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Disciplina: Teoria Sociológica IV

Discente: Vitória Belmont

Corpos descartáveis: a necropolitica em meio a pandemia e os corpos após o óbito

- INTRODUÇÃO:
Este trabalho consiste em analisar as políticas de morte adotadas pelo governo
Bolsonaro no período de 2020 a 2021, sua ineficiência e como as desigualdades sociais
contribuíram para os altos índices de óbitos no Brasil no período pandêmico do novo corona
vírus(covid-19). A partir do conceito de necropolitica do historiador, filósofo e teórico político,
Achille Mbembe, são introduzidos os conceitos de trauma cultural e das narrativas de
relativação de Alexander Jeffrey, e a partir de Mariana Thorstensen Possas, Andrija Oliveira
Almeida e Karla Matias realizar uma breve introdução a questão da valorização da morte e sua
democratização, justificação e naturalização.

Além disso, possui como objetivo o levantamento de questionamentos e reflexões em


relação às interpretações da realidade social, a conscientização da ausência da manutenção da
vida como direito civil e o acesso a saúde pública que em tese é assegurado pela constituição.
A metodologia adotada foi realizada por meio de entrevista audiovisual a uma ex-funcionária
do memorial do município de Macaé no período de 2020, dados do covidímetro disponibilizado
no site da prefeitura e um story de uma página do Instagram denominada Macaé em foco
controlada por habitantes que tem como intuito denunciar as irregularidades e cobrar melhorias
dos órgãos municipais.

-DESENVOLVIMENTO:
A morte de uns assegura a existência de outros, isso é o que Foucault denominou de
biopoder, um poder exercido tanto em território quanto em corpos. Partindo da perspectiva do
contexto pandêmico onde não há leitos hospitalares para toda a população brasileira, a morte
de uns significa vida para outros, ou ao menos chances contra um vírus que dizimou 376.567
pessoas desde 16 de março de 2020 até 21 de abril de 2021, a morte está presente nesse mundo
de soberania que segundo Mbembe é a capacidade de definir quem são os corpos descartáveis,
os sem importância ou substituíveis, para pensar sobre soberania e o poder que atua sobre esse
corpos é importante defini-los, dar nome a essa discriminação que é tanto colonizadora quanto
racista, a definição de raça está em todos os processos políticos, sempre favorecendo uma em
detrimento de outra.
O poder político se apropria da morte como objeto de gestão, tomando medidas que
definem quem deve morrer, como deve morrer e o que acontece com o corpo após o óbito, a
necropolitica é uma política de morte e de controle, desde a promoção de condições mortíferas
como: a precarização da vida, a passividade que permite a morte (o deixar morrer) e a morte
em si, formando uma população de mortos que mesmo após a morte fornece lucro, o corpo é
aproveitado, explorado e lucrativo até quando está estático, os necrotérios, cemitérios e
funerárias se beneficiam da morte em massa, para o estado deixar morrer significa ter menos
gastos do que fazer viver, o mesmo falhou na sua função de garantir saúde a população, quando
os profissionais da saúde precisam escolher quem vai utilizar os respiradores porque não tem
o suficiente para todos eles estão praticando a necropolitica, optando por fornecer
equipamentos a quem tem mais chances de melhora ou aos que estão em estado mais crítico,
não há a opção de salvar a todos, não por falta de profissionalismo, mas de investimento, 8%
do PIB do Brasil é direcionado ao Sistema Único de Saúde, menos de 4% é para o setor público
e 5,4 para o setor privado, ambos os setores estão superlotados enquanto os hospitais
pertencentes aos militares se encontram com leitos vazios, o descaso estatal não é apenas
incompetência ou um plano que deu errado, mas uma política de morte que está funcionando a
todo vapor.
A morte como entretenimento não é um fator exclusivo do período atual, diariamente a
morte é tratada como um fator natural, elas são apresentadas e justificadas oficialmente como
fator de segurança pública, o governo vem tentando tirar de si a responsabilidade pelas mortes
atribuindo a elas uma realidade imutável onde nada poderia modifica-las, nem mesmo as ações
governamentais de políticas públicas. A grande concentração de mortes segundo Possas,
Almeida e Matias tem o mesmo endereço, estão concentradas nas periferias onde a
desigualdade social é a variável mais importante para determinar a taxa de mortalidade, mesmo
que o vírus possa ser contraído por todas as classes econômicas e sociais, as classes de mais
prestígio possuem acesso a leitos com mais facilidade, podem realizar o distanciamento social
sem se preocupar com o que comer, com as inúmeras contas ou com os medicamentos caso
fique doente.
“A atual pandemia como experimentada no Brasil deixa à mostra, com
especial dramaticidade, as desigualdades sociais, a concentração de renda, a
precarização das condições de trabalho dos mais pobres, além de lançar luz
sobre o processo de desestruturação e subfinanciamento do Sistema Único de
Saúde (SUS) e sobre as consequências concretas desse processo”

(POSSAS; ALMEIDA; MATIAS,2020, p.6)

O auxilio emergencial direcionado a pessoas em situações de vulnerabilidade foi criado


no intuito de dar um suporte para que fosse possível conter os avanços do corona vírus o que
gerou filas de mortos em hospitais e necrotérios e fila de vivos na caixa econômica, mesmo
algo que em tese tinha o intuito de preservar a vida criou obstáculos sociais e econômicos para
a sua obtenção como não possuir celular Android ou iOS, necessários para realizar o cadastro,
aqueles que não possuíam enfrentaram as filas enormes da caixa, expostos ao vírus, ao sol e a
chuva.
A partir da entrevista cedida por uma ex fiscal de urna do memorial de Macaé podemos
identificar as falhas no serviço público municipal, a maioria das famílias não sabem sobre as
gratuidades oferecidas pelo município a vítimas de covid-19 que deveriam ser informados pela
assistente social do hospital, os funcionários do memorial receberam um treinamento precário
de como lidar com a crise sanitária, uma das principais queixas está relacionada a falta de
sensibilidade com o corpo por parte dos coveiros que tratam o corpo como se fosse um objeto,
as mortes se tornaram parte da rotina e fez com que eles perdessem a humanidade. O tratamento
que o morto por covid-19 recebe é padrão nacional, é coberto por dois lençóis, saco plástico e
uma ficha com os dados do paciente, em Macaé a página Macaé em foco compartilhou no story
o manejo de um corpo já embalado, tratado como uma coisa, jogado no caixão de qualquer
jeito, apenas rolou para o caixão que estava um pouco abaixo da maca de modo que não dava
para saber se estava com o rosto para baixo ou para cima. Além disso os rituais de velório são
proibidos, o caixão é fechado e mantido em um bloco contendo três corpos ou no chão no barro
contendo apenas a cruz, o nome e a data do óbito, a família só pode abrir o túmulo após quatro
anos, o que foi um problema do caso de Bruno, um historiador de Macaé que sofria de
obesidade mórbida acompanhada de asma, nos registros de Bruno a causa de sua morte foi
dada como covid-19, mas após vinte e um dias a família recebeu um exame que atestava que a
causa de sua morte foi causada pela asma e ele testava negativo quando veio a óbito, como se
não bastasse esse fatídico erro, ao locomover o caixão o mesmo se partiu e o corpo caiu no
chão aos pés da família, acontece que por bruno ter obesidade mórbida foi necessário juntar
dois caixões para que ele fosse enterrado, os coveiros o transportaram com brutalidade e isso
veio a ocorrer, os corpos no necrotério segundo a funcionária não tem diferença de cor, o
covidímetro do município só informa a idade, o sexo e se possuía comorbidades, a partir desses
dados os habitantes começaram a notar que os dados estavam sendo adulterados e postados
com atrasos, violando a lei 12.527/2011 de acesso à informação.

O sociólogo americano Jeffrey Alexander desenvolveu uma teoria denominada trauma


social, onde um coletivo é submetido a acontecimentos traumáticos que deixam sequelas na
consciência coletiva, fazendo com que isso permaneça na memória dos indivíduos de modo
que o modifique. Quando o trauma social coletivo ocorre há dois níveis, o primeiro é pensar
esse grupo especifico como um coletivo e não de maneira singular, o outro nível diz respeito
aos outros, um nível de empatia onde os não pertencentes as grupo afetado pelo trauma se
sensibiliza com o sofrimento sentido de maneira que passem a defender os mesmos interesses
sociais, trauma é algo que está acontecendo sempre de maneira expansiva e que depende do
contexto cultural e social em que está inserido. Recentemente o mundo teve seus olhos voltados
para os Estados Unidos da América onde ocorreu o assassinato de George Froyd, um homem
negro vítima da violência policial, enquanto estava sendo imobilizado no chão com o peso do
corpo do policial sob o joelho pressionando o pescoço de Floyd contra o chão ele dizia que não
conseguia respirar, o policial Derek Chauvin continuou por 9 minutos sem que houvesse
interferências por parte de seus colegas de trabalho.
Fonte:http://digital.olivesoftware.com/Olive/ODN/MonValleyIndependent/shared/ShowArtic
le.aspx?doc=MVI%2F2020%2F05%2F30&entity=Pc00603&sk=8951664E&mode=image

O assassinato de Floyd motivou protestos e sensibilizou não só os americanos como


diversas nacionalidade, até mesmo o Brasil participou de protestos por meio de redes sociais,
esse caso não só se trata de um trauma cultural como ocorreu juntamente com outro trauma
causado pelo covid-19, as narrativas de relativação estavam situadas tanto no governo Trump
como no governo Bolsonaro que questionaram a gravidade do vírus, um por considerar os EUA
uma potência inabalável e outro por se considerar inabalável, chegando a dizer que era “apenas
uma gripezinha”. Na charge acima temos duas percepções diferentes do que seria injustiça, no
primeiro quadro um homem branco se recusa a usar a máscara por violar os seus direitos civis
e no outro quadro temos George Floyd tendo os seus direitos civis violados por outro, dizendo
que não consegue respirar enquanto tem seu corpo pressionado contra o chão, mas onde
estariam os direitos civis de Floyd? Se ele fosse branco a abordagem seria diferente, enquanto
o homem branco pensa possuir o direito de se transformar em uma máquina de morte que
inconsequentemente dissemina o vírus e deixa um rastro de corpos por onde passa, o direito
civil do outro não foi considerado.

- CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Portanto, é necessário que as políticas públicas sejam elaboradas no contexto
pandêmico visando a manutenção da vida e não como uma política da morte que produz e
escolhe os corpos, pois isso é reduzir uma parcela da população apenas a um corpo, visto como
um objeto e manuseado como se fosse descartável, tratados como se fossem coisas e não de
seres humanos individuais que possuem singularidades, há uma desumanização quando a morte
ocorre em grande escala, ela passa a ser naturalizada e justificada. Quando a necropolitica
ocorre de maneira expansiva como está sendo com a covid-19 que ultrapassa fronteiras
territoriais ela passa a ser noticiada, a questão está em como isso ocorre, no Brasil uma das
maiores emissoras de televisão fez da morte algo lucrativo, o jornal Record TV no dia 20 de
abril de 2021 entre as notícias do dia fez propaganda de um plano funerário, uma oportunidade
perfeita, aterrorizar os telespectadores com os altos índices de óbito para em seguida oferecer
uma garantia caso haja alguma fatalidade. O jogo de narrativas é crucial para determinar como
o país enxerga um determinado fenômeno, a partir de falas do presidente podemos ver que a
gestão política atual carece de maturidade, sensibilidade, humanização e respeito aos corpos
vivos e mortos, valorizando as suas trajetórias e vivências e não apenas o episódio de sua morte,
o morto é culpado até por sua morte, perguntam que circunstâncias o levaram a ser contagiado
e como foi exposto ao vírus, quando o questionamento deveria partir da população aos agentes
públicos sobre o que eles tem feito para solucionar o problema que não se trata apenas de um
caso isolado mas inúmeros casos com a mesma doença, não sendo apenas responsabilidade do
cidadão mas daquele que os governa.

REFERÊNCIAS:

ALEXANDER, JEFFREY; O trauma da praga dobrada: Narrativa e contranarrativa


sobre Covid-19 e Floyd; Revista Dilemas. Reflexões da pandemia 2020. Disponível em:
https://www.reflexpandemia.org/texto-53 . Acesso em 20 de abril de 2021.

- MBEMBE, Achille. “Necropolítica” em: Arte & Ensaios, n. 32; dezembro 2016. Disponível
em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169. Acesso em 18 de abril de
2021.
- POSSAS, Mariana; ALMEIDA, Andrija e Matias, Karla. ‘E daí?‘: Respostas à pandemia e
gestão da morte no Brasil em: Revista Dilemas. Reflexões da pandemia 2020. Disponível em:
https://www.reflexpandemia.org/texto-47. Acesso em 21 de abril de 2021.
Covidímetro. Disponível em: http://www.macae.rj.gov.br/. Acesso em 18 de abril de 2020.

Qual é o gasto diário de saúde do Brasil por habitante? Em: Jornal Estadão 12 de novembro
de 2020. Disponível em: https://summitsaude.estadao.com.br/desafios-no-brasil/qual-e-o-
gasto-diario-de-saude-do-brasil-por-habitante/. Acesso em 20 de abril de 2020.

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