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ENTREVISTA
AD e PFM: Em maio deste ano, você assinou, junto com duas coautoras, um editorial
dos Arquivos Brasileiros de Psicologia sobre a pandemia de COVID-19 e a crise de
investimentos em ciência e saúde.9 Nele, vocês citam um relatório da Organização das
Nações Unidas (ONU) e um documento da FIOCRUZ, ambos sobre a atenção
psicossocial. Passados três meses desse editorial, que avaliação você faz sobre a saúde
mental na pandemia?
PPB: Não é por acaso que no Brasil, diferente de países como Itália, Portugal,
Inglaterra e França, a concentração dos casos de letalidade por coronavírus não são
marcadas pelas diferenças de faixa etária. Aqui, o que determina quem vive ou morre
em decorrência das complicações do vírus são fatores socioeconômicos, com um
componente racial muito forte entre os “determinantes de risco”. No início do mês de
maio, o Complexo de Favelas da Maré atingia uma letalidade de 30,8% dos
contaminados, enquanto o bairro do Leblon acumulava uma taxa de 2,4% 13. Há uma
série de fatores que impedem o acesso ao diagnóstico correto e ao tratamento adequado.
Não é por acaso que a primeira morte no Rio de Janeiro foi de uma empregada
doméstica, contaminada pela sua patroa que esteve na Europa pouco antes da pandemia.
Dados apontam que os bairros com mais negros concentram mais mortes que os bairros
com menos negros, em maioria absoluta14. Ainda assim, o Ministério da Saúde responde
que não há informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor, nem o número
de testes a partir dos grupos raciais. É importante marcar, nesse momento, que a
subnotificação é muito forte, e pode ser ainda maior no sistema prisional, que
apresentou nestes meses de pandemia uma série de episódios de rebeliões e motins,
muitos motivadas por dias seguidos com ausência de água, como registrado em 22 de
abril no Presídio Francisco Oliveira Conde, no Acre, resultando 61 pessoas feridas. Sem
uma política efetiva de saúde para esta população, esta será a mais afetada. Como
ressalta o filósofo português José Gil no texto O Medo15, a pandemia não é sobre o
medo da morte, mas sobretudo o medo da morte absurda.
AD e PFM: Em seu artigo, que está para ser publicado 16, você fala sobre uma decisão
do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), Ofício 864/2020, que contraria as
medidas sanitárias de desencarceramento do CNJ. O que determina o Ofício 864/2020
e por que ele ataca princípios humanitários e diretos das pessoas privadas de
liberdade?
AD e PFM: No artigo, você trabalhou com algumas cartas sobre o adoecimento por
COVID-19 em prisões. Que questões psicológicas que você identificou? Levando em
conta a relação entre segurança pública e políticas públicas de saúde (física e mental)
no país, como você analisa os relatos dessas cartas?
PB: Cartas (de despedida) de pessoas presas têm sido escritas a seus (suas)
companheiros (as) e familiares, as quais concretizam a política de morte que Achilles
Mmembe afirma como uma necropolítica. “Apavorado(a)” é a palavra que se repete em
algumas dessas cartas, deixando evidente o sentimento de abandono daqueles que,
diante das precárias condições a que estão submetidos, não prevêem outro destino senão
a doença, o sofrimento e a morte. Escritos como “Espero que você nunca se esqueça de
mim. Porque aonde eu estiver nunca vou te esquecer”, ou “Eu quero que você saiba que
você foi a melhor mulher do mundo”, ou ainda “Te amo e obrigado por tudo o que você
fez por mim” refletem, pelo uso de verbos pretéritos, o modo como tais pessoas
encontram-se afetadas pelas políticas de morte. E, especificamente em relação à covid-
19: “Minha vida, eu não sei mais o que fazer. Estou há 20 dias com febre. Ela vai e
volta. De vez em quando, dor de cabeça e tosse seca. Não sinto gosto de nada. E nem
cheiro de nada. Estou apavorado. Não sou só eu. Tem vários com esses sintomas, vida”
e ainda: “pede pra minha mãe e pra meu pai fazerem uma corrente de oração bem forte,
pois o negócio está sério”. Outro sintetiza: “Nenhum ser humano se importa com nós” 20.
Uma crise dentro de outras existentes – historicamente – e, mais uma vez, fatores
socioeconômicos, intimamente vinculados a classe-raça-cor, determinam quem vive e
quem morre. Ressalto que a subnotificação da Covid-19 tem produzido realidades
distorcidas, sendo que tais marcadores não têm sido levados em conta pelas estatísticas
e tornam-se operadores das políticas de morte. O mesmo seria dizer que, ao não
reconhecer as especificidades, à medida que deixa faltar – não planeja melhorias, não
investe, não garante as condições dignas de atendimento, de cuidado à saúde, congela
investimentos nas áreas sociais e de saúde e desregulamenta direitos trabalhistas – o
Estado opera ativamente para extermínio das pessoas mais pobres e no aumento da
desigualdade social. O que é o desejo da morte para quem não é autorizada a vida? Uma
crise associada à condição de um Estado suicidário, como apontado por Vladimir
Safatle21, afirma a morte como política de governo das vidas. Vidas para as quais a
liberdade, a dignidade, e o luto, nunca se fazem possível.
AD e PM: Vamos olhar agora para o caso das Casas de Custódia e Tratamento, onde
os internos cumprem as chamadas medidas de segurança. Hoje, não haveria uma
ambiguidade entre o Código Penal e a Lei de Reforma psiquiátrica que, em tese, fecha
tais instituições? Nesse contexto de pandemia, como você vê a situação dessas
instituições?
PPB: A Constituição de 1988 inaugurou no Brasil o estado democrático de direito e,
fundada na dignidade humana, passou a prever que nenhuma pena passará da pessoa
do condenado, o que pressupõe a culpabilidade como condição elementar para a
aplicação de sanções penais. Tem-se, portanto, uma situação jurídica não somente
ambígua, mas contraditória em que, de um lado, a legislação penal prevê a medida de
segurança que, a despeito da ausência de uma definição explícita acerca de sua
natureza jurídica, é tida como uma espécie de sanção penal imposta à pessoa em
sofrimento psíquico, mesmo diante de sua absolvição pelo juiz; ao passo que, de outro
lado e num patamar superior, a Constituição, que somente autoriza a imposição da
pena ao condenado, ou seja, ao réu que tenha capacidade penal e que seja declarado
culpado na sentença. Contudo, mesmo diante da nova ordem constitucional, o
manicômio judiciário (sob o nome de Casas de Custódia e Tratamento) ainda se faz
presente na grande maioria dos estados brasileiros, onde persiste a internação por
força de medida de segurança em ambiente de permanente violação de direitos
humanos. Espaço destinado veladamente à exclusão social, nem de longe o hospital
de custódia e tratamento psiquiátrico se assemelha a uma unidade de saúde, sendo
inapto para promover o tratamento das pessoas para lá encaminhadas pelo Poder
Judiciário. De sua parte, a Lei 10.216/2001, que ficou mais conhecida como Lei
Antimanicomial, veio regular a atenção em saúde mental no país e trouxe regras que
identificam a internação psiquiátrica como um dispositivo de saúde e que, como tal,
deve observar os direitos da pessoa, voltando-se exclusivamente ao interesse de
beneficiar sua saúde. A internação psiquiátrica, nos termos da Lei Antimanicomial,
passa a ser algo absolutamente distinto, portanto, de expedientes de natureza
eminentemente punitiva ou de segurança. Essa mesma lei orienta a elaboração e
implementação de políticas públicas para o atendimento das pessoas acometidas de
transtornos mentais, cujos direitos e proteção devem ser assegurados sem
discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião opção política,
nacionalidade, idade, família, recursos econômicos, grau ou gravidade do transtorno,
ou qualquer outra forma de distinção. Outro ponto de grande importância é a vedação
expressa da internação psiquiátrica em unidades que apresentem características
asilares, o que evidencia a ilegalidade do manicômio judiciário, dentro ou fora da
pandemia, em tempos de Reforma Psiquiátrica.
1
Doutor e pós-doutor em História das Ciências e da Saúde (COC/FIOCRUZ) e professor substituto do Instituto de Estudos
em Saúde Coletiva (UFRJ), entre julho de 2017 e julho de 2019
2
Doutor em História das Ciências e da Saúde (COC/FIOCRUZ) e professor do Departamento de História da PUC-Rio.
Pesquisador visitante do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Livre de Berlin, no período de outubro de
2019 a fevereiro de 2021.
3
Livro publicado no Brasil pela editora Graal, em 1988.
4
Medida de segurança é aplicada aos crimes em que o réu (ou ré) é considerado(a) inimputável, isto é, não tem consciência
ou responsabilidade pelo ato infracional que cometeu.
5
https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/brasil-tem-mais-de-773-mil-encarcerados-maioria-no-regime-
fechado
6
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/08/22/stf-determina-fim-da-superlotacao-em-unidades-socioeducativas-de-
cinco-estados.ghtml
7
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/08/justica-manda-governo-de-sp-tomar-medias-contra-covid-19-em-
presidios.shtml
8
Doutor em Psicologia e professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Conselheiro-presidente do CRP-RJ e membro da diretoria do CFP (2016-2019). Atualmente, pelo CFP, compõe o Comitê
Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT).
9
Bicalho, Pedro Paulo; Lima, Claudia Henschel de & Davi, Jessica da Silva. Da crise à pandemia: da letalidade como
política às políticas editoriais de resistência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 72(2): 3-7, 2020.
10
Galindo, María (2020). Desobediencia, por tu culpa voy a sobrevivir. In Pablo Amadeo (org.) Sopa de Wuhan:
pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias (pp. 119-128). Buenos Aires: Aspo Editorial.
11
https://static.poder360.com.br/2019/12/mercado-de-trabalho-20193T-ipea.pdf
12
Zizek, Slavoj (2020). El coronavirus es un golpe al capitalismo a lo Kill Bill... In Pablo Amadeo (org). Sopa de Wuhan:
pensamiento contemporaneo en tiempos de pandemias (pp. 21-28). Buenos Aires: Aspo Editorial.
13
https://extra.globo.com/noticias/rio/abismo-entre-ricos-pobres-se-reflete-nas-mortes-por-coronavirus-24407597.html
14
https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/
15
https://n-1edicoes.org/001.
16
Costa, Jaqueline Sério da; Silva, Johnny Clayton Fonseca; Brandão, Eric Scapim Cunha & Bicalho, Pedro Paulo Gastalho.
Covid-19 no Sistema Prisional Brasileiro: da indiferença como política à política de morte. Psicologia & Sociedade, no
prelo.
17
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) versa sobre controvérsias constitucionais ou violações
de preceitos, definidos pela Lei n° 9.882, de 3 de dezembro de 1999: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9882.htm
18
http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1530490-5598,00-
PROBLEMAS+NO+SISTEMA+CARCERARIO+DO+ESPIRITO+SANTO+SAO+DENUNCIADOS+NA+ONU.html
19
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/21/cnj-critica-possibilidade-de-estruturas-temporarias-para-abrigar-presos-
no-combate-ao-coronavirus.ghtml
20
https://www.geledes.org.br/apavorado-com-o-risco-da-covid-presos-enviam-cartas-de-amor-e-despedida/
21
https://n-1edicoes.org/004