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Submissão de Artigo

Título: A Crise Funerária: O luto dos corpos contaminados.

Autores:
Nome: Evandro Piza Duarte
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Endereço: Colina UnB Bloco E Apto.604, Campus Universitário Darcy Ribeiro –
Asa Norte – Brasilia/DF. CEP: 70.804-105.
Telefone: (61) 98118-2052
E-mail: evandropiza@gmail.com
Relação da produção intelectual: http://lattes.cnpq.br/5003630503816604
Qualificação (bio): Doutor em Direito pela Universidade de Brasília (UnB),
mestre e graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Atualmente, é professor de Processo Penal e Criminologia nos cursos
de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de
Brasília (FD/UnB), além de integrante do Centro de Estudos em Desigualdade
e Discriminação (CEDD) e coordenador do Núcleo de Estudos Maré sobre
Cultura Jurídica e Atlântico Negro. Em 2018, realizou estágio pós-doutoral na
University of Pennsylvania (UPenn), nos Estados Unidos.

Nome: Welliton Caixeta Maciel


CPF: 062.578.576-27
Endereço: SGAN 912 Condomínio Park Ville Bloco F Apto. 06 – Asa Norte –
Brasília/DF. CEP: 70.790-120
Telefone: (61) 98103-0779
E-mail: wellitonmaciel@gmail.com / welliton.maciel@unb.br
Relação da produção intelectual: http://lattes.cnpq.br/8667264334124190
Qualificação (bio): Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB),
com período de estágio doutoral no Centre de recherches Sociologiques sur le
Droit et les Institutions Pénales (CESDIP/CNRS/Ministère de la
Justice/Université de Versailles-Saint-Quentin – UVSQ/Université de Cergy-
Pontoise – UCP) e na École des hautes études en sciences sociales (EHESS),
de Paris; mestre em Antropologia Social (UnB), graduado em Direito (UDF),
Antropologia e Sociologia (UnB). Desde 2015, é professor substituto/voluntário
de Direito Penal e Atualização e Prática do Direito – Antropologia do Direito, na
Faculdade de Direito da UnB.
A Crise Funerária: O luto de corpos contaminados

Evandro Piza Duarte


Welliton Caixeta Maciel

As vítimas fatais da Covid-19 deixam de ser números


(sub)notificados/subestimados e se tornam mais próximas. Todavia, a doença
(e sua gestão) é tão avassaladora que nos priva do direito à liberdade, à livre
circulação, de reunião, à respiração (1) e afeta nossas crenças e rituais de
"passagem entre vida e morte" (2). Logo, ela nos impede de acreditar e confiar
plenamente nos vivos, pois todos nos tornamos potenciais vetores de
propagação do vírus. No mesmo passo, nos retira a possibilidade de chorar os
corpos dos nossos mortos.

No contexto da pandemia, o corpo como centralidade do cuidado e do contágio


tem gerado efeitos paradoxais. Contaminados, os cadáveres continuam sendo
importantes na gestão da vida dos vivos, pois morrer, enquanto matéria ou
essência, só interessa aos que ficam. Estamos aprendendo a isolar o corpo, a
circular com a observância de estratégias para não disseminação, recorrendo a
equipamentos tecnológicos, eletrônicos e digitais.

Com medo da contaminação do próprio corpo, inevitavelmente tropeçamos nos


corpos racionalizados e transformados em estatísticas, antes distantes e agora
tão próximos, corpos que ameaçam e, portanto, são descartados sem sequer
serem chorados e velados. Mas, afinal de contas, por que se preocupar com
esses cadáveres quando, diante do risco iminente de contágio, nem aos peritos
de Institutos Médico Legais, aos agenciadores de serviços funerários e aos
sepultadores e/ou coveiros recomendam-se manuseá-los?

Para muitos, não valem nada, sobretudo àqueles que se ocupam de dar curso
à necropolítica (3) e ignoram os direitos do morto, sua proteção post-mortem
envolvendo os direitos de personalidade – violação aos direitos à honra, à
privacidade e à imagem. Os sujeitos mortos vão sendo esquecidos, com o
apagamento de detalhes importantes da realidade social, de suas histórias,
reduzidos a corpos abjetos, impuros e perigosos.

O modo como lidamos individual e coletivamente com o duplo vida e morte


revela não apenas aspectos metafísicos (ontológicos, teológicos e
suprassensíveis) no plano da filosofia, da história e da cultura, como também
aspectos pragmáticos como a socialização e a sociabilidade dos indivíduos e
seus corpos socialmente marcados, racializados e generizados, circunscritos
de linguagens (4), contextualizados nos mais diversos tipos de sentidos rituais.

Como destacou Alfredo Bosi (5), do enterro dos antepassados emergem


vínculos simbólicos das comunidades humanas e a descoberta da atividade de
plantar. Daí o parentesco entre as palavras culto, cultivo e cultura. Lewis
Munford (6), por sua vez, viu os locais de enterro como os pontos de paragem
das rotas de grupos nômades, origem dos mercados e das cidades. Quase
tudo que sabemos sobre a vida das civilizações decorre do modo como a morte
tem sido (re)significada, falada, trabalhada, comercializada e vivida. A morte,
ela mesma, é uma medida comum de riqueza e poder, expressa nas
possibilidades de poder matar e de não morrer.

Todavia, o desaparecimento da experiência social da morte não nasceu com a


pandemia de Covid-19. A vergonha da morte (e da velhice), como destacou
Norbert Elias (7), acompanha o controle científico das doenças, a emergência
da sociedade de consumo e a crença moderna no futuro. Aos poucos deixamos
de conviver com o cadáver. O defunto fedendo na mesa da sala sai de cena e
surgem os serviços funerários com seus caixões lacrados. O corpo morto
desaparece, mas o corpo vivo é investido de novas dimensões sociais, quer
por meio do registro contínuo de sua presença (a geolocalização de usuários)
quer pelas memórias descartáveis da Internet.

Na crise, a gestão real da morte é feita no cotidiano. A relação entre ocupação


do sistema de saúde, tempo de pandemia e qualidade da morte é bem óbvia.
Leitos ocupados e profissionais cansados resultam em mortes anônimas e
solitárias. A solidão dos moribundos é acompanhada do descarte dos
cadáveres. A massificação do atendimento dos serviços funerários pode ser
percebida pelo número de concursos públicos para coveiros ou pela
necessidade de redesenhar os métodos de aberturas de valas.

Contudo, o que se percebe é a ausência de preocupação com as dimensões


religiosas, éticas e políticas quanto a escutar o moribundo, velar e enterrar os
cadáveres, acolher os familiares e construir memórias, o que, talvez, seja uma
das pistas importantes para entendermos a razão pela qual o número de
mortes aumenta em curva crescente, mas não sensibiliza uma parte da
sociedade brasileira.

Diante disto, resta-nos refletir sobre os mecanismos sociais de (re)produção de


(in)sensibilidades e romper esse estado de letargia política e moral. Quais
seriam os novos instrumentos de gestão dos sentimentos e dispositivos de
moralidade que garantiriam aos familiares e amigos o direito de chorar suas
perdas? Não seria esse um caminho importante na luta sobre as narrativas do
momento presente? Algumas reflexões que interpelam a ação social e política.

Notas:

(1) MBEMBE, Achille. Le droit universel à la respiration. Abril de 2020.


Disponível em: https://aoc.media/opinion/2020/04/05/le-droit-universel-a-la-
respiration/ .

(2) ARIÈS, Philippe. História da morte no ocidente. Tradução Priscila Viana de


Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

(3) MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,


política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.

(4) BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de


identidade. Tradução de Renato Aguiar. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.

(5) BOSI, Alfredo; CAPINHA, Graça. Dialética da colonização. São Paulo:


Companhia das letras, 1992.
(6) MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, desenvolvimento e
perspectivas. Tradução de Neil R. da Silva, v. 2, 1982.

(7) NORBERT, ELIAS. A solidão dos moribundos, seguida de envelhecer e


morrer. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

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