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Segurança Pública, Atenção Psicossocial e o Covid-19 nas prisões: entrevista com

Pedro Paulo Bicalho

Por Allister Dias1 e Pedro Felipe Muñoz2

A partir da segunda metade do século XX, com o surgimento da chamada nova


história, nós historiadores passamos a investigar não somente os grandes nomes do
passado nacional e internacional, mas também os personagens até então excluídos da
história tradicional: mulheres, operários, presos, doentes mentais, loucos criminosos,
etc. Pessoas anônimas e seres humanos outrora vistos como sem importância histórica,
passaram para o centro da narrativa, como no livro de Michel Foucault “Eu, Pierre
Rivère, que degolei a minha mãe, minha irmã e meu irmão” 3 e em muitos outros da
produção historiográfica recente. Nas ciências sociais e na psicologia, esforços similares
deram evidência aos segmentos excluídos e vulneráveis da sociedade: indígenas,
refugiados, populações periféricas e faveladas, assim como negros, mulheres e
populações LGBTI, vítimas do preconceito e da violência. Dentre os sujeitos invisíveis
aos olhos da sociedade, a população carcerária talvez seja aquela que o grande público
parece menos se importar.
O encarceramento é fenômeno com historicidade, ou seja, uma prática punitiva
com significações e objetivos distintos a depender do contexto. De todo modo, a
consolidação no século XIX da prisão moderna como lugar por excelência da punição,
defesa social e correção, foi acompanhada pelo revivescente debate sobre sua reforma.
A eternamente debatida reforma penal e penitenciária. Estudos no bojo das ciências
humanas, em especial aqueles provenientes do campo interdisciplinar da Criminologia
Crítica, contestam a expansão, sobretudo a partir dos anos setenta, do “estado penal”
(em detrimento do esfacelamento do “estado previdenciário”), do “estado de polícia” e
dos processos de “criminalização”, razão de ser do encarceramento em massa que se
assiste desde então em países como os EUA e o Brasil. O “estado penal” e o
punitivismo seletivo (em termos de classe, raça, cor, localidade, etc.) que o marca,
irmão siamês do consenso neoliberal, tende a destruir o histórico ideal correcionalista de
reabilitação do sujeito aprisionado, como ensinam David Garland e Loïc Wacquant, nas
suas vastas produções intelectuais.
É frente a essa realidade que psicólogos e assistentes sociais cumprem papéis
importantíssimos junto às populações privadas de liberdade. Tais profissionais
desenvolvem também estudos e pesquisas sobre as diferentes questões psicossociais que
se revelam nas instituições prisionais (para adultos) e socioeducativas (para jovens e
adolescentes), bem como nos Hospitais de Custódia e Tratamento – antigos manicômios
judiciários, onde são cumpridas as chamadas medidas de segurança. 4 Tais estudos
mostram que os encarcerados não são apenas condenados penais, mas, sobretudo,
indivíduos que tem cerceados os seus direitos constitucionais, civis, sociais e humanos.
Embora nosso país tenha hoje a terceira maior população carcerária do mundo, o
desejo de aprisionamento da sociedade parece insaciável. Em dez anos, de 1994 a 2004,
a população carcerária no Brasil quintuplicou. Em fevereiro deste ano, o Brasil
totalizava 773 mil pessoas encarceradas, estando 45,92% delas em regime fechado. Os
presos provisórios – sem sentença penal condenatória – representavam 33,47%, isto é,
253.963 pessoas.5 E muitos desses presos provisórios estão há vários anos aguardando
julgamento em delegacias ou em locais inapropriados. Como se sabe, o sistema
prisional brasileiro e as unidades socioeducativas operam em alto grau de superlotação.
Ao invés de investir em políticas públicas e direitos, visando a redução das
desigualdades sociais e a ampliação da cidadania, o Estado brasileiro, de governo a
governo, prefere resolver os problemas da Segurança Pública apenas com polícia e
restrição de liberdade, bem aos moldes de um “estado penal”. E não se trata aqui só de
repressão, ou da tão propalada “defesa social”, mas na produção, em sociedades assim,
de conceitos, expectativas, discursos, instituições e subjetividades de operadores do
direito penal cada vez moldados para o “estado de polícia”. A situação, que já era
dramática antes da pandemia de Covid-19, tornou-se ainda pior.
Visando atenuar o problema e garantir os direitos fundamentais da população
carcerária, parcela da Justiça brasileira vem tomando uma série de medidas para
diminuir a superlotação6 e obrigar os governos a adotarem ações para prevenir a
contaminação de presos pela Covid-19. 7 Isso, porém, em meio a muitas negativas por
esta mesma Justiça de concessão de prisão domiciliar para presos que fazem parte do
chamado “grupo de risco” para a covid-19, em especial presos provisórios e em medidas
de segurança.
Dando continuidade ao Especial Covid-19 da Casa de Oswaldo Cruz, realizamos
uma entrevista com o professor Pedro Paulo Bicalho da UFRJ,8 com o objetivo de
discutir o tema da Covid-19 nas prisões e as subsequentes questões psicossociais da
atualidade. Bicalho vem se dedicando, há mais de 10 anos, ao estudo dos processos de
criminalização – que não devem ser confundidos com o processo de incriminação
decorrente do processo judicial – responsáveis pela estigmatização de populações que
acabam vivendo em condições de segregação e vulnerabilidade. Dessa forma, orientou e
coordenou diversas pesquisas sobre a populações encarceradas no sistema prisional e
socioeducativo do Brasil.

ENTREVISTA

AD e PFM: Em maio deste ano, você assinou, junto com duas coautoras, um editorial
dos Arquivos Brasileiros de Psicologia sobre a pandemia de COVID-19 e a crise de
investimentos em ciência e saúde.9 Nele, vocês citam um relatório da Organização das
Nações Unidas (ONU) e um documento da FIOCRUZ, ambos sobre a atenção
psicossocial. Passados três meses desse editorial, que avaliação você faz sobre a saúde
mental na pandemia?

PPB: Escrevemos o editorial dois meses após a confirmação da transmissão


comunitária no Rio de Janeiro e da primeira morte em decorrência da pandemia do
coronavírus. A OMS [Organização Mundial de Saúde] sugeriu que o mundo deveria
parar e se isolar para lentificar o processo de contaminação e não sobrecarregar os
sistemas de saúde. Entretanto, diante de sistemas de saúde já sobrecarregados e
sucateados, o que fazer? Nos últimos anos, desde a aprovação da Emenda
Constitucional 95, sofremos com a intensificação do sucateamento dos sistemas de
saúde, fechamento de leitos e hospitais em todo o país, com sérias consequências para o
cuidado psicossocial na rede pública, onde atuam cerca de 60 mil psicólogas(os) no
país. Para muitos, o colapso social já começava analisando essa questão. Mas, é
importante ir além: diante da realidade continental e desigual do Brasil, na qual muitos
trabalham informalmente para garantir diariamente o que comer, como adotar tais
medidas de restrição e ao mesmo tempo garantir o cuidado psicossocial, principalmente
diante de um governo negligente? Como afirma a psicóloga boliviana María Galindo,
em Sopa de Wuhan10: na América Latina o coronavírus escancara a ordem colonial do
mundo. “Aqui a sentença de morte estava escrita antes da covid chegar em avião de
turismo”. Talvez, numa análise mais profunda, possamos descobrir que, no Brasil, a
pandemia nunca foi sobre os mais ricos. Na verdade, ela não é sobre os mais pobres
também, mas evidencia os requintes de crueldade que a nossa forma de reprodução
social da vida imprime na sociedade. E não é possível desvincular atenção psicossocial
de desigualdade social, problemática na qual o Brasil encontra-se na 10ª posição em
comparação com outros países do mundo, verificando-se no ano de 2019 ampliação da
desigualdade entre os extremos da distribuição da renda do trabalho, de acordo com
recente relatório do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) 11. Para a
manutenção da ordem capitalista, o darwinismo social ainda permeia como ideologia
explicativa a esse fenômeno e atinge maciçamente os pobres, os negros e a classe
trabalhadora, historicamente explorados pelo colonialismo. Sobreviverão aqueles mais
“fortes”, capazes de adaptar-se ao ambiente (e, neste momento, sobreviver à pandemia).
O coronavírus foi tido inicialmente como “um vírus democrático” – expressão que
compôs muitos escritos e noticiários televisivos no início da disseminação. Uma
enfermidade amplamente alastrada que atingiria a todos e de maneira igualitária; que
evaporou a segurança da nobreza e, o medo da sua contaminação, extrapolou as
fronteiras territoriais e econômicas, com uma ideia de comunhão, de um possível mundo
mais solidário onde o vírus venceria o capital e a competitividade nele emaranhada.
“Este vírus é democrático e não distingue entre pobres e ricos ou entre estadista e
cidadão comum”, afirmou o esloveno Slavoj Zizek em Sopa de Wuhan12. Como um
vírus pode ser democrático em um país tão desigual? O cuidado psicossocial esbarra,
neste país, com a estrutura material, financeira e social, com a ausência de condições
básicas para seguirem prescrições alimentares, de isolamento, de higiene, sem contar
que as informações acerca dos cuidados, que muitas vezes chegam enviesadas e
desmoralizam a gravidade da doença, tratando-a como uma “gripezinha”. Não é
possível pensar a atenção psicossocial neste país desvinculada de uma análise profunda
da desigualdade que historicamente nos estrutura. As desigualdades sociais aqui
discutidas possuem íntimas relações com processos políticos históricos e
contemporâneos, e também com a construção da subjetividade da nossa população. Tais
agravos existem desde muito antes da pandemia e existirão ainda após seu fim. Dessa
forma, é possível que a vivência da pandemia no Brasil potencialize uma crise sem
precedentes. A reinvenção da vida, necessária para todas e todos nós, passa por uma
dimensão de cuidado. E, em tempos de isolamento, a atenção à saúde mental e o
cuidado psicossocial tornam-se prioridade entre os que vivenciam uma crise dentro de
outras existentes.

AD e PFM: Nos últimos dez anos você investigou os processos de criminalização, a


partir de adolescentes em medidas socioeducativas, presos provisórios em delegacias e
pessoas encarceradas após condenação judicial. Qual é a situação dessas pessoas
durante a pandemia? Como você analisa a letalidade no sistema prisional em
comparação com a população geral?

PPB: Não é por acaso que no Brasil, diferente de países como Itália, Portugal,
Inglaterra e França, a concentração dos casos de letalidade por coronavírus não são
marcadas pelas diferenças de faixa etária. Aqui, o que determina quem vive ou morre
em decorrência das complicações do vírus são fatores socioeconômicos, com um
componente racial muito forte entre os “determinantes de risco”. No início do mês de
maio, o Complexo de Favelas da Maré atingia uma letalidade de 30,8% dos
contaminados, enquanto o bairro do Leblon acumulava uma taxa de 2,4% 13. Há uma
série de fatores que impedem o acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento adequado.
Não é por acaso que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada
doméstica, contaminada pela sua patroa que esteve na Europa pouco antes da pandemia.
Dados apontam que os bairros com mais negros concentram mais mortes que os bairros
com menos negros, em maioria absoluta14. Ainda assim, o Ministério da Saúde responde
que não há informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor, nem o número
de testes a partir dos grupos raciais. É importante marcar, nesse momento, que a
subnotificação é muito forte, e pode ser ainda maior no sistema prisional, que
apresentou nestes meses de pandemia uma série de episódios de rebeliões e motins,
muitos motivadas por dias seguidos com ausência de água, como registrado em 22 de
abril no Presídio Francisco Oliveira Conde, no Acre, resultando 61 pessoas feridas. Sem
uma política efetiva de saúde para esta população, esta será a mais afetada. Como
ressalta o filósofo português José Gil no texto O Medo15, a pandemia não é sobre o
medo da morte, mas sobretudo o medo da morte absurda.

AD e PFM: Você é Conselheiro-presidente do Conselho Regional de Psicologia-Rio de


Janeiro (CRP-RJ) e, representando o Conselho Federal de Psicologia (CFP), compõe o
Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT). Como foi a sua atuação
no CNPCT ao longo da crise sanitária de COVID-19?

PPB: A atuação no CNPCT, no contexto em que o mesmo é presidido pela atual


ministra do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, tem sido muito
difícil. Membros da sociedade civil do CNPCT têm demonstrado preocupação com
posicionamentos da ministra, especialmente após o cancelamento da reunião que
ocorreria nos dias 27 e 28 de abril de 2020, para tratar do aumento da contaminação
pela covid-19 dentro do sistema carcerário, revelando-se como situação de tortura. A
falta de diálogo e a obstrução do trabalho têm se tornado preocupantes durante o
momento de pandemia, mas têm sido a tônica na atual gestão, e não somente na
pandemia. O CNPCT é a instância responsável por avaliar e monitorar junto com o
Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) os espaços de
privação de liberdade no país, prevenindo e denunciando práticas de tortura e de
tratamento cruel, desumano e degradante nesses espaços, os quais compõem o Sistema
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Em que pesem as dificuldades de atuação,
é importante destacar a Nota Pública Conjunta nº1/2020 do Comitê Nacional de
Prevenção e Combate à Tortura, do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à
Tortura e do Conselho Nacional dos Direitos Humanos, emitida no início da pandemia,
que reconhece a relevância da Recomendação 62/2020 do CNJ [Conselho Nacional de
Justiça] e suas medidas de orientação aos tribunais e magistrados competentes da
adoção de medidas preventivas à propagação do novo coronavírus no sistema prisional e
socioeducativo destacando, principalmente, a precariedade e a superlotação dessas
instituições. Ao longo dos meses de distanciamento social o CNPCT tem acompanhado
a efetivação da referida resolução, com números que nos desafiam: das 755.274 pessoas
presas no Brasil, contabilizadas em 30 de abril, passamos a 748.009 em 30 de agosto, o
que revela uma incidência insignificante da recomendação 62 à necessidade de
desencarceramento durante a crise sanitária. E, ainda, a constatação de que foram
realizados 6.908 testes de covid-19, o que representa um total de 7% de pessoas testadas
no sistema.

AD e PFM: Em seu artigo, que está para ser publicado 16, você fala sobre uma decisão
do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), Ofício 864/2020, que contraria as
medidas sanitárias de desencarceramento do CNJ. O que determina o Ofício 864/2020
e por que ele ataca princípios humanitários e diretos das pessoas privadas de
liberdade?

PPB: O Subcomitê das Nações Unidas para Prevenção da Tortura emitiu


recomendações para proteção das pessoas privadas de liberdade durante a pandemia,
apontando medidas que considerem a redução da população carcerária.
Concomitantemente, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos chamou a
atenção para a precária condição das prisões nas Américas, ressaltando os problemas de
superlotação, condições anti-higiênicas e a falta de acesso adequado à saúde. O
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), para a elaboração de suas orientações, considerou
– além da declaração de pandemia da OMS – também a portaria 188/GM/MS, do
Ministério da Saúde, que declarou “estado de Emergência em Saúde Pública de
Importância Nacional”, incentivando a adoção de medidas sanitárias, dado o alto índice
de transmissibilidade do vírus, dirigidas à saúde das pessoas privadas de liberdade e do
agentes públicos e visitantes; além de reforçar o dever do Estado de assegurar
atendimento em saúde para as pessoas privadas de liberdade. Além disto, o CNJ
também considerou a decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] de 2015 na ADPF 17
347, que considerou o sistema penitenciário brasileiro como “estado de coisas
inconstitucional”. Nesta decisão, o STF reconheceu a superlotação e a precariedade das
condições do sistema penitenciário e incentivou a formulação de estratégias que
visassem melhorias processuais e infraestruturais. A referida norma do CNJ recomenda
aos magistrados a adoção de políticas de desencarceramento, nos sistemas prisional e
socioeducativo. Nesse cenário, a ideia indigna levantada pelo DEPEN – departamento
submetido ao Ministério da Justiça e Segurança Pública – foi a de utilizar contêineres
para abrigamento de pessoas presas contaminadas, com suspeita de contaminação
ou que pertençam ao grupo de risco [para Covid-19]. Tal medida foi apresentada no
Ofício nº 864 enviado, em caráter de urgência, ao Presidente do Conselho Nacional de
Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão da execução penal responsável pela
implementação, em todo o território nacional, de políticas criminais e penitenciárias,
bem como a execução de planos nacionais de desenvolvimento quanto às metas e
prioridades da política a ser executada. O Ofício 864/2020, surpreendentemente, não só
considera seu uso temporário, mas também como “legado para as unidades prisionais,
para emprego como alojamentos ou até mesmo para criação de novos espaços de
saúde”. O uso de contêineres já vem sendo criticado e denunciado como forma de grave
violação de toda a estrutura legal e constitucional que ampara os direitos humanos. São
espaços ainda menores que muitas celas, expostos a intenso calor e que degrada, mais
ainda, a dignidade daqueles que são submetidos à privação de liberdade. Uma nota
técnica elaborada pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública do Estado do
Rio de Janeiro e outras 8 instituições, redigida pelo GT Interinstitucional Defesa da
Cidadania, e encaminhado pela Procuradoria-Geral da República (PGR), indica que, ao
contrário do pretendido, essas construções alternativas, objeto de proposta do DEPEN,
aumentariam o risco de uma ampla contaminação em massa. O ofício do DEPEN pede,
especificamente, a suspensão temporária das Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal,
a Resolução nº 09/2011 do CNPCP, qual foi publicada, principalmente, em
consequência do fato de o Governo brasileiro ter sido denunciado no Conselho de
Direitos Humanos [CDH] da ONU, em março de 2010, por uso de contêineres de ferro,
com altas temperaturas e condições precárias no estado do Espírito Santo. A situação foi
considerada crítica pela CDH da ONU e conclamou o Estado brasileiro a agir, sob risco
de quebrar acordos internacionais18. Ao atentar contra a resolução nº 09/2011, o
DEPEN, respaldado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, não
promoveu apenas o uso de contêineres e estruturas metálicas, mas atacou
princípios humanitários pensados e construídos sob amplo e multidisciplinar
debate. Além disto, ao enviar solicitação de suspensão temporária das Diretrizes
Básicas para Arquitetura Penal por meio de ofício em caráter de urgência e direto ao
Presidente do CNPCP, denuncia a elaboração da proposta sem qualquer conhecimento
prévio ou debate público sobre sua necessidade. Inclusive, em nota, o CNJ se
pronunciou sobre o pedido do DEPEN, afirmando que tanto o CNJ quanto o STF
possuem decisão firme sobre a ilegalidade do uso de contêineres e que o pedido revela
que as recomendações preventivas não foram tomadas ou falharam19.

AD e PFM: No artigo, você trabalhou com algumas cartas sobre o adoecimento por
COVID-19 em prisões. Que questões psicológicas que você identificou? Levando em
conta a relação entre segurança pública e políticas públicas de saúde (física e mental)
no país, como você analisa os relatos dessas cartas?

PB: Cartas (de despedida) de pessoas presas têm sido escritas a seus (suas)
companheiros (as) e familiares, as quais concretizam a política de morte que Achilles
Mmembe afirma como uma necropolítica. “Apavorado(a)” é a palavra que se repete em
algumas dessas cartas, deixando evidente o sentimento de abandono daqueles que,
diante das precárias condições a que estão submetidos, não prevêem outro destino senão
a doença, o sofrimento e a morte. Escritos como “Espero que você nunca se esqueça de
mim. Porque aonde eu estiver nunca vou te esquecer”, ou “Eu quero que você saiba que
você foi a melhor mulher do mundo”, ou ainda “Te amo e obrigado por tudo o que você
fez por mim” refletem, pelo uso de verbos pretéritos, o modo como tais pessoas
encontram-se afetadas pelas políticas de morte. E, especificamente em relação à covid-
19: “Minha vida, eu não sei mais o que fazer. Estou há 20 dias com febre. Ela vai e
volta. De vez em quando, dor de cabeça e tosse seca. Não sinto gosto de nada. E nem
cheiro de nada. Estou apavorado. Não sou só eu. Tem vários com esses sintomas, vida”
e ainda: “pede pra minha mãe e pra meu pai fazerem uma corrente de oração bem forte,
pois o negócio está sério”. Outro sintetiza: “Nenhum ser humano se importa com nós” 20.
Uma crise dentro de outras existentes – historicamente – e, mais uma vez, fatores
socioeconômicos, intimamente vinculados a classe-raça-cor, determinam quem vive e
quem morre. Ressalto que a subnotificação da Covid-19 tem produzido realidades
distorcidas, sendo que tais marcadores não têm sido levados em conta pelas estatísticas
e tornam-se operadores das políticas de morte. O mesmo seria dizer que, ao não
reconhecer as especificidades, à medida que deixa faltar – não planeja melhorias, não
investe, não garante as condições dignas de atendimento, de cuidado à saúde, congela
investimentos nas áreas sociais e de saúde e desregulamenta direitos trabalhistas – o
Estado opera ativamente para extermínio das pessoas mais pobres e no aumento da
desigualdade social. O que é o desejo da morte para quem não é autorizada a vida? Uma
crise associada à condição de um Estado suicidário, como apontado por Vladimir
Safatle21, afirma a morte como política de governo das vidas. Vidas para as quais a
liberdade, a dignidade, e o luto, nunca se fazem possível.

AD e PM: Vamos olhar agora para o caso das Casas de Custódia e Tratamento, onde
os internos cumprem as chamadas medidas de segurança. Hoje, não haveria uma
ambiguidade entre o Código Penal e a Lei de Reforma psiquiátrica que, em tese, fecha
tais instituições? Nesse contexto de pandemia, como você vê a situação dessas
instituições?
PPB: A Constituição de 1988 inaugurou no Brasil o estado democrático de direito e,
fundada na dignidade humana, passou a prever que nenhuma pena passará da pessoa
do condenado, o que pressupõe a culpabilidade como condição elementar para a
aplicação de sanções penais. Tem-se, portanto, uma situação jurídica não somente
ambígua, mas contraditória em que, de um lado, a legislação penal prevê a medida de
segurança que, a despeito da ausência de uma definição explícita acerca de sua
natureza jurídica, é tida como uma espécie de sanção penal imposta à pessoa em
sofrimento psíquico, mesmo diante de sua absolvição pelo juiz; ao passo que, de outro
lado e num patamar superior, a Constituição, que somente autoriza a imposição da
pena ao condenado, ou seja, ao réu que tenha capacidade penal e que seja declarado
culpado na sentença. Contudo, mesmo diante da nova ordem constitucional, o
manicômio judiciário (sob o nome de Casas de Custódia e Tratamento) ainda se faz
presente na grande maioria dos estados brasileiros, onde persiste a internação por
força de medida de segurança em ambiente de permanente violação de direitos
humanos. Espaço destinado veladamente à exclusão social, nem de longe o hospital
de custódia e tratamento psiquiátrico se assemelha a uma unidade de saúde, sendo
inapto para promover o tratamento das pessoas para lá encaminhadas pelo Poder
Judiciário. De sua parte, a Lei 10.216/2001, que ficou mais conhecida como Lei
Antimanicomial, veio regular a atenção em saúde mental no país e trouxe regras que
identificam a internação psiquiátrica como um dispositivo de saúde e que, como tal,
deve observar os direitos da pessoa, voltando-se exclusivamente ao interesse de
beneficiar sua saúde. A internação psiquiátrica, nos termos da Lei Antimanicomial,
passa a ser algo absolutamente distinto, portanto, de expedientes de natureza
eminentemente punitiva ou de segurança. Essa mesma lei orienta a elaboração e
implementação de políticas públicas para o atendimento das pessoas acometidas de
transtornos mentais, cujos direitos e proteção devem ser assegurados sem
discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião opção política,
nacionalidade, idade, família, recursos econômicos, grau ou gravidade do transtorno,
ou qualquer outra forma de distinção. Outro ponto de grande importância é a vedação
expressa da internação psiquiátrica em unidades que apresentem características
asilares, o que evidencia a ilegalidade do manicômio judiciário, dentro ou fora da
pandemia, em tempos de Reforma Psiquiátrica.
1
Doutor e pós-doutor em História das Ciências e da Saúde (COC/FIOCRUZ) e professor substituto do Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva (UFRJ), entre julho de 2017 e julho de 2019
2
Doutor em História das Ciências e da Saúde (COC/FIOCRUZ) e professor do Departamento de História da PUC-Rio.
Pesquisador visitante do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlin, no período de outubro de
2019 a fevereiro de 2021.
3
Livro publicado no Brasil pela editora Graal, em 1988.
4
Medida de segurança é aplicada aos crimes em que o réu (ou ré) é considerado(a) inimputável, isto é, não tem consciência
ou responsabilidade pelo ato infracional que cometeu.
5
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/brasil-tem-mais-de-773-mil-encarcerados-maioria-no-regime-
fechado
6
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/08/22/stf-determina-fim-da-superlotacao-em-unidades-socioeducativas-de-
cinco-estados.ghtml
7
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/justica-manda-governo-de-sp-tomar-medias-contra-covid-19-em-
presidios.shtml
8
Doutor em Psicologia e professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Conselheiro-presidente do CRP-RJ e membro da diretoria do CFP (2016-2019). Atualmente, pelo CFP, compõe o Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT).
9
Bicalho, Pedro Paulo; Lima, Claudia Henschel de & Davi, Jessica da Silva. Da crise à pandemia: da letalidade como
política às políticas editoriais de resistência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 72(2): 3-7, 2020.
10
Galindo, María (2020). Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. In Pablo Amadeo (org.) Sopa de Wuhan:
pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias (pp. 119-128). Buenos Aires: Aspo Editorial.
11
https://static.poder360.com.br/2019/12/mercado-de-trabalho-20193T-ipea.pdf
12
Zizek, Slavoj (2020). El coronavirus es un golpe al capitalismo a lo Kill Bill... In Pablo Amadeo (org). Sopa de Wuhan:
pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias (pp. 21-28). Buenos Aires: Aspo Editorial.
13
https://extra.globo.com/noticias/rio/abismo-entre-ricos-pobres-se-reflete-nas-mortes-por-coronavirus-24407597.html
14
https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/
15
https://n-1edicoes.org/001.
16
Costa, Jaqueline Sério da; Silva, Johnny Clayton Fonseca; Brandão, Eric Scapim Cunha & Bicalho, Pedro Paulo Gastalho.
Covid-19 no Sistema Prisional Brasileiro: da indiferença como política à política de morte. Psicologia & Sociedade, no
prelo.
17
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) versa sobre controvérsias constitucionais ou violações
de preceitos, definidos pela Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm
18
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1530490-5598,00-
PROBLEMAS+NO+SISTEMA+CARCERARIO+DO+ESPIRITO+SANTO+SAO+DENUNCIADOS+NA+ONU.html
19
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/21/cnj-critica-possibilidade-de-estruturas-temporarias-para-abrigar-presos-
no-combate-ao-coronavirus.ghtml
20
https://www.geledes.org.br/apavorado-com-o-risco-da-covid-presos-enviam-cartas-de-amor-e-despedida/
21
https://n-1edicoes.org/004

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