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É uma agenda política que visa a docilização dos corpos, ou até mesmo, sua
eliminação. Esse disparador mantém uma episteme focada na exclusão do diferente,
reverberando o discurso que a alteridade é perigosa e precisa ser controlada. Um perigo
para o próprio drogadito e para a coletividade. São narrativas colocadas como
enunciados que precisam ser seguidos para um bem comum e proteção social.
Assim, novamente, o Estado e os seus operadores, através de discursos ditos
científicos (médicos e jurídicos), institucionalizam uma política de controle e opressão
através de uma operação de “guerra às drogas” a todos que orbitam esse núcleo,
mormente quem as utiliza. E, como em toda a guerra, os indivíduos que lidam com a
droga são despersonalizados e ressignificados como indesejáveis para quem se oferecerá
puramente a guerra, a morte ou o aprisionamento.
Para o médico Eduardo Kalina (1999), a droga sempre fez parte da história
humana. Na antiguidade egípcia – outrora considerada armarinho de remédios do
mundo, o Papiro de Ebers (1.550 a. C), um tratado médico no qual diversas substâncias
eram reportadas, a citar o Ópio, era elucidado ali como um remédio capaz de
harmonizar sintomas de ansiedade e dor; do outro lado do mundo, na América Antiga,
Incas e Maias também apuravam substâncias psicotrópicas que apreciavam em ritmo de
adoração. Gerações e culturas em busca da comunhão com seus deuses e iluminação
espiritual.
Portanto, as drogas eram admitidas como instrumentos terapêuticos ou objetos
para uma finalidade espiritual. Apenas a partir do século XX, as “drogas” tornam-se
propriamente drogas, instrumentalizadas e processadas dentro de laboratórios como
meios que possibilitam a harmonização e controle da vida. A partir desse momento a
humanidade começa de fato, a manipular e estudar cada vez mais as substâncias
psicoativas. A droga assume um signo, um elemento constitutivo social e se traduz cada
vez mais como elemento aderente as pessoas – de modo que se torna extremamente
difícil conceber uma sociedade diferente dessa relação entre o “homem e a sua droga”:
sejam os ansiolíticos para atenuar os sintomas a ansiedade, os hipnóticos para ajudar a
dormir, as anfetaminas como estimulantes, ou até o cafezinho durante a jornada de
trabalho.
Todavia, aparentemente no passado, o uso de drogas não apresentava uma maior
ameaça à coletividade. No Brasil apenas em 1938, com o decreto Lei nº 891/38, surge
um processo de criminalização e controle das drogas. Ou seja, o processo de proibição
e tratamento dessa demanda através de questões jurídicas sob a perspectiva criminal é
algo novo comparado com toda a história humana.
Essa política criminal responde a uma nova forma de “racionalidade particular,
orientada e conduzida por determinados princípios considerados verdadeiros [...] até
esse ponto, Foucault tentava analisar de que maneira cada época organiza práticas de
governamento específicas com o intuito de conduzir as condutas dos outros”
(LOCHMANN, p 50/51, 2019).
Nesse sentido, Kalina (1999) concorda com a posição que o uso ritualístico e o
uso das drogas tradicionais não acarretava danos sociais mais sérios, se comparado com
o seu uso nas sociedades contemporâneas - especificamente nas sociedades ocidentais
que adotam uma política liberal, onde consumo das drogas psicoativas se torna
problema social e de saúde pública, reverberando altos custos à saúde, ao poder
judiciário e ao setor penitenciário.
Para isso, dois conceitos são desenvolvidos com a premissa de cuidado, mas se
tornam elementos essenciais para controle e dominação do sujeito, fazendo parte de
forma intrínseca da Governamentalidade. Os dois conceitos são: população e estatística.
No disparador, o operador jurídico vai utilizar o Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais para argumentar na necessidade do tratamento dessa
questão enquanto doença. E assim, pela cronicidade desta situação, o tratamento deve
acontecer independente da vontade do “doente”. Definindo-o como incapaz de
(re)conhecer o melhor para si mesmo. O autor do disparador descreve o drogadito como
um sujeito sem razão, com problemas cognitivos que está ausente de aparentemente
qualquer humanidade. “Não mais se importa com a própria existência, também não se
importa com a vida alheia, e tudo fará para conseguir o precioso fármaco, até vender o
próprio corpo, roubar ou matar, se necessário. É a droga estimulando toda a sorte de
criminalidade.”, é um processo total de despersonalização.
A Governamentalidade como está hoje só é possível com a emergência do
conceito de população, um corpo múltiplo com suas regularidades e características. Um
conjunto de indivíduos homogêneos que produz processos coletivos próprios da vida em
sociedade e que começam a ser calculados e sistematizados por um saber específico
(LOCHMANN, 2019). O DSM é um manual preparado e sistematizado para agir como
um elemento reforçador da Governamentalidade. Por outro lado, a “estatística como um
saber fundamental para o governamento da população na atualidade” (LOCHMANN,
2019, p. 68).
A psiquiatria, como categoria de verdade científica ganha um status de poder
quase incontestável. Ela passa a colocar quais condutas devem ser permitidas através do
signo de normalidade, e alocando os anormais em um espaço de patologia para
tratamento. Isso tudo, inclusive, de maneira involuntária já que os anormais perdem a
característica de racionalidade que supostamente permeia os sujeitos em um processo de
dessensibilização que expressivamente pode afastá-los do direito à dignidade intrínseco
até aos sujeitos em sofrimento.
É mister refletir que a Droga, além de uma questão individual, na atualidade
assume um problema de caráter social. Para além de toda discussão acerca da violência
que se atrela ao comércio ilegal, compreende-se que da relação do sujeito com a droga,
inviável a indivisibidade de ações para conduzir a esfera da saúde pública e demais
demandas que a droga protagoniza na sociedade.
Porém, ainda sim, algumas narrativas são enfatizadas para reforçar a importância
da Internação Compulsória e Involuntária, com o discurso moralizador de que a
drogadição é um problema social e que ameaça a harmonia da sociedade, legitimando o
argumento de contenção para o bem de todos. Premissas que parecem trazer um caráter
sensacionalista, difusor de pavor e medo - obstaculizam o olhar da população e de
outros profissionais sobre outras formas de políticas relacionadas às drogas,
solidificando um imaginário que identifica o problema da droga como um grande mal
social e para o qual não há solução, como sendo a própria personificação de todos os
males do Estado, que também, agora parece encontrar um inimigo para reforçar a
necessidade de sua própria existência.
Tal postura se encontra com o sistema político e ideológico do Neoliberalismo.
Entre os princípios destacados pelo liberalismo está a liberdade. Porém, a liberdade
fabricada pelo liberalismo está relacionada sempre a uma questão de segurança, “isso
significa dizer que a liberdade dos sujeitos não pode ser tal que coloque sob ameaça os
demais sujeitos da população, colocando como um administrador, produtor e
organizador da liberdade” (LOCHMANN, 2019, p. 73).
“É a droga estimulando toda a sorte de criminalidade. Nestas condições, é
impossível falar em livre arbítrio, vontade própria ou autodeterminação e se nos parece
extremamente desumano entender que o Estado deva garantir ao dependente o direito a
autoaniquilação”, o discurso da criminalidade sendo colocado como simples resultado
do uso da droga. É uma equação reducionista e cheio de preconceito que vende
facilmente na nossa sociedade.
Por outro lado, o sujeito não pode ter o direito de se autoaniquilar, apenas o
Estado possui o poder punitivista e o poder de polícia para exercer a atividade de
aniquilação, como a privação da liberdade através da Internação Psiquiátrica
Compulsória. “Enfim, por toda parte vocês vêem esse incentivo ao medo do perigo que
é de certo modo a condição, o correlato psicológico e cultural interno ao liberalismo.
Não há liberalismo sem cultura do perigo” (FOUCAULT, 2008, p.91). O jogo da
liberdade e segurança está sempre em jogo no novo imperativo da governamentalidade.
O liberalismo trata a temática da drogadição através de um mecanismo arbitrário
que poderá sempre ameaçar a segurança dos seus indivíduos, assumindo a função de
gestor dos perigos com os mecanismos de segurança e liberdade. Por isso, a drogadição
é tratada como uma questão de segurança pública e não de saúde pública.
Ainda nesse sentido, o sujeito toxicômano é um improdutivo para a Lei do
mercado, se colocando a margem do imperativo de gozo do mercado financeiro e
econômico, fazendo com que seja urgente o seu extirpe social.
FOUCAULT, Michel. Direito de morte e poder sobre a vida. In: História da sexualidade 1: a
vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2007a. (p. 145 – 174).
SÃO PAULO. Tribunal de justiça de São Paulo. TJSP. Antecipação de tutela / tutela específica
Processo e procedimento Direito processual civil e do trabalho Liminar Tutela provisória.
Juiz Victor Trevizan Cove. Foro de Ribeirão Bonito, SP. 2016. < Petição - Ação Antecipação de
Tutela / Tutela Específica contra e a Fazenda Pública do Estado de são Paulo - 2016.8.26.0498
(jusbrasil.com.br)>
“O biopoder, o poder sobre a vida, por sua vez, nasce para contrapor o poder
sobre a morte, o poder soberano. Em termos históricos o biopoder coincide com
o liberalismo, que traz em seu escopo antropológico a ideia de que o homem
possui uma dignidade natural a ser respeitada pelo contrato social, a ideia de
que o homem possui uma natureza universal, possui direitos universais que
precisam ser acatados e respeitados pelo Estado. A proclamação dos Direitos do
Homem na Revolução Francesa de 1789 é um documento ilustrativo dessa
concepção liberal de homem. A citação abaixo de Foucault deixa claro que o
biopoder nasceu e se desenvolveu dentro dos marcos históricos do liberalismo
político e econômico:”