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LIBERAÇÃO DA MACONHA:
DILEMAS ENTRE USO E TRÁFICO
Salvador
2018
1 INTRODUÇÃO
A liberação da maconha parece ser o que se coaduna com uma política pública
de drogas que recuse uma perspectiva neoliberal. Liberar a maconha significaria
permitir, de forma irrestrita e não regulamentada, tanto o uso quanto a
comercialização desse entorpecente. A legalização e a descriminalização,
entretanto, apresentam limitações quanto ao uso e à comercialização da maconha: a
legalização se volta para permissividade quanto ao uso, regulando o acesso à droga
por meio da implementação de um mercado de produção e distribuição específico,
com registro de usuários etc., enquanto a descriminalização trata da
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desconsideração da conduta do uso como crime, sem que se pense a questão do
acesso.
Apesar de ser conhecida há milênios, foi somente nas últimas décadas que a
ciência realizou avanços palpáveis na compreensão de uma das plantas mais
antigas conhecidas pela humanidade, a cannabis sativa. Além do uso como droga
psicoativa, a cannabis já foi útil em diversos segmentos, como a manufatura têxtil,
com suas fibras naturais de alta resistência.
Falando em uso terapêutico, uma experiência bem sucedida nos EUA foi a de
utilizar uma versão sintética do THC conhecido como dronabinol (Marinol®) e sua
variação estrutural nabilona (Cesamet®) para ativar diretamente os receptores CB1,
que é um receptor canabinoide encontrado no cérebro, bem como o CB2. Ambas as
preparações são autorizadas para o alívio das náuseas causadas pela quimioterapia
no tratamento do câncer, além de aumentar o apetite em pacientes anoréxicos. Elas
têm sido bem sucedidas e constituem estratégias clinicamente disponíveis desde a
década de 70. Para reconhecer o potencial terapêutico do dronabinol e da nabilona,
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ambas as moléculas foram classificadas como Schedule III (substâncias
controladas) no FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos, o que
permite sua comercialização com prescrição médica. Já na Holanda, desde 2003,
uma linhagem padronizada de cannabis conhecida como Bedrocan® era fornecida
por farmácias autorizadas e inicialmente indicada para vômitos associados à
quimioterapia, perda de peso e dor neuropática associado ao HIV/AIDS. Variedades
de Bedrocan® já foram estudadas com resultados positivos em dor crônica,
glaucoma e esclerose múltipla.
Há, ainda, ao redor do globo, uma grande discussão se o uso medicinal deve
ser feito somente com medicamentos de origem farmacêutica, ou se o uso de
maconha fumada deve ser permitido. A maconha é reconhecida como a droga ilícita
mais usada no mundo e seu uso é principalmente recreativo. O uso recreativo da
maconha é feito majoritariamente por meio do fumo, mas também da vaporização
(com bongs, por exemplo) e em alimentos em receitas com oleosas (os famosos
“brisadeiros”).
A maconha é uma planta exótica, ou seja, não é natural do Brasil. Foi trazida
pelos negros escravizados, daí vem à denominação “fumo de Angola”. O seu uso foi
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rapidamente difundido entre os negros escravos e os indígenas, que passaram a
cultivá-la. Séculos mais tarde, com a popularização da planta entre intelectuais
franceses e médicos ingleses do exército imperial na Índia, ela passou a ser
considerado um excelente medicamento, indicado para muitos males. No século
XIX, o mais famoso guia médico do Brasil de Pedro Chernoviz, a maconha era
recomendada na forma de xarope como remédio na cura de bronquite crônica de
crianças e para alguns tipos de asma e na tuberculose.
A maconha iria reaparecer a partir dos anos 60 nas praias cariocas como
Ipanema, sendo consumidas por surfistas, hippies e por uma parte de intelectuais
como herança do movimento hippie que vinha tomando muita força nos anos 60/70.
Ou seja, de classe pobre, a maconha passou a ser utilizada pelas classes média e
alta.
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esta figura, entretanto reforçando a penalização para o comércio ilegal, a figura do
tráfico. A diferenciação entre as figuras de uso e tráfico, curiosamente, são
baseadas em análise socioeconômica – classe social, condições de moradia, vínculo
empregatício e, certamente, raça – da pessoa flagrada na posse de entorpecente.
Comumente, nas apreensões envolvendo drogas, como a maconha, a construção da
figura do usuário é ocupada pela pessoa branca e de classe média, enquanto a
figura do traficante é delimitada pela pessoa negra e pobre.
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doença, uso e abuso. Em uma sociedade complexa como a nossa, na qual os
grupamentos sociais são tão difusos, no que diz respeito a seus estilos de vida e
visões de mundo, há diferentes formas de viver e encarar o consumo de substâncias
ilícitas, como a maconha, formas essas que, geralmente, conflitam entre si.
A partir disso, caem por terra as falácias usadas pelos proibicionistas como “a
maconha é a porta de entrada para drogas pesadas” e “se legalizar, todo mundo vai
fumar; imagine quantos acidentes vão acontecer...”, pois tanto Becker quanto
Zinberg entendem que o consumo da maconha está atrelado a fatores socioculturais
(setting) e exige tempo e dedicação.
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Já Zinberg trabalha especificamente com a ideia do setting social, que é o que
permite o uso de substâncias psicoativas ilícitas, seguindo um padrão através de
sanções sociais: valores e regras de conduta — de rituais sociais — e estilos de
comportamento. Estes, juntos, constituem os controles sociais informais. Essas
sanções sociais indicariam se e como certa substância pode ser usada; elas podem
ser informais e compartilhadas por um grupo, ou formalizadas por leis e
regulamentos. Ou seja, os rituais sociais são os padrões de comportamento em
torno do uso de determinada substância. Estão incluídos neles os métodos de
aquisição e consumo, a escolha do lugar e meio social para o uso, as atividades
associadas e as maneiras de evitar efeitos negativos.
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Traz-se o exemplo de Portugal como um dos países que obteve melhores
índices de sucesso em suas estatísticas, após descriminalização de todas as
drogas, no ano de 2001:
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No quanto já dito acima, alguns dados são importantes de serem redestacados
para se pensar na racialização do debate de política de drogas, aqui com foco à
maconha, quanto ao uso e ao tráfico. Na seção 2, foi colocada a associação da
maconha com a população afrodescendente/negra como forma de subalternização,
associando a maconha, como droga de pobre e como elemento de vingança sobre o
colonizador branco. Ressalte-se, com a parte final desta seção, que a questão de
drogas, não apenas no passado, porém em tempos mais recentes, apenas é
utilizada para marginalização da população negra, uma vez que à população branca
é reservado o papel de usuário, jamais de traficante e, consequentemente, de
criminoso. Se o estigma ainda é parte da figura do usuário, não há quaisquer
comparações/equiparações com a visualização da figura do traficante/criminoso.
Quando se trata da questão do uso e dos fatores sociais que permeiam, como
pontuado na seção 3, nota-se, em conjunção ao quanto afirmado na seção 2, que a
preocupação com a figura de usuário não é direcionada à pessoa negra, uma vez
que sua ocupação é da figura própria do tráfico. As abordagens de uso, de alguma
forma, resultam por invisibilizar a racialização da liberação da maconha, já que
encerrar a resolução da política pública dessa droga apenas quanto ao uso é
resolver os empecilhos mínimos que o usuário – portanto, pessoa branca e de
classe média – pode vir a ter, como seu acesso dificultado, por necessitar recorrer
ao tráfico, e o perigo de consumir drogas adulteradas, questões de segurança/saúde
pública.
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prisional, é contar com uma sobrerrepresentação dessa população dentro de
ambientes que privam a liberdade.
Por estas razões é que não se acredita que a solução para a política de droga
do tipo maconha, no Brasil, deva negligenciar a comercialização/tráfico, centrando-
se apenas no uso. Existe uma evidente questão racial concretizada na política de
drogas atual, direcionada ao extermínio da população negra, sendo aquela mais
assassinada pela polícia, e ao seu encarceramento, que precisa ser pensada e
revertida como um passo para superação do racismo no Brasil. Acredita-se que a
liberação da maconha, tirando o caráter ilícito do comércio irrestrito, seja uma das
formas de execução mais eficaz da política pública debatida, contando com outras
medidas de conscientização da população.
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6 REFERÊNCIAS
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VARELLA, D. Maconha. 2011. Disponível em:
<https://drauziovarella.uol.com.br/entrevistas-2/maconha/>. Acessado em:
10/06/2018.
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