Você está na página 1de 114

O sagrado em tempo de Pandemia: diálogos a partir do campo religioso brasileiro

Coleção Estudos de Religião 06

Marcos Vinicius de Freitas Reis


Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
Organização

Nepan Editora
Rio Branco – Acre
2021
Comitê Científico
Antônio Carlos Sardinha (UNIFAP)
David Júnior de Souza Silva (UNIFAP)
Edile Maria Fracaro Rodrigues (IPFER/PUCPR)
Elaine Costa Honorato (UFAC)
Fábio Py (UENF)
Fernanda Cristina da Encarnação dos Santos (UNIFAP)
Maria Conceição Cordeiro da Silva (UNIFAP)
Manoel Ribeiro de Moraes Junior (UEPA)
Marcos Vinicius de Freitas Reis (UNIFAP)
Rodrigo Oliveira dos Santos (IPFER/PUCSP)
Rosangela da Silva Siqueira (UEA)
Sérgio Rogério Azevedo Junqueira (IPFER)

Esta coleção Estudos de Religião é um diálogo entre pesquisadores da Região Norte e de outras regiões
do país e do exterior. As publicações são o resultado da parceria com o Grupo de Pesquisa Centro
de Estudos de Religião, Religosidades e Politicas Públicas (CEPRES/AP) da Universidade Federal
do Amapá, Instituto de Pesquisa e Formação Educação e Religião (IPFER) e o Instituto Brasileiro
de Diversidade Sexual (IBDSEX); Curso de Graduação em Relações Internacionais – UNIFAP;
Asscoiação Nacional de História / Seção Amapá; Programa de Pós-Graduação em História Social
(PPGH – UNIFAP); Programa de Pós- Graduação Profissional de História.
Editora do Núcleo de Estudos das Culturas Amazônicas e Pan-Amazônicas
www.nepaneditora.com.br | editoranepan@gmail.com

Diretor administrativo: Marcelo Alves Ishii


Conselho Editorial: Agenor Sarraf Pacheco (UFPA), Ana Pizarro (Universidade de Santiago do
Chile), Carlos André Alexandre de Melo (Ufac), Elder Andrade de Paula – (Ufac), Francemilda Lopes
do Nascimento (Ufac), Francielle Maria Modesto Mendes (Ufac), Francisco Bento da Silva (Ufac),
Francisco de Moura Pinheiro (Ufac), Gerson Rodrigues de Albuquerque (Ufac), Hélio Rodrigues da
Rocha (Unir), Hideraldo Lima da Costa (Ufam), João Carlos de Souza Ribeiro (Ufac), Jones Dari
Goettert (UFGD), Leopoldo Bernucci (Universidade da Califórnia), Livia Reis (UFF), Luís Balkar Sá
Peixoto Pinheiro (Ufam), Marcela Orellana (Universidade de Santiago do Chile), Marcello Messina
(UFPB/Ufac), Marcia Paraquett (UFBA), Marcos Vinicius de Freitas Reis (Unifap), Maria Antonieta
Antonacci (PUC-SP), Maria Chavarria (Universidade Nacional Maior de São Marcos, Peru), Maria
Cristina Lobregat (Ifac), Maria Nazaré Cavalcante de Souza (Ufac), Miguel Nenevé (Unir), Raquel
Alves Ishii (Ufac), Sérgio Roberto Gomes Souza (Ufac), Sidney da Silva Lobato (Unifap), Tânia Mara
Rezende Machado (Ufac).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


S129
O sagrado em tempo de Pandemia: diálogos a partir do campo religioso brasileiro / organização
Marcos Vinicius de Freitas Reis, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira. – Rio Branco: Nepan Editora,
2021.
113 p.: il. – (Coleção Estudos de Religião, 06).
Inclui referencias bibliográficas.
ISBN: 978-65-89135-37-1
1. Religião – Estudo e ensino. 2. Epidemias. 3. Religiões. I. Título.
CDD 22. ed. 158.1
Bibliotecária Maria do Socorro de O. Cordeiro – CRB 11/667
Sumário

6 Prefácio
Samuel Correa Duarte

13 Capítulo 1
A covid-19 e a conferência nacional dos bispos do Brasil
Sindemia, biopolítica e tradição sociorreligiosa
Emerson José Sena da Silveira

28 Capítulo 2
Espiritismo e a pandemia: revelação divina para uma
nova etapa espiritual na transição planetária
César Alessandro Sagrillo Figueiredo

45 Capítulo 3
A “Imagem Verdadeira” em tempo de pandemia: a
Seicho-no-Ie do Brasil e a COVID-19
João Paulo P. Silveira

59 Capítulo 4
A Covid-19 e suas interpretações na barquinha
Wladimyr Sena Araújo

75 Capítulo 5
Religiosidades em tempos de pandemia: memórias e
narrativas de homossexuais cristãos
Arielson Teixeira do Carmo
Kássia Cristina Neves de Oliveira

95 Capítulo 6
Religião, representação e política: o discurso da
Ministra Damares e a construção social da realidade bolsonarista
Daniel Ribeiro Ferreira Junior
Gleidson José Monteiro Salheb
Marcos Vinicius de Freitas Reis

113 Sobre os autores


Prefácio

Q uo vadis? Quo tendimus? Como todos sabemos, em fins de 2019 eclodiu a sindemia
do novo coronavírus, que tornaria o globo terrestre uma grande enfermaria. Nes-
se contexto, é natural que nos perguntemos sobre nossos rumos, enquanto sujeitos e cole-
tividades. Para onde vais? Para onde vamos? Por óbvio não há uma resposta unívoca para
essas questões. Mas sabemos que as diversas tradições religiosas têm buscado alternativas
que possam apontar caminho(s). É nessa trilha que se inscreve a presente obra coletiva. Em
seus seis capítulos são suscitados debates sobre modos de agir no mundo a partir do campo
místico-religioso tendo em vista a vigência da sindemia que grassa entre nós.
No primeiro capítulo, de autoria de Emerson José Sena da Silveira, intitulado “A CO-
VID-19 E A CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL: sindemia, biopolítica e
tradição sociorreligiosa” é a tradição católica que se contra mobilizada para o debate. A eclo-
são da pandemia de SARS-CoV-2, vetor do COVID-19, estabeleceu novos parâmetros para
a sociabilidade humana. Os efeitos conexos dessa pandemia trouxeram repercussões eco-
nômicas, políticas e psicológicas. As medidas de proteção individual e isolamento social se
tornaram diretriz para a contenção de uma doença altamente contagiosa.
O catolicismo, na condição de religião global, a despeito das tensões internas entre seg-
mentos progressistas e conservadores, assumiu postura institucional favorável às medidas
sanitárias de contenção da pandemia. O artigo focaliza a dimensão política da pandemia e
o modo como sua disseminação colocou em questão a capacidade de resposta dos aparelhos
estatais e dos regimes democráticos. Nesse sentido, nos primeiros momentos emergiram
discursos inflamados sobre origens e responsabilidades acerca da pandemia, bem como a
busca frenética pela cura inexistente.
No caso brasileiro, a forma errática com que o governo federal respondeu à questão
colocou em rota de colisão estratégias de enfretamento da crise sanitária de municípios,
estados e União – evidenciando a falta de articulação reinante que dificultou a gestão da cri-
se. A presidência optou por uma estratégia diversionista, acentuando o caos como meio de
confundir a opinião pública e esconder a falta de uma estratégia adequada – nesse sentido
as recomendações científicas foram rotineiramente aviltadas. Os prognósticos propalados
pelo governo de que haveria baixa letalidade não se confirmaram. A desarticulação dos es-
forços preventivos, busca tardia de acesso a vacinas e o falso dilema entre proteger vidas ou
empregos ceifou a ambos em larga escala. Característica marcante de uma pandemia agres-
siva como a que assistimos é vitimar os mais vulneráveis – minorias étnicas, idosos, pobres
etc., de modo que leniência do poder público em lidar com a questão acentuou as condições
de injustiça social. A naturalização de uma doença como a COVID-19 para a qual não há tra-
tamento específico corresponde a uma política de morte conjugada como uma sub-reptícia
eugenia.
Nesse contexto de erosão da coesão social, a religião tem papel a cumprir na promoção
da integração social – o problema é que, dadas as condições atípicas da pandemia, a sociabi-
lidade religiosa demanda inovação litúrgica para a qual diversas lideranças não estão prepa-
radas nem dispostas a investir, pressionando para que os contatos face-a-face fossem reto-
mados, a despeito da falta de vacinação. Em nome da liberdade de consciência e de culto se
laborou a defesa do risco vital no contexto religioso, colocando os serviços religiosos como
essenciais e cuja oferta deveria ser mantida a despeito das medidas sanitárias de isolamento
social para contenção da disseminação do vírus.
Como a Igreja Católica e fiéis responderam ao desafio posto pela pandemia? A relação
entre a presença do papado de Roma e a formação do Brasil colonial é umbilical, tendo dei-
xado marcas indeléveis nas relações entre as políticas do Estado e os estatutos do sagrado.
Contudo para entender o atual momento teológico-político da Igreja Católica, é mister dis-
tinguir entre a postura das lideranças clericais mais elevadas, em especial o bispado, em ge-
ral responsivas aos riscos prementes da pandemia, e a postura as lideranças da base clerical
e a miríade de fiéis, mais suscetíveis ao discurso diversionista lançado pelo governo.
É nesse vértice, destacando a posição da CNBB, que nosso autor envida esforços para
caracterizar o modo como a Igreja Católica politizou a pandemia. Pela contraposição entre
os discursos da presidência da república e da CNBB percebe-se de um lado o negacionismo
e de outro a defesa dos protocolos sanitários estabelecidos pelas melhores práticas médicas
– a defesa do SUS e da promoção da saúde como um direito humano básico ganha voz nos
posicionamentos da cúpula da Igreja Católica no Brasil.
No segundo capítulo, de autoria de César Alessandro Sagrillo Figueiredo, intitulado
“Espiritismo e a pandemia: revelação divina para uma nova etapa espiritual na transição
planetária”, é destacada a inovação do espiritismo como prática e fé no contexto brasileiro.
Procura conjugar a mediunidade com a evolução espiritual. O presente artigo envida esfor-
ços para analisar a visão espírita dos eventos relacionados com a pandemia de COVID-19.
A interlocução com os sujeitos em questão se deu por meio das declarações emitidas pela
Federação Espírita do Brasil – FEB.
A recepção do espiritismo no Brasil e sua matização. Originário da França, o espiritis-
mo vive um momento inicial ancorado nas práticas mediúnicas e dos fenômenos parapsíqui-
cos, para somente a seguir atingir a sistematização de suas crenças e práticas, notadamente
com Alan Kardec. Dado o efervescente ambiente acadêmico francês, devemos registrar o
diálogo entre espiritismo e ciência em suas origens francófonas. Interessante notar a inscri-
ção do espiritismo na linha temporal do cristianismo, na condição de revelação, tal como os
mandamentos da velha aliança e os evangelhos da nova aliança, configurando um terceiro
momento da comunicação do sagrado aos homens. Sua chegada ao Brasil atraindo especial
elementos das classes sociais mais elevadas.
Nesse contexto, Bezerra de Menezes será figura de proa na promoção do espiritismo.
Diversamente do caso europeu, em que o espiritismo ganha contornos filosóficos, no Brasil

7
terá de fato as tintas da religião, com princípios de fé e prática, em especial a reencarnação e
a caridade. Não tardaria a difusão do espiritismo por meio de atividade evangelizadora nos
moldes da tradição cristã, ancorada na tríade religião, educação e saúde. Nesse sentido, as
práticas de assistência e cuidado com elementos das camadas sociais mais vulneráveis cria-
ria um ambiente favorável à circulação das ideias espíritas.
Quanto às vertentes e expoentes do espiritismo no Brasil, o autor destaca os nomes
de Chico Xavier, personagem máximo da expressão espírita nacional em seus primórdios,
e Divaldo Franco, como seu continuador, tanto no plano doutrinário quanto da divulgação
do sistema de crenças. Convém notar, como aponta o autor, a forte vinculação imagética de
Chico Xavier com os segmentos pauperizados da sociedade, enfatizando a centralidade da
caridade como regra de fé e prática no contexto espírita.
As relações entre princípios espíritas e o processo saúde-doença não emergiram ime-
diatamente dos escritos de Chico Xavier, mas dos costumes populares nos quais as práticas
de cura já eram usuais, e do catolicismo com a tradição dos milagres, de modo que no espi-
ritismo com matizes brasileiras a busca da evolução espiritual se ajusta à promoção do bem-
-estar físico e mental. A própria casa espírita é vista como espaço do sagrado e do cuidado
com o corpo e a saúde. O processo de adoecimento é explicado pelos hábitos pessoais e pelo
processo evolutivo de seu portador, configurando um carma com o qual a pessoa deve lidar
no decurso de sua elevação espiritual – a matéria corporal, vista como repositório do espíri-
to, em chave similar ao cristianismo, sofre as dores e humores das vidas pregressas por meio
da reencarnação do espírito.
Reelaborações das crenças e práticas espíritas ante o evento da pandemia de COVID-19
tem como fator central a noção de desencarne coletivo, configurando um ajuste em larga
escala do mundo espiritual. Nesse sentido, uma pandemia pode representar uma depuração
em função de usos e abusos pregressos praticados pela coletividade. Em linhas gerais, se tra-
ta de ampliar a visão kármica atribuída correntemente aos indivíduos para a escala coletiva.
A matéria corporal estaria nesse sentido submetida a um plano maior de cariz espiritual, por
um lado, e um evento coletivo como uma pandemia apontaria para os laços que unem a hu-
manidade, na saúde e na espiritualidade. Nesse sentido, a propedêutica passa pela caridade
e a reconciliação do homem com seu meio social e ambiental.
A pandemia e o espiritismo se conectam por meio do processo evolutivo a que a hu-
manidade está sujeita. O próprio planeta estaria em processo de transição de um ambiente
de provas e expiações para um ambiente futuro de regeneração. Desse modo, para o espi-
ritismo, o destino da humanidade e do planeta estão intimamente ligados. Com a política
de distanciamento social empregada como meio de redução da quantidade e velocidade do
contágio por COVID-19, o ato de congregar fisicamente restou prejudicado, levando a um
intenso uso das redes sociais e meios digitais para a propagação da doutrina espírita e oferta
de conforto às pessoas. Registra-se um padrão despolitizado de intervenções midiáticas de
canais e lideranças espírita, focalizando essencialmente expressões de cuidado com a comu-
nidade e os desencarnados. O contexto da pandemia é visto como momento propício para a
necessária prática da caridade, tema incentivado nas lives e eventos de cariz espírita.

8
No terceiro capítulo, de autoria de João Paulo P. Silveira, intitulado “A ‘Imagem Ver-
dadeira’ em tempo de pandemia: a Seicho-no-Ie do Brasil e a COVID-19 temos instigante re-
flexão sobre as respostas produzidas por essa tradição oriental ao advento da pandemia.
Num primeiro momento o texto trata das interlocuções entre os aspectos de fé e prática da
Seicho-no-Ie que se relacionam com a esfera da saúde. Num segundo momento é descrita
e analisada a dinâmica das atividades desse grupo religioso transpostas para o ambiente
virtual em função das medidas de distanciamento social. Por fim, num terceiro momento, o
autor nos leva a refletir sobre os modos de interpretação mística e social da pandemia, bem
como sua relação com a questão ambiental. A percepção de que a humanidade se encontra
em posição vulnerável ante a pandemia e que a resposta exige uma reconciliação com a di-
mensão ecológica são pontos destacados. Devemos pontuar que a Seicho-no-Ie, originada
no Japão, exala seus matizes orientais, sendo uma religião relativamente nova ante outras
tradições. A partir do levantamento de Masaharu Taniguchi e a divulgação de suas revela-
ções, nas quais se encontravam entrelaçados temas como a busca da unidade entre as religi-
ões, o moderno processo de nation building japonês e o ambiente internacional. Mas o grande
veículo de difusão da nova religião foram as práticas terapêuticas e promoção da cura.
Nesse sentido, a doença estaria relacionada ao imanente do mundo natural, enquanto
a saúde se ligaria ao transcendente, para o qual deveríamos tomar consciência por meio do
vitalismo religioso. A percepção de que o plano das ideias comanda a vida é peça fundamen-
tal do sistema de crenças – de modo que a atividade mental seria capaz de moldar a realida-
de. A relação estabelecida com os antepassados tem implicações para a saúde, na medida em
que se percebe uma contiguidade entre vivos e mortos.
O autor relata o modo célere como as instituições religiosas nipônicas responderam à
pandemia, transitando do modo de comunhão presencial para a mediação on-line. Eventos
pregressos de pânico em escala coletiva e afinidade com o discurso científico podem ser
chaves para entender a agilidade da Seicho-no-Ie em reorientar suas práticas com vistas a
manter seu funcionamento em contexto pandêmico. O arcabouço esotérico que permitiu
explicar a pandemia inclui a percepção de um desequilíbrio cósmico, o que demandaria a
reconciliação entre humanidade e seu habitat. Nesse sentido, as redes sociais foram ativa-
mente utilizadas para fins de serviços rituais, estudos doutrinários e comunicação motiva-
cional.
A incursão da Seicho-no-Ie pelo tema da ecoespiritualidade criou uma janela de opor-
tunidades para o diálogo com o momento atual pandêmico. O trato da consciência do lugar
da humanidade no universo posiciona essa religião em condições favoráveis para a media-
ção entre homem e natureza. Destaca-se, nesse caso, as práticas terapêuticas e alimentares
que visam promover a higiene espiritual e orgânica. A ecoespiritualidade permite à Seicho-
-no-Ie dialogar com outras tradições religiosas, notadamente o budismo. Revitalizar as li-
gações do homem com a natureza é tarefa constitutiva da leitmotiv dessa tradição religiosa –
cuidar do mundo, entendido como nossa “casa comum”, ganha sentido e roupagem sagrada
nos ensinamentos – não pode haver saúde para a humanidade se a natureza adoece.
No quarto capítulo, de autoria de Wladimyr Sena Araújo, intitulado “A COVID-19 e
suas interpretações na Barquinha” temos o que poderíamos designar por abordagem nativa

9
para a questão proposta, ao mobilizar sistema de crenças e práticas de religião originada em
solo brasileiro. Partindo da compreensão etimológica do termo pandemia, o autor enfatiza
o aspecto de se tratar de um processo de adoecimento coletivo. Ao longo da história vários
momentos de disseminação de doenças e mortes em larga escala foram registrados.
Nessa linha temporal de desastres sanitários se inscreve a pandemia de COVID-19. A
ruptura com a rotina cotidiana, o isolamento social, os cuidados para minorar a propagação
do vírus, constituem um cenário de exceção que marca irremediavelmente o tempo vivido.
As diversas expressões religiosas se viram atingidas por esse processo, em particular nas
dimensões da comunhão não-mediada e nos rituais típicos de prática coletiva, como ba-
tismos, casamentos, funerais. O autor informa que as religiões no Brasil que empregam
ayahuasca em suas práticas são o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal.
O texto se propõe a discutir o tratamento dado ao tema da pandemia especificamen-
te pela Barquinha, tradição surgida em 1945, por intermédio de Daniel Pereira de Mattos,
quando residente no Acre. A Barquinha tem doutrina de viés escatológico, podendo ser con-
siderada milenarista, na medida em que postula o retorno de Cristo e o fim dos dias. Os
desastres naturais e tragédias seriam indícios de que a humanidade e o mundo estariam em
decadência. O adoecimento seria um sintoma de um processo mais amplo, de cariz espiritu-
al, ligado a transgressões cometidas pelos sujeitos. A ação antrópica sobre o meio ambiente
gera desequilíbrios que produzem o adoecimento do próprio homem.
A dualidade luz e trevas cria um esquema de interpretação da realidade importante
para os adeptos da Barquinha, na medida em que a regra de fé e prática visa iluminar o ser
humano para alcançar o equilíbrio com seu corpo, seu espírito e seu habitat. Os códigos de
comportamento religioso visam limpar a carne e o espírito, criando um ambiente de har-
monia. Nesse sentido, a pandemia de COVID-19 é interpretada como resultante do pecado
coletivo, do somatório de transgressões cometidas pela espécie humana. Preocupação pre-
mente manifesta pelos partícipes da pesquisa realizada consiste no processo de desencarne
dos vitimados pela pandemia, no sentido de que cheguem a lugares de luz no plano astral.
A prática de romarias fluviais com emprego de nau sagrada ilustra esse processo de-
puração com vistas à elevação espiritual. A ritualização do nascer e morrer estão presentes
no uso do chá do daime, na atuação das entidades místicas e na ação dos médiuns, com
implicações para a percepção da saúde e bem-estar como um processo de purificação. O
adoecimento coletivo enseja a reeducação dos indivíduos com o intuito de se alinharem com
o plano espiritual e o mundo natural.
No quinto capítulo, de autoria de Arielson Teixeira do Carmo e Kássia Cristina Ne-
ves de Oliveira, intitulado “Religiosidades em tempos de pandemia: memórias e narrativas
de homossexuais cristãos”, procura-se refletir sobre a pandemia a partir do registro de um
grupo que articula religiosidade cristã e homoafetividade. A célula religiosa que abriga fiéis
LGBTs designada Comunidade Cristã Nova Esperança Internacional (CCNEI). A partir do
diálogo com lideranças da referida comunidade se busca identificar as linhas de compreen-
são e ação tendo em vista o momento pandêmico que vivemos. Ressaltou-se as mudanças
transcorridas antes e durante a pandemia de CODIV-19 com relação às práticas e sociabili-
dade eclesiástica.

10
Qual o entendimento acerca de memórias e narrativas? Os autores partem da noção
de memória coletiva formulada por Halbwachs. Nesse prisma, a memória consiste em um
conjunto de representações sociais partilhadas e (re)construídas ininterruptamente. A lem-
brança é socialmente situada, vinculando seu portador a um determinado contexto sócio-
-histórico. As relações de afeto estabelecidas por meio da sociabilidade informam a memó-
ria – o sentimento de pertencimento cria laços que são registrados como parte integrativa
dos membros de um grupo. A narrativa ganha relevo para a pesquisa em tela pela natureza
do material empírico de referência, composto por entrevistas. Por se tratar de um processo
simultâneo de reflexão e exposição de experiências vividas, a narrativa constitui base im-
portante para identificar representações sociais.
As principais características da CCNEI são descritas pelos autores, apontando para
sua origem em Pelotas-RS no ano de 2015 como ramificação de um projeto estabelecido em
São Paulo em 2004. Integra o que tem sido denominado de movimento de igrejas inclusivas,
com o objeto de abrigar população LGBT que se identifica como praticante do cristianismo.
Convém anotar, como o fazem os autores, que uma igreja dita inclusiva, ainda que voltada
prioritariamente para público LGBT, acolhe membros heterossexuais, não havendo, portan-
to, nenhuma acepção de pessoas por questões sexuais. A razão de ser dessas igrejas consiste
na luta contra a repressão das práticas homoeróticas e homoafetivas em contexto cristão e o
acesso da mística cristã para a população LGBT.
As memórias e narrativas dos entrevistados sobre o grupo antes da pandemia apontam
para um momento positivo, com a perspectiva de crescimento da comunidade e expansão
dos trabalhos. Interessante o registro de reuniões realizadas em espaços públicos com vistas
à promoção de integração e visibilidade. As mudanças que a pandemia de COVID-19 trouxe
indicam a dificuldade em manter a comunhão nos padrões vivenciados pelo grupo anterior-
mente. Do contato físico e não mediado passou-se para a realização de encontros mediados
por aplicativos. Por um lado, essa nova condição interativa oportunizou a participação de
pessoas fora do círculo de convivência dos membros da igreja; por outro lado, fragilizou as
expressões afetivas que somente os encontros presenciais poderiam oportunizar. Mas os
relatos trazidos pelo autor apontam para a manutenção da esperança num momento pós-
-pandêmico em que a comunidade possa crescer e se se instalar em local determinado para
a realização dos serviços religiosos.
No sexto capítulo, que finaliza a presente obra, de autoria de Daniel Ribeiro Ferreira
Junior, Gleidson José Monteiro Salheb e Marcos Vinicius de Freitas Reis, intitulado “Reli-
gião, representação e política: o discurso da Ministra Damares Alves e a construção social
da realidade bolsonarista”. Nesse escrito, os autores se propõem a repercutir os discursos
proferidos pela ministra de Família, Cidadania e Direitos Humanos, Damares Alves, arti-
culando com o contexto da pandemia de COVID-19. Considerada expressão da ala radical
do bolsonarismo, a referida ministra se origina de meio evangélico pentecostal, com o qual
mantém estreita relações e se propõe a defender pautas alinhadas com grupos conservado-
res deste segmento religioso.
A atuação de Damares se orienta para a mobilização das bases bolsonaristas radica-
das em igrejas evangélicas. Muitas vezes tratada como diversionista, a conduta da referida

11
ministra tem orientação ideológica bem definida, na defesa dos interesses a que se vincula
organicamente. Nesse sentido o discurso religioso se articula com a colonialidade do poder,
na medida em que submeter as instâncias do Estado aos interesses e serviços de um grupo
social hegemônico. Desse modo, também a prática discursiva se dirige a um nicho social
delimitado, tratado como base eleitoral. É um discurso constituinte, que visa orientar a in-
terpretação da realidade e direcionar condutas.
Quem fala e de quem estamos falando quando se trata de evangélicos? Os autores pro-
curam responder essas indagações, identificando no plano histórico a incursão dos evangé-
licos no Brasil. É visível o crescimento significativo que a miríade de seitas e igrejas evan-
gélicas tiveram no quesito demográfico nacional, com um correspondente de declínio da
adesão ao catolicismo, apontando para uma mudança no perfil populacional quanto à filia-
ção religiosa cristã.
A expansão das igrejas evangélicas não tardaria a se expressar por meios outros que os
púlpitos dos seus templos – hospitais foram criados, escolas foram implantadas, programas
de rádio e televisão foram deflagrados com vistas à difusão da fé evangélica. Essa busca por
múltiplas expressões levaria à arena política, na qual cada vez mais se observou a inserção
de representantes e lideranças egressos das fileiras evangélicas. A defesa dos interesses cle-
ricais e das pautas ditas conservadoras se tornam o eixo básico em torno do qual giram a
atuação política evangélica. A presença da pastora Damares Alves no governo na condição
de ministra corresponde a uma aliança firmada entre setores evangélicos e o presidente
Bolsonaro ainda durante o processo eleitoral, sendo até o presente momento este segmento
religioso a base de sustentação de seu governo.
No contexto da pandemia, o que se tem observado é a convergência do discurso oficial
do governo e de lideranças evangélicas quanto ao negacionismo e a rejeição dos protocolos
de prevenção e vacinação, marcando um consórcio entre fé e política numa quadra reacio-
nária, na qual a linha discursiva de Damares Alves é marcada pelo diversionismo e a busca
por manter ativas as bases eleitorais que contribuíram decisivamente para a vitória bolsona-
rista em 2018 – são as eleições tratadas como guerra infinita e, para isso, o discurso místico
da luta contra inimigos reais ou imaginários emerge como ferramenta política na busca pela
manutenção do poder.
Esperamos que a partir das reflexões aqui realizadas, novos debates sejam suscitados,
conjugando religião, saúde e outros temas conexos, através dos múltiplos olhares que as
diversas tradições religiosas nos oferecerem. O diálogo interconfessional é tarefa precípua
da produção acadêmica, com vistas à promoção de uma ecologia de saberes sobre nossos
caminhos entre os céus e a terra. Desejamos boa leitura, boa ventura.

Samuel Correa Duarte


Bacharel em Sociologia pela UFMG, Mestre em Ciência Política pela UFMG,
Mestre em Planejamento Territorial pela PUC-Goiás, Mestrando em História
pela Unifap Doutorando em Sociologia pela UECE. Professor Adjunto do
curso de Licenciatura em Ciências Humanas da UFMA Campus Grajaú.

12
Capítulo 1

A covid-19 e a conferência nacional dos


bispos do Brasil Sindemia, biopolítica e
tradição sociorreligiosa

Emerson José Sena da Silveira

N o final de 2019, em dezembro, foi descoberto na China um novo vírus da família co-
rona, o SARS-CoV-21, que provoca a doença Coronavirus Disease-2019 ou COVID-19,
segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Os indivíduos contaminados podem ser
assintomáticos, mas uma grande porcentagem dos casos pode requerer atendimento hos-
pitalar por dificuldade respiratória. Uma parte dos afetados necessita de tratamento de
insuficiência respiratória em unidade de tratamento intensivo (UTI)2 e, uma porcentagem
menor morre (BANDEIRA; CARRANZA, 2020). A doença, altamente contagiosa, se espalhou
mundo afora, impactou centenas de países, provocou e provoca milhares de mortes, desatou
crises político-institucionais, urbano-sanitárias e socioeconômicas, que colocaram na ber-
linda o neoliberalismo como doutrina econômica e modo de vida e pensamento. Além disso,
o vírus incitou cataclismas que sacudiram as dimensões da vida humana, do mercado de
trabalho à alimentação, da sexualidade aos movimentos sociais e políticos, do turismo à saú-
de mental coletiva e individual. Diante do grave quadro, no Brasil e nos mais diversos países
as organizações religiosas oficiais e não-oficiais se posicionaram em apoio ou em oposição
às medidas – de saúde e de economia – mais recomendadas pela OMS e pelos governos que
melhor administraram a pandemia.
O catolicismo enquanto uma religião organizada internacional, global e transnacional,
posicionou-se, ao menos em termos oficiais, a favor das medidas sanitário-sociais-econômi-
cas: o papado de Francisco, o Vaticano e a Santa Sé e, aqui no Brasil, a CNBB (Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil, fundada em 1952). Uma boa parte dos movimentos conser-
vadores e reacionários divergiu e continua a divergir do porta-voz oficial do catolicismo,
critica e se opõe ao papado bergogliano e a atuação institucional do catolicismo brasileiro
(DA SILVEIRA, 2020).

1    Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2.


2    Disponível em: < https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-covid > Acesso em: 11 jan. 2020.
A postura católica oficial sobre a COVID-19 e aos temas conexos (medidas restritivas,
desigualdades sociais), mostra um conflito interno e levou-me a indagar sobre as ações do
catolicismo institucional no espaço público em meio a graves e múltiplas crises. Proponho
uma hipótese qualitativo-exploratória: o avanço do novo coronavírus acentuou linhas de
tensão existentes na Igreja Católica e mostrou que, apesar da disputa entre os diversos seg-
mentos católicos sobre a correta entonação da voz católica na sociedade brasileira, a pre-
sença da CNBB traz peso real e simbólico (DA SILVEIRA, 2020). Para levantar respostas,
procurei alicerce no método qualitativo e nos instrumentos da revisão parcial nas produções
bibliográficas das ciências sociais da religião e do mapeamento dos principais posiciona-
mentos na página eletrônica oficial do órgão máximo do catolicismo brasileiro.3
Na primeira parte deste texto, discuto novas formas de compreensão do vírus, tento
indicar a incapacidade da visão dicotômica natureza/cultura em melhor compreender as
dinâmicas da COVID-19 e lanço mão de novas categorias, como sindemia, um termo da an-
tropologia médica dos anos 1990, que destaca a ligação indissolúvel entre doenças e proble-
mas urbano-socioeconômico-sanitários4 Na segunda parte, exponho brevemente a questão
da institucionalidade católica no Brasil e, em seguida, os posicionamentos oficiais (falas,
mensagens, notas) da CNBB e de seu presidente. Como resultado, aponto a existência de
uma visão menos naturalista-fatalista e mais próxima de uma compreensão político-social
da doença do novo coronavírus, fruto de uma combinação histórica entre a tradição institu-
cional o porta-voz oficial do catolicismo brasileiro e do papado social de Francisco (2013-).5
O vírus não é biológico, mas político
Para superar a antiga dicotomia biologia/natureza versus cultura/sociedade, que nos
atrapalha a visão, o vírus será entendido como uma entidade política e social, pois, ainda
que seja constituído de mecanismos biológicos (um filamento de RNA (Ribonucleic Acid) que
se enrosca nas membranas de células humanas, introduz seu material genético e as obriga
a produzir cópias do vírus infestador). Com acentuada deterioração das instituições repu-
blicanas por conta da extrema-direita neoliberal-anarco-capitalista6 que ganhou as eleições
presidenciais de 2018, a mortandade sindêmica atinge mais as camadas pobres, as negras/
pardas, os indígenas, as classes sociais desassistidas pelas políticas estatais-públicas. Apesar
do bolsovírus, figura fictícia usada por Ghiraldelli (2020), a fusão metafórica entre o vírus
e o presidente, e que explicarei mais adiante, gestores públicos, sobretudo governadores e
prefeitos, adotaram diversas medidas de isolamento/distanciamento, conforme indicações
3   Iniciei o mapeamento de 26 de fevereiro de 2020, data do reconhecimento oficial do primeiro caso, ao dia 05 de janeiro
de 2021. Sobre o primeiro caso confirmado no Brasil: Disponível em: < https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-sau-
de/46435-brasil-confirma-primeiro-caso-de-novo-coronavirus > Acesso em: 2 jul. 2020
4    O termo em sua origem foi inventado pelo antropólogo americano Merrill Singer, da área de antropologia médica.
Disponível em: < https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54493785 > Acesso em: 12 jan. 2020.
5    As datas são referências ao início institucional do papado e da organização.
6    Nos limites deste texto, aponto o neoliberalismo como a doutrina e a prática político-econômico que usa o Estado
para promover a acumulação de mais-valia fora da antiga fábrica capitalista e intervém deliberadamente na economia
para favorecer os setores financeiros e a nova acumulação de capital e promovendo a privatização de serviços públicos, a
reforma administrativa com repasse de serviços à iniciativa privada, a reforma previdenciária e a trabalhista e, do ponto
de vista ideológico, a exaltação da liberdade irresponsável do indivíduo diante de regras coletivas-estatais de proteção
da sociedade e da comunidade (por exemplo, as de saúde, como o uso de máscaras). Para mais, ver Brown (2019) e Ghi-
raldelli (2020; 2020 b)

14
da OMS. O que implicou, e ainda tem implicado, em suspender/restringir/proibir atividades
econômicas, educacionais, religiosas, circulação e aglomerações em espaços públicos.
Desde o início da grave crise sanitário-social-econômica causada pelo coronavírus,
o Presidente Bolsonaro posicionou-se em público minimizou, desprezou ou debochou da
pandemia, das medidas recomendadas pela OMS que foram tomadas por governadores/
prefeitos brasileiros. O presidente pediu o fim da quarentena, promoveu remédios sem
comprovação científica (cloroquina), demitiu dois ministros da saúde (Luiz Mandetta e Nel-
son Teich), promoveu um general (Eduardo Pazuello) e centenas de militares aos comandos
da estrutura federal de saúde, reuniu-se com lideranças evangélicas e católicas reticentes
ou abertamente contrários às medidas sanitárias e socioeconômicas, dificultou o repasse de
verbas públicas ao combate à pandemia, usou pouco a máscara e vetou, por decreto, seu uso
em presídios, comércio e igrejas (CARVALHO, 2020); desdenhou da vacina e da mobilização
para a imunização em massa, participou (e participa), de aglomerações em espaços públicos
com abraços e apertos de mãos ao receber seu “rebanho” às portas do Palácio do Planalto ou
para onde viaja em pequenas inaugurações de obras. Seus apoiadores religiosos – em geral
carismáticos-católicos, católicos-conservadores ou evangélicos pentecostais e neopentecos-
tais – vão ao seu encontro, carregando faixas, quadros e imagens religiosas.
No entanto, a COVID-19 avançou por todo território nacional, de dimensões continen-
tais, onde se distribuem 218 milhões de habitantes, seis regiões metropolitanas com 5 mi-
lhões de moradores ou mais, uma das maiores metrópoles latino-americanas (São Paulo, 12
milhões) e atingiu mais de mil mortes diárias por volta de junho, julho e agosto de 2020. A
mortandade havia arrefecido entre setembro e novembro de 2020, mas, voltou com força e,
quando redijo, dois de janeiro de janeiro de 2021, o Brasil contabiliza 7,7 milhões de casos e
195.725 mortos. Estão fora desta contagem, casos de morte por síndrome aguda respiratória
suspeita e por sérios problemas associados ao impacto da COVID-19 – adiamento de cirur-
gias e tratamentos de enfermidades como cânceres e cardiopatias, devido à sobrecarga do
corpo de saúde (médico, enfermagem, assistentes), do SUS (Sistema Único de Saúde) e da
rede particular (CONGRESSO EM FOCO, 2021). A alta pobreza urbana, as imensas favelas,
os péssimos indicadores sociais-ambientais (IDH, sigla para Human Development Index), no
entanto, fizeram com que a pandemia afetasse mais a população indígenas e da negra (res-
pectivamente, 1% e 43% da população nacional), desempregados ou com ocupação muito
precária e sem proteção trabalhista e sem amparo social (respectivamente, 13% ou e 29%, da
população ativa economicamente, mais ou menos, 13 e 31 milhões).
Uma das mais prestigiadas revistas científicas do mundo moderno-desenvolvido, The
Lancet, se tornou emblemática de profundas mudanças de concepção científica, quando, em
editoriais, ou seja, em palavras-oficiais, teceu no âmbito das crises da COVID-19, críticas
políticas aos governantes, inclusive Bolsonaro7 e referendou estudos médico-biológicos que
reconceituam a pandemia de COVID-19 como sindemia:8 uma sinergia e um amálgama en-
7   Em 09 de maio de 2020, uma das mais prestigiadas revistas cientificas internacionais de infectologia, The Lancet, publi-
cou um editorial extremamente crítico intitulado: COVID-19 in Brazil: “So what?”” Disponível em: < https://www.thelan-
cet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31095-3/fulltext#articleInformation > Acesso em: 03 jul 2020. Em 11
de junho de 2020, essa revista publica um novo editorial intitulado “Political casualties of the COVID-19 pandemic”, e critica
fortemente o presidente. Disponível em: < https://www.thelancet.com/journals/laninf/article/PIIS1473-3099(20)30496-
5/fulltext >Acesso em: 03 jul. 2020.
8    Em 26 de setembro de 2020, a revista lançou um texto intitulado “Offline: COVID-19 is not a pandemic”. Disponível

15
tre biologia, doença, sociopolítica, saúde, economia e cultura (SINGER; CLAIR, 2003). Nes-
sa sinergia, não é possível separar elementos puramente médicos e biológicos, do restante.
Qualquer forma de enfrentamento eficaz das doenças passa por múltiplas políticas públicas
(saúde, economia, saneamento etc.,) coordenadas entre si e com a sociedade civil e os pode-
res estatais (Estado e Munícipio). (SINGER, CLAIR. 2003).
Um trecho traduzido livremente:
A consequência mais importante de ver a COVID-19 como uma sindemia é sublinhar
suas origens sociais. A vulnerabilidade dos cidadãos mais velhos; comunidades étnicas
negras, asiáticas e minoritárias; e trabalhadores-chave, geralmente mal pagos e com
menor proteção de bem-estar, aponta para uma verdade até agora mal reconhecida,
ou seja, que não importa o quão eficaz um tratamento ou uma vacina possam ser, a
busca de uma solução puramente biomédica para a COVID-19 falhará. A menos que
os governos concebam políticas e programas para inverter profundas disparidades,
as nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente seguras [...]. (HORTON, 2020.)9

Os dois movimentos no campo científico evidenciam a importância de se mudar a


compreensão da doença e seus impactos como algo do reino da natureza, o que aumentou
a ideia de fatalismo – a inevitabilidade da morte e da doença – ou de misticismo – a postura
mágico-religiosa, ineficaz e danosa, da cloroquina10 e elixires às rezas e orações. O vírus, seu
combate, cura e controle (da vacina às medidas urbanísticas e socioeconômicas), é sociopo-
lítico, o que alguns chamaram atenção, mas poucos dão ouvidos (GHIRALDELLI, 2020b).
Foucault (2014) e Latour e Woolgar (1997) questionam as divisões entre natureza e cul-
tura e introduzem conceitos fundamentais como biopoder e biopolítica e a produção dos
fatos científicos e a interação entre atores humanos/não-humanos respectivamente. Com
base neles, o vírus pode ser compreendido como o resultado de políticas humanas: não há
vírus biológico, porque todo vírus, quando ocorre na história humana – como bactérias e
doenças, laboratórios e medicinas – é político, socioeconômico, cultural e religioso: nasce
nas cidades, circula entre os seres humanos e se fundem às suas estruturas arquitetônico-
-urbanas, mentais, mercantis e financeiras.
Ghiraldelli (2020) cunhou uma poderosa metáfora, o “bolsovírus”, uma fusão entre
o SARS-CoV-2 e o presidente Bolsonaro. Semelhanças estruturais entre as duas entidades
permitiram um perverso casamento: uma quase vida, reles filamento de RNA, encontrou
no capitão punido por ser um mau militar – segundo os padrões da Ditadura (1964-1985),
a forma de realizar seu “destino’: expandir-se, parasitar e matar organismos vivos. Por sua
vez, o presidente encontrou no vírus a realização de sua biopolítica eugenista-neoliberal:

em: < https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)32000-6/fulltext > Acesso em: 3 jan. 2021.


9    No original: “The most important consequence of seeing COVID-19 as a syndemic is to underline its social origins.
The vulnerability of older citizens; Black, Asian, and minority ethnic communities; and key workers who are commonly
poorly paid with fewer welfare protections points to a truth so far barely acknowledged—namely, that no matter how
effective a treatment or protective a vaccine, the pursuit of a purely biomedical solution to COVID-19 will fail. Unless go-
vernments devise policies and programmes to reverse profound disparities, our societies will never be truly COVID-19
secure. […].” Disponível em: < https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)32000-6/fulltext >
Acesso em: 3 jan. 2021.
10    Que envolve até quem deveria se guiar pelos rigorosos métodos científicos: 10 mil médicos celebraram a cloroquina.
< https://epoca.globo.com/brasil/vencendo-covid-grupo-de-10-mil-medicos-pro-cloroquina-que-se-aproximou-de-bol-
sonaro-com-evento-historico-1-24621400 > Acesso em: 3 jan. 2021.

16
purificar a nação – “Deus acima de todos, Brasil acima de tudo”, lema da campanha eleitoral
e constantemente retomado – fazer emergir os “fortes” (livres) e deixar morrer os “fracos”
(velhos, pobres, negros, índios).11 As frases presidenciais confirmam a visão natural-fatalista
de saúde-doença, herdada do século XIX, levada ao auge pelo regime nazifascista de Hitler
e acomodada ao regime neoliberal-financeiro12:
Quadro 1: Falas presidenciais, casos e mortes por COVID-19 – dados oficiais13
Fala presidencial14 Data Casos Mortes
“O que eu ouvi até o momento, outras gripes mataram mais
11/03/2020 52 0
do que esta”15
“Esse vírus trouxe uma certa histeria”16 19/03/2020 640 7
“Brevemente o povo saberá que foi enganado por esses
governadores e por grande parte da mídia nessa questão do 22/03/2020 1546 25
coronavírus”17
“Você vê o cara pulando em esgoto ali. Ele sai, mergulha e não
26/03/2020 2.915 57
acontece nada com ele” e “O povo quer trabalhar”18
“O Brasil não pode parar” (contra as campanhas/medidas de
28/03/2020 3.904 114
confinamento e restrição de atividades)19
“Todos nós vamos morrer um dia” 29/03/2020 4.256 136
“Tem que enfrentar a chuva, pô. Tem que enfrentar o vírus.
16/04/2020 30.425 1.924
Não adianta se acovardar, ficar dentro de casa.”20
“E daí? Quer que eu faça o que?” 28/04//2020 71.886 5.017
“Mais uma que Jair ganha” (ao comemorar a morte, por
suicídio, de um voluntário na testagem da vacina coronavac 10/11/2020 5.700.044 162.842
em São Paulo)21
“A pressa da vacina não se justifica”22 19/12/2020 7.212.670 186.365
Fonte: Pesquisa Pessoal, 2021

11    Segundo estudo da Faculdade de medicina da UFMG, divulgado em novembro de 2020, morrem mais negros que
brancos. Um trecho: “Eles moram em condições precárias, trabalham em condições precárias, não podem fazer trabalho
remoto e têm que sair de casa para ganhar o pão, pegam transporte público inadequado… Claro que vai impactar mais,
infelizmente, nessa população negra e periférica’, Esclarece o professor Unaí Tupinambás” Disponível em: < https://
www.medicina.ufmg.br/negros-morrem-mais-pela-covid-19/ > Acesso em: 03 jan. 2021.
12    Infelizmente, por questões de espaço, não poderei abordar o quanto parte da população brasileira acolhe e reflete
essas ideologias.
13    A primeira morte reconhecida oficialmente foi dia 12 de março. < https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noti-
cia/2020-06/primeira-morte-por-covid-19-no-brasil-aconteceu-em-12-de-marco > Acesso em: 3 jan. 2021.
14   
15    Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/03/outras-gripes-mataram-mais-do-que-co-
ronavirus-diz-bolsonaro.shtml > Acesso em: 3 jan. 2021.
16    Disponível em: < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/03/relembre-quatro-meses-de-episodios-explosivos-
-da-crise-politica-em-meio-ao-coronavirus.shtml > Acesso em: 3 jan. 2021.
17    Idem, ibidem. Acesso em: 3 jan. 2021.
18    Idem, ibidem. Acesso em: 3 jan. 2021.
19    Idem, ibidem. Acesso em: 3 jan. 2021.
20    Disponível em: < https://oglobo.globo.com/brasil/contrariando-recomendacoes-da-oms-bolsonaro-volta-defender-
-reabertura-de-escolas-24376739 > Acesso em: 3 jan. 2021.
21    Disponível em: < https://congressoemfoco.uol.com.br/saude/bolsonaro-diz-que-ganhou-de-doria-com-suspensao-
-de-vacina-comemora-a-morte-rebate-psdb/ > Acesso em: 3 jan. 2021.
22    Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/12/19/jair-bolsonaro-a-pressa-
-da-vacina-nao-se-justifica.htm > Acesso em: 3 jan. 2021.

17
O pouco de combate à sindemia se deve às intervenções do STF (Supremo Tribunal
Federal) ao garantir autonomia a prefeitos e governadores para impor medidas sanitário-
-econômico-sociais e dispor de vacinas e vacinação; à atuação desesperada de organizações
civis e sociais junto à sociedade em geral/comunidades/favelas e 23 a fraca atuação do Con-
gresso Nacional ao aumentar o valor do auxílio-emergencial e aprovar medidas econômicas
mínimas e insuficientes enviadas pelo Ministério da Economia.
Não é possível explicar esse trágico estado por uma suposta incompetência, falta de
planos ou de reformas, fanatismo ou negacionismo. É preciso trazer como hipótese, uma
mistura letal entre quatro práticas/ideias que no governo bolsonarista vão ao auge: a “imu-
nidade de rebanho” – expor uma população a um vírus e, com o tempo, apesar das mortes,
apostar na imunidade, naturalmente; a visão eugenista (nazista) de purificar a nação (vida
abstrata da pátria cristã promovida e os “fracos” deixados à própria sorte, pois é a suposta
ordem natural);24 a autonomia absoluta do indivíduo e sua (falsa) liberdade para afrontar
medidas restritivas – como o uso de máscaras, a necessidade da vacina – e o neoliberalismo
em andamento desde os anos 1990 (GHIRALDELLI, 2020b).
Todavia, em meio ao cenário caótico,25 algumas lideranças religiosas, católicas, evan-
gélicas e espíritas, se alinharam ao Presidente Jair Bolsonaro, sobretudo quanto à interrup-
ção dos serviços e o fechamento dos templos como colaboração com as medidas restritivas,
a exaltação da cloroquina como remédio e ao falso argumento econômico (“se fechar a eco-
nomia, será pior”). (BANDEIRA; CARRANZA, 2020; SILVA; SILVEIRA, 2020). Em diversas
ocasiões, elites pastorais e elites parlamentares evangélicas e católicas têm defendido pu-
blicamente o fim ou o relaxamento de medidas restritivas, em especial as que limitavam a
frequência a cultos e serviços religiosos.26 (SILVA; SILVEIRA, 2020). Em algumas preleções
pastorais, lideranças religiosas minimizaram a pandemia e criaram um cenário de otimis-
mo em relação ao Governo Federal, sobretudo a partir da ideia de que o Brasil estaria se
tornando mais cristão e de que o presidente Jair Bolsonaro seria um escolhido de Deus para
presidir a nação (BANDEIRA; CARRANZA, 2020).
Os argumentos usados para contestar medidas restritivas foram, o princípio da liber-
dade religiosa/liberdade de expressão, colocado como absoluto ainda que diante de uma
grave emergência de saúde pública, a divulgação de anúncios de curas ou promessas de

23    O impacto da fala presidencial é tão grande que há estudos – da UFABAC - mostrando que luta contra o isolamento
podem ter matado mais os eleitores bolsonaristas, segundo reportagem de Fernando Cazian. Disponível em: < https://
www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/06/falas-de-bolsonaro-contra-isolamento-podem-ter-matado-mais-
-seus-eleitores-aponta-estudo.shtml > Acesso em: 3 jan. 2021.
24    Ficou escandalosamente famosa a frase da assessora do ministro da economia, Paulo Guedes, em maio de 2020: “É
bom que as mortes se concentrem entre os idosos... Isso melhorará nosso desempenho econômico”, afirmou a assessora
de Paulo Guedes, Solange Vieira. A declaração infame foi revelada na última terça-feira (26), dia em que o Brasil comple-
tou mais de 23 mil mortes pelo coronavírus.” Disponível em: < https://www.fenae.org.br/portal/fenae-portal/noticias/
assessora-de-guedes-acha-que-morte-de-idosos-por-coronavirus-e-bom-para-reforma-da-previdencia-8A19A304729E-
25E30172AB2DF2726EDB-00.htm > Acesso em: 02 jan. 2020.
25    O Presidente Bolsonaro, em transmissão online pelo Facebook, ao lado de Mandetta, médico e então ministro da
saúde, anunciou a cloroquina como panaceia curativa. Após, as redes sociais e cultos de muitos líderes evangélicos pas-
saram a repetir as falsas informações passadas ao vivo.
26   Ver a reportagem do Le Monde. Au Brésil, des évangéliques nient la dangerosité du coronavirus. Disponível em: <ht-
tps://marketingeditorare.wixsite.com/ebooks>. Acesso em: 21 jun. 2020.

18
imunização contra o vírus, a ideia de que as igrejas seriam “serviço essencial” com uma tare-
fa espiritual e assistencial e a minimização dos efeitos de medidas mais rigorosas adotadas
por governadores e prefeitos (BANDEIRA; CARRANZA, 2020; SILVA; SILVEIRA, 2020).27
Os argumentos favoráveis às medidas restritivas usados por grupos religiosos passam
pela valorização das ciências, das políticas de saúde públicas pautadas por conhecimento
reflexivo-racional-político, pela busca do equilíbrio entre princípios – sem tornar absolutos
os da liberdade de ir e vir e o de expressão/crença em detrimento do de saúde e educação
para todos – e o seguimento de orientações pastorais de líderes mais afinados com discus-
sões políticas e econômicas que buscam entender e atenuar os múltiplos impactos sociais,
sanitários, econômicos (pobreza e desigualdade de riqueza e raça) acentuados pelo avanço
da COVID-19 (SILVA; SILVEIRA, 2020).
Em meio a sindemia do novo coronavírus e ao pandemônio de conflitos sociais-eco-
nômicos generalizados, os órgãos oficiais do catolicismo,28 reagiram de forma distinta: ou
ocultam/menosprezam ou manifestam preocupação social-religiosa (SILVEIRA, 2020). O
cenário de conflitos em torno do combate a pandemia, acentuou as disputas por uma repre-
sentação ideal do que é o “catolicismo” no espaço público, existentes entre as instâncias de
agrupamento católico (DA SILVEIRA, 2020). Constatei dois tipos de ideias: os grupos mais
conservadores/reacionários são indiferentes ou menosprezam o novo coronavírus, aproxi-
mando-se de governos de extrema-direita/neoliberais e, por outro lado, há os grupos mais
atentos às normas mundiais de saúde, aos vastos impactos sociais-humanos da pandemia,
mantendo distância, portanto, dos governos que desprezam a mortal COVID-19 (DA SIL-
VEIRA, 2020).
A CNBB, no entanto, manifesta concordância com as preocupações papais a respeito
do meio-ambiente, da justiça social, do cuidado com os pobres e indígenas, próximas às da
vertente do catolicismo da justiça e igualdade social, recomenda a adoção das medidas dos
órgãos internacionais de saúde.
A Igreja Católica no Brasil: tendências e conflitos
A presença do catolicismo na esfera político-pública brasileira se institui desde os pro-
cessos de estabelecimento da República (1889) e a Primeira Constituição Republicana (1892)
e acompanham, mais ou menos, os problemas socio-político-econômicos que emergem das
conjunturas nacional e internacional e das mudanças econômicas, políticas, culturais e so-
ciais brasileiras (DIAS, 1996; ROMANO, 1979; SOUZA, 2002).
A relação entre a Igreja Católica e seus organismos internos com o Estado e suas estru-
turas (judiciário, legislativo e executivo), a sociedade e culturas é muito extensa, complexa
e não a aprofundarei aqui. Mas, assinalo que a Igreja Católica atravessou o século XX ator-
27    Não vamos nos aprofundar, mas a COVID-19 provocou um forte choque entre os entes republicanos, a União e os
estados. O Supremo Tribunal Federal, em decisão recente, definiu que ambos os entes possuem autoridade e autonomia
para impor medidas restritivas, propor e implantar políticas de combate.
28    Os que se dizem evangélicos, agrupados sob diversas denominações alcançaram 22% da população brasileira, e,
dentro desses 22%, mais de 15% são pentecostais e neopentecostais. As médias de brasileiros que se declaram católicos
e evangélicos estão de acordo com o último Censo Nacional, realizado em 2010. É preciso, no entanto, prestar atenção
para as disparidades regionais: há regiões, estados e cidades mais católicas e menos católicas, mais ou menos evangé-
licas.

19
mentada por questões colocadas pelas modernas transformações da cultura e da sociedade:
novos modelos de produção econômica, familiares, padrões de moralidade e pensamento.
As tensões entre grupos católicos leigos e hierárquicos com outras esferas de valores e ins-
tituições republicano-estatais implodiram a fronteira entre “dentro” e “fora” e lançaram a
Igreja em novos dilemas. Os processos de ressignificação acentuaram-se com o Concílio
Ecumênico Vaticano II (1962-1965): um extenso leito de controvérsias em plena ebulição por
suas repercussões – internas e externas. Por um período temporal amplo, o Estado Republi-
cano precisou romper com a hegemonia católica, em especial no mundo ibero-latino e euro-
peu (ZANOTTO; CALDEIRA, 2014). As organizações atuais que defendem um catolicismo e
uma Igreja voltados para a ênfase em questões morais e guerras da cultura (campanha an-
tiaborto, contra o casamento gay) podem ser vistas como herdeiras de antigas lutas contra a
modernidade e as suas estruturas laicas (ZANOTTO, 2012).
Do século XX aos começos do XXI, a atuação católica oscilou entre a luta pela presen-
ça na sociedade civil e a luta por influência nos aparelhos estatais e no processo eleitoral
(SALLES; MARIANO, 2019). Frente a tudo isso, em especial, o catolicismo se estruturou em
três frentes que apresento sucintamente: a primeira recuperava inspirações sociais de luta
pela igualdade e justiça social (socialismo cristão, teologia da libertação, comunidades ecle-
siais de base ou CEBs); a segunda reagiu às mudanças socio-político-culturais, valorizou a
centralização do poder papal, o clericalismo e organizações integristas-tradicionalistas-re-
acionárias e lançou-se como ponta de lança no espaço público, estatal e eleitoral; a terceira
frente, ligada às novas formas de experimentação carismática pessoal, forneceu modelos
ligados à sociedade de consumo e espetáculo, conjugou a hiperindividualização com forma-
ção de comunidades de vida e aliança, desembocando em uma mística experimentalista e
em uma atuação moralista, aliada aos grupos reacionários (SILVEIRA, 2018). As três frentes
são representadas paradigmaticamente pela RCC, CEBs/TdL e TFP29, embora existam mais
grupamentos ligados a esses três campos de práticas, ideias e narrativas (SILVEIRA, 2018).
Equilibrando-se em cima, acima e entre essas três forças, está o organismo oficial do catoli-
cismo brasileiro, a CNBB, que reúne os bispos, as dioceses e arquidioceses. Em seu interior,
os prelados católicos refletem as tensões entre essas três frentes que nascem historicamente
entre a década de 1940 e 1960, um tempo em que a eclesiologia e a estrutura administrativa
católica passaram por profundas mudanças: redistribuição do poder entre a hierarquia e os
leigos, modernização litúrgica, racionalizando rituais, devoções e comportamentos, nova
organização interna,
Mas, as ondas mais contemporâneas de populismos, à direita e à esquerda, autocracias
e autoritarismos acentuam-se na Europa e nas Américas diante de um quadro de fragmen-
tação, prevalência de crises ambientais, ampliação da sociedade do consumo, do hiperindi-
vidualismo e do espetáculo que impregnam os modos de vida de classes sociais, religiões e
sociedades. O solapamento de processos formais e institucionais de identidade e delibera-
ção político-legislativo-eleitoral amplia-se e, pelas frestas, os grupos religiosos rearranjam
suas relações com o espaço público e o estatal. No Brasil, a globalização financeira e cultural,

29    Respectivamente: Renovação carismática Católica, Comunidades Eclesiais de Base e Tradição, Família e Proprieda-
de.

20
o avanço neoliberal, a desregulação política e econômica, trouxeram uma crise profunda de
legitimidade ao Estado-Nação e ao contrato social moderno. Em meio a esse contexto, as
disputas sobre o tipo de porta-voz religioso mais autêntico e verdadeiro se tornam acentua-
das, mas, o papel mais poderoso ainda é o da CNBB.
A CNBB e a COVID-19
Surgida nos anos 1950, no bojo das mudanças sociais e religiosas que culminaram com
o Concílio Vaticano II (1962-1965), o grupo organizado de bispos é tomado, por governos civis
e pela sociedade, como a voz oficial da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana) no Brasil e
como voz do catolicismo brasileiro no seio da Sancta Mater Ecclesia. Terceira conferência de
bispos criada no mundo,30 sua composição administrativa é simples: uma presidência, duas
vice-presidências, uma secretaria geral, comissões, pastorais31, comissões, filiais e regionais
(18 unidades)32. Suas tensões internas, entre alas mais e menos conservadoras, refletem as
distintas concepções de religião católica e os papeis que ela deve, idealmente, cumprir na
sociedade e no espaço público (KLAIBER, 1998).
Não nos deteremos sobre sua grande importância, suas querelas públicas contra a Di-
tadura Militar (1964-1985), com o Estado brasileiro, suas relações com outros organismos
católicos, sua famosa Campanha da Fraternidade por ocasião da Semana Santa/Quaresma,
suas lutas em favor dos direitos humanos, camponeses, empregadas domésticas, povos ori-
ginários (BRUNEAU, 1985) e suas mais famosas comissões, CIMI/Conselho Indigenista Mis-
sionário; CPT/Comissão Pastoral da Terra; CEFEP/Centro Nacional de Fé e Política; CBJP/
Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Desde junho de 2019, sob a presidência de Dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo
metropolitano de Belo Horizonte, a organização retomou o alinhamento com o papado de
Francisco, com as preocupações sociais, com os direitos humanos e as minorias indígenas
e o meio-ambiente. Logo foi atacado pelas hostes bolsonaristas cristãs, católica e evangéli-
ca. O blogueiro católico bolsonarista Bernardo Pires Küster, devoto de Olavo de Carvalho,
semiletrado guru da extrema-direita brasileira, acusou o arcebispo de ser petista/dilmista
e seguidor da teologia da libertação e dos supostos desdobramentos como a ideologia de
gênero, segundo uma das acusações que rondou as redes sociais33.
Mas, não pretendo abordar as disputas e relações entre o bolsonarismo, a CNBB, os
grupos católicos mais ou menos conservadores e sociais. No âmbito deste texto, trarei à

30    Para conhecer uma visão interna de sua história: < https://www.cnbb.org.br/a-estrutura-administrativa-e-pastoral-
-da-cnbb-tem-uma-matriz-e-18-unidades-regionais/ > Acesso em: 3 jul. 2020.
31    Algumas pastorais: Pastoral Afro-brasileira; Pastoral da Aids; Pastoral dos Brasileiros no Exterior; Pastoral Carcerá-
ria; Pastoral da Comunicação; Pastoral da Criança; Pastoral Familiar; Pastoral do Menor; Setor de Mobilidade Huma-
na; Pastoral da Mulher Marginalizada; Pastoral dos Nômades; Pastoral Operária; Pastoral dos Pescadores; Pastoral da
Pessoa Idosa; Pastoral do Povo de Rua; Pastoral dos Refugiados; Pastoral Rodoviária; Pastoral da Saúde; Pastoral da
Sobriedade; Pastoral do Surdo; Pastoral do Turismo; Pastoral Universitária; Pastoral Vocacional.
32    As regionais acompanham a divisão geográfico-administrativa do Brasil e reúnem dioceses por afinidade. São estas,
as regionais: Norte 1; Norte 2; Norte 3; Noroeste; Nordeste 1; Nordeste 2; Nordeste 3; Nordeste 4; Nordeste 5; Centro-O-
este; Leste 1; Leste 2; Oeste 1; Oeste 2; Sul 1; Sul 2; Sul 3; Sul 4
33   Disponível em: < https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/06/08/dom-walmor-oliveira-de-azeve-
do-cnbb.htm > Acesso em: 3 jan. 2021.

21
baila os discursos oficiais sobre a sindemia de COVID-19 que estão no portal eletrônico34,
simples, com links que conduzem para sua estruturação interna, atividade, notícias e abas
(palavra oficial, ministérios, catequese, família, liturgia, cultura e educação, ecumenismo,
doutrina, juventude, comunicação, missão, laicato, Amazônia). Identifiquei 14 posições ofi-
ciais (notas, falas e/ou mensagens da instituição e do seu presidente). Os posicionamentos
são os seguintes:
Quadro 2: Posicionamento (Notas/Falas) Oficiais da CNBB e/ou do Presidente35
Data/Ordem Mensagem, Fala e/ou Nota
15/03/2020 Curta mensagem pede observação irrestrita às orientações médico-sanitárias e
Primeiro pede solidariedade
23/04/2020 Nota pedindo o apoio contra o aborto e o fato de o STF ter agendado o julgamento
Segundo da ADI 5581 (liberação do aborto em caso de Zikavírus).
24/04/2020 Fala do presidente da CNBB. Crítica à demissão de Sérgio Moro, a classifica como
Terceiro intervenção política nas instituições que devem ter autonomia e independência.
30/04/2020 Nota sobre a grave crise sanitária e clama por solidariedade e caridade.
Mensagem do Presidente da CNBB aos trabalhadores e trabalhadoras com
30/04/2020
referência Dia do Trabalhador à crise sanitária, ao papel do Estado e à fala do Papa
Quarto
Francisco sobre o trabalho digno e justo para todos.
Nota do presidente da CNBB sobre a MP 910 (regularização fundiária). Reitera
11/05/2020
a posição da Conferência e o dever cristão é defender a vida dos pobres e da
Quinto
natureza.
07/09/2020
Mensagem de Dom Walmor pela solidariedade no Dia da Independência.
Sexto
12/09/2020
Nota sobre projeto de lei que perdoa dívida das igrejas.
Sétima
24/09/2020 Nota contra a devastação dos biomas Cerrado, Pantanal e Amazônia. Críticas ao
Oitavo Governo Federal
05/10/2020 Manifestação do presidente da CNBB, curta e celebrativa, sobre Fratelli Tutti,
Nono Encíclica lançada no dia 4 de outubro pelo Papa Francisco.
28/10/2020 Nota sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 5668 que seria votada
Décimo pelo STF dia 11/11/2020, mas teve a votação adiada
29/10/2020
Nota sobre as eleições municipais de 2020.
Décimo primeiro
25/11/2020 Nota sobre a prática da caridade dentro e fora da igreja,
23/12/2020 Nota técnica sobre artigo da resolução do CONANDA (Conselho Nacional da
Décimo segundo Criança e do Adolescente)
31/12/2020
“Esperançar”. Fala do presidente da CNBB para o novo Ano Novo.
Décimo terceiro
Fonte: Pesquisa Pessoal, 2021.

A primeira nota, curta, aparece vinte dias depois do registro do primeiro caso de CO-
VID-19. Àquela altura dos acontecimentos, o mundo e o Brasil assistiram com pavor, o avan-
ço da pandemia na Europa, especialmente na Itália e na Espanha. As plataformas digitais e
as grandes empresas de comunicação davam grande destaque às medidas restritivas ado-
tadas por governos europeus. As primeiras orientações estavam sendo tomadas no Brasil e
desatou-se o conflito entre a orientação do presidente e seu governo e os entes federados.
34    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/ > Acesso em: 3 jan. 2021.
35    Criei o quadro a partir das informações disponíveis nesta página eletrônica < https://www.cnbb.org.br/category/
palavra-oficial/ > Acesso em: 3 jan. 2021.

22
Um dos trechos da nota: “Recomendamos atenção e consideração irrestrita às orientações
dos especialistas de saúde e autoridades competentes. As indicações sobre o modo como
celebrar a fé cabem aos bispos em cada diocese. Todas as normas visam à proteção das pes-
soas, buscando evitar a contaminação e preservar a vida”36.
Noutro ponto, a CNBB afirma: “Aproveitemos para pensar nos inúmeros outros modos
em que a vida de pessoas, povos e do planeta vem sendo agredida”37. No restante, fala-se da
importância da tecnologia para suprir a distância física, da prática da caridade e solidarie-
dade, mas, seguindo as orientações médico-sanitárias.
Na segunda nota, com sete pontos debateu a questão da permissão ou não do aborto
em casos de má-formação do feto por conta do Zika-Vírus.38 O tom é solene, afirma toda
autoridade, a de ser a voz do catolicismo na sociedade brasileira:
A Presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, porta-voz da Igreja Cató-
lica na sociedade brasileira em sintonia com segmentos, instituições, homens e mu-
lheres de boa vontade, convoca a todos pelo empenho em defesa da vida, contra o abor-
to, e se dirige, publicamente, como o faz em carta pessoal, aos Senhores e Senhoras
Ministros do Supremo Tribunal Federal [...]39

O segundo ponto, crítica dessa nota o STF por marcar o julgamento em meio à crise
sindêmica e conclama que mais importante é “[...] cuidar e amparar muitos pobres e em-
pobrecidos pelo agravamento da crise econômico-financeira” [...]40. Corre aqui uma falsa
oposição entre a legalização do aborto em casos de má-formação do feto e a luta contra
a sindemia se instalou, porém, a CNBB protesta contra o aborto, citando a carta-encíclica
papal de João Paulo II (Evangelium Vitae) e finca pé: “Não compete a nenhuma autoridade
pública reconhecer seletivamente o direito à vida, assegurando-o a alguns e negando-o a
outros [...]”.41 A COVID-19, trazida por viajantes de classe média alta/rica vindo de regiões
europeias contaminadas, alastrou-se muito entre as camadas populares, as áreas precárias
e miseráveis das cidades, entre quilombos, aldeias indígenas, desempregados, subemprega-
dos e trabalhadores precários.
O terceiro posicionamento, uma fala do presidente da CNBB, versa sobre a demissão
do ex-juiz (Sérgio Moro) que, após condenar um ex-presidente brasileiro (Lula da Silva), en-
tão candidato em 2018, aceitou o convite do governo Bolsonaro para ser ministro da justiça.
Não há nenhuma referência à COVID-19.
36    Disponível em: < ,https://www.cnbb.org.br/cnbb-emite-mensagem-na-qual-pede-observacao-irrestrita-as-orienta-
coes-medico-sanitarias/ > Acesso em: 3 jul. 2020.
37    Disponível em: < ,https://www.cnbb.org.br/cnbb-emite-mensagem-na-qual-pede-observacao-irrestrita-as-orienta-
coes-medico-sanitarias/ > Acesso em: 3 jul. 2020.
38    Tratou-se de um julgamento feito pelo STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a constitucionalidade dos pedidos de
aborto de mães que tenham gerados fetos com graves deformidades incapacitantes por toda vida. O Zika-Vírus é mais
de uma grande família de vírus que passou a circular no mundo, e no Brasil, a partir da África. Está relacionado as más
condições de tratamento de água e esgoto, a pobreza absoluta.
39   Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/a-presidencia-da-cnbb-publica-a-nota-em-defesa-da-vida-e-tempo-de-
-cuidar-para-pedir-a-todos-o-empenho-pela-o-defesa-da-vida/ > Acesso em: 3 jul. 2020
40    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/a-presidencia-da-cnbb-publica-a-nota-em-defesa-da-vida-e-tempo-de-
-cuidar-para-pedir-a-todos-o-empenho-pela-o-defesa-da-vida/ > Acesso em: 3 jul. 2020.
41    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/a-presidencia-da-cnbb-publica-a-nota-em-defesa-da-vida-e-tempo-de-
-cuidar-para-pedir-a-todos-o-empenho-pela-o-defesa-da-vida/ > Acesso em: 3 jul. 2020.

23
O quarto posicionamento, uma nota da CNBB, reafirma um documento chamado
“Pacto pela Vida e pelo Brasil”, lançado no dia 07/04/2020, assinado por 156 instituições e
associações civis brasileiras. Diz a nota: “Diante da mais grave crise sanitária dos últimos
tempos, com o sistema de saúde já entrando na fase de colapso, consideramos este momen-
to dificílimo, que clama pelo efetivo exercício da solidariedade e da caridade”42. A nota da faz
referência aos atos de apoiadores do governo que, reunidos massivamente diante do Palá-
cio Presidencial, pediam o fechamento do Congresso Nacional e o STF (Supremo Tribunal
Federal): “É com perplexidade e indignação que assistimos manifestações violentas contra
as medidas de prevenção ao coronavírus”. Continua: “(...) que ouvimos declarações (...) de
desprezo pela vida, por parte de agentes públicos sobre a morte de milhares de brasileiros e
brasileiras contaminados pelo COVID-19” e afirma, “que vimos acontecer eventos atentató-
rios à ordem constitucional, com a participação de autoridades públicas, onde se defendeu o
fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, a volta do AI-5 [...]”43. A
nota é contrária à atuação e às falas presidenciais que defendem a abertura geral do comér-
cio, o relaxamento da quarentena e das medidas restritivas, contra a economia como vida
da nação em detrimento dos mais pobres, dos desassistidos de políticas públicas, enfim, a
biopolítica eugenista e neoliberal do Presidente Bolsovírus:
O cuidado da saúde das pessoas e da economia são fundamentais para a garantia da
vida em sua plenitude e não se opõem. Na perspectiva da Doutrina Social da Igreja, a
economia está a serviço da vida: ‘o princípio da destinação universal dos bens convida
a cultivar uma visão da economia inspirada em valores morais que permitam nunca
perder de vista nem a origem, nem a finalidade de tais bens, de modo a realizar um
mundo equitativo e solidário, em que a formação da riqueza possa assumir uma fun-
ção positiva.’ (CDSI, 174)”.44

A nota critica a divisão entre saúde e cuidado da economia e termina com um apelo à
padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida. Ressalto, em seguida, um quinto posiciona-
mento, a fala do presidente da CNBB45 sobre o Dia do Trabalho, 01 de maio:
O Estado tem o dever de dar prioridade aos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras
em situação de vulnerabilidade. É fundamental que o Estado adote políticas claras na
contramão dos interesses espúrios do lucro e dos privilégios excludentes, vergonho-
sos e injustos. É urgente uma economia que se volte para o desenvolvimento integral,
preservando emprego, renda e trabalho na cidade e no campo. Aí, especialmente, não
permitindo legislações que não favoreçam o desmonte da sobrevivência do camponês.
A você trabalhador que está sofrendo as consequências da crise sanitária e política: sai-
ba que você não está sozinho. [...]. A solidariedade é o grande remédio para um mundo
novo, justo e fraterno. Estamos juntos nessa travessia e sairemos mais forte dela. [...].46
(grifos meus).

42    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/cnbb-conclama-a-sociedade-e-os-responsaveis-pelos-poderes-publicos-


-a-se-unirem-a-prevencao-e-o-combate-a-covid-19/ > Acesso: 4 jul. 2020
43    Referência ao ato mais autoritário, duro e ditatorial tomado pelo regime militar brasileiro em 1968.
44    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/cnbb-conclama-a-sociedade-e-os-responsaveis-pelos-poderes-publicos-
-a-se-unirem-a-prevencao-e-o-combate-a-covid-19/ > Acesso: 4 jul. 2020.
45    Gravado em vídeo no canal da CNBB no Youtube. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=3bSg3w6GI-
qQ&feature=youtu.be > Acesso em: 4 jul. 2020.
46    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/mensagem-do-presidente-da-cnbb-aos-trabalhadores-as-do-brasil-o-

24
A fala dirige-se diretamente ao trabalhador e exige que o Estado priorize os trabalhadores em
situação precária durante a pandemia e que adote políticas públicas amplas e contrárias aos privilé-
gios e “interesses espúrios do lucro”.47 A fala termina com um apelo a São José Operário, patrono da
Igreja e dos trabalhadores, e a uma sociedade justa, fraterna e solidária.
Um sexto posicionamento,48 uma mensagem do arcebispo de Belo Horizonte, faz referências
a Encíclica Laudato Si, do Papa Francisco e crítica a iminente votação, por parte do Congresso Nacio-
nal, de uma legislação federal que trata da regularização, menciona a “[...] singular de crise sanitá-
ria, econômica e política, atravessado pelo Brasil”49 e observa que se trata de “[...] um tema complexo,
que envolve o patrimônio da união, questões ambientais, grilagem de terras e, consequentemente,
a violência no campo, bem como, diversos interesses.”.50 Até o momento, não houve votação desse
projeto de lei.
A este segue-se um sétimo posicionamento, uma fala no Dia da Independência. Reconhece-se
a dor e o luto causado pela COVID-19 e conclama: “Peço a você ‘Amazoniza-te’. É dever de cada bra-
sileiro proteger a Amazônia e lutar pelos direitos dos povos tradicionais do território amazônico”.51
Defende-se o SUS e afirma: “É preciso exigir dos governantes e dos servidores do povo envolver a
sociedade nas instâncias do poder [...] com projetos capazes de gerar emprego e renda, priorizando
audaciosas políticas públicas para superar a desigualdade”.52 Exaltam-se os pobres da terra e o grito
dos excluídos, referência a uma antiga mobilização das pastorais sociais e das comunidades ecle-
siais de base e da teologia da Libertação que ocorre após os desfiles militares de Sete de Setembro
em diversas capitais e cidades brasileiras.
A seguir, há uma oitava posição, muito breve, sem menção à sindemia, sobre o projeto de lei
de perdão das dívidas das igrejas. Diz que não houve participação do órgão católico, se oferece para
discutir um tema complexo, menciona demandas históricas não atendidas e pede discussão séria. O
nono posicionamento retoma críticas à destruição do meio-ambiente e é mais ácido com o Governo
Federal, criticando-o pelos cortes orçamentários e a omissão que beneficiaria grupos de agronegó-
cio e mineração.
A décima posição crítica a ADIN nº 5668. Impetrada pelo PSOL, a ação pedia que o Plano Na-
cional de Educação (PNE) seja reinterpretado para coibir discriminações por gênero, por identida-
de de gênero e por orientação sexual e respeito às identidades das crianças e adolescentes LGBT nas
escolas.53 O ministro Edson Fachin pautou e ela seria votada pelo STF no dia 11 de novembro de 2020,
mas a mobilização que fez convergir a CNBB, grupos cristãos católicos reacionários e conservado-

-momento-e-de-uniao-de-esforcos-publico-e-privado-para-que-ninguem-seja-deixado-para-tras/ > Acesso em: 4 jul.


2020
47    Idem, ibidem. Acesso em: 4 jul. 2020
48   Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/presidente-da-cnbb-emite-nota-sobre-a-discussao-da-mp-910-da-
regularizacao-fundiaria/ > Acesso em: 4 jul. 2020.
49    Idem, ibidem. Acesso em: 03 jan. 2020.
50    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/presidente-da-cnbb-emite-nota-sobre-a-discussao-da-mp-910-da-
regularizacao-fundiaria/ > Acesso em: 4 jul. 2020.
51    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/em-mensagem-para-o-dia-da-patria-dom-walmor-pede-que-a-solidarie-
dade-oriente-os-rumos-do-brasil/ > Acesso em: 03 jan. 2020.
52    Idem, ibidem. Acesso em: 03 jan. 2020.
53    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/eleicoes-2020-cnbb-mensagem/ > Acesso em: 03 jan. 2020.

25
res, frente parlamentar evangélica e evangélicos, fez com que o julgamento fosse adiado. A nota é
ambígua, repudia todo tipo de discriminação, mas é contra a ADIN.
O décimo-primeiro posicionamento da CNBB versa sobre as Eleições Municipais e procura
definir o perfil esperado de políticos dentro da Doutrina Católica, critica o uso eleitoreiro da religião
e destaca a importância de ações eficazes na “saúde, educação, segurança, transporte, assistência
social, moradia, direito à alimentação e proteção da família, entre outros”.54 Menciona-se a encícli-
ca Fratelli Tutti, do Papa Francisco, uma das mais críticas ao neoliberalismo, defende quilombolas
e indígenas, pede economia solidária, critica o feminicídio e defende a vida da concepção à morte
natural.
A décima-segunda posição oficial é uma mensagem que pede caridade na Igreja e no Brasil
no contexto da COVID-1955. Defende-se uma nova economia, justa e solidária, ecoa, mais uma vez,
a encíclica Fratelli Tutti e diz: “Queremos assegurar a vida desde a concepção até a morte natural,
preservar o meio ambiente e trabalhar em defesa das populações vulneráveis, particularmente in-
dígenas e quilombolas. Preocupa-nos o crescimento das várias formas de violência, entre elas, o
feminicídio”.56
A seguir, uma pequena nota técnica sobre um artigo do Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente (Conanda) a respeito das visitas íntimas a adolescentes presos. Critica-se
a tortura e a violação de direitos dos adolescentes presos.57 Por fim, a última posição oficial em 2020
é uma fala do presidente da CNBB. Diz que a dor e a morte, que são passageiras, mas a vida, pela
ressurreição, é maior. Aponta-se a necessidade de mudar a relação com o planeta e com a humani-
dade por meio da solidariedade.58
No exame mais geral das notas, posso traçar um quadro ambivalente para o qual convergem
duas tradições sociorreligiosas, a de luta por justiça social e direitos humanos, e a da moral-reacio-
nária anti-modernista. No caso desta, em meio à sindemia de COVID-19, a CNBB aproxima-se dos
movimentos católicos mais reacionários que são antiaborto e contra as temáticas LGBTQIAs. É o
caso de frases, trechos ou da inteireza dos posicionamentos segundo, décimo, décimo-primeiro e
décimo-terceiro. No caso dos outros posicionamentos, o porta-voz oficial do catolicismo retoma as
tradições de luta em favor de pobres, operários, trabalhadores, indígenas e direitos humanos que
estiveram na sua origem e seguiram sua história, sendo que o Papado de Francisco trouxe a essa
tradição sociorreligiosa, reforço institucional e pastoral. Temos, enfim, um quadro ambivalente,
complexo, mas que retoma a tradição sociorreligiosa dentro da qual nasceu a CNBB, o catolicismo
engajado socialmente.

54    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/eleicoes-2020-cnbb-mensagem/ > Acesso em: 03 jan. 2020.
55    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/em-mensagem-ao-povo-de-deus-cnbb-reforca-a-esperanca-a-caridade-
-e-missao-da-igreja-no-brasil-no-contexto-da-pandemia/ > Acesso em: 03 jan. 2020.
56    Idem, ibidem. Acesso em: 03 jan. 2020.
57    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/presidencia-da-cnbb-divulga-nota-sobre-a-resolucao-do-conanda-que-
-trata-sobre-adolescentes-em-cumprimento-de-medidas-socioeducativas/ > Acesso em: 03 jan. 2020.
58    Disponível em: < https://www.cnbb.org.br/esperancar-e-o-convite-que-o-presidente-da-cnbb-faz-aos-brasileiros-
-neste-novo-ano/ > Acesso em: 03 jan. 2020.

26
Referencias
BANDEIRA, O.; CARRANZA, B. M. Só o Brasil Cristão Salva da COVID-19? Boletim Especial, n. 33, 05 mai. 2020, ANPO-
CS, São Paulo, Ciências Sociais e Coronavírus.
BROWN, W. In the Ruins of Neoliberalism. The Rise of Antidemocratic Politics in the West. New York: Columbia Uni-
versity Press, 2019.
BRUNEAU, T. Church and politics in Brazil: the genesis of change, Journal of Latin American Studies, 17, p. 271-293,
1985.
DA SILVEIRA, E. S. Catholicovid-19 Or Quo Vadis Catholica Ecclesia: The Pandemic Seen in the Catholic Institutional
Field. International Journal of Latin American Religions, v. 4, p. 1-29, 2020.
DIAS, R. Imagens de Ordem: A Doutrina Católica sobre a autoridade no Brasil (1922-1933). São Paulo: Ed. UNESP, 1996.
FOUCAULT, M. Direito de poder e morte sobre a vida. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. A vontade de
saber. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2014, p. 145-175.
GHIRALDELLI JR., P. A república brasileira: de Deodoro a Bolsonaro. São Paulo: CEFA Editorial, 2020a.
GHIRALDELLI JR, P. Pandemia e Pandemônio: o Bolsovírus. In: CABELO, Mariangela; GHIRALDELLI Jr., Paulo. (Org.)
Pandemia e Pandemônio: Ensaios sobre biopolítica no Brasil. São Paulo: CEFA Editorial, 2020b, p. 6-16.
KLAIBER, J. The Church, Dictatorships and Democracy in Latin America. Eugene (Oregon): Wipf & Stock, 1998.LA-
TOUR, B.; WOOLGAR, S. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997.
ROMANO, R. Brasil: Igreja Contra Estado (Crítica ao Populismo Católico). São Paulo: Kayrós, 1979.
SALES, L; MARIANO, R. Ativismo político de grupos religiosos e luta por direitos. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro,
39/2, p. 9-27, ago., 2019.
SINGER, M.; CLAIR, S. Syndemics and public health: reconceptualizing disease in bio-social context. Medical anthropo-
logy quarterly, v. 17, n.4, p. 423–441, 2003
SILVA, E. F.; SILVEIRA, Emerson S. A pandemia de Covid-19 sob a benção de Bolsonaro e Evangélicos: mobilização po-
lítica anti-ciência, saber mágico e pós-verdade. Inter-legere (UFRN), Natal, v. 3, p. 1-28, 2020.
SILVEIRA, E. S. da. Glossolalias, justiça social e báculos episcopais - narrativas míticas entre carismáticos, progressistas
e conservadores. In: SILVEIRA, E. S. da; SAMPAIO, D. S. (ed.). Narrativas Míticas: análise das histórias que as religiões
contam. Petrópolis, Editora Vozes, pp. 25-70, 2018
SOUZA, J.J.V. Círculos Operários: A Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio De Janeiro: Editora UFRJ, 2002
ZANOTTO, G.; CALDEIRA, R. C. Facetas do Tradicionalismo Católico. Revista Brasileira de História das Religiões, São
Paulo, 16, 03-26, 2014.
ZANOTTO, G. TFP. Tradição, Família e Propriedade. As idiossincrasias de um movimento católico no Brasil (1960-1995).
Passo Fundo: Méritos, 2012.

27
Capítulo 2

Espiritismo e a pandemia: revelação divina


para uma nova etapa espiritual na transição
planetária

César Alessandro Sagrillo Figueiredo

O espiritismo é uma religião nova no Brasil, considerando o seu aporte de chegada


no final do século XIX, vindo a se consolidar como modelo de espiritismo à bra-
sileira no século XX. Embora confunda-se, na cultura popular, com as demais religiões me-
diúnicas, difere-se grandemente nos cultos e, sobretudo, no caráter doutrinário formativo,
buscando ser uma religião que prima pela evolução espiritual dos seus adeptos e de cunho
doutrinário eminentemente evangélico, haja vista que se autointitula como a 3º Revelação.
Portanto, seguindo essa trilha refletiremos nesse artigo acerca da convergência entre
doutrina espírita e a pandemia, tendo como objetivo principal analisar a interpretação es-
pírita da Pandemia do Coronavirus e as reelaborações das práticas religiosas nos centros
espíritas, pelo meio do universo virtual à luz da doutrina espírita. A fim de refinar este ar-
tigo, cumpre trilhar o seguinte percurso para um melhor delineamento com um intuito de
abarcar uma religião com milhares de adeptos no Brasil, a partir dos seguintes objetivos
secundários: 1) examinar a gênese do espiritismo brasileiro e a sua chegada no país; 2) es-
tudar as matrizes formativo do modelo basilar espírita brasileira e suas figuras expoentes;
3) verificar as conexões frondosas entre espiritismos e saúde, sobretudo a compreensão das
doenças e dos desencarnes coletivos; e, finalmente, 4) pesquisar as novas práxis espíritas
no momento da Pandemia de COVID-19 e a interpretação acerca da transição planetária,
segundo o prisma da doutrina espírita. Tais percursos são deveram importantes, haja vista
que a noção de saúde, pandemias e desencarnes coletivos estão imbricadamente e muito
bem demarcados em toda a construção da religião espírita desde o seu nascedouro, assim
como faz parte dos discursos dos integrantes da Federação Espírita Brasileira (FEB), es-
pecialmente, nas falas das suas figuras mediúnicas paradigmáticas que possuem destaque
nacional e internacional.
Ainda, para efeitos de consecução desse artigo, cumpre informar que utilizaremos o
referencial bibliográfico já consagrado nas ciências sociais em diálogo profícuo com a pró-
pria literatura espírita, visando construir uma intertextualidade entre as vozes da academia
e dos cânones da literatura espírita federada. Igualmente, torna-se imperativo frisar que
seguiremos os informes oficiais da FEB, única entidade legal autorizado a falar em nome do
segmento espírita brasileiro. Também, conforme explicitado, daremos voz aos dirigentes
espíritas consagrados e nominados pela FEB como seus interlocutores tradicionais no meio
espírita. Tais apontamos e marcação com o selo da FEB são deveras importantes, justamen-
te, para endossar o caráter singular da religião espírita. Mais precisamente, enfatizando a
distinção de possíveis comparações com outras religiões mediúnicas que não possua, de
fato, nenhuma vínculo com o espiritismo e que, no senso comum, podem ter alguma rein-
terpretação ou aproximação errônea por parte do público leigo, por exemplo, comparações
com a afro-religião, assim como qualquer outra denominação que se intitula como espiritu-
alista, New Age e seus congêneres.
Quanto ao percurso de construção desse artigo, trabalharemos através da metodologia
qualitativa, visando uma revisão bibliográfica e histórica sobre o tema, bem como utilizando
como técnicas de pesquisa a observação participante (universo virtual) e as entrevistas aber-
tas semiestruturadas. Temos como resultado de pesquisa, que em face de todos as situações
adversas causando pela pandemia, focando a seara espírita e seus adeptos, esse período atu-
al é visto com um momento de regeneração do planeta Terra, consequentemente, dos seus
fiéis, todos trilhando conjuntamente os desígnios que fora revelado na bibliografia básica
Kardecista no século XIX e literatura espírita brasileira do século XX.
Percurso do espiritismo e a chegada no Brasil
O espiritismo nasceu em meados do século XIX, na França, fruto de todo o trabalho
que vinha sendo feito nos estudos sobre mediunidade, manifestações espirituais e outros
fenômenos parapsíquicos (LAPLANTINE & AUBRÉE 1990). Destaque que neste período es-
sas manifestações de cunho mediúnico, melhor dito, comunicação entre os dois mundos
material e imaterial tornaram-se modismo nos salões da grande elite e intelectualidade pa-
risiense. Ou seja, nesse momento ainda as manifestações espirituais não tinham nenhuma
sistematização e tampouco arcabouço religiosos, sendo, portanto, meros instrumentos para
divertimento nesse período em Paris.
Em face dos sucessivos rumores e buscando uma cientificidade acerca dos fatos que
ocorriam com grande frequência, haja vista que tornavam-se espetáculos públicos, alguns
pesquisadores decidiram se debruçar sobre os fenômenos mediúnicos: alguns sem sucesso,
uma vez que muitos queriam apenas provar que esses fenômenos eram fraudes. Contudo,
nesse momento emerge a figura do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail, um eminente
pesquisador que decide através de recursos de pesquisa investigar as manifestações espiri-
tuais. Baseando-se num processo de pergunta e respostas, bem como de observação parti-
cipante dos fenômenos, constatou, por conseguinte, a materialidade dos fatos e não uma
fraude.
Dando curso investigativo acerca dos casos estudados, portanto, percebeu que havia
um roteiro definido de respostas, igualmente, de seres espirituais comunicantes que se fa-
ziam manifestar, havendo, por conseguinte, uma narrativa e um mesmo percurso espiritu-
al. Nesse cenário, constatou que aquele conjunto de manifestações espirituais eram os pri-

29
meiros indícios de comunicação e materialidade do mundo espiritual. Após essa contatação,
o autor procurou sistematizar essas perguntas e respostas, originando, consequentemente,
uma primeira publicação aprofundada e com rigor científico, bem com fundamentalmente
religiosa sobre o tema, seria “O livro dos Espíritos”, em 1857.
No rol das obras editadas, a partir do primeiro livro, deu origem a mais 4 livros, logo,
esses 5 livros vieram a tornar-se as obras básicas do espiritismo, também denominado pen-
tateuco da doutrina religiosa, quais sejam: 1) O livros dos Espíritos, em 1857 sobre os princí-
pios da doutrina; 2) O Livro dos Médiuns, em 1861, sendo Guia dos Médiuns e dos Evocadores;
3) O Evangelho Segundo Espiritismo, em 1864, que seria uma reinterpretação da Bíblia, sobre-
tudo do Novo Testamento, segundo o prisma explicativo doutrinário da nova religião; 4) O
Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, em agosto de 1865; e, 5) A Gênese,
os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo, visando enfocar a criação do universo, em 1868.
A partir da consecução dessas obras sistematizadas o espiritismo começou a figurar como
uma religião, ainda na França, primando essa nova religião através da doutrina espírita a
partir dos estudos sistematizados de Alan Kardec, pseudônimo usado por Hipólite Denizer
Rivail a fim de evitar possíveis perseguições no âmbito profissional.
Justamente por assinar as obras com o pseudônimo de Alan Kardec, por conseguin-
te, as obras também passaram a serem chamadas de pentateuco kardecista. Porém, muitas
vezes e erroneamente, os fiéis do espiritismo são denominados de kardecistas, não sendo,
obviamente, aceita essa denominação pela FEB, haja vista que de acordo com os pressupos-
tos da religião está a negação do culto a personalidades, a divindades, a santos, etc, logo, a
religião é espírita e não de Kardec.
Através do estudo das obras básicas, o espiritismo desde o seu nascedouro fora consi-
derado, pelos seus adeptos, a 3º Revelação, sendo a 1º Revelação os 10 mandamentos conti-
dos no Velho Testamento da Bíblia, a 2º o Evangelho de Jesus Cristo contidos no Novo Tes-
tamento da Bíblia. Realçamos que essa 3º Revelação prometia trazer o Consolador Prometido
através das obras básicas de Alan Kardec. Ou seja, o Consolador Prometido seria a própria
doutrina espírita revelada naquele percurso da humanidade, a fim de trazer os seres huma-
nos para junto, novamente, do evangelho de Jesus Cristo, justamente a partir da (re)visão do
espiritismo acerca da bíblia e da figura dos expoentes do catolicismo. A partir desse percur-
so inicial e primando pela laicidade do Estado, consequentemente, a religião espírita passou
a ter uma moldura e feição própria, se espalhando em vários lugares do mundo a partir da
emergência francesa e dos estudos iniciais realizados por Alan Kardec, em conjunto com a
sua equipe.
O espiritismo no Brasil chega na sequência dos acontecimentos europeus, quase que
simultaneamente com o seu nascimento na Europa. Ao chegar ao país, contudo, encontrou
um terreno extremamente inóspito, haja vista que a religião oficial brasileira era o cato-
licismo, portanto, fazendo com que os seus fiéis tivessem muitas dificuldades para o seu
exercício religioso (GIUMBELLI, 1997). Não obstante, foram criando paulatinamente gru-
pos de estudo religiosos espíritas nas grandes cidades, assim como começaram a ocorrer a
construção de jornais e editar as primeiras comunicações tipográficas de difusão espírita.
Torna-se relevante enfatizar, ainda, que nesse momento a religião espírita no Brasil tinha

30
uma influência muito limitada e não diferia muito o perfil dos adeptos na viragem do século
XIX para o XX: branco, eruditos e da elite.
Esse grupo inicial buscava, também, em seu cerne, ser um contraponto ao perfil reli-
gioso dominante no Brasil materializado pelo catolicismo, consequentemente, que fizesse
frente ao status quo imposto pela aristocracia imperial brasileira, instituição que colocava o
catolicismo como religião oficial nacional. Nesse cenário em disputa, ainda um tanto opres-
sor, é que surge a imagem dos primeiros grandes próceres do espiritismo brasileiro, dando,
por conseguinte a coloração do modelo espírita no Brasil, entre esses se destaca o médico e
político Bezerra de Menezes (1831-1900). Evidenciamos essa figura, tanto pela importância
que ele possuiu para a difusão do espiritismo brasileiro quanto pelo modelo/ethos de ser es-
pírita, mas acima de tudo pelo papel político que envergou para a construção e legitimação
social da religião no Brasil (GIUMBELLI, 2008).
Destacamos, ainda, que esse modelo edificado estruturante almejava a ampliação para
além do espectro europeu, que primava muito pelo espiritismo como filosofia e ciência, nes-
se cenário no Brasil, esse novo espiritismo à brasileira começava a ser impregnado por um
perfil de espiritismo associado à religião com um forte pendor evangelizador, assim como
pelas práticas das curas de doenças e auxílio aos mais necessitados. Nesse gradiente, então,
enfatizamos que os primeiros adeptos do espiritismo no Brasil, buscavam essa forte asso-
ciação com a religião, primando essa ligação sob dois aspectos: 1) a caridade como força de
se fazer a práxis espírita; e, 2) a forte vinculação com um processo evangelístico calcado na
obra religiosa, especialmente com a difusão da prática do Evangelho no Lar1. Em síntese,
esses dois percursos trilhados caiam no gosto da população que veio a ser fiel do espiritis-
mo, uma vez que a nova religião tornava-se de fácil assimilação em virtude da forte herança
religiosa católica no Brasil. Também, é importante destacar que o espiritismo passa a entrar
numa seara em que o Estado era ineficiente: a caridade, o assistencialismo, a educação e a
saúde, logo, serviam de esteio e lastro para a expansão da nova denominação religiosa junto
ao atendimento dos mais necessitados. Segundo Lewgoy:
A antiga apresentação do Kardecismo no Brasil, antes de Chico Xavier, combinava o
teor moral da doutrina mais a popularidade oriunda do receitismo mediúnico (...). Ou
seja, a elite letrada atendia aos pobres, que não tinham um papel destacado na religião,
mas em virtude da disseminada linguagem dos espíritos, interessava-se ativamente
por ele. (IDEM, 2000, p. 175)

Diferindo, mais uma vez, do perfil do espiritismo europeu, no país o percurso religioso
foi se consagrando e entrando onde os tentáculos do Estados tinha nula penetração, ou mes-
mo não interesse, conforme realçado, dado suporte para insumos básicos na vida dos mais
carentes. Convém, ainda, realçar que no Brasil o espiritismo nasce com esse tripé: religião,
escola e hospital. Melhor explicando, é 1) religião, pois cuida do espírito e do culto evange-
lizador dos crentes na doutrina; 2) é escola, visto que pretende cuidar do aperfeiçoamento

1    Leituras “ao acaso” do livro Evangelho Segundo o Espiritismo, sendo conduzido no lar de cada participante/família espí-
rita, seguindo um rito de oração e interpretação da passagem do livro. A ênfase entre aspas do “ao caso”, é em virtude
que, segundo os espíritas, a sessão realizada no lar também é conduzida por esferas superiores do mundo espiritual.

31
moral do indivíduo através das obras espíritas; e, finalmente, 3) é um hospital2, uma vez que
visa o cuidado de todos os enfermos, sejam males espirituais ou físicos.
Assim, através desse tripé, a doutrina venho a se consolidar com muito vagar do final
do século XIX até meados do século XX, baseando fortemente numa cultura letrada, alta-
mente erudita e bibliográfica, mantendo esse perfil de adeptos da doutrina espírita (GIUM-
BELLI, 1997). Realçamos que, mesmo com abruptas transformações ocorridas no início do
século XX; não obstante, pouca coisa mudaria na doutrina espírita, mantendo esses livros
básico enunciados como o pilar da doutrina e dando o norte de consecução da práxis nos di-
versos centros espíritas que foram se formando em todo o Brasil. Nesse cenário, o que torna
importante depreender é o forte aspectos doutrinário da cultura espírita, bem como o teor
altamente evangelizador pregando uma insígnia de 3º revelação divina e mística no seio do
cristianismo.
Os modelos basilares do espiritismo brasileiro
Conforme exposto, as matrizes do ser espírita já estavam enraizadas, mas definitiva-
mente foram consolidados com a figura de dois expoentes do espiritismo no século XX,
através das figuras de Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier (1912-2002) e Divaldo Fran-
co, nascido em 1927. Podemos dizer que esses dois personagens são as figuras basilares do
espiritismo brasileiro, sobretudo a figura do Chico Xavier, justificamos a ênfase nesses dois
personagens pelo fato da propaganda que fizeram do espiritismo, especialmente pela pro-
dução bibliográfica difundido a doutrina espírita na cultura brasileira (LEWGOY, 2000).
A figura paradigmática de Chico Xavier é o que está mais fortemente inserida no ima-
ginário coletivo por alguns motivos: 1) manifestações mediúnicas públicas no início, com
vista a publicizar a religião espírita; 2 ) a farta produção de livros em diversos gêneros,
maioria psicografados; 3) o exemplo do ethos de ser espírita, visando a humildade e religião
– dando continuidade do modelo basilar de Bezerra de Menezes. Nesse último aspectos é
que podemos dizer que há a simbiose mais que perfeita entre a religião espírita e o catoli-
cismo brasileiro, pois Chico Xavier, como ex-católico, conseguiu construir essa imagem de
santidade venerada, tão ao gosto da cultura religiosa católica brasileira com seus santos - a
despeito do culto de santidade do espiritismo (IDEM, 2000). Em síntese, Chico imprimia a
marca de um ser humano abnegado da sua vida terrena e vivendo somente para o mundo es-
piritual, mesmo estando encarnado, num processo de santidade que confundia os adeptos
do catolicismo e do espiritismo, atingindo, por conseguinte, uma aceitação quase universal
de indistintas denominações religiosas: caindo, portanto, no gosto de todos e sendo figura
constante em programas de televisão, na segunda metade do século XX.
Obviamente, a figura do Chico Xavier matizava essa configuração, pois era inexplicá-
vel, para o senso comum, como um simples morador do interior de Minas Gerais conseguia
amealhar tantos poderes mediúnicos e se tornar, quase que sozinho, no polo irradiador de
toda a cultura espírita no Brasil. Neste período, a partir da década de 30, mais fortemente
os escritos de Chico Xavier passam a ser uma bússola para o modelo de ser espírita: era pre-
2    Após o desencarne de Bezerra de Menezes (usaremos a expressão espírita nativa desencarne), segundo a literatura es-
pírita, esta proeminente figura “passa a ser o médico por excelência do mundo espiritual. As atividades de cura acabam
passando sempre pela ‘equipe do Dr. Bezerra’” (LEWGOY, 2000, p. 153)

32
ciso viver como Chico, amar a humanidade como Chico, pois ele seguia, na visão espírita, o
exemplo irretocável do mestre maior Jesus Cristo. Os livros de Chico Xavier superaram as
vendas das obras básicas de Alan Kardec, tendo, portanto, no Brasil dois conjuntos de obras
a ser lida: 1) as do Alan Kardec; e, 2) as do Chico Xavier. Friso, ainda, que não há conflito
entre esses dois conjuntos de obra, uma vez que se completam no seu roteiro mediúnico e
religioso, sendo consideradas alguns livros do Chico, pela facilidade da leitura romanceada,
a complementação das obras básicas de Kardec, estas com um teor bem mais erudito, cien-
tífico e filosófico.
No tocante a esse período tratado, torna-se de fundamental importância enfatizar a
consolidação da Federação Espírita Brasileira (FEB), servindo como órgão oficial religioso,
logo, todos que assim viessem a se apresentar como espírita deveriam ter o lastro legal de
ser federado. Portanto, Chico cumpre perfeitamente todo esse percurso, pois todos os livros
dele foram afiançados, difundidos, vendidos e divulgados pela FEB, sendo, por conseguinte,
colocado no rol das obras que todos os espíritas deveriam imperiosamente ler e, sobretudo,
ter o Chico Xavier como exemplo a ser seguido.
Destacamos que os livros de Chico Buarque não eram obras propagandeando cura e
saúde, igualmente, a sua figura não estava vinculada como a dos médiuns de cura e manifes-
tações espirituais midiáticas da área da saúde – como muitos ficaram famosos no período ao
longo do século XX. Não obstante, salientamos que Chico Xavier era também procurado por
esse seguimento de cura, embora houvesse severas discrições acerca desse cenário terapêu-
tico em sua práxis laboral enquanto médium, sendo quase que exclusivamente relevante é a
sua produção escrita, conforme pode ser verificado abaixo:
Chico Xavier sempre procurou se desvincular das práticas não ortodoxas e não orien-
tadas pela FEB nos tratamentos de saúde, como ocorreu no momento em que fora
convidado pelo famoso médium não espírita Arigó, que dizia receber o Dr. Fritz, para
se operar de um problema nos olhos, de acordo com a fala entre Arigó e o Chico “Eu te
ponho bom desse olho, faço-te cirurgia agora! O Chico respondeu-lhe:- Não, isso é um
carma. Eu sei que o senhor pode consertar meu olho. Mas como o carma continuará,
vai aparecer-me outra doença. Como eu já estou acostumado com essa, eu a prefiro.
Porque eu ia querer uma doença nova?”(JÁCOME, 999, p. 174)”

Assim sendo, dando lastro e relevo sobremaneira a produção escrita, Chico elabora
um modelo próprio de escrita, transformando, por conseguinte, como exemplo acabado de
escrita literária denominado Literatura de Gênero Espírita através da lavra de Chico Xavier,
tendo a seguinte composição de autoria: 1) um médium escrevente e receptor que assina
a autoria do livro; e, 2) um espírito superior que dita a obra, também assinando a autoria
(LEWGOY, 2000). Ou seja, as obras espíritas, via de regra, possuem dupla autoria material e
imaterial, que somente são certificadas com selo de espírita com aval da FEB. Um dos livros
mais paradigmáticos do Chico Xavier é o best seller Nosso Lar (2008), lançado na década de
40 e vendeu milhões de cópia, transformando-se, igualmente, no início dos anos 2000, em
um filme campeão de bilheteria.
Realçamos, também, um outro livro paradigmático do Chico Xavier, lançado nos seus
primórdios anos de escrita na década 30, Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho (1983).

33
Nesse livro, como o próprio nome enfatiza, demonstra que o Brasil fora a terra escolhida
para a renovação espiritual da humanidade, pois, de acordo com as palavras do Chico no
livro: seria na pátria do cruzeiro o berço da nova humanidade e onde renasceria o novo ho-
mem, de acordo com os preceitos do evangelho revivido.
Esse livro aponta e explica, para muitos espiritas, o motivo que fez com que o Brasil
viesse a se tornar o país com mais adeptos de espíritas no mundo, a despeito da França em
que a religião espírita nasceu e ficou cristalizada nas velhas práticas do século XIX, visto que
continuam ainda com mesmas práxis científicas a respeito do espiritismo, da fé e da ciência.
Diferentemente, conforme enunciando, no Brasil o espiritismo virou e transformou-se for-
temente numa denominação religiosa com perfil extremamente evangelizadora e mística;
sendo que convém realçar o peso muito forte, conforme explicação antropológica, da figura
desses espíritas basilares difusores da doutrina, vindo a destacar a questão da caridade, da
educação e dos cuidados da saúde (GIUMBELLI, 1997; LEWGOY, 2000).
Outro personagem que venho a somar com a figura de Chico Xavier, mas não ofus-
cando-o, conforme explicitado, é o personagem do médium baiano Divaldo Franco, assim
como o médium mineiro tornou-se um dos grandes escritores de livros espíritas, tendo
como destaque obras de cunho religiosos e psicológicos. Também, o que difere ambos, é que
o médium baiano trilhou um percurso mais de painelista e congressista, vindo a divulgar a
doutrina espírita em vários lugares do mundo, consequentemente, abrindo centros espíri-
tas em diversos países, obviamente, sendo convidados por imigrantes espíritas brasileiros
que moram no exterior e que mantém a sua religião espirita de origem (LEWGOY, 2008).
Em síntese, o que importa reter é esse longo percurso trilhado pelo espiritismo bra-
sileiro: 1) primeiramente, foram as dificuldades para a sua implantação no século XIX e
os percalços que tiveram que trilhar com a imposição do catolicismo como religião oficial
durante o Brasil Império; 2) posteriormente, a ocorrência de um processo de consolidação
da religião no Brasil através da posição firme da FEB3 no século XX, como núcleo legal bra-
sileiro e plataforma institucional, assim como 3) a emergência das figuras emblemáticas dos
expoentes religiosos que vieram divulgar a doutrina espírita para todo o Brasil e o mundo.
Realço, complementando, 4) a importância da cultura letrada escrita, tanto da bibliografia
básica provinda do exterior quanto nativa produzida no Brasil, ou seja, todos esses elemen-
tos combinados vieram dar a coloração do espiritismo à brasileira, com muitas distinções
dos seu congênere europeu (LEWGOY, 2000).
O espiritismo e saúde
No tocante a casa espirita, além de templo religioso e escola, destaca-se a função como
hospital. Nesse sentido, focando a questão da saúde em diálogo com as obras espíritas, re-
ferendadas em Kardec, Chico Xavier e Divaldo Franco, todas as enfermidades são produtos
de algumas situações causais, podendo ser espiritual ou material, dependendo do fator de
origem. Melhor explicando, 1) pode ser tanto fruto da sua vida material nessa encarnação,

3    A FEB foi fundada em 1883, ainda nos primórdios do desenvolvimento do movimento espírita brasileiro, en-
tretanto, somente ganhará o reconhecimento enquanto entidade federativa nacional em 1949, no chamado Pacto
Áureo (SANTOS, 1997). Quanto ao Pacto Áureo, diz respeito ao processo de unificação, referendando os planos da Orga-
nização Federativa em que se assentava a estrutura organizacional do Espiritismo no Brasil.

34
em virtude dos excessos do corpo; 2) bem como ser tributário de desdobramentos cármicos
e materializados na presente encarnação, como uma espécie de débito a ser quitado pelo
espírito devedor - considerando que para os espíritas o corpo físico é apenas uma veste,
trocada a cada encanação, logo, o espirito como imortal pode ser credor em sucessivas reen-
carnações, a depender dos seus percalços.
Justamente por esse motivo, desde o seu nascedouro, a exemplo da experiência do mé-
dico espírita Bezerra de Menezes, as casas espíritas possuem esse forte pendor para o as-
sistencialismo religioso focado na saúde, buscado o cuidado dos seus pacientes para além
das enfermidades do mundo material. Ou seja, refletem sempre o ser humano como um du-
plo (CAVALCANTI, 1983), somado a sua existência material e espiritual. Também, agrega-se
nesse cenário de cura e tratamento, os mentores espirituais do paciente. A partir do exposto,
podemos, portanto, verificar que a noção de saúde para o espírita compõe um elenco muito
amplo de personagens, planos materiais e espirituais, bem como considerações acerca da
existência de vidas pretéritas. Logo, todo esse somatório, de difícil cálculo para os recém
iniciados na doutrina espírita, é que vai definir as causas das fatalidades, das doenças, das
mortes, dos desencarnes coletivos, das pandemias, etc.
A fim de compreender esse emaranhado de trama é que há, entre outras razões, essa
farta literatura espírita, haja vista que em muitos livros foram construídas a partir dessas
narrativas acerca das doenças e dos desencarnes. Ou seja, através desse complexo enredo e
com múltiplos personagens e que irão se desenrolar as histórias mediúnicas. Lewgoy (2000)
explica as etapas discursivas na literatura espírita: 1) as narrativas literária em forma de ro-
mance espírita vão se desenvolver entre os mentores espirituais e os personagens, buscando
explicação do que ocorrera nas encanações passadas, consequentemente, 2) tornam-se jus-
tificativa causais para os desacertos e doenças na presente encarnação, assim como através
dessas explicações nos livros 3) buscam a tentativa de dirimir dúvidas e incutir resignação
que as doenças ou problemas podem ser advindas dos excessos causados em vidas passadas;
as quais podem 3) legar, por conseguinte, no momento presente, alguma comorbidade que
cause enfermidades ou morte. Nas palavras de Marcelo Camurça, sumarizando para o plano
real:
Segundo a Doutrina Espírita, grosso modo, podemos situar as causas das doenças em
dois eixos: 1) A doença ligada ao processo de desenvolvimento espiritual do indivíduo,
expressando-se como resultado de situações vividas em “existências ou encarnações
anteriores”; 2) A doença como produto de interferência de espíritos inferiores que do-
minam corpos e mentes de indivíduos vulneráveis a esta influência. Dá-se a este fenô-
meno, o nome de obsessão. (CAMURÇA 2016:231).

Também, de acordo com a doutrina espírita, os possíveis cataclismo e adversidade que


ocorrem provocando desencarnes coletivos, do mesmo modo, podem ser produtos de uma
elaboração do mundo espiritual, baseado na lei da causa e efeito, uma espécie de ação e rea-
ção (XAVIER, 1957), conforme estudo das obras básicas de Alan Kardec e do Chico Xavier: “A
‘lei de causa e efeito´ delineada por Allan Kardec opera como um poderoso organizador de experiências
na medida em que confere um teor de determinismo divino” (CAMURÇA 2016, p. 232). Torna-se
pertinente enfatizar, de acordo com a doutrina espírita, que não necessariamente uma do-

35
ença seja algo maléfico, que na linguagem espírita é tratada com uma expiação ou carma,
entretanto, de acordo com a mesma visão religiosa, pode ser algo extremamente positivo
que o indivíduo “mereça” passar para o seu progresso e aperfeiçoamento espiritual, como se
a vida terrena fosse um campo de provas e aprimoramento.
Essa difícil equação da lei de causa e efeito, muitas vezes questionadas por leigos, tor-
na-se objeto de relativo manejo pelos adeptos convictos do espiritismo, sobretudo a partir
da compreensão das obras básicas espiritas e o que fora difundida em forma de romances
pelos principais médiuns da doutrina no Brasil, sobretudo Chico Xavier e Divaldo Franco.
Assim sendo, em linhas gerais, as doenças podem ser pensadas com um ajuste de contas do
corpo ou do espírito, em face dos abusos transcorridos – tanto nesta vida como em virtude
de outras encarnações. Do mesmo modo, as fatalidades que ocorrerem já estão previamente
programados, como se fosse um plano da espiritualidade superior necessários para o ajus-
tamento coletivo e da humanidade.
Obviamente que a doutrina espírita não prima pela falta de cuidado com a vida e com a
saúde, em virtude da possiblidade de um fato que porventura já esteja marcado para ocorrer
ou que já esteja impregnado na história, tanto do indivíduo quanto da humanidade; muito
pelo contrário, haja vista que a doutrina visa sobretudo a promoção do cuidado da saúde
corpórea, considerado o corpo como o veículo de aprimoramento do espírito. Ou seja, o que
de fato a doutrina espírita insiste não é numa visão fatalista de aceitar os desígnios, mas
sim e na medida do possível, a compreensão dos percalços que venha a trilhar o indivíduo e
a humanidade, especialmente, buscando o entendimento que o indivíduo é essencialmente
espírito e já vivera diversas encanações, portanto, podendo sofrer os reflexos do que já vi-
venciara em vidas pretéritas, melhor dito, em outras encanações. Nesse complexo gradien-
te, portanto, a vida presente é apenas o somatório de todas as suas existências, consequen-
temente, precisando o indivíduo estar preparado para a lei de causa/efeito e da ação/reação.
Nesse sentido explicativo é válida a mesma ênfase para os acontecimentos fatalísticos da
humanidade, podendo, algumas vezes, já estarem previamente estudadas planejadas e ar-
quitetadas pelo plano superior, de acordo com a cosmovisão espírita (CAVALCANTI, 1983).
Ainda, realço que dentro da doutrina são aludidas possíveis explicação para as doen-
ças, nunca totalmente revelada, pois, obviamente, a raiz do problema pode estar para além
da compreensão do indivíduo nesta presente encarnação. Logo, o que fica explícito na lite-
ratura espírita que trata sobre o tema são o conforto, a resignação e a aceitação acerca dos
adventos ocorridos, enfatizando a vida espiritual como bem maior e a aceitação das limi-
tações da vida material. Nesse prisma, impregnam mais forte a crença religiosa no mundo
espiritual e na doutrina espírita evangelizadora - fortemente exemplificada na farta produ-
ção bibliográfica espíritas, as quais endossam através das narrativas recorrente, diversos
exemplos de acontecimentos individuais e coletivos, que se desdobram ao longo dos livros
espíritas com doenças, catástrofes, pandemias, etc.
Mediante o exposto, precisamos, portanto, enfatizar que o espiritismo reflete tão se-
riamente esta questão de saúde e religião, que existe até mesmo uma Associação Médica
Espírita4, organizada em nível nacional e muito consolidada, buscando nesse modelo orga-
4    Associação Médico Espírita do Brasil (AME). Ela foi fundada em São Paulo no ano de 1995, durante a realização do

36
nizativo compreender e tratar as enfermidades à luz do espiritismo, mais especificamente
sobre as doenças, suas causas, consequências e o psiquismo.
Também, é muito visível em todos os centros espíritas o receituário mediúnico, sendo
vendido os remédios na própria casa espírita, através das farmácias fitoterápicas constitu-
ídas no local de culto religioso. No tocante ao receituário mediúnico, o trato das enfermi-
dades e as prescrições fitoterápicas deitam as suas raízes desde o tempo da liderança de
Bezerra de Menezes na FEB, conforme enunciado, momento em que havia ainda uma briga
feroz no final do século XIX e XX com as instituições médicas brasileiras (GIUMBELLI, 1997;
ARRIBAS, 2010). Em síntese, o que pretendemos destacar é o rigor com o trato das questões
da saúde dentro da religião espirita, mais precisamente enfocando a tentativas das explica-
ções das doenças, muitas vezes. a partir dos nexos espirituais cármicos, melhor dito, para
além das motivações físicas que legaram a ocorrência da doença.
Sumarizando, enfatizamos que mesmo os diferentes percursos históricos que vieram
a delimitar a compreensão de doença por parte da seara espírita, podemos definir os se-
guintes pontos de destaque a fim de entendermos como procede o entendimento espírita
acerca de doença, cura, pandemia e morte: 1) primeiramente, a compreensão acima de tudo
da aceitação da vida pós morte, consequentemente, fica explícito e de fácil manejo pelos fi-
éis tanto o entendimento dos processos de reencarnações quanto as influências espirituais
(podendo ser benéficas ou maléficas); posteriormente 2) as doenças, portanto, podem ser re-
flexos de atos deletérios dessa vida ou passada; 3) dentro da seara espírita há todo um arca-
bouço terapêutico particular, sendo endossado pela FEB, desde que não haja conflito com as
práticas médicas tradicionais, por exemplo, cirurgia, incisões, cortes, cobrança por serviços
terapêutico ou mediúnico, etc., registra-se, também, nesse percurso a ênfase no receituário
mediúnico, passes, águas fluidificadas, atendimento fraterno; conforme enfatizado, 4) as
doenças não necessariamente precisam ser algo deletério, assim como a desencarnação, po-
dendo ser vistas como um aprimoramento espiritual, considerando que o espírito é eterno
e o que morre é apenas o corpo físico; e, finalizando, 5) a caridade transforma-se, também,
num forte recurso terapêutico, haja vista que, segundo os espíritas, muitas das enfermida-
des estão contidas e são alimentadas pelo próprio indivíduo, logo, um dos instrumentos
operacionais de melhor labor para sanar qualquer doença passa a ser caridade, a fim de re-
frear impulsos e modificar pensamento viciosos que porventura possam acarretar doenças.
Nessa amplitude, a caridade passa a ter um grande enfoque, funcionado tanto como
um tratamento quanto numa espécie de compensação junto ao mundo espiritual. No to-
cante acerca da caridade, ela cumpre um função muito maior que a função moral, pois este
conceito fora o elemento integrador para aglutinar as várias instituições espíritas no final
do século XIX e início do XX, com intuito de moldar o caráter do espiritismo brasileiro e de
modo a ganhar adeptos da seara católica para as práxis espiritas (ARRIBAS, 2008;WEBER,
2013). Ou seja, mediante as discussões que havia entre adeptos de um espiritismo mais cien-
tífico e outros vinculados ao um espiritismo mais religioso, entre estes Bezerra de Menezes,
o fator de mudança de posição que venho a consolidar o núcleo base do espiritismo brasilei-

Mednesp-95 - 3º Congresso Nacional de Médicos Espíritas - realizado pela Associação Médico-Espírita de São Paulo,
instituição pioneira que existia desde 1968.

37
ra fora a caridade. A fim de endossar esse vínculo estreito com a caridade, reportaram-se no
período a Alan Kardec por meio do Livro dos Espíritos, através do seu questionamento:
886. Qual é o verdadeiro sentido da palavra caridade, tal como Jesus a entendia?
- Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições alheias, perdão às
ofensas. O amor e a caridade são o complemento da lei de justiça, pois amar o próximo
é fazer-lhe todo o bem que pudermos e que gostaríamos nos fosse feito. Esse é o sen-
tido das palavras de Jesus: Amai-vos uns aos outros, como irmãos. A caridade, segundo Je-
sus, não se restringe à esmola; abrange todas as relações que temos com nossos seme-
lhantes, sejam eles inferiores, iguais ou superiores a nós. (KARDEC, 2007, p. 280-281)

Mediante ao exposto e em diálogo com o tema, a fim de inserimos no percurso da pan-


demia como um momento ímpar da humanidade, o que torna importante compreender é
que para os espíritas a doença não é um fim em si, pois o espírito é imortal. Igualmente, as
adversidades no percurso da humanidade podem ser também, mesmo que infelizes, apenas
desdobramento abruptos e mais rápidos e que, a seu turno, podem modificar os rumos da
humanidade - algumas vezes no meio de tanto caos podem trazer uma evolução e uma sínte-
se no caminho da humanidade. Do mesmo modo, realçamos, que as adversidades e doenças
podem ser atenuadas através do sentido de dádiva, melhor dito, através da caridade pelos
espíritos no mundo material, fazendo com que atos realizados em prol de outrem possam
somar pontos junto ao mundo espiritual, a fim de abrandar qualquer débito com o plano
superior, dentro de um complexo sistema de pontos, dívidas e dádivas, muito próximo aos
sistema de milagre e merecimento do catolicismo – fato este que explica, também, a relativa
absorção do espiritismo à luz da cultura brasileira (LEWGOY, 2000, p. 172)
A Pandemia e o Espiritismo
Conforme delineado, desde o processo da construção do espiritismo e com as diretri-
zes contidas no pentateuco de Kardec, assim como fora sobremaneira narrada pelos livros
espíritas de Chico Xavier e Divaldo Franco, a humanidade e o ser humano estão num proces-
so continuum evolutivo, de acordo com as leis e diretrizes do mundo superior. Obviamente
que o homem, segundo os pressupostos espíritas, possui o livre arbítrio para definir a sua
caminhada, tanto para os fatos que lhes foram prejudiciais quanto para impregnar os acer-
tos necessários ao ajuste da sua empreitada evolutiva.
Ainda, nesses relatos espíritas o planeta Terra é posicionado como uma grande escola,
considerando o espaço e o processo evolutivo que a humanidade ainda irá trilhar, seguindo
o seguinte percurso: 1) primeiramente, a Terra fora um mundo primitivo, pois visava para
os espíritos aqui encarnados expiar atos deletérios praticados em outras orbes; 2) poste-
riormente, um mundo de provas e expiações, onde, na visão espírita encontra-se a fase
momentânea do planeta terra; e, 3) podendo migrar, dependendo da sua evolução, para um
mundo de regeneração. De acordo com a doutrina espírita são 5 fases, ainda a constar os 4)
os mundos ditosos e felizes; e, 5) e os mundo celeste e divinos (KARDEC, 2013). Portanto, o
planeta terra, na visão espírita, está nesse processo denominado transição planetária, par-
tindo no presente de um mundo de provas e expiações e podendo encaminhar-se para um
processo de mundo de regeneração.

38
Segundo aquela lei, este mundo esteve material e moralmente num estado inferior ao
em que hoje se acha e se alçará sob esse duplo aspecto a um grau mais elevado. Ele há
chegado a um dos seus períodos de transformação, em que, de orbe expiatório, mudar-
-se-á em planeta de regeneração, onde os homens serão ditosos, porque nele imperará
a Lei de Deus. – Santo Agostinho. (Paris, 1862.) (KARDEC, 2013, p. 65)

Conforme evidenciado nas obras espíritas, a doutrina religiosa é fortemente impreg-


nada pelo sentido evolucionista e disciplinadora, de modo que se espera dos seus adeptos
mudanças de atitudes morais e religiosas, com vistas a sua evolução. Esse mesmo percurso
é compreendido para a humanidade e o planeta Terra, entendendo que o mundo só irá mo-
dificar-se quando os homens, na sua maioria, se modificarem e melhorarem seguindo os di-
tames da doutrina espírita e tendo Jesus Cristo como leme. Obviamente que esse processo,
segundo a doutrina espírita, passaria por um longo percurso, assim como a humanidade já
vem passando desde período pretéritos, em que saíra da denominação de mundo primitivo.
Nessa atual etapa, por conseguinte, a humanidade estaria passando pelas provas necessá-
rias a fim de demarcar o seu processo evolutivo junto a instâncias superiores, justamente,
com o intuito de figurar junto a orbes mais desenvolvidas.
Logo, segundo a doutrina espírita, este momento vivido é precisamente esse ajuste
forçado da humanidade com a sua própria história e suas próprias contradições, a fim de
ajustar o roteiro e evoluir. Retomando algumas considerações anteriores evidenciadas acer-
ca de saúde, doença, morte e pandemia, reiteramos: 1) não necessariamente as doenças e
mortes são produtos deletérias, pois podem ser a síntese para um refino do próprio espíri-
to, mais especificamente neste caso de pandemia e em face dos momentos de desencarnes
coletivos5, também, 2) pode ser objeto para depurar a humanidade dos bons e dos maus
– deixando bem demarcado que não necessariamente os que morrem nesse atual percurso
estão na categoria de maus espíritos encarnados – o que fica demarcado são o que morrem
estão impregnado com carga vital de finitude da vida nesta atual quadra, podendo, também,
infelizmente morrer junto com os maus.
Ainda, de acordo com as leituras, é necessário esse ciclo para uma renovação do plane-
ta, a fim de ocorrer uma necessidade de repensar as atitudes e buscar uma religação com o
espiritual, haja vista que a materialidade e cientificismo não surtira o efeito para o processo
de evolução terrena. Nesse sentido, o que fica explicito através das obras espíritas é esse ro-
teiro de renovação, assim como a confirmação fatalista de que tudo já estava registrado me-
diante a bibliografia espírita, tanto de Alan Kardec quanto de Chico Xavier e Divaldo Franco,
exatamente cobrando esse processo de renovação do ser humano e, consequentemente, de
toda a humanidade.
Também, torna-se marcante essa aceitação da morte como algo natural, exatamente
pela compreensão da vida no plano espiritual e que o planeta terra é somente uma passa-
gem, melhor dito, uma escola, onde todos os homens encarnados precisam trilhar a sua
história para o seu processo evolutivo. Fica bem demarcado o processo evolutivo do homem
e do planeta, especificamente como um tributário do outro (um necessitando do desenvolvi-
5    Situações em que há processo de desencarne de grande quantidade de seres, segundo a literatura, esse processo ocor-
re mediante ajuste cármico coletivo, dentro da lei da causa e efeito. Assim, “[...] as faltas coletivamente cometidas são
expiadas solidariamente (KARDEC, Obras Póstumas, item “Questões e Problema, 2019, p. 192)

39
mento e depuração do outro); melhor explicando, o planeta terra somente irá evoluir quan-
do houver, definitivamente, a evolução do próprio homem, a fim de transformar o plano
terreno num mundo de regeneração. Conforme exposto, ainda, muitas dores e sofrimentos
virão imbricados nesse processo para a regeneração planetária, sendo que para o movimen-
to espírita, os desdobramentos da Pandemia de COVID-19 são apenas mais uma das etapas
desse processo evolutivo, considerando que já houvera outras pestes e doenças na história,
necessárias, e que também soterram grandes hordas humanas.
Ainda, nesse gradiente evolutivo, em meio a mortes e flagelos, também ocorre uma
renovação das próprias práxis espíritas, sobretudo a partir do mundo tecno-científico-in-
formacional, vindo, a seu turno, a transformar o modelo de reunião espírita, antes imprete-
rivelmente reunidos dentro do centro espírita. Agora, nesse momento, em face das políticas
de saúde epidemiológica cessou-se as reuniões públicos e, por conseguinte, todo o trabalho
realizado que seguia a justeza e a roteiros pré-estabelecido pela FEB, por exemplo, recei-
tuário mediúnico, palestra, encontros fraternos e toda a gama de serviço assistencial tão
marcadamente vivos na experiência da própria construção dos modelos basilares da seara
espírita brasileira. Contudo, tiveram que se reciclar rapidamente através de reuniões via
goog-meet, youtube e outras plataformas a fim de dar os vereditos sobre a atual quadra da hu-
manidade, bem como acerca dos rumos a ser seguindo pela doutrina espírita. Torna-se des-
tacável o papel que Divaldo Franco6, ainda continuamente realizando palestras nesse atual
momento, tentando construir uma unidade discursiva através das redes virtuais acerca das
adversidades coletivas advindas com a pandemia.
Embora a farta divulgação em ambiente virtual das novas mídias acerca das discussões
nas perspectivas espíritas, os dirigentes mais destacados asseveram:
O número de expositores aumentou quantitativamente, ocorrendo alguns casos com
detrimento à qualidade da forma e do conteúdo (pureza doutrinária) das exposições.
Por ser novo e tecnológico o procedimento individual, seria de todo conveniente que
as Federações Espíritas e os Centros Espíritas (C. E.) se engajassem em ofertar sub-
sídios e sugestões para as exposições, que devem ser e ter formato simples (KÜHL, O
CONSOLADOR7, 2020).

Além do teor ainda altamente doutrinário, os dirigentes espíritas, por meio das suas
redes oficiais, insistem na difusão espírita ser calcado por meio dos seus instrumentos ofi-
ciais, severamente advertidos caso divergentes, justamente com vista a não perder de foco
o rigor do labor incutido pela doutrina espírita. Tais advertências já são esperadas, uma vez
que essa religião nasceu justamente dentro do rigor das leis, da ciência e da razão, sendo,
portanto, esses instrumentos burocráticos um exercício continuo esperado pelo labor espí-
rita. Ainda, percebemos a aflição para que os painelistas não percam o foco do que é repas-
sado pelas lives, igualmente, a cobrança da fidelidade dos preceitos religiosos, sobretudo,
reiteram, que se faça uma triagem efetiva dos painelistas espíritas nas redes virtuais. Para

6    Divaldo Franco possui um canal no youtube denominado Mansão do Caminho, nome dado a casa espírita que ele diri-
ge em Salvador/Bahia. Essa página possui vários temas segundo a doutrina espírita, sendo relevante no último percurso
as comunicações em face do tema da pandemia de COVID-19.
7    Órgão oficial de comunicação e divulgação espírita. http://www.oconsolador.com.br/ano14/711/ca2.html > Acessado
em 15/03/2021.

40
tanto, esse informe oficial da FEB cobra que “Exposições pela internet exigem, automaticamente,
que o expositor tenha bastante segurança e conhecimento do tema a ser exposto” (KÜHL, 2020). Em
síntese, fica nítido o rigor da exposição espírita sobre o atual cenário, também, percebe o
rigor de manter os mesmo porta-vozes oficiais e os mesmo painelistas já consagrados, tais
apontamento, segundo a FEB deve-se não por que não houve uma renovação dos grandes
dirigentes espíritas, mas sim que as discussões não sejam desviadas do foco evangelizador.
Conforme sabemos, as discussões acerca de Pandemia e da vacinação, em face das
erupções políticas pós-Golpe de 2016 no Brasil, foram palco para inúmeros debates e guer-
ras de narrativas, portanto, precisando a FEB se posicionar com total neutralidade e isen-
ção acerca desse tema. Nesse espectro, convém, ainda, realçar de forma bem pontual, a não
vinculação e posicionamento político da religião espírita acerca do atual cenário – como se
houvesse um descolamento do universo real da política brasileira e a FEB se concentra-se
exclusivamente do conforto, afeto, espiritualidade e o carinho para os desencarnados. Claro
que tal fato não causa estranheza de acordo com a literatura espírita, pois tirando o período
de Bezerra de Menezes no mundo político, necessário segundo os espíritas para a legalidade
da religião (GIUMBELLI, 1997), não houve mais vinculação ou mescla, desde então, entre re-
ligião e política dentro da seara espírita, diferentemente de outras denominações religiosas
no período recente pós-Golpe de 2016.
Também, destacamos que a sisudez dos antigos dirigentes espírita no universo virtual
se explica, precisamente, pela tentativa de separação da doutrina espírita de outras deno-
minações religiosas inclusas dentro do cenário mediúnico. Tal fato explicativo reside pela
complexa elaboração do conjunto de conceitos filosóficos, científicos e religiosos, sendo de
difícil absorção por leigos, ocasionado, por ventura, associações espúrias quando compara-
das com outras denominações religiosas mediúnicas. Assim sendo, a rigidez se faz necessá-
ria, especialmente, a fim de separar as denominações religiões que se dizem espiritualistas
e seus congêneres da doutrina espírita federada. Como a religião espírita não possui hierar-
quia sacerdotal, assim como a Igreja Católica, logo, torna-se necessário que os porta-vozes
sejam impreterivelmente, e sempre, os mesmo que já foram por décadas testados pela FEB
como vozes oficiais da doutrina
Justamente por isso que fica patente, nesse cenário, a retomada dos estudos dos clás-
sicos da literatura espírita e, sobretudo, os livros de Chico Xavier, numa espécie de prova
real que as obras fundantes da literatura espírita estavam certas acerca dos desígnios e das
ocorrências em face da pandemia. Reiteradamente, nas lives dos grandes médiuns que ain-
da encontram-se em curso é destacado apontamentos de livros, citações e cases pandêmicos/
pestes explicados à luz da literatura espírita, dando o fechamento necessário explicativo
sobre a atual etapa e tudo o que ainda, porventura, possa ocorrer em face da Pandemia. Exis-
te, muito fortemente, conforme explicitado, a cosmovisão espírita (CAVALCANTI, 1983) do
mundo material e espiritual, em que o mundo invisível sabe perfeitamente o que está ocor-
rendo, bem como as necessidades que esses momentos abruptos e irruptivos são imprescin-
díveis para a regeneração do planeta Terra, a fim de seguir o processo evolutivo necessário e
migrar de um mundo de provas e expiações para um mundo de regeneração – como se fosse
uma lei evolutiva já sentenciada por Jesus, Kardec e Chico Xavier.

41
De igual modo, fica sempre explícito nas falas a necessidade de se retomar mais ainda à
caridade e para os mais necessitados, sobretudo, nesse momento das últimas horas de tran-
sição planetária, como se fosse uma sentença para todos os adeptos espíritas, relembrando
sempre as palavras de Chico Xavier que viveu a exemplo de Jesus. Para tanto, além de de-
monstrar e tentar provar com citações da farta literatura espírita, igualmente, relembram a
todos, como forma de lembrete e advertência, que somente através da caridade poderão ser
poupados, a fim de se juntar aos justos e aos bons. Novamente é reativado sempre o percur-
so da dádiva – tão caro tanto para o espiritismo quanto para o catolicismo, parafraseando
e se reportando sempre nas lives às palavras de Chico Xavier. A fim de afiançar essas falas,
cumpre trazer algumas discussões do próprio Chico sobre o tema:
A misericórdia de Deus sempre nos proporcionou recurso para pagar ou reformar os
nossos títulos de débito, assim como uma organização bancária permite que determi-
nadas promissórias sejam pagas com grande adiantamento, conforme o merecimento
do devedor. Assim como temos grande números de amigos avalistas a nos tutelar nos
bancos, temos também os espíritos extraordinários que sãos os santos, os anjos, os
nosso amigos espirituais que pedem por nós, que auxiliam , que nos dão mais opor-
tunidades para que a gente tenha mais tempo (XAVIER Apud LEWGOY, 2000, p. 171)

O que fica explicito e (re)atualizado nesse momento pandêmico é o sistema da dádiva e


dívida, tão caro para a doutrina espírita, nesse momento, sendo enfocado com maestria nas
diversas lives e painéis nas redes virtuais. Igualmente, atualizados os conceitos de doenças,
provas e merecimentos, como se fosse um bem aquinhoado e necessário para sobreviver à
atual quadra da humanidade. Contudo, pela primeira vez, a caridade não é feita em forma
presencial, tanto com o concurso das obras do centro espírita quanto pelos préstimos das
atividades assistências, mas renasce recicladas por meio do universo virtual com orações
coletivas, sendo proferidas pelos expoentes da doutrina em alinhamento com a FEB.
Considerações finais
Nos primeiros dias de setembro de 1939, “Nosso Lar” sofreu, igualmente, o choque
por que passaram diversas colônias espirituais, ligadas à civilização americana. Era
a guerra europeia, tão destruidora nos círculos da carne, quão perturbadora no plano
do espírito. Entidades numerosas comentavam os empreendimentos bélicos em pers-
pectiva, sem disfarçarem o imenso terror de que se possuíam (XAVIER, 2008, p. 133)

Divaldo Franco numa live, no início do ano de 2020, começou a sua fala expondo tre-
chos da obra de Chico Xavier em Nosso Lar8, acima conforme citado; explicando como se
processou o início da 2º Guerra Mundial: as mortes que iriam ocorrer e os preparativos do
plano espiritual em face dos desencarnes coletivos que iria ser gerado, provocados pelo ta-
manho impacto da guerra. Relembrando Chico, Divaldo, novamente anuncia que o mundo
espiritual esteve vigilante e avisou aos grupos espíritas mais destacado, através de men-
sagens, que um novo choque civilizatório iria ocorrer a partir do início do ano 2020 com a
chegada da Pandemia do COVID-19. De acordo com a sua fala, fica explícito todo o prepa-
ro que o plano superior organizara para receber essa nova horda de desencarne coletivo,

8    Palestra virtual de Divaldo Franco na qual o médium falava sobre as consequências da pandemia no Plano Espiritual.
In.: < https://www.youtube.com/watch?v=AtM8qwk7jVk> Acessado em 15/03/2021.

42
comparativamente, assim como ocorrera no transcurso do período nazifascista, sendo esse
momento, infelizmente, mais um dos cataclismas da história da humanidade necessários
para o seu aperfeiçoamento. Mediante essa fala do grande expoente vivo do espiritismo no
Brasil, contemporâneo de Chico Xavier e endossado pela FEB, o que fica explícito é a (re)
atualização das obras básicas e da ampla literatura espírita brasileira, como se o espiritismo
já viesse sentenciando, preparando e burilando os seus fiéis para essa quadra adversa da
humanidade.
Retomando a trilha do objetivo principal desse artigo, buscamos analisar a intepre-
tação da seara espírita sobre a pandemia de COVID-19 e as reelaborações das práticas nos
centros espíritas. Não obstante as mudanças de conjuntura em face da pandemia, o que
constatamos é a manutenção do mesmo discurso religioso, enfatizando e interpretando que
o momento atual já estava programado para acontecer, melhor dito, como se fosse uma sen-
tença natural e necessária para o progresso da orbe terrestre: um ajuste de contas da história
da humanidade com vistas ao progresso moral e religioso.
Tais apontamentos parece ser extremamente simplista, ou até mesmo fatalista e cruel
para os não iniciado na doutrina espírita, justamente por esse motivo torna-se imperativo
a leitura da farta bibliografia espírita divulgada e difundida pela FEB, tão bem publicizada
desde Alan Kardec, passando por Chico Xavier e Divaldo Franco no Brasil. Ou seja, para os
crentes espíritas, que possuem a cultura letrada da doutrina mediúnica (LEWGOY, 2000), o
quadro atual torna-se de relativa compreensão, haja vista que possuem o escopo necessário
para o entendimento sobre doença, desencarnação, reencarnação, desencarne coletivo, evo-
lução espiritual, transição planetária – conceitos deveras complexos para leigos. Justamente
por esse motivo, as interpretações que os dirigentes painelistas proferem são simples atua-
lizações, sem ajustes ou desmanches, das obras básicas e da literatura consagrada.
Contudo, houve algumas severas mudanças, sobretudo das práticas, pois antes havia o
contanto presencial dos fiéis nos centros espíritas através das várias atividades, para neste
momento, serem apenas encontros virtuais. Obviamente que tais práticas não retirou a es-
sencial dos cultos religiosos, baseando em encontros com vistas a orações e demais ativida-
des do elenco espírita, haja vista que o ficou foi a exaltações dos valores religiosos, tão forte
aos moldes do espiritismo à brasileira. Retirou as práxis como passes, desobsessão, encon-
tros fraternos, receituário mediúnico, mas manteve o cerne da caridade através das orações.
Ainda, o que torna importante verificar é que esse percurso em torno de 150 de espi-
ritismo no Brasil fora extremamente consolidado, perceptível com o reflexo do atual mo-
mento, pois mesmo não havendo os encontros presenciais, os grupos espíritas se mantêm
coesos através do universo virtual, palestras online, google-meet e outros acessórios do mundo
técnico-científico-informacional. Porém, tais novidades causam algumas advertências e te-
mores para a doutrina espírita, sobretudo, o excesso de lives, a qualidade dessas divulgações
e formação doutrinária dos palestrantes. Nesse cenário, reside sobretudo a necessidade im-
periosa de separar o conjunto de lives espiritualistas das que são, realmente, espíritas – tão
complicado para os não iniciados da doutrina e que não conhecem o selo da FEB. Talvez, o
momento atual de dificuldade seja em se desvencilhar dos que se dizem espiritualistas/me-
diúnicos dos que são realmente espíritas, a fim de dar continuidade na propaganda e difu-

43
são da cultura espírita, tarefa extremamente hercúlea no universo virtual regado a excesso
de comunicações, mas sem bases e lastro informativo corretos.
Em síntese, o que fica visível nessa realidade pandêmica é que a FEB, as casas espíritas
e os fiéis conseguiram manter a unidade discursiva acerca da doença, da pandemia e da
compreensão da atual etapa da humanidade. Pois, através de um discurso afinado com a li-
teratura, tendo os grande próceres como exemplo a ser seguido e constantemente reativado
nas lives, o movimento espirita segue crendo, assim como fora revelado por Alan Kardec,
que a atual etapa faz parte da síntese necessária para que o plano terreno passe para a pró-
xima etapa da transição planetária. Um caminho com muita dor, mas compreendido por
todas que possuem uma leitura bibliográfico do espiritismo à brasileira, haja vista que estes
desígnios do planeta terra e da humanidade já estavam escritos - na iminência de acontecer.
Referencias
ARRIBAS, Celia da Graça. 2010. Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa
brasileira. São Paulo: Alameda.
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Entre o Carma e a Cura: Tensão Constitutiva do Espiritismo no Brasil”. PLURA - Revista de
Estudos de Religião 7(1): 230–51, 2016.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. 1983. O Mundo Invisível: cosmologia, sistema ritual e noção de pessoa
no espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar
GIUMBELLI, Emerson. O Cuidado dos Mortos: uma história da condenação e da legitimação do espiritismo. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
___________, Emerson. Kardec dos Trópicos. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 3, junho de 2008, p. 14-19.
JÁCOME, Óscar Junqueiro. A Doutrina põe Ordem na Desordem. O Espírito da Cura na ‘Benzeção Espírita’ da Associação
Espírita Padre Antônio Vieira. Dissertação de Mestrado, Juiz de Fora, PPCIR-UFJF, 1999.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução Matheus Rodrigues de Camargo. 9ª ed. São Paulo: Editora EME, 2007.
________, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Tradução de Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2013.
________, Allan. Obras Póstumas. Tradução de Guillon Ribeiro. Brasília: FEB, 2019.
KÜHL, Eurípedes O Espiritismo e as lives. O Consolador. 2020. < http://www.oconsolador.com.br/ano14/711/ca2.html >
Acessado em 15/03/2021.
LAPLANTINE, François & AUBRÉE, Marion. (1990), La Table, Livre et Les Esprits: naissance, évolution et atualité du
mouvement social spirite entre France et Brésil. Paris: J.C.Lattès, 1990.
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo
kardecista. Doutorado em Antropologia Social, São Paulo: Universidade de São Paulo, 2000.
_________, Bernardo. A transnacionalização do espiritismo kardecista brasileiro: uma discussão inicial. Religião e So-
ciedade, Rio de Janeiro, 28(1): 84-104, 2008.
SANTOS, José Luiz. Espiritismo: uma religião brasileira. São Paulo: Moderna, 1997.
WEBER, Beatriz Teixeira. Espiritismo e Saúde: concepções a partir das práticas numa sociedade kardecista. Revista
Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Maringá (PR) v. V, n.15, jan/2013.
XAVIER, Francisco Cândido. Ação e Reação (pelo espírito de André Luis). Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1957.
________, Francisco Cândido. Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho. (pelo espírito Humberto de Campos).
Brasília: Federação Espírita Brasileira, 1983.
________, Francisco Cândido. Nosso Lar. (pelo espírito André Luis). Brasília: Federação Espírita Brasileira, 2008.
Site citado:
FRANCO, Divaldo. Palestra sobre as consequências da pandemia no Plano Espiritual. In.: < https://www.youtube.com/
watch?v=AtM8qwk7jVk> Acessado em 15/03/2021

44
Capítulo 3

A “Imagem Verdadeira” em tempo


de pandemia: a Seicho-no-Ie do
Brasil e a COVID-19

João Paulo P. Silveira

O capítulo problematiza as respostas da Seicho-no-Ie do Brasil à pandemia de CO-


VID-19. Trata-se de uma iniciativa que procura contribuir com os estudos da presente co-
letânea a respeito do impacto da pandemia na paisagem religiosa brasileira. Procuramos lançar luz
sobre os meios encontrados pela Seicho-no-Ie (Lar do Progredir Infinito, em português) para a oferta
regular de seus serviços religiosos em tempos de isolamento social. Igualmente, dedicamo-nos às inter-
pretações religiosas da pandemia engendradas pela instituição.
Tratamos, no primeiro momento de nosso estudo, da cosmologia e dos conteúdos doutrinários
do grupo religioso, dedicados à saúde. Longe de realizarmos uma discussão exaustiva sobre o tema,
nossa intenção é familiarizar o leitor com aspectos do pensamento da nova religião japonesa que lida
com questões caras no contexto da pandemia, como saúde, doença e cura. Como demonstraremos, essas
questões são enfatizadas pela Seicho-no-Ie desde o seu surgimento e gozam de grande relevância nas
atividades diárias do grupo, inclusive naquelas desenvolvidas on-line. É a partir dessas elaborações que
a nova ordem religiosa japonesa procura orientar seus adeptos e simpatizantes em relação à pandemia.
No segundo momento, discutimos as atividades da Seicho-no-Ie, desenvolvidas on-line, que
acompanhamos entre os meses de julho e novembro de 2020. O contato com essas atividades nos per-
mitiu clarificar os artifícios adotados para a continuidade virtual das preleções e outras práticas reli-
giosas fundamentais, como o Canto Evocativo de Deus, a maratona de leitura das Sutras Sagradas, a
meditação Shinsokan etc. Acompanhamos apenas as atividades on-line públicas, isto é, aquelas que
foram acessíveis ao público geral, especialmente através do Youtube, além de postagens do perfil oficial
da Seicho-no-Ie do Brasil em redes sociais.
Na terceira parte, tratamos dos pronunciamentos e posições da Seicho-no-Ie que ofertam de for-
ma mais direta as coordenadas religiosas para a interpretação da pandemia, especialmente no que toca
à questão ambiental. Para isso, detivemo-nos em pronunciamentos oficiais da Seicho-no-Ie do Brasil
em sua página na internet e em suas redes sociais, no perfil oficial no Facebook de Masanobu Tanigu-
chi, atual líder do grupo religioso, e em textos religiosos recentes que esclarecem sobre a relação entre
desastres naturais e espiritualidades. Dessa forma, tentamos compreender os sentidos religiosos que
procuram converter a opacidade provocada pela pandemia em inteligibilidade espiritual.
Assumimos que a pandemia é um evento global que nos lembra da precariedade da vida e dos
limites dos saberes científicos modernos na oferta de respostas a curto prazo. Na modernidade tardia, a
sensação de precariedade é cada vez menos local em suas consequências. Tendo isso em mente, edifica-
mos nossa compreensão a partir do trabalho de Peter Berger (2009) que nos ajuda a perceber as respos-
tas religiosas ofertadas pela Seicho-no-Ie, ou por qualquer outro grupo religioso, como iniciativas que
procuram aplacar os temores e restaurar a sensação de segurança abaladas pela ameaça pandêmica.
Como veremos, as respostas religiosas à pandemia oferecidas pela Seicho-no-Ie são ecológica e global-
mente endereçadas e, por isso mesmo, atravessadas por representações que nos situam como habitantes
de uma “casa comum”.
Justificamos nosso esforço a partir da importância do registro científico das respostas e reações
dos grupos e sujeitos a um desafio que nos interpela globalmente e que exige respostas de dimensões
igualmente planetárias. A pandemia é um acontecimento histórico cujas consequências serão melhor
compreendidas no futuro. Ao contemplá-la no exato contexto de isolamento social, que também nos
interpela no momento da escrita, ofertamos considerações preliminares, conquanto autenticamente so-
ciológicas, de um acontecimento que receberá significativa atenção intelectual e política nos próximos
anos.
No caso específico da Seicho-no-Ie, nosso trabalho procura desvelar os expedientes adotados por
uma nova religião japonesa, numericamente pequena, cuja maior parte de adeptos e simpatizantes são
de classe média e vivem, hoje, no Brasil. Nossa dedicação procura oportunizar para o leitor e estudioso
das “novas religiões” a possibilidade da compreensão das respostas à pandemia urdidas por um grupo
de menor projeção social, de modesta presença no campo religioso brasileiro, mas que faz intenso uso
das novas tecnologias de comunicação para propagar suas doutrinas.
Mente, saúde e cura
Os principais estudos sobre o surgimento da Seicho-no-Ie (Lar do Progredir Infinito, em por-
tuguês) no Japão, em março de 1930, são unanimes ao apontarem o lugar fundamental que os temas
doença, saúde e cura ocuparam na imaginação religiosa de Masarahu Taniguchi, fundador da “nova
religião japonesa” (shinshūkyō, em japonês)1.
Antes de criar sua nova religião, Taniguchi dividia sua vida modesta com esposa e filha,
ambas com saúde debilitada, o que certamente influenciou em sua caminhada espiritual
(STAMMLER, 2011; MCFARLAND, 1967). Depois de peregrinar por outros grupos, entre eles a Ōmo-
to (Grande Fonte, em português), e de cultivar o interesse pela hipnose e pelo Novo Pensa-
mento Americano2, Masaharu Taniguchi teria ouvido uma voz interior em 13 de dezembro
de 1929 que o convocava a se levantar em favor da iluminação da humanidade.
1    O antropólogo Silas Guerriero (2006) nos lembra que o conceito “novas religiões” é impreciso em virtude de alguns
fatores, entre eles o temporal. A partir de quando podemos considerar que um grupo é novo? Até quando esse grupo será
uma novidade? No Japão, o conceito é usado especialmente para distinguir as novas religiões daquelas tradicionais. As
novas religiões japonesas, que apareceram ainda no início do século XIX, foram criadas por sujeitos leigos, isto é, sem
formação sacerdotal ou equivalente no interior das religiões antigas (READER, 2010).
2    O Novo Pensamento Americano (American New Thought) é um conceito que enfeixa ideias e grupos religiosos que
apareceram nos EUA nas últimas décadas do século XIX, em um contexto cristão de busca por terapias alternativas de
cura. Sem nos determos em seus pormenores, cabe dizer que o Novo Pensamento postula a existência de uma única

46
Levanto-me e coloco-me diante da humanidade, erguendo alto a chama da Verdade.
Tornou-se inevitável levantar-me. Amigos e companheiros, venham aderir a mim [...].
É a chama da Verdade que desceu dos céus. É a chama ardente! Toquem em mim [...].
Com esta chama quero mostrar à humanidade como ser feliz, como se libertar das
algemas da situação, como governar o destino, como dominar as doenças, como elimi-
nar a causa da miséria, como superar os sofrimentos causados pelos problemas fami-
liares (TANIGUCHI, Masaharu, 1993, p.3-5)

Até 1933, Taniguchi recebeu 29 revelações divinas atribuídas à deidade xintoísta Su-
miyoshi, segundo afirma Birgit Staemmler (2011). Elas descreviam a natureza humana, a
unidade de todas as religiões, a missão da Seicho-no-Ie no mundo contemporâneo e também
o lugar do Japão na ordem política do Pacífico, na iminência de uma nova guerra mundial.
O fundador foi apoiador do imperialismo e do nacionalismo japonês (MAEYAMA, 1967; MC-
FARLAND, 1967). Em março de 1930, Taniguchi deu início às atividades religiosas a partir
da confecção e publicação de uma revista que prometia especialmente a cura daqueles que
simplesmente a lessem. Como outras novas religiões daquela época, a Seicho-no-Ie promovia
ainda a expetativa da renovação do mundo a partir da transformação espiritual oportuniza-
da pela doutrina anunciada por Taniguchi (INOUE, 2017).
As publicações de Taniguchi encontraram leitores interessados em terapias de cura
espiritual no Japão e no além-mar onde viviam imigrantes japoneses. No Brasil, a publicação
foi lida primeiramente por colonos japoneses, como foi o caso de Daijiro Matsuda, imigran-
te japonês em território paranaense que se curou de disenteria após ler um texto de Tanigu-
chi (MATSUDA, 2007). Desde então, relatos de cura se tornaram regulares nas práticas e nas
publicações da Seicho-no-Ie3.
A partir de 1932, Taniguchi se dedicou à produção da coleção A Verdade da Vida (Seimmei
no Jisso, em japonês), a principal publicação doutrinária da Seicho-no-Ie. Nela, ele enfatizou a
cosmologia do Jissô, a “Imagem Verdadeira”, a realidade divina e imperecível que atravessa
todo o universo e todos os seres. A consciência da “Imagem Verdadeira” libertaria mulheres
e homens do mundo transitório, da doença, da morte e de toda sorte de ilusões que emanam
da realidade aparente, transitória ou do fenômeno, como costumam dizer. Doença, pobre-
za, culpa seriam, portanto, consequências da ignorância da verdadeira realidade, o mundo
da “Imagem Verdadeira” onde o homem e a mulher são divinos, perfeitos e saudáveis. A uni-
dade essencial entre o universo, a humanidade e a divindade é o aspecto da cosmologia da
Seicho-no-Ie que conhecemos por “vitalismo religioso” (SHIMAZONO et al., 1979; 2004), uma
elaboração de que trataremos logo abaixo.
A consciência ou a mente tem um lugar importante nas elaborações religiosas da Sei-
cho-no-Ie sobre saúde, doença e cura. Isso se deve à influência do Novo Pensamento Ameri-
realidade divina da qual somos manifestações individuais, embora ignoremos isso por vivermos em uma espécie de
estado ilusório. O sociólogo e historiador John Gordon Melton (2006) argumenta que a consciência dessa verdade e sua
proclamação continuada (sugestionamento) significa para os adeptos o acesso a uma vida de abundância e saúde aqui
e agora. Cabe ainda dizer que o Novo Pensamento Americano é um surpreendente manancial espiritual que exerceu
grande influência na história religiosa contemporânea, em especial na Nova Era e outras espiritualidades que enfati-
zam o papel da consciência, do sugestionamento e do pensamento positivo na realização individual.
3    A memória histórica da Seicho-no-Ie em Goiás enfatiza a cura do pioneiro Takeu Sumihara, livre de um câncer ao ler
uma publicação de Taniguchi nos anos 1950. Sumihara se tornou referência taumatúrgica no Vale do São Patrício e, a
partir de julho de 1960, entre japoneses em Goiânia. (SILVEIRA, 2016).

47
cano que foi bricolado às tradições religiosas japonesas que constituem a nova religião, em
especial o Xintoísmo, o Budismo e o Confucionismo. Na obra Comande sua Vida pelo Poder da
Mente, o mestre, como é conhecido por seus seguidores, enfatiza: “Nossa vida é regida pelos
pensamentos que nós mesmos concebemos e pelas ideias que, vindas do mundo exterior,
são gravadas em nossa mente, sob a forma de sugestionamento” (TANIGUCHI, 2007, p.30).
Isso significa que a mente devidamente trabalhada, isto é, consciente de que o “eu essencial”
é parte da “Imagem Verdadeira”, seria capaz de libertar os indivíduos dos males do mundo
físico e aparente, inclusive de doenças. Segundo Taniguchi,
Se, nesse momento, você está enfrentando dificuldades ou doenças, é porque estão
brotando agora as sementes que você havia plantado no “mundo da mente”, no passa-
do, quando ainda não tinha conscientizado sua Natureza Divina (TANIGUCHI, 1989,
p.50, grifos no original)

Devido à necessidade do despertar da consciência da natureza divina, os adeptos e simpati-


zantes da Seicho-no-Ie são estimulados à reorientação da consciência a fim de que compreendam que
a essência humana é sua “Imagem Verdadeira” incorrupta, feliz e saudável. Esse processo acontece
a partir da leitura de textos sagrados, como a Chuva de Néctar da Verdade, da repetição de fórmulas
otimistas, entre elas “Eu sou filho de Deus”, da entoação “Imagem Verdadeira, Harmonia e Per-
feição”, que podem ser feitas em Japonês (Jissô Enman Kanzen), da meditação Shinsokan, do Canto
Evocativo de Deus e, não menos importante, através do agradecimento contínuo, o “muito obrigado”
comum em todas as preleções religiosas.
A ênfase na transformação da consciência e o entendimento de que o destino pessoal depen-
de do estado psicológico individual são leituras de mundo que a Seicho-no-Ie compartilha com ou-
tras inovações religiosas japonesas e mesmo com outros grupos, no interior da Nova Era, que tam-
bém foram influenciados pelo Novo Pensamento Americano. Para o sociólogo Susumo Shimazono
(2004) grupos como a Seicho-no-Ie são “psicoterapias religiosas” que procuram responder às carên-
cias e expectativas de uma realidade cada vez mais urbana e individualizada.
Existe, contudo, outro aspecto da cosmologia da Seicho-no-Ie que tem relações diretas com o
destino dos sujeitos, incluindo sua saúde: o cuidado com os antepassados. As pesquisas de Ediléia
Gomes Diniz (2006) e Leila Albuquerque (1999) pontuam, entre outras coisas, a importância das
orações de agradecimento e reverência aos antepassados, às raízes da família. No Brasil, a atenção
aos antepassados sofreu adaptações a fim de se acomodar à cultura religiosa católica: em vez de
“culto aos antepassados”, como era definida a prática espiritual direcionada aos que fizeram a pas-
sagem, o ritual passou a se chamar “oração de gratidão aos antepassados” (DINIZ, XX).
A reverência aos antepassados pela Seicho-no-Ie repousa em uma cosmologia que com-
preende que todas as partes estão interligadas, vivos e mortos, e que a realização humana
só é possível quando elas coexistem harmonicamente na “Imagem Verdadeira”. Trata-se de
outra dimensão da perspectiva vitalista partilhada por vários sistemas religiosos japoneses,
antigos e mais recentes, que consideram o cosmos
um corpo vivo ou uma força vital com fertilidade eterna [...] todo o universo é assimi-
lado como um corpo vivo. Disso provem a noção de que tudo é harmonioso, interde-
pendente, mutualmente simpático e em constante crescimento [...] Assim, a vontade

48
do universo será imaginada como uma entidade benéfica e graciosa que doa a cada ser
vivo a vida eterna. (SHIMAZONO et al, 1979, p. 142- 143 – Tradução do autor)

A relação harmônica é que torna possível a vivência plena da Imagem Verdadeira, a


realidade divina que atravessa toda a existência. É por isso que a gratidão insistentemente
repetida nas atividades da Seicho-no-Ie e dedicada inclusive aos entes familiares mortos é
parte do liame ético-espiritual fundamental para que as relações harmônicas prodigalizem,
segundo creem, toda a sorte de realização, em especial a boa saúde.
Outro traço doutrinário, de origem mais recente, tem um importante lugar na cos-
mologia da Seicho-no-Ie: a natureza. A iniciativa partiu do neto do fundador da nova religião
japonesa e atual presidente mundial da instituição, Masanobu Taniguchi. Trataremos desse
aspecto de forma mais detida ao trabalharmos as interpretações oferecidas para a pande-
mia. No momento, basta ressaltar que a expectativa da renovação do mundo, compartilhada
pela Seicho-no-Ie com outras religiões japonesas, ganhou uma tonalidade ambiental.
A Reação on-line à pandemia
Em estudo preliminar publicado em maio de 2020 no The Asia-Pacif Jornal – Japan Fo-
cus, Levi McLaughlin (2020) chamou a atenção para as respostas das instituições religiosas
japonesas, tradicionais e “novas”, à pandemia. O autor destacou que entre fevereiro e março,
logo no início da pandemia, algumas das principais novas religiões japonesas foram as pri-
meiras instituições religiosas a cancelarem suas atividades presenciais, entre elas Seicho-no-
-Ie, Soka Gakkai, Sekai Kyusei Kyo (Igreja Messiânica, como é conhecida no Brasil), Risho Kosseikai
e Shinnyo-en.
McLaughlin anota que o cancelamento das atividades comunitárias presenciais das
novas religiões aconteceu em um momento em que o governo japonês titubeava em relação
às medidas adequadas diante da ameaça pandêmica. As iniciativas desses grupos parecem
ter sido, pelo menos em parte, estratégicas tendo em vista episódios anteriores de pâni-
co moral envolvendo novas religiões no Japão – McLaughlin se refere especialmente à Soka
Gakkai4. Evitaram assim qualquer eventual associação com a proliferação da contaminação,
como aconteceu com a nova religião coreana Shincheonji Church of Jesus (MCLAUGHLIN,
2020).
Por outro lado, é possível conjecturar que o esforço de algumas dessas novas religiões
de se apresentarem publicamente como religiões em afinidade com o conhecimento cientí-
fico, como é o caso preciso da Seicho-no-Ie, possa ter criado uma realidade mais sensível aos
argumentos em favor do isolamento. Abraçar o argumento científico significa, nesse senti-
do, a continuidade do esforço contemporizador praticado por algumas novas religiões que,
de maneira geral, procuram se destacar no interior do campo religioso pelas representações
que evocam “atualidade” ou adequação aos tempos modernos (CLARKE, 2006).
O estudo de McLaulin (2020) esclarece que as religiões japonesas responderam às an-
siedades provocadas pela pandemia através da realização de rituais diversos com o objetivo
4    A literatura sociológica das novas religiões observa que, de maneira geral, novas religiões são alvo de pânico moral e
estigmatizações diversas dentro e fora do campo religioso. No caso japonês, o pânico moral existe especialmente em
virtude da memória do atentado com gás sarim no metrô de Tóquio promovido pela nova religião de origem ainda mais
recente, Aum Shirinkyo, em 1995 (CLARKE, 2006).

49
de garantir a proteção do povo japonês. A pandemia foi atribuída à falta de equilíbrio cósmi-
co provocado pelas ações humanas, o que poderia ter produzido outros tipos de desastres.
Buscar proteção das deidades Kami ou do Grande Buda Cósmico assim como os meios para
a pacificação de espíritos foram alguns dos recursos empregados, segundo o autor, para a
restauração da harmonia necessária à superação da pandemia.
Como noutros campos do mundo, a internet foi o caminho adotado pelos grupos diver-
sos a fim da oferta espiritual do conforto e da regularidade de atividades e serviços religio-
sos. Segundo McLaulin (2020), Budista, Xintoístas, Cristãos Católicos e mesmo praticantes
do Shungedô, uma tradição das montanhas que mantêm laços correntes do budismo exotéri-
co e com a devoção às deidades Kami, recorrem às possibilidades de comunicação ofertadas
pela internet a fim de transmitirem atividades e rituais on-line
Embora McLaulin (2020) afirme que as novas religiões japonesas também tenham fei-
to o uso da internet, Erica Baffelli (2016) sustenta que, rotineiramente, muitos desses grupos
tendem a fazer o uso cuidadoso das oportunidades do ciberespaço em virtude do já men-
cionado pânico moral que os atinge. Segundo a pesquisadora, as novas religiões no Japão
tenderiam a perceber a internet como realidade que as torna mais vulneráveis aos setores
mais críticos da opinião pública. Por esse motivo, algumas de suas publicações on-line são
reproduções literais de conteúdos divulgados em outras mídias.
No Brasil, pelo menos até onde alcançamos, as novas religiões japonesas, além da Sei-
cho-no-Ie, paralisaram suas atividades presenciais entre o final de março e o início de abril,
simultânea à maioria dos outros grupos religiosos. Assim como a Seicho-no-Ie, grupos como
a Igreja Messiânica, a Ômoto do Brasil, a Soka Gakkai e a Tenrikyô do Brasil divulgaram notas
de esclarecimento a fim de orientar seus seguidores. Por esse motivo, atividades e rituais
importantes que contavam com expressivos números de participantes e que aconteciam
nos maiores complexos religiosos desses grupos, como o Solo Sagrado de Guarapiranga,
da Igreja Messiânica ou a Academia de Treinamento de Ibiúna, da Seicho-no-Ie, foram reali-
zadas apenas por oficiantes ou funcionários daqueles espaços. Algumas dessas atividades
ritualísticas mais marcantes, contudo, foram transmitidas pela internet, como as “caravanas
virtuais” realizadas pela Igreja Messiânica em seu solo sagrado, dedicadas ao culto mensal
dos antepassados.
Diferente da Seicho-no-Ie e da Igreja Messiânica, verificamos em nossa pesquisa que
grupos como a Ômoto e a Soka Gakkai não fazem o uso sistemático do Youtube. Por outro lado,
a Associação de Moços da Tenrikyo, uma das primeiras novas religiões japonesas surgida no
século XIX e que conta com menor visibilidade no Brasil, é dona de um canal no Youtube que
replica os conteúdos do simpático podcast chamado Seinenkai BR5.
Os perfis oficias nas redes sociais, como o Facebook e o Instagram, tornaram-se funda-
mentais para que as novas religiões japonesas no Brasil ofertassem o conforto espiritual em
tempos de pandemia. A maior parte das postagens que acompanhamos remetiam aos conte-

5    O podcast surgiu durante a pandemia. Seu primeiro episódio foi divulgado no dia 13 de junho. Os três primeiros epi-
sódios, no mês de junho, apresentaram um vislumbre do cotidiano dos seguidores do grupo em tempos de pandemia.
Interessantemente, no mesmo mês, a Seicho-no-Ie também lançou seu podcast, o SNICast. Até o mês de novembro, foram
publicados 24 episódios, nenhum deles dedicados à pandemia.

50
údos e preleções divulgadas pelo Youtube. Religiões como a Seicho-no-Ie e a Igreja Messiânica,
que já faziam significativo uso do espaço virtual, certamente enfrentaram menores desafios
que aqueles que não tinham a mesma familiaridade com o mundo on-line e a mesma estru-
tura de divulgação religiosa.
Embora a Igreja Messiânica seja a nova religião japonesa com maior número de adep-
tos no Brasil (TOMITA, 2004), sua página oficial no Youtube totaliza pouco mais de um mi-
lhão e trezentos mil visualizações. Por sua vez, a Seicho-no-Ie totaliza quase vinte oito mi-
lhões e trezentos mil. Uma possível explicação para essa diferença é o fato de a Messiânica
possuir uma plataforma específica, a Izonome TV6.
Esses números, no caso específico da Seicho-no-Ie, não são interpretados por nós como
indícios de membresia, no sentido cristão-comunitário, em virtude da existência de regi-
mes de envolvimento distintos no interior do grupo e da atração que a nova religião japone-
sa exerce sobre buscadores e sujeitos espiritualmente errantes (SILVEIRA, 2016). Sobre isso,
Dawson e Cowan (2004) sustentam que a própria internet favorece um ambiente de maior
fluidez religiosa e, consequentemente, de experimentações individuais e mesmo terapêu-
ticas. Nela, os indivíduos podem encontrar, de forma anônima e livres de constrangimen-
tos convencionais, as respostas às suas angústias e expectativas por meio de vídeos de uma
nova religião cujos conteúdos psicologizantes e motivacionais são de fácil assimilação7.
A suspenção das atividades presenciais da Seicho-no-Ie do Brasil aconteceu em março
de 2020. A primeira publicação sobre o tema na página oficial do grupo no Facebook ocorreu
no dia treze daquele mês. A página apresentou o conteúdo do documento oficial assinado
por Fumio Nishiyama, Presidente Doutrinário da Seicho-no-Ie para a América Latina, e por
José Adalto de Oliveira, diretor presidente da instituição no Brasil.
O documento repercutia as orientações do presidente mundial, Masanobu Taniguchi.
Seu conteúdo apontava para o primeiro impacto da decisão, a alteração da data da realização
da principal atividade religiosa da Seicho-no-Ie, a Festividade do Santuário de Hoozo, localiza-
do na Academia de Treinamento Espiritual de Ibiúna, São Paulo. O evento, que aconteceria
algumas semanas depois da divulgação da nota de suspensão, no mês de abril, deveria acon-
tecer virtualmente em 06 de setembro. Ficava estabelecido ainda que todas as atividades
de preleção deveriam acontecer remotamente e que as mesmas seriam conduzidas pelos
preletores da sede central da instituição, em São Paulo.
Desde então, a Seicho-no-Ie definiu que suas atividades se realizariam diariamente, du-
rante o período vespertino e noturno. No domingo, a atividade virtual deveria acontecer
pela manhã, o “Domingo da Seicho-no-Ie”, como é conhecida a principal reunião semanal
do grupo religioso. Entre as várias atividades online, destacamos os Estudos da Coleção a
Verdade da Vida, os Estudos e Práticas da Meditação Shinsokan, as Reuniões Virtuais para os

6    A título de comparação com outras religiões, o perfil oficial da Assembleia de Deus, Ministério Madureira, tem pouco
mais de cinco milhões e cem mil acessos, enquanto o perfil da Igreja Quadrangular possui pouco menos de novecentos
mil.
7    Em virtude disso, estamos inclinados ao entendimento de que a internet, no âmbito da religião, favorece a experimen-
tação não apenas por tornar acessível vários caminhos religiosos, mas por diminuir a força de constrangimentos que
obstam a experimentação.

51
Jovens, as Reuniões Virtuais dos Educadores e as Reuniões Virtuais da Prosperidade, além
das rotineiras preleções que tratam de temas diversos e cotidianos, entre elas a pandemia.
Como era de se esperar, os usos que a Seicho-no-Ie faz das redes sociais, como o Youtube,
o Facebook e o Instagram, procuram reproduzir suas atividades doutrinárias e também sua
dimensão motivacional. Enquanto o Youtube hospeda os conteúdos religiosos, em especial
as preleções, Facebook e Instagram reproduziam através de publicações de frases diretas, em
um plano estético colorido e alegre, o mesmo otimismo das revistas e dos calendários que
popularizaram a religião. Se a Seicho-no-Ie, historicamente, é a religião da revista e do calen-
dário, em tempo de virtualização ela também é a religião dos posts motivacionais e coloridos
que certamente circulam muito além do grupo de indivíduos que orbitam regularmente a
instituição.
Imagem 01:Publicação Motivacional em rede social durante a pandemia

Fonte: perfil oficial da Seicho-no-Ie no Facebook

A maioria das atividades online atende aos vários setores da instituição religiosa e seus
grupos internos. Algumas delas existiam antes da pandemia. Como nas reuniões presen-
ciais, as atividades são estritamente referenciadas pela copiosa bibliografia religiosa do gru-
po e disponível na livraria virtual da instituição que aparece em um dos links na descrição
dos vídeos. Por fim, os encontros remotos oportunizam, em alguns casos, a possibilidade de
interação instantânea, inclusive com o envio de dúvidas pelo chat online do Youtube
Dentre as várias atividades online, chamou-nos a atenção a “Oração dedicada aos que
sofrem com o Novo Coronavírus”, realizada diariamente às 18:00 e às 21:30. A oração é orien-
tada pela Seicho-no-Ie em um documento de 25 de março de 2020. Ela faz o uso especialmente
de trechos dos sutras Chuva de Néctar da Terra e A Verdade em Orações. Além deles, são usados o

52
Canto da Grande Harmonia e o Canto em Louvor da Natureza. Na oração, esses textos procuram
fazer florescer o pensamento positivo, as “boas vibrações”, como costumam dizer, a partir
da ideia de que o “homem é filho de Deus” e por isso livre da doença e da morte.
A oração consiste principalmente na leitura e recitação de textos sagrados realizada
por preletor da Seicho-no-Ie que convida a audiência a assumir a posição de reverência para a
mentalização da “Imagem Verdadeira”. Como noutras atividades, presenciais ou não, o qua-
dro da “Imagem Verdadeira” está presente ao fundo, atrás do responsável pela realização da
oração. Procura-se mentalizar preceitos religiosos a respeito da condição humana de filho
de Deus e da ilusão do mundo fenomênico, em especial a doença. Enfatiza-se a humanidade
perfeita e imperecível na Imagem Verdadeira, cujo manancial vital é o próprio Deus.
A oração é acompanhada a partir do chat online, em tempo real, onde os participantes
declaram sua gratidão e fórmulas religiosas gerais, além de manifestarem sempre seu lugar
de pertencimento nas várias comunidades da Seicho-no-Ie espalhadas pelo país. O expedien-
te da declaração através do chat reproduz digitalmente os exercícios de afirmação motiva-
cional e reciprocidade comunitária que estão presentes nos encontros presenciais do grupo.
O Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo
Como já tivemos a oportunidade de discutir em outros trabalhos, a Seicho-no-Ie, sob a
liderança mundial de Masanobu Taniguchi, enveredou pela ecoespiritualidade, isto é, por
uma religiosidade que se orienta pela sensibilidade ambientalista de nossos dias e que sacra-
liza a natureza (SILVEIRA, 2016). Assim como outros grupos religiosos, antigos ou recentes,
a Seicho-no-Ie, a partir de seu lugar social e da realidade religiosa japonesa, se inscreveu, nas
primeiras décadas do século XXI, em uma paisagem de fé atravessada pela “virada verde”:
O interesse pelas “energias cósmicas”, a “gratidão à Mãe Natureza” e a busca pela “Paz
interior” testemunham também a condição, aqui neste mundo, da ecoespiritualidade
[...] Ao invés da busca da salvação da alma no sentido que nos é familiar [no cristia-
nismo], procura-se uma nova consciência capaz de transformar o sujeito e alcançar o
“eu verdadeiro” aqui e agora. Esse interesse ainda se vincula ao entendimento de que
a “nova consciência” produziria estados mentais e comportamentos capazes de pro-
porcionar aos sujeitos algum tipo de bem-estar [...] Novos hábitos alimentares, retiros
na natureza, meditação ao ar livre, ingestão de beberagens específicas oriundas das
sabedorias populares etc. são iniciativas terapêuticas que procuram harmonizar o in-
terior dos sujeitos, desacelerar suas vidas e lhes provocar bem-estar cotidiano a partir
de fontes “naturais”, livres de toda sorte de artificialidade e riscos atribuída aos modos
de vida modernos (SILVEIRA; SILVEIRA, 2020).

À sua maneira, a Seicho-no-Ie se move no interior da ecoespiritualidade, a partir de suas


narrativas e das tradições religiosas japonesas mais amplas, das quais ela retirou, histori-
camente, suas principais elaborações e doutrinas. É nesse sentido que se destaca a figura
de Kazeon Bosatsu, o Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo8. O Bodisatva que Reflete os

8    Kazeon Bosatsu ou Kannon Bosatsu são as maneiras que Avalokitesvara é conhecido no Japão. Assim como na China e
outros lugares do sudeste asiático, Avalokitesvara, o principal bodisatva da tradição Mahayana, é representado de forma
feminina no Japão – os chineses o chamam de Guan Yin. No vigésimo quinto capítulo do Sutra do Lotus (2007) Avaloki-
tesvara aparece como aquele que responde aos clamores dos que carecem de socorro, daí o significado atribuído ao seu
nome como “Aquele que escuta os sons do mundo”. Em virtude disso, Edward Irons (2008) afirma que o personagem

53
Sons do Mundo é uma personagem do budismo que aparece em vários textos da Seicho-no-Ie
referentes à sabedoria e à compaixão divina; ele é a própria manifestação da grande vida
que constitui o princípio da Imagem Verdadeira. Em alguns textos escritos por Masanobu
Taniguchi, atual líder do grupo religioso, o Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo recebe
atenção especial, sendo às vezes associado à tomada de consciência espiritual da relação
entre humanidade e natureza. Por isso, não se trata necessariamente de uma entidade no
sentido teísta, mas de um aspecto da “Imagem Verdadeira” que, segundo interpretamos, se
apresenta como mais próxima dos indivíduos, como uma espécie de “sabedoria” que lhes
fala cotidianamente.
Sobre o Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo é possível ler, na Oração para visualizar
a grande harmonia entre e a natureza e os seres humanos, que antecede o trecho principal do de-
vocional Canto em Louvor à Natureza, o seguinte:
Um terremoto enorme não é a “ira de Deus”, é uma “lição de Bodisatva que Reflete os
Sons do Mundo”. É somente quando não as temos mais, é que percebemos quantas
bençãos a natureza tem nos dado. Estamos sendo ensinados que não importa quan-
tas estruturas manufaturadas, lavouras, portos, estradas, linhas de força, sistemas de
internet nós construímos se ignorarmos e negligenciarmos a energia e a estrutura
delicada e expansiva da natureza e cometermos o tolo erro de infringi-la e violá-la, a
vida do mundo civilizado será destruída instantaneamente. O Bodisatva que Reflete os
Sons do Mundo, que é a nossa natureza verdadeira, está ensinando nós seres huma-
nos: “Sejam mais humildes”, “Conscientizem-se de que vocês são parte da natureza”,
“Recupere o Eu que é um com a natureza” (TANIGUCHI, 2014, p. 09 – 10).

O fragmento da oração introduz o Canto de Louvor a Natureza, escrito por Masanobu


Taniguchi. Ele oferta um vislumbre da maneira que a Seicho-no-Ie, na contemporaneidade,
interpreta as catástrofes naturais, como a pandemia. Para a nova religião japonesa, o Bodi-
satva que Reflete os Sons do Mundo nos instrui sobre os limites da ação humana e da neces-
sidade de perceber a humanidade como parte de um todo divino. O evento catastrófico é,
nesse sentido, consequência espiritual das ações humanas, mas também um alerta para que
instauremos a relação harmônica com o meio-ambiente.
A esta altura já está claro que a pandemia é interpretada pela Seicho-no-Ie como conse-
quência da falta de harmonia espiritual entre a humanidade e o restante do mundo natural.
Sustentado por Masanobu Taniguchi, esse entendimento aparece em um pronunciamento
da Seicho-no-Ie intitulado Mensagem especial do Presidente Doutrinário da Seicho-no-Ie para a
América latina, publicado ainda no início da pandemia, em março de 2020, através da página
oficial da instituição e de um vídeo no Youtube feito por Fumio Nishiyama, Presidente Dou-
trinário da América Latina. Nele, lemos algumas orientações do atual líder da instituição:
[...] o Supremo Presidente da Seicho-No-Ie, Professor Masanobu Taniguchi, enfatizou
os seguintes pontos em sua explanação:1) A humanidade vem torturando a natureza
de uma maneira que torna tudo bastante difícil, causando uma série de problemas
para a natureza. 2) E isso faz com que pela lei “Dá e receberás”, se o homem tortura
a natureza, esta também acabará por torturá-lo. 3) É isso que está acontecendo com
o planeta, neste instante. 4) Por isso, a Seicho-No-Ie divulga o modo de vida em que

religioso é associado aos valores da Karuna, traduzido por compaixão.

54
Deus, Natureza e Seres Humanos mantenham a Grande Harmonia, pois são origina-
riamente unos. É o que sempre viemos divulgando, e que vamos continuar a fazê-lo
(SEICHO-NO-IE, 2020).

A ideia de um mesmo mundo, uma “casa comum”, figura em vários textos de Masano-
bu Taniguchi endereçados especialmente às questões ambientais. Vale destacar, na citação
acima, que a lei do “dar e receber” é pensada a partir da realidade planetária. A pandemia é
consequência da maneira coletiva de conceber as relações entre humanidade e natureza. O
escopo global das novas religiões japonesas e a pretensão à universalidade, discutidos prin-
cipalmente por Peter Clarke (2006), aparecem nas publicações e pronunciamentos recentes
da Seicho-no-Ie, a partir principalmente do cuidado com a natureza.
A solução para evitarmos outras catástrofes passaria então pela emergência de uma
nova consciência planetária, certamente orientada pela visão de mundo da Seicho-no-Ie, ca-
paz de estabelecer o sentimento de unidade espiritual entre humanidade e natureza. Esse
aspecto ecológico ou ecoespiritual pigmenta o “vitalismo religioso” a que aludimos acima.
Assim, saúde e cura, em sentido amplo, não podem ser pensadas sem se levar em considera-
ção que a humanidade é una com o restante da natureza enquanto expressões da Imagem
Verdadeira.
As expectativas de alcance da paz mundial e o anelo da renovação do mundo, que apa-
recem nos direcionamentos doutrinários e publicações da religião japonesa ao longo de toda
a sua existência, são agora atravessados pela preocupação ambiental planetária. O Bodisatva
que Reflete os Sons do Mundo seria, segundo acreditam, aquele que opera o desenvolvimen-
to dessa nova consciência e da renovação do mundo a partir de avisos que nos lembram das
consequências das ações humanas em relação ao meio-ambiente.
No perfil pessoal de Masanobu Taniguchi, no Facebook, a ênfase na natureza presente
em seus textos e nas orações é ainda mais patente, embora menos espiritualizada. Nelas,
as postagens com imagens do cotidiano do líder religioso durante a pandemia são entre-
meadas por considerações ambientalistas. Temas como energia renovável, abstenção de se
alimentar de carnes – o que era inclusive recomendado por seu avô – coleta de cogumelos e
as atividades de ciclismo9 apresentam um sujeito de meia idade que dificilmente seria as-
sociado à figura de um líder de uma religião presente em diversos cantos do mundo. Como
era de se esperar, suas postagens sugerem sempre os valores da integração e do respeito à
natureza como meio para a superação dos desafios ecológicos e, por extensão, de novos de-
sastres como a pandemia do COVID-19.
Considerações finais
Como outras instituições religiosas no Brasil, a Seicho-no-Ie precisou se adaptar às res-
trições impostas pela pandemia. Ao contrário de muitos grupos, a instituição de origem
japonesa parece não se engajar em qualquer movimento para pressionar pela realização de
atividades presenciais enquanto não existir real segurança para seus membros. Tampouco,
pelo menos não institucionalmente, tivemos conhecimento de posições públicas que asso-

9    O ciclismo é uma atividade estimulada pela Seicho-no-Ie em suas páginas nas redes sociais.

55
ciavam o isolamento à restrição de liberdade religiosa, como aconteceu com alguns grupos10.
A posição da Seicho-no-Ie pode ser ilustrada através da opção da instituição por transmitir
virtualmente seu principal ritual, a Festividade do Santuário Hozoo, em setembro de 2020, e
também a Cerimônia em Memória dos Antepassados, que aconteceu no dia de finados. Am-
bos são eventos muito importantes para a prática religiosa e sua transmissão pela internet
expressa, de forma inequívoca, a posição do grupo.
Por se tratar de uma religião relativamente habituada ao ambiente virtual, a adapta-
ção às exigências do distanciamento social nos pareceu menos traumática, embora certa-
mente difícil para os adeptos e simpatizantes acostumados às experiências de convivência
oportunizadas pelos encontros semanais de estudo e de meditação. Não é difícil imaginar
os sentimentos provocados pela ausência dos efusivos “muito obrigado” e “reverência” que
constituem a liga das interações mais básicas dessa comunidade religiosa.
A nova religião japonesa precisou ofertar explicações sobre as razões da pandemia, es-
pecialmente porque sua doutrina insiste na natureza ilusória da doença. Uma doença capaz
de enredar todo o planeta é tudo menos uma ilusão, pelo menos para quem não está debaixo
do dossel da narrativa religiosa de Masaharu Taniguchi. Como, à luz dessa doutrina religio-
sa, interpretar um evento que, de forma eloquente, nos lembra da precariedade de nossas
vidas? Trata-se de uma indagação semelhante àquela que, no mundo cristão, questiona a
existência do mal.
Tornar a pandemia religiosamente inteligível, isto é, compreensível a partir de uma
determinada narrativa religiosa, significa converter o contingente em uma realidade dota-
da de sentido. Enquanto a pandemia é interpretada por alguns grupos religiosos ou indi-
víduos como algum tipo de punição divina ou talvez como sinal da consumação do mundo
como o conhecemos, para a Seicho-no-Ie ela é produto da ausência da consciência espiritual
da unidade entre Deus, humanidade e natureza, que constitui o vitalismo religioso comum
a várias novas religiões japonesas. Ao invés do sinal para o fim, ela é representada como
sinal para a necessidade de transformação espiritual em relação à consciência da unidade
espiritual.
Nesse sentido, a pandemia também é representada como oportunidade de aprendiza-
gem oferecida pelo Bodisatva que Reflete os Sons do Mundo. Movida pela esperança religio-
sa, a religião japonesa sugere que uma nova humanidade, mais consciente espiritualmente
de sua relação com a natureza, poderá surgir após a pandemia. Dessarte, como acontece
noutros sistemas religiosos, o horizonte é concebido a partir da expectativa da evolução es-
piritual e a renovação do mundo, esperada por algumas das novas religiões japonesas, con-
verte-se em ecotopia.
Ao revisitarmos a Seicho-no-Ie, após cinco anos de nossa principal pesquisa, encontra-
mos um grupo religioso ainda mais envolvido com os temas ambientais com os quais lida-
mos no passado. A pandemia, segundo nos parece, cuidou de enraizar mais profundamente

10    Como hipótese, acreditamos que essa posição reflita as orientações da sede central japonesa. Como dissemos antes,
as novas religiões no Japão procuram escapar ao pânico moral e por isso adotaram posturas estritas. Além disso, a Sei-
cho-no-Ie no Brasil não possui histórico de enfrentamento político no espaço público em virtude, certamente, de sua ética
da harmonia e gratidão a todas as coisas.

56
o ideal da harmonia com a natureza como traço marcante e essencial da ortodoxia de um
grupo que, embora japonês na origem, é majoritariamente constituído por adeptos e simpa-
tizantes brasileiros.
Referências
ALBUQUERQUE, Leila M.B. Seicho-no-Ie do Brasil: agradecimento, obediência e salvação. São Paulo: Annablume, 1999.
BAFFELLI, Erica. Media and New Religions in Japan. Nova Iorque: Routledge, 2016.
BERGER, Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulinas, 2009.
CLARKE, Peter. New Religion in Global Perspective. Londres: Ed. Routledge Curzon, 2006.
DAWSON, Lorne L.; COWAN, Douglas E. Introduction. In.: DAWSON, Lorne L.; COWAN, Douglas E. Religion online:
finding faith on the Internet. Londres/Nova Ioraque, Routledge, 2004.
DINIZ, Ediléia Mota. Charisma and Power in Religious Discourse: A Study of Masaharu Taniguchi s Legacy Seicho-
No-Ie in Brazil. 2006. 189 f. Dissertação (Mestrado em 1. Ciências Sociais e Religião 2. Literatura e Religião no Mundo
Bíblico 3. Práxis Religiosa e Socie) - Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2006.
GUERRIERO, Silas. Novos movimentos religiosos: o quadro brasileiro. São Paulo: Paulinas, 2006.
INOUE, Nobutaka. Japanese New Religions in the Age of Mass Media. Tóquio: Institute for Japanese Culture and Clas-
sics, 2017.
IRONS, Edward A. Avalokitesvara. In.: IRONS, Edward A. Encyclopedia of Buddhism. Nova Iorque, Facts on file, 2008.
KUBO, Tsugunari; YUYAMA, Akira. Lotus Sutra. Berkley, Califórinia: Numata Center for Buddhist Translation & Re-
search, 2007.
MAEYAMA, Takashi. O Imigrante e a Religião: Estudo de uma seita religiosa japonesa em São Paulo. 1967. Dissertação
(Mestrado). Escola Paulista de Sociologia e Política, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, São Paulo,
1967.
MATSUDA, Miyoshi. Uma vida dedicada à pregação da verdade. São Paulo: Seicho-no-Ie do Brasil, 2007.
MCFARLAND, H. Neill. The Rush Hour of the Gods: a study of new religious movements in Japan. Nova Iorque, Mcmil-
lan, 1967.
MCLAUGHLIN, Levi. Japanese Religious Responses to COVID-19: A Preliminary Report. Asia-Pacific Journal: Japan
Focus, Tóquio, vol. 18, no. 9, p.1–23, maio de 2020. Disponível: https://apjjf.org/2020/9/McLaughlin.html. Acesso em: 12
jun. 2020.
MELTON, J. Gordon. New Thought. In.: In: CLARKE, Peter (Org.). Encyclopedia of New Religious Movement. Londres/
Nova Iorque: Routledge
READER, Ian. Japanese New Religious Movements. In: JUERGESNSMEYER, Mark (Ed.). The Oxford Handbook of
Global Religions. New York: Oxford University Press, 2010.
SEICHO-NO-IE DO BRASIL. Mensagem especial do Presidente Doutrinário da Seicho-no-Ie para a América latina.
Disponível em: http://www.sni.org.br/comunicado-presidente-dountrinario-fumio-nishiyama-seicho-no-ie-covid-
19-corona.php . Acesso em: 8 jun. 2020.
SHIMAZONO, Susumu. From Salvation to Spirituality: Popular Religious Movements in Modern Japan. Mel-
bourne:Trans Pacific Press, 2004.
SHIMAZONO, Susumu; TSUSHIMA, Michihito; NISHIYAMA, Shigeru; SHIRAMIZU, Hiroko. The Vitalistic Conception
of Salvation in Japanese New Religions. Japanese Journal of Religious Studies, Tóquio, Japão, v. 6, nº.1, pp.139-161, 1979.
SILVEIRA, João Paulo de Paula. Identidades religiosas na modernidade tardia: um estudo a partir da Seicho-no-Ie do
Brasil em Goiânia. 2016. 210 f. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2016.
SILVEIRA, Emerson; SILVEIRA, João Paulo P. Ecoespiritualidade: religião e a nova gramática espaço-temporal. REV-
ER, São Paulo, vol. 19, n.3, p. 79-98, 2020.
STAEMMLER, Birgit. New religions – The History. In: BIRGIT, Staemmler; Dehn, Ulrich (Eds.). Establishing the revo-
lutionary: an introduction to New Religions in Japan. LIT Verlag, Berlim, 2011.
TANIGUCHI, Masaharu. A Verdade da Vida - vol.07. São Paulo: Seicho-no-Ie, 1989.

57
_____. Comande sua vida com o poder da mente. São Paulo: Seicho-no-Ie do Brasil, 2007.
_____. Seicho-no-Ie: edição especial. São Paulo: Seicho-no-Ie do Brasil, 1993.
TANIGUCHI, Masanobu. Canto em louvor à Natureza. Hokuto, Japão: Seicho-no-Ie International Headquarters, 2014.
TOMITA, Andrea. G.S. As novas religiões japonesas como instrumento de transmissão de cultura japonesa no Bra-
sil. REVER, São Paulo, nº 3 - ano 4, p. 88-102, 2004. Disponível em: https://www.pucsp.br/rever/rv3_2004/p_tomita.pdf .
Acesso em: 18 ago. 2020.

58
Capítulo 4

A Covid-19 e suas interpretações


na barquinha

Wladimyr Sena Araújo

A palavra epidemia deriva do grego επιδημία e expressa, do ponto de vista clínico,


o aumento anormal do número de pessoas contaminadas por uma doença em
uma região ou localidade. Neste sentido, o composto epi, sobre, combinado com demos, país/
povo, designava enfermidades que afetavam pessoas em uma determinada localidade, sem-
pre restritas regionalmente por causa das dificuldades de deslocamentos geográficos em
tempos pretéritos. O termo epidemia é bastante antigo e já aparecia no Corpus hippocraticum
ordenado em sete livros (REZENDE, 1998).
A “epidemia” não se confunde com o conceito de “pandemia”. Esta última terminologia
advém do grego παν e significa pan, tudo/todo(s), somada a δήμος, demos/povo. Traduzindo
a acepção grega, “enfermidade de todo um povo”, a pandemia caracteriza-se pela afetação
de grande número de indivíduos em uma área geográfica extensa, podendo ser um conti-
nente ou mesmo abarcar o planeta todo.
O termo pandemia foi empregado pioneiramente por Platão na obra O livro das leis,
que o utilizou em seu sentido mais amplo, relacionando-o a eventos que atingissem toda a
população. Seu discípulo, Aristóteles, também dele fez uso com o mesmo significado (BAILY
apud REZENDE, 1998).
Ao longo da história foram registradas diversas epidemias e pandemias, como a Pes-
te do Egito em 431-430 a.C., ocasião em que a febre tifoide ceifou um quarto das tropas de
Atenas na Guerra do Peloponeso; a epidemia de 451 a.C., ocorrida num momento em que
estavam sendo ampliadas as relações comerciais de Roma com outras cidades do mundo
antigo; a Peste de Siracusa em 396 a.C., quando o exército cartaginês sitiou a cidade da Sicí-
lia; a Peste Antonina no século II; a Peste de São Cipriano no século III, que afetou diversas
cidades romanas; a Peste de Justiniano em 542; a Peste Negra no século XIV; epidemias de
varíola, sarampo, febre amarela, tifo, malária, gripe e peste bubônica nas Américas entre os
séculos XVI e XIX; e a da Gripe Espanhola entre 1918 e 1920 que deixou 50 milhões de mortos
de acordo com algumas fontes (TUCÍDIDES apud LOPES, 1969; UJVARI, 2020; MARTINO,
2017).
Isso posto, infere-se que o ano de 2020 entrará para a história por ter registrado uma
das maiores catástrofes planetárias causada pela imponência de um vírus que matou mi-
lhares de vítimas sem reconhecer fronteiras físicas e territoriais. Algumas imagens ater-
radoras desse ano talvez marquem a memória coletiva das pessoas por décadas e incluem,
sobretudo, a perplexidade, seguida pelo medo e impotência. Nesse contexto, como apagar
a cena das sirenes de ambulância soando pelas ruas de qualquer cidade do planeta levando
enfermos para os hospitais na incerteza da sobrevivência?
Sobre a morte por Covid-19, as imagens impactantes de corpos e de sacos com corpos
ainda está a rondar as mentes humanas. Todavia, a interdição de velórios pelas autoridades
sanitárias constituiu ato cruel e impiedoso para familiares e amigos que não puderam ver,
pela última vez, entes queridos que eram enterrados de forma rápida, sem os tradicionais
ritos fúnebres de despedida próprios de cada sociedade.
Nessa conjuntura, a doença desafiou os rituais criando, inevitavelmente, barreiras en-
tre aqueles que morriam e os que permaneciam vivos. Assim, a Covid-19 impôs a dessacra-
lização do mundo manifestada nos ritos. O SARS-Cov-2, vírus causador da pandemia de
2020, quebrou a rotina da existência humana ao impor uma nova lógica baseada no uso
frequente de máscaras, de álcool gel, isolamento social e interposição de contato físico.
A Covid-19 se tornou um drama social em escala planetária, alcançando o seu apogeu
ao se converter em macro drama social, marcado pelas experiências sociais em todo o mun-
do. Estes conceitos, elaborados pelo antropólogo Victor Turner (2008), se mostram oportu-
nos como possibilidade de reflexão para a pandemia.
Conforme demonstra o historiador Sebastian Conrad (2019), alguns fenômenos que
aparecem ao longo da história da humanidade têm caráter mais amplo, a exemplo das gran-
des guerras, mudanças climáticas e doenças que podem ser analisados por meio da história
global. Em sua concepção, neste tipo de abordagem historiográfica é essencial não a análise
de uma história do planeta, mas as suas conexões mundiais. A conexão, nesse contexto, se
torna sinônimo de movimento, fronteiras, trânsito, transculturalidade, transterritorialida-
de e circulação das representações.
Nessa lógica de entendimento, a pandemia de Covid-19 encontra guarida na forma de
abordagem. Para o teórico em comento, a história global ao mesmo tempo em que é objeto
pode se tornar, igualmente, procedimento metodológico que se aplica a determinadas abor-
dagens passiveis de conectividades. Tal perspectiva dual vem de encontro aos estudos sobre
a Covid-19.
Na esteira desse entendimento, o global pode servir para contextualizar eventos histó-
ricos locais, pois “[...] as questões mais interessantes nascem da intersecção entre os proces-
sos globais e as suas manifestações locais” (CONRAD, 2019, p. 26). Nesse aspecto, a doença
pode ser global, mas ser passível de interpretação local pelos mais diversos grupos ou comu-
nidades sociais, a exemplo das religiões.
Sendo assim, o artigo que aqui se apresenta parte do pressuposto de que existe uma
diversidade de compreensões acerca da pandemia que se propagou durante o transcurso
do ano de 2020 nos cinco continentes. Nestes termos, analisa-se de que forma a Barquinha,

60
uma religião usuária de ayahuasca da Amazônia Ocidental, trata a questão. Para atingir esse
objetivo, são privilegiados os discursos de quatro lideranças de três centros religiosos: Cen-
tro Espírita e Obras de Caridade Nossa Senhora Aparecida, localizado em Rio Branco (Acre),
presidido pelo casal José do Carmo Lima e Sheila de Mendonça Lima; Centro Espírita Bar-
quinho de Luz, situado na cidade do Rio de Janeiro, dirigido pela psicóloga Marília Teresa
Bandeira de Melo; e o Centro de Realização Espiritual Casa de Jesus e Lar de Frei Manoel,
com sede em Ji-Paraná (Rondônia), presidido por Edilson Fernandes da Silva.
Nos centros acima sublinhados foi realizada a pesquisa de campo1 entre os meses de
março e agosto de 2020 sobre a Covid-19. No período temporal delimitado observou-se o
isolamento social e a pesquisa foi conduzida de forma remota em obediência às recomenda-
ções da Organização Mundial da Saúde (OMS). As entrevistas foram realizadas por meio do
aplicativo WhatsApp através de arquivos de áudio e pontos controversos foram elucidados
através de chamadas de vídeo, telefônicas ou por e-mail.
A religião ayahuasqueira criada por Daniel Pereira de Mattos
A ayahuasca, palavra do dialeto quéchua que significa “vinho dos mortos” ou “liana dos
espíritos” (SCHULTES, 1986), é também designada pelos Napo Runa dos altiplanos equato-
rianos como “cipó com uma alma” (HIPHGINE, 2012). Ela consiste em uma bebida feita com
a decocção de um cipó, denominado cientificamente de Banisteriopsis caapi2, com uma folha,
conhecida pelo nome científico Psychotria viridis.
O termo é apenas um dentre tantos outros que são empregados nos Andes e na Amazô-
nia brasileira, colombiana, venezuelana, equatoriana, peruana e boliviana. É digno de nota
citar que nesse imenso espaço geográfico, os usos e significantes podem variar de cultura
para cultura. No caso específico deste artigo é utilizado também o termo Daime, derivado do
rogativo “dai a mim” empregado pelos fiéis no Santo Daime e na Barquinha.
A partir do século XXI, observa-se que a ayahuasca é utilizada cada vez mais para além
das fronteiras da Amazônia e dos Andes, alcançando regiões dos cinco continentes do pla-
neta. Isto se deve à ampliação do campo ayahuasqueiro, que inclui indígenas, vegetalistas,
seringueiros, terapeutas, neo ayahuasqueiros, neo pajés e religiões brasileiras usuárias da
substância. Este campo é formado por atores com interesses diversos, constituindo um dos
motivos para a expansão do uso da ayahuasca para outros países.
As três religiões brasileiras usuárias de ayahuasca são conhecidas como Santo Daime,
Barquinha e União do Vegetal. O presente artigo trata, especificamente, da Barquinha, re-
ligião instituída em 1945 por Daniel Pereira de Mattos. Este personagem nasceu em 1888 na
freguesia de Vargem Grande, no Maranhão. Ele era negro, filho de antigos escravos que,
ainda novo, ingressou na Marinha brasileira.

1    A pesquisa de campo é aqui entendida não como o campo físico, mas o virtual, sendo possibilitada pelas ferramentas
tecnológicas disponíveis.
2    Assim chamada pelo naturalista Richard Spruce que, no século XIX, percorreu rios da Amazônia e Andes tendo ob-
servado seu uso sagrado entre diversos povos indígenas. Foi a partir de Spruce e de Alfred Russel Wallace que a bebida
adquiriu conotação científica, pois foi apresentada à comunidade científica europeia, que legitimou os estudos dos
naturalistas sobre o assunto (ARAÚJO, 2018).

61
Chegou ao Acre no ano de 1905, ocasião em que deu baixa da vida militar e se instalou
definitivamente na capital acreana, a qual nunca mais abandonou. Frequentou a boemia até
1945, participando de festas e tocando instrumentos, quando fundou a religião que condu-
ziu ao longo de 14 anos, até sua morte ocorrida em 1958 (ARAÚJO, 1999; NEVES, 2005).
No período em que Daniel Pereira de Mattos encabeçou a religião, entre 1945 e 1958, ela
era designada como “Capelinha de São Francisco” ou “Igrejinha” (OLIVEIRA, 2002; MAGA-
LHÃES, 2013). O termo Barquinha só apareceu, nos discursos e representações, a partir do
momento em que a “Capelinha de São Francisco” ou “Igrejinha” foram oficializadas como
Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz.
Após o falecimento de Daniel, assumiu os trabalhos espirituais da igreja o senhor An-
tônio Geraldo da Silva, responsável pela introdução do termo Barquinha para designar a
religião. Observa-se, portanto, que a terminologia é relativamente contemporânea à sua
fundação, tendo se popularizado nas décadas de 1970 e 1980 por uma série de fatores.
O primeiro deles está relacionado à elaboração de uma simbologia voltada para o mar
na arquitetura e em outras representações, como fardamento e a própria designação do Dai-
me, do Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz, realizada por uma
liderança religiosa. O termo foi, ainda, divulgado em jornal de grande circulação na cidade
de Rio Branco. E, por fim, o grande afluxo de pessoas que passou a se dirigir ao templo após
a expansão da zona urbana para a área rural na qual estava originalmente situado. Os novos
fiéis passaram a utilizar a expressão Barquinha para se referir à religião, colaborando para
sua propagação na capital acreana.
Em contraposição, no Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz
surgiram diversas dissidências que passaram a demarcar gestões autônomas, embora te-
nham mantido a doutrina e os princípios religiosos definidos por Daniel Pereira de Mattos.3
Dentre essas dissidências, estão os centros anteriormente sublinhados.
A barquinha e a compreensão sobre a Covid-19
Antes de mais nada cumpre sublinhar que a Barquinha é uma religião escatológica,
isto é, apresenta discursos versando sobre tons proféticos e apocalípticos relacionados ao
fim do mundo. Sob este viés de análise, ao se colocar como religião de matriz escatológica,
a Barquinha manifesta a doutrina dos fins últimos, na qual o homem chega ao seu destino
final no universo (LE GOFF, 1994).
Esclareça-se que o vocábulo escatologia, no grego, é grafado no plural: ta eschata se
refere “às últimas coisas”. Todavia, pode ser compreendido, ainda, de maneira individual,
onde eschaton expressa o dia do Juízo Final (LE GOFF, 1994). É mister destacar que a Bar-
quinha pode ser considerada também como uma religião milenarista, visto que postula a
segunda vinda de Cristo à Terra, quando ocorrerá o Julgamento Final de todas as pessoas
mencionado no livro do Apocalipse.
Na Barquinha o termo apresenta, de fato, essa dupla conotação: a do destino final do
indivíduo e o da coletividade a ser submetida ao crivo do julgamento divino. A consciência
individual e coletiva sobre o Juízo Final faz com que os adeptos da religião a considerem
3    Para maiores esclarecimentos sobre a expansão da religião, indica-se a leitura de Araújo (1999) e Santos (2017).

62
como o “caminho da salvação”, na qual a participação em rituais e obediência à doutrina são
postas como etapas de preparação contínua para a eternidade (BALZER, 2003).
Os fiéis acreditam, todavia, que está ocorrendo um processo de destruição gradativa
do homem e do mundo no qual habitam. Essa destruição é manifestada em sinais, que in-
cluem guerras, fome, miséria, pandemias, agressões à natureza, aquecimento global, dentre
outros. Destaca-se que muitos destes sinais são verbalizados aos participantes durante os
rituais pelos líderes religiosos. Em consonância, do ponto de vista subjetivo o Daime possi-
bilita um diálogo individual sobre estas tragédias, seja por meio de reflexões dos sujeitos sob
o efeito do chá sagrado, ou através de visões aterradoras sobre destruições, pragas, pestes e
outros eventos desastrosos.
Um destes sinais repousa justamente na manifestação de doenças. Elas são caracte-
rizadas essencialmente como transgressões advindas originalmente do campo espiritual.
Como corolário, toda dor e sofrimento são provenientes do campo espiritual. Diretamente
relacionada a esse contexto, a enfermidade remete ao sacrifício e a transformação do sujeito
diante do mundo.
Na ótica dos líderes religiosos dos centros pesquisados, as doenças – sejam elas de ca-
ráter psicológico, emocional ou físico – que advém do campo espiritual podem ser inter-
pretadas igualmente como consequência das interferências antrópicas na Terra, na qual o
homem provoca a natureza e ela reage em sintonia com essa intervenção, desestabilizando
o “movimento do planeta”.
Nessa concepção, todas as tipologias de doenças são manifestações desta natureza na
qual Deus é o pivot. Sendo assim, acreditam que a maior das enfermidades é o pecado, pois
ele se torna uma transgressão da natureza, que é, por definição, divina.
Nesse quadro de referências coletivamente reconhecido, o pecado está envolvo em dis-
cussões relacionadas aos conceitos de luz e escuridão. A luz está próxima da visão dos dai-
mistas, na qual há uma natureza espiritual típica dos povos indígenas da Amazônia, com o
xamanismo possibilitando a aproximação do xamã (especialista do êxtase) ao mundo dos
espíritos. Não obstante, essa noção de luz também foi apropriada por vegetalistas de regiões
como Peru e Equador.4
Aprofundando essas considerações, Groisman (1996) discorre que os daimistas relacio-
nam a discussão sobre a luz a termos como verdade, revelação, iluminação, transcendência,
conhecimento e visibilidade, que fazem oposição à mentira, ilusão e trevas. Nesse contexto,
a bipolaridade luz e trevas pode ocupar um dos eixos de compreensão de mundo para os
seguidores do Santo Daime, assim como para a Barquinha.
Na Barquinha, a concepção de doença é similar ao Santo Daime: doença e cura cami-
nham juntas e estão associadas a contextos de escuridão versus luz e desequilíbrio versus
equilíbrio. Conforme demonstra Eliade (1979), enquanto a luz simboliza o conhecimento e
a integração do cosmos, as trevas se relacionam ao desconhecimento que é encarnado pela

4    Pode-se compreender o vegetalismo como uma forma de medicina popular decorrente do contato de mestiços que
herdaram práticas do xamanismo indígena e o mesclaram ao catolicismo trazido para os Andes e Amazônia por missio-
nários espanhóis jesuítas e franciscanos nos séculos XVII e XVIII. Dentre as principais características do vegetalismo se
destacam a cura e o uso de plantas sagradas, chamadas de “plantas maestras” ou “plantas doutoras” (Luna, 1984).

63
desordem e pelo caos. O autor pontua que essa premissa se manifesta em diversas culturas,
sendo essenciais para a experiência religiosa, pois é a partir dela que os sujeitos interpretam
a possibilidade de estarem “bem” ou “mal” diante do mundo.
Demonstrando a pertinência desse pressuposto, o adepto da Barquinha busca se apro-
ximar do mundo de luz, considerado como real. Em seus discursos, os rituais e a adesão à
doutrina de Daniel são capazes de afastá-lo do mundo das trevas e da ilusão.
Cumpre observar que tal concepção se aproxima da pesquisa desenvolvida pela antro-
póloga Maria Cristina Pelaez (1994), que versa sobre as categorias de doença e cura no Santo
Daime. Para a pesquisadora, são duas as categorias que explicam a doença na religião: aque-
las de caráter “material”, e as de cunho “espiritual”. Neste contexto, “[...] gripes, amigdalites,
viroses, gastroenteterites, acidentes domésticos, etc, geralmente não se buscaria o por que
(‘causas espirituais’), sendo suficiente entender como se produziu o transtorno (‘causas ma-
teriais’)” (PELAEZ, 1994, p. 76).
Dando prosseguimento às suas considerações, a autora demonstra que há outras do-
enças mais complexas que tem características diretas com as causas espirituais, nas quais
o sujeito é agredido por fatores materiais. Nesse quadro, os sintomas físicos passam a ser
consequência do espiritual. A pesquisadora ressalta que essa divisão é muito mais enfatiza-
da pelos estudiosos, dado que os adeptos não trabalham com a separação, mas com a dupla
causalidade sobre a doença. Assim sendo,
[...] esta clara divisão entre o empírico – racional (“causas materiais”) e o simbólico
(“causas espirituais”) existiria mais na mente do observador do que na dos nativos,
já que eles não estabelecem uma ruptura entre os domínios acessíveis ao saber e os
domínios acessíveis à fé. Pelo contrário, coincidindo com Marc Augé (1986), pensamos
que o empírico – racional e o simbólico se fundiriam parcialmente, dando – sentido
mutuamente (PELAEZ, 1994, p. 76).

Em sintonia com as palavras da pesquisadora, Groisman (1991) afirma que o material


e o espiritual estão interligados e que a doença, no Santo Daime, está intimamente relacio-
nada à espiritualidade, causa inicial da enfermidade. O autor se apoia na analogia das duas
flechas do antropólogo inglês Edward Evans-Pritchard (1974), que pressupõe a causalidade
dupla do infortúnio: uma realidade “visível” atrelada à outra de ordem “invisível”.
Neste entrecho faz-se oportuno mencionar que a noção de que a doença advém do
espírito onde “[...] o corpo físico é apenas um mata-borrão ou um fio terra ou ainda, uma
descarga do espírito. O que dá vida ao espírito é o corpo” (GUIMARÃES, 1992, p. 95). Percebe-
-se, assim, que para a autora citada a doença no Santo Daime é proveniente da harmonia da
pessoa com o meio ambiente ou com a natureza, muito embora fatores sociais que causam
doenças também possam gerar desarmonias pessoais.
Na Barquinha, sublinha-se novamente, toda doença surge da desarmonia com o espí-
rito. Logo, é comum que ela se manifeste no corpo das pessoas criando uma linguagem que
envolve a dor e o sofrimento. Portanto, o sacrifício constituído pela desordem é necessário
para o restabelecimento físico, espiritual e psicológico dos enfermos.
Os adeptos da religião concordam que as doenças de ordem espiritual são ocasionadas
por “espíritos obsessores” que buscam a “luz” de determinadas pessoas, delas extraindo suas

64
energias. Consideram que os espíritos obsessores são de graus menos evoluídos e a eles atri-
buem a nominação de “eguns sem luz”. Afirmam que os eguns são espíritos que já desencar-
naram, mas continuam neste plano perambulando sem luz, perturbando a vida das pessoas.
Eles são “[...] forças desorientadas que ficam vagando sem destino, no espaço, a procura de
um corpo frágil e desprotegido no qual se possam encostar” (ARAÚJO, 1999, p. 198).
Nos discursos internos a doença é uma manifestação da natureza na qual o homem
precisa buscar o equilíbrio sendo necessário, para isso, mudar suas atitudes para efetuar a
limpeza da “carne” e do “espírito”, o que implica mudanças comportamentais e éticas com
vistas a afastar o pecado
Nesta visão particular de mundo, a doença é considerada ainda uma consequência
do pecado original decorrente, primordialmente, da expulsão de Adão e Eva do Paraíso. A
partir desta concepção, o pecado pode ser individual, mas é também compreendido como
coletivo sendo designado como “grandes pecados”. Como resultado, pandemias, guerras e
eventos extremos que se relacionam às mudanças climáticas são traduzidos como fenôme-
nos decorrentes da rebeldia humana.
A par disso, a pandemia de Covid-19 é interpretada como um castigo coletivo e, nessa
ótica, nem sempre aqueles que padeceram pela doença foram grandes pecadores, mas antes
vítimas do pecado coletivo. Postulam que muitos dos que morreram pelo novo coronavírus
podem ter feito a passagem para residir em moradas de luz no plano Astral, com caráter
evolutivo, posto a clara influência do espiritismo na religião.
Leve-se em consideração o fato de que o pecado coletivo inclui a forma como se ad-
ministram as nações. Imerso nesta mentalidade, a miséria, a opressão, os maus-tratos aos
povos, animais, plantas, rios e demais componentes do meio ambiente fazem parte desse
contexto. Nestes termos,
Sempre há de haver um movimento para colocar ordem no caos e o caos na ordem.
Porque é a forma que a natureza tem de reverberar, de se manifestar. O homem joga
bombas atômicas no fundo mar, provocam guerras, provocam doenças, trabalham em
laboratório para a guerra química ou a guerra biológica, tudo isso são movimento de-
sarmônicos da natureza, são provocações para a natureza. E quando foge do controle
do ser humano, a consequência é o sofrimento da humanidade. Mesmo que o Covid-19
não seja fabricado em laboratório, seja uma doença natural, seja uma bactéria ou um
vírus que surgiu há milhões de anos, isto se deve a movimentação desordenada no pla-
neta. Portanto, o caso das geleiras, os desmatamentos, as mudanças climáticas, tudo
isso provoca novas doenças (Entrevista com Edilson Fernandes da Silva).

A transcrição da fala do entrevistado denota que o homem agride o planeta e este, ape-
sar de sua benevolência, responde de forma severa às agressões cometidas. Nessas circuns-
tâncias, os praticantes da religião creem que a doença é uma consequência da experiência
e existência humana no mundo: a provocação do homem à natureza afeta a coletividade
na forma de catástrofes, como tsunamis, maremotos, pandemias, guerras, secas severas e
inundações. Averiguou-se que a lista de desastres é extensa, sendo estes entendidos como
sinais que apontam para o Apocalipse.

65
Logo, os eventos extremos produzidos pelas mudanças climáticas são a materialização
da espiritualidade, pois se a natureza está equilibrada, os homens também estão. Em con-
traposição, a desordem do planeta produz sérias consequências aos seres vivos, incluindo a
possibilidade de extinção de espécies vegetais e animais, o homem incluso.
Os dados analisados permitiram constatar que os sinais aparecem nos salmos (hinos)
cantados durante as sessões ritualísticas. As letras, recebidas através da ingestão do Daime
do Astral, anunciam, avisam, alertam sobre os macroproblemas contemporâneos. Seu con-
teúdo fornece mensagens escatológicas e milenaristas que são experienciadas pelos prati-
cantes através do chá sagrado.
Os sinais expressos nos salmos fazem parte de um hinário, a “espinha dorsal” da re-
ligião, que contém a doutrina, isto é, o conjunto de princípios, normas e procedimentos
éticos. Cantar salmos com o uso do Daime, portanto, constitui um procedimento pedagó-
gico no qual as letras das canções desempenham papel central na relação de aprendizagem
horizontal (entre os homens) e transversal (entre homens e outros seres).
Diferentemente do Santo Daime, caracterizado pela utilização de vários hinários, a
Barquinha emprega apenas um livro, que continua a ser preenchido pelos seguidores de
Mestre Daniel. Esse conjunto de hinos trata, por exemplo, de instrução, saúde, doutrinação
e disciplina. No depoimento reproduzido no seguimento, uma das lideranças religiosas da
Barquinha clarifica a relação entre os hinos e a atual pandemia.
O Covid-19, como outras pandemias que já existiram... tem um salmo que fala da epi-
demia, inclusive nós vamos cantar durante esse período da pandemia. [...] a questão
da epidemia ou da pandemia, nós já tivemos várias no mundo, a cada cem anos ou 150
anos sempre existe um movimento dessas mortes coletivas (Entrevista com Edilson
Fernandes da Silva).

Os hinos são entoados em diversos rituais das igrejas sendo que em alguns deles, como
as Obras de Caridade e as Romarias, as temáticas estão voltadas para a humanidade e extra-
polam os muros e portões dos centros religiosos.
Sublinha-se que as Obras de Caridade, enquanto principal ritualística da religião, es-
tão fortemente articuladas aos demais rituais da Barquinha. O ritual em comento tem como
lema “fazer o bem sem olhar a quem” e no calendário ritualístico das igrejas é sempre exe-
cutado aos sábados. Por permitir a presença de entidades como caboclos, pretos velhos e
outros encantados, se relaciona a rituais comuns na Umbanda.
Os adeptos da Barquinha acreditam que por meio de consultas públicas visando o rees-
tabelecimento físico e espiritual dos enfermos, eles serão elevados espiritualmente e alcan-
çarão “lugares de luz no Astral” quando desencarnarem. Isso posto, nesse ritual os seres de
luz que trabalham para aliviar o sofrimento de enfermos podem orientar a condução de en-
tidades, consideradas por eles como menos evoluídas, para um “lugar de luz” no plano Astral
e, dessa forma, retornarem à Terra quando determinadas, recebendo nominações cristãs e
missão para trabalharem nas Obras de Caridade junto aos adeptos. A título de exemplifica-
ção, cite-se o caso do caboclo Arranca Toco que recebeu a designação de Antônio da Luz no
Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz. Assim, ele foi batizado nesta

66
religião que assume, nitidamente, uma roupagem cristã, embora receba influências de ou-
tras religiões e filosofias (ARAÚJO, 1999).
As Romarias, por seu turno, consistem em práticas do catolicismo popular que eram
realizadas no Nordeste brasileiro e foram trasladadas para a Amazônia Ocidental durante
o ciclo da borracha por migrantes oriundos dessa região brasileira. Tal atividade ritualís-
tica chegou ao Acre no século XIX, sendo celebrada em centros de devoção. Muitos desses
centros foram criados em lugares nos quais a Igreja Católica, enquanto instituição, tinha
dificuldades para se fazer presente, como foi o caso do Acre-Purus, cuja prelazia só foi criada
em 1919, tendo se consolidado na década de 1940.
No calendário ritualístico da Barquinha, as Romarias aparecem em quatro temporali-
dades distintas: na Festa de São Sebastião, em janeiro; na Festa de São José, em março; na
Festa de Nossa Senhora da Conceição, em maio; e na Festa de São Francisco de Assis, rea-
lizada nos meses de setembro e outubro. Revele-se que esta última Romaria tem destaque
central, visto que São Francisco é o mentor espiritual da religião criada por Daniel Pereira
de Mattos.
O ritual, com finalidade de penitência e purificação, é marcado por três fases: embar-
que, travessia e desembarque. A par disso, a pesquisa desenvolvida no Centro Espírita e
Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz proporcionou uma imagem poética sobre a
ritualística, que também é compartilhada e aceita pelos demais centros envolvidos nesta
pesquisa. Desse modo,
Embarcar na nau sagrada [...] tem um sentido de um começo, um meio e um fim. [...]
Os adeptos têm a descrição de que a “Barquinha” sairá do cais do porto, viajando pelos
três planos cosmológicos da casa. Este tipo de viagem está pontuada por grandes tor-
mentas, por grandes provas, por desafios que estas pessoas terão pela frente durante o
percurso do barco Santa Cruz (ARAÚJO, 1999, p. 202).

É perceptível, nesse contexto, as metáforas no discurso sobre a viagem que realizam


durante as Romarias. Há a viagem individual, que consiste em aprendizados propiciados
pelo êxtase da miração, e aquela com sentido coletivo, associada ao conceito de salvação da
nau. Ocorre, portanto, um movimento de tempo circular cruzado com a linha da trajetória
histórica dos fiéis.
Em seu sentido coletivo, para que ocorra a salvação, é preciso que sejam entabuladas
“batalhas em alto mar”, nas quais os adeptos se encontram com entidades consideradas por
eles como “sem luz” ou com “baixo grau de evolução”. Os exus e pombas giras se enquadram
nessa categoria, bem como como caboclos e outras entidades dos planos cosmológicos da
terra e do mar, sendo estes afirmados como planos hierarquicamente inferiores ao Astral,
este chamado de plano do alto ou de cima e reputado como mais evoluído.
Cabe destacar que o Daime tem a representação do mar e que seus adeptos, também
chamados de “marinheiros do mar sagrado”, viajam sobre suas ondas ao ingerirem a subs-
tância. Em alto-mar procuram a cura no sentido individual, mas também a cura coletiva
como requisito para alcançar a salvação eterna. Perpassando essas formas de expressão re-
ligiosa, e conforme sublinhado nos parágrafos antecedentes, a Barquinha é, de fato, uma
religião escatológica e milenarista (ARAÚJO, 1999).

67
Em resumo a essas considerações: os fiéis acreditam que realizam uma viagem em
uma nau com o uso do Daime, experiência na qual estão se preparando para ancorar aos
pés de Jesus Cristo quando Ele retornar à Terra para realizar o julgamento dos vivos e dos
mortos.
Diante do exposto, e plural em seus caminhos, ressalta-se que o Daime desempenha
um papel fundamental no processo de compreensão acerca da Covid-19. Aborda-se, em pri-
meiro lugar, que essa religião amplia a consciência e produz autoconhecimento sobre as ati-
tudes pessoais diante da realidade vivida. Para os “marinheiros do mar sagrado” a distinção
entre conhecimento e autoconhecimento se articula ao debate sobre os saberes de plantas
sagradas, em forte expansão desde a passagem do século XX para o XXI (LUNA, 1984; ALBU-
QUERQUE, 2011).
Em consequência, o conhecimento implica na compreensão e legitimação coletiva dos
elementos da Barquinha e estão fortemente associados à doutrina, ou seja, às normas, re-
gras, princípios e instruções que compõem o escopo dessa vertente religiosa. De modo aná-
logo, o conhecimento é igualmente propagado nas demais manifestações que caracterizam
a religião: rituais, mito fundante, elementos, seres e lugares sagrados.
O autoconhecimento, por seu turno, se reporta à subjetividade dos praticantes duran-
te o processo de aprendizado nos rituais. O Daime desencadeia reflexões do sujeito diante
do mundo ao desnudar caminhos para a tomada de decisões acertadas sobre os problemas
cotidianos ou, ainda, realidades de mundos espirituais desconhecidos, não perceptíveis a
olhos nus.
O uso do Daime e a produção de conhecimento e de autoconhecimento se articulam
ao conceito de ampliação de consciência. Esta noção encontra respaldo nos postulados de
Krippner (1997), que propôs o “Estado Expandido de Consciência”, no qual se configura um
limiar sensório induzido essencialmente pelo uso de substâncias psicoativas. Na argumen-
tação do autor, este é apenas um dos estados de consciência do indivíduo.
Na esteira desse entendimento, Mercante (2012) pontua que um dos estados de consci-
ência que ocorre na Barquinha está fortemente vinculado ao fenômeno da “miração” em de-
corrência do uso do chá que desencadeia níveis diversos de experiências. E aqui se abre um
parêntese para grifar que tais experiências já haviam sido percebidas nos primeiros estudos
produzidos sobre a temática. Nesse sentido, o estado sinestésico inclui percepções de cores,
sensações corporais, gustativas, olfativas, ampliação de sons, viagens astrais a planos míti-
cos, viagens a lugares terrenos situados em tempos presentes ou pretéritos, experiências em
vidas passadas, contatos com seres terrenos e extraterrenos, conversas com antepassados
que já se foram, dentre outros aspectos (FERNANDES, 1986; MACRAE, 1992).
Nas proposições de Macrae (1992), para que ocorra a miração três elementos são fun-
damentais: a substância e a sua interação com aspectos fisiológicos do ser humano; o set,
constituído pelo estado psicológico do praticante, incluindo aí a sua estrutura de personali-
dade e expectativas a respeito dos efeitos da substância; e o setting, ou o meio social, cultural
e ambiental no qual está sendo feito o uso da ayahuasca.

68
Vale notar que, sob este aspecto, a visão de set e setting que Macrae (1992) expõe em
sua obra é inspirada nas discussões realizadas por Timothy Leary, psicólogo norte-ameri-
cano tido como referência nos estudos sobre psicodelismo e uso do LSD (ácido lisérgico).
De acordo o autor em pauta, a “viagem do ácido” só seria possível se o “estado de espírito do
viajante” (set) estivesse adequado ao “ambiente” de uso (setting). Um ponto importante a ser
destacado é o de que os trabalhos de Leary e de seu colaborador Ralph Metzner reativaram,
nas décadas de 1960 e 1970, o interesse por estudos de consciência que envolviam técnicas
xamânicas e uso de enteógenos.
Na produção teórica concernente à temática, cumpre destacar o trabalho de Dobkin
de Rios (1972) que ampliou ainda mais a discussão iniciada por Leary ao estudar o uso da
ayahuasca por curandeiros vegetalistas. Para esta autora, além da noção de set e setting, é
preciso incluir a crença e os valores relacionados ao uso dos vegetais.
Retomando o fio da meada, salienta-se que para classificar a “tecnologia vegetal” que
induz ao êxtase buscou-se apoio no termo enteógeno cunhado por Gordon Wasson e outros
estudiosos no ano de 1973. O autor pontua que o uso do termo evita palavras como psicodé-
lico, psicoativo, droga e alucinógeno, esclarecendo que o vocábulo enteógeno é derivado do
grego entheos e significa “deus dentro”. No prosseguimento de suas considerações, ressalta
que esse estado servia para caracterizar o momento no qual uma pessoa em seu êxtase trazia
para o seu corpo um deus produzindo, dessa forma, discursos proféticos, criação artística,
bem como como paixões de cunho erótico. O rito, nessa conjuntura, demarcava o caráter
sagrado do êxtase ao levar a pessoa a ter o deus ou o divino dentro de si (MACRAE, 1992).
A miração constitui uma das mortes simbólicas da religião. Sistematizada no bem fun-
damentado trabalho de Paskoali (1998), a miração configura-se como elemento necessário
ao indivíduo e, nesse aspecto, tomar o Daime implica nascer e morrer, dado as experiências
extáticas decorrentes dos efeitos do chá.5
Pode-se acrescentar, por conseguinte, que as sucessivas experiências se revelam como
boas ou ruins, transformando a vida do indivíduo. As experiências ruins são entendidas
como decorrentes de “disciplina”, fenômeno que no Santo Daime é chamado de “peia”. Vin-
culado a esse imaginário, compreendem que é a partir da “disciplina” e das “imagens do
sacrifício” que o sujeito pode chegar a produzir mudanças qualitativas na sua vida (ARAÚJO,
2015).
Ainda no que se reporta ao campo do êxtase, convém enfatizar que ocorre na Barqui-
nha duas tipologias distintas da miração: a incorporação e a irradiação. A primeira está rela-
cionada à “baixada” de entidades que tomam o corpo dos praticantes e que podem ser, inclu-
sive, induzidos pelo uso do Daime. Dessa forma, seres vindos de outros planos cosmológicos
(Astral, terra e mar) “baixam” no terreiro para curar.
Como facilitador de êxtase, o Daime também “irradia” e, nesse contexto, a irradiação
é considerada um tipo de êxtase com duplo sentido. De um lado os seres do Astral projetam
vibrações e sensações mediúnicas (como ver, sentir e ouvir, dentre outras) nos adeptos em

5    É importante esclarecer que além da miração existem outros dois tipos de morte na Barquinha: aquela caracterizada
como adesão à religião e marcada pelo fardamento, e a morte física, que é associada a uma visão espírita de passagem
deste plano para outros lugares da cosmologia quer permeiam o universo específico da vertente religiosa.

69
rituais específicos que ocorrem no interior dos centros. Por outro lado, o Daime permite a
conexão com entidades do plano Astral, permitindo “vibrações positivas” para fora dos por-
tões das igrejas da Barquinha. Em tempos de pandemia, o tripé bebida sagrada, entidades e
médiuns se conectam ao mundo e nele agem realizando uma limpeza coletiva na humani-
dade.
Sob este viés de análise, no contexto das narrativas acerca de vibrações positivas “[...]
as doenças que apareceram no mundo foram minimizadas graças as correntes espirituais
que trabalham para trazer consciência humana, fraternidade e [...] equilíbrio à natureza.
Serve para ver se a pandemia se controla” (Entrevista com Edilson Fernandes da Silva).).
Seguindo essa diretriz, cabe citar que a percepção de que as irradiações produzidas
pelo Daime extrapolam os limites do sagrado convergem para o ponto de vista do historia-
dor das religiões Angelo Brelich, da Escola Italiana de Religiões, que aprofundou o debate
sobre a própria concepção de religião. Para este autor, uma sociedade define o conceito a
partir de um momento histórico-cultural determinado proporcionando a ele um sentido,
uma visão de mundo particular em um contexto histórico singular.
Em perspectiva diferenciada de Mircea Eliade, que separava o sagrado e o profano
como categorias opostas, Brelich (1977) entendeu que o sagrado extrapola seus próprios mu-
ros, projetando-se para o mundo secular. Vinculada à essa concepção, não se pode deixar de
salientar que a Barquinha, com o êxtase de irradiação, alcança os meandros do cotidiano.
Há, portanto, a crença de que os seres curadores por meio do Daime estão agindo para auxi-
liar no processo de regeneração e de purificação do homem em contexto global.
A ampliação de consciência – relacionada aos êxtases de miração, irradiação e incor-
poração – está conjugada ao próprio conceito da bebida e o de “plantas professoras”, que
ensinam aos seus adeptos as formas de como proceder diante do “tempo de pandemia”. Re-
afirma-se que essa noção de “plantas maestras” ou “plantas professoras” já foi mencionada
por Luna (1986) ao pesquisar o vegetalismo e que, como tal, a bebida ayahuasca, confeccio-
nada com o cipó Banisteriopsis caapi e a folha Psychotria viridis, se transmutou em professora
das professoras. Diferentemente do racionalismo ocidental, a bebida se tornou referência
como fonte de ensinamentos e de saberes e, portanto, pode ser considerada como “planta de
poder” (ALBUQUERQUE, 2011; LABATE e ARAÚJO, 2002; LABATE e GOULART, 2005; LUNA,
1986).
De fundamental importância na produção teórica sobre o assunto, é a contribuição
de Albuquerque (2011), que aprofundou o debate ao demonstrar que o conceito de plantas
professoras está fortemente associado à discussão sobre os saberes. Nessa diretriz, sua obra
fornece subsídios acerca de uma “pedagogia das plantas sagradas”, cuja premissa está as-
sentada na percepção de que é a planta quem ensina, postulado que promove um desloca-
mento na concepção ocidental europeia de que apenas o ser humano é o responsável pelo
repasse de conhecimentos.
Comungando com essa perspectiva, Boaventura de Sousa Santos procurou conferir
visibilidade aos saberes subalternizados pelo discurso colonizador europeu. Em situação
debilitada, as plantas e suas práticas eram desprezadas e o êxtase, demonizado. Como tal,
os usuários – indígenas, vegetalistas e adeptos de religiões brasileiras – foram desprezados

70
e perseguidos pela Igreja Católica e pelos Estados-Nações em contextos históricos distintos
que se estenderam desde o século XVI até a contemporaneidade (SANTOS e MENEZES,
2009).
Sendo assim, e para concluir os objetivos traçados para este artigo, procurou-se inqui-
rir dos entrevistados quais conteúdos se poderiam aprender com a pandemia de Covid-19 e
subsídios que o Daime poderia fornecer neste momento emblemático que desafia paradig-
mas de uso corrente pela humanidade.
Verificou-se, na análise das respostas, que os interlocutores foram unânimes em apon-
tar que a pandemia e o isolamento social deveriam conduzir a uma reflexão mais profunda
nos seres humanos. Em suas percepções, a Covid-19 seria mais um aprendizado para que as
pessoas se tornem melhores e modifiquem, até mesmo, hábitos cotidianos.
O Daime sinaliza qual a conduta adequada para os adeptos da Barquinha no plano
terreno. Eles recebem mensagens orientadoras advindas do Astral por meio de seres ilumi-
nados. Desse modo, o indivíduo ao ingerir a bebida sagrada é elevado ao mundo espiritual e
lá “[...] recebe mensagens espirituais e divinas que explicam tudo” (Entrevistas com José do
Carmo Lima e Sheila Mendonça Lima).
A pandemia desencadeou medidas sanitárias extremas, como o uso constante de más-
caras e álcool gel, além do isolamento social que:
[...] vai mostrar para o ser humano o quanto ele precisa um do outro, o quanto faz fal-
ta um abraço, um aperto de mão, uma visita, um aconchego. [...] O isolamento social
mostra ao ser humano a necessidade dele viver em comunidade, viver e ser útil ao ou-
tro. Tomara que o ser humano aprenda porque vai vir uma pandemia pior ainda... tem
muita coisa por vir! (Entrevista com Edilson Fernandes da Silva).

Essa necessidade de compreensão coletiva é tida e reconhecida como um caminho


acertado para melhorar a relação do homem diante do mundo. Tal premissa encontra res-
paldo nos estudos de Krenak (2019), pensador indígena que considera que estamos vivendo
em um tempo desastroso desde o início do Antropoceno, era marcada pelo caos socioam-
biental e pela marcha insensata em direção ao abismo profundo. Seguindo essa perspectiva,
o autor demonstra que as escolhas efetuadas pelo homem podem provocar o fim do mundo,
mas também adiá-lo se ele assim o desejar. Dessa forma, a solidariedade, relações menos
individualistas e mais coletivas, distribuição de recursos, cuidados com o meio ambiente
e conexão com o sagrado e a memória ancestral são alguns elementos que concorrem para
esse adiamento.
Considerações finais
Ao trazer a pandemia de Covid-19 para reflexão de lideranças religiosas de três Barqui-
nhas, algumas reflexões relevantes devem ser destacadas. Percebeu-se que ao provocar uma
desaceleração nas atividades socioeconômicas do planeta, a doença deixou um alerta para
que a humanidade possa refletir, com mais cautela, sobre diversas problemáticas cotidianas
que afetam o bem-estar coletivo. Isto inclui as mudanças climáticas e o aquecimento global
resultantes da intensificação do efeito estufa potencializado por incêndios, desmatamentos
e emissão de gases poluentes, mas também o consumo exagerado de produtos industriali-

71
zados, a poluição hídrica, a construção de obras de grande impacto que produzem conse-
quências irreversíveis6, a exploração mineral, a poluição atmosférica e a movimentação de
ambientes que despertam vírus, bactérias e fungos que contaminam vegetais e animais que,
por sua vez, os transmitem aos seres humanos.
Durante a investigação para elaboração do artigo, levantou-se que para os praticantes
da Barquinha o pecado coletivo é um dos argumentos comumente empregados para expli-
car a pandemia de Covid-19, no qual o castigo é manifestado através de eventos (incluindo
epidemias e pandemias) que antecedem o dia do Juízo Final. Seus adeptos acreditam que a
doença manifesta um sinal de Deus. Todavia, em sua visão particular de mundo, a epidemia
também consiste em um processo de mudança, já que “[...] grandes catástrofes vêm para
transformar alguma coisa, dar alguma mensagem para a humanidade, que a gente está ten-
tando decifrar essa nossa que veio. É um ensinamento que está querendo mostrar como a
gente tem que refletir sobre esses sinais” (Entrevista com Marília Teresa Bandeira de Melo).
Um último ponto a ser observado reside na perspectiva de que no contexto turbulen-
to pelo qual atravessa a humanidade, o chá sagrado transmite ensinamento. Associado aos
aspectos doutrinários, cosmológicos e ritualísticos, o enteógeno proporciona conhecimento
e autoconhecimento. As mortes simbólicas, por meio das mirações, permitem reflexões e
aprendizagens sobre o momento em que se vive. Nas palavras do líder religioso Edilson Fer-
nandes, da Barquinha localizada em Ji-Paraná, o Daime “[...] está dizendo ai ‘oh, aprenda al-
guma coisa com isso. A doença não é praga, não é castigo não, é uma consequência’. Então o
daime está mostrando para nós dentro das dimensões que ele abre, que nós devemos ter um
pensamento mais altivo, mais transformador” (Entrevista com Edilson Fernandes da Silva).
Essa transformação contribuirá, sem dúvida, para o processo de amadurecimento humano
e definição de uma nova forma de se relacionar com o mundo e com os seres que nele vivem.
Entrevistas
LIMA, José do Carmo. Entrevista concedida a Wladimyr Sena Araújo de forma virtual, 4 abr. 2020.
LIMA, Sheila Mendonça. Entrevista concedida a Wladimyr Sena Araújo de forma virtual, 4 abr. 2020.
MELO, Marília Teresa Bandeira de. Entrevista concedida a Wladimyr Sena Araújo de forma virtual, 5 abr. 2020.
SILVA, Edilson Fernandes da. Entrevista concedida a Wladimyr Sena Araújo de forma virtual, 3 abr. 2020.

Referencias
ALBUQUERQUE, Maria Betânia Barbosa. Epistemologia e saberes da ayahuasca. Belém: EDUEPA, 2011.
ARAÚJO, Wladimyr Sena. Imagens do sacrifício. In: MARGARIDO, Sílvio Francisco Lima; ARAÚJO NETO, Francisco
Hipólito de (org). Mestre Daniel: história com a ayahuasca. Rio Branco: Fundação Garibaldi Brasil, 2015.
ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando sobre as ondas do Daime: história, cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Uni-
camp, 1999.
ARAÚJO, Wladimyr Sena. Richard Spruce, Alfred Russel Wallace e o encontro com o caapi. Jamaxi, Rio Branco, v. 2, n. 2,
p. 141-158, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufac.br/index.php/jamaxi/article/view/2267. Acesso em: 20 nov. 2020.
BALZER, Carsten. Wege zum Heil: die Barquinha: ein religiöses rettungsboot auf wogen des kulturellen und chaosmos
amazonischer welten (Amazonische transformationen im lichete ayahuascas). Mettingen: Institut für Brasilienkunde,
2003.

6    Dentre tantos exemplos, pode-se mencionar a tragédia da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, de proprieda-
de da Companhia Vale do Rio Doce que, além de 259 mortos, trouxe danos incalculáveis ao meio ambiente.

72
BRELICH, Angelo. Prolegómenos a una historia de las religiones. In: Historia de las religiones. V. 1: las religiones antiguas
1. Madrid: Siglo XXI, 1977.
CONRAD, Sebastian. O que é a história global. Lisboa: Edições 70, 2019.
DOBKIN DE RIOS, Marlene. Visionary vine: hallucionogenic healing in the Peruvian Amazon. San Francisco: Chandler, 1972.
ELIADE, Mircea. Imágenes y símbolos. Madrid: Taurus, 1979.
EVANS-PRITCHARD, Edward. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
FERNANDES, Vera Fróes. História do povo Juramidan: introdução à cultura do Santo Daime. Manaus: Suframa, 1986.
GROISMAN, Alberto. “Eu venho da floresta”: ecletismo e práxis xamânica daimista no “Céu do Mapiá”. 1991. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 1991. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/75791/81577.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 8 nov. 2020.
GROISMAN, Alberto. Santo Daime: notas sobre a “luz xamânica” da rainha da floresta. In: LANGDON, Esther Jean Mat-
teson (org.). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. Florianópolis: EDUFSC, 1996.
GUIMARÃES, Maria Beatriz Lisboa. A “lua branca” de Seu Tupinamba e de Mestre Irineu: estudo de caso de um terreiro de
umbanda. 1992. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: http://www.neip.info/downloads/guimaraes_umbanda_92.
pdf. Acesso em: 10 nov. 2020.
HIGHPINE, Gayle. Unraveling the mistery of the origin of ayahuasca. [s. l.], 2012. Disponível em: http://neip.info/novo/wp-
-content/uploads/2015/04/highpine_origin-of-ayahuasca_neip_2012.pdf. Acesso em: 08 abr. 2020.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
KRIPPNER, Stanley. Estados alterados de consciência. In: WHITE, John (org.). O mais elevado estado de consciência. São
Paulo: Cultrix/Pensamento, 1997.
LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO, Wladimyr Sena (org.). O uso ritual da ayahuasca. Campinas: Mercado de Letras, 2002.
LABATE, Beatriz Caiuby; GOULART, Sandra Lúcia. O uso ritual das plantas de poder. Campinas: Mercado de Letras, 2005.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
LOPES, Octacílio de Carvalho. A medicina no tempo. São Paulo: EdUSP : Melhoramentos, 1969.
LUNA, Luís Eduardo. The concept of plants as teachers among four mestizo shamans of iquitos, Northeast, Peru. In:
Journal of ethnopharmacology, v. 11, n. 2, jul. 1984. p. 135-156.
MACRAE, Edward. Guiado pela lua: xamanismo e uso ritual da ayahuasca no culto do Santo Daime. São Paulo: Brasiliense,
1992.
MAGALHÃES, Elói. “Balanços de luz”: devoção e experiência a bordo do Barquinho Santa Cruz. 2013. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande,
Campina Grande, 2013. Disponível em: http://ppgcs.sti.ufcg.edu.br/wp-content/uploads/2013/05/UNIVERSIDADE-FE-
DERAL-DE-CAMPINA-GRANDE.pdf. Acesso em: 9 maio 2020.
MARTINO, José Antônio. 1348 – A Peste Negra. São Paulo: Excalibur, 2017.
MERCANTE, Marcelo Simão. Imagens de cura: ayahuasca, imaginação, saúde e doença na Barquinha. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 2012.
NEVES, Marcos Vinícius. Eu vi o Acre Nascer. In: MARGARIDO, Sílvio Francisco Lima; ARAÚJO NETO, Francisco Hipó-
lito de (org). Mestre Daniel: história com a ayahuasca. Rio Branco: Fundação Garibaldi Brasil, 2005. p. 59-61.
OLIVEIRA, Rosana Martins de. De folha e cipó é a Capelinha de São Francisco: a religiosidade popular na cidade de Rio Bran-
co – Acre (1945-1958). 2002. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.
PASKOALI, Vanessa Paula. Navegar é preciso, morrer não é preciso. 1998. Monografia (Graduação) – Universidade Federal
do Acre, Rio Branco, 1998.
PELAEZ, Maria Cristina. No mundo se cura tudo: interpretações sobre a “cura espiritual” no Santo Daime. 1994. Dissertação
(Mestrado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Ca-
tarina, Florianópolis, 1994. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/76162/98006.
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 12 maio 2020.

73
REZENDE, Joffre Marcondes de. Epidemia, endemia, pandemia, epidemiologia. Revista de patologia tropical, Goiânia, v.
27, n. 1, p. 155-198, jan./jun. 1998. Disponível em: https://revistas.ufg.br/iptsp/article/view/17199. Acesso em: 14 jun. 2020.
SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (org.). Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 2009.
SANTOS, Ricardo Assarice dos. A híbrida Barquinha: uma revisão da história, das principais influências religiosas e dos
rituais fundamentais. 2017. Mestrado (Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2017. Disponível em: https://neip.info/novo/wp-content/uploads/2018/02/Assarice_dos_Santos_Barquinha_Mestrado_
Ciencia_Religao_PUC_2017.pdf. Acesso em: 13 jul. 2020.
SCHULTES, Richard Evans. El desarrollo histórico de la Idenficación de las malpigiáceas em­pleadas como alucinóge-
nos. In: América Indígena, XLVI, 01, 9-48, 1986.
TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas. Niterói: EDUFF, 2008.
UJVARI, Stefan Cunha. História das epidemias. São Paulo: Contexto, 2020.

74
Capítulo 5

Religiosidades em tempos de
pandemia: memórias e narrativas de
homossexuais cristãos

Arielson Teixeira do Carmo


Kássia Cristina Neves de Oliveira

O novo coronavírus (COVID-19), da família de vírus (SARS-CoV-2) tem sido tema


de diversas notícias no Brasil e no mundo desde o início do ano de 2020, e toda a
sociedade já sente seus impactos, em maior ou menor escala, sejam eles sociais, culturais,
políticas e econômicas. De campeonatos esportivos paralisados, igrejas fechadas ou com
números reduzidos de membros, shows musicais cancelados, cinemas, shoppings, bares,
escolas interrompendo seus funcionamentos por tempo indeterminado, fechamentos de
fronteiras e divisas, e, é claro, as quarentenas. Para a maioria de das pessoas, é a primeira
vez que enfrentamos um quadro dessas proporções.
Os primeiros registros de transmissão pelo COVID-19 tiveram seu início em dezembro
de 2019, na cidade de Wuhan na China, sendo em seguida disseminada e transmitida de
pessoa a pessoa. Pelo rápido contágio, não demorou para a Organização Mundial da Saúde
(OMS) inserir a proliferação do vírus como uma pandemia global em 11 de março de 20201.
No Brasil, no início de 2020 o vírus se espalhou rapidamente, logo o país decretou es-
tado de calamidade pública. Internamente, uma série de estados e cidades têm adotado des-
de então medidas de quarentena, lançando decretos para adotar posturas restritivas com o
objetivo de diminuir aglomerações em estabelecimentos como shoppings, cinemas, bares
etc. Ao fazer isso, é possível conseguir diminuir o número de contaminações enquanto as
pessoas já infectadas se recuperam, numa tentativa de evitar o colapso do sistema de saúde
– atualmente estamos presenciando uma crise no sistema de saúde em muitos estados da
federação.
Diante deste cenário, templos, igrejas e grupos religiosos se viram obrigados a suspen-
der suas atividades temporariamente devido as aglomerações nestes espaços. As suspensões
de cultos e encontros de cunhos religiosos tinham a finalidade de evitar a infecção e propa-

1    Ver: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-


-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812. Acesso em 01 de fevereiro de 2021.
gação do vírus, uma vez que nesses locais transitam diariamente diversas pessoas. Épartir
dessas medidas restritivas acarretadas com o momento pandêmico que afetou os encontros
presencias em alguns grupos religiosos que este ensaio se assenta.
Com a realidade das medidas restritivas e com a diminuição dos encontros face-a-face,
resta as lembranças de um tempo em que não vivíamos em contextos pandêmicos, as me-
mórias dos encontros e de momentos em que o medo de se contaminar em espaços públicos
não era uma realidade. Assim, restam as narrativas dos momentos em grupos de amigos, do
trabalho, da escola, da universidade e da igreja.
É, pois, sobre os momentos vividos em grupos religiosos que este ensaio busca refletir,
o passado e o presente advindos com o risco eminente de uma pandemia global. O grupo re-
ligioso que escolhemos para tais reflexões trata-se de uma célula religiosa2 voltada ao público
LGBT3 (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais e Transgêneros) na cidade de Pelotas, RS
– Conhecido como Comunidade Cristã Nova Esperança Internacional (CCNEI).
Mediante ao resgate da memória de dois líderes religiosos do referido grupo, preten-
de-se compreender as mudanças ocorridas na estrutura organizacional e sociabilidade reli-
giosa desse grupo frente a pandemia do novo coronavírus (COVID-19). Além disso, a partir
das memórias e narrativas dos interlocutores, estabelecendo relações com o passado e atu-
al momento vivenciado pelo grupo, evidencia-se como esse grupo tem se organizado para
manter os laços de pertencimento com sua membresia.
As entrevistas com os interlocutores foram realizadas a partir de um roteiro semies-
truturado, com o Lucas e o Marcelo4 que estiveram à frente da CCNEI de Pelotas em dife-
rentes contextos durante a pandemia. Ambos eram membros do grupo e depois passaram a
ter cargo de lideranças após a saída do presbítero Sandro que estava à frente do grupo até o
início do ano de 2019 e que se afastou devido problemas pessoais que envolviam faculdade
e trabalho, o Marcelo ficou à frente do grupo até meados de 2020 depois de aceitar assumir
a liderança da CCNEI de Porto Alegre. De 2020 até o atual momento a liderança em Pelotas
está a cargo do Lucas.
As entrevistas com o Lucas e o Marcelo duraram cerca de 40 (quarenta) minutos e ti-
nham como principal objetivo o resgate da memória, das narrativas acerca do grupo sobre
o antes e durante a pandemia, as estratégias de adaptação e dos aspectos biográficos dos in-
terlocutores. É importante esclarecer que as negociações das entrevistas não apresentaram
dificuldades, tendo em vista, que um dos autores deste ensaio já tinha desenvolvido pesqui-
sa junto ao grupo5. No entanto, ao tentar buscar outros membros esbarramos com alguns
empecilhos, estes devido ao contexto de pandemia e ao tempo da entrega destes escritos.

2   As categorias de igreja e célula religiosa serão acionadas aqui a partir de uma visão durkheimiana. Assim, compreendo
igreja como sendo: “Uma sociedade cujos membros estão unidos por se representarem da mesma maneira o mundo
sagrado e por traduzirem essa representação comum em práticas idênticas, é isso a que chamamos de uma igreja”
(DURKHEIM, 2003, p. 28). Bem como, neste trabalho segue, em boa parte com influências Durkheimiana, principal-
mente nas reflexões feitas pelo autor em “As formas elementares da vida religiosa”.
3    Adotamos esta sigla por ser a mais usada por órgãos governamentais e movimentos sociais, ao invés, da sigla mais
recente LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Estudo Queer e Intersex).
4    Os nomes dos entrevistados, tratam-se de nomes fictícios, visando preservar o anonimato.
5    Cf: Carmo (2019).

76
Tomando todas as precauções e cuidados necessários devido ao contexto de pandemia,
a entrevista com o Marcelo foi realizada na sua residência no mês de dezembro de 2020 e
com o Lucas em janeiro de 2021 na casa da tia, onde residia.
De antemão, consideramos importante elucidar que alguns momentos as entrevistas
tomaram ar de nostalgia por parte dos interlocutores ao rememorarem momentos antes da
pandemia e da antiga estruturação do grupo religioso. Também, as narrativas apontavam
para o atual momento vivido pelo grupo e as novas configurações adotadas mediadas pelos
usos de tecnologias e de redes sociais como: o Instagram, Facebook e WhatsApp, e pelas plata-
formas online: Google Meet e Zoom – ferramentas mundialmente mais utilizadas nos encon-
tros online durante a pandemia.
Quando pensamos em memória, substancialmente nos reportamos ao ato de narrar,
ter experiências de um tempo qualquer que nos reporta ao passado e que constantemen-
te acionamos no presente ou para tomar uma decisão futura, ao passo que, tanto o passa-
do quanto o futuro se assentam na memória6. Lembranças de fatos que nos marcaram cons-
tantemente nos rondam a cabeça, sejam elas boas, ruins, nostálgicas ou não. Guardamos
marcas do tempo que, ora são rememoradas por nós e ora por aqueles com qual pautamos
nossas relações sociais, pessoais e afetivas. Sendo assim, a memória enquanto expressão
que se manifesta através das narrativas e experiências7 tem sido trabalhada por diferentes
sociólogos, historiadores e antropólogos como forma de captar e explicar processos sociais.
Sendo assim, os “quadros sociais da memória” atrelada às narrativas e às experiências dos
indivíduos são capazes de revelar processos sociais tanto a níveis micro como macrossociais
(aspectos individuais e de grupos).
No que diz respeito, ao conceito de memória desde Maurice Halbwachs (1990), passan-
do por Ecleá Bosi (1979) e Joël Candau (2012) as memórias podem assumir uma dimensão
individual e/ou coletiva e está diretamente ligada as narrativas e experiências daqueles que
recordam, ou acionam a memória como forma de representação social. Sobre os conceitos
de narrativas e experiências tanto Walter Benjamin (1987) e Graham Gibbs (2009) sinalizam
que as narrativas provêm do hábito de uma contar história, da acumulação das experiên-
cias subjetivas e coletivas dos indivíduos transmitidos a partir da linguagem e que servem
como compreensão e organização do mundo — os principais conceitos mobilizados neste
ensaio é o de Memória Coletiva de Halbwachs (1990) e a noção de Narrativas encontradas em
Benjamin (1987) e Gibbs (2009).
Para darmos conta das discussões propostas neste ensaio, estruturamos da seguinte
maneira: na primeira parte iremos aprofundar o entendimento acerca de memórias e nar-
rativas; na segunda parte iremos apresentar as principais características da CCNEI e as me-
mórias e narrativas do Lucas e do Marcelo sobre o grupos antes da pandemia, as mudanças
que a pandemia trouxe e as principais estratégias utilizadas atualmente para continuarem
com as atividades religiosas.

6    Cf: Halbwachs, 1968.


7    Cf: Benjamin, 1998

77
Memórias, Narrativas e Experiências: Alguns apontamentos
Pelo espaço que se têm para este ensaio não se pretende trazer um debate exaustivo
acerca dos conceitos propostos nesta sessão, tendo em vista que tais conceitos podem ser
percebidos de formas diversas por diferentes autores, autoras e disciplinas do conhecimen-
to. Nesse contexto, o enfoque que se âncora o conceito de memória provém dos estudos
acerca de Memória Coletiva de Halbwachs (1990) e no que concerne as reflexões acerca de
narrativas e experiências recorre-se a Walter Benjamin (1987) e Graham Gibbs (2009). As es-
colhas por essas obras deram-se por acreditar que eles oferecem subsídios para o potencial
de reflexão e interpretação dos dados empíricos, justamente por demonstrarem a importân-
cia dos estudos da memória e narrativas para o entendimento de processos sociais (tanto a
níveis micro como macrossociais).
Quando se trata da relação entre memória e sociedade no âmbito das ciências sociais
sem dúvidas, o trabalho de Halbwachs8 (1990) é o que abre espaço para que a memória seja
apreendida enquanto instrumento de reflexão, tendo em vista, que os trabalhos sobre me-
mória até o século XX estavam situados no âmbito da filosofia e da psicologia que procura-
vam compreender através dela os significados da vida e da mente humana (SANTOS, 2003).
Cabe, entretanto, enfatizar que além da sociologia os estudos de Halbwachs tiveram
influências profundas tanto na psicologia social, como na história (SANTOS, 2003). Nesse
segmento, é de bom-tom considerar que para forjar o conceito de Memória Coletiva e es-
crever uma das suas mais conhecidas obras “Memória Coletiva” publicada postumamente
no ano de 1950, Halbwachs teve primeiramente influências de Henri Bergson filósofo que
já se debruçava acerca dos estudos de matéria e memória e do qual Halbwachs foi aluno.
Contudo, foi a partir da influência da teoria sociológica funcionalista e organicista de Émil-
le Durkheim com as noções de fato social9 e representações coletivas que Halbwachs tentava
compreender o funcionamento do social e por ventura a compreensão da memória enquan-
to fenômeno coletivo construído socialmente — uma vez que, grosso modo, compreende-
-se que a teoria de Durkheim privilegia o coletivo sob o indivíduo, dando pouco protagonismo
as subjetividades dos indivíduos, mas que se apropriar dos estudos de Durkheim, Halbwa-
chs busca enfatizar as correlações entre estruturas mentais e estruturas psíquicas. Nesse
segmento, de acordo com Bosi (1979):
Para entender o universo de preocupações de Halbwachs é preciso situá-lo na tradição
da sociologia francesa, de que ele é um herdeiro admirável. Halbwachs prolonga os
estudos de Emile Durkheim que levaram à pesquisa de campo as hipóteses de Auguste
Comte sobre a precedência do “fato social” e do “sistema social” sobre fenômenos de
ordem psicológica, individual. Com Durkheim, o eixo das investigações sobre a “psi-
que” e o “espírito” se desloca para as funções que as representações e ideias dos homens
exercem no interior do seu grupo e da sociedade em geral. Essa preexistência e esse
predomínio do social sobre o individual deveria, por força, alterar substancialmente o

8    Herdeiro da tradição Durkheimiana, Maurice Halbwachs nasceu na França em 1877 e morreu em um campo de con-
centração nazista na Alemanha em 1945.
9    Para Durkheim: “É fato social toda maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior. Que é geral na extensão de uma sociedade dada, e, ao mesmo tempo, possui existência própria, inde-
pendentemente de suas manifestações individuais” (DURKEHEIM, p, 13, 2007).

78
enfoque dos fenômenos ditos psicológicos como a percepção, a consciência e a memó-
ria. Em Bergson, o método introspectivo conduz a uma reflexão sobre a memória em si
mesma, como subjetividade livre e conservação espiritual do passado, sem que lhe pa-
recesse pertinente fazer intervir quadros condicionantes de teor social ou cultural. A
memória é, para o filósofo da intuição, uma força espiritual prévia. (BOSI, p, 16, 1979).

Nessa acepção, ao escrever “Memórias Coletivas” pode-se ler nas páginas inicias do
livro que Halbwachs aciona suas próprias memórias, afim de interpretá-las e levar ao enten-
dimento do leitor que as memórias são, na verdade, representações coletivas, uma vez que
o indivíduo que rememorar e aciona suas lembranças têm profundas influências de grupos
sociais diversos, especialmente por grupos de referência como: a família, igrejas e amigos,
por exemplo — grupos dos quais os indivíduos se relacionam e pautam suas ações, intera-
ções e onde compartilham sentimentos morais, sociais e afetivos.
Assim, para Halbwachs (1990) a lembrança está sempre inserida no coletivo e é demar-
cada por um tempo e contexto social específico. Apesar de Halbwachs (1990) conceber os
quadros na memória enquanto expressão e manifestação coletiva, ele não deixa de chamar
atenção para uma memória individual, como veremos mais adiante neste ensaio.
De acordo com Bosi (1979):
A mudança de visada se dá na própria formulação do objeto a ser apreendido: Hal-
bwachs não vai estudar a memória, como tal, mas os “quadros sociais da memória”.
Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao
mundo da pessoa (relações entre o corpo e o espírito, por exemplo), mas perseguirão
a realidade interpessoal das instituições sociais. A memória do indivíduo depende do
seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com
a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a
esse indivíduo. (BOSI, p. 17, 1979).

Partindo dos pressupostos que os significados de um determinado grupo constroem


sobre algo é preponderante para a construção da memória, é que Halbwachs (1990) afirma
que as lembranças precisam de uma comunidade afetiva (grupos de referência) que são essas
comunidades responsáveis por atualizar e identificar a mentalidade do grupo, tanto no pas-
sado, quanto no presente. Outro fato interessante nas interpretações de Halbwachs (1990) é
que o apego afetivo e emocional a um grupo, ao mesmo tempo que fortalece as memórias e
integra o grupo, na contramão desse processo, está o sentimento de não pertencimento ou
desapego que está principalmente ligado a perda de contato, ou esquecimento/enfraqueci-
mento das relações sociais com o grupo.
Ainda segundo Halbwachs (1990) as lembranças se configuram enquanto reconhe-
cimento e construção. Trata-se de reconhecimento porquê: estabelece uma relação senti-
mental com o já visto e é reconstrução na medida que: não é uma repetição linear dos fatos
do passado, porém, um resgate dessas vivências e experiências que se manifestam e são
acionados dentro de contextos e preocupações presentes. Isto posto, esse reconhecimento
e reconstrução é dependente dos grupos de referências, na medida que as memórias repro-
duzem relações sociais, como afirma Halbwachs (1990) a memória nada mais é do que re-
conhecimento e reconstrução que atualiza os quadros sociais, cujo depoimento do outro o
complementa. Para o autor:

79
Acontece, com efeito, que uma ou várias pessoas, reunindo suas lembranças, possam
descrever muito exatamente os fatos ou os objetos que vimos ao mesmo tempo que
elas, e mesmo reconstituir toda a sequência de nossos atos de nossas palavras dentro
das circunstâncias definidas, sem que nós lembrássemos de aquilo (HALBWACHS,
p,27. 1990)

O que Halbwachs busca demonstrar é que o primeiro nível de testemunho a qual a


pessoa tem acesso dar-se na relação consigo mesmo para só então ser confrontado com uma
visão atual, que se soma às suas experiências do passado e com opiniões formadas de outro-
ra e com o apoio de depoimentos de outros. Na próxima sessão acompanha-se com os dados
empíricos coletados que a memória também é ligada ao presente a partir do conjunto de
testemunhas que compartilham e como essas lembranças dialogam com contextos atuais,
principalmente, tratando-se da relação entre religião e pandemia.
Retomando a noção de memória coletiva, para Halbwachs (1990) é impossível uma me-
mória estritamente individual, haja vista que as memórias dos indivíduos, são sempre cons-
truídas a partir da sua relação e pertencimento ao grupo. Dessa forma, as principais dife-
renças que se estabelecem entre memória coletiva e memória individual, residem no fato de:
a) A memória individual é a confluência de diversas influências de grupos sociais e uma forma
específica de articulação da própria memória. De acordo com Halbwachs (1990) a memória
individual como consciência é um limite.
b) A memória coletiva está diretamente ligada ao trabalho de determinados grupos de articular as
lembranças a um quadro social específico que compartilham em comum. Essas representações
geram determinadas lembranças que são compartilhadas entre os membros
c) A memória coletiva tem relação estreita com a tradição;
d) A memória coletiva transforma as imagens do passado em ideias sem rupturas. A evolução do
passado no presente;
e) A memória coletiva apresenta o caráter plural das narrativas (HALBWACHS, 1990)

Após expor o pensamento de Halbwachs sobre a memória, julga-se relevante tratar


do conceito de narrativas atreladas a experiência que são fundamentais e indissociáveis da
memória, como bem podemos ver nas ideias de Halbwachs (1990). Desse modo, trata-se da
importância das narrativas a partir das noções de Benjamin (1987) e Gibbis (2009).
De acordo, com Gagnebin (1999) a narração é importante para a constituição do sujeito
e que essa importância sempre foi reconhecida com a rememoração, “da retomada salvado-
ra pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no esquecimento”
(GAGNEBIN, p, 3, 1999). Já para Gibbs (2009) as narrativas podem ser compreendidas como
uma forma de transmitir experiências, narrar uma história é um hábito da comunicação
humana e é uma das formas fundamentais que as pessoas encontram para organizar suas
compreensões acerca do mundo. Nessa continuidade, para Gibbs (2009) além de transmitir
informações e experiências, as narrativas permitem que as pessoas estruturem suas ideias
sobre si mesmas e suas identidades.
Nesta assertiva, Walter Benjamin (1987) também se ocupa no tema das narrativas em
suas obras, muito embora estas estivessem voltadas para críticas literárias (GAGNEBIM,
1999) elas nos servem de embasamento para explicar como que as narrativas dos indivídu-
os se expressam na realidade social. À vista disso, para Benjamin (1987) a experiência que
passa de pessoa para pessoa é a fonte a qual se valem todos os narradores. Refletindo acer-

80
ca do romance, Benjamin esclarece que o aparecimento desse gênero literário seria o que
poria fim a narrativa, porém, as principais diferenças que coloca o autor é que: o narrador
retira da própria experiência o que ele vai contar e sua própria experiência é relatada pelos
outros, além de suas coisas narradas serem incorporadas a experiência de seus ouvintes;
já o romance é o indivíduo isolado (BENJAMIN, 1998). Em Benjamin (1987) a narrativa não
está interessada em passar o fato narrado como uma mera informação ou relatório, a narra-
tiva mergulha nos fatos e na vida do narrador para reativá-la, como lembra o autor é dessa
forma que se imprime a marca da pessoa que narra “como a mão do oleiro no vaso”.
Narrativas para Benjamin (1987) estão marcadas pelo senso prático daquele que nar-
ra, pela sabedoria, pelas histórias e experiências autobiográficas. Benjamin (1987) sinaliza
ainda que para o ouvinte imparcial, o mais importante é que se assegure a possibilidade de
reprodução dessa narrativa e a memória é e mais épica de todas as faculdades.
Na próxima seção deste ensaio iremos investigar a partir das memórias e narrativas de
dois homossexuais cristãos, as mudanças ocorridas na estrutura organizacional e de socia-
bilidade religiosa no grupo da CCNEI em Pelotas antes, durante a pandemia e as eventuais
expectativas de um futuro pós pandêmico.
Breves considerações sobre as igrejas inclusivas e CCNEI
As memórias e narrativas coletadas para esse artigo tratam-se de dois homossexuais
cristãos de um grupo religioso inclusivo na cidade de Pelotas, RS, conhecida como Comu-
nidade Cristã Nova Esperança Internacional – como já foi explicitada na introdução deste
ensaio.
O grupo religioso atua em Pelotas desde o ano de 201510 e faz parte de um empreendi-
mento missionário da sede da CCNEI fundada em 2004 e localizada no Estado de São Paulo,
que visa a expansão e proliferação da proposta de uma teologia inclusiva pelos Estados bra-
sileiros. Esses grupos religiosos que se autodenominam inclusivos têm como principal ob-
jetivo atender às demandas religiosas de um público específico – o público LGBT (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) cristão (CARMO, 2019).
As recentes igrejas inclusivas11 – também conhecidas no senso comum como igrejas
gays12 – embora visem atender às demandas religiosas do público LGBT é importante escla-

10    Em 2015 o Diário Popular, um jornal da cidade de Pelotas, noticiava os primeiros passos da idealização do projeto
da igreja na cidade. Ver: https://www.diariopopular.com.br/geral/pastor-cria-igreja-voltada-ao-publico-gay-em-pelo-
tas-104860/. Acesso em 29 de agosto de 2018.
11    O termo “inclusiva” pode ser problematizado no campo das representações por sua ligação com aquilo que está à
margem, como os deficientes físicos e mentais (questão mais conhecida no campo do senso comum como “educação
inclusiva”), com a população carcerária, o que marca o termo de forma a dar conta de “corpos abjetos” no sentido que
Judith Butler (2003) nos propõe. O inclusivo, assim, acabaria por corroborar os discursos que colocam sexualidades
e corpos não heterossexuais e não normativos à margem da religião e da sociedade ou alertaria para uma necessária
legitimação de muitas existências que a normatividade mantém “abjetas”. É interessante perceber que as igrejas que
se afirmam “inclusivas”, - embora sejam direcionadas a uma perspectiva de inclusão e aceitação da homossexualidade
como perfeitamente compatível com uma religiosidade cristã expressa por elas -, não são exclusivamente para homos-
sexuais, estando abertas a todas as pessoas, incluindo, assim, heterossexuais (Cf: JESUS, 2012, p. 66-67).
12    É importante esclarecer que muitas dessas denominações não se reconhecem enquanto igrejas para gays, preferem
ser chamadas de igrejas LGBT’s ou mesmo “inclusivas” pois nos discursos de muitas delas a igreja não é destinada único
e exclusivamente para homossexuais do sexo masculino, mas para todas as pessoas, igrejas que acolhem as diversida-
des, que estão abertas para todas as pessoas (MUSSKOPF, 2008).

81
recer que muitas dessas igrejas não se restringem apenas ao público LGBT13, se estende tam-
bém ao público em geral, podendo também serem frequentadas por pessoas heterossexuais.
Para este movimento religioso “inclusivo”, a identidade sexual e identidade religiosa passa
a ser vista e vivenciada de forma positiva, santificada14 e livre da condenação secular – histo-
ricamente difundida e mantida por diferentes ramificações cristãs em relação às práticas
homoeróticas e homoafetivas (REIS, SARDINHA, ROCHA & CARMO, 2016; NATIVIDADE ,
2008;2010).
O principal argumento defendido por essas igrejas “inclusivas” é que, no decorrer da
história ocidental cristã (Igrejas Católicas, Protestantes e Evangélicas de posturas conserva-
doras), consistentemente se utilizaram e utilizam-se de formas de excluir e afastar pessoas
tidas como desviantes da orientação sexual socialmente aceita pela sociedade cristã ociden-
tal – a heterossexualidade – bem como proibiram-nas de vivenciarem e ter acesso aos bens
sagrados, materiais e simbólicos cristãos15.
A teologia inclusiva propõe, em certa medida, a desconstrução de um paradigma cris-
tão secular em relação aos homossexuais e suas experiências e vivências com o sagrado cris-
tão. As igrejas com propostas inclusivas surgem nos Estados Unidos na década de 1960 e
existem no Brasil há mais de vinte anos; possuem vertentes distintas e denominações hete-
rogêneas. No Brasil, existem denominações que particularizam por serem mais liberais no
que concerne à sexualidade de seus fiéis; aquelas que se aproximam e estreitam laços com
o ativismo LGBT; as de cunho mais conservador, no que tange às condutas e moralidades
dos fiéis – estas muito mais próximas do movimento evangélico pentecostal – e outras que
se aproximam de uma vertente mais carismática católica (CARMO, 2019, COELHO JÚNIOR,
2012;2017; NATIVIDADE; 2008;2010).
Apesar destas distinções, o que essas igrejas possuem em comum é o fato de integra-
rem um movimento religioso recente que vem resistindo e ganhando visibilidade no cenário
religioso brasileiro nas últimas décadas por compactuarem com um discurso de “inclusão”
e cidadania religiosa para homossexuais16 cristãos, além de ser reflexo da luta por direitos e
reconhecimento que acompanha a história dos movimentos LGBTs.
Memórias e narrativas: o antes e o depois da pandemia na CCNEI de Pelotas
As duas entrevistas foram realizadas com o Marcelo e o Lucas, ambos membros da CCNEI em
Pelotas. O Lucas, figura hoje como a principal liderança e o Marcelo ficou no cargo de liderança em

13    Como sugere Maranhão (2015) “termo considerado pouco conveniente pela maioria delas visto incluírem pessoas de
quaisquer identidades/expressões de gênero e orientações sexuais/afetivas, e não apenas pessoas LGBT” (MARANHÃO,
2015, p. 8).
14    Cf: Natividade (2008; 2010).
15    De acordo com Coelho Júnior (2012) essa teologia inclusiva ou, como o autor chama, “teologia queer”, tem as pretensões
de romper com os paradigmas cristãos heterossexistas normativos que impõe normas e padrões de condutas, que su-
focam principalmente a pessoa LGBT. Esta teologia visa reconfigurar elementos heteronormativos dentro da estrutura
religiosa do cristianismo, afirmando ser possível sim essa mudança por meio de experiências pessoais de pessoas não
heterossexuais.
16    Faz-se referência ao empenho desses grupos para garantirem o acesso, permanência e cultuar a religiosidade cristã,
uma vez que foram historicamente e socialmente reprimidos nesses espaços. Ver ainda o trabalho de: Carlos Lacerda
Coelho Júnior (2014).

82
Pelotas de 2019 até o início de 2020, após, ter sido designado para ficar à frente do projeto da CCNEI
em Porto Alegre, RS.
As primeiras narrativas e memórias que apresentamos é a do Marcelo. O Marcelo é um jovem
pardo, evangélico, de 28 anos, estudante do Curso de Farmácia e atualmente trabalha em um hos-
pital da cidade de Pelotas. Entre idas e vindas, de transitar em outros grupos religiosos (ALMEIDA
E MONTERO, 2001), sejam eles cristãos convencionais (o termo igrejas convencional são utilizados
pelos interlocutores para se referirem a grupos religiosos cristão hegemônicos conservadores) ou
inclusivos, ele está pelo menos há quatro anos frequentando a CCNEI.
Na célula religiosa em Pelotas, Marcelo ficou de 2017-2020. Em 2017, ele iniciou na CCNEI
como membro, em seguida foi batizado e designado como diácono17. Em 2018 ele decidiu frequen-
tar outra igreja de denominação inclusiva, porém, em 2019 ele retorna para a CCNEI de Pelotas
como a principal liderança após o Sandro, até então o principal responsável pelo grupo, afastar-se
por motivos pessoais, deixando o grupo na responsabilidade de Marcelo no período de 2019 e início
de 2020.
O principal motivo que leva o Marcelo a permanecer em um grupo religioso de denominação
inclusiva está relacionada a sua trajetória em grupos cristãos evangélicos, marcadas por privações,
exclusões e a não aceitação da sua sexualidade, assim como, a maioria dos membros que buscam
estas denominações (CARMO, 2019; NATIVIDADE, 2008).
O perfil do Marcelo é de liderança e de um jovem dedicado a obra, do tempo que esteve à frente
do grupo em Pelotas, segundo ele, sempre se esforçou na tentativa de atrair fiéis e expandir o mo-
vimento. Dedicado a obra18 e ao chamado de Deus 19 durante sua trajetória, ainda em outros grupos
cristãos, ele exerceu figuras de liderança como: líder de grupos de jovens e ministério de teatro.
Sobre o momento de liderança na CCNEI de Pelotas, o Marcelo relata que:
“É, bom gente, meu nome é Marcelo, hoje eu faço parte da CCNE (Comunidade Cristã
Nova Esperança). Em Pelotas em torno de cinco anos nós estamos, dezoito anos no
Brasil. Como o Arielson falou, a última vez que a gente se encontrou na relação de pes-
quisa, estava o desligamento da igreja, estava na Filhos da Luz. Mas como eu e Sandro
sempre conversou (que era meu amigo e pastor da igreja), a gente sempre conversou
que reino vem acima de tudo, né? E acima de minha própria diferença de um do ou-
tro e até mesmo da questão de placa a gente nunca se preocupou com placa. Mas, aí
a gente pensou meio nas questões dele, e aí quando começou o movimento da célula
novamente quando eu saí, não era... mais na casa do Sandro, era lá no Fragata na casa
dos meninos que eles queriam e a gente foi lá tudo mais, apoiei eles, foi a abertura da
célula deles. Só que acabou que os meninos eles continuam conosco até hoje na nossa
célula, na nossa reunião. Só que os meninos acabaram tipo “bom, nós não queremos
liderar, nós queremos que alguém lidere” tá bom então. Aí o Sandro tava liderando
aí Sandro resolveu ir embora pra São Paulo e aí ele conheceu outro ministério, orou,

17    Numa estrutura organizacional, o Diácono serve para ajudar a igreja em assuntos administrativos, prestar ajuda aos
membros, se dedicar as pregações e ajudar nos cultos.
18    “O dedicar-se para a “obra” implica em estar à frente de trabalhos da igreja, no qual é exigido do fiel compromisso e
responsabilidade.
19    O chamado de Deus pode se dar por meio de revelações. Estas revelações podem se dar por meio de sonhos, momen-
tos de orações e louvores, por exemplo.

83
pediu Deus em oração e resolveu sair. A CCNEI de Pelotas ia ficar sem liderança, aí ele
deu meu nome.”

A liderança do Marcelo antes da pandemia é rememorada de forma positiva, coincidiu


com o momento em que mais pessoas estavam vindo conhecer a CCNEI de Pelotas, tendo
em vista que as reuniões no grupo sempre contavam com um número reduzido de pessoas,
contando com pouca mais de oito membros nos seus encontros (CARMO, 2019). As reuniões
estavam acontecendo com uma certa frequência em praças e parques da cidade. Momento
importante para a sociabilidade do grupo e de integração de novos membros. O interlocutor
Marcelo rememora este momento com nostalgia e admiração.
“Ah, a gente fazia as reuniões em um lugar distinto pra não ficar muito... tipo, era na
praça do antigo 7 de abril (Teatro), ou era aqui na Praça da Bento, a gente ia às vezes lá
na praia, né. Então tipo, a gente variava os locais assim pra não ficar muito repetido,
a gente sempre ia pra um ponto, né. E sempre deu resultado, as pessoas começavam a
ir realmente, tipo em torno de reunião passava dez, doze pessoas, dez, doze pessoas,
quinze pessoas. Na praia teve dez (pessoas), ali na frente... esqueço aquela praça ali na
frente do chafariz, ali na praça do Osório, ali deu tipo quinze (pessoas), entendeu? Ali
sempre dá mais gente que é o foco, que é o Centro. E depois a Bento (Praça) dava em
torno uns quinze, catorze pessoas.”

O momento da volta do Marcelo e sua liderança a frente da CCNEI no começo de 2020,


foi também do início da pandemia no Brasil e um dos períodos mais críticos da doença no
país. O Marcelo rememora este momento e aponta as principais dificuldades enfrentadas
com a crise. As memórias revelam dificuldades e tensões vividas durante a sua liderança,
memórias estas que podem ser compartilhadas também pelo Lucas. Segundo a narrativa do
Marcelo o momento da pandemia culminou com as mudanças e a articulação de estratégias
para manter as pessoas frequentando o grupo religioso:
“De janeiro a fevereiro, até comecinho de março, março pra ali foi super tranquilo. A
gente fazia todas as nossas reuniões, em todos os domingos, bonitinhos. A gente se
encontrava, fazia as reuniões, os estudos. É, a partir do meio/final já de março, foi
quando surgiu mais a pandemia mais forte, a gente meio que bloqueou, né? E tipo “e
agora, o que vamos fazer?”
“A gente fazia reunião e tudo mais, e aí a gente decidiu, né, como maioria, entrando no
bom senso, perguntando pro pessoal, se o pessoal tinha condições de abrir o aplicativo
ou se tinha como baixar no celular o aplicativo, né. E muitos baixaram o Zoom que é
um aplicativo (...)”

O Marcelo rememora que as mudanças nas estruturas dos encontros presenciais para
os encontros virtuais tiveram distintas fases e aponta as principais: a importância das ferra-
mentas virtuais como o Zoom, Google Meet e das redes sociais como Instagram e WhatsApp se
mostraram eficazes em alguns momentos e outros não. As plataformas foram benéficas em
primeiro momento, devido ao aumento do número de pessoas que começaram a frequentar
os cultos no formato online, contudo, faltava interação e acolhimento por parte das pessoas
que participavam; as dificuldades de alguns fiéis em não conseguir ter um celular de qua-
lidade para baixar o aplicativo Zoom, fez com que os cultos fossem mudados para o Google
Meet, Instagram e WhatsApp para facilitar o acesso.

84
Dentre as ferramentas utilizadas, a que se sobressaiu e facilitou o acesso de mais pes-
soas na liderança do Marcelo foi o WhatsApp. No quesito interação, segundo o Marcelo o Goo-
gle Meet facilitava pelo uso de Webcam e por agregar maior número de pessoas nas reuniões.
E no que diz respeito, ao alcance de pessoas, foi a rede social Instagram.
A ausência de instrumentos tecnológicos e as dificuldades de acesso, demonstram pro-
cessos sociais de desigualdades que são algo marcante durante a pandemia que assola o
país. As narrativas do Marcelo sinalizam também para seus aspectos emocionais, principal-
mente para o sentimento de realização e de bom trabalho da sua liderança.
Os momentos online serviram também para estreitar os laços pessoais e de amizades
entre antigos membros que haviam se afastado e retornavam; a presença de um Pastor de
uma igreja inclusiva Americana, que em um contexto de encontros presencias seria inviável.
Além disso, propiciou o encontro de distintas lideranças e denominações inclusivas.
Contudo, os encontros online também trouxeram uma sensação de frustração e de
impotência, sobretudo, no que diz respeito ao acolhimento das pessoas, ao cuidado e acom-
panhamento dos membros. Segundo a narrativa do Marcelo, nos encontros online era dificil
acompanhar e saber notícias das pessoas, reclamava da falta de afeto e atenção presencial
que alguns membros necessitavam. Tendo em vista que no grupo, em várias ocasiões, os
encontros presencias serviam como momentos de compartilhamento de experiências, emo-
ções e dramas (CARMO, 2019).
O Marcelo rememora a transição dos encontros:
“É que tipo, todo mundo foi pego de surpresa né? E a gente não tinha uma carta na
manga, “e agora o que nós vamos fazer?” E em reunião a gente decidiu, não, pra não
ter a separação, da gente dizer “não, a gente não tem como tipo, cuidar, por exemplo,
do Arielson presencialmente, então nós vamos online”. E online foi muito mais, vamos
dizer assim, muito mais gente, online. Eu não sei por causa da pandemia as pessoas
começaram a ter tempo, né, começaram a se aproximar mais. Então, tipo, o vínculo foi
muito alto, em meio a essa pandemia a gente praticamente quase dobrou o número de
gente, nós dobramos em acesso, em questão de acesso, tudo mais, né. Tanto é que eu te
falei que deu vinte e poucas pessoas numa reunião online no aplicativo, no Zoom. E foi
bem interessante assim porque as pessoas começaram a entrar, entrar e entrar, eu fui
ver e até fiquei assustado, falei “gente, tem tanta gente aqui”, e foi bem interessante,
foi bem receptivo, só que o aplicativo do Zoom pesa muito no celular, aí a gente acabou
mudando pro Meet (Google Meet), mas assim o pessoal se adaptou ao Meet. Claro, a
adaptação do online do presencial, como eu te disse pro online, é muito complicada,
é que no presencial a gente sabe como tu tá. “Ah, tu tá bem?”, “Não sei o quê”, “Que
bom te ver”, né? E tipo, a questão do abraço, do afeto, do carinho, da atenção, tipo, no
presencial é muito mais legal do que no online. No online tu conversa “Ah, tu estás
bem? “Ah eu tô bem”, mas tipo, realmente a pessoa precisa de um abraço, não virtual,
mas um abraço online presencial, muda toda a circunstância. Só que o pessoal recebeu
bem isso no quesito de receber, a gente conversou mais, dialogou, e a gente passou a
fazer duas reuniões, né, uma na quarta-feira e uma no domingo. Quando não fazia na
quarta, fazia na quinta, e quando não fazia nas quintas o Sandro fazia a dele e aí eu en-
globava os meus com o dele, e a gente fazia todo mundo junto. Nos domingos mesmo a
gente fazia, né, e foi uma parceria bem legal nós unindo nós, e muitos outros pastores
dos Estados Unidos participaram conosco, né, e então tipo foi bem interessante assim

85
que nos ajudou a entrar outros pastores, que deixar o rótulo de ser Marcelo/Sandro,
Marcelo/Sandro. Pra que as pessoas pudessem ver que a igreja inclusiva é muito mais
ampla, existem outros pastores, outros jeitos de liderar, outros jeitos de ministrar, é
que as pessoas dizem que eu sou meio “peteca”, mas eu sou de boa. E aí tipo deu a opor-
tunidade de nós conhecer outras igrejas, outros pastores, né. Então tipo, a pandemia
veio, por mais que ela assolou algumas coisas, mas em algumas coisas ela também
ajudou a englobar, ou melhor, ela ajudou a gente a parar pra pensar. Eu sempre digo, a
gente vivia numa correria muito louca, né, então tipo aquela correria do dia a dia, dia
a dia, dia a dia, a gente fica sem tempo pra nada. A pandemia praticamente ela fez tu
obrigar a tu ter tempo, tipo ela te obrigou. E as pessoas começaram a chegar até nós,
muitos nesse sentido de dizer assim, tipo “Ah agora a pandemia vai me deixar louco”,
“Ah a pandemia não sei o quê”, “não vou ter com quem conversar”, então a gente fazia
roda de conversa online, no WhatsApp. “Gente, quem é que tá online e quer participar
da roda de conversa?”, o WhatsApp ele ampliou, era de quatro antes né, agora foi pra
oito, então a gente conseguia fazer roda de conversa no ‘whats’. Então tipo dava pra
gente ver “ah, fulano tu tá bem?” ou até mesmo ministrar estudo, “então gente vou mi-
nistrar estudo todo esse mês de Gênesis, só que não vai ser pelo aplicativo, vai ser outro
dia, nós vamos ministrar o estudo pelo WhatsApp” “ah tá, então tá” “quem é que quer
participar online?” “ah eu quero” “então tá”, a gente fazia também pelo WhatsApp nos-
so encontro. Pelo WhatsApp, aplicativo e por último a gente começou a usar o insta.”

Sobre a estrutura de ministração do culto, o Marcelo relembra mudanças abruptas de


uma forma presencial para a forma virtual. Dentre elas, a questão de tempo, de participação
das pessoas e da forma de condução do culto. De acordo com o Marcelo, outras denomina-
ções religiosas também sentiram as mesmas dificuldades. Em um momento presencial, é
essencial a interação das pessoas para que a eficácia simbólica do culto produza sentido para
aqueles que participam (TURNER, 2005). Os gestos, as palavras, manifestações corporais,
orações, louvores e outros elementos simbólicos e performáticos (CAVALCANTI,2014) pre-
sentes no louvor foram dificultados no espaço virtual e sentidas, não só pelo Marcelo, mas
por demais membros do grupo.
As memórias do Marcelo sobre este cenário, também foram compartilhadas pelo Lucas
em seu atual estágio de liderança. Conforme recorda o Marcelo:
“A gente começou/teve que mudar completamente, né, porque tipo em presencial, a
gente tem um jeito de ser presencial, de liderar e tudo mais, né? Uma maneira, uma
conduta, vamos dizer “uma conduta” entre aspas. Quando a gente vai pro online, tipo
tem que ser meio que robótico, porque tipo, quem tá te olhando do outro lado muitas
vezes acaba não querendo receber, é um bloqueio, existe um certo bloqueio. Então
tipo, a gente tem que ter um certo cuidado. Eu sou bem brincalhão, então tipo eu tô
online aqui e tô falando uma bobagem, tô brincando contigo, em meio a todo mundo,
né? Só que no online tu não pode, porque tipo tem muita gente te assistindo e muita
gente que vai te assistir depois, que fica gravado. Já no aplicativo não, no aplicativo
tipo tinha conduta, eles tinham uma certa conduta, um certo receio, então a gente
ficava “ah não, vamo seguir um padrão” e a gente seguia sempre o padrão pra não ter
vamos dizer assim “ah achei demais o que ele falou” ou “achei de menos”. A questão de
tempo, a gente usava muito a questão de tempo “não, não, vamos deixar as pessoas,
vamos aqui esperando”, tipo vamo aumentar até horário, vamo aceitar horário. Então
tipo, fazia isso, sabe? “Não vai passar de tal horário, gente”, então e ajudava também as

86
pessoas. Só que quando as pessoas pediam “ah, dá pra continuar mais um pouco?” aí a
gente continuava mais um pouco, se não, não.”

As memórias do Marcelo à frente da liderança da CCNEI de Pelotas, é marcada por


transições, rupturas e os usos de tecnologias como estratégias de sociabilidade religiosa em
tempos de pandemia. As narrativas do Marcelo representam mudanças estruturais, afetivas
e emocionais na forma de conduzir o grupo em Pelotas, na forma de assistência religiosa
aos membros, de interação e das formas ritualísticas – elementos cruciais de integração e
manutenção das práticas religiosas e de solidariedade do grupo (TURNER, 1974).
A liderança do Lucas no período pandêmico na CCNEI, se inicia logo depois que o Mar-
celo fica a cargo do outro grupo de mesma denominação na cidade de Porto Alegre. Acer-
ca das mudanças narradas e relembradas pelo Lucas, em determinados momentos elas são
compartilhadas com as memórias do Marcelo, e em outros, as narrativas do Lucas apresen-
tam fatos singulares. Mostrando, que embora, os dois fizessem parte do mesmo grupo reli-
gioso em períodos comuns, as memórias se apresentam de forma distinta. Ora, assumindo
um caráter coletivo, ora, assumindo um caráter puramente individual (HALBWACHS, 1990).
O Lucas é um jovem negro, 22 anos, estudante de Pedagogia e bolsista na universida-
de. A trajetória religiosa do Lucas foi no meio evangélico pentecostal - Igreja Internacional
da Graça de Deus, quando descobriram que ele era homossexual, esses conflitos acabaram
levando Lucas a se afastar dessa denominação e buscar congregar em um grupo religioso
voltado para o público LGBT.
O perfil do Lucas não se diferencia do Marcelo, ambos jovens dedicados a “obra” e de
uma vida pautada nos valores cristãos, além de serem jovens carismáticos, com perfil de
liderança, comunicativos, viviam com muita devoção a fé cristã evangélica. Ambos não fre-
quentavam festas e boates LGBTs, não consumiam bebidas alcoólicas e afirmavam ir em
barzinho no mercado público da cidade apenas para acompanhar e conversar com os ami-
gos. O Lucas também nasceu em “berço” evangélico e passou toda a sua vida dentro de igrejas
(CARMO, 2019). No que concerne as estas assertivas, o Lucas narra que:
“Então tá. Meu nome é Lucas, eu sou líder de uma igreja inclusiva, ela se chama Nova
Esperança. O núcleo dela é em Pelotas, nós temos várias igrejas espalhadas pelo Brasil,
são quarenta e sete (47). Ela é a igreja mais antiga do Brasil que se intitula inclusiva, e
nós começamos o trabalho aqui bem tarde, entre aspas né. Porque enquanto lá em ou-
tros Estados, São Paulo, Mato Grosso, o pessoal já tava bem envolvido, no Rio Grande
do Sul foi os últimos que começaram. Aí depois de um tempo em vim pra CCNE (Co-
munidade Cristã Nova Esperança), não era daqui, não era da igreja inclusiva, não era
do meio inclusivo. Vim pro meio inclusivo, como já tinha experiência em trabalhar e
tudo mais, no meio de igrejas, entre aspas. Fui me habilitando e hoje tô aí. Tô liderando
a igreja de Pelotas. Tenho vinte e dois (22) anos, estou fazendo licenciatura em Peda-
gogia noturna, e estou sendo também aluno do programa PIBID que é um programa
de bolsas da faculdade.”

As vivências do Lucas em uma igreja destinada o público LGBT começa na CCNEI em


2017. No grupo em Pelotas, ele já foi responsável pelo louvor e por fazer pregações (CARMO,
2019). No ano de 2018 por motivos pessoais e por conflitos familiares e na sua antiga igreja
ele se afasta da CCNEI de Pelotas e volta a congregar na sua antiga igreja. Em 2019, em uma

87
fase mais madura de sua vida, após se assumir gay para parentes e familiares – como ele
mesmo afirmou em entrevista – ele volta a congregar no grupo de Pelotas, e em 2020, após
a saída do Marcelo ele assume a liderança e fica à frente do projeto religioso na Cidade de
Pelotas. No que diz respeito a este momento o Lucas remora:
“Ah, eu hoje sou o líder, líder geral da CCNE de Pelotas. Não fui intitulado como líder
interino da CCNE, antes o cargo era do Matheus. Ele foi levantado líder da CCNE de
Porto Alegre. Nós já tínhamos tido um trabalho lá, há um tempo atrás. E por motivos
financeiros e outros, a CCNE de Porto Alegre fechou por um tempo, e como nós tínha-
mos duas pessoas aqui pra liderar e tinham um forte entendimento e conhecimento, e
sabiam lidar com isso, eles decidiram pôr eles lá em cima pela liderança geral do Brasil,
eles decidiram separar os líderes porque eu liderava uma parte e ele liderava outra
dentro de Pelotas, aí eles decidiram expandir. E nossa visão é essa, de expandir cada
vez mais. Então deixaram eu liderando aqui, e ele liderando em Porto Alegre.”

Com perfil de liderança, para o Lucas é simbólico este momento de assumir os traba-
lhos do grupo religioso e dar prosseguimento com o legado da CCNEI no Rio Grande do Sul.
Afinal de contas, o Lucas demonstra boa vontade e estar à frente da CCNEI faz parte de uma
revelação, de um projeto de Deus na sua vida. A ideia de projeto e revelação divina é algo mar-
cante nas memórias do Lucas e do Marcelo, a predestinação e a profecia vinda dos céus são
materializadas na ideia da existência da CCNEI enquanto uma igreja que acolhe homosse-
xuais. A CCNEI marca o tempo em que podem novamente se sentir integrados em um grupo
religioso cristão, podendo desenvolver suas habilidades espirituais (como cantar e liderar e
usufruir dos bens materiais e simbólicos do sagrado evangélico.
As memórias do Lucas, sobre o momento de pandemia e da estrutura organizacional
da CCNEI é similar às narradas pelo Marcelo. Para o Lucas, com relação aos cultos online, as
principais mudanças sentidas por ele são sobre a noção do que ele denomina de presença – a
presença para ele é entendida como estar junto e sentir o outro na materialidade física do ser
(poder abraçar, festejar e compartilhar). E estas fora umas de suas principais preocupações,
pois, nos cultos presenciais você pode sentir a presença física das pessoas e pode interagir
nos momentos dos louvores e rituais.
Contudo, o Lucas acredita que o poder da fé é maior e pode ser capaz de ultrapassar as
barreiras impostas pelo vírus e que isto é possível através da manifestação divina, mesmo
de forma online, as pessoas podem sentir a palavra de Deus e o principal instrumento desta
manifestação é a bíblia e todos os elementos simbólicos que a compõem. Os momentos dos
cultos online também são entendidos pelo Lucas como o momento de revelação e profecia.
Revelação porque o momento da pandemia se trata de um teste posto por Deus da presença e
ausência. Os que continuam persistindo nos encontros online, são aqueles que ele julga como
os verdadeiros cristãos e os que se afastam seriam os falsos crentes – vale ressaltar que esta
afirmação do Lucas está pautada em passagens bíblicas, na noção de separação do joio e do
trigo contida no novo testamento.
O Lucas relembra ainda que em várias passagens bíblicas, as catástrofes, pandemias e
momentos de crises mundiais, tratam-se de profecias e de revelações divinas ou do que ele
classifica como fim dos tempos. Que as tecnologias, desenvolvimento e utilização delas tam-

88
bém fazem parte destas revelações. Sobre este momento de mudanças na sua liderança ele
narra:
“Bom, no geral, o culto online separou muito aquilo que a gente tem de ideal de uma
igreja. Porquê o que é a igreja? É a unidade em Cristo, e quando a gente recebeu essa
notícia de que a gente teria que fazer as coisas online e a gente percebeu o tamanho, a
intensidade que era esse problema, nós paramos e pensamos “nossa, como nós vamos
passar a mesma coisa que nós passamos no culto presencial”. Aquele sentimento que
nós passamos de Cristo, aquele louvor que toca em um culto online. E nós ficamos
pensando nisso, e isso foi uma problemática pra nós. E nós nos demos conta de que
o importante, muitas vezes, não é o sentir, mas é a presença. É tu estar ali de corpo
presente, é estar ali querendo aquilo, porque é muito fácil pegar e abrir a câmera do
meu celular agora e falar um trecho, um versículo da bíblia, botar um fundo de louvor e
falar, simplesmente falar. E foi uma experiência totalmente nova porque nos mostrou
que, sim, é possível fazer um culto da mesma forma, da mesma intensidade online,
onde nós vamos sentir que as pessoas estão sentindo a presença de Deus, e isso foi
uma das coisas que mais me chamou atenção, sabe? Porque o ponto que nós chega-
mos, a tecnologia que nós chegamos pra que isso acontecesse, foi uma das coisas mais
intrigantes pra nós, porque nos faz lembrar daquilo que a palavra nos fala que no fim
dos tempos haveria um... nós como igreja iríamos ficar espantados com o tamanho
da tecnologia que teríamos, e que uma pessoa do outro lado do mundo poderia ver
uma pessoa que está da outra parte do lado. Então essas coisas também fazem a gente
refletir sobre outras coisas que também são citadas na palavra. E isso nos deixa mais
“firmes”, nos deixa mais confiantes naquilo que Jesus nos prometeu, que é a vinda
dele. Então, no meio da pandemia, em uma das nossas pregações, uma das coisas que
nós conversamos era sobre isso, sabe? Sobre o quê que tá acontecendo, o que são as
coisas que estão acontecendo ao redor do mundo, quantas pessoas estão morrendo. Se
tu for colocar em geral terra, quantas pessoas já morreram por causa dessa pandemia,
por causa deste vírus. E nós colocamos isso, e nós entendemos que isso tem a ver com
a vinda de Cristo. Nós colocamos isso em pauta, e isso é muito importante. Nós refle-
timos muito sobre isso. Não tira também aquelas pessoas que se afastam, porque elas
acreditam que não é a mesma coisa. Então têm pessoas que se firmam mais durante a
pandemia, e tem pessoas que se afastam. E isso que nos preocupa porque nós deixa-
mos com um ponto de interrogação: elas estão pelas pessoas ou elas estão por Cristo?
E aí que nós botamos na balança: quem são os cristãos, os verdadeiros cristãos, e quem
está ali só por presença. Esse é um dos pontos que mais temos conversado muito nas
nossas reuniões, nas reuniões fechadas que nós fazemos com a liderança de São Pau-
lo. A gente tem falado muito sobre esses pontos porque esses pontos têm preocupado
muito a gente.”

O Lucas relembra que no contexto antes da pandemia o que ele mais sente falta é dos
momentos de sociabilidade do grupo, dos momentos de descontração e das formas de rea-
lizar os cultos presencialmente. A pandemia também impediu que alguns planejamentos se
concretizassem, dentre eles: o retiro que acontece todo ano na célula que promove a confra-
ternização dos membros e a integração de novos; dificultou o andamento do grupo em se
firmar como igreja na cidade – a vontade de alugar um prédio e se constituir como igreja é
uma meta a ser atingida pela CCNEI de Pelotas.

89
O Lucas rememora que antes da pandemia as pessoas estavam frequentando os cultos,
a mudança para o virtual dispersou as pessoas e algumas não aderiram aos encontros online.
Para o Lucas, o contexto de pandemia e os encontros online, foi positivo, porque reve-
lou aqueles membros que estavam dispostos a passar pelas adversidades juntos e continu-
aram firmes no projeto da CCNEI e aqueles que não estavam tão motivados a enfrentar a
crise. Outro ponto positivo que o Lucas narra é que no modo presencial a comunicação com
os membros nos grupos de WhatsApp e outras redes sociais não aconteciam com tanta fre-
quência como vem ocorrendo. Como esclarece o Lucas:
“O processo, de forma... Vamos começar pela forma negativa. De forma negativa, eu
acho que isso impede um pouco as igrejas de ganhar pessoas, porque como toda igreja
nós temos as despesas, querendo ou não. No ano que vem, por exemplo, nós teríamos
o retiro, isso já é uma coisa que já tá bem difícil de organizar por causa das despesas
que nós temos. Inclusive para nós aqui que somos uma célula, nós estamos planejando
abrir uma igreja física. Mas, nesse momento de pandemia é inviável porque as pessoas
não estão contribuindo, e isso é um dos pontos negativos que nós temos, um dos pon-
tos negativos e que estão assim sendo os mais taxados no momento porque a gente
não tem aquelas condições que nós tínhamos antes. Então esse é um dos pontos nega-
tivos, e também esse ponto negativo que eu havia falado antes. É um ponto negativo
as pessoas estarem se desviando do “caminho”. Porque elas não frequentam, porque
é uma live, porque elas vão poder ver depois daí elas não vêm. Aí o dia a dia é corrido,
e aí vão entrando outras coisas, empecilhos, é trabalho, faculdade, é tarefa pra fazer,
limpar a casa e aí acaba que vai enchendo a carga horária da pessoa, e a pessoa acaba
excluindo algumas coisas que ela não acha essencial, mas que na verdade são de suma
importância. Pontos positivos. Os pontos positivos que nós estamos enxergando é que
realmente aquelas pessoas que nós queríamos ter certeza que estavam firmes, elas
continuaram mesmo depois dos problemas, mesmo depois das lutas que nós temos,
elas continuam. E essas pessoas nós sabemos que a gente pode contar. É nesses pro-
blemas, nessas lutas que nós entendemos com quem a gente pode contar e com quem
a gente não pode contar, sabe? Os pontos positivos: nós estamos nos comunicando
muito mais com as pessoas agora do que antes, porque antes as pessoas vinham pra
reunião, nós conversávamos, extravasávamos ali naquele momento. A gente ria, dava
risada, chorava, a gente fazia confraternização, ia embora e não mandava mensagem
no WhatsApp depois, e não fazia uma gravação falando “Bom dia, que Deus abençoe
teu dia”, não, nós não fazíamos e hoje sim. Nós damos bom dia, nós mandamos uma
mensagem de motivação, nós fazemos cultos quase sempre e isso é um dos pontos
positivos e que nos ensinou a ser mais assíduos com Cristo. Esse é um dos pontos
positivos.”

Outros fatos marcantes das memórias do Lucas, são relacionados ao cuidado e assis-
tência aos membros. Lucas relembra que antes da pandemia e das medidas de restrições
era mais dificil acompanhar os membros e os aspectos emocionais destes. As tecnologias
a disposição do grupo foram importantes para que a liderança do Lucas fosse marcada por
acompanhamento individuais dos membros no modo virtual, no qual estes podiam falar
sobre suas aflições e angustias. As tecnologias deixaram os membros mais à vontade para
poder se comunicar e pedir aconselhamento do Lucas, atos que não aconteciam com tantas
frequências no modo presencial. O Lucas lembra que:

90
“Eu noto as coisas, eu observo as coisas até porque a gente tem um entendimento
muito maior, e eu começo a fazer algo a longo prazo pra que aquilo mude, pra que
tenha um impacto de longo prazo na vida das pessoas. Quando eu notei isso, comecei
a buscar estratégias, comecei a pesquisar coisas para que as pessoas não se dispersas-
sem. Foi aí que entrou as chamadas individuais, o atendimento individual. Eu tive essa
ideia e comecei a conversar com as pessoas, e isso parece que trouxe elas de volta de
uma forma muito impactante até porque as pessoas choravam nas chamadas. Quando
eu comecei a conversar com elas, as pessoas começavam a chorar, e elas me contavam
muitas coisas que não me contavam em uma reunião normal que tava todo mundo ali.
E isso, eu percebi que foi uma forma de resgatar aquelas pessoas, e eu percebi depois
que elas voltaram a ficar presentes nos cultos, botar um “bom dia” nos grupos, man-
dar uma mensagem porque eu deixo livre pra colocar uma mensagem às vezes. Eu
digo “olha gente, se alguém quiser compartilhar uma mensagem, fique à vontade”, e
elas começaram a me procurar mais pra conversar – coisa que não tinha. Tinha, mas
eram em poucos números e isso aumentou muito na pandemia, foi como se fosse um
delivery. As pessoas começaram a me chamar, me chamar e a me chamar. Meu tempo
começou a ficar muito curto. Só que pra mim que sou líder, isso é muito bom. Eu posso
conversar com as pessoas, eu posso mandar uma mensagem, eu posso orar por elas, e
isso pra nós tem sido muito bom, sabe? Mas esse foi um dos problemas que eu tive no
início, mas eu consegui ter uma solução que foi essa: fazer as vídeos chamadas.”

Além das dificuldades de assistência no modo presencial, o Lucas rememora que os


momentos de práticas ritualísticas são elementos importantes de sociabilidade, interação e
integração do grupo foram abaladas com o momento pandêmico. O ritual para ter eficácia
simbólica e material é necessário a participação dos membros (TURNER, 2005). As práticas
ritualísticas envolvem emoções, sentimentos, gestos, sabores e cores (CAVALCANTI,2014).
A manutenção dessas práticas fora comprometida, principalmente o ritual da Santa
Ceia que era de suma importância para o grupo. Mesmo sendo adaptada para o formato
online, o Lucas entende que é dificil realizar os principais rituais virtualmente. Além disso, o
pagamento do dízimo foi suspenso, uma vez que as pessoas não estavam frequentando o lo-
cal de culto. Isto dificultou também os planos da liderança do Lucas, que antes da pandemia
estava pensando em alugar um local para ser a sede da igreja em Pelotas. O Lucas relembra:
“Bom, existem muitas coisas. Uma delas é a Santa Ceia. A Santa Ceia antes era um
momento assim... É um marco pra igreja, a Santa Ceia é um marco porque a gente
relembra a morte de Cristo, e tem aquela, é naquele momento. E quando a gente se
deu conta que a gente iria ter que continuar fazendo a Santa Ceia porque ela não pode
ser quebrada, quando a gente se deu conta disso, ficamos pensando “Nossa, como que
vai ser a Santa Ceia agora?”. Porque é unidade, unidade é um só. Nós devemos montar
aquele grupo e torna-lo uma igreja. E nós ficamos pensando “Meu deus, como nós
vamos fazer isso?”. Isso foi uma problemática tão grande pra nós no início, sabe? A
gente ficou pensando “Meu deus, como que a gente vai fazer isso?”, e nós começamos
a reler a bíblia pra entender o quê que a gente deveria fazer nesse momento, com esses
problemas, com essas restrições. E depois chegamos a conclusão depois de ler, que a
gente deveria continuar fazendo de forma online, porque a gente fica na dúvida, né? O
cristão sempre vai se guiar pela bíblia, e ele sempre vai achar uma solução pela bíblia,
porque nós acreditamos que ali tem a solução pra tudo. Então a gente foi direto pra
bíblia “nossa, o que vamos fazer, o que diz na bíblia sobre santa ceia, que nós podemos

91
fazer?”, e aí nós entendemos “não, o que vale é a intenção do nosso coração”. E outra,
Deus está vendo o que nosso coração está querendo em relação a isso. Nós continu-
amos fazendo a Santa Ceia normal online, Só que aí é que tá, é muito diferente. Nós
continuamos com as mesmas coisas, nós continuamos com as pregações. Uma coisa
que nós fazíamos: recolhimento de dízimos e ofertas. Isso foi uma das coisas que nós
cortamos porque não tinha como. As pessoas estavam nas casas delas, e nós estamos
na nossa. Confraternização: não fazíamos mais. A Santa Ceia, nós continuamos fa-
zendo. Eu acho que é só isso que nós não estamos fazendo, porque de resto, tudo foi
adaptado para o online. E foi uma das coisas bem complicadas pra nós, fazer a Santa
Ceia online. Foi uma das coisas que nos deixou bem abalados assim espiritualmente
porque é diferente, porque tu busca fora, tu abraça a pessoa.”

As expectativas do Lucas para um momento pós pandemia, são as melhores. Na sua li-
derança ele pretende expandir a CCNEI em Pelotas, manter os membros que estão frequen-
tado os cultos online, trazer mais pessoas para conhecer o grupo e isso inclui uma maior
diversidade sexual e de gênero, abrir filiais em outras localidades do Rio Grande do Sul, para
além disso, que não demore para que todos sejam vacinados.
“Nossa, as minhas perspectivas são as melhores. Eu espero assim... Eu acredito que
depois que a pandemia passar, nós vamos voltar com tudo, voltar com todas as for-
ças, com todas as pessoas. Nós vamos ter pessoas novas. Porque a gente não deixou
de evangelizar online. Nós temos um exemplo: nós temos o Instagram, a página ela é
aberta. Todo dia tem uma pessoa que nos chama “Ah, eu tô com uma dúvida, ah vocês
são inclusivos. O que é esse meio? O quê que faz no evangelho inclusivo?” As pessoas
têm dúvidas, elas têm sede de entender porque elas querem se aceitar como elas são,
e elas querem um lugar que aceite elas, onde elas possam crescer, onde elas possam
fazer um louvor.”
“Então, dentro disso a minha perspectiva pra daqui... nós entendemos que até vacinar
todo mundo, provavelmente vai sair lá no fim do ano porque tem todas as ordens dos
idosos, os médicos, toda aquela função, até termos 100% de certeza que estão todos
imunizados da Covid-19. Eu pretendo e a minha perspectiva é que a gente comece o
trabalho, que a gente dê início ao trabalho que nós planejamos no início do ano, que é
expandir. A Nova Esperança tá pronta, ela tá preparada pra expandir, nós temos pes-
soas espalhadas, por lugares por locais, Bagé, Caxias e Porto Alegre agora que voltou,
que já estão preparadas. Assim que a pandemia terminar, nós vamos dar início no-
vamente ao nosso planejamento do início ano, e daí nós vamos investir tudo que nós
temos. Vamos voltar com os cultos presenciais, nós já estávamos até alugando. Nós
tínhamos um local alugado pra começar já a fazer os cultos para as pessoas começarem
a se acostumar com aquela igreja. Porque querendo ou não em Pelotas é algo novo.
Como que o povo pelotense vai ver a igreja inclusiva, é um pacto muito grande. E isso
também nós temos que pensar na nossa segurança, nós pensamos em tudo. Como
que o povo pelotense vai reagir a uma igreja inclusiva que diz que Cristo que ama os
homossexuais? Que é aberta pra uma travesti, que é aberta pra uma lésbica. Como que
a igreja vai reagir, a igreja tradicional que eu tô falando, vai reagir em relação a isso.
Quando nós pensamos em abrir uma igreja inclusiva em Pelotas, nós pensamos em
tudo isso. Se não vai chegar do nada uma pessoa, um homofóbico e vai atirar em todo
mundo lá dentro por saber que é uma igreja... Nós pensamos nisso, nós pensamos na
segurança das pessoas. Lá pra cima isso não acontece, porque é tudo muito grande. As
pessoas já tem um entendimento muito maior. Mas e em uma cidade pequena como

92
Pelotas? Nós pensamos nisso, e nossa liderança lá de cima, eles prezam muito por essa
segurança. Então esse é um dos planejamentos que nós temos, que nós estamos vendo
da melhor forma de como inserir isso na cidade de Pelotas e nas regiões. Esse é um dos
pontos muito importantes que nós estamos vendo também.”

Considerações finais
Este ensaio, tratou de questões relacionadas à religiosidades e o contexto de pande-
mia global. Focalizando para as memórias de dois líderes religiosos de um grupo religioso
destinado ao público LGBT na cidade de Pelotas, RS. A partir das memórias e das narrativas
dos interlocutores demonstramos as mudanças nas estruturas organizacionais da CCNEI
de Pelotas, o que mudou com advento da pandemia, as expectativas para um momento pós
pandêmico e as estratégias adotadas para manter os membros frequentando.
As memórias dos interlocutores sinalizaram que o que mais mudou durante o período
pandêmico fora as dificuldades com relação ao cuidado e acompanhamento dos membros;
planos de expansão e evangelização do grupo; mudanças e dificuldades na realização dos
rituais; louvores e pregações.
O uso de tecnologias e das redes sociais, ao mesmo tempo que auxiliou o grupo, tam-
bém ofereceu dificuldades, tanto pelo uso e o manejo destas por sua membresia, bem como,
a falta de interação e comprometimento.
As memórias e narrativas dos interlocutores sobre a estrutura organizacional do grupo
frente ao contexto de pandemia, ao mesmo tempo que podem ser compartilhadas coletiva-
mente, também assume aspectos singulares e própria da subjetividade de cada um.
Por fim, este ensaio busca contribuir com as reflexões sobre memórias e narrativas
dos atores sociais no atual momento pandêmico e religiosidades. Chamamos atenção que
as reflexões apresentadas fazem parte de uma pesquisa exploratória que pode auxiliar nas
interpretações para trabalhos futuros. O ensaio apresenta possibilidades para pensar a rela-
ção entre tecnologia e religião no período de pandemia, os usos de tecnologias com instru-
mento de proselitismo e atração de novos fieis e as perspectivas de diferentes grupos sobre
a pandemia global.
Referências
ALMEIDA, R. MONTERO, Paula.Trânsito Religioso no Brasil. Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, no. 3,
2001, p. 17-35.
BENJAMIN, Walter. O narrador. São Paulo: Brasiliense, 1987. Obras Escolhidas, v.3.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T. A. Queiroz, 1979.
CARMO, AT. Etnografando um grupo religioso inclusivo: reflexões metodológicas e o ser afetado. Religare: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Ciências das Religiões da UFPB, v. 16, n. 2, p. p.461-493, 30 dez. 2019.
COELHO JÚNIOR, Carlos Lacerda. “Somos ovelhas coloridas do senhor” Uma análise sociológica acerca da vivência
homossexual em uma igreja inclusiva. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Universidade Federal de Alagoas. Insti-
tuto de Ciências Sociais. Programa de Pós-Graduação em Sociologia. Maceió, 2014.
_________. “A emergência de uma Teologia Queer – Uma breve análise sobre as influências do movimento feminista e
homossexual no processo de reconfiguração do sagrado” 17º Encontro Nacional da Rede Feminista e Norte e Nordeste
de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e Relações de Gênero (2012): n. pág. Web. 10 out. 2017.
CAVALCANTI, Maria Laura (org.). 2014. Ritual e Performance: 4 estudos

93
Clássicos . Rio de Janeiro: 7 Letras.
DURKHEIM, Emille. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
_________.. As Regras do Método Sociológico. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
GIBBS, Graham. Análise de biografia e narrativas. GIBBS, Graham, In: Análise de dados qualitativos. Porto Alegre:
Artmed, 2009, p, 79-96.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. Laurent Léon Schaffter. Editora Revistas dos Tribunais LTDA. São
Paulo, Edição 1990.
JESUS, Fátima Weiss de. (2008), Notas sobre religião e (homo) sexualidade: ‘igrejas gays’ no Brasil. Porto Seguro: Tra-
balho apresentado na 26ª Reunião Brasileira de Antropologia.
_________. “UNINDO A CRUZ E O ARCO-ÍRIS: Vivência Religiosa, Homossexualidades e Trânsitos de Gênero na Igre-
ja da Comunidade Metropolitana de São Paulo”. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina. Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social. Centro de Filosofia e Ciências Humanas, 2012.
MARANHÃO Fº. Eduardo Meinberg de Albuquerque. “Uma Igreja dos Direitos Humanos” onde “promíscuo é o indiví-
duo que faz mais sexo que o invejoso e inveja é pecado”: Notas sobre a identidade religiosa da Igreja da Comunidade
Metropolitana (ICM). Mandrágora, SBC, v.21. n. 2, p. 5-37, 2015.
NATIVIDADE, Marcelo Tavares. Uma homossexualidade santificada? Etnografia de uma Comunidade inclusiva pen-
tecostal. In: Religião e Sociedade, vol.30 n.2, Rio de Janeiro, p.90-121, 2010. Disponível em: <http://dx.doi.org/10. 1590/
S0100-85872010000200006>.
_________. Deus me aceita como sou? A disputa sobre o significado da homossexualidade entre evangélicos no Brasil.
Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia). Rio de Janeiro: IFICS/UFRJ, 2008.
SANTOS, Myrian. “O pesadelo da amnésia coletiva, um estudo sobre os conceitos de memória, tradição e traços do pas-
sado. ” In. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n 3,ano 8, outubro de 1993, ANPOCS 23.
TURNER, Victor. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes,1974.
_________. Floresta dos símbolos: aspectos do ritual Ndembu. Niterói: EdUFF, 2005.

94
Capítulo 6

Religião, representação e política:


o discurso da Ministra Damares e a
construção social da realidade bolsonarista

Daniel Ribeiro Ferreira Junior


Gleidson José Monteiro Salheb
Marcos Vinicius de Freitas Reis

O objetivo desta pesquisa é compreender os sentidos do discurso da ministra de


Família, Cidadania e Direitos Humanos, Damares Alves, sobre a sociedade bra-
sileira, com foco em seus discursos relacionados à saúde. O papel político de Damares no
governo Bolsonaro tem sido conquistar o consenso da sociedade para o programa político
bolsonarista. Junto ao Ministro das Relações Exteriores, ambos são conhecidos por forma-
rem a ala radical-extremista do governo.
As falas de Damares frequentemente podem ser vistas como diversionistas, como ‘cor-
tina de fumaça’ para desviar a atenção de decisões políticas do governo Bolsonaro, porém
precisam ser vistas também pelo tom explicativo da realidade que oferecem: atribuindo via
de regra a existência de todos os problemas sociais a causas diversas, mas têm em comum
sempre demandarem soluções religiosas.
Todas as falas de Damares, mesmo aquelas que não dizem respeito diretamente a as-
suntos religiosos, emanam de e reproduzem uma visão de mundo religiosa / fundamen-
talista. Apesar de não ser ministra propriamente da saúde, seus discursos estão ligados a
importantes diretrizes de políticas públicas de seu governo para saúde e enfrentamento da
pandemia.
Realizamos esta investigação sobre os sentidos dos discursos de Damares utilizamos
a técnica de análise do discurso, por meio da qual selecionamos diferentes falas da ministra
em diferentes ocasiões ao longo de seu mandato, recolhidas em reportagens na mídia.
Como mediação conceitual para esta análise, mobilizamos os conceitos de represen-
tação e poder da literatura pós-colonial, bem como a conceituação sobre bio-necro-política
para análise das políticas públicas federais do enfrentamento à pandemia.
Representação e poder
A atuação da Ministra Damares não se resume a ações discursivas, mas inclui ações de
intervenção concreta sobre fatos considerados importantes para a ministra. Nesta pesquisa,
todavia, nos ateremos a sua ação discursiva, considerando-se a pertinência do funciona-
mento da linguagem como sistema de representação que, integrado às práticas cotidianas
de exercício do poder, produzem efeitos reais, constroem significados e regulam as práticas
sociais.
Nossa hipótese de trabalho é de que o conjunto de ações discursivas de Damares fun-
ciona como imposição de uma representação sobre a sociedade, um tipo específico de re-
presentação vinculado aos interesses políticos da ministra e de seu governo, e uma repre-
sentação que justifique e mesmo demande igualmente específico e interessado dado tipo de
intervenção posterior.
A teoria pós-colonial demonstra que a cultura, entendida como o campo de todos os
processos simbólicos e trocas comunicativas, não é neutra em relação a interesses e pre-
tensões de poder. Cultura, valores e representações constituem as dinâmicas do poder. Na
verdade, a estruturação e organização da sociedade moderna tardia tem, na cultura, um dos
seus agentes mais importantes, com destaque para o funcionamento da linguagem, enten-
dida como conjunto de significados partilhados (HALL, 1997).
Toda produção de uma representação é assim ao mesmo tempo um ato simbólico e um
ato de poder. Um ato simbólico de construção social da realidade. E um ato de poder de dois
modos: o primeiro, relacionado a estrutura de poder social: podendo ser um ato de repro-
dução da estrutura de poder de uma sociedade, ou o ato de desestabilização desta estrutura
de poder; o segundo, relacionado à apropriação do poder de representação da sociedade –
excluindo outros grupos da possibilidade de participação na representação da sociedade.
Sendo a cultura concebida como prática de significação e a realidade social como cons-
truída discursivamente, podemos entender os padrões de comportamento e a essência das
ideias que são partilhadas nos discursos da ministra Damares. Trata-se de uma forma sim-
bólica de luta pelo poder e que arbitrariamente toma o particular pelo universal, a parte
pelo todo; como se sentimentos e ideias do seu grupo político-ideológico representassem as
aspirações amplas da sociedade brasileira.
Edward Said (1992) discute a dialética da representação na análise sobre o conjunto de
representações que o Ocidente faz do Oriente, conjunto por ele nominado “Orientalismo”.
Said identifica uma diversidade de elementos nesta relação de representação, alguns deles
queremos mobilizar aqui para a compreensão da produção de representação que Damares
faz operar sobre a sociedade brasileira.
Como premissa da representação do Orientalismo, está uma ideia criada e imposta
pelo ocidente de uma suposta incapacidade do oriente em representar a si mesmo: “Aqui,
naturalmente, está talvez o tema mais familiar do orientalismo – eles não são capazes de
representar a si mesmos, devem, portanto, ser representados por outros que sabem mais
a respeito do islamismo do que o islamismo sabe de si” (SAID, 1992, p. 261). Com isso, Said

96
busca desconstruir as definições de verdade do conhecimento ocidental sobre a modernida-
de, sobretudo suas pretensões universalistas.
Tal premissa, ainda implicada nas persistentes relações coloniais presentes no ambien-
te cultural mais amplo, se evidencia em expressões ideológicas que produzem um discurso
de base religiosa autoritária e de acepção binária: direita x esquerda, nós x eles, superior x
inferior, cristão x mundano. São extensões, no presente, de relações de dominação que se
constituíram no passado, sob o instituo do saber-poder, exemplificado na forma como o
ocidente abordou, definiu e projetou imagens pejorativas sobre o oriente.
A premissa não é natural, auto-evidente ou neutra, visto que é originada nos cons-
tructos culturais, possibilitando o terreno lógico para a construção das representações do
orientalismo. Para o caso do Brasil, a premissa lógica da representação autoritária do bol-
sonarismo não se dá na atribuição de incapacidade de auto-representação popular, mas de
assumir em si a autoridade de representar os desejos legítimos deste povo, de falar por ele
como seu legítimo representante. Em suma, de saber o que as pessoas querem e o que é me-
lhor para elas.
Uma ação de representação como esta não tem compromisso com a democracia, a ver-
dade ou a ciência, pois é arbitrária e não leva em consideração a pluralidade cultural e reli-
giosa da sociedade brasileira, excluindo primordialmente as minorias sociais que são classi-
ficadas, no imaginário autoritário bolsonarista, como inimigas. Trata-se do modus operandi
da dominação colonial que ainda sobrevive sob variadas formas de violência simbólica.
Agora isto, proponho, não é ciência, conhecimento ou entendimento: é afirmação de
poder e reivindicação de autoridade relativamente absoluta. É construído a partir do
racismo, e tornado comparativamente aceitável para uma plateia preparada com ante-
cipação para dar ouvidos a suas verdades musculares (SAID, 1992, p. 261).

Damares, igualmente, reivindica autoridade absoluta para falar sobre o Brasil e seus
diferentes povos em diferentes regiões. E reivindica esta autoridade para impor uma repre-
sentação sobre as pessoas que é monolítica, se pretende universal e não aceita a igualdade
como pressuposto. Se as estruturas de poder colonial permanecem em suas formas simbóli-
cas, a força da violência continua a degradar ontologicamente, já que o pressuposto racialis-
ta não permite que os colonizados sejam reconhecidos em sua dignidade, a não ser que ser
convertam à sacralização das políticas culturais uniformes e renunciem a suas identidades
‘profanas’.
Nesta dialética da representação, o que está em jogo é a apropriação monopólica do
poder de representar realidade e pessoas, representar os problemas sociais e estabelecer
suas soluções. A representação autoritária e monopolizada pelo poder político instituído,
que realiza Damares, retira o direito de autoexpressão de grupos sociais (SAID, 1992, p. 254)
em situação de menor poder, e retira a possibilidade destes grupos de estabeleceram e no-
mearem seus próprios problemas e as soluções que desejam para estes.
Na relação entre representação e poder, os discursos de Damares têm conexão direta
com a necessidade de criar consenso para pavimentar o caminho dos interesses do governo
Bolsonaro, apresentando pautas particulares como de interesse público. E, embora não seja
objeto deste trabalho, é preciso lembrar que o bolsonarismo não tem apenas um viés ideo-

97
lógico-religioso autoritário, em sua expressão prática ele está amalgamado aos ideais (neo)
liberais, com favorecimento de políticas elitistas.
Ainda sobre uma teoria pós-colonial da representação, Homi Bhabha (1992) trata do
processo em sua análise da construção do discurso colonial, que concebe como um disposi-
tivo de poder. A representação autoritária e distorcida, tal qual a do discurso colonial, está
vinculada ao conceito de estereótipo. Aliás, embora haja flutuações semânticas ao longo dos
séculos, práticas representacionais com uso de estereótipos fazem parte da estratégia da
produção de alteridade colonial, naquele velho jogo de reconhecimento e diferenciação que
projetam um imaginário negativo e persistente sobre as populações colonizadas.
Em nosso argumento, aproximamos o discurso de Damares do discurso colonial como
aparato de poder, em razão do processo que ela faz de apagamento das diferenças e do di-
reito à diferença, ou seja, opera o mecanismo presente no discurso colonial de “individuali-
zação da alteridade enquanto descoberta das próprias suposições” (BHABHA, 1992, p. 184).
Se adicionarmos o elemento religioso, entenderemos que o discurso da ministra também
se reveste de pretensa sacralidade. Todo discurso de cunho religioso é caracterizado pela
mediação, ameaças e promessas (CASTRO, 1987).
O objetivo do discurso colonial se concentra em construir o colonizado como popula-
ção de tipo degenerado, tendo como base uma origem racial para justificar a conquista
e estabelecer sistemas administrativos e culturais. (...) refiro-me a uma forma de go-
vernar que, ao marcar uma “nação subjetiva”, apropria-se, dirige e domina suas várias
esferas de atividade” (BHABHA, 1992, p. 184).

A construção do colonizado como população degenerada aproxima-se da construção


bolsonarista sobre os diferentes grupos sociais brasileiros, buscando justificar medidas au-
toritárias e que visam a adesão da população em geral. O ouvinte desatento, não habituado a
escrutinar os meandros da relação entre discurso e poder, certamente terá dificuldade para
perceber as nuances insidiosas das falas estereotipadas da ministra Damares.
O estereótipo não é uma simplificação por ser uma representação falsa de uma realida-
de específica, mas uma simplificação porque é uma forma de representação fixa e in-
terrompida que, ao negar o jogo da diferença, cria um problema para a representação
do sujeito em acepções de relações psíquicas e sociais (BHABHA, 1992, p. 193).

O estereótipo, como componente da representação colonial, atua produzindo repre-


sentação falsa e fixa sobre os grupos sociais sobre o quais se impõe. O estereótipo nega a
diferença e o diálogo entre sujeitos e grupos, ao fixar esta diferença em uma representação
simplificada e distorcida – ‘deformada’ – conforme e atendente aos interesses do grupo que
tenta impor sua posição de poder sobre os demais.
Discurso religioso e colonialidade do poder
Quando se trabalha com a análise do discurso, em geral se procura explicitar a produ-
ção e reprodução do universo de significados ao qual o discurso se vincula. De igual modo, os
esquemas de representação costumam fixar significados visando a criação de perspectivas
homogêneas e simplificadas, através da divulgação e fixação de ideias, conceitos e temas.
Os discursos religiosos engendram reflexões, atitudes, adesões e contrariedades. Quando

98
associados aos pressupostos do colonialismo, isso representa identificar e interpretar a per-
manência da relação de dominação sustentada pelo controle, domínio e imposição religiosa
com uso de recursos simbólicos.
O discurso religioso parte de uma liderança e se dirige a um público cativo, sequioso de
falas afirmativas de seu próprio universo simbólico. Mas há uma dificuldade latente na com-
preensão da natureza do discurso religioso para quem está fora do seu universo simbólico
de abrangência: o texto discursivo é constituído de um vasto intertexto (MAINGUENEAU,
2008).
O discurso religioso dos líderes religiosos, como a Damares, se apoia no texto bíbli-
co e sua a interpretação é regulada, ou seja, não se aceita qualquer sentido atribuído por
qualquer um. O discurso religioso é autorreferente, pois seria a reprodução da voz divina,
se negando a aceitar qualquer forma de enunciação contrariante. Além disso, este tipo de
discurso, por ser autoritário, tende para a monossemia.
Isso porque todo discurso é incompleto e seu sentido é intervalar: um discurso tem
relação com outros discursos, é constituído pelo seu contexto imediato de enunciação
e pelo contexto histórico-social, e se institui na relação entre formações discursivas e
ideológicas. Assim sendo, o sentido (os sentidos) de um discurso escapa(m) ao domí-
nio exclusivo do locutor. Poderíamos dizer então, que todo discurso, por definição, é
polissêmico, sendo que o discurso autoritário tende a estancar a polissemia (ORLAN-
DI, 1987, p.240).

O discurso religioso da Damares, portanto, é mais acessível para quem tem certa vi-
vência no ambiente religioso do qual ela emerge e fala mais diretamente àqueles que são
capazes de decodificar a simbologia presente no seu texto verbal. Todavia, aqui entra o ele-
mento cultural derivado da colonialidade, isto é, um padrão de exercício do poder hegemô-
nico. Esse padrão se pautou na classificação racial da população mundial, numa expressão
mental da dominação colonial, sendo mais duradouro e estável que o próprio colonialismo.
A América Latina foi o ‘laboratório’ primevo no qual se experenciou esse novo paradigma de
poder europeu.
A América constitui-se como o primeiro espaço/tempo de um padrão de poder de vo-
cação mundial e, desse modo e por isso, como a primeira id-entidade da modernidade.
Dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido es-
paço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de
poder. Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados
na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava
a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assu-
mida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das
relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, consequentemente, foi
classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de
poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do tra-
balho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial
(QUIJANO, 2005, p. 117).

O discurso religioso de Damares se inscreve na perspectiva da comunicação persuasi-


va, que por sua vez se vincula à colonialidade que é a “pauta oculta e o lado mais obscuro da

99
modernidade” (MIGNOLO, 2017, p.94). A colonialidade do saber significou a invisibilização
das representações políticas, econômicas, culturais e de constituição de saberes dos povos
no processo histórico de colonização. Como bem se sabe, tal processo foi extremamente
violento e desigual, pois o poder bélico europeu sempre foi superior àqueles que dispunham
os povos colonizados.
A colonialidade do poder é a expressão mais profunda e perdurável da dominação co-
lonial, visto que “nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização
ocidental desde o Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma
dimensão constituinte, embora minimizada (MIGNOLO, 2017, p. 3). Um projeto global, for-
jado a partir de inclinações opressivas, com ações violentas e imperiais que são a manifesta-
ção fática de ideais europeus modernos determinados para o mundo não europeu.
Desde então, no atual padrão mundial de poder, impregnam todas e cada uma das
áreas de existência social e constituem a mais profunda e eficaz forma de dominação
social, material, intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais uni-
versal de dominação política dentro do atual padrão de poder (QUIJANO, 2002, p.4).

No discurso do colonizador, os povos conquistados remetiam ao passado, ao atraso,


ao estado de involução. O modelo de ser humano evoluído é o branco europeu. As nações
europeias, então, reivindicam o direito de reger o desenvolvimento do mundo colonizado,
porque também ocupam o privilégio de ter a primeira e última palavra na determinação do
conhecimento considerado válido e aceitável. No aspecto religioso, os povos colonizados fo-
ram desalmados, impedidos de expressar seus credos e obrigados a internalizar a fé cristã,
pretensamente superior.
Embora a teologia da Damares não seja particularmente a mesma dos conquistadores
europeus, que eram católicos, em geral tem a mesma base de racionalização eurocentrada,
que subordina toda forma de conhecimento não cristão, classificando-o como inferior, ao
mesmo tempo que se autoprojeta como conhecimento religioso universal. Assim, o outro
religioso é destituído de qualquer validade enunciativa.
O discurso religioso da ministra bolsonarista se projeta como discurso constituinte, isto
é, aquele que procura legitimidade, diante da totalidade da produção discursiva disponível.
Se afirma isto com a consciência de que a “análise do discurso está condenada a se posi-
cionar nos conflitos sociais e ideológicos, a intervir em debates políticos” (MAINGUENEAU,
2016, p. 4).
É uma postura radicalmente crítica que estuda lugares e modos de enunciação, elu-
cidando conflitos sociopolíticos, atingindo “algumas ilusões fundamentais dos falantes – a
ilusão de estar dizendo o que eles têm intenção de dizer, a ilusão de que o lugar de onde eles
falam não é constitutiva da significação” (Ibidem). Ao analisarmos os discursos da ministra,
o fazemos a partir da constatação de que a condição política favorável permite sua emergên-
cia, funcionamento e circulação.
O discurso constituinte se caracteriza por fundar e não ser fundado (MAINGUENEAU,
2016). Lembremo-nos de que o eurocentrismo se afirma a partir da definição de um outro,
isto é, para declarar a Europa como o centro do mundo do ponto de vista social, cultural,
político, econômico e religioso, a visão de mundo europeia reduziu os povos das Américas,

100
Ásia, Oceania e África a uma condição inferiorizada, afastando-os de suas singularidades,
como se não fossem partícipes da produção cultural e histórica.
A colonialidade instituiu “fenômenos e processos que afetam a todo o mundo de ma-
neira imediata, inclusive simultânea” numa tentativa de integração econômica, política e
cultural (QUIJANO, 2002, p.6). Assim, a realidade instituída a partir da colonialidade tem
propensão ao dualismo e homogeneização. O discurso da ministra Damares, portanto, ree-
dita a noção de que a Europa é o centro do mundo e tudo mais se constitui como outro infe-
rior. A lógica do discurso eurocêntrico é a negação do outro ou o seu encobrimento (DUSSEL,
1993).
No plano real, há múltiplos tipos de enunciação, assim como constante interação entre
discursos constituintes e discursos não constituintes. Mas, “faz parte da natureza” do dis-
curso constituinte “negar tal interação” ou “submetê-la a seus princípios” (MAINGUENEAU,
2016, p. 7). É desta maneira que, ao caráter constituinte de um discurso, se confere uma au-
toridade particular a seus enunciados. Não esqueçamos que antes de ser ministra Damares
é pastora. Um discurso constituinte não se afirma sem reconhecer a ameaça de outros dis-
cursos que, por sua vez reivindicam a constante renegociação do seu estatuto.
Os discursos constituintes mobilizam o que se poderia chamar de archéion da pro-
dução verbal de uma sociedade. Esse termo grego, étimo do latino archivum,
apresenta uma polissemia interessante para nossa perspectiva: ligado a archè, “fonte”,
“princípio”, e a partir daí “mandamento”, “poder”, o archéion é a sede da autoridade,
um palácio, por exemplo, um corpo de magistrados, mas também os arquivos públi-
cos. O archéion associa assim intimamente o trabalho de fundação no e pelo discurso,
a determinação de um lugar associado a um corpo de enunciadores consagrados, e à
elaboração de uma memória (Ibidem).

Os discursos constituintes participam de campos de enunciação em constante conflito;


são hierarquizados; podem ser produzidos por pequenas comunidades, embora pretendam
trazer respostas para problemas sociais mais amplos; circulam no universo do interdiscur-
so; e não podem ser separados do seu contexto de origem e do qual obtiveram a autoridade
discursiva. Todavia, se um discurso constituinte pretende reinar sobre a totalidade do mun-
do dizível, certamente não resiste à análise crítica que o denuncia apenas como uma, entre
tantas outras instâncias de legítima enunciação.
Quem são os evangélicos?
Historicamente no Brasil a Igreja Católica e segmentos das Igrejas Evangélicas foram
essenciais para que o projeto colonizador europeu obtivesse sucesso. A construção da iden-
tidade nacional tinha fundamentos religiosos. Entre os séculos XIX e até a segunda metade
do século XX, uma das características do “bom” brasileiro é ser católico, ou seja, seguir os
valores judaico-cristãos.
Acreditava-se que a relação entre Estado e Igreja Católica era essencial para o desen-
volvimento da sociedade brasileira. As políticas públicas e outras decisões estatais não raros
os momentos eram decididos com o aval de bispos católicos ou fundamentado em valores
católicos (GIUMBELLI, 2011). Por exemplo, na primeira gestão do Governo Vargas (1930-
1945) a Igreja Católica era “amiga e parceira” do Brasil. Decisões no âmbito educacional,

101
saúde, assistência social, segurança pública, economia e política tiveram a influência de in-
telectuais católicos.
Neste mesmo período histórico a relação do Estado Brasileiro com segmentos das re-
ligiões de matriz africanas e setores do espiritismo eram conflituosas. Tais expressões re-
ligiosas taxadas como demoníacas, curandeirismo e charlatanismo, policiais e exército in-
vadiam os templos religiosos, destruíam as imagens, aparatos dos templos, prendiam seus
líderes ou até o uso da violência com os membros da religião (REIS, 2016). Isto é, no início do
século XX, instituições religiosas diferentes da Igreja Católica, eram perseguidas e crimina-
lizadas. A prática da intolerância religiosa e do racismo religioso era algo institucionalizado
e efetivado pelo estado brasileiro.
Os evangélicos também sofreram discriminação e preconceito no início do século XX.
Conhecidos como “crentes” eram estigmatizados por não serem católicos romanos. No Es-
tado do Pará e do Amapá há relatos que prisão de pastores e a queima de bíblia em praça
público com o intuito de combater o avanço do protestantismo na Amazônia. Acreditava-se
que a única religião verdadeira é o catolicismo. Os evangélicos são inimigos da sociedade
brasileira, e por isso, precisam ser eliminados (REIS, 2016).
A partir da segunda metade do século XX, Mariano (2011) advoga que os evangélicos
pentecostais e neopentecostais são o grupo religioso que mais cresceu seguido pelos sem
religião. As razões pela ampliação do número de fiéis e influência na sociedade são: conse-
guem adaptar suas teologias as demandas do público alvo, proposta religiosa baseada no
sentimentalismo, individualismo e no consumismo, assistência social consolidada, acolhi-
mento, ajuda na resolução dos problemas das pessoas (a exemplo questões financeiras, se-
paração, alcoolismo, drogas e amorosos) e a inculturação (MARIANO, 2011).
Na Tabela 1, apresenta-se o panorama religioso do Brasil entre 1872 a 2010. O interes-
sante nesses dados é que mostram o desempenho das principais instituições religiosas ao
longo de várias décadas. Percebe-se que, a partir da década de 1970, ocorre uma maior diver-
sificação de filiações religiosas no Brasil.
Tabela 1 – Panorama Religioso no Brasil (1872-2010)

102
Considerando a variação entre os anos de 2000 e 2010, o catolicismo prosseguiu min-
guante. Os católicos caíram de 73,8% em 2000 para 64,6% em 2010. Porém, como também se
verifica na tabela, o decréscimo católico não é um fato novo. Como religião maioritária do
País, é ela quem sofre a perda de pontos percentuais quando outras vertentes também ga-
nham o seu destaque, além de ser a que mais cede fiéis para outras vertentes, como aponta
Faustino Teixeira: o catolicismo é o “doador universal” de fiéis (MENESES; TEIXEIRA, 2013).
O segmento evangélico é o que apresenta o maior crescimento no intervalo de dez anos
entre as duas pesquisas, de 15,4% para 22,2%, um aumento de 6,8 pontos percentuais. Esse
crescimento foi alavancado, sobretudo, pelas denominações pentecostais, que represen-
tam 13,3% do total religioso do País e aproximadamente 60% do contingente evangélico.
Esses números demonstram que, apesar de haver um aumento no número de deno-
minações religiosas é, de certa forma, errôneo apontar um pluralismo religioso no País. Tal
como aponta Souza (2012), no Brasil, existe um pluralismo cristão. O contingente de católi-
cos e evangélicos soma 86,8% da população e, se somado aos outros grupos cristãos (espíri-
tas e testemunhas de jeová), chega a praticamente 90% da população (SOUZA, 2012).
Ainda de acordo com a Tabela 1, existe uma curva ascendente do número de adeptos
das Igrejas Evangélicas. Entre 1872 a 1940, o número de evangélicos era extremamente baixo
no Brasil, não havendo concorrência religiosa com a Igreja Católica. Em 1940, tal grupo re-
presentava 2,6%, subindo para 3,4% em 1950, 4% em 1960, 5,8% e 6,6%, respectiva-
mente, nas décadas de 1970 e 1980. Em 1990, alcançou 9%, em 2000, chegou aos expressivos
15,4%; e em 2010, chegou a 22,2% da população total.
Nos últimos dez anos, os evangélicos aumentaram em 44,2% o seu contingente, o que
se traduz em aproximadamente 16 milhões de pessoas, já que eram 26 milhões, em 2000 e
passaram a ser 42,2 milhões, em 2010, com uma média de crescimento de 4.383 fiéis por dia.
Diferentemente, porém, dos católicos, que possuem diversos movimentos dentro de uma
mesma Igreja, o rebanho evangélico é diversificado, já que a categoria engloba várias filia-
ções religiosas.
No início do século XX aportou em terras brasileiras o pentecostalismo, tendo sido
os seus primeiros representantes duas Igrejas pioneiras: a Congregação Cristã do Brasil e
a Assembleia de Deus, movimentos que tiveram sua eclosão no segmento pentecostal dos
Estados Unidos (CAMPOS, 1995). Esse segmento religioso teve como centro irradiador da
mensagem pentecostal para o mundo a Rua Azusa, em Los Angeles, no Estado da Califórnia
(EUA), local organizado pelo líder Seymour, de onde se espalhou rapidamente (MARIANO,
1999). Após iniciar-se no período de 1901 – 1906, o pentecostalismo deu origem à Assembleia
de Deus (AD), que se organizou em 1919 sobre o nome de General Council. O nome Assem-
bleia de Deus só foi adotado posteriormente (CAMPOS, 1996).
A teologia pentecostal caracteriza-se, historicamente, pelo batismo no Espírito Santo,
que se configura como eixo central. Para Seymour, havia três estágios na “vida espiritual” do
pentecostal: a conversão, também definida como regeneração; a santificação, que era neces-
sária para “purificar o coração”; e o batismo do Espírito tendo como sinal o dom de línguas
(Glossolália ou Xenoglassia) (CAMPOS, 1996). Esse impulso missionário era fortemente re-

103
vigorado pela expectativa da iminente volta de Cristo ao mundo e alimentado pelas rápidas
transformações que a sociedade passava naquele período (PASSOS, 2005).
Na tentativa de indicar o processo de formação do pentecostalismo no Brasil, Paul
Freston (1993) propõe uma tipologia clássica para averiguar as três distintas fases que con-
tribuíram para alavancá-lo. No Brasil, Freston foi o primeiro a tipificar o movimento pen-
tecostal a partir de um recorte histórico-institucional e da análise da dinâmica interna do
pentecostalismo brasileiro (MARIANO 1999, p. 28). Para este autor, o pentecostalismo tem
início com a AD e a Congregação Cristã no Brasil, que chegam quase que simultaneamente
ao País, sendo a primeira fundada em 1911 e a segunda em 1910. Elas foram hegemônicas,
nos primeiros quarenta anos do pentecostalismo no Brasil. Por conseguinte, essa fase ini-
cial de implantação de igrejas também recebe o nome de pentecostalismo clássico (FRES-
TON, 1993).
A segunda onda pentecostal inicia-se nos anos 50 e início de 60, momento em que o
campo pentecostal fragmenta-se e, nas análises de Freston, a relação com a sociedade dina-
miza-se. Três grandes grupos surgem em meio a muitos outros menores: Igreja Qua-
drangular (1951), Brasil Para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962). Esta última denominação é
marcada pelo rigor nas condutas comportamentais.
Essa fase é marcada por renovações no ascetismo pentecostal, que procurou enfatizar
a cura divina, menor exigência nas questões comportamentais, a falar da Igreja do Evange-
lho Quadrangular e Igreja Brasil para Cristo, a realização de grandes eventos nos estádios
do País, construção de templos gigantescos, participação na política partidária, utilização
da mídia que objetivava fins evangélicos (FRESTON, 1993)
A terceira onda começa no final dos anos 70 e ganha força nos anos 80. Seus principais
representantes são a Igreja Universal do Reino de Deus (1997) e a Igreja Internacional da
Graça de Deus (1980) (FRESTON, 1993). Além dessas duas, Freston aponta ainda a Igreja de
Nova Vida, fundada em 1960, no Rio de Janeiro, pelo missionário canadense Robert McA-
lister. Estas três, ao lado de comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (Goiás, 1976), Comu-
nidade da Graça (São Paulo, 1979), Renascer em Cristo (São Paulo, 1986) e Igreja do Senhor
Jesus Cristo (São Paulo, 1994), constam entre as principais surgidas nesse período (MARIA-
NO, 1999). Essa fase é marcada por práticas que podem ser consideradas contraditórias ao
nascimento do pentecostalismo; e isso é sentido tanto pelos evangélicos como pelos não
evangélicos. As instituições dessa fase investiram num proselitismo voltado para o televan-
gelismo, na mudança de costumes e na política, aspectos que serão discutidos no decorrer
deste trabalho.
Com o passar dos anos, as mudanças ocorridas na sociedade levaram as instituições
do pentecostalismo a adotar novas formas de evangelização para poderem se acomodar aos
novos contextos exigidos pela sociedade. É o caso da AD, que, com o passar do tempo, vem
mudando o seu ethos frente às novas configurações sociais, ou seja, substituindo um ethos
marcado pela ascese sectária por uma afirmação de mundo. Isso implica a participação e re-
presentação política da AD, que atua de forma bastante expressiva no cenário político nacio-
nal, como já foi explicitado: diversas personalidades políticas são da AD ou possuem algum
tipo de relação com ela. Nesse segmento, a religião é uma categoria que influi na estrutura

104
social, responsável por estabelecer e conservar significados gerais, pelos quais o indivíduo
interpreta sua experiência e se conduz na sociedade. Esses significados se expressam, no
entanto, por meio de símbolos que, no caso da religião, são símbolos sagrados que fornecem
um sentido ao real (PANTOJA, 2013).
Entende-se, também, que com as mudanças nas estruturas da sociedade, os pentecos-
tais que aqui chegaram precisaram moldar-se às novas configurações dos espaços urbanos.
O que o pentecostalismo traz consigo e ajuda nessa adaptação às grandes cidades é o que
Berger (1985) chama de modelo interdenominacional de concorrência religiosa, como é o
caso do pentecostalismo Americano, o qual conseguiu penetrar em diversas partes do mun-
do abrindo um modelo concorrencial com outras religiões.
As fases do pentecostalismo brasileiro baseiam-se não apenas em um recorte históri-
co-instrucional dessas denominações no território nacional, mas tratam também das par-
ticularidades apresentadas por cada onda, marcadas pelas inovações e transformações em
suas estratégias proselitistas, guiadas pelo processo de adaptação às situações sociais, his-
tóricas e políticas do País (FRESTON, 1993).
O fator principal para o crescimento dos evangélicos é a atuação dos grupos pentecos-
tais, que compõem 60% dos que se declararam evangélicos (no Censo anterior, o peso deci-
sivo no crescimento do número dos evangélicos, em 15,44% da declaração de crença, foi dado
também pelos pentecostais, que sozinhos mantinham 10,43% do índice geral evangélico). Os
evangélicos neopentecostais não registram esse crescimento expressivo, firmando-se em
18,5% da declaração de crença evangélica.
Os dados da Tabela 5 mostram o desempenho dos evangélicos de 1890 até 2010, em nú-
meros absolutos e crescimento em porcentagem. Percebe-se que, em cada década, os evan-
gélicos cresceram em adeptos no Brasil. Eram 26.166.930, em 2000 e, em 2010, passaram a
ser 42.275.437, um aumento de 4,91% anuais ao longo de 10 anos, isto é,16.684.564 tornaram-
-se evangélicos na última década. O maior crescimento que esse segmento teve em termos
absolutos foi entre 2000 a 2010, de 7,92%.
Tabela 2: Dados da População Evangélica desde 1980

Fonte: IBGE

105
A Tabela 2 fornece informações a respeito do desempenho das Igrejas evangélicas en-
tre os anos 2000 a 2010 em termos numéricos. É interessante notar, nos dados, o perfil da
concorrência religiosa no universo evangélico no Brasil. Percebe-se que as Igrejas pentecos-
tais, a exemplo da Igreja Assembleia de Deus (AD), conseguem atrair o maior número de
adeptos.
As instituições Assembleia de Deus, Evangélica Batista, Igreja Evangelho Quadrangu-
lar, Igreja Evangélica Adventista, Igreja Deus é Amor, Igreja Maranata e Igreja Brasil para
Cristo, aumentaram o número de fiéis, nos últimos dez anos, enquanto as Igrejas Congre-
gação do Brasil, Universal do Reino de Deus (IURD), Evangélica Luterana, Evangélica Pres-
biteriana, Evangélica Metodista, Casa da Benção, Evangélica Congregacional e Nova Vida
diminuíram, no mesmo período, o número de adeptos. No campo evangélico são centenas
de Igrejas existentes, e os dados trazem apenas as principais instituições desse segmento
religioso.
Damares, politica e amazônia
Os evangélicos a partir da década de 1980 aumentaram significantemente a presença
na arena política brasileira. De acordo com Freston (1993), com a redemocratização já inicia
o surgimento da “bancada evangélica” no Congresso Nacional. Os segmentos pentecostais e
neopentecostais incentivam pastores, fieis ou “amigos da igreja”, a se candidatarem a cargos
para o poder executivo e para o poder legislativo com o intuito de representar os interesses
das suas igrejas de origem.
Freston (1993) afirma que a motivação para que as igrejas evangélicas adentrassem o
mundo político consistia nas seguintes razões: defesa da laicidade do estado, receio que
após o fim da ditadura militar a Igreja Católica voltasse a ser a religião oficial do Brasil, evi-
tar que o comunismo seja implantado no Brasil e ainda atender as demandas institucionais
das igrejas evangélicas.
Machado (2015) caracteriza a atuação da bancada evangélica como conservadores e al-
guns como fundamentalistas religiosos. Os temas defendidos em geral são pautas de costu-
mes. São contrários a legalização da maconha para fins recreativos e medicinais, contrário
ao avanço dos direitos do universo LBGTQIA+ e dos direitos reprodutivos da mulher, defen-
dem o ensino religioso confessional, investimento público em ações filantrópicas das igrejas
cristãs, dentre outras pautas. Isto é, são taxados como proselitistas no campo político e que
não respeitam a laicidade em algumas circunstâncias. As igrejas que conseguem eleger mais
representantes são: Igreja Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja
Quadrangular, Igreja Batista, dentre outras.
A estratégia utilizada pelo segmento evangélico para eleger deputados, prefeitos, vere-
adores, senadores ou governadores evangélicos é “irmão vota em irmão”. Pastores utilizam
seus púlpitos, shows musicais, altares, espaços midiáticos para incentivar os fiéis da igreja
a votarem nos candidatos que possuem fé evangélica e que preferencialmente sejam mem-
bros da igreja. Dito de outra forma: as igrejas evangélicas vão utilizar seus recursos financei-
ros, meios de comunicação, contatos empresariais, partidos ligados a elas, mobilização da
base em busca de voto, e outras estratégias para que seus candidatos sejam eleitos.

106
Nos trabalhos desenvolvidos por Reis (2016) os evangélicos inicialmente crescem no
poder legislativo em nível federal, estadual e municipal, e a partir da década de 2000, au-
menta o número de representações no poder executivo. Em plano nacional nunca foram
homogêneos em apoiar um único candidato. Estiveram na base de apoio de todos os presi-
dentes que o Brasil teve com a redemocratização. Caracterizando uma atuação pragmática,
clientelista e patrimonialista.
No governo Jair Bolsonaro (2019-até o presente momento) os evangélicos possuem
maior espaço no governo federal. O presidente foi eleito comprometido com a pauta dos
valores conservadores cristãos. Ao montar a equipe ministerial a presença de pastores e pas-
toras foi algo natural.
Isto explica a presença da ministra Damares na equipe do atual governo. Esta presença
vem sendo marcada por uma série de discursos e práticas que exemplificam o modelo de
política adotado no Brasil pós 2019 pautada, sobretudo, em falas e frases de efeito, mas que
demonstram o conservadorismo e o reacionismo destas, conservadorismo este, compreen-
dido e sintetizado por Almeida:
[...] o conservadorismo dos costumes, sobretudo os propagados pelo evangelismo, não
pretende se limitar aos seus fiéis, ao universo da congregação religiosa weberiana, e
sim alcançar a sociedade como um todo, disputando no plano da norma jurídica os
conteúdos da moralidade pública. A religião que parecia ter se restringido à esfera pri-
vada e individual pelo processo de secularização reconfigurou-se e atua sobre aquilo
que se define como público, mais especificamente as normas em forma de lei ou de
costumes. O problema atravessa os três tabuleiros: emerge no plano da família como a
primeira transmissora da pertença religiosa; manifesta-se nos espaços públicos como
as Marchas para Jesus, por exemplo; e atua no plano do Estado por meio de mandatos
eletivos no Legislativo e no Executivo (ALMEIDA, 2019, p. 208).

Vale ressaltar que, as falas da atual ministra Damares, corroboram com a postura do
chefe de estado brasileiro, presidente Jair Bolsonaro. Discursos, regulados na criação e dis-
seminação de notícias falsas (fake news), gerando assim, desinformação à população bra-
sileira. Esta produção e disseminação de conteúdos falsos não é algo novo, mas a escala e o
poder destrutivo alcançaram contornos globais a partir dos últimos desenvolvimentos em
tecnologias da informação e comunicação (PEREIRA, 2020).
Advogada, educadora e pastora evangélica, assim é sua descrição na página oficial do
governo brasileiro. Damares Alves está à frente da pasta do Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos, tendo como apoiadores setores da chamada “bancada evangélica”,
e que possui em seu currículo, uma postura embasada neste viés conservador cristão. Prova
disso ocorreu no seu discurso de posse, onde a mesma proferiu a seguinte frase: O Estado é
laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã.
Esse posicionamento enfático não só coloca-nos os interesses pessoais e coletivos do
grupo que a conduziu ao cargo, bem como traduz uma possibilidade de contraposição ao
dispositivo constitucional presente no artigo 5º da Constituição Federal que trata da liber-
dade de crença e acima de tudo, respeito as mais variadas manifestações religiosas e de fé.

107
Levando-se em consideração que todo discurso além de político, carrega em si um con-
teúdo ideológico e que também possui uma representação, construindo significados, alte-
rando outros, o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar
(FOUCAULT, 1996).
Logo, as práticas discursivas da ministra trazem consigo todo um arcabouço ideológi-
co que por recorrentes vezes tem se manifesto através de suas falas. Desde sua posse como
ministra, há uma preocupação pessoal bem delimitada em sua postura, ao buscar travar
uma “guerra” contra a chamada “ideologia de gênero”, deturpando, sobretudo, o movimento
feminista. No entanto, o que se vê são frases desconexas acerca deste e de outros temas e
que possuem a finalidade de se vincular a práticas hegemônicas e que suprimem tudo o que
foge ao padrão cultural.
A partir de meados do mês de março de 2020, com a explosão no Brasil e no mundo da
pandemia causada pelo SARS/COVID-19, revelou a verdadeira face da política adotada no
país pós-posse presidencial em 2019. Na esteira de tudo isso, os discursos proferidos pela
ministra demonstram a falta de conhecimento de sua pasta, bem como da finalidade da
mesma na luta pela segurança e respeito aos direitos humanos.
Por recorrentes vezes viu-se a desobediência as autoridades sanitárias, bem como ao
inúmeros estudos científicos que apontavam para condutas erradas por parte do governo
brasileiro, no combate à pandemia. Também por diversas vezes, a ministra Damares profe-
riu falas reafirmando essas posturas adotadas pelo chefe maior do poder no Brasil.
A exemplo do apoio ao uso da medicação “cloroquina”, nos protocolos de atenção aos
acometidos pelo vírus de Covid. Em visita ao estado do Piauí, ela utilizou as seguintes pala-
vras acerca do uso da medicação: “a gente veio ver o milagre do uso da cloroquina associado
a outros medicamentos. As pessoas estão sendo salvas aqui em Floriano. Eles estão salvando
vidas” (PODER360, 2020).
Apesar da Organização Mundial da Saúde (OMS), através da Solidarity, instituição li-
gada a este órgão apontar para a ineficácia no uso da medicação em pacientes acometidos,
o governo brasileiro investiu, através das forças armadas, na fabricação e estocagem deste
medicamento.
Ao longo deste estudo, têm-se observado que as falas da ministra buscam aproximar
a população a fim de ganhar a opinião pública, numa tentativa de tornar o senso comum
que permeiam suas pronúncias, em verdades inabaláveis. Ora, essa dimensão prática da
produção de suas falas, direcionamento e consumo das mesmas, podem ser compreendidos
a partir do contexto em que estão inseridas, mas não discordantes de outros, são discursos
marcados por desequilíbrios e contradições (FOUCAULT, 2006a).
Para exemplificar melhor, lancemo-nos mãos de outros momentos, ainda relacionados
ao contexto da pandemia, em que seu pronunciamento público reforça duas ideias primá-
rias aqui já compreendidas, uma é a desse não seguir as recomendações pelos órgãos regu-
ladores da saúde mundial e a outra está ligada a essa tentativa de simplificar o discurso para
ganhar a confiança da população, conforme abaixo:

108
Eu concordo com o presidente Bolsonaro que o isolamento vertical é o ideal agora.
Imagine eu: olha só, eu estou saudável e linda! Muito bonita. Imagine eu, com tanta
coisa para fazer… Eu tenho uma nação para cuidar. Toda a população de vulneráveis
está aqui neste Ministério. Todo o público vulnerável, quem cuida é o nosso Ministé-
rio. Imagina se eu ficasse agora isolada em casa, cuidando tão somente de casa. Eu
faria muita coisa, mas eu não faria com a eficiência com que faço aqui no gabinete. E
até mesmo ir em alguns lugares [...] (DESIDERI, 2020).

Os fragmentos explicitados reforçam aquilo que vimos discutindo neste trabalho, a


solidificação do discurso a partir da legitimidade de quem o realiza. Uma marca de seus
pronunciamentos tem sido a evocação de dicotomias, conforme o demonstrado anterior-
mente na relação entre religião x laicidade, demarcando fronteiras hora postas, bem como a
exposta nas palavras pronunciadas acima, através da relação entre senso comum x ciência.
No concernente à Amazônia, esta também serviu de base para a reprodução da política
governamental neste período de pandemia. Não obstante, quando relacionamos o cenário
amazônico a partir da perspectiva, por exemplo, dos povos tradicionais como os indígenas,
sob a ótica da ministra, novamente aparecem em suas alocuções ideias sobre o mesmo con-
teúdo que são ambíguas, que tentam confundir a população, mas ao mesmo tempo reafir-
mam as orientações do executivo. Abaixo, segue trecho de entrevista exclusiva da ministra
a um jornalista brasileiro:
O governo federal não está tomando iniciativas depois que estourou a pandemia. Va-
mos pensar na comunidade indígena. No final de janeiro já tinha atos normativos
proibindo a entrada de pessoas em áreas indígenas. No nosso ministério, no início de
fevereiro, nós já estávamos conversando com os povos ciganos sobre o cuidado com o
coronavírus. Em 03 de fevereiro o governo federal já tinha decretado estado de emer-
gência (IDEM, 2020).

Apesar de sua fala versar sobre o fechamento das entradas as áreas indígenas, a contra-
dição de seu discurso reaparece em outro momento na mesma entrevista quando diz que:
É quase impossível fazer isso. Ninguém pode proibir as pessoas de ir e vir. Nós temos
indígenas que precisam sair da aldeia para um atendimento médico. Você sabia que
foi o caso deste menino (indígena jovem que morreu aos 15 anos vítima do corona-
vírus, grifo nosso)? Ele saiu da aldeia porque ele já tinha problema respiratório. Nós
temos indígenas que precisam sair da aldeia para, por exemplo, sacar um benefício e
comprar comida para levar (IDEM, 2020).

Mais grave que esta contradição apresentada neste trecho da entrevista, é a suscitação
da ministra em outro momento, ainda sobre a Amazônia, onde se expõe, sem comprovação
alguma (prática que vêm se tornando um hábito pela atual postura do governo), acerca de
uma teoria da conspiração contra a política de Jair Bolsonaro, quando de maneira crimino-
sa, estariam contaminando os indígenas para incriminar o presidente. Em reunião minis-
terial no dia 22 de abril de 2020, Damares proferiu a seguinte frase: “Por que que nós fomos
lá, presidente? Porque nós recebemos a notícia que haveria contaminação criminosa em
Roraima, em Amazônia, de propósito, em índios para dizimar aldeias e povos inteiros para
colocar nas costas do presidente Bolsonaro”, justifica ainda sua ida ao estado, pois segundo

109
ela “eles precisavam matar mais índio para dizer que a nossa política não estava dando cer-
to” (AMAZONAS ATUAL, 2020).
Em outra matéria sobre o mesmo conteúdo, complementa-se acerca do enunciado aci-
ma:
Eu fui lá para a Amazônia e para Roraima para acompanhar o primeiro óbito [pela
covid-19]. Nós recebemos a notícia de que haveria contaminação criminosa em Rorai-
ma e na Amazônia, de propósito, em índios, para dizimar aldeias e povo inteiros para
colocar a culpa nas costas do presidente Bolsonaro (CATRACA LIVRE, 2020).

Percebe-se pelo discurso que o intuito da ministra até aqui, tem sido pela não proteção
daqueles, conforme Santos (2010) estão do outro lado da linha, em outras palavras, as mino-
rias necessitadas. No entanto, sua voz ecoa veemente no sentido de blindagem às políticas
de enfrentamento ao coronavírus adotadas pelo governo brasileiro, criando cortinas que
encobrem e desorientam a população acerca do atual cenário, pois, o cenário enfrentado na
pandemia não é uma novidade em termos de ausência de políticas e protocolos no enfrenta-
mento de problemas de saúde pública (PEREIRA, 2020).
Diante disso, a partir de uma perspectiva histórica, verifica-se a ausência de mecanis-
mos que atendam a população quanto aos problemas sanitários, identifica-se uma conduta
ineficaz e ausente dos atores políticos e governamentais para estas questões. Explica-se aí
a necessidade do encobrimento e desvio da atenção da população, através da utilização de
frases de efeito, dúbias, desconexas, nos mais variados momentos de fala da ministra Da-
mares Alves.
Considerações finais
Ante ao exposto, a partir da análises realizadas nos discursos e posturas da então ministra de
Família, Cidadania e Direitos Humanos, Damares Alves, sobretudo no que concerne ao momento
atual de pandemia de Coronavírus, evidencia-se que a presença da ministra no atual cenário polí-
tico e governamental do presidente Bolsonaro está para cumprir um papel preciso e estratégico do
governo: desarticular e servir como “cortina de fumaça” para as decisões presidenciais.
Suas falas ora carregadas de conteúdos fundamentalistas, conservadores e religiosos, leva
grande parte dos ouvintes a terem a percepção da normalidade das políticas adotadas pelo governo.
O que se percebe é que grande parte da sociedade brasileira identifica-se com suas falas. No entan-
to, como visto, são em sua maioria frases de efeito sem qualquer comprovação, com base simples-
mente no senso comum.
Essa tem sido a tônica no cenário governamental brasileiro. Presença forte da chamada extre-
ma direita e que possui como principal ideologia trazida para o contexto das decisões políticas, um
retrocesso tanto cultural quanto social e que não vêm permitindo dialogar com o estado democrá-
tico de direito, com as liberdades e igualdades, e ironicamente, com os direitos humano, pauta da
pasta assumida pela ministra. Tudo isso, ancorado valores tradicionais cristãos e patriarcais para
embasar as tomadas de decisões.
No atual cenário, é de fundamental para a sociedade como um todo, sobretudo em um mo-
mento em que o país assiste a crise instaurada em seu território, ponderações conjuntas e que pos-
sam ser constantes sobre a realidade brasileira, que inegavelmente vêm sendo marcada pelo conser-

110
vadorismo religioso que nega e tem apagado as políticas sociais voltadas aos que mais necessitam
delas.

Referências
ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise brasileira. Novos estud. CEBRAP,
São Paulo, v. 38, nº 01, 185-213, jan.–abr. 2019.
BERGER, P.. O dossel sagrado, elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo, Paulus,1985.
BHABHA, Homi K. A questão do “outro”: diferença, discriminação e o discurso do colonialismo. In: HOLLANDA, Heloi-
sa Buarque de (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. p. 177-203.
BORGES, André. “O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmentecristã”, diz Damares Alves. Estadão Política, São
Paulo, 02 de jan. de 2019. Política. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,o-estado-e-laico-mas-
-esta-ministra-e-terrivelmente-crista-diz-damares-alves,70002664861>.
CAMPOS JR, Luis de Castro. Pentecostalismo Sentidos da Palavra Divina. São Paulo: Geografica, 1995.
CASTRO, Selma. O discurso profético: dessacralização do espaço social. In: ORLANDI, Eni. Palavra, fé, poder. Campi-
nas: Pontes, 1987.
DAMARES diz que índios foram infectados por covid-19 de propósito. Catraca Livre, São Paulo, 22 de mai. de 2020.
Cidadania. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/cidadania/damares-diz-que-indios-foram-infectados-por-co-
vid-19-de-proposito/>.
DAMARES fala em ‘milagre’ no uso da cloroquina. PODER360. Brasília, 14 de mai. de 2020. Disponível em: <https://
www.poder360.com.br/coronavirus/damares-fala-em-milagre-no-uso-da-cloroquina-assista-ao-video/>.
DAMARES diz que indígenas foram contaminados ‘de propósito’ no Am para prejudicar bolsonaro. Amazonas Atual,
Manaus, 22 de mai. de 2020. Política. Disponível em: <https://amazonasatual.com.br/damares-diz-que-indigenas-fo-
ram-contaminados-de-proposito-no-am-para-prejudicar-bolsonaro/>.
DESIDERI, Leonardo. Damares opina sobre Covid-19, isolamento e conduta de Mandetta na crise. Gazeta do Povo.
Brasília, 14 de abr. de 2020. Vida e Cidadania. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/
damares-ministra-entrevista-exclusiva-covid-19/ >
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: Edgardo Lander (org.). Colonialidade do saber: eurocen-
trismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Trad. Laura F. Almeida Sampaio. Loyola. São Paulo, 1996.
FRESTON, P.. Protestantes e políticas no Brasil: da Constituinte ao impeachment. Tese de doutorado em ciências so-
ciais. Campinas, Unicamp,1993.
_______. Ditos e escritos IV - Estratégia, saber e Poder. Rio de Janeiro. Forense Universitária, 2006a.
GIUMBELLI, Emerson. O Acordo Brasil-Santa Sé e as relações entre Estado, sociedade e religião. Porto Alegre. Ciencias Sociales
y Religión, v. 13: n. 14: 119- 143, 2011.
HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo. Revista Educação e Reali-
dade, Porto Alegre, v. 22, nº. 2, jul./dez. 1997. p. 15-46.
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
_______. Analisando discursos constituintes. Revista do GELNE, v. 2, n. 1/2, p. 1-12, 22 fev. 2016.
MACHADO, Maria das Dores Campos. Religião e Política no Brasil Contemporâneo: uma análise dos pentecostais e carismá-
ticos católicos Religião, cultura e política. Religião & Sociedade. Rio de Janeiro. v 35, n 2, p. 45-72. 2015.
MARIANO, Ricardo. Pentecostais e política no Brasil. Com Ciência Revista Eletrônica de Jornalismo Científico, Internet,
v. 65. 2005.
MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Trad. Marco Oliveira. Revista brasileira de ci-
ências sociais – RBCS. vol. 32 n° 9, jun. 2017.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e o seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1987.
PANTOJA. Vanda. COSTA. Moab Cesar Carvalho. Faces Do Pentecostalismo Brasileiro: A Assembleia De Deus No Norte
E Nordeste. Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 24, p. 245-271, jul./dez. 2013. RODRIGUES, Besaliel de Oliveira.

111
História da Assembleia de Deus – A Pioneira – Estado do Amapá. / Besaliel de Oliveira Rodrigues. – Macapá. Gráfica
Diniz, 90p.
PASSOS, João Décio. Pentecostais: origens e começos. São Paulo: Paulinas, 2005.
PEREIRA, Marcus Vinicius de Souza. Desinformação e genocídio: a atuação do Estado brasileiro na produção da desor-
dem da informação na pandemia da Covid-19. In: Seminário de Pesquisa Fespsp – “Desafios da pandemia: agendas para
as Ciências Sociais Aplicadas”; IX, 2020, São Paulo. Anais.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos rumos, ano 17, n. 37, p.04-28, 2002.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e américa latina. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
REIS, Marcos Vinícius Freitas. Política e Religião: A participação política dos católicos carismáticos do Brasil. Tese de
doutorado em sociologia. São Carlos - SP, UFSCar 2016.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SAN-
TOS, B. de S; MENESES, M. P. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo; Editora Cortez. 2010. p. 23 – 71.
SAID, Edward W. O orientalismo revisto. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pós-modernismo e política. Rio
de Janeiro: Rocco, 1992. p. 251-273.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente Como Invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SOUZA, A. R.. O pluralismo cristão brasileiro. Caminhos, UFG, v. 10, nº1, 2012, pp. 129-14. 2012.
TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010. Petrópolis, Vozes, 2013.

112
Sobre os autores
Arielson Teixeira do Carmo Doutorando em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal de Pelotas – UFpel. Bolsista
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
– Brasil (CAPES) Integrante do Grupo Centro de Estudos
Políticos, Religião e Sociedade ( CEPRES-UNIFAP)
César Alessandro Sagrillo Figueiredo Professor Doutor em ciência Política, vinculo ao curso
de Licenciatura em ciências sociais da UFT/Campus
Tocantinópolis e professor Permanente do PPGL da UFT.
Daniel Ribeiro Ferreira Junior Graduado em Ciências Sociais (UNIFAP). Especialista em
Ensino Religioso (FATECH). Mestrando do Programa de Pós
Graduação em História Social (PPGH-UNIFAP).
Emerson José Sena da Silveira Professor - Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
(UFJF).
Gleidson José Monteiro Salheb Graduado em Ciências da Religião (UEPA) e Jornalismo
(UNIFAP), mestre em Direito Ambiental e Políticas Públicas
(UNIFAP).
João Paulo P. Silveira

Kássia Cristina Neves de Oliveira Discente do Curso de Licenciatura em Sociologia pela


Universidade Federal do Amapá – UNIFAP, integrante do
Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos sobre Etnopolítica e
Territorialidades na Amazônia – NETTA
Marcos Vinicius de Freitas Reis Doutor em Sociologia (UFSCAR). Docente do Curso de
Mestrado Acadêmico em História Social da UNIFAP. Docente
do Curso de Graduação em Relações Internacionais e História
da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Líder do Centro
de Estudos de Religião, Religiosidades e Politicas Públicas-
CEPRES.
Wladimyr Sena Araújo Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) e Doutorando em História Social pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

113
Título: O sagrado em tempo de Pandemia: diálogos a partir do campo religioso brasileiro
Autoria: Arielson Teixeira do Carmo, César Alessandro Sagrillo Figueiredo, Daniel Ribeiro Ferreira Junior, Emerson
José Sena da Silveira, Gleidson José Monteiro Salheb, João Paulo P. Silveira, Kássia Cristina Neves de Oliveira, Marcos
Vinicius de Freitas Reis, Wladimyr Sena Araújo.
Organização: Marcos Vinicius de Freitas Reis, Sérgio Rogério Azevedo Junqueira
Projeto gráfico: Nepan Editora
Capa e arte final: Fernanda C. da Encarnação dos Santos
Produção editorial e diagramação: Marcelo Alves Ishii
Revisão de texto: sob a responsabilidade dos autores
Divulgação: Marcelo Alves Ishii
Tipologia: Alegreya 13/17
Número de páginas: 113

Você também pode gostar