e outras drogas. Texto Contexto
4. Facundo-Guzmán FR, Pedrão LJ, Lopez-García KS, Enferm 2015; 24(2):467-475.
Alonso-Castillo MM, Esparza-Almanza SE. El con- 15. Medeiros R. Construção social das dro-
sumo de drogas como una práctica cultural dentro gas e do crack e as respostas institucionais e
de las pandillas. Rev Lat Am. Enfermagem 2011; 19(n. terapêuticas instituídas. Saúde Soc 2014; 23(1):105-117.
esp.):839-847. 16. Goffman E. Estigma: notas sobre a manipulação da
5. Ayres JR, Paiva V, França Júnior I. Conceitos e Práticas identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC;
de Prevenção: da História natural da doença ao qua- 2015.
dro da vulnerabilidade e direitos humanos In: Paiva V, 17. Elias N, Escotson J. Os estabelecidos e os Outsiders: so-
Ayres JR, Buchalla CM. Vulnerabilidade e Direitos Hu- ciologia das relações de poder a partir de uma pequena
manos: da doença à cidadania. Curitiba: Juruá; 2012. comunidade. Rio de Janeiro: Zahar; 2000.
p. 71-94.
6. Victora CG, Knauth DR, Hassen MN. Pesquisa Quali-
tativa em Saúde: uma introdução ao tema. São Paulo:
Tomo Editorial; 2000.
7. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Cadastro e mundo da população adulta em situação de
rua de Porto Alegre, RS. Porto Alegre: UFRGS; 2016.
8. Geertz C. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro:
LTC; 2008.
9. Becker HS. Outsiders: estudos da sociologia do desvio.
Rio de Janeiro: Zahar; 2008.
10. Costa R. Por um novo conceito de comunidade: redes
sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva.
Interface (Botucatu) 2005; 9(17):235-248.
11. Velho G, Castro EV. O Conceito de Cultura e o Estudo Artigo apresentado em 24/07/2018
das Sociedades Complexas: uma perspectiva antropoló- Aprovado em 06/02/2019
gica. Rio de Janeiro: Artefato; 1978. Versão final apresentada em 08/02/2019
CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons