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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROF. MILTON


SANTOS

CAIAN BORGES SIMÕES


ÍCARO LIMA SENA
JOAB MAGALHÃES COSTA COELHO
PRISCILA OLIVEIRA E SILVA
RENON CAETANO RYBKA

LIBERAÇÃO DA MACONHA:
DILEMAS ENTRE USO E TRÁFICO

Salvador
2018
1 INTRODUÇÃO

Propondo-se a investigar as questões que envolvem a liberação da maconha, o


trabalho ora apresentado busca refletir quais as divergências existentes, nos planos
fático e discursivo, entre as abordagens que consideram o uso e o tráfico para
efetivação desta política pública. Com a abordagem dessas divergências, o trabalho
também visa traçar um breve comparativo entre a experiência vivida no Brasil e
aquelas vividas em outros países, tais como Uruguai e Portugal, além de verificar a
consolidação de uma questão racial e/ou de classe envolvida na liberação da droga
do tipo maconha.

A complexidade da sociedade brasileira em termos de suas múltiplas


composições sociais/identitárias demonstra alguns indícios dos percalços para
liberação da maconha em cotejo a outras territorialidades. As argumentações que se
elaboram sobre a política pública em comento, muitas vezes, centram-se em um
lado específico, seja o panorama do uso e sua associação com a população branca
e de classe média, seja no cenário do tráfico e sua relação culturalmente construída
com a população negra e periférica.

Tenta-se explicitar quais as argumentações referidas, para edificação de um


senso crítico sobre a liberação da maconha que não ignore as profundidades do
tema. Isso já se inicia mesmo com a delimitação do que vem a ser a “liberação”,
conceito que possui dialogo com outros, tais como “legalização” e
“descriminalização”, já nesses inseridas privilégios às visões do uso e/ou sobre o
combate ao tráfico.

A liberação da maconha parece ser o que se coaduna com uma política pública
de drogas que recuse uma perspectiva neoliberal. Liberar a maconha significaria
permitir, de forma irrestrita e não regulamentada, tanto o uso quanto a
comercialização desse entorpecente. A legalização e a descriminalização,
entretanto, apresentam limitações quanto ao uso e à comercialização da maconha: a
legalização se volta para permissividade quanto ao uso, regulando o acesso à droga
por meio da implementação de um mercado de produção e distribuição específico,
com registro de usuários etc., enquanto a descriminalização trata da
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desconsideração da conduta do uso como crime, sem que se pense a questão do
acesso.

A maconha é considerada uma droga. Drogas são todas as substâncias


capazes de alterar a psique humana, atuando no sistema nervoso central, também
conhecidas como psicotrópicas, podendo ser utilizadas via endovenosa, aspirada,
fumada etc. Os estudiosos do uso dessas substâncias, que são farmacologicamente
definidas como drogas, propõem que, para a compreensão de como essas
substâncias afetam os usuários, é necessário considerar três fatores determinantes
entre si: a distinção entre substâncias diversas, seus efeitos sobre a psique humana
e os contextos específicos nos quais ocorre seu uso.

Apesar de ser conhecida há milênios, foi somente nas últimas décadas que a
ciência realizou avanços palpáveis na compreensão de uma das plantas mais
antigas conhecidas pela humanidade, a cannabis sativa. Além do uso como droga
psicoativa, a cannabis já foi útil em diversos segmentos, como a manufatura têxtil,
com suas fibras naturais de alta resistência.

A planta é composta por diferentes canabinoides em sua estrutura. O THC é o


composto psicoativo majoritário presente na planta e, isolado, produz efeitos
semelhantes aos causados pela inalação da fumaça da maconha. Essa planta
possui uma variedade complexa de compostos, cuja composição varia entre
diferentes espécies (ex: cannabis sativa, cannabis indica, plantas híbridas), e
métodos de preparação (ex: maconha solta, haxixe, óleo etc). Além do THC, o
canabidiol (CBD) é um composto canabinoide também abundante nessa planta e
conta com efeitos bastante interessantes, principalmente no que diz respeito ao
âmbito terapêutico.

Falando em uso terapêutico, uma experiência bem sucedida nos EUA foi a de
utilizar uma versão sintética do THC conhecido como dronabinol (Marinol®) e sua
variação estrutural nabilona (Cesamet®) para ativar diretamente os receptores CB1,
que é um receptor canabinoide encontrado no cérebro, bem como o CB2. Ambas as
preparações são autorizadas para o alívio das náuseas causadas pela quimioterapia
no tratamento do câncer, além de aumentar o apetite em pacientes anoréxicos. Elas
têm sido bem sucedidas e constituem estratégias clinicamente disponíveis desde a
década de 70. Para reconhecer o potencial terapêutico do dronabinol e da nabilona,

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ambas as moléculas foram classificadas como Schedule III (substâncias
controladas) no FDA (Food and Drug Administration) dos Estados Unidos, o que
permite sua comercialização com prescrição médica. Já na Holanda, desde 2003,
uma linhagem padronizada de cannabis conhecida como Bedrocan® era fornecida
por farmácias autorizadas e inicialmente indicada para vômitos associados à
quimioterapia, perda de peso e dor neuropática associado ao HIV/AIDS. Variedades
de Bedrocan® já foram estudadas com resultados positivos em dor crônica,
glaucoma e esclerose múltipla.

Há, ainda, ao redor do globo, uma grande discussão se o uso medicinal deve
ser feito somente com medicamentos de origem farmacêutica, ou se o uso de
maconha fumada deve ser permitido. A maconha é reconhecida como a droga ilícita
mais usada no mundo e seu uso é principalmente recreativo. O uso recreativo da
maconha é feito majoritariamente por meio do fumo, mas também da vaporização
(com bongs, por exemplo) e em alimentos em receitas com oleosas (os famosos
“brisadeiros”).

Sobre como a maconha age no organismo, assim que a fumaça é aspirada,


entra em contato com os pulmões, que a absorvem rapidamente. De seis a dez
segundos depois, seus componentes são levados pela circulação, chegam ao
cérebro e agem sobre os mecanismos de transmissão do estímulo entre
os neurônios que são células básicas do sistema nervoso central. Os neurônios não
se comunicam como os fios elétricos, encostados uns nos outros. Há um espaço
livre entre eles, a sinapse, onde ocorrem a liberação e a captação de mediadores
químicos. Essa transmissão de sinais regula a intensidade do estímulo nervoso: dor,
prazer, angústia, tranquilidade. As substâncias farmacológicas chamadas de drogas
interferem na liberação desses mediadores químicos, modulam a quantidade
liberada ou fazem com que eles permaneçam mais tempo na conexão entre os
neurônios. Isso gera uma série de mecanismos que modificam a forma de enxergar
o mundo.

Com as apresentações desses conceitos, começa-se a delinear, em alguma


medida, a preocupação da política pública sobre a droga do tipo maconha quanto ao
uso e quanto ao tráfico. A legalização e a descriminalização apresentam uma
preocupação mais direcionada à ilicitude – aqui se entendendo a contrariedade à
norma jurídica, como conduta no plano do dever-ser – que caracteriza a situação de
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uso da droga, para tornar lícita a condição de usuário, porém não tratando da
mesma maneira o viés do tráfico. Preserva-se essa forma de comercialização como
ilegal e a ser combatida, o que não se mantém na proposta da liberação, a qual
objetiva permitir a comercialização de quaisquer formas do entorpecente e mesmo o
plantio individual, cabendo à figura do usuário dar conta de suas demandas de
acesso à droga, possivelmente norteando-se por custo, benefício, facilidade de
acesso etc.

Na construção desse trabalho, optou-se pela metodologia da pesquisa


exploratória livre, buscando em artigos e monografias, essencialmente textos
científicos, os argumentos que abordam o problema pesquisado. Coloca-se um
pouco do histórico da maconha no Brasil, alguns dados sobre experiências de outros
locais e argumentos utilizados para questão do uso e do tráfico, permitindo efetivar a
comparação proposta nas abordagens sobre a liberação da maconha e a
visualização da questão de raça e/ou classe possivelmente envolvida.

2 HISTÓRIA DA MACONHA NO BRASIL E REPRESSÃO

A história da maconha no Brasil está de certa forma, ligada a “descoberta” do


Brasil. Nas caravelas que chegaram ao Brasil 1500, as cordas eram feitas de fibra
de Cannabis ou cânhamo, como também era chamada a planta. A maconha já era
bastante conhecida na Europa. Suas fibras eram usadas para a fabricação de
roupas, de tela de pinturas, de papel e, principalmente, para fazer remédios. A
propósito, a palavra maconha seria um anagrama para cânhamo, conforme a
imagem a seguir:

(Fig. 01: Anagrama Maconha x Canhamo)

A maconha é uma planta exótica, ou seja, não é natural do Brasil. Foi trazida
pelos negros escravizados, daí vem à denominação “fumo de Angola”. O seu uso foi

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rapidamente difundido entre os negros escravos e os indígenas, que passaram a
cultivá-la. Séculos mais tarde, com a popularização da planta entre intelectuais
franceses e médicos ingleses do exército imperial na Índia, ela passou a ser
considerado um excelente medicamento, indicado para muitos males. No século
XIX, o mais famoso guia médico do Brasil de Pedro Chernoviz, a maconha era
recomendada na forma de xarope como remédio na cura de bronquite crônica de
crianças e para alguns tipos de asma e na tuberculose.

A repressão do uso da maconha no Brasil iniciou-se na década de 1920 e, na II


Conferência Internacional do Ópio, em 1924, em Genebra, o delegado brasileiro Dr.
Pernambuco afirmou para as delegações de 45 outros países: "a maconha é mais
perigosa que o ópio". No Rio, nos princípios da década de 30, começaram as
primeiras prisões em consequência do comércio clandestino de maconha. Em 1938,
ocorreu a proibição total do plantio, cultura, colheita da maconha em todo o território
nacional, pelo Decreto-Lei nº 891 do Governo Federal.

Além disso, durante o mesmo período, vários médicos afirmaram que a


maconha é uma espécie de vingança dos descendentes africanos contra os seus
consumidores brancos como da mesma maneira que o ópio, que seria disseminado
pela Europa, também seria uma vingança dos chineses em relação aos
colonizadores europeus. Portanto, já naquela época, havia uma associação da
maconha com as classes mais empobrecidas. Durante o governo de Getúlio Vargas
é que a repressão aumenta com uma grande campanha entre autoridades estaduais
em que os usuários da maconha serão perseguidos. A maconha será associada à
escória da sociedade. Uma droga usada por pessoas pobres.

A maconha iria reaparecer a partir dos anos 60 nas praias cariocas como
Ipanema, sendo consumidas por surfistas, hippies e por uma parte de intelectuais
como herança do movimento hippie que vinha tomando muita força nos anos 60/70.
Ou seja, de classe pobre, a maconha passou a ser utilizada pelas classes média e
alta.

É importante destacar, no que atine à ressignificação cultural da maconha, a


questão do último tratamento legal que lhe foi dado. Refere-se, portanto, à Lei
11.343/2006, a dita “nova lei de drogas”, que veio com a política de
desencarceramento do usuário, cominando penas não privativas de liberdade para

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esta figura, entretanto reforçando a penalização para o comércio ilegal, a figura do
tráfico. A diferenciação entre as figuras de uso e tráfico, curiosamente, são
baseadas em análise socioeconômica – classe social, condições de moradia, vínculo
empregatício e, certamente, raça – da pessoa flagrada na posse de entorpecente.
Comumente, nas apreensões envolvendo drogas, como a maconha, a construção da
figura do usuário é ocupada pela pessoa branca e de classe média, enquanto a
figura do traficante é delimitada pela pessoa negra e pobre.

3 FATORES SOCIOCULTURAIS RELACIONADOS AO USO DA MACONHA

Vale repensar a questão da maconha, abordando-a a partir de outros ângulos.


A tendência mais comum no discurso em cima do consumo de substâncias
psicotrópicas é enfatizar o termo "droga", sem que se faça uma distinção entre
substâncias diversas, seus efeitos sobre a psique humana e os contextos
específicos nos quais ocorre seu uso.

Os estudiosos do uso dessas substâncias, que são farmacologicamente


definidas como drogas, propõem que, para a compreensão de como essas
substâncias afetam os usuários, é necessário considerar três fatores determinantes
entre si,de acordo com a terminologia de Norman Zinberg:

a) a droga em si — ou seja, a ação farmacológica da


substância, a dosagem e a maneira pela qual ela é tomada
(aspirada, fumada etc.);
b) o set — que é o estado do indivíduo no momento do uso, a
sua estrutura de personalidade, condições psicológicas e
físicas, suas expectativas com relação ao efeito da substância
etc.;
c) o setting (que é o cenário ou ambiente social) — isto é, o
conjunto de fatores ligados ao contexto no qual a substância é
tomada, o lugar, as companhias, a percepção social e os
significados culturais atribuídos ao uso.
Desses três fatores, o que é menos estudado e ao qual a antropologia mais
tem a oferecer é o que fala dos aspectos socioculturais, o setting. Uma grande
produção antropológica tem demonstrado que a interpretação de fenômenos físicos,
biológicos ou sociais depende de pressupostos culturalmente estabelecidos.
Pressupostos culturais redefinem as fronteiras entre sanidade e insanidade, saúde e

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doença, uso e abuso. Em uma sociedade complexa como a nossa, na qual os
grupamentos sociais são tão difusos, no que diz respeito a seus estilos de vida e
visões de mundo, há diferentes formas de viver e encarar o consumo de substâncias
ilícitas, como a maconha, formas essas que, geralmente, conflitam entre si.

Fica, assim, aberta a brecha para se considerar as diversas modalidades de


uso da maconha e os significados culturais atribuídos à utilização. No que diz
respeito ao problema colocado, cabe questionar de que modos o cenário
sociocultural influencia a formação e a preservação de um padrão de consumo
regular da maconha e de que modos se desenvolvem, entre os usuários regulares,
mecanismos que possibilitam o uso controlado da substância.

Para elaborar respostas às questões mencionadas no parágrafo anterior, tem-


se como base as mesmas usadas pelos autores Howard Becker, sociólogo, e
Norman Zinberg, médico. Becker se preocupa em explicar como alguém se torna e
continua consumidor regular da maconha, enquanto Zinberg atentou para as formas
de controle social que permitem manter um consumo controlado de substâncias
ilícitas.

A partir disso, caem por terra as falácias usadas pelos proibicionistas como “a
maconha é a porta de entrada para drogas pesadas” e “se legalizar, todo mundo vai
fumar; imagine quantos acidentes vão acontecer...”, pois tanto Becker quanto
Zinberg entendem que o consumo da maconha está atrelado a fatores socioculturais
(setting) e exige tempo e dedicação.

Becker traz a ideia de “carreira” realmente associando às profissões, porque


você cresce ao passo que consome a erva, aprende a identificar seus efeitos e a
usar somente por prazer, descartando a ideia de um "traço de personalidade" que
predispusesse o indivíduo a adotar tal comportamento. Becker argumenta, então,
que, ao invés de se pensar em uma "motivação desviante" antecedente o ato, deve-
se, pelo contrário, entender como essas motivações crescem ao longo da
experiência que o indivíduo tem com a atividade, chamada "desviante". Ele procura
mostrar que o indivíduo só se sente motivado a consumir maconha depois que
aprende a identificar e apreciar seus efeitos, e que tal aprendizagem ocorre através
de contatos com outros usuários.

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Já Zinberg trabalha especificamente com a ideia do setting social, que é o que
permite o uso de substâncias psicoativas ilícitas, seguindo um padrão através de
sanções sociais: valores e regras de conduta — de rituais sociais — e estilos de
comportamento. Estes, juntos, constituem os controles sociais informais. Essas
sanções sociais indicariam se e como certa substância pode ser usada; elas podem
ser informais e compartilhadas por um grupo, ou formalizadas por leis e
regulamentos. Ou seja, os rituais sociais são os padrões de comportamento em
torno do uso de determinada substância. Estão incluídos neles os métodos de
aquisição e consumo, a escolha do lugar e meio social para o uso, as atividades
associadas e as maneiras de evitar efeitos negativos.

Os controles sociais informais constituem o que Becker chamou de "cultura da


droga". Isso é resultado da junção de experiências através de redes de comunicação
entre usuários. Portanto, para que essa informação circule no meio, é necessário
que os consumidores estejam conectados entre si durante um período de tempo e
mantenham um sistema de relações, através do qual se articulam entendimentos
comuns sobre uma substância e as melhores maneiras de utilizá-la.

De todo modo, parece importante ressaltar que as experiências com


psicoativos e as elaborações em torno delas geram um tipo de saber acerca da
natureza, das propriedades e uso adequado dessas substâncias. É um saber que,
embora não seja "científico", passa longe de ser falso. Ao contrário, é produto de um
processo de constituição de padrões culturais que regulam as práticas de consumo,
estabelecendo referências para a distinção entre "uso" e "abuso".

4 O USO DA MACONHA NO MUNDO

No mundo, cada vez um número maior de países aderem a um modelo pouco


mais liberal com relação ao uso de drogas. No caso da maconha, temos lugares
como Holanda, Suíça, Portugal, alguns estados do Estados Unidos e Austrália.
Existem hoje, no mundo, muitos lugares cujo uso da maconha é liberado, ou seja, a
descriminalização do usuário dessa droga é algo comum, inclusive entre países
desenvolvidos.

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Traz-se o exemplo de Portugal como um dos países que obteve melhores
índices de sucesso em suas estatísticas, após descriminalização de todas as
drogas, no ano de 2001:

(Fig. 02: Drogas raramente matam alguém em Portugal)

No gráfico acima, mostra-se que mortes relacionadas a drogas quase não


existem mais em Portugal, fato que o coloca como uma referência mundial nesse
âmbito.

No quesito de melhoras em suas estatísticas, outro país que se destaca é o


Uruguai, que tem a droga totalmente liberada em seu território. Segundo o jornal
Folha de São Paulo, houve uma redução de 18% nos crimes relacionados ao
narcotráfico no Uruguai.

Pesquisas recentes mostram que, contraditoriamente, alguns países com a


droga criminalizada estão entre os países com maior número de usuários, dentre os
quais se destaca a Islândia, com cerca de 18,3% da sua população usando a erva,
segundo o jornal The Telegraph. Isto é, criminalização não é sinônimo de diminuição
de usuários e, sem dúvida, não significa redução de dados da violência envolvendo
uso/comércio de drogas.

5 A QUESTÃO RACIAL NO USO E NO TRÁFICO

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No quanto já dito acima, alguns dados são importantes de serem redestacados
para se pensar na racialização do debate de política de drogas, aqui com foco à
maconha, quanto ao uso e ao tráfico. Na seção 2, foi colocada a associação da
maconha com a população afrodescendente/negra como forma de subalternização,
associando a maconha, como droga de pobre e como elemento de vingança sobre o
colonizador branco. Ressalte-se, com a parte final desta seção, que a questão de
drogas, não apenas no passado, porém em tempos mais recentes, apenas é
utilizada para marginalização da população negra, uma vez que à população branca
é reservado o papel de usuário, jamais de traficante e, consequentemente, de
criminoso. Se o estigma ainda é parte da figura do usuário, não há quaisquer
comparações/equiparações com a visualização da figura do traficante/criminoso.

Ao redor do mundo, vem sendo experimentadas políticas de drogas outras, que


não a fatigada criminalização. Os resultados, como destacado na seção 4, são pela
redução dos dados de violência e, não tão surpreendentemente, do número de
usuários. Alguns países, como o Uruguai, possuem regulamentações quanto ao uso,
restringindo a quantidade consumível por semana/ano e mantendo
registros/acompanhamentos de usuários.

Quando se trata da questão do uso e dos fatores sociais que permeiam, como
pontuado na seção 3, nota-se, em conjunção ao quanto afirmado na seção 2, que a
preocupação com a figura de usuário não é direcionada à pessoa negra, uma vez
que sua ocupação é da figura própria do tráfico. As abordagens de uso, de alguma
forma, resultam por invisibilizar a racialização da liberação da maconha, já que
encerrar a resolução da política pública dessa droga apenas quanto ao uso é
resolver os empecilhos mínimos que o usuário – portanto, pessoa branca e de
classe média – pode vir a ter, como seu acesso dificultado, por necessitar recorrer
ao tráfico, e o perigo de consumir drogas adulteradas, questões de segurança/saúde
pública.

Ocorre que tais questões de segurança/saúde pública também devem ser


pensadas para a população negra, a qual, segundo dados do INFOPEN, em seu
último relatório, publicado em 2017, é a principal vítima da política atual de guerra às
drogas, inserida a maconha. Numa sociedade que conta com 53% da população
total sendo negra, possuir um total de 64% de pessoas negras, dentro do sistema

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prisional, é contar com uma sobrerrepresentação dessa população dentro de
ambientes que privam a liberdade.

Falando de Bahia, a situação se mostra ainda mais alarmante, pois o estado


conta com 89% de sua população carcerária sendo negra. No Acre e Amapá, as
taxas superam os noventa por cento, chegando, respectivamente, a 95 e 91%.
Cumpre salientar que o principal crime responsável pelo encarceramento da
população negra é o tráfico de drogas, se considerados homens e mulheres –
considerados homens, isoladamente, o tráfico de drogas empata com o crime de
roubo.

Por estas razões é que não se acredita que a solução para a política de droga
do tipo maconha, no Brasil, deva negligenciar a comercialização/tráfico, centrando-
se apenas no uso. Existe uma evidente questão racial concretizada na política de
drogas atual, direcionada ao extermínio da população negra, sendo aquela mais
assassinada pela polícia, e ao seu encarceramento, que precisa ser pensada e
revertida como um passo para superação do racismo no Brasil. Acredita-se que a
liberação da maconha, tirando o caráter ilícito do comércio irrestrito, seja uma das
formas de execução mais eficaz da política pública debatida, contando com outras
medidas de conscientização da população.

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