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“Guerra às drogas” - estratégia do Estado de controlar a pulsão e gozo

Jorge A. Pimenta Filho*


jpimentaf@gmail.com

Introdução
Hoje em nossa civilização com seus agravos e mal-estares, tudo ou quase tudo, quando
se trata de toxicomanias em geral, pode se transformar em adicção, desde o jogo, o
sexo, o trabalho.
Conectados ao discurso do mestre contemporâneo, que é uma conjunção do discurso
da ciência com o do capitalismo, com sua vontade de vigiar, punir e castigar, os
sujeitos ficam presos, tendo relação direta ao gozo, sem passar pelas embrulhadas do
amor. As consequências disso para ele, o sujeito, é leva-lo ainda mais a destruição e a
um circuito infernal: querem me proibir e punir, então eu quero mais, consumo mais.
Fica assim instalado um gozo sem limites: quanto mais guerra às drogas, mais
consumo.
Para nós psicanalistas lacanianos, que devemos estar em consonância com o tempo
em que vivemos se quisermos que nossa disciplina opere sobre o mundo das coisas e
dos sujeitos, seguindo o que nos indica Éric Laurent 1, é necessário mudarmos de
perspectiva quanto às toxicomanias, pois que não se trata de liberação ou proibição
total do consumo de drogas.
Afinal de que droga se trata?
É difícil e complexa a questão de inventarmos instrumentos e dispositivos de
orientação e tratamento para reduzir danos, o que implica num também difícil cálculo
político, pois sabemos que não se pode tudo inventar.
Sejamos incisivos: em nosso país o Estado, o chamado Poder Público, que nessa
conjuntura adversa destrói e mesmo desconhece as políticas públicas sociais inclusivas
está mesmo interessado nesse cálculo político que privilegia o sujeito e suas
singularidades?
Entre o empuxo ao pior do gozo – com a extensão do consumo e a proibição-punição-
repressão -, o problema não se resolverá. Instrumentos e dispositivos, inclusive os
legais, podem funcionar facultando tratamentos e permitir aos sujeitos sair dessa falsa
oposição que é, segundo Éric Laurent, a dupla face da pulsão de morte.
A questão é encontrar em cada um – em cada sujeito – um caminho que responda a
esse impasse já que soluções globais, universais e ideais impostas pelas burocracias

*
Sociólogo, Mestre em Educação pela FAE/UFMG, Psicanalista -Membro da EBP – Escola Brasileira de
Psicanálise – Escola do Campo Freudiano e da AMP – Associação Mundial de Psicanálise. Esse artigo
adveio de uma apresentação na mesa: “Quando falha a cavalaria química, a punição entra em cena” da
III Jornada do Ateliê Intervalo de Redução de Danos, cujo tema foi "Drogas, qual é a sua?", Belo
Horizonte, Universidade FUMEC, 07 de julho de 2017.
sanitárias, higienistas, segregacionistas e autoritárias não funcionam ou são mesmo
iatrogênicas.
Eis aqui uma má notícia: frente à relação particular que cada um tem com seu gozo, a
Psicanálise não é uma panaceia, não oferta saídas e respostas para todos os males.
Não promete a felicidade pois, como nos lembra o colega psicanalista Manoel Barros
da Mota 2 “a resposta da psicanálise não está ajustada, normalizada ao nível da
civilização”.
Lembra-nos, ainda, o colega que “o mestre contemporâneo intervém com exigência de
cálculo, trabalho, aspectos de uma razão que não supõe qualquer singularidade frente
a uma ordem simbólica que já não existe mais”.
Ainda é necessário acrescentarmos que a ascensão do neoliberalismo, esse raio
destruidor que nos tange, e a expansão da sociedade da hipervigilância coincide com
um estado de turbulências e instabilidades crescentes aqui no Brasil e em todo mundo.

Dias difíceis com soluções precárias num tempo de abalo do simbólico


Foi me solicitado que fizesse um paralelo entre a política de guerras às drogas hoje e o
que foi a Ditadura Militar no Brasil.
É difícil fazer esse paralelo, mas há uma questão fundamental em jogo quando se trata
do aparelho de Estado e suas práticas: os métodos e soluções propostas pelo Estado.
Antes, em 1964 e hoje, em 2017 – 53 anos depois – assistimos à tentativa de se fazer
prevalecer e valer uma resposta neoliberal: menos Estado, nada de políticas públicas
sociais includentes, nada de projetos emancipatórios que se apoiem na história e nas
singularidades dos sujeitos com suas diferenças e vicissitudes (negros, índios,
mulheres, juventude, populações LGBTs, sem terras, sem lares, sem famílias, sem
lenços, sem documentos, sem visibilidade); tudo e todo apoio à volúpia infernal do
capitalismo com a extensão invasiva do consumo democrático de massas.
Antes, no pré-64, no Brasil, vivíamos uma grande chance das políticas sociais com suas
reformas de base – na educação, no campo com a Reforma Agrária, na cidade com a
Reforma Urbana, Bancária, Educacional, com a reforma do Estado, ampliando direitos,
inclusive do voto de cabos e praças, de legalização dos partidos de esquerda, algo
muito similar ao que fizemos com a Retomada Democrática e o fim da Ditadura em
1984 e que veio resultar na Constituinte de 1988 e nos governos progressistas e
populares de Lula e Dilma Rousseff.
Sim, por que o motivo dos golpes de 1964 e o de 2016 foi abortar e derrotar qualquer
tentativa de instalação de uma Democracia no país que estabeleça o pleno Estado de
Direito.
Hoje, estamos aceleradamente numa via de regresso ao passado, às trevas.
Lembremos que o que se chama Democracia na experiência brasileira se restringe a
apenas 50 anos! Ou seja, Democracia na plena extensão do termo só tivemos entre
1946-1964, 18 anos, somados ao período de 1984-2016, mais 32 anos. 50 anos de
democracia em 195 anos de Independência e 128 de República é muito pouco tempo
para falarmos em Nação.
Não podemos esquecer que tivemos 322 anos de colonização e 349 anos de escravidão
(de 1539 a 1888)!
Vivemos, em pleno século XXI, golpes quanto à Democracia e consequências quanto ao
gozo e seus paradoxos, e alguns dados de nosso país nos permitem afirmar que,
quanto ao problema das drogas e seu consumo, aqui se aprisiona, tortura e mata,
hoje, principalmente jovens negros das periferias de nossas grandes cidades que são,
em sua enorme maioria, pequenos consumidores tratados como traficantes.
Pratica-se no Brasil hoje uma criminalização em massa, o que nos demonstra
claramente o fracasso de uma “política”.
Para nós, psicanalistas lacanianos não se trata de ceder ao supereu insensato que nos
exige um imperativo: goze! - tampouco ceder ao Estado com sua face policial que
encarcera, tortura e mata. Pois as assim chamadas políticas de saúde, muitas vezes
estão opostas à justiça e têm de ser repensadas, pois revelam seu caráter disciplinar e
como biopolíticas, como aprendemos com Michel Foucault, se colocam a serviço do
capitalismo no afã de obtenção de lucros e dividendos.
Vejamos alguns dados:
- nos USA, 5% de sua população se encontra encarcerada e lembremos que o slogan
“guerras às drogas” - War on Drugs - se iniciou no Governo Nixon que disse: “a droga
é o inimigo número dos EUA” (ver vídeo do Cláudio Prado) 3. Desse percentual, 80%
são detentos por causa de droga. De 325 milhões de habitantes são 2.145.000
encarcerados. A seguir vem a China que tem 1 bilhão e 400 milhões de habitantes para
um total de 1.875.000 encarcerados.
- No Brasil, a população carcerária cresce numa expansão assustadora. Em 20 anos já
somos o terceiro país do mundo em população carcerária com 680 mil presos para
uma população de 210 milhões de pessoas, ou seja, 3,2% de encarcerados. Sendo que
temos 40% de presos provisórios não julgados e destes 20% são presos por tráfico de
drogas. A maior parte dessa população carcerária, são rapazes com idade entre 18 e 30
anos, negros das periferias brasileira, detidos por furtos e roubos (50% dos crimes)
e/ou tráfico de drogas (48%). 4
Para o advogado Alamiro Salvador Netto, professor de Direito na Faculdade do Largo
São Francisco e ex-presidente do CNPCP – Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária “Desde 2006, com a aprovação da Lei de Drogas, o tráfico dispara como
principal causa de aprisionamento desta população. Ao decidir quem é consumidor e
quem é traficante, a Justiça chancela a exclusão social: no geral, jovens de classe
média e alta são considerados consumidores e prestam serviços comunitários; jovens
das periferias são considerados traficantes e à prisão em regime fechado, em presídios
medievais, superlotados e sem direitos elementares. ” 5
Quanto aos métodos e práticas policiais - sabemos que esse foi um dos legados da
Ditadura Militar, deixar para o país uma política de Estado de repressão, violência,
tortura e eliminação de pessoas. Se métodos de torturas e sacrifício como o pau-de-
arara nos vem da época do aprisionamento e castigo a escravos - primeiros os índios e
depois os negros -, sobretudo no período colonial, sistema político-disciplinar, que
implicou e ainda implica na formação de agentes policiais públicos, foi gestado,
promovido e montado pelos órgãos de informação e repressão criados pela Ditadura
Militar a partir da chamada Doutrina de Segurança Nacional, que definia claramente o
que chamavam de repressão aos elementos subversivos, inimigos da pátria, da
sociedade e da família.
Tal sistema repressivo continua intacto e funcionando em todas as delegacias de
polícia e locais de detenção, inclusive presídios e penitenciárias. As polícias federais,
civis e militares são herdeiras desse modelo disciplinar e repressivo que é, inclusive,
ensinado em suas academias de formação. Se não temos mais os DOI-CODI
(Destacamento de Operações de Informações e Centro de Operações de Defesa
Interna) que se compunha de militares das três armas: Exército, Marinha e
Aeronáutica, se não temos o CIEX – Centro de Informações do Exército, CENIMAR –
Centro de Informações da Marinha e CISA – Centro de Informações da Aeronáutica e
nem mesmo o SNI – Serviço Nacional de Informações, seus modus operandi continuam
atuando.
Onde nos encontramos hoje
Apesar dos inúmeros esforços de cidadãos comprometidos com a garantia de direitos
e da sociedade civil democrática, através dos movimentos sociais, dos partidos
políticos democráticos e de esquerda, dos sindicalistas, dos estudantes, dos religiosos
progressistas, do MFA – Movimento Feminino pela Anistia, dos CBAs – Centros
Brasileiros pela Anistia, do Movimento de Familiares de Desaparecidos e Mortos
Políticos, do intenso trabalho da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, dos
trabalhos e relatórios da CNV – Comissão Nacional da Verdade, das Comissões da
Verdade Estaduais e Municipais e Comissões da Verdade Setoriais, não se realizou
ainda no país uma autêntica e definitiva política pela Memória, Verdade e Justiça que
implicasse em punição aos agentes do Estado responsáveis por torturas, repressão e
mortes, não se modificaram os currículos de formação das Academias de Polícia e das
Academias Militares, que se baseiam ainda na Doutrina de Segurança Nacional.
No Brasil ainda não se efetivou o que chamamos de Justiça de Transição, ou seja, a
implementação de um conjunto de medidas políticas e judiciais necessárias para
reparação das violações de direitos humanos ocorridas, principalmente, durante a
Ditadura Civil-Militar entre 1964-1984. Essas violações continuam nos dias de hoje e
nosso tecido social segue esgarçado, pois não temos a efetivação de uma política de
transformação para a restauração da justiça, da reconciliação e da efetivação de uma
cultura da paz. A nação não se reconciliou consigo mesma e com a história e a
memória de seu povo.
Essa herança maldita da Ditadura Militar é hoje responsável não só pela formação de
agentes policiais, como também, através de sua metodologia e ideologia de controle,
forma setores jurídicos de tribunais e outras instâncias, chegando à corte suprema, o
STF.
Segundo nos revela a Psicanalista Maria Rita Kehl, que foi membro da CNV – Comissão
Nacional da Verdade, citando o jornalista Luís Fernando Vianna, sobre o tema dos
desaparecidos políticos da Ditadura Militar: “Se não tivesse havido Rubens Paiva,
poderia não ter havido Amarildo, pedreiro morto no Rio em julho de 2013 e cujo corpo
(ou o que sobrou dele), nunca foi entregue aos familiares”. 6 Vejam que se trata
exatamente do que restou da Ditadura como herança: métodos de prisão, repressão e
execução.
“O Brasil é o único país que anistiou seus torturadores e que, não por acaso, é também,
o único em que as polícias seguem militarizadas – uma herança horrorosa dos tempos
duros – matando e torturando mais hoje, durante a democracia, do que mataram e
torturaram durante a Ditadura”.7
Redução de danos – investigação, tratamento e ética clínica
O que nos coloca essa dimensão da clínica tomada a partir da segregação e da
violência que privilegia “guerra às drogas” é localizarmos qual será o papel da
Psicanálise de Orientação Lacaniana quanto à chamada redução de danos.
Para nós lacanianos uma política pública democrática que trate com dignidade
usuários é fundamental, mas não esclarece tudo do que é para economia libidinal dos
sujeitos, o uso de drogas. As políticas públicas são necessárias e a Psicanálise pode
muito bem atuar aí estabelecendo uma parceria. Mas as políticas públicas são
universalistas – e não poderiam ser diferentes - ao passo que a Psicanálise trata o
singular de cada falasser.
Localizar essas diferenças constitutivas é fundamental porque há questões que
precisam ser investigadas:
- o que é a droga na história desse sujeito “x” e porque ele faz uso; qual a
função da droga quanto ao gozo; a droga permite algum ponto de enlaçamento a algo
de vital; a droga é usada como um fármaco para dar conta de algo invasivo, como uma
espécie de anestésico; como essa droga pode ser objeto de uso como redução de
danos; qual é mesmo o tratamento possível, a partir do singular de cada falasser?
1
LAURENT, Éric – El efecto crisis produce uma incertidumbre massiva - entrevista a Pablo E. Chacón, Revista Ñ, in:
https://www.clarin.com/ideas/eric-laurent-psicoanalisis_0_SkObgS4hDXg.html - consultado em 04 de maio de 2017.

2
MOTTA, Manoel Barros da – O crime à luz da psicanálise lacaniana, 1ª. ed. - Rio de Janeiro,: Forense Universitária, 2017,
p. 2.

3
Delírios Utópicos de Claudio Prado – in: https://youtu.be/E7nMwTqFX4k - Consultado em 04 de maio de 2017
4
Carlotti, Tatiana – “Execução penal, exclusão social e abandono do estado”, por Salvador Netto - in:

http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/-Execucao-penal-exclusao-social-e-abandono-do-Estado-

por-Salvador-Netto/4/38054#

Consultado em: 06mai2017

5
Ibidem, idem

6
Kehl, Maria Rita – Gozo em estado de exceção: corpos torturados e pessoas desaparecidas, in: Ditadura civil-militar no
Brasil – o que a psicanálise tem a dizer, São Paulo : Escuta : Sedes Sapientie, 2016: 43-62.

7
Ibidem, idem – p. 65.

RESUMO

O autor interroga se o Estado Brasileiro estaria interessado em estabelecer políticas públicas de tratamento a usuários de
drogas que leve em conta o sujeito e suas vicissitudes. Aponta que o aparelho repressivo do Estado - herança do período
de Ditadura Militar, no seu propósito de guerra às drogas, faz uso de métodos e práticas higienistas, repressivas, violentas,
criminalizando, prendendo, encarcerando e até exterminando jovens, sobretudo negros das periferias.

PALAVRAS-CHAVE:
Toxicomania; guerra às drogas; discurso do mestre contemporâneo; jovens; políticas sociais.

ABSTRACT

The author questions whether the Brazilian State would be interested in establishing public treatment policies for drug users
that takes into account the subject and its vicissitudes. It points out that the repressive apparatus of the State - inheritance of
the period of military dictatorship, in its purpose of war on drugs, makes use of methods and practices hygienist, repressive,
violent, criminalizing, arresting, imprisoning and even exterminating young people, especially blacks from the peripheries.

KEY WORDS:

Drug addiction; drug war; contemporary master's discourse; youth; social policies.

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