Você está na página 1de 4

O A​LIMENTO DOS​ D​EUSES

07 de junho de 2020 

Resenha por Luis Gustavo Carvalho dos Santos 


 
Neste  livro,  Terence  McKenna  fala  sobre  os  enteógenos  como  meio  de 
dissolução  do  ego.  Para  McKenna  o  uso  dos  enteógenos  vai  muito  além  do  uso 
recreativo  e  do  uso subversivo pregado na nossa contemporaneidade. Apesar de um 
pouco  antigo,  o  livro  foi  escrito  em  1992,  o  livro  permanece  bastante  atual, sendo 
possível  até  mesmo  estabelecer  alguns  paralelos entre o que vivenciamos hoje com 
o  que  McKenna  disse.  O  livro  é  dividido  em  Paraíso,  Paraíso  Perdido,  Inferno  e 
Paraíso  Reencontrado.  O  Paraíso  fala  de  como  evoluímos  enquanto  seres  humanos 
numa  relação  simbiótica  com  as  plantas,  o  Paraíso  Perdido  fala  de  como 
abandonamos  essa  relação  e  passamos  a  cultuar  o  ego,  o  Inferno  fala  da  nossa 
relação  nociva  com  as  substâncias  e  o  Paraíso  reencontrado  trata  de  uma  solução 
para as drogas. 
No  início  do  livro  McKenna  explora  as  sociedades  primitivas  e  a  evolução  do 
homem,  para  o  autor  estamos  ligados  às  plantas  em  simbiose,  de  modo  que  elas 
fizeram  parte  da  nossa  evolução.  As  plantas  nos  deram  visões  psicodélicas  e  por 
meio  delas  nossa  capacidade  imaginativa  foi  expandida.  A  partir  de  então  fomos 
capazes  de  utilizar  nossos  corpos  físicos  para  expressar as ideias contidas em nossa 
mente.  Yuval  Harari  não compartilha exatamente da ideia de que uma planta possa 
estar  ligada  ao  nosso  desenvolvimento  como  espécie,  mas  ele  admite  que  o 
potencial  imaginativo  humano  foi  capaz  de  estabelecer  e  criar  redes  de  confiança 
cujas  quais  nossa  sociedade  pode  se  construir.  McKenna  então  dá  o  ​status  de 
potencializador  da  consciência  e  catalisadoras  da  evolução  humana  às  plantas 
alucinógenas.  
Uma  planta  era  a  principal  responsável  por  dar  aos  seres  humanos  a 
capacidade  criativa  propulsora  da  humanidade.  Mas  agora  surgia  o  embate  -  qual 
planta seria essa? Para McKenna, a planta deveria estar presente nos lugares onde a 
civilização  humana  floresceu,  no  caso  a  África,  e  não  deveria  passar  por 
procedimentos  muito complexos em seu preparo. McKenna traz evidências bastante 
sólidas  de  que  não  se  tratava  de  uma  planta,  mas  de  um  fungo,  cogumelos  do 
gênero ​Psilocybe.  
Muitos  pesquisadores  buscaram  conhecer  a  origem  das  plantas  alucinógenas 
e  seu  papel  nas  sociedades  primitivas.  Nos  Vedas  indianos  há  menção  à  bebida 
alucinógena  ​Soma  (a  droga  que  os  habitantes  do ​Admirável Mundo Novo, d ​ e Aldous 
Huxley,  eram  obrigados  a  consumir).  Muitos  tentaram  decifrar o que compunham a 
bebida,  sem  sucesso.  O  pesquisador  Wasson  chegou  à  conclusão  de que o soma era 
feito  de  cogumelos,  mas  para  esse  pesquisador  o  cogumelo  era  o  ​Amanita 
muscaria​,  que  posteriormente  foi  apresentado  a  Albert  Hoffman,  descobridor  do 
LSD.  Contudo,  as  experiências  com  o  amanita  das  moscas  ​in  natura  eram 
frustrantes,  principalmente  devido  a  sua  variabilidade  entre  os  diferentes  meios 
onde  essa  espécie  estivera  presente.  Atualmente  sabemos  que  o  principal 
componente  da  bebida  eram  cogumelos  do  gênero  ​Psilocybe.  ​Nas  descobertas  de 
fungos  alucinógenos  foi  descoberta  a  ergotamina,  fungo  que  contamina  a  cevada. 
Curiosamente  a  ergotamina  foi  o primeiro fármaco elaborado especificamente para 
a  enxaqueca  -  muitos  sintomas  focais  da  enxaqueca  são  similares  a  uma  trip 
psicodélica.  Particularmente,  acredito  que  possa  haver  uma  relação  entre  os 
psicodélicos  e  a  sintomatologia  focal  das  doenças  cerebrovasculares.  As  vivências 
psicodélicas  e  os  quadros  de  aura  descritos  -  geometrização,  perda  da  percepção 
do tempo, flashes luminosos são muito semelhantes entre si. 
As  religiões  antigas,  eram  baseadas  na  dissolução  do  ego,  no  abandono  da 
experiência  objetiva em prol de uma vivência completamente subjetiva, guiada por 
um  xamã.  Mas  com  o  passar  dos  tempos,  observamos  que  a  experiência  religiosa 
abandonou  esse  estado  de  dissolução  do  ego  em  troca  de  cultos  mais  elaborados, 
dando  origem  a  rituais  religiosos mais complexos - acreditava-se que as substâncias 
deixavam  o  indivíduo  muito  longe  de  si  próprio.  McKenna  hipotetiza  que  isso  pode 
ter  dado  origem  às  nossas  religiões  contemporâneas.  Isso  trouxe  diversos 
problemas,  um  dos  quais  é  a  busca  pelos  prazeres  hedônicos  individuais,  o  prazer 
do  ego  em  detrimento  da  unidade.  Muitas  outras  experiências  de  abandono do ego 
foram  substituídas  por  experiências  puramente  egóicas,  como  as  orgias,  por 
exemplo,  que  foram  substituídas  pela  relação  sexual  entre  um  homem  e  uma 
mulher.  
O  consumo  de  alucinógenos  como expansores da consciência encontrou lugar 
em  diversos  pontos  da  história  humana,  como  as  festas  gregas  de  Dionísio  e 
Deméter.  Também  esteve  ligado  às  religiões  pagãs  da  idade  média,  perseguidas 
cruelmente  pelas instituições cristãs, que tratavam os cultos de dissolução do ego e 
a capacidade de “voar” como feitiçaria e bruxaria. O que Terence nos mostra é que 
as  drogas  também  são  usadas  como  forma  de  dominação  humana  por  parte  das 
estruturas  de  poder  -  seja  para  perseguir, seja para enfraquecer, seja para se criar 
um mercado consumidor.  
Então,  entramos  na  parte  do  livro  onde  o  autor  passa  a  falar  sobre  a 
estrutura  de  dominação  criada  por  cima  das  drogas.  Desde  o  início  do  livro  é 
abordado  o  tema  da  Deusa,  do  feminino  como  criador  do  mundo,  para  McKenna  o 
macho  utilizava  o  alucinógeno  para  ampliar  a  sua  força  e  visão,  as  mulheres 
utilizavam-na  para  a  imaginação  e  linguagem,  de  maneira  que  a  criação  do mundo 
é  em  suma  feminina  e ele deixa bem explícito no capítulo da ​Cannabis.​  Pela planta 
feminina  conter  a  maior parte das substâncias alucinógenas, o autor atribui a isso o 
fato  dela  ser  tão  perseguida  pelo  mundo.  A  crença  do  autor  é  de  que  essa  droga 
poderia  tornar  a  sociedade  mais  igualitária,  quebrando  possíveis  interesses  de 
dominação masculina vistos atualmente.  
Além  disso,  nos  anos  30,  Aslinger  do  departamento  de  narcóticos  dos  EUA, 
passou  a  perseguir  ferozmente  a  indústria  do  cânhamo,  num  protecionismo 
econômico.  O  cânhamo  possui  propriedades  que  não  eram  de  interesse  para  as 
indústrias  das  fibras  como  o  algodão  e  a  celulose.  Então  começou  uma  verdadeira 
caça  às  bruxas  que  culminou  com  a  proibição  da  erva.  É  muito  interessante  notar, 
que  para  fortalecer  sua  campanha  contra  às  drogas, Aslinger fez uso de estratégias 
factóides  e  racistas.  Com  apoio  da  imprensa  marrom,  o  agente  da  narcóticos 
associou  o  uso  da  maconha aos negros e mexicanos, daí a expressão ​marijuana. Um 
dos  efeitos  da  guerra  às  drogas  é  a  restrição  sobre  quais  plantas  podemos  nos 
relacionar,  com  que  drogas  queremos  alterar  nossa  consciência,  somos obrigados a 
ter  que  escolher  apenas  entre  o  tabaco  e  o  álcool,  mesmo  que  estas  não  sejam  as 
melhores substâncias para nós. 
Os  seres  humanos  possuem  uma  relação  necessária  com  a  alteração  da 
consciência,  mesmo  que  eles  não  saibam  conscientemente  disso.  E  isso  nos leva às 
drogas  socialmente  aceitas:  o  açúcar,  o  chocolate,  o  chá  e  o  café.  Fomos  capazes 
de  escravizar  pessoas,  simplesmente  para  termos  o  prazer  do  açúcar  em  nosso 
café.  São  evidentes  os  malefícios  advindos  do  açúcar  refinado  na  dieta  humana, 
mas  porque  nos  rendemos  a  esse  prazer  e  o  aceitamos  tão  bem  e  não  podemos 
aceitar outros prazeres como o de outras drogas? 
O  medo  de  ter  as  camadas  do  ego,  desveladas  uma  a  uma,  fez  com  que 
alterássemos  o  uso  original  de  algumas  plantas,  principalmente  para  evitar  o 
encontro  com  algo  que  muitas  pessoas  talvez  não  saibam  lidar.  Então,  chegamos  a 
origem  de  outras  drogas,  como  o  tabaco,  o  ópio  e  a  cocaína.  Desvirtuadas  do  seu 
uso  original,  essas  substâncias  passaram  de  reveladoras  da  consciência  para 
potencialmente  destruidoras.  Tudo  numa  ânsia  de  aperfeiçoar  efeitos,  criar 
produtos atrativos e que pudessem atender a um mercado consumidor. 
O  tabaco  original  era  consumido  como  folhas  enroladas  e  colocadas  nas 
narinas  e  acesas,  o  indivíduo  entrava  em  transe.  Os  colonos  começaram  a  adaptar 
seu  uso,  para  torná-lo  mais  socialmente  aceito  na  Europa.  Então  foi  macerado  e 
consumido  em  pequenas  quantidades  e  passou  a  ser  um  produto  comercial  que 
conquistou  diversos  clientes  europeus.  Mesmo  com  as  condenações  do  papa,  a 
sociedade europeia se tornou grande adepta do fumo.  
O  ópio  já  não  foi  bem  aceito  socialmente,  mas  era  bastante  assimilado pela 
cultura  médica  europeia.  Além  de  servir  bem  aos  interesses do neocolonialismo - a 
China  havia  rejeitado  o  consumo  do  tabaco,  então  a  Inglaterra  passou  a  utilizar  o 
ópio  como  forma  de  explorar  o  mercado  Chinês.  O  Imperador  ao  saber  da situação 
decretou  proibição  do  consumo  de  ópio  no  território,  mas  a  Inglaterra  não  quis 
perder  seu  mercado  consumidor  e  ciente  do  seu  poder  de  fogo,  investiu  contra  a 
China.  O  resultado  foram  duas  guerras  e  a  concessão  da  China  ao  mercado de ópio 
inglês.  Outros  derivados  do  ópio  também  foram  utilizados  como  estratégia  de 
dominação,  o  Japão  utilizou  a  droga  para  enfraquecer  a  população  da  Manchúria 
para que estes não resistissem à invasão nipônica.  
As  folhas  da  coca  eram  utilizadas  como alimento pelo povo andino, inclusive 
é  possível  vermos  diversos  produtos  feitos  à  base  do  vegetal.  A  sua  forma refinada 
foi  alçada  como  potente  anestésico  local  e  estimulante,  descrito  inclusive  por  Sir 
Arthur  Conan  Doyle,  em  o  Signo  dos  Quatro.  Contudo,  após  a  Guerra  de  Secessão, 
havia  boatos  de  que  os  negros  ao  consumirem  cocaína  ficavam  enfurecidos  e 
enlouquecidos, capazes de matar. Isso levou à proibição da droga nos EUA.  
Quando  a  droga  serve  aos  interesses  de  dominação  da  sociedade,  ela  é  bem 
aceita.  E  é  exatamente  como  ocorre  com  a  televisão,  e  mais  atualmente  com  as 
redes  sociais.  Ambas  ditam  como  devemos  viver,  a  quem  devemos  odiar,  como 
devemos  nos  vestir,  o  que  devemos  comer  ou  fazer.  A  televisão  troca  a  realidade 
por  uma  outra  realidade,  por  vezes  intangível,  com  a  qual  talvez  nunca 
travássemos  um  contato.  O  objetivo  dessas  drogas  contemporâneas  é  alienar  o 
indivíduo,  fazendo  com  que  ele  jamais  pense  por  conta  própria,  ou  adquira  gostos 
próprios.  A  concessão  ou  a  proibição  das  drogas  parece  servir  a  um  poder  estatal 
muito maior do que as pessoas imaginam. 
Na  última  parte  McKenna  traz  um  pouco  da  história  dos  psicodélicos  e  fala 
sobre  como  podemos  tomar  as  rédeas  da nossa história, antes que acabemos com a 
nossa  própria  existência.  Os  psicodélicos  perderam  espaço  principalmente  porque 
as  drogas  passaram  a  ser  vistas  como  algo  recreativo  ou  como  algo  médico,  não 
como  algo  revelador da própria consciência. O uso de alucinógenos como o DMT, de 
estrutura  tão  próxima  à  serotonina,  revela  que  há uma certa ambivalência química 
no ser humano, que há uma outra linguagem onde o ser humano pode se relacionar, 
que  talvez  ele  próprio  não  compreenda  como  uma  forma  de  inteligência.  Mas para 
além  de  toda  filosofia  por  detrás  da  psicodelia,  o  autor  nos  mostra  que o principal 
problema  para  a  sua aceitação social é a ruptura que a experiência psicodélica traz 
na  vida  do  usuário,  ele  passa  a  viver  uma  libertação  de  um  padrão  social 
condicionante  (imperativo  -  faça,  tenha,  possua,  seja).  Esse  padrão  social  é 
possivelmente  toda  a  nossa  ruína  social,  com  o  surgimento  de  drogas  destrutivas, 
destruição  do  planeta  e  extinção  da  vida.  Para  Mckenna  devemos  optar  pela 
descriminalização  das  drogas,  pelas  práticas  de  xamanismo  e  por  uma  educação 
séria  que  trate  do  tema  de  forma  a  discutir as reais implicações das drogas sobre a 
vida dos seres humanos.  
 
“A  qualidade  da  retórica  que  emana  da  comunidade  psicodélica  deve  melhorar 
radicalmente.  Caso  contrário,  perderemos  o  direito  de  reclamar  nosso  direito  de 
nascença, e toda a oportunidade de explorar a dimensão psicodélica será cortada.”  
 
Terence McKenna 

Você também pode gostar