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Problematizando a utilização de drogas lícitas e ilícitas: práticas educativas e

experiências vivenciadas numa organização da sociedade civil do agreste


pernambucano

Elisângela Maria dos Santos Silva1


Adriel Rodrigues do Nascimento2

Introdução

O consumo de substâncias psicoativas no mundo é um fenômeno que sempre


acompanhou a formação das civilizações e seus contextos socioculturais. Fosse
para cura de doenças, experiências religiosas e transcedentais, prazer individual e
coletivo, raramente era vista como ameaçadora para o indivíduo e a sociedade. Isso
porque para cada cultura, o uso de substâncias psicoativas estava intrisecamente
relacionado aos princípios, leis e regras de conduta que determinavam quem, como
e qual a finalidade do uso, de acordo com sua forma de organização e compreensão
do sujeito e do mundo.
A história sobre uso de drogas apresenta profundas transformações pois suas
características foram se modificando com o tempo, a partir dos controles sociais
formais e informais de agentes políticos, repressores, religiosos, familiares,
comunitários, de saúde, dentre outros.
Poderiamos retormar a uma descrição retrospectiva ancestral do uso do ópio
originário da Asia Menor e Europa há 5.000 anos, da Cannabis encontrada no
continente asiátio há 4.000 a.C, da bebida alcoolica utilizada em vários fins pelos
egípcios, mas vamos particularizar recortes de alguns momentos específicos que
trarão todo sentido para as discussões atuais sobre sujeitos, contextos e uso de
drogas, que estão intimamente relacionadas ao relato das vivências que
apresentaremos.

1 Possui graduação em Psicologia pela Faculdade do Vale do Ipojuca- FAVIP, atua como psicóloga
social no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA, na cidade de Caruaru-PE. E-
mail:silva.elisangelamaria@gmail.com.
2 Pedagogo e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Contemporânea –
PPGEduc da Universidade Federal de Pernambuco – Campus Acadêmico do Agreste, atua no
acompanhamento de projetos pedagógicos no Centro de Educação Popular Assunção – CEPA,
na cidade de Caruaru – PE. E-mail: adrielrodrigues.89@outlook.com
No século IV, a cristianização do Império Romano levou, todavia, ao colapso as
antigas noções pagãs sobre o uso de drogas, as quais passaram a ser
estigmatizadas não só por sua associação a cultos mágicos e religiosos, mas
também por seus usos terapêuticos para aliviar o sofrimento [...] Assim, no século
X, o emprego de drogas para fins terapêuticos tornara-se sinônimo de bruxaria ou
heresia a ser punida, tanto por católicos como por protestantes, com torturas e
morte. As acusações serviam, evidentemente, a fins políticos e econômicos.
Ajudavam, também, a estigmatizar grupos, como o das mulheres, dos
camponeses e dos pensadores que punham em questão os dogmas eclesiásticos
[grifo nosso] (MACRAE, 2014, p. 33).

Esse elemento da padronização hegemônica sociocultural de movimentos


eurocentricos e fundamentalistas, originou a classificação econômica e organização
social feudal, que passou a perseguir qualquer dissidente e a punir usuários de
alcool e cannabis. Concomitante, a nobreza enchia os olhos com a exploração dos
novos horizontes encontrados no comércio das principais drogas como ópio, alcool,
tabaco, cannabis e coca, se instituindo os primeiros sinais da prática do narcotráfico.
Vemos assim nascer a política proibicionista que perdura até os dias atuais.
Para os proibicionistas, a cultura milenar sobre uso de subtâncias psicoativas,
as crenças, valores, estilos de vida, religiosidade, contexto social se tornam
irrelevantes diante das novas concepções de que o uso de drogas apenas degrada
o sujeito, a sociedade e cria um perigoso comércio ilícito mundial.
Em 1930 os Estados Unidos, não muito diferente de hoje, era um país
extremamente xenofóbico e, encontrando uma estratégia higienista de tentar dizimar
as comunidades imigrantes africanas e mexicanas, dentre outras menores, criaram
uma ideia de condenação de um comércio maligno e prejudicial de narcóticos
instaurando uma guerra implacável contra a maconha. Na verdade, o problema não
estava em usar a maconha, os cientistas provaram isso. A questão é que negros
usavam maconha. Pessoas negras representavam 78% das prisões por uso de
maconha só em Nova Iorque. Essa disparidade social continua até hoje e esse
elemento é representativo à discussões. Atualmente, após um paulatino processo
de liberação nos estados americanos, a pergunta que se fazem é: Porque naquele
período a maconha foi proibida e agora está sendo liberada?
Na mesma época, no Brasil, o governo de Getúlio Vargas também adere a
guerra contra as drogas, atingindo principalmente a população negra, indígena e
mestiça da região Norte e Nordeste. Concidência? Essa proposta, nitidamente
fortaleceu processos discriminatórios, preconceituosos e segregadores. As
campanhas antidrogas, muitas com um cunho moralista, racista e religioso- tendo
instauraram a política do terror. Os usuários, eram vistos como pessoas de alta
periculosidade, violentas, incapazes de se responsabilizarem por suas vidas.
Em 21 de outubro de 1976 é instituida a Lei de Drogas n° 6.368 3, que trazia
em si um caráter mais penalista, criminal do que social. Na prática, a lei foi
amplamente usada para legitimizar uma verdadeira higienização, abarrotando os
presídios e unidades socioeducativas- Fundação do Bem Estar do Menor
(FUNABEM) e Fundaçação Estadual para o Bem Estar do Menor (FEBEM)- com
pobres, jovens e adolescentes negros, intitulados traficantes, enquanto que, os
verdadeiros agenciadores do tráfico permaneciam livres, em sociedade, agindo na
obscuridade.
Vale salientar que, de acordo com os principais documentos legais
internacionais, o Estado não poderia adotar tão somente medidas repressivas e
proibicionistas pois, os instrumentos de garantia de direitos já previam ampla
proteção aos usuários/ dependentes de drogas, de acordo com os princípios do
respeito a dignidade da pessoa humana.
A partir disso, podemos considerar que em nosso país, a preocupação com
os aspectos gerais sobre drogas lícitas e ilícitas- reconhecimento da fatores
subjetivos, sociais, familiares, políticos, econômicos, assistenciais e criminológicos-
aconteceu de fato com a promulgação da nova Lei de Drogas n° 11.343 (BRASIL,
2006).

3 A Lei 6.368/76 foi definida sob as principais Convenções da Organização das Nações Unidas
(ONU) das quais o Brasil era signatário: Convenção Única sobre Entorpecentes (1961) e Convenção
sobre Substâncias Psicotrópicas (1971). Ambas definem quais substâncias ficam sob controle das
comunidades internacionais, estabelecem os critérios para a disponibilização destas para uso médico
e cientifico e combatem a prática do comércio ilegal.
Enquanto dávamos os primeiros passos para o controle de substâncias e repressão ao tráfico
ilícito de drogas, na década de 70, alguns países europeus já caminhavam às discussões sobre
novos paradigmas que apresentavam o uso e dependência de drogas como um fenômeno complexo,
multifatorial, indiciando assim os primeiros experimentos em Redução de Danos como alternativa às
estratégias proibicionista estabelecidas pela “Guerra as Drogas”.
As respectivas leis encontram se disponíveis em: http://dai-mre.serpro.gov.br/atos-
internacionais/multilaterais/emenda-a-convencao-sobre-entorpecentes-de-1961-como-emendada-
pelo-protocolo--de-25-03-1972/. Acesso em 09 de junho de 2019.
http://www.obid.senad.gov.br/portais/OBID/biblioteca/documentos/Legislacao/ONU/
329618.pdf. Acesso em 09 de junho de 2019.
A implantação desta lei trouxe grandes impactos no aumento do número de
presos por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Segundo o Levantamento
Nacional de Informações Penitenciárias- INFOPEN- (BRASIL, 2017) num período de
16 anos, entre 2000 e 2016 a população prisional aumentou 157%, sendo composta
por 64% de negros, 55% de jovens entre 18 a 29 anos e 28% condenados e/ou
aguardando julgamento por crimes relacionados ao tráfico de drogas.
Nesse sentido, percebemos que ao longo da trajetória, os principais aspectos
das discussões produzidas, necessitam seguir ao campo de visão das
complexidades existentes nesses fenômenos, que implicam diretamente nos
contextos, sujeitos e drogas.
Para a compreensão dos contextos, entendemos que se faz necessário
dimensionar as características econômicas e políticas presentes nos diversos
cenários sobre a comercialização de drogas, os aspectos socioculturais, as
conjunturas sociais, a importância da identidade comunitária sob seus valores,
crenças, história e a participação do sujeito na construção destas.
O sujeito, em suas diversas possibilidades de SER, constitue sua
subjetividade nas relações consigo mesmo, com o corpo, com o outro e o coletivo.
Compreende-lo em suas múltiplas características biopsicossociais nos empodera de
uma visão histórica dialética de nós mesmos e nossa relação com o mundo.
O Centro de Educação Popular Assunção- CEPA, uma organização da
sociedade civil localizada em Caruaru, município do agreste pernambucano, tem se
firmado como um espaço socioeducativo que alia as perspectivas freireanas da
Educação Popular a um novo modelo de gestão social, que estimula a
institucionalização dos movimentos sociais a partir da participação social e popular,
instrumentalizando-os para o constante diálogo entre Estado e sociedade.
Nas oficinas (dança, teatro, capoeira, maracatu, informática, audiovisual), na
educação infantil, no acompanhamento familiar, no envolvimento de educadores/as,
educandos/as, pais e/ou responsáveis, membros da comunidade, do sistema de
garantia de direitos, é onde desenvolvemos a prática dialógica a partir das rodas de
conversa, oficinas educativas, aulas passeios e ações culturais, que nos permitem
refletir sobre a construção histórica dos elementos estigmatizadores da população
negra, empobrecida, vítima de violências físicas, psicológicas e simbólicas, por
vezes condicionadas nas desigualdades socioeconômicass em favor a manutenção
da supremacia hegemonica que ainda sustentam concepções pseudocientíficas
sobre o uso de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas que deram espaço a leis
antidrogas e práticas de higienização social através da criminalização e da
segregação do usuário/dependente.
Com o objetivo de problematizar junto aos/às educadores/as, educando/as,
família e comunidade questões biopsicosociais relacionadas ao uso de drogas lícitas
e ilícitas; promover ações de cunho preventivo e protetivo acerca dos mecanismos
sutis e avassaladores de aliciamentos, dependências e multiplos fenômenos
gerados pela dependência e comercialização das drogas; problematizar o imaginário
social4 predominante sobre as drogas, o Centro de Educação Popular Assunção-
CEPA vem desenvolvendo um projeto de práticas preventivas sobre o uso de
drogas, o qual nos propomos a socializar nossas vivências em algumas atividades
(rodas de diálogo e aulas passeio) norteadoras de importantes considerações sobre
a temática.

Cartografia dos saberes

Trazemos em nossa atuação a intervenção psicossocial (NEIVA, 2010), por


compreender que na esfera individual e coletiva se faz necessário olhar para a
construção das relações sociais, suas conjunturas e para a ação dos sujeitos no
espaço individual e compartilhado. 
A intervenção psicossocial tem com característica o caráter científico usado
desde a construção e planejamento de uma atividade até ao ato de provocar e gerar
mudanças em grupos, instituições e comunidades. Essas mudanças são atemporais
sem que seja necessário ser sentida e percebida pelo grupo. As ações acontecem
na imersão das demandas trazidas pelos envolvidos. Demandas essas que podem
estar relacionadas a problemas atuais ou antigos do sujeito, podem estar
relacionadas com o assunto trabalho e/ou circular em questões sociais como acesso

4 Sobre Imaginário Social e Hegemonia Cultural, revisitar:


Bronislaw Baczko. "Imaginação social". In Enciclopédia Einaudi, s. 1. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, Editora Portuguesa, 1985, p. 403.

Carlos Nelson Coutinho. A dualidade de poderes: introdução à teoria marxista do Estado e da


revolução. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 61.

Maria-Antonietta Macciocchi. A favor de Gramsci. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p.
183.
a moradia, alimentação, educação, trabalho, etc. Assim sendo, constantemente
estaremos trabalhando com grupos complexos, homogêneos, heterogêneos,
participantes ativos ou passivos, entre outros. O papel do interventor, portanto, é
assumir dois lugares distintos: prático/facilitador e pesquisador. Conforme Neiva
(2010, p.49) “Sua capacidade de observação, escuta e análise deverá estar em
constante uso, durante todas as etapas da intervenção”. 
Na proximidade com o outro se faz a construção de sentidos. Na psicologia,
autores como Kenneth Gergen (apud SPINK, 1999) discutiam sobre a ideia de um
movimento que adota a construção do conhecimento no coletivo, por meio da
socialização de saberes e práticas. Na perspectiva construcionista, a produção de
sentidos se dá pela compreensão da relação que as ciências tem com a realidade,
pela constante procura de desconstruir a retórica da verdade e pelo empoderamento
de grupos e sujeitos socialmente marginalizados.
A Fenomenologia Existencial apresenta o sujeito nos seus vários modos de
ser, buscando não uma única verdade, mas procurando novas perspectivas para
olhar as verdades como sendo relativas ou diferentes umas das outras.
Segundo Critelli (2007), a fenomenologia rompe com a idéia da metafísica
que traz a verdade como única e absoluta. Mostra que a perspectiva e a verdade
são relativas e provisórias. Além de preconizar a existência de verdades a
fenomenologia também fala dos infindáveis modos de ser no mundo. “[...] um modo
de habitar o mundo, de instalar-se nele, de conduzir sua vida e a dos outros homens
com quem convive de forma próxima ou distante” (p.16). Segundo Pokladek (2004)
os caminhos da fenomenologia permitem ao ser humano uma compreensão do seu
cotidiano e de suas formas de existir. E o que significa esse existir? Para Heidegger
(apud JOSGRILBERG, 2002, p. 32-33), a existência é uma característica do ser
humano que lhe permite uma abertura para o mundo e que sua existência, só existe
de fato, quando ele se permite à essa abertura.
O diário de campo, é uma importante ferramenta que tanto nos orienta para
construção de novas vivências como para análise dos fenômenos emergidos em
intervenções anteriores (LAGE,2013), aliado ao conhecimento das práticas
discursivas (SPINK, 1999) que nos conduz a compreender as interfaces dos
dircussos subjetivos e sociais em suas liguagens e formas de produção.
Nas práticas, visão e valores do CEPA temos como base as concepções da
Educação Popular (FREIRE,NOGUEIRA, 1993) que tem como sentido de existir no
esforço para mobilizar, organizar e capacitar científica e tecnicamente as classes
populares através do estímulo à participação, construção do empoderamento,
autonomia e ação-transformação.
É no diálogo constante que surgem as provocativas, as reflexões e as
mudanças. Esse diálogo se inicia no campo da prática educativa/pedagógica que
intencionalmente busca problematizar discursos hegemonistas e excludentes, e se
multiplica nas rodas de conversa, nos encontros de formação continuada de
educadores/as, nas oficinas educativas e aulas passeios.

Caminhando nos territórios do vivido

No Cepa temos oficinas educativas de dança, teatro, maracatu, capoeira, e


audiovisual, além de um curso técnico de informática. Esses espaços acolhem
educandos/as entre 08 anos a 18 anos de idade, bem como suas familias. Nas
oficinas educativas nos uilizamos da oficina de criatividade para a discussão das
temática.
As oficinas de criatividade são espaços de construção de experiências tanto
pessoal como coletiva. Ocorrem seguindo etapas: aquecimento, desenvolvimento
fechamento. Ao se pensar em uma oficina de criatividade podemos estimar um
tempo para seu desenvolvimento, mas temos que considerar os tempos subjetivos,
que nos são apresentados através da observação e interação. Além disso, nas
oficinas o foco está direcionado à construção de potencialidades, criatividade e
espontaneidade entre as pessoas do grupo. Vale ressaltar que esta intervenção
pode atingir também quem está fora do grupo. Pois um sujeito que se encontra
apenas como observador da ação pode se implicar com esta. Os recursos utilizados
podem ser: música, teatro, artes plásticas (desenho, pintura, mosaico, etc.). O local
utilizado para esta intervenção não precisa ser necessariamente fixo. Ele vai se
apresentando de acordo com as disponibilidades e os modos de apropriação do
espaço para cada proposta, provocando assim, um novo modo de agir sobre este
espaço e criando uma nova forma de relação interpessoal (JORDÃO,
1999;MORATO, 1999).
A oficina temática “Isto é droga?” foi realizada com dois grupos (dança e
capoeira) e em dois momentos distintos. Traremos sua proposição, em comum,
seguida pelos sentidos e representações que emergiram em cada vivência.
Expomos dois cartazes com as palavras lícito e ilícito e suas definições.
Apresentamos rótulos de diferentes produtos e algumas imagens impressas
(cerveja, remédios, chocolate, açúcar, maconha, cigarro, guaraná em pó, ervas
medicinais, refrigerantes, café, chá, dentre outros) que foram distribuídos
aleatoriamente para cada educando/a e educador/a. Solicitamos que escrevessem
seus nomes atrás das imagens. Em seguida, perguntamos para cada educando/a
com relação a sua ilustração: ISTO É DROGA?, ISTO NÃO É DROGA?, ISTO É
LÍCITO?, ISTO É ILÍCITO?, segundo os seus conhecimentos prévios. Após os
educandos/as interagirem, socializamos as respostas, construindo um diálogo com
as seguintes provocações; Porque jovens e adolescentes usam drogas? O que para
você são drogas e quais as que conhece? No seu entender quais os efeitos das
drogas para o sujeito, família e sociedade? Porque existem drogas ilícitas/proibidas?
Qual droga consideram ser a mais prejudicial? Onde encontramos as bebidas
alcoólicas? Porque o álcool e o tabaco é aceito em nossa sociedade enquanto que a
maconha não é aceita? As crianças têm fácil acesso às bebidas alcoólicas? E outras
Drogas? Como?
Para a realização da atividade os grupos naturalmente se posicionaram em
círculo, o que em muito contribuiu pois, a cada pergunta que fazíamos aos
educandos/as nos foi possível aproximar deles, olhar no olho, trazer visibilidade ao
sujeito e escuta a sua fala. Todos os educandos/as estavam participativos, fosse na
inquietação, no silêncio, nos questionamentos ou relatos de vivência. No entanto,
percebemos maior engajamento do coletivo da oficina de capoeira. Em análise,
consideramos que os fatores faixa etária e gênero -na oficina de capoeira temos
participação expressiva de meninos entre 10 a 16 anos- e os processos de
constantes discussões que realizamos sobre interculturalidade 5 estão gerando
empoderamento dos educandos no que se refere a aceitação de suas raízes
ancestrais e a formação crítica sobre os posicionamentos racistas tão evidentes
contra o negro e sua cultura africana em nossa sociedade.

5 No CEPA desenvolvemos uma projeto de práticas educativas de sensibilidade à


conscientização da diversidade cultural
Ainda sobre a oficina de capoeira, os educandos adolescentes, inicialmente
se mostraram resistentes quando sinalizamos que a temática em discussão seria
drogas por considerarem que os discursos trazidos em vários contextos sociais
caminham para o repressionismo. A partir do diálogo estes, trouxeram significativas
contribuições sobre suas concepções e relatos de vivências no/do contexto
comunitário ao qual estão inseridos.
De modo geral a compreensão sobre o uso de drogas segue ao entendimento
do proibicionismo, associado a estereótipos disseminados por uma sociedade
segregadora, tendo na figura do negro, jovem e pobre o protagonista dos problemas
relacionados as drogas. Falas como “maconheiro”, “traficante”, “aviãozinho”, “morreu
ou matou porque estava usando droga”, sinalizam a compreensão social sobre o
sujeito usuário/dependente de drogas. Sobre o uso, emergiram as seguintes
compreensões: “maconha mata”, “droga vicia no primeiro uso”, “maconha é a pior de
todas”, o que nos remete a conjecturas formadas entre as décadas de 70 a 90, onde
fortemente se faziam presentes os processos de segregação social.
O fechamento se deu a partir da escuta e reflexão da música Legalize it de
Bob Marley. Ao final da atividade, fizemos uma avaliação grupal, onde os
educandos/as sinalizaram o desconhecimento sobre algumas questões biológicas,
sociais e culturais relacionadas ao uso de drogas, apontadas no momento de
diálogo. Os educandos/as concordaram em dar continuidade ao diálogo, em outras
vivências, a partir de propostas que se correlacionam com sua realidades, visão de
mundo e modos de Ser.

Foto: Cepa. Figura 1. Oficina Isto é droga? Foto: Cepa. Figura 2. Oficina Isto é droga?
Educandos e educadora da oficina de dança. Educandos e educador da oficina de capoeira.

A droga do Ser Humano, foi uma proposta de teatro espontâneo 6, realizada


com educandos/as e educadores da oficina de teatro, que teve como objetivo

6 Ver Aguiar, M. Teatro espontâneo e psicodrama. São Paulo: Ágora, 1998.


provocar a construção de quadros de imagens, a partir de uma narrativa,
preservando os traços subjetivos, mas colocando o sujeito no espaço do outro
através da espontaneidade que o teatro possibilita.
A experiência psicodramática se iniciou com todos andando pelos espaços
como um movimento urbano cotidiano, em seguida se colocaram como pessoas em
situação de rua, perpassando pelos processos de invisibilidade, segregação e
vulnerabilidades (frio, fome, adoecimento, desproteção). Deitados no tapete, de
olhos fechados, os participantes foram absorvendo os personagens enquanto um
cenário era construído ao seu redor (papelão, lixo e outros objetos espalhados). No
centro da cena montamos a frase A droga do Ser Humano. Ao abrirem os olhos,
projetamos no cenário e nos personagens o debate sobre a vivência. Sobre o que se
emergiu surgiram os seguintes sentidos: O humano, enquanto sujeito, ser
caracterizado como uma droga; a pessoa em situação de rua ser rotulada como
usuário de drogas; a pessoa em situação de rua ser excluída por sua condição
social e subjetiva; as expressões de sentimentos, emoções e medos relacionados ao
sujeito morador de rua e usuário de drogas. Seguindo sob os sentidos trazidos
solicitamos que um integrante do grupo trouxesse um relato de uma história real e
convidamos integrantes do grupo para representarem a história relatada. O
protagonista relatou a história de um vizinho que ao ser descoberto se tratar de um
usuário de drogas, foi expulso de casa e passou a morar nas ruas. O protagonista foi
questionado pela diretora de cena sobre como processaria a sequencia dos
pensamentos. Após o diálogo, em que diversas possibilidades foram pensadas, foi
recriada a cena a partir de uma interlocução (como podemos montar a cena?) a
diretora retirou-se do cenário, deixando o desenvolvimento das cenas aos egos-
auxiliares e educandos, com liberdade de modificá-las a partir do papel que lhes foi
encomendado.
Na interação com os outros participantes e com a emergência de novas
questões e alternativas, o grupo foi construindo uma representação cênica,
atribuindo os papéis de um usuário de drogas, um amigo conselheiro, uma pessoa
preconceituosa, tendo a dramatização uma participação coletiva entre atores e
platéia que iam se revezando na cena. Na proposta psicodramática, a importância e
a ênfase na expressão de sentimentos e emoções durante a dramatização localiza-
se na possibilidade de ampliar a compreensão integrando-a à experiência
vivenciada.
Pensar sobre as contribuições e possibilidades do teatro espontâneo como
estratégia no processo ensino aprendizagem em educação popular abre um fecundo
caminho para se viver práticas inovadoras e ressignificantes. Ressignificar constitui
o aprender, pois implica articular diferentes níveis de análise: individual- a partir dos
diferentes personagens, seus contextos e histórias de vida-, grupal e social.

Foto: Cepa. Figura 4. Oficina A droga do Ser


Humano Educandos e educador da oficina de
teatro.

Foto: Cepa. Figura 3. Oficina A droga do


Ser Humano Educandos e educadores da
oficina de teatro.

As aulas passeio possibilitam uma conexão do sujeito, sua identidade com


diferentes contextos educativos/culturais. Nesta proposta os educandos/as
vivênciam experiências de forma autônoma, a partir da sua curiosidade natural,
enquanto que o educador realiza conexões entre a história do educando/a e as
informações que vai absorvendo e assim, ele pode assimilar novas experiências
com seu modo de ser no mundo.
Inspirados na cultura africana e afro-brasileira, tendo por objetivo dialogar
sobre as diversas manifestações e contextos psicossociais que permeiam a história
dos caminhos africanos até chegar a conjuntura sociohistórica afro-brasileira,
realizamos uma visita a um terreiro de candomblé da comunidade. 
A atividade teve como intuito incentivar educadores/as e educandos/as à
discussão sobre o tema, apontando percursos que relacionam história, poesia,
teatro, dança, capoeira, cinema, música, como produtores de conhecimento e
ferramenta de diálogos sobre a luta dos antigos quilombos e mocambos,
escravização do negro, marginalização pós abolição e identidade cultural (religião,
arte, costumes, relações sociais, entre outros).
A partir de um movimento de participação e vivência comunitária coletiva
poderíamos discutir sobre preconceitos, violências, empoderamento, autonomia, o
papel do corpo nos movimentos de luta,  na dança, a construção da cidadania,
dilemas contemporâneos, relações de gênero e étnicos-raciais, identidades nas
religiões de matriz africana, o sentido do uso de bebidas alcoólicas e ervas em
celebrações/rituais, relação com a natureza e comunidade, entre outras demandas
que viessem a emergir. 
A atividade se iniciou com uma visita na Academia de Letras de Caruaru,
onde puderam conhecer os resquícios históricos de uma senzala e da participação
dos negros escravizados na construção do município, culminando com a visita ao
terreiro de candomblé do Pai Marivaldo, localizado no bairro Vila Kenedy, próximo
ao CEPA.
Tivemos como resultado o estimulo à reflexão crítica sobre os assuntos
abordados dando maior permeabilidade à discussão e criação de novos sentidos
sobre interculturalidade, preconceitos, estereótipos e processos de segregação
social de sujeitos pertencentes a culturas de matriz africana. Os educandos/as
trouxeram questões discursivas sobre o tema tratado a partir das concepções
apreendidas e novos olhares alcançados durante a vivência. Alguns educandos,
durante a visita, manifestaram ter a participação familiar em grupos religiosos de
matriz africana, gerando assim um sentimento de visibilidade e pertença social.
Trabalhamos também o sentimento de resistência, por estar no lugar de incômodo
pela não aceitação, inicialmente, de visitar um terreiro de candomblé. Construímos
um novo diálogo acerca das religiões, histórias, costumes, uso de substâncias e
ervas psicoativas num contexto sócio histórico e cultural.
Foto: Cepa. Figura 6. Visita ao terreiro de
Candomblé

Foto: Cepa. Figura 5. Visita ao terreiro de


Candomblé.

O sentimento de identidade ligado ao território de nascença ou de


pertencimento é um dos mais fortes na composição da subjetividade humana.
Tivemos a oportunidade de vivenciar essa experiência de conexão profunda com a
cultura a partir de uma visita à comunidade indígena Xucuru de Orubá, localizada no
município de Pesqueira-PE.
Para os indígenas, a relação com a terra denota sobrevivência, luta,
resistência - algo pelo qual se vive e se morre. Na oportunidade podemos
acompanhar a 18° Assembléia Xucuru, um espaço onde representantes religiosos e
movimentos sociais discutiam diretrizes que norteiam a organização do seu povo,
realizando um chamamento para a retomada das tradições, da relação com a terra,
da importância da juventude para a disseminação da cultura às próximas gerações.
Durante o evento tivemos oportunidade de visitar stands -instrumentos
musicais, ervas e produtos medicinais, vestimentas, adornos, ferramentas de caça e
pesca-, dialogar com indígenas e presenciar apresentações- Ritual de Celebração-
tendo um contato mais próximo com a cultura e seus costumes.
Para educandos/as e educadores/as, essa experiência proporcionou a
possibilidade de estar em um novo lugar. Alguns adolescentes ficaram surpresos
com a naturalidade em que grupos se reuniam para fazer uso de ervas diversas nos
mais diversificados cachimbos. Esse impacto trouxe uma reflexão sobre a diferentes
formas de socialização e uso de drogas lícitas e ilícitas em nossa sociedade.
Enquanto que nas comunidades urbanas a socialização ilícita da cannabis,
por exemplo, é tida como algo prejudicial ao ser humano e sociedade, o uso desta
na cultura indígena sempre existiu e sempre esteve precedido de valores religiosos.
A natureza concede as folhas, as plantas. O humano utiliza-a como medicamento
pra cura, cura pela reza e reza que fortalece o corpo e a relação do ser com a terra,
o sagrado.

Foto: Cepa. Figura 7. Visita a comunidade Foto: Cepa. Figura 7. Visita a comunidade
Xucuru de Orubá, Pesquera- PE. Xucuru de Orubá, Pesquera- PE.

(IN) Continuum

Poderíamos nos utilizar de conclusões sobre os relatos destas vivências,


todavia, o projeto de práticas preventivas tem sua continuidade até o final do ano
corrente. Durante esse período, temos a visão e certeza que estaremos mais
próximos dos sujeitos, comunidade e dos representantes políticos, levando os
resultados deste trabalho a partir das vozes dos até então silenciados. Aos
educandos/as e educadores/as lançamos o desafio de utilizarem da ferramenta de
poder trazido pelo conhecimento para, através da dança, teatro, capoeira, música,
documentários, curta metragens, exposições, seminários, conferências, entre outros,
mostrarem o vivido e apreendido, lutando contra a despolitização da transformação
social, rompendo com a aceitação de uma política neocolonialista e hegemônica.
O processo de compreensão sobre a presença de drogas lícitas e ilícitas na
sociedade deve perpassar uma aprendizagem política dos direitos do indivíduo
potencializando a ser um problematizador em suas realidades mas, não menos
importante, implica também na transformação da subjetividade. Ampliar a
capacidade do sujeito pensar e agir diferente converje com a necessidade do sujeito
ser diferente. Desta forma, a mudança e evolução de uma sociedade não haverá de
se findar.

Referências

AFONSO, M. L. (Org.). Oficinas em dinâmica de grupo: um método de intervenção


psicossocial; São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Ministério da Justiça. Lei Ordinária nº 6.368, de 21 de outubro de 1976. Dispõe sobre
medidas de preve nção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias
entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras
providências. Diário Oficial, Brasília (DF), p.14839, 22 de out. 1976. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6368.htm. Acesso em 10 de junho de 2019.

______. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de


Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreve medidas para a prevenção e
uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e de dependentes de drogas;
estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de
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