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O contexto proibicionista e o uso religioso da Cannabis no Brasil

Francisco Savoi de Araújo

O uso de certas substâncias categorizadas como “drogas” esteve ao longo da

história associado a diversas concepções muito relativas no que dizem respeito às

formas de uso, ao contexto e aos próprios usuários. Em cada caso específico atribuem-

se diferentes estigmas positivos ou negativos dependendo do grupo ao qual se refere,

culminando no panorama atual extremo da proibição de seu uso e circulação – prática

que vem se afrouxando em alguns países nos últimos tempos - proibição esta arbitrária

em toda sua plenitude que considera as convenções adotadas por um grupo social

bastante seleto.

Torcato (2013) enfatiza a dupla polaridade do ato de se inebriar com alguma

substância: os seus perigos por um lado; e por outro os ensinamentos que proporciona.

Segundo este autor, a categoria de “vício” que até um momento era pensada apenas em

termos morais passou a ser patologizada em função de teorias médicas e étnicas que

relacionavam o consumo de psicoativos com degenerescência. De um lado o uso dessas

substâncias é tido como um dom divino de natureza mágica que aumenta a percepção e

o vigor de quem usa, e por outro lado é considerado como pecado, imbuído de

características demoníacas e o usuário classificado como um desviante mental que deve

receber tratamento.

Entre os escravos o que ocorria era que plantavam Cannabis junto às canas de

açucar, difundindo o seu uso entre o restante da miscigenada população brasileira sob as

mais variadas formas, sejam medicinais, religiosas ou têxteis. A Cannabis foi

introduzida no Brasil a partir do contato com os europeus. Sua região de origem é a


Ásia Central e é cultivada milenarmente para diversos fins, e nem foram todas as

sociedades que a cultivaram que tiveram conhecimento de seu potencial psicoativo. No

mundo islâmico o uso psicoativo da Cannabis alcançou sua estabilidade no século XIV,

espalhando-se por toda a África e chegando assim com os escravos até o Brasil.

A íntima relação do uso da Cannabis com o universo cultural afro-brasileiro e

demais populações subalternas justifica a sua proibição, que constitui um ato que visa

mais aqueles que consomem a substância do que ela em si mesma. Segundo Torcato

ainda assim o uso terapêutico da Cannabis era reconhecido pelas elites. Foram

constatados diversos aspectos terapêuticos, como no tratamento de gripes e resfriados;

problemas digestivos e também o já popularizado uso sedativo em diversas situações;

insônia, asma e problemas de pressão. Com as cinzas, usadas como pomadas, pode-se

ajudar no processo de cicatrização e com as raízes em problemas nas articulações e na

doença conhecida como gota.

Outras substâncias psicoativas foram incorporadas na farmacopeia brasileira por

suas qualidades medicinais, como os derivados de opiácios, o éter, o clorifórmio e

também a cocaína. Tais drogas eram as preferidas pelas elites, e o seu uso era tido como

um “vício elegante” uma vez que a Cannabis era associada ao negro e à pobreza, à

inferioridade racial, sendo esta um “vício deselegante”.

Alimentos que hoje em dia temos como parte de nosso cotidiano alhures eram

restritos a apenas poucas pessoas de alto poder aquisitivo. Como é o açúcar, o chá e o

café, tais substâncias em determinados períodos só poderiam ser consumidas com a

prescrição de um médico. Tais alimentos-drogas exóticos e estrangeiros, consistindo

numa época como especiarias, hoje já se encontram incorporados ao uso cotidiano.


Nesse sentido pode-se observar a posição de centralidade das drogas na

constituição social como é o exemplo do café que difundido no século XVII passa a ser

um psicoativo determinante da formação do pensamento europeu que se desenvolveu na

época. A cafeína, que acelera as atividades intelectuais, se transforma em símbolo da

burguesia e do racionalismo. Para além do café tem-se o hábito difundido do consumo

de chá, envolto por uma série de ritos e sistemas de significações que lhe são próprios.

Em nossa sociedade o uso de drogas é condicionado tanto no nível da

autonomia, ou seja, seguindo as decisões do próprio usuário, quanto no nível da

heteronomia, seguindo os critérios de outros, que constituem em geral as autoridades da

medicina, que regulam as drogas segundo graus distintos de permissividade. Esta

prática de controle e regulação do uso de drogas por parte dos médicos constitui

claramente uma exceção à regra que afirma a vontade individual de livre escolha de

pensamento e ação.

Neste contexto a terapia como um conhecimento de si mesmo surge a partir de

um grupo seleto de profissionais que tem o poder de decidir quando e como o indivíduo

deve alimentar sua própria alma. Esta restrição à iniciativa individual e espontânea de

cuidar da própria alma, do próprio âmago do ser para submeter-se aos ditos da

legalidade médica-científica contrasta com a ideologia predominante de nossa sociedade

que defende a autonomia e livre iniciativa como práticas morais de ação do pensamento

individualista. Henrique Carneiro (2008) procura analisar como opera este paradoxo de

nossos tempos.

Carneiro elucida alguns aspectos dos processos formativos da consciência que

surgem, para ele, por meio da interação, como um produto ao mesmo tempo histórico e

coletivo. Nesse sentido a consciência individualizante que reina atualmente – por mais
paradoxal que seja - considera a cultura e, portanto, a coletividade, que dispõe aos

homens de um modelo a seguir. A ideia do homem encapsulado e autônomo, que é o

modelo de subjetividade que seguimos até os dias de hoje surgiu foi no Renascimento.

Neste modelo o que se toma como valor maior é o autocontrole físico e

espiritual de si mesmo para que o indivíduo se dirija a objetivos específicos, a fim de

não deixar-se perder seu foco no trabalho e produção para entrar em mergulhos

arrebatadores de êxtases contemplativos, experiências nas quais o homem rompe com a

linearidade da narrativa de si para modificar sua consciência até que se dilua sua própria

individuação. Segundo Carneiro, a experiência do êxtase se relaciona com o

“sentimento oceânico” de Freud, uma vez que as drogas possuem sistemas de utilização

que são próprios, cabendo à especificidade de cada uma os ritos e sistemas de

significações particulares.

Em detrimento a manifestações mágico-religiosas que valorizavam o voo da

alma, o cristianismo em épocas do Renascimento assumia a posição contrária,

defendendo uma mentalidade anti-extática, consequentemente demonizando todas as

formas de transe, o que culminou no caso das missões coloniais do século XVI com a

perseguição da flora extasiante constituinte do chamado “paganismo indígena” do Novo

Mundo. A Igreja Católica fez como seu dever o combate à idolatria dando margem para

a perseguição e demonização das plantas sagradas pela Inquisição. O Estado teocrático

se permitia a controlar os assuntos da consciência, decretando duras perseguições contra

os sistemas de significações do imaginário espiritual de outros povos a fim de combater

a heresia.

Para além da demonização pela Inquisição em épocas de colonialismo da

cosmologia nativa associada ao uso de substâncias no Novo Mundo, uma das dimensões
da proibição das drogas no Brasil situa-se no monopólio de controle da medicina sobre

elas, restringindo o direito individual de usá-las. A repressão ao uso livre e autônomo

pauta-se no discurso sobre a ignorância técnica do consumidor. Carneiro defende

categoricamente a autonomia individual sobre si mesmo, cabendo somente ao próprio

homem - que, como usuário responsável e bem informado - as resoluções de seus

conflitos existenciais e emocionais. O autor não abandona a ideia de que o consumo de

determinadas drogas deva estar acompanhado por normas específicas, mas afirma que a

decisão sobre o seu uso deva partir “do núcleo mais íntimo e essencial da liberdade de

escolha, de expressão e de gestão de si” (Carneiro, 2008: 80). O mesmo sistema que cria

a doença da depressão recebe grandes quantias lucrativas para seu tratamento por meio

da administração de drogas que alteram os humores.

Fazendo um breve histórico da expansão do uso de drogas pelo Brasil, Torcato

supõe que algumas drogas que até então eram utilizadas raramente para fins terapêuticos

por classes privilegiadas, ao serem descobertas as suas propriedades psicoativas o seu

uso entra para o “universo do consumo”. O abandono gradativo destas substâncias como

medicina para entrarem no universo do consumo recreacional ocasionou como

consequência a mudança do status político destas drogas. Longe das autoridades

médicas-científicas o seu uso gera controvérsia e é passível de ser interditado, que é o

que se observa no panorama atual das redes de consumo e comércio ilegal de drogas

ilícitas.

A categoria “droga” enquanto tal já é problemática, uma vez que o uso de

determinadas palavras para classificar determinados objetos “quase sempre indica

mudanças na vida do próprio povo, sobretudo quando os novos conceitos estão

destinados a se tornarem fundamentais e de longa duração” (Elias, 1994 :68 apud.


Vargas, 2008: 42). Tal categoria surgiu, supõe-se, do termo neerlandês droghe vate

(barris de coisas secas) e foi popularizada no contexto das Cruzadas que permitiu o

contato dos europeus com o Oriente, surgindo um amplo mercado de especiarias

exóticas para o mundo europeu. Tais especiarias seriam caminhos para se chegar ao

Paraíso, na perspectiva da época medieval. Já o termo “fármaco” deriva do grego

phármakon, que possui o duplo significado de remédio e veneno, podendo estar

associado tanto à cura quanto ao perigo.

No decorrer do século XX a indústria farmacêutica surge consubstanciada com o

processo de medicalização da vida bem como do capitalismo. A percepção da droga

como um problema surge neste contexto, em que um conjunto específico de substâncias

é visto como danoso à sociedade. Tal medida possui como prática de ação a perseguição

às drogas usadas fora do contexto médico-científico, com a exceção do álcool e do

tabaco. Vargas aponta que no século XX a transformação que se aflorou foi a repressão

sobre o uso de determinadas substâncias de forma a criminalizá-las a nível produtivo e

mercadológico, uma vez que elas não tinham mais como finalidade o uso terapêutico

mas sim recreacional. Nesse sentido, a partilha moral entre drogas lícitas e ilícitas deu-

se em conjunto com o movimento expansionista da indústria farmacêutica e o

consequente desenvolvimento de fármacos legitimados por ela, regulando-se assim as

demais drogas.

Diversas conferências internacionais foram realizadas visando a regulamentação

e o controle sobre a circulação destas substâncias. No Brasil a legitimação de uma visão

patológica sobre o uso de drogas esteve consubstanciada com a afirmação da psiquiatria

como ciência médica. Em 1921, graças ao sucesso da articulação política desta classe

médica as drogas tornaram-se um problema público sob pena de prisão para aqueles que
as vendiam. Contudo tem-se o fato de que as autoridades médicas e legislativas

dialogaram somente entre si para concretizar tal decisão de forma que a população em

geral permaneceu alienada do fenômeno. A intenção oficial era estabelecer um maior

controle por parte dos médicos sobre os fármacos, sendo junto à consolidação da

psiquiatria como medicina as duas características fundamentais da política

proibicionista, segundo Torcato.

Neste período os cientistas já haviam realizado, para testes, a extração dos

princípios ativos de algumas plantas psicotrópicas. A partir do surgimento das

neurociências o controle destas substâncias que alteram a cognição ficou de maneira

geral restrito aos especialistas da mente que como forma de legitimação apoiaram-se

nos fenômenos da depressão e melancolia como doenças que deveriam ser tratadas por

eles. Com a entrada dos antidepressivos no mercado e a cura dos males da alma nas

mãos dos psicólogos e psiquiatras o controle sobre as drogas psicoativas se intensificou.

Com a construção social da doença da depressão a tristeza se tornou medicalizada,

gerando um grande lucro ao mercado das drogas médicas-farmacêuticas. Proibiu-se o

consumo livre e espontâneo destas drogas para entrar em cena a sua intensa regulação

pela comunidade médica-científica. Antidepressivos de um lado, psicodélicos de outro.

Este fenômeno que se conhece por “cruzada farmacológica” que teve início nos

Estados Unidos e se expandiu para diversos países do globo terrestre constitui um

grande desafio para se pensar no uso de drogas ilícitas. O que se procura controlar é um

suposto dano causado antes do usuário para o próprio usuário do que um prejuízo

concreto a alguém. A mesma pessoa possui estas duas características fundamentais do

princípio que fere a lei: delinquente e vítima. Portanto o que se procura proteger no

contexto do proibicionismo é a pessoa de si mesma


Nesse sentido mostra-se evidente a contradição da política proibicionista que

permite a livre circulação de determinadas plantas e proíbe, ou regula outras. Por qual

motivo aquela pessoa que toma seu café todos os dias não é estigmatizada como uma

viciada? É possível uma inferência para tal questionamento quando pensamos no uso de

determinadas substâncias a partir de uma perspectiva relacional que considera a

capacidade de agência do indivíduo em torno de tal substância. Este é um contraponto

para a perspectiva levantada até então que enxerga na substância enquanto tal o

problema do vício a partir dos parâmetros definido pela medicina. Não é a droga em si

que trará um suposto risco ou benefício ao usuário, mas sim a forma que ela é utilizada.

O uso de psicofármacos é generalizado entre as sociedades humanas, sendo a tradição

vigente o que determina o uso de tal ou qual droga.

As plantas com propriedades psicoativas são várias. Por diversas populações, os

efeitos das drogas no organismo humano são interpretados como revelações do sagrado,

como uma forma de ampliar-se a percepção para entrar em contato com o mundo

sobrenatural, o mundo sutil. O emprego de substâncias descobertas pelas diversas

culturas é fundamental também no processo de religiosidade de um povo. No Brasil, a

Jurema e a Ayahuasca aparecem como bebidas fundamentais no que tange ao seu uso

cerimonial, a primeira que predomina no Nordeste e a segunda no Norte do país.

Muitos foram os exploradores que identificaram o uso da Ayahuasca entre

diversas etnias da Floresta, uso que se popularizou para além dos indígenas alcançando

progressivamente as dimensões espaciais das periferias urbanas culminando no

fenômeno do curandeirismo vegetalista que sincretiza com maior ou menor intensidade

os usos, costumes e tradições dos diversos fluxos culturais que se entrecruzam nas

regiões das fronteiras entre Floresta e Cidade como alternativa de cura – neste caso,
física e espiritual - para os habitantes da região que não possuem acesso à saúde

hospitalizada. Esta forma de terapia dos curandeiros surge como recurso mais facilitado

presente na região. Cura e religião se confundem no que tange a este contexto.

Para além das formas de uso com tal planta psicoativa surgem no século XX

algumas religiões ayahuasqueiras, que são a União do Vegetal, a Barquinha e o Santo

Daime. Pelos meios de regulamentação destas religiões institucionalizadas a Ayahuasca

consegue sua legitimação na década de 1980 sob o princípio da liberdade religiosa, após

lutas e perseguições. Tomando como base o texto de MacRae (2005), por meio do uso

controlado da substância no qual os usuários seguem valores comuns numa espécie de

ritual foi possível a legalização da Ayahuasca para fins cerimoniais. Neste contexto

vários sistemas de significações são eficazes fornecendo regras de comportamento após

a ingestão da bebida e formas de se explicar a partir de uma perspectiva própria os seus

efeitos indesejáveis. O uso controlado da Ayahuasca respeita rituais e tabus que fazem

parte de uma tradição e, portanto, o legitima.

Após um breve período de proibição do uso, o Conselho Federal de

Entorpecentes (CONFEN) realizou uma profunda pesquisa interdisciplinar que

constatou o uso regular da Ayahuasca pelos grupos religiosos sem prejuízos à

sociedade. A integração interna entre os adeptos foi vista como socialmente relevante, e

o diálogo destes com o restante da sociedade foi observado como positivo em termos

éticos e morais. Num âmbito mais amplo, as comunidades ayahuasqueiras das regiões

externas à Floresta Amazônica possuíam uma relação de bastante proximidade com as

comunidades de origem, seguindo de perto as normas rituais e doutrinárias bem como

suas modificações num notável sentimento de união, pertencimento e continuidade


daquelas para estas. Todos estes fatores contribuíram para a liberação definitiva do

CONFEN do uso religioso da Ayahuasca.

A religião do Santo Daime fundada por Mestre Irineu tem na bebida o seu

sacramento, fonte de experiências e revelações sagradas. Para seus adeptos o Daime é

tido como “um ser divino transformado em líquido” e nesse sentido todo trabalho

espiritual realizado sob a luz do Daime é uma oportunidade de cura e aprendizado. Os

rituais são variados incluindo os trabalhos festivos – hinários – trabalhos de

concentração e o feitio. Outro fator que dá legitimação aos adeptos do Santo Daime para

suas cerimônias é o seu notável caráter excepcional, tendo em vista as prescrições pelas

quais devem se submeter a nível alimentar e comportamental três dias antes e três

depois do ritual. Há ainda uma hierarquia especializada em comandar o trabalho de

forma a manter a ordem da cerimônia, que conta com uma organização rígida da

disposição do espaço, das vestimentas e dos movimentos que são feitos pelos

participantes, que constituem todo um imaginário simbólico. Diversos símbolos

religiosos são observáveis no local dos trabalhos, ele mesmo a Igreja.

O evento se encontra aí revestido de sacralidade numa cerimônia que é musical

na qual as letras dos hinos ajudam a orientar as experiências dos participantes de forma

a dar um significado para aquilo que eles estão passando e também para aliviar os

desconfortos físico-mentais. O grupo se mantém desta forma em toda sua coesão, fora

as tensões que são naturais dentro de toda coletividade. Nesse sentido, após a morte de

Mestre Irineu na década de 1970 alguns conflitos surgiram no que dizem respeito à

continuidade da tradição religiosa.

E foi assim que um de seus discípulos, o Padrinho Sebastião, arrebanhou

diversos seguidores para si de maneira a formarem uma comunidade própria na


conhecida Colônia 5000, culminando em seguida na criação e institucionalização do

CEFLURIS, o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra.

Grande parte destes seguidores, para além das populações simples e humildes da

floresta que já acompanhavam o Mestre Irineu, provinha de um forte movimento

cultural característico da década de 1970 aqui no Brasil. Neste período estava em pleno

vigor o processo de ditadura no país e a massacrante opressão à liberdade política de

pensamento gerou como contrapartida diversos tipos de resistência dentre eles os

chamados hippies com fortes ideologias da “Nova Era” as quais afirmavam a “liberdade

sexual, experiências com drogas, misticismo, viagens de carona etc.” (MacRae, 2005:

467). Grande parte destes hippies era oriunda das classes médias urbanas que optavam

pelo estilo de vida peregrino de viagens de carona pelo mundo afora.

Estes rebeldes e cabeludos começaram então a aparecer entre os grupos de

Daime do Norte do país atraídos à religião em função do uso da bebida psicoativa. Mal

vistos pela comunidade acreana, Padrinho Sebastião os acolheu de forma a convertê-los

e consequentemente transformando seus sistemas de valores, tanto em relação a

questões éticas e morais quanto ao uso da bebida, que era associada agora não mais

como uma simples alteração de consciência, mas como uma oportunidade de

desenvolvimento espiritual.

Muito embora tenha ocorrido sua conversão, os “cabeludos” mantiveram

algumas práticas que carregavam com si, práticas estas que se coadunavam com a

consagração do Santo Daime em função de sua natureza. Psicoativos como a Cannabis

e os cogumelos cubensis utilizados usualmente pelos integrantes do movimento hippie

não foram deixados de lado, mas sim passaram por um processo de continuidade que

ressignificou a maneira de pensar essas substâncias. No imaginário dos seguidores do


Padrinho Sebastião grande parte das espécies botânicas psicoativas passaram a ser

sacralizadas de tal forma que fez surgir um complexo sistema social de significações em

torno de seus usos. A Cannabis, agora transformada simbolicamente em Santa Maria e

o cogumelo, o Cogu-Rei. O uso destas substâncias, principalmente a primeira é uma

grande fonte de conflito entre a linha do Padrinho Sebastião e os outros grupos

ayahuasqueiros em função da contradição entre a legitimação da Ayahuasca para fins

cerimoniais e o uso de uma substância atualmente proibida de acordo com a lei.

Contudo entre os seguidores do Padrinho Sebastião, a Santa Maria alcançou uma

notável legitimidade interna, a começar pelo relato mítico de sua revelação ao Padrinho.

Segundo Malinowski (1988), que pesquisou os nativos das Ilhas Trobriand, o mito é

fruto de uma experiência subjetiva vivida pelo feiticeiro, que é o que legitima a crença

do grupo em seu poder. Nesta experiência subjetiva o feiticeiro recebe uma revelação

singular. Se pudermos fazer uma analogia do feiticeiro das Ilhas Trobriand com o

Padrinho Sebastião, tem-se que a este lhe foi revelado o segredo da Santa Maria.

Conta-se que Padrinho Sebastião tivera um sonho no qual um cavaleiro lhe traria

notícias de que ele entraria para outra linha espiritual. No mesmo sonho apareceu outro

homem, supostamente um anjo, que lhe apresentava uma planta, e que esta seria para

curar. Tal qual o feiticeiro de Malinowski, foi revelado a Padrinho Sebastião a “verdade

de Santa Maria” que foi confirmada em seguida quando Lúcio Mortimer – um dos

hippies seguidores do Padrinho – confessou-lhe o uso da planta mostrando algumas

mudas que cultivava. O fato ocorrido foi a confirmação do sonho do Padrinho, que

recebeu do plano espiritual o uso da planta para que a estudassem corretamente.

Neste contexto foi sendo construído um conjunto de sistemas simbólicos em

torno da Santa Maria. Segundo os adeptos a planta representa os princípios vitais da


energia feminina. Os significados se imbricam até mesmo com o efeito químico da

substância no organismo. Devido à sua associação com a Virgem Mãe de Deus, a Santa

Maria representa para os usuários o conforto, o carinho e o alento, o que não passa

longe dos efeitos sedativos da Cannabis no organismo humano. Como de costume entre

os hippies chamar a planta marihuana, por analogia se transformou em Santa Maria, e

uma série de instruções começaram a ser fornecidas para o seu uso sagrado e correto,

em contrapartida ao uso profano demonizado de quem busca apenas um “barato”.

Segundo o Padrinho de uma notável Igreja que frequento dos arredores de Belo

Horizonte, no lugar de maconha entra a “boaconha”.

Como diferenciação ao uso profano da Cannabis nas ruas, foi também

construído um vocabulário específico no que se refere à Santa Maria e seus objetos

associados.

“Assim, fumar virou pitar, o termo corrente entre os hippies para o papel de

cigarro, isto é, seda virou papelim, e o topo da planta fêmea, muito valorizado por ser

rico em THC, ficou conhecido como bucha. Especialmente significativa foi a

denominação adotada por aqueles que comungavam desse sacramento: rechaçando o

termo “maconheiro”, carregado de conotações de marginalidade, adotaram a designação

“mariano”, em clara e sincera alusão à ordem católica” (MacRae, 2005: 471 grifos do

autor).

Segundo alguns adeptos que convivi, há uma série de gestos, rituais e maneiras

corretas de agir com a planta de forma a não profaná-la (importante lembrar aqui que as

narrativas de um conjunto de indivíduos específicos são apenas perspectivas

compartilhadas dentro deste mesmo grupo, que podem variar de contexto para contexto.

Algumas concepções podem ser mais generalizadas que outras). Primeiramente, como
representação do princípio feminino a Santa Maria é usada para invocar todo e qualquer

ser elementar feminino do plano astral. Para ser consagrada da maneira correta, deve ser

preparada para o consumo somente pelas mulheres. A preparação inclui o “deschavar”,

enrolar e acender. Esta acepção não exclui a possibilidade do uso somente entre

homens, sendo que na realidade esta regra não é seguida muito a risca, inclusive

passando como desconhecida entre alguns adeptos. Em segundo lugar a oração que se

faz antes de acender: “Declaro divina esta fumaça que penetra no meu corpo físico, meu

corpo astral, minha alma e todo meu ser. Consagro Divino este pito. Em nome do Pai,

do Filho e do Espírito Santo. Sol, Lua, Estrela”. O Sol, Lua, Estrela, que se refere a um

hino do Mestre Irineu, nesse sentido seria o significado das 3 tragadas que o participante

deve dar por regra, cada uma em homenagem a cada um dos astros. Antes de passar o

pito – sempre para a direita – faz-se o sinal da Cruz. Normas que também são sugeridas

nos momentos do ritual é que se faça silêncio, senão quando são entoados hinos de

Santa Maria ou que se converse sobre assuntos profundamente espirituais (o que me

falou um informante de uma Igreja próxima à Belo Horizonte “se eu vou chamar minha

Mãe não é pra ficar falando besteira”).

Todas estas prescrições são eficazes na medida em que enfatizam o caráter sério

e sagrado da substância de forma a se distanciar do uso profano popular. A nível

consensual, os marianos devem pitar somente entre si, não devendo misturar-se aos

maconheiros, que não são cientes de sua sacralidade. A “maconha de rua” também não

deve ser consumida, pois carrega as “energias pesadas” decorrentes de sua circulação no

submundo do crime organizado. Em minha experiência observei que nos centros

urbanos os marianos encontram uma saída para escapar às restrições desta última

prescrição, decorrência notável da criminalização da planta e seu cultivo proibido.

Algumas pessoas costumam abençoá-la antes de pitar, mesmo sendo um pito prensado,
um pito de favela. Costumeira a argumentação de que o importante na hora de pitar é a

intenção que se faz presente na consciência do indivíduo e a energia que aquele que vai

pitar carrega em si. Surgem tensões e conflitos entre os marianos mais ortodoxos e os

mais liberais quando se trata deste tema.

O uso socialmente controlado da Cannabis entre os daimistas seguidores do

Padrinho Sebastião é constituído por regras e rituais que operam como sanções, gerando

um baixo custo social decorrente do uso da substância. A doutrina daimista fornece uma

estruturação social à vida dos usuários, e a Colônia 5000, o local de origem da revelação

da Santa Maria ao Padrinho Sebastião, um sistema comunitário com ideologias do

socialismo utópico que valorizava o trabalho em coletividade. O Padrinho Sebastião é a

figura central do imaginário daimista-mariano que serve de lembrança constante dos

princípios religiosos que fundamentam a consagração da planta. Na cosmologia corrente

a perseguição da Santa Maria deve-se à maldade dos homens, mentalidade que acaba

por contribuir para o imaginário típico deste movimento religioso milenarista que crê

que o tempo está chegado, está se findando (o apocalipse). O Padrinho Sebastião

reconheceu a natureza espiritual desta substância atualmente ilícita no Brasil.

Concluindo, neste trabalho fizemos toda uma trajetória analítica que discorre

sobre a perseguição de determinadas drogas por grupos sociais específicos de forma a

atender objetivos particulares. Se por um momento o proibicionismo se justificou, a

partir de uma perspectiva médica-científica, pela apropriação de certas drogas e sua

regulação ao universo consumista mais geral por tais camadas sociais, visando

interesses em particular financeiros, a partir da análise do uso consagrado da Cannabis

entre os devotos daimistas podemos pensar em uma alternativa do uso de drogas


dissociada do contexto médico e farmacêutico e que ainda assim, apesar de toda a

retórica destes que consolida o proibicionismo no Brasil, se mantém legítima.

Em função da notável articulação que as lideranças das assim chamadas religiões

ayahuasqueiras mantém com o restante da sociedade foi possível que houvesse a

regulamentação do uso da Ayahuasca por estes grupos tendo em vista a liberdade

religiosa. Contudo os marianos ainda lutam para que se legitime o uso da Santa Maria,

batalha árdua, pois os ayahuasqueiros não marianos desejosos da manutenção da

legalidade da Ayahuasca não querem se envolver com esta substância que é ilegal e já

possui todo um histórico de uso em que a proibição predomina e o uso cerimonial é

defendido por uma parcela mínima da sociedade, muito ao contrário do que se dá com a

Ayahuasca.

O uso da Santa Maria é interessante para pensarmos nas drogas a partir de uma

perspectiva que considera a interação dos indivíduos entre si e sua capacidade de

agência sendo, portanto, socialmente relevante. Clara está a arbitrariedade que constitui

o proibicionismo tal qual ele se manifesta nos dias de hoje, com conceitos pré-

fabricados e moldados que defendem a demonização referente às drogas ilícitas que se

encontra arraigada no pensamento ocidental desde épocas da Inquisição e o extremo

risco que o uso destas drogas pode causar ao usuário, conceitos mantidos em benefício

da manutenção econômica e financeira de grupos sociais privilegiados e também da

manutenção da religiosidade católica tal qual se deu no colonialismo europeu.

Por fim uma nota sobre a questão da alteração da consciência: seguindo

Mercante, ao assumirmos o conceito de “estado alterado de consciência” ao falarmos do

uso de psicoativos estamos contribuindo para a manutenção do conceito de um suposto


estado normal da consciência que, sendo o estado mais adequado pela cultura dita

civilizada o que podemos considerar como uma consciência alterada seria uma afronta

às normas, que são definidas como já vimos por grupos seletos que estão no poder.

Desta forma é melhor falar em estados expandidos de consciência, em vez de

“alterados”.

REFERÊNCIAS

Carneiro, Henrique. Autonomia ou heteronomia nos estados alterados de consciência. In


B. C. Labate, S. Goulart, M. Fiore, E. MacRae & H. Carneiro (orgs.), Drogas e cultura:
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Escohotado, Antônio. 2002. História geral das drogas (Introdução).

MacRae, E. 1998. “Santo Daime e Santa Maria – usos religiosos de substâncias


psicoativas lícitas e ilícitas” in: B. C. LABATE e S. L. Goulart (orgs.), O uso ritual das
plantas de pode. Campinas: Mercado das Letras.

Mercante, Marcelo S., 2012. Imagens de cura: imaginação, saúde, doença e cura e na
Barquinha. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.

Torcato, Carlos E. M., 2013. O uso de drogas e a instauração do proibicionismo no


Brasil. Saúde e Transformação Social, 4(2): 117-125.

Vargas, Eduardo V., 2008. Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma
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