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Organização

Érica Sarmiento
Karl Schurster
Rafael Araujo

A AMÉRICA LATINA FRENTE A


PANDEMIA DO COVID-19

Rio de Janeiro | Recife, 2021


UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE
REITOR Prof. Dr. Pedro Henrique Falcão
VICE-REITORA Profa. Dra. Socorro Cavalcanti

EDITORA UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – EDUPE


CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Ademir Macedo do Nascimento
Profa. Dra. Ana Célia Oliveira dos Santos
Prof. Dr. André Luis da Mota Vilela
Prof. Dr. Belmiro do Egito
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Prof. Dr. Mário Ribeiro dos Santos
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Profa. Dra. Sinara Mônica Vitalino de Almeida
Profa. Dra. Virgínia Pereira da Silva de Ávila
Prof. Dr. Vladimir da Mota Silveira Filho
Prof. Dr. Waldemar Brandão Neto

GERENTE CIENTÍFICO Prof. Dr. Karl Schurster


COORDENADOR Prof. Dr. Carlos André Silva de Moura
CAPA E PROJETO GRÁFICO Danilo Catão
REVISÃO TÉCNICA Alana de Moraes Leite

Este livro foi submetido à avaliação do Conselho Editorial da Universidade de Pernambuco.

Título: A América Latina frente a Pandemia do Covid-19


Formato do eBook: PDF

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Núcleo de Gestão de Bibliotecas e Documentação - NBID
Universidade de Pernambuco

A512 A América Latina frente a Pandemia do Covid-19/ Organização de


Érica Sarmiento, Karl Schurster e Rafael Araujo/- Recife: EDUPE,
2021.
245 p.

[recurso eletrônico]

ISBN: 978-65-86413-46-5

1. América Latina. 2. Pandemias. 3. COVID-19. 4. Aspectos


psicológicos. 5. Cultura. 6. Educação - América Latina I. Sarmiento,
Érica. II.Schurster, Karl. III. Araújo, Rafael. IV. Título.

CDD: Ed. 23 -- 616.2414

Elaborado por Claudia Henriques CRB4/1600


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO 6

PARTE I – OS EFEITOS DA PANDEMIA DE COVID-19 NA AMÉRICA LATINA 11

I. A COVID 19 e seus efeitos na América Latina: crise social, migrações forçadas


e nebulosas perspectivas 12
Érica Sarmiento
Rafael Araujo

II. Será la pandemia de Covid-19 el fin del neoliberalismo 35


Johannes Maerk

III. O Papel dos Estados da América Latina em Tempos de Pandemia Global a


partir do pensamento de John Keynes 46
Anderson Barbosa Paz

IV. Disputas Imperiales: Mirares de la pandemia COVID-19 desde


Centroamérica 60
Oscar Barboza Lizano

PARTE II – PANDEMIA E POLÍTICA: OLHARES LOCAIS 78

V. Tiempos de pandemia: Coronavirus en Argentina 79


Bruno Sancci
Karl Schurster

VI. Povos Indígenas do Brasil: Um novo capítulo de uma velha história 123


Aimée Schneider Duarte

VII. Pandemia, Cuba e a revolução solidária 143


Alberto Dias Mendes
VIII. América Latina e os Impactos Estruturais Ocasionados pela Covid-19 163
Paulo Maurício do Nascimento

PARTE III – A PANDEMIA DE COVID-19: ASPECTOS PSICOLÓGICOS,


EDUCACIONAIS E CULTURAIS 183

IX. Pandemia e Cosmovisões – Solidão, Medo e Morte 184


Maria Teresa Toríbio Dantas

X. A pandemia da COVID-19 e as mudanças na atuação docente: o trabalho em


casa como (falta de) estratégia didática 198
José Lúcio N. Jr
Patrícia Mª P. do Nascimento

XI. Educação Remota em um contexto pandêmico: Isonomia e Universalidade -


Educação Pública/RJ 216
André Luis Toribio Dantas

XII. Possíveis cidades pós-pandêmicas: COVID-19 e a passagem da cidade


modernista à cidade “não moderna” 234
Rodrigo Agueda
APRESENTAÇÃO

A pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 (COVID-19) inseriu a hu-


manidade em uma profunda crise sanitária, socioeconômica e psicológica,
cujos efeitos políticos se demonstram imprevisíveis. O pânico decorrente
da possibilidade de contração da doença afetou o bem-estar individual
e coletivo, ao mesmo tempo em que gerou diversas preocupações com o
futuro. Esse mal-estar, de uma sociedade sem horizonte de expectativas,
levou a diversas crises no modelo de representação, das instituições políti-
cas e das formas de organização social.
Paralelamente a este processo, a COVID-19 fortaleceu críticas às prá-
ticas econômicas neoliberais, acentuando as disparidades econômicas en-
tre os países que compõem o sistema internacional. Ao mesmo tempo, o
vírus expôs as profundas desigualdades sociais, em especial em países da
América Latina, Caribe e África. A pandemia deixou em evidência, para
parcelas da sociedade civil, as mazelas que envolvem o dia a dia dos seg-
mentos sociais pauperizados, como as habitações precárias, que tornaram
o distanciamento social irrealizável, até mesmo desumano, ou os deleté-
rios efeitos da informalidade no mercado de trabalho.
Na América Latina e Caribe, relatórios preliminares sobre os efeitos
sociais e econômicos da pandemia, organizados pela Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT) e a CEPAL, projetaram cenários desalentado-
res. Vislumbram-se retrações de até 23% no Comércio Internacional, 9,1%
do Produto Interno Bruto (PIB) e o PIB per capita regional deve retroce-
der aos patamares do ano de 2010, ocasionando, assim, uma nova década
perdida. A pobreza e a extrema pobreza devem elevar-se, respectivamente,
em 7,1% e 4,5%. Com isso, em torno de 327 milhões de latino-americanos

6
(52,8% da população local) estarão na condição de extrema pobreza ou
pobreza ao fim de 20201.
A pandemia também impactou as Relações Internacionais. O coope-
rativismo e o multilateralismo consistiram em um dos seus efeitos, como
observamos no apoio às iniciativas realizadas pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) para o combate à pandemia. No entanto, em paralelo,
notamos uma ampliação das disputas entre as potências internacionais.
A “corrida global” para a descoberta de uma vacina, o fortalecimento da
autonomia do Estado-Nação e o robustecimento das tensões entre norte-
-americanos e chineses, causadas pela narrativa de Donald Trump acerca
da “cupabilidade chinesa” pela pandemia, evidenciaram isso.
O Sars-Cov-2 demonstrou os efeitos da racionalidade moderna, im-
pulsionada pelo neoliberalismo e globalização, que submeteu as socieda-
des globais à espoliação, à reprodução do capital e a um desprezível indi-
vidualismo. Assim, esse dossiê, que atesta os esforços das Universidades
em entender o complexo presente, buscará debater os múltiplos impactos
econômicos, sociais, políticos, psicológicos, educacionais e culturais cau-
sados pela pandemia nos dez artigos que o compõem.
Érica Sarmiento e Rafael Araujo, em A COVID 19 e seus efeitos na
América Latina: crise social, migrações forçadas e nebulosas perspecti-
vas, buscando analisar as consequências da pandemia de covid-19 para o
cenário latino-americano, evidenciam que, após a experiência de consis-
tente crescimento econômico e relativa estabilidade social e política, entre
os anos de 2003 e 2013, a pandemia exponenciou mazelas históricas dos
países latino-americanos, tais como o desemprego e a pobreza, além da
precarização do mercado de trabalho, situação que vem se alastrando des-
de o ano de 2014. O artigo apresenta uma contundente relação entre o des-
gaste de práticas econômicas e políticas de viés neoliberal, acentuado pela

1 As informações aqui inseridas foram retiradas do Observatorio COVID-19 en América Latina
y el Caribe - Impacto económico y social. Disponível em: https://www.cepal.org/es/temas/co-
vid-19 Acesso: Nov/2020.

7
pandemia, o surgimento/fortalecimento de distintos grupos de direita e as
rebeliões socias na América Latina.
Johannes Maerk, em Será la pandemia de Covid-19 el fin del neoli-
beralismo?, aborda os impactos socioeconômicos e políticos da crise da
década de 1929 nos países ocidentais, a teoria keynesiana e o modelo de
Indústrias de Substituições de Importações (ISI). Ademais, o artigo analisa
as motivações para a implementação das práticas políticas e econômicas
neoliberais a partir da década de 1970 em diversos países e traz pertinentes
reflexões sobre a possibilidade de surgimento de um modelo alternativo a
este, em virtude dos impactos econômicos e sociais da atual pandemia.
Anderson Barbosa Paz, em O Papel dos Estados da América Latina
em Tempos de Pandemia Global a partir do pensamento de John Keynes,
examinou alguns elementos da teoria keynesiana e a importância de exis-
tência de políticas públicas para mitigar os efeitos da pandemia entre as
populações latino-americanas.
Oscar Barboza Lizano, em Disputas Imperiales: Mirares de la pan-
demia COVID-19 desde Centroamérica, avaliou os impactos comerciais,
políticos e diplomáticos decorrentes da pandemia. O artigo tem o mérito
de analisar os seus efeitos nos espaços centro-americanos e caribenhos,
além de tecer breves considerações sobre as conjunturas de países que en-
frentaram recentemente um ciclo de instabilidade política, como Bolívia e
Chile. Além disso, há uma importante avaliação das disputas entre China
e Estados Unidos no sistema internacional, aspecto este relevante em vir-
tude da recente guerra comercial entre as duas superpotências.
Em Tiempos de pandemia: Coronavirus en Argentina, Bruno Sancci
e Karl Schurster abordam desde as primeiras medidas tomadas pelo gover-
no argentino, como o estado de quarentena, até o impacto político, econô-
mico e social dessas medidas no país, contextualizando-as com o cenário
político pré estado pandêmico. Ademais, os autores apropriam-se de teó-
ricos que discutem liberdade e Estado de exceção, tal como Eric Fromm e
Giorgio Agamben, e promovem uma ampla discussão acerca da violência
do estado, da autoridade e do autoritarismo no âmago da pandemia de

8
covid-19, oferecendo uma rica análise de discursos do presidente Alberto
Fernández. Dessa forma, além da contribuição acerca do contexto argen-
tino, o artigo aponta importantes ferramentas teórico-metodológicas para
discutir a relação entre pandemia e política.
No artigo Povos Indígenas do Brasil: Um novo capítulo de uma velha
história, Aimée Schneider Duarte avaliou os efeitos da COVID-19 sobre
as populações indígenas brasileiras e as medidas implantadas pelo governo
de Jair Bolsonaro na mitigação dos impactos da pandemia sobre os nossos
povos originários. Igualmente, há uma análise histórica da participação
indígena e dos seus apologistas na Constituinte de 1987-1988 e algumas
medidas legais implantadas para a sua proteção.
Alberto Dias Mendes, em Pandemia, Cuba e a revolução solidária,
avalia as repercussões da COVID-19 na China, Europa e na América La-
tina e Caribe a partir de uma minuciosa comparação entre o número de
casos e óbitos em países selecionados entre março e setembro de 2020. O
autor localiza, ainda, a pandemia e os seus efeitos como parte de uma crise
civilizatória e ressalta o papel das Brigadas Médicas Henry Reeve no com-
bate interno ao vírus e em ações de solidariedade internacional.
No artigo América Latina e os Impactos Estruturais Ocasionados
pela Covid-19, Paulo Maurício do Nascimento abordou os resultados es-
truturais da pandemia em nível global e, em especial, na América Latina e
Caribe. Destacam-se a abordagem acerca das suas consequências econô-
micas e as ações governamentais adotadas nos seguintes países: Argentina,
Brasil, Costa Rica, Equador, México, Paraguai e Peru.
Em Pandemia e Cosmovisões - Solidão, Medo e Morte Maria Teresa
Toríbio Dantas realiza um breve histórico das epidemias a partir de uma
narrativa que percorre suas ocorrências da Antiguidade à COVID-19. A
autora ressalta sentimentos, como a angústia, o medo e a solidão, ocorri-
das em outros momentos pandêmicos da história da humanidade e desta-
ca os efeitos desses eventos nas memórias coletivas e nos imaginários so-
ciais com o intuito de observar possíveis sequelas, individuais e coletivas,
da atual pandemia para as nossas sociedades.

9
Em A pandemia da COVID-19 e as mudanças na atuação docente:
o trabalho em casa como (falta de) estratégia didática, José Lúcio N. Jr e
Patrícia Mª P. do Nascimento abordaram os efeitos da pandemia na prática
docente e na sala de aula. Ressalta-se a importante diferenciação entre o
Ensino à Distância e o Ensino Híbrido, este imposto à prática docente em
decorrência da pandemia e que é baseado na ampla utilização de Novas
Tecnologias da Informação e Comunicação, aos quais grande parte dos
docentes não estava (ou está!) habituada. O trabalho tem o mérito de tra-
zer pertinentes reflexões para educadores e setores da sociedade civil que,
hoje, preocupam-se com os rumos da educação brasileira, sobretudo do
setor público, em um momento de inviabilidade de aulas presenciais e de
acefalia do Ministério da Educação.
André Luis Toribio Dantas, em Educação Remota em um contexto
pandêmico: Isonomia e Universalidade - Educação Pública/RJ, exami-
nou os impactos da COVID-19 na educação pública do Estado do Rio de
Janeiro. As dificuldades de implementação do Ensino Híbrido motivadas,
entre outras razões, pelo não acesso dos estudantes à internet e platafor-
mas digitais, e os resultados da suspensão das aulas presenciais na comu-
nidade escolar estiveram entre alguns dos elementos que compuseram as
pertinentes reflexões do autor sobre as repercussões da pandemia no en-
sino público.
Em Possíveis cidades pós-pandêmicas: COVID-19 e a passagem da
cidade modernista à cidade “não moderna”, Rodrigo Agueda analisou as
consequências sociais da pandemia e as suas possíveis influências no meio
urbano. O artigo aponta que os aspectos excludentes das grandes cidades
devem permanecer, apesar de, mundialmente, existirem debates relevan-
tes acerca do aproveitamento do contexto pandêmico para se debater mo-
bilidade urbana e organização espacial das cidades.

Os organizadores.

10
PARTE I

OS EFEITOS DA
PANDEMIA DE COVID-19
NA AMÉRICA LATINA

11
I

A COVID-19 E SEUS EFEITOS


NA AMÉRICA LATINA: CRISE
SOCIAL, MIGRAÇÕES FORÇADAS
E NEBULOSAS PERSPECTIVAS1
Érica Sarmiento2
Rafael Araujo3

Considerações iniciais

Impulsionada pelo ciclo de exportação das commodities, entre 2003


e 2013, a América Latina experenciou uma década de consistente cres-
cimento econômico, relativa estabilidade política e desenvolvimento de
políticas públicas que contribuíram para que a pobreza, o desemprego e a
desigualdade social retrocedessem.4 Um símbolo dessa fase, que despertou
esperança de um futuro mais igualitário e politicamente estável no Brasil e

1 Uma versão ampliada desse artigo, sob o título A América Latina, a COVID-19 e as migrações
forçadas: perspectivas em movimentos, muros epidemiológicos e sombrias imagens, foi publi-
cada pelos autores no Dossiê Tempos de pandemia da Revista Estudos Históricos.
2 Professora Adjunta de História da América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Doutora em História pela Universidade de Santiago de Compostela (Espanha). Coordenadora
do Laboratório de Estudos de Imigração (LABIM/UERJ). Pesquisadora Produtividade CNPQ-nível
2; pesquisadora Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ).
3 Professor Adjunto de História da América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Pesquisador associado ao Laboratório de Estudos da Imigração (LABIMI)/UERJ e ao Grupo de
Estudos do Tempo Presente (GET) da UFS. Professor colaborador do Programa de Pós-Gradua-
ção em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
4 Sobre o ciclo de exportação das commodities entre 2003 e 2013 e o seu esgotamento, ver:
Martins (2011) e Webber (2019).

12
na região, foi a capa da Revista The Economist5, em novembro de 2009. Sob
o título “O Brasil decola”, nela foi inserida uma montagem com o Cristo
Redentor decolando como um foguete.
Disseminou-se uma sensação de otimismo quanto à superação de
mazelas históricas das nossas sociedades, como a miséria e as recorren-
tes crises políticas. Essa sensação de um futuro promissor e estável pôde
ser observada em pesquisas de opinião realizadas pela Corporação Lati-
nobarômetro (2018: 35)6. A satisfação cidadã refletia a confiança com o
presente e com o futuro. Em 2010, alcançamos o maior índice de apoio às
democracias em nossa região, de acordo com a série histórica iniciada pela
entidade em 1995. 52% dos latino-americanos acreditavam que o sistema
democrático era a melhor forma de governo para a região.
Esse cenário de otimismo começou a retroceder em 2014. Entre este
ano e 2019, a nossa média de crescimento econômico foi de 0,3%. A fra-
gilidade da expansão das economias locais contribuiu para a elevação do
desemprego e da pobreza, além de acentuar a precarização do mercado de
trabalho. Em 2019, por exemplo, cerca de 54% da População Economi-
camente Ativa (PEA), estavam na informalidade. Em 2014, o percentual
girava em torno de 47%. Além disso, entre aqueles anos, em torno de 27
milhões de habitantes (4% de nossos habitantes) ingressaram na situação
de pobreza.7
O retrocesso socioeconômico submergiu a confiança com o futuro da
região, contrastando com o diagnóstico do fim da primeira década do sé-
culo XXI. Como exemplo, recorremos, mais uma vez, às informações do
relatório Latinobarômetro. A repulsa às nossas democracias saltou a partir
de 2013, alcançando 71% de insatisfeitos, alcançando o maior índice da
série histórica.

5 Brazil takes off. Disponível em: https://www.economist.com/leaders/2009/11/12/brazil-takes-


-off Acesso em: 14 nov. 2009.
6 Informe Latino Barometro, 2018. P. 35.
7 Panorama Social de América Latina 2019. Santiago, Comissão Econômica para a América Lati-
na e Caribe (CEPAL), 2020. P. 97.

13
O mal-estar gerado pelas dificuldades de acesso ao mercado de traba-
lho, o recuo dos índices sociais e o estancamento da expansão econômica
auxiliaram no desgaste dos sistemas políticos locais e da doutrina neoli-
beral. Combinados, esses fatores colaboraram para as ondas de rebeliões8
populares ocorridas no segundo semestre de 2019 em países como Co-
lômbia, Equador, Haiti e Chile.9
O baixo nível de confiança nas democracias possibilitou, ainda, o
surgimento e/ou fortalecimento dos distintos grupos da direita regional.
Como exemplos, citamos o fenômeno do bolsonarismo no Brasil e peque-
nas organizações de extrema direita, como o boliviano Resistencia Juvenil
Cochala (RJC)10. Este grupo é composto, majoritariamente, por jovens do
departamento de Cochabamba. Na ocasião da crise política de 2019, que
culminou na renúncia forçada do então presidente Evo Morales, ele foi
responsável por um dos mais emblemáticos episódios de violência daque-
les dias. Nos referimos ao sequestro e às agressões físicas e verbais perpe-
tradas contra a prefeita da cidade de Vinto, Patrícia Arce Guzman (MAS).
Ela teve o seu cabelo cortado e foi obrigada a caminhar pelas ruas daquela
cidade pintada de vermelho e com gasolina ateada em seu corpo.11
Os efeitos da pandemia causada pelo vírus Sars-Cov-2 (COVID-19)
podem acentuar o nebuloso cenário de fortalecimento da direita latino-
-americana, tornando o nosso futuro político e socioeconômico imprevi-
síveis. Com isso, resquícios indesejáveis do nosso passado colonial, retra-
tado na hostilidade perpetrada contra Patricia Arce Guzman, na Bolívia,
podem, infelizmente, reproduzir-se.

8 Segundo Pasquino, entre outras características, as rebeliões ou revoltas populares caracteri-


zam-se pela ausência de proposição de subversão da ordem constituída e almejam a satisfação
imediata de demandas políticas e econômicas. Para fins desse artigo, nos apropriamos dessa
definição. Ver: Pasquino (1998: 1121).
9 Análises aprofundadas dessas rebeliões podem ser vistas em Fiori (2019) e Wasserman
(2020).
10 Vassalo (2020).
11 Rojas (2020)

14
Os estudos da CEPAL utilizados nesse artigo diagnosticaram uma re-
tração de 7,7% do PIB regional em 2020. Com isso, consolidamos uma
nova década perdida, pois a renda per capita regrediu aos números de
2010.12 O desemprego alcançou cerca de 10,4%13 e a pobreza e a extrema
pobreza aumentaram, respectivamente, em torno de 7,1% e 4,5%, saltando
de 30,2% para 37,3% e de 11% para 15,5%.
Essas circunstâncias devem convulsionar ainda mais o já instável qua-
dro político latino-americano. Protestos, como os ocorridos em 2020, ape-
sar do distanciamento social imposto pela pandemia, poderão acentuar-
-se. Na Bolívia, Colômbia e Chile já ocorreram inúmeras manifestações
nas quais foram demandadas política públicas que mitiguem os efeitos
econômicos e sociais da pandemia.14
O caso brasileiro é similar ao dos nossos vizinhos, embora guardemos
ares mais inquietantes devido a alguns fatores da nossa história recente.
De 2011 a 2020, empobrecemos. Nessa nova década perdida, nosso PIB
cresceu, em média, 2,2% enquanto o índice global foi de 30,5%. Nem na
década de 1980 os números foram tão preocupantes. Naquela ocasião, ex-
pandimos o nosso produto interno em 16,9%, enquanto o mundo alcançou
37,9%. Em 2010, nossa renda per capita, com valores corrigidos, era de R$
36.245. Ao fim de 2020, ela girará em torno de R$ 34.101.15 A debilidade
econômica brasileira tende a incrementar o desemprego e a miséria, am-
pliando a vulnerabilidade de distintos segmentos sociais. Inevitavelmente,
o mal-estar de parcelas da sociedade civil, externado nas jornadas de ju-

12 Enfrentar los efectos cada vez mayores del COVID-19 para una reactivación con igualdad: nuevas
proyecciones. Santiago, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), 2020. P. 15.
13 Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe 2020. Santiago, Comissão
Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), 2020. P. 11 e 125.
14 Sobre esses protestos, consultar: Lacurcia (2020) e Colombo (2020).
15 Patu (2020: A17-18).

15
nho de 2013, e que foi aprofundado pela “tempestade perfeita”16 iniciada
naquele ano, poderá aprofundar-se.
Diante dessa desalentadora conjuntura, cremos na necessidade de re-
flexões que contribuam para os estudos e debates dessa fase imprevisível
da história recente da América Latina. A pandemia expôs as consequên-
cias sociais oriundas da implementação das práticas políticas e econômi-
cas neoliberais, que se consolidaram na região entre as décadas de 1980 e
1990. O contexto lúgubre que vivemos expôs os grupos mais vulneráveis
aos efeitos psicológicos e socioeconômicos da COVID-19. A transmissão
do vírus não escolhe classe social e é democrática, mas os seus efeitos não
são. Como indicam os estudos cepalinos, afrodescendentes, indígenas,
mulheres, migrantes e jovens das periferias latino-americanas são os mais
impactados pela pandemia.
Dentro da situação de vulnerabilidade, existem aqueles que se encon-
tram em trânsito, em movimento, em caminhos que, subitamente, pela
pandemia, passaram a estar fechados, inaptos, obstaculizados. O que já
era considerado uma crise- a migratória- com suas massivas e dramáticas
diásporas no século XXI, passa a estar incluída dentro de outra: a crise
pandêmica. Em nome da emergência sanitária fecham-se as fronteiras e
milhares de latino-americanos se deparam com muros, fronteiras, ou per-
manecem em um constante “estado de trânsito”, ou seja, a espera de uma
solução dos estados em decidirem o que fazer com os seus destinos, con-
cederem a permissão para os migrantes entrarem em suas fronteiras. O
caso mais extremo são os do centro-americanos a caminho dos Estados
Unidos. Não é um fato novo, como não o é a migração, mas sim o extremo
grau de violência com que as políticas anti-imigrantistas do governo de
Donald Trump trataram essa população, especialmente ao longo do ano
de 2020. A chegada da pandemia potencializou as violações dos direitos

16 Entre 2013 e 2018, em especial, o Brasil viveu um período que conjugou crises política, eco-
nômica, social, moral e ética. Por isso, utilizamos a expressão “tempestade perfeita” para defi-
ni-la. Contribuíram para esse cenário múltiplos fatores, como os casos de corrupção expostos
pela politizada Operação Lava-Jato; a forte oposição do congresso nacional a Dilma Rousseff; a
ativa mobilização de parcelas da sociedade civil; e o colapso econômico-fiscal que deteriorou
profundamente as condições de vida da população.

16
humanos, como as deportações em massa, o impedimento da entrada no
país, o abandono dos migrantes em condições de extrema vulnerabilidade
nas cidades de fronteira e a ocultação de crianças separadas de suas famí-
lias. Atrocidades que o mundo e as potências ocidentais assistiram bestia-
lizadas, porém caladas, pois são vidas invisibilizadas, sem destino, paradas
em meio à pandemia. Para muitos, representam corpos contaminados que
incomodam, obstruindo as fronteiras.
Apresentaremos nesse artigo as repercussões socioeconômicas da
pandemia a partir dos estudos realizados ao longo de 2020 pela CEPAL,
alguns deles em parceria com a Organização Internacional do Trabalho
(OIT) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO). Avaliaremos, ainda, as migrações forçadas e os fluxos
migratórios durante esse momento pandêmico, a partir da imprensa e dos
relatórios de organizações civis e também governamentais. Assim, espera-
mos contribuir com as reflexões e debates que ocorrem nas universidades e
nas sociedades civis latinas sobre esse momento tão trágico e excepcional.

2 - COVID-19 e os seus efeitos sociais e econômicos

O ano de 2020 teve a maior retração do PIB mundial desde 1946. Paí-
ses emergentes e desenvolvidos foram afetados pela queda generalizada da
atividade econômica decorrente da pandemia. Encerramos esse ano com
contração do comércio internacional e considerável redução de atividades
econômicas nos setores de serviços. Embora pacotes fiscais e monetários
na casa dos US$ 20 bilhões, valores sem precedentes na história mundial,
tenham sido implementados em escala global, eles não foram suficientes
para impedir os impactos econômicos e sociais do Sars-Cov-2.17
A América Latina tornou-se, em junho de 2020, um dos epicentros
da pandemia. Embora concentremos aproximadamente 8% da população
mundial, temos em torno de 20% dos casos e 30% das mortes causadas

17 Balance Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe 2020. Op. Cit. P. 12.

17
pela COVID-1918. Somos os mais afetados do mundo emergente. Proble-
mas estruturais das nossas sociedades, como vulnerabilidade econômica;
histórica desigualdade de renda; precária infraestrutura habitacional; ine-
ficazes serviços públicos de fornecimento de água potável e tratamento
de esgoto; e escassos mecanismos de proteção social aos grupos mais vul-
neráveis auxiliam na compreensão do porquê sermos um dos epicentros
mundiais da pandemia.
Esses elementos reafirmam a nossa crença de que a disseminação e os
impactos do vírus não são democráticos. Não há horizontalidade, como
podemos constatar a partir da leitura dos relatórios cepalinos por nós uti-
lizados. Como a Comissão demonstra, as populações negra e indígena, as
mulheres e os jovens das grandes periferias são os mais atingidos pelos
múltiplos efeitos causados pela pandemia.
Apresentaremos a seguir informações aferidas a partir da leitura dos
relatórios sobre os efeitos da COVID-19 divulgados pela CEPAL ao longo
de 2020. Demonstraremos alguns dados e avaliações com o intuito de au-
xiliar as reflexões sobre os impactos da pandemia nesse momento tão tur-
bulento, anuviado e lutuoso que vivemos na América Latina e no mundo.
Ao cooperarmos com a divulgação dessas investigações, acreditamos que
auxiliaremos agentes públicos e segmentos da sociedade civil que desejem
objetar os efeitos da COVID-19 em nossa região.
Nos estudos publicados entre abril e dezembro de 202019, a CEPAL
apontou algumas perspectivas acerca das múltiplas implicações da pan-
demia e do novo tempo que ela abrirá na América Latina. Sintetizamos
abaixo algumas informações:

18 Dias (2020: A 18).


19 Os oito itens expostos sinteticamente nessa parte do artigo foram elaborados a partir da
leitura dos seguintes relatórios: El desafio social en tiempos del COVID-19. Santiago, Comissão
Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), 2020. P. 3, 6 a 8; Coyuntura Laboral en Amé-
rica Latina y el Caribe - El Trabajo en tiempos de pandemia: desafíos frente a la enfermedad por
coronavirus (COVID-19). CEPAL/OIT, Maio de 2020. P. 20, 27-28; Universalizar el acceso a las tec-
nologías digitales para enfrentar los efectos del COVID-19. CEPAL, Agosto de 2020. P. 2 e Balance
Preliminar de las Economías de América Latina y el Caribe, 2020. Santiago, Comissão Econômica
para a América Latina e Caribe (CEPAL), 2020. P. 51

18
I. Houve um aumento da pobreza e da extrema pobreza, como pode ser
observado no gráfico a seguir. Além das razões já expostas, a redução
das remessas financeiras realizadas por migrantes residentes nos Esta-
dos Unidos e na Europa contribuiu largamente para essa situação;
II. Esta crise, diferentemente das anteriores, teve significativas conse-
quências no setor de serviços. O turismo foi o setor mais afetado glo-
balmente e localmente. Entre janeiro e agosto, houve uma diminuição
de aproximadamente 65% das atividades do setor. A sua retração im-
pactou fortemente as economias latino-americanas, em razão da rele-
vância dessa atividade;
III. Os estratos populacionais que vivem em condições de insegurança
econômica foram os mais afetados pela perda de renda. Em 2019, cer-
ca de 47% da nossa população, em torno de 283 milhões de pessoas,
estavam inseridos nesse grupo, cujo ingresso per capita correspondia
a até três vezes ao da linha de pobreza. Esse segmento não possuía
reservas financeiras para enfrentar uma inesperada paralisia econô-
mica. Por isso, este grupo foi bastante afetado pela pandemia e esteve
entre os grupos que demandaram políticas públicas, fosse por meio
da transferência direta de renda ou no auxílio a pequenas e médias
empresas;
IV. As parcelas da sociedade civil mais afetadas pela COVID-19 foram as
seguintes: mulheres, jovens e idosos; trabalhadores informais, empre-
gadas domésticas, população rural, povos indígenas, afrodescenden-
tes, migrantes, pessoas em situação de rua e indivíduos com necessi-
dades específicas;
V. A participação feminina no mercado de trabalho concentra-se no se-
tor de serviços, sobretudo em empregos domésticos. Essa atividade es-
teve entre as mais afetadas ao longo de 2020, em virtude do distancia-
mento social. 51,3% das mulheres inseridas no mercado de trabalho
encontram-se na informalidade. Como ressalta a CEPAL, as políticas
públicas deveriam contemplar a dimensão de gênero. Contudo, isso
ocorreu de maneira superficial, como no caso brasileiro, em que as

19
mães solteiras ou mulheres chefes de família receberam o dobro do
auxílio emergencial, que passou a ser pago pelo governo federal em
abril de 2020;
VI. Os deslocamentos interregionais poderão ampliar-se. Os migrantes
estão entre os grupos mais expostos aos efeitos da COVID-19. O fe-
chamento das fronteiras nacionais, a dependência do setor informal
do mercado de trabalho, o restrito acesso aos sistemas de saúde e de
proteção social e a discriminação racial, o racismo e a xenofobia re-
presentam as suas principais fragilidades desse grupo;

América Latina (17 países): projeção da população em situação de pobreza extrema e


pobreza, 2020 (Em porcentagens e pontos percentuais)20

Extrema Extrema Variação Variação


Pobreza Pobreza
País Pobreza Pobreza 2019 e 2019 e
2019 2020
2019 2020 2020 2020
Argentina 3,8 6,9 3,1 26,7 37,5 10,8
Bolívia 14,3 16,8 2,5 32,3 36,1 3,8
Brasil 5,5 9,8 4,3 19,2 26,9 7,7
Chile 1,4 3,4 2 9,8 15,5 5,7
Colômbia 10,3 14,3 4 29 34,1 5,1
Costa Rica 3,4 5,1 1,7 16,5 20,5 4
Equador 7,6 12,7 5,1 25,7 32,7 7,0
El Salvador 7,4 11,9 4,5 33,7 40,2 6,5
Guatemala 19,8 22,7 2,9 48,6 51,6 3
Honduras 18,7 22,2 3,5 54,8 59 4,2
México 11,1 17,4 6,3 41,9 49,5 7,6
Nicarágua 18 22,8 4,8 47,1 52,7 5,6
Panamá 6,5 8,5 2 14,6 17,5 3,1
Paraguai 6,2 6,6 0,4 19,4 20,9 1,5
Peru 3,7 7,6 3,9 16,5 25,8 9,3
República Dominicana 4,5 6,7 2,2 20,3 24,7 4,4
Uruguai 4,5 6,7 2,2 20,3 24,7 4,4
América Latina 11 15,5 4,5 30,2 37,3 7,1
Elaboração dos autores

20 Enfrentar los efectos cada vez mayores del COVID-19 para una reactivación con igualdad: nuevas
proyecciones. Santiago, Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), 2020. P. 11

20
Um aspecto a ser destacado nos diversos relatórios refere-se à pro-
posta de adoção de uma renda básica universal na região. A entidade vem
continuamente recomendando a viabilização dessa política social, pois, se
adotada, ela teria uma dupla consequência: contribuiria com a atividade
econômica e mitigaria a vulnerabilidade dos distintos segmentos sociais,
mesmo aqueles que não se encontram em situação de pobreza e extrema
pobreza. Essa avaliação pode ser constatada a seguir:

Em uma perspectiva de longo prazo, a CEPAL reitera que o alcan-


ce dessas transferências deve ser permanente e contemplar pessoas
não inseridas em situação de pobreza, como grupos que recebem
salários baixos e médio-baixos, mas que não são pobres. Isso per-
mitiria avançar em direção a um ingresso básico universal que deve
ser implementado gradualmente em um período a ser definido a
partir da situação de cada país. Esta consideração é importante, pois
a superação da pandemia levará tempo e as sociedades terão que
conviver com o coronavírus, algo que dificultará a reativação eco-
nômica e produtiva (Tradução nossa).21

A proposta cepalina de transferências financeiras a grupos vulneráveis


enquanto não ocorrer a vacinação em massa e a extirpação da pandemia
coaduna-se com as recomendações feitas por organismos internacionais.
Mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI), que historicamente ado-
tou posturas contrárias à extensão do gasto público latino-americano, de-
fende essas medidas. Em entrevista à Folha de São Paulo, sua diretora-ge-
rente, Kristalina Georgieva, afirmou:

O que sabemos por experiência é que uma pandemia leva a mais


desigualdades. Há uma necessidade muito premente de enfocar a
questão de quem é o mais severamente impactado pela pandemia
e quais opções de políticas existem para evitar que a desigualdade
se aprofunde. Trabalhadores pouco qualificados, mulheres, jovens
são os mais afetados e sabemos que, em todas essas três categorias,
antes da pandemia havia problemas. E agora esses problemas são
ampliados. Então, o que deve ser feito? Em primeiro lugar, o apoio
público que agora é fornecido em uma escala muito significativa,
8% do PIB em medidas fiscais na América Latina, precisa gradual-

21 El desafio social en tiempos del COVID-19. OP. Cit. P. 15.

21
mente ser mais bem direcionado para partes da economia e traba-
lhadores e desempregados que estão nesta categoria mais severa-
mente afetados (...) Muito importante para os países continuarem
a apoiar as empresas e as pessoas até que haja uma saída duradoura
da crise de saúde (...) não retire o suporte se você tiver capacidade,
não retire o suporte até que você esteja do outro lado da crise de
saúde (...) Retirar o apoio poderia significar um obstáculo para a
recuperação [...] Cortar essa corda de salvamento prematuramente
é um perigo para a pobreza e a desigualdade e também para o suces-
so na recuperação mais rápida e robusta (...) as autoridades devem
proteger os pobres e evitar um aumento acentuado da desigualdade
de renda e da pobreza (Dias, 2020).

A proposta de implementação de ações estatais que protejam as fran-


jas mais afetadas pela pandemia deriva dos alarmantes dados aferidos pela
CEPAL no decurso de 2020. Segundo suas estimativas, oito em cada dez
habitantes da região (aproximadamente 491 milhões de pessoas)22 deman-
dam políticas públicas em razão da sua condição de vulnerabilidade aos
efeitos socioeconômicos e psicológicos da COVID-19.
Utilizamos nessa parte do artigo um conjunto de dados e análises que
almejaram amparar as nossas avaliações sobre esse momento sombrio,
nevoado e imprevisível. A julgar pelos acontecimentos de nossa história
recente, dentre os quais destacamos o descrédito em relação aos sistemas
democráticos-representativos, o fortalecimento de grupos de extrema-di-
reita e as rebeliões populares de 2019, o período que se avizinha poderá
ser marcado pela intensificação da luta social e pela instabilidade política
na América Latina.
Em um momento no qual assistimos a recorrência de golpes de Esta-
do, como na Bolívia em 201923, e o fortalecimento de organizações sociais,
partidos e lideranças identificadas com práticas autoritárias que marcaram
as páginas de nossa história no século XX, esperamos, com as informações
aqui apresentadas, colaborar com a compreensão e reflexões sobre um
presente assustador e lúgubre em virtude da nossa situação pandêmica.

22 El desafio social en tiempos del COVID-19. Op. Cit. P. 20.


23 Sobre o golpe de Estado ocorrido na Bolívia em 2019, ver: Stefanoni (2019) e Moldiz (2020).

22
Na terceira parte desse artigo, nos dedicaremos à situação dos migran-
tes, grupo fortemente afetado pela COVID-19, e o fenômeno das migra-
ções forçadas, em especial o caso dos deslocamentos da América Central
aos Estados Unidos, passando pelo México, considerado um dos corredo-
res humanos mais importantes do mundo. Nesse trânsito de vidas, nos en-
contraremos com milhares de seres humanos enfrentando as adversidades
e violências que o desterro lhes impõe. O vírus representa mais uma difícil
fronteira na vida dos migrantes, a dificultar e vulnerabilizar suas jornadas
em busca de um melhor porvir.

3 – A pandemia e os migrantes: atravessando o México a caminho da


fronteira estadunidense em tempos de COVID-19

A América Latina atravessa uma crise profunda e singular provoca-


da pela pandemia, conforme demonstramos anteriormente. Ela provocou
não só uma crise de saúde pública, mas também uma convulsão das bases
sobre as quais construímos a chamada normalidade.
O fechamento das fronteiras e o confinamento social, em decorrência
da pandemia, potencializaram as condições de precariedade e de vulne-
rabilidade vividas por muitas pessoas migrantes, ferindo os direitos hu-
manos de milhões de indivíduos que tentam sobreviver à guerra epide-
miológica. O contexto da pandemia fez com que milhares de pessoas em
deslocamento buscassem as rotas clandestinas e se vissem desprovidas das
medidas de proteção, saúde e segurança proporcionadas pelos Estados,
ações das quais estavam excluídas por sua condição de indocumentados.
Dessa maneira, a migração e a pandemia apresentam-se como uma crise
dentro da outra.
A militarização das fronteiras e a segurança do estado, algo já existen-
te nas políticas dos estados-nação, potencializam-se, com a emergência
sanitária. A securitização é o processo mediante o qual um ator com certo
poder e influência constrói um fenômeno percebido como ameaça exis-
tencial, ou seja, considerar certo fenômeno uma ameaça depende da per-
cepção e dos interesses que os atores do sistema internacional perseguem.

23
Sendo assim, a ameaça pode cair em considerações subjetivas. Isso não
é uma situação alheia à imigração como fenômeno social, se pensarmos
que os Estados, os indivíduos e as instituições podem considerar um fe-
nômeno migratório algo positivo ou negativo, em base a suas percepções
e identidades. Por exemplo, são os casos dos fluxos migratórios massivos
que representam um desafio para os estados (Buzan & Hansen, 2012).
Trata-se do poder do estado quando ele atua fora de seu domínio
territorial e de sua soberania e, dessa forma, materializa a soberania do
império. Estamos falando da externalização das fronteiras, do hiperna-
cionalismo e da militarização. Por exemplo, na sua campanha eleitoral de
2016, Trump repetiu várias vezes, sem economizar nas palavras: “Que-
ro construir o muro, temos que construir o muro... México pagará pelo
muro, mesmo que eles ainda não saibam”. A construção do prometido
muro “grande e suntuoso” que deveria ter 3.142 quilômetros de fronteira
nunca chegou a se concretizar. As obras se limitaram a 507 quilômetros
de barreira, em sua maioria formada por obstáculos já existentes. Pode-
-se dizer que a verdadeira muralha de Trump foi outra, uma bem menos
perceptível, mas com impacto direto em milhões de pessoas, a maioria
delas centro-americanas, como foi o acordo com o México em 2019 para
impedir a entrada de imigrantes nos Estados Unidos (Sánchez, 2020). As
palavras direcionadas aos migrantes mexicanos, por Trump, taxando-os
de população criminosa, ecoou em muitas partes do mundo. Dessa forma,
o dirigente máximo dos Estados Unidos, criminalizou os fluxos migrató-
rios e permitiu avançar uma política da governabilidade migratória glo-
balizada que articula o direito ao movimento como chave fundamental de
produção de desigualdades na ordem capitalista contemporânea.
A política anti-imigrantista de Donald Trump é o máximo exemplo
da militarização, da hipernacionalização e externalização da fronteira po-
tencializada com o surgimento da pandemia. O mandatário estaduniden-
se, em comum acordo com o presidente mexicano, André Manuel López
Obrador, a partir do ano de 2019, transformou o México no muro dos
Estados Unidos, estendendo suas fronteiras até a Guatemala, com o in-

24
tuito de impedir que as pessoas entrassem em solo estadunidense, princi-
palmente aqueles indivíduos que Trump considera criminosos, os que se
encontram abaixo do Rio Bravo, como os latinos, os mexicanos, os povos
do Triângulo Norte (Guatemala, Honduras e El Salvador), os negros do
Haiti, etc.
O chamado programa Quédate en México (Permaneça no México) co-
meçou a funcionar após janeiro de 2019, depois que Trump ameaçou im-
por taxas às exportações mexicanas. Desde então, o seu governo enviou a
Guarda Nacional às fronteiras sul e norte, permitindo que os Estados Uni-
dos encaminhassem mais de 70 mil pessoas24 para território mexicano.25 A
suspensão, devido à pandemia, das audiências perante as cortes migrató-
rias estadunidenses ampliou, por tempo indeterminado, a multiplicidade
de situações de risco vividas pelos imigrantes. Organizações de Direitos
Humanos denunciaram, frequentemente, que tanto os Estados Unidos
quanto o México, foram relapsos no tratamento aos migrantes, pois não
criaram medidas mínimas para a prevenção ou diminuição dos efeitos so-
ciais e de contágio da COVID-19. Em razão disso, colocou-se em risco a
integridade, a saúde e outros direitos humanos das pessoas migrantes e
solicitantes de asilo.26
A pandemia não freou, em absoluto, o fluxo de migrantes rumo aos
Estados Unidos e, consequentemente, as suas deportações. A migração
sul-norte cresceu continuamente a partir de abril de 2020, período auge
da COVID-19 naquele país, quando ocorreram 17.106 mil detenções. O
número de migrantes, assim como o número de mortos pela pandemia,
só aumentou: 23 mil e 237 no mês de maio, 33 mil em junho, 40 mil em
julho; em agosto foram 50 mil e em setembro 57 mil. O Departamento de
Alfândegas e Proteção Fronteiriça dos Estados Unidos (CBP são as siglas

24 Dados da Organização Mundial da Saúde


25 ARROYO. Lorena. Biden y López Obrador acercan posiciones sobre inmigracion. El País, 21
de dezembro de 2020, p. 3.
26 Informe de Investigación “En la boca del Lobo”. Contexto de riesgo y violaciones a los de-
rechos humanos de personas sujetas ao programa Quédate em México. Por: Alicia Moncada,
Fundación para la Justicia y el Estado Democrático de Derecho (FJEDD).

25
em inglês) reportou que nos meses de outubro e novembro foram captu-
radas 9 mil 128 crianças que viajavam sozinhas e 116 mil 935 adultos que
pretendiam migrar sozinhos. Segundo Eunice Rendón, diretora de Agen-
da Migrante, apesar da pandemia, as pessoas não deixaram de migrar, pelo
contrário, ao longo de 2020, o fluxo migratório aumentou e, segundo esti-
mativas da diretora, certamente crescerá no ano de 2021.27
O próprio CBP no mês de agosto de 2020 defendeu as chamadas “de-
portações express” e culpou os imigrantes do avanço do coronavírus nos
Estados Unidos. O chefe da Oficina de Alfândega e Controle Fronteiriço,
Mark Morgan, defendeu essas medidas e aproveitou a apresentação dos
dados mensais de sua agência para chamar de irresponsáveis os migran-
tes que tentam entrar no país sem autorização durante a pandemia. Segun-
do Morgan, apesar do perigo que representa a COVID-19, a imigração ile-
gal28 continua, e coloca em risco a vida dos estadunidenses. Os migrantes
continuam ignorando as ordens de seus países de permanecer em casa e a
orientação dos expertos médicos de todo o mundo29. Tomando como base
as palavras utilizadas pelo chefe do CBP, encontramos imediatamente dis-
curso que criminaliza e culpabiliza os migrantes. Primeiramente, quando
ele considera a imigração como um ato “ilegal”, como se todo indivíduo
que não estivesse regularizado ou documentando conforme a legislação
do estado fosse um criminoso. Nenhum ser humano é ilegal, em todo caso,
é indocumentado. Segundo ele afirma, os migrantes “ignoram as ordens
de seus países de permanecerem em casa”, como se a migração fosse uma
aventura ou uma opção, e os fatores de expulsão dos estados de origem
dos fluxos migratórios não obrigassem as pessoas a deixarem suas casas
de maneira desesperada, até mesmo em plena emergência sanitária. Por
último, ele acusa os migrantes de serem portadores de doença, quando

27 BUTRON, Jorge. Migración ilegal a EU, la más alta em 14 meses y tema de charla AMLO-Bi-
den. La Razón, 21 de dezembro de 2020.
28 Termo usado por Mark Morgan, do qual totalmente discordamos, pois nenhuma vida mi-
grante é ilegal.
29 La Opinión, 6 de agosto de 2020; Disponível em: https://laopinion.com/2020/08/06/cbp-de-
fiende-deportaciones-expres-y-culpa-a-inmigrantes-de-avance-del-coronavirus-en-ee-uu/.

26
na verdade são tão vítimas quanto qualquer pessoa, ou, até mais, por se
encontrarem em condições de extrema vulnerabilidade, sem o devido aco-
lhimento humanitário.
Enquanto esperam nas fronteiras pelo asilo que nunca chega, os imi-
grantes estão expostos a todo tipo de violência, muitos sem condições de
higiene em plena pandemia e sem acesso a advogados que os defendam.
Nessas migrações sul-norte, foram contabilizadas 256 crianças que foram
vítimas de sequestro e tentativa de sequestro30. Esses seres humanos vivem
no limbo, em um eterno trânsito, obstaculizados em sua travessia, enfren-
tando mais um inimigo: a pandemia.
Claro está que esses fluxos migratórios são originários das condições
estruturais de cada país. No caso dos centro-americanos, eles são privados
da possibilidade de permanecer em seus países. A população que vive em
condições de pobreza e marginalização, ademais de carecer de bens eco-
nômicos para subsistir, está privada de bens sócio-culturais e vive uma
grande privação política. Em condições reais, carecem do direito à cida-
dania e de mecanismos de identificação com seus governos, instituições e
com o resto da população. A situação de delinquência e de violência social
dá-se, principalmente, através de grupos urbanos armados que dominam
bairros inteiros devido à ausência de instituições governamentais e priva-
das que integrem positivamente os cidadãos, principalmente a infância e
juventude. Apesar de viverem formalmente sob governos democráticos, as
estruturas das administrações públicas de El Salvador, Guatemala e Hon-
duras, carecem de orçamentos e projetos educativos e de integração so-
cial31. Dessa forma, a opção de organização violenta em bandos armados
é o único vínculo de identidade que possuem muitos dos jovens nascidos
nesses países. São países de estado mínimo, de economia neo-extrativista,
de uso depredatório dos recursos naturais, de uso da força do estado e da
violência para conter mobilizações sociais, e até para conter os migrantes,

30 Fontes: Syracuse University TRAC Immigration Data Tools (Última atualização: 4 de novem-
bro de 2020); Human Rights First (Última atualização: 4 de maio 2020)
31 MANAUT, Raul Benítez. Centroamérica Geopolítica, Militarización y crisis humanitária. Revis-
ta Del Centro Andino de Estudios Internacionales, 15, año 2015, pp. 212-239.

27
como é o caso das fronteiras do sul do México com a Guatemala. É uma
política da morte, sem dúvida, que exclui os cidadãos de poder subsistir
e viver sem violência dentro do seu próprio estado. Os indivíduos não
podem retornar pelas ameaças que sofrem dos grupos armados, e os esta-
dos não querem se encarregar dessas vidas. Então, elas são descartadas e a
migração é o símbolo desse despejo.
No contexto da pandemia, a vulnerabilidade dessa população migran-
te aumentou consideravelmente. Os fatores que antes colocavam em risco
a vida dessas pessoas se incrementaram pela falta de oportunidades e pela
redução das redes de apoio. Por exemplo, muitos migrantes veem-se obri-
gados a passarem as noites em espaços insalubres, por falta de recursos
suficientes para alugar um quarto e pelo aumento da demanda de espaço
disponível nos albergues que os acolhem nos caminhos. Por conseguinte,
esta e outras situações acabam por reduzir consideravelmente as opções
para seguir as medidas de emergência sanitária.
Outro grave problema que envolve a situação dos migrantes em tem-
pos de pandemia são os confinamentos nos centros de detenção e os trans-
tornos mentais em consequência dessas estadas. Vivendo em condições
insalubres, incrementa-se o risco de contrair o vírus. Em alguns casos, os
migrantes reclamaram do uso excessivo da força, das agressões sexuais e
do confinamento solitário, ambos utilizados como formas de castigo. A
estadia prolongada nos centros de detenção provoca um grande trauma,
aflição física, psicológica e transtorno mental nas pessoas migrantes32.
As detenções migratórias implicam privação de liberdade sob o eufe-
mismo de “alojamento” e representam interesses do governo dos Estados
Unidos no controle fronteiriço. A Lei de Migração mexicana estabelece
que a partir do Controle Migratório seja fiscalizado se as pessoas que en-
tram no país contam com documentação necessária para realizar uma
estada prolongada no país e determina que a detenção migratória não

32 Aguilar-Gaxiola, Sergio; Medina-Mora, María Elena; Reyes-Becerra, Clarisa, Loera, Gustavo.


El impacto de COVID-19 en la salud mental de migrantes y solicitantes de asilo. In: Migración em
tempos de pandemia. 10 perspectivas para repensar el fenómeno en México, Centroamérica y
Estados Unidos, Friedrich Naumann Stiftung Fur die Freiheit, p;10. (e-book, obra coletiva)

28
deve exceder as 36 horas. Já os processos de deportação têm que ocorrer
em um prazo de 15 dias depois da apresentação do migrante. Nesse ato,
é informado à pessoa o motivo pelo qual ela foi privada de liberdade,
se faz a leitura dos seus direitos e se encaminha o migrante a um alo-
jamento ou centro de detenção. Entretanto, não é isso o que tem acon-
tecido. Os imigrantes têm vivido em condições adversas nos centros de
detenção e veem sofrendo diferentes tipos de violência.33
As entidades defensoras dos Direitos Humanos e a sociedade civil têm
se manifestado em prol das pessoas migrantes e veem exigindo soluções
para a definição daqueles que se encontram em condição de solicitação de
refúgio e, também, pela eliminação do programa Quedáte en México. O
relatório da Fundación para la Justicia y el Estado Democrático de Derecho,
publicado em dezembro de 2020, alerta para as obrigações em matéria de
direitos humanos de Estados Unidos e México:

El Estado mexicano y EUA tienen obligaciones en materia de de-


rechos humanos con la población migrante y sujeta al Programa
Quédate en México, especialmente en materia de salud, libertad
personal, integridad personal,derecho a buscar y recibir asilo. En
este sentido -y mientras persiste el programasse hace imperativo
que los Estados adopten medidas orientadas a respetar los derechos
de las personas sujetas al Programa Quédate en México, atendien-
do a los exhortos de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas
para los Derechos Humanos, el Alto Comisionado de las Naciones
Unidas para los Refugiados, la Organización Internacional para las
Migraciones y la Organización Mundial de la Salud.34

Para que o Programa Quédate en México seja eliminado de forma coe-


rente é necessário que o governo do presidente eleito Joe Biden realize essa
ação não só em coordenação com o governo mexicano, mas também com
organizações da sociedade civil, albergues para pessoas migrantes e com

33 Iberopuebla. 22 de outubro de 2020. Disponível em: https://www.iberopuebla.mx/noti-


cias_y_eventos/noticias/centros-migratorios-en-mexico-violentan-proceso-de-retorno-y-dere-
chos.
34 Informe de Investigación “En la boca del Lobo”. Contexto de riesgo y violaciones a los de-
rechos humanos de personas sujetas ao programa Quédate em México. Por: Alicia Moncada,
Fundación para la Justicia y el Estado Democrático de Derecho (FJEDD), p.9.

29
outros atores, para que, dessa forma, se assegure que existam as melhores
condições em ambos os lados da fronteira. As negociações referentes às
migrações entre o novo líder do executivo estadunidense e o mexicano já
começaram. E a esperança é que as políticas anteriores sejam desmontadas
e que se termine com o degradante programa Quédate en México. É um
tema de máxima relevância, não pode esperar. Joe Biden deixou claro que
seu governo tem como prioridade o tema migratório, como não poderia
deixar de ser. As pessoas continuarão se movendo, porque migrar é um
direito humano, ainda que muitos não saibam ou hesitem em não querer
saber. Portanto, novamente se coloca em pauta o voltar-se para os países
expulsores, de onde saem as milhares de pessoas, no intuito de ajudar a
desenvolver as economias, reduzir a violência e melhorar a vida de suas
populações35.
Evidenciamos, no entanto, que que as políticas anti-imigratórias do
governo de Donald Trump, em parceria com o governo mexicano de An-
drés Manuel López Obrador, ficarão marcadas na história como uma terrí-
vel sucessão de violação dos direitos humanos das pessoas migrantes, não
aliviadas nem sequer em época de pandemia.
Espera-se escrever uma nova história das migrações com o próximo
governo estadunidense, e as comunidades latino-americanas que o apoia-
ram seguirão vigilantes, para que os traumas e as atrocidades cometidas
não se repitam nos próximos anos. Algo de esperança brota, pois as se-
mentes sempre permanecem.

Considerações finais

A pandemia decorrente do vírus Sars-Cov-2 desnudou os efeitos so-


ciais e econômicos das quatro décadas de aplicação do doutrinário neoli-
beral. A vulnerabilidade de variados segmentos sociais ficou exposta ao

35 ARROYO, Lorena. Biden y López Obrador acercan posiciones sobre inmigracion. El País, 21
de dezembro de 2020, p. 3 e Jímenez, Nestor & Román, José Antonio. Biden dispuesto a apoyar
a Centroamérica y al sur de México, afirma AMLO. La Jornada, 22 de dezembro de 2020. https://
www.jornada.com.mx/2020/12/22/politica/003n2pol

30
longo de 2020 e, como consequência, muitos dos apologistas do neolibe-
ralismo passaram a defender políticas sociais que atenuassem a condição
de miséria da maioria da população mundial.
Como examinamos ao longo desse artigo, os efeitos da COVID-19
não são democráticos. O vírus atingiu de maneira mais veemente os gru-
pos sociais mais vulneráveis, seja pelas condicionantes de sua inserção no
mercado de trabalho ou pela sua precária condição de vida. Como exami-
namos, o caso latino-americano é emblemático, em virtude das caracterís-
ticas da sua formação econômica e históricas mazelas sociais.
Entre os grupos mais expostos aos efeitos do vírus, encontra-se a po-
pulação migrante da América Latina. São vítimas da violência, dos desas-
tres climáticos, das más condições econômicas de seus países e da falta de
oportunidades e expectativas de futuro que não lhes brinda a política de
seus estados. As migrações não constituem um fator novo, claro está, mas a
pandemia trouxe para esses indivíduos em trânsito mais um muro a com-
bater: o epidemiológico. A crise sanitária serviu como um instrumento a
mais para os estados nação salvaguardarem suas fronteiras e recrudesce-
rem a militarização de seus territórios, mesmo conhecendo os direitos dos
solicitantes de refúgios, cientes de que a saúde é benefício de todos e não
privilégio de algumas nacionalidades. Como demonstramos ao longo do
artigo, a pandemia responsabilizou os migrantes pela sua condição, con-
denou-os ao limbo, ao trânsito permanente, ao nunca chegar. Por outro
lado, a resistência migrante também demonstrou ao mundo da pandemia
o quanto eles são necessários, arriscando suas vidas nos serviços essen-
ciais, enviando remessas às famílias distantes em situações dramáticas e de
necessidades vitais. Muitos dos nossos países contaram com as contribui-
ções financeiras, ao longo da pandemia, enviadas pelos migrantes, como é
o caso do México.
Desta forma, além da perpetuação do fenômeno da migração, cremos
na tendência de acentuação da crise socioeconômica latino-americana ao
longo dos próximos anos e, consequentemente, do descontentamento so-
cial na região. Neste quadro, a descrença com as nossas democracias e

31
a instabilidade política podem intensificar-se, levando a novas ondas de
rebeliões populares, como as ocorridas em 2019 e 2020. Dessa forma, acre-
ditamos, mais do que nunca, que a imprevisibilidade política margeia o
futuro da região.

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34
II

SERÁ LA PANDEMIA DE COVID-19 EL


FIN DEL NEOLIBERALISMO?1
Johannes Maerk¹

Introducción

La pandemia de COVID-19 es una crisis de salud global sin preceden-


tes que causa un daño enorme a la salud, al empleo y al bienestar de las
personas. La infección por COVID-19 brotó por primera vez en diciembre
de 2019 en Wuhan una de las ciudades más grandes de China. La epidemia
se propagó rápidamente en enero y principios de febrero de 2020. En ese
momento, la gran mayoría de los casos de COVID-19 en todo el mundo
estaban en China. En cuestión de semanas, la Organización Mundial de la
Salud (OMS) la clasificó como una epidemia de importancia internacional.
La principal estrategia de los gobiernos chinos y de la mayoría de los de-
más gobiernos ha sido ‘aplanar la curva’, de modo que los sistemas de salud
puedan hacer frente a nuevas infecciones rastreando, probando, aislando y
tratando a los infectados hasta el momento en que una vacuna o ‘cura ‘está
disponible para todos. En respuesta a “aplanar la curva”, los gobiernos han
impuesto cierres de fronteras, restricciones de viaje y cuarentena. China
fue el primer país afectado en controlar el virus en un momento en que
gran parte del resto del mundo se enfrenta al peor virus. Por otro lado, los

1 Version aumentada y actualizado del articulo “Neoliberalismo y la pandemia de COVID-19”


publicado en el libro editado por Alexis T. Dantas y Maria Teresa Toríbio B. Lemos: América
Latina em tempos de Pandemia, 2020 UERJ.

35
países occidentales que inicialmente no pudieron comprender la gravedad
del brote se han visto muy afectados. En la tercera semana de marzo, el nú-
mero de muertes por Covid-19 en Italia superó el número de muertes en
China, y en la cuarta semana de marzo, Estados Unidos se convirtió en el
nuevo epicentro de la pandemia. A mediados de junio, se había confirma-
do más de un million de muertes en todo el mundo (principio de octubre
de 2020). Además de las graves consecuencias para la salud, la epidemia
de COVID-19 ha causado cargas económicas masivas y de gran alcance
para todas las naciones. Los países en desarrollo están particularmente en
riesgo porque hay pocos recursos disponibles para la nueva amenaza y sus
consecuencias.
Podemos observar que hay un esfuerzo considerable por parte de los
líderes de muchos países para reanudar la actividad como de costumbre,
independientemente de sus consecuencias potencialmente letales. La hi-
potesis central de nuestro trabajo es la siguiente: Es peligroso depender
únicamente de las fuerzas del mercado para enfrentar esta pandemia. Al-
ternativamente, los gobiernos pueden orientar, facilitar y acelerar los cam-
bios deseados mediante medidas de política industrial y de ayuda apro-
piadas. Lo que se sugiere aquí está fuera del alcance del neoliberalismo.
Esperamos un cambio de paradigma en los próximos años que reducirá
el neoliberalismo y potencialmente abrirá más espacio para que un estado
más activo aumente el bien comun.
En este pequeño ensayo se discutirá brevemente el lento surgimiento
del neoliberalismo – primero las ideas de Friedrich Hayek en contra del
modelo estadista de la Viena Roja y su posterior triunfo con los gobiernos
de Pinochet, Thatcher and Reagan. Después se hace un análisis de la crisis
financiera de 2007/8 y por ultimo se discute la pregunta: ¿Llegará el fin del
liberalismo con la pandemia COVID-19?

36
1. La respuesta de la crisis de los treinta del siglo XX: Keynes y el mo-
delo ISI

El estado de bienestar (o welfare state en inglés) se desarrolló prin-


cipalmente en Gran Bretaña y los Estados Unidos en los años treinta del
siglo XX y luego fue adoptado por casi todos los países occidentales.
Las causas principales fuerenon: el creciente poder del movimiento
obrero en el sistema político que siguió a la expansión del sufragio univer-
sal; la comprensión bien razonada que la economía de mercado desenfre-
nada de los años 20 y 30 condujo a la depresión de 1929 asi como el auge
de los partidos politicos extremos y radicales: el crecimiento de los parti-
dos comunistas y al mismo tiempo la aceptación del fascismo y el nazismo
por parte de grandes partes del electorado.
En vez de la creencia en las fuerzas del mercado, se encontró el papel
rector del estado en la conducción de la economía la respuesta a la crisis
económica. Este entendimiento encontró su expresión en las teorías del
economista británico John Maynard Keynes, en el New Deal del presidente
norteamericano Franklin Roosevelt asi en el periódo entre las dos guerras
mundiales en laViena Rioja2 donde se implementó una politica con un pa-
pel rector del estado en la sociedad y la planifación racional de las políticas
públicas como la salud pública y la vivienda (PICAZO, 1998).
Después de la segunda guerra mundial el model keynsiano fue im-
puesto en los paises del bloque occidental (tambien como contra-modelo
en la guerra fria frente al bloque sovietico). En respuesta a las ideas de
Keynes en América Latina se desarrolló la teoría del “estructuralismo lati-
noamericano” o industrialización por sustitución de importaciones (ISI)
desde la década de 1950 hasta la década de 1980. Esta teoría se basó en los
trabajos de Raúl Prebisch, Hans Singer, Celso Furtado y otros pensadores
de la economía estructural, y ganaron importancia con la creación de la
Comisión Económica de las Naciones Unidas para América Latina y el

2 Viena Roja (en alemán: Rotes Wien) fue el apodo de la capital de Austria entre 1918 y 1934,
cuando los socialdemócratas tenían la mayoría y la ciudad se gobernaba democráticamente
por primera vez.

37
Caribe (CEPAL) en 1948. Mientras que los teóricos detrás de esta corrien-
te teórica no eran homogéneos y no pertenecían a una escuela particular
de pensamiento económico compartían una creencia común básica en un
plan centralizado y dirigido por el estado impulsando asi el desarrollo eco-
nómico en los países latinoamerianos (CEPAL, 1998). En el caso de Méxi-
co por ejemplo se produjo el llamado “milagro mexicano desde la década
de 1940 hasta la década de 1970 durante la cual el país tuvo un crecimiento
económico muy alto con un promedio de 6% anual y se desarrolló un im-
portante sector industrial.

2. El triunfo del neoliberalismo a partir de Pinochet en Chile

El pensamiento neoliberal tiene uno de sus fundamentos en las ideas


del economista austriaco Friedrich Hayek. Mientras en Viena sus ideas
en contra el papel fundamental del Estado en la conducción de la socie-
dad no pudo sentar bases debido a la fuerte presencia de la Viena Rioja,
Hayek abandonó Austria en 1931 para aceptar una Cátedra de Economía
en la London School of Economics (LSE). A finales de la segunda guerra
Mundial, Hayek publicó el libro Camino hacia la servidumbre donde argu-
mentó que con el desmantelamiento del mercado libre se empezó la des-
trucción de toda libertad económica y política. El atque del libro se dirigió
en contra del Partido Laborista de Inglaterra y de las propuestas de un
estado intervencionista Keynes en Cambridge. Sobre todo la planificación
del economia, sea en su vertiente sovietico como en su vertiente social-
democrata, llevó – según Hayek - a la humanidad hacia un camino de la
servidumbre. Hayek y sus ideas fueron marginadas después de la segunda
guerra mundial debido a la influencia que ejercían las ideas de Keynes en
las politicas publicas de los países occidentales – secuelas de la gran crisis
economica de los años 30.
Bajo el liderazgo del empresario suizo Albert Hunold y de Friedrich
Hayek se reunieron intelectuales3 de Europa y Estados Unidos en abril de

3 Entre los participantes de la primera reunión de la SMP se encuentran Milton Friedman, Frie-
drich August von Hayek, Frank Knight, Ludwig von Mises y Karl Popper.

38
1947 en el Hotel du Parc en Mont Pèlerin, un pueblo cerca del lago de Gi-
nebra. Este encuentro fue posible gracias al apoyo de varias fundaciones
estadounidenses como por ejemplo la Foundation for Economic Education,
Nueva York cuyo empleado fue Ludwig von Mises. El Schweizerische Kre-
ditanstalt (hoy conocido como Credit Swiss) pagó casi todos los costos de
la conferencia-18, 062,08 francos suizos (MIROWSKI & PLEHWE, 2009,
p. 15). Participaron profesores universitarios pero también empresarios y
periodistas (entre ellos de los Estados Unidos de las publicaciones Fortune,
Newsweek y The Reader’s Digest). Al final de la primera reunión de la SMP
una declaración final fue publicada. Los dos puntos mas relevantes eran4:
a. Redefinición de las funciones del Estado para poder distinguir más
claramente entre el totalitarismo y un orden liberal. (nota JM: el
totalitarismo para Hayek y su seguidores es muy amplio: ambarca
tanto el facismo nazi como el estalinismo, pero tambien posturas
socialdemocratas).
b. La posibilidad de establecer reglas mínimas para el funcionamien-
to del mercado.
Después de la fundación de la Sociedad de Mont Pélerin se realizaron
reuniones generales cada dos años hasta la fecha (entre ellas en 2006 en
Guatemala). Hayek y sus aliados utilizaron los siguentes años para avanzar
en promover su ideología neoliberal como visión del mundo (Weltans-
chauung). Uno de los vehiculos más importantes fue el trabajo en univer-
sidades5 y los llamados thinktanks. Hayek se trasladó en 1950 a la Universi-
dad de Chicago donde obtuvo una catedra de Ciencias Sociales y Morales.
Ahi se encontró de nuevo con Milton Friedman quien participó muy jo-
ven en la primera reunión de la SMP. Hasta principio del los años 1970,
el neoliberalismo quedó marginalizado en los paises occidentales. Con la
crisis petrolera y el fin del sistema Bretton Woods, el modelo keynesiano

4 Hay una página oficial de la Sociedad Mont Pelerin donde se encuentra el texto completo de
la declaración final: https://www.montpelerin.org/montpelerin/mpsGoals.html.
5 Como una de las primeras universidades inspiradas en el espírtu neoliberal fue la Universi-
dad Francisco Marroquín en la Ciudad de Guatemala, fundada en 1971.

39
se enfrentó una severa crisis con un auge de la inflación y del desempleo.
Las ideas de Hayek empezaron a tener auge.
En América Latina la hora neoliberal empezó con el golpe de estado
en Chile por parte del General Augusto Pinochet y de la CIA derrocan-
do al democraticamente legitimado presidente Salvador Allende. Con un
grupo de economistas chilenos educados en la ya mencionada Universi-
dad de Chicago, los llamados “Chicago boys” impulsaron un proyecto de
privatización de las industrias estatales y los servicios públicos asi como la
imitación de las prácticas del sector privado en la burocracia estatal6. En
1974 , el Premio Nobel de Economía fue otorgado en iguales a Friedrich
von Hayek y el socialdemocrata Gunnar Myrdal “por su trabajo pionero en
la teoría del dinero y de las fluctuaciones económicas y por su análisis de
la interdependencia de los fenómenos económicos, sociales e instituciona-
les.”7 Dos años más tarde Milton Fridman fue ganador del mismo premio
quien utilizó el prestigio del premio para promover de manera efectiva las
ideas neoliberales.
El proximo paso fue la introducción de ideas neoliberales en el Reino
Unido (bajo la primera ministra Magret Thatcher) y Estados Unidos (bajo
el presidente Ronald Reagan). Stuart Hall introdujo como primero el tér-
mino “thatcherismo” en un articulo en la revista de la Nueva Izquierda
inglesa “Marxism Today” meses antes de convertirse Magret Thatcher en
la primera ministra en 1979 (HALL, 1980). Predijo con razón, que la lle-
gada de Thatcher al poder no sería una ruptura temporal con el pasado y
descubrió la nueva coyuntura política, el surgimiento de la nueva derecha
radical en la forma de Margaret Thatcher. Hoy en dia vemos este cambio
con mucha claridad: fue la fase transitoria en el Reino Unido del consenso
kenseniyanio (estado de bienestar) hacia el modelo neoliberal (donde el
individuo es un agente social importante – “no hay sociedad solo indivi-
duos” como proclamaba Margret Thater).

6 Un buen análisis de los “chicago boys” hace VALDES, 1995.


7 http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/economic-sciences/laureates/1974/press.html.

40
Por lo tanto, el “thatcherismo” encontró una forma popular de hacer
convincentes los principios de una filosofía del libre mercado, por ejem-
plo, movilizando figuras imaginarias del dominio popular como el “carro-
ñero” parasitario del sistema del bienestar hoy en dia muchas veces vincu-
lado con los migrantes y busquadores de asilo) y el ataque al “estado de la
niñera” (nanny state) que supuestamente mina la capacidad del individuo
para crear su propio destino.
Ronald Reagan en Estados Unidos implementó un regimen similar
bajo un modelo que se esforzó por limitar el papel del estado tanto como
fuera posible mientras expandía el poder del libre mercado. El estado,
según el reclamo, impide el potencial para el crecimiento creativo de las
fuerzas del mercado, por lo que su autoridad debe reducirse, permitiendo
que las fuerzas del mercado operen sin obstáculos. Reagan expresó esto
radicalmente diciendo que el estado no es la solución, es el problema8.
Hasta finales de los ochenta la mayoría la mayoria de los latinoame-
ricanos abandonaron el modelo del ISI y adoparton – sigiendo el mismo
camino (neoliberal) como Thatcher y Reagan.

3. A pesar de la crisis del 2007/8 el modelo neoliberal continuó

Después del estallido de la crisis financiera y económica internacional


en 2007/2008, muchos sospecharon el fin ideológico del neoliberalismo.
Paquetes de rescate, estímulos de reactiviación de la economía, la nacio-
nalización (temporal) de bancos y partes de la economía como General
Motors en los EE. UU fueron implementados.
Sin embargo, contrariamente a la pandemia del COVID-19 no todos
los países feron afectados (se salvaron sobre todo paises de Sur Global – en

8 “Government is not the solution to our problem, government is the problem.” 1st Inaugural
Address: President Reagans Inaugural Address 1/20/81; https://www.reaganfoundation.org/
ronald-reagan/reagan-quotes-speeches/inaugural-address-2/

41
especial los países africanos y latinoamericanos)9 como se puede ver en la
gráfica 1.

Gráfica 1: MENEGAZ (2009) según las estimaciones del Fondo Monetario Internacional

En la crisis del 2007/8 parecía que el keynesianismo había despertado


de su hibernación. Pero después de una breve fase de intervencionismo
estatal, el neoliberalismo regresó en forma de una política de austeridad:
Los movimientos sociales y los proyectos de de los partidos de izquierda
han intentado en muchos países de Europa evitar este retorno, pero fue
en vano. Poco a poco se hizo evidente que Syriza en Grecia, Podemos en
España o Francia Insumisa (en francés, La France insoumise) una plata-

9 Por eso algunos analistas hablan de “una crisis de los países desarrollados”.

42
forma política fundada con vistas a promover la candidatura fallida de
Jean-Luc Mélenchon a las presidenciales francesas de 2017 no podían es-
tar a la altura de la esperanza de un cambio de paradigma de izquierda.
Igual en América Latina regresaron las políticas neoliberales a pesar
de las protestas en Chile y Ecuador con una derecha descarrilada en Brasil,
el proyecto de Chavez en plena crisis en Venezuela y un golpe blando en
contra de Evo Morales en Bolivia. Como las unicas propuestas alternativas
de una izquierda moderada están en el poder actualmente en Argentina
Alberto Ángel Fernández y Andrés Manuel Lopez Obrador en México.

4. Ahora si? Con la pandemia de covid-19 llegará el fin del


neoliberalismo?

Es por verse si los efectos de la pandemia llegarán a una transforma-


ción profunda del regímen basado en una economía. Las luchas por los
servicios públicos podrían beneficiarse en la crisis de la corona: Asi en Ale-
mania las peticiones bien recibidas de aumentos de salarios de enfermería
o un ingreso básico incondicional hablan por ello. Otro ejemplo es España
donde hay un evidente vinculo entre la crisis por la que atraviesa con esta
pandemia y los recortes en salud. Según los parámetros de la OCDE, Espa-
ña es es el cuarto país que más ha recortado en su sistema sanitario desde
el año 2009. Según Miguel Ángel Sánchez Chillón, presidente del Colegio
de Médicos de Madrid “en la Comunidad de Madrid se hicieron recortes y
reformas sin ningún tipo de planificación. Se construyeron siete hospitales
de concesión privada, pero se disminuyó el número de camas en los pú-
blicos”10 Esta situación en España puede generalizarse para los gobiernos
locales y las autoridades regionales / estatales tanto en Europa como en
América Latina que invariablemente forman la primera línea de defensa
en emergencias de salud pública y se vieron privados de fondos debido a
una política de austeridad diseñada para financiar recortes de impuestos y
subsidios a las corporaciones y a los ricos (HARVEY, 2020).

10 Citado en: http://www.rfi.fr/es/economia/20200330-el-neoliberalismo-tiene-responsabili-


dad-en-esta-crisis-planetaria-afirman-m%C3%A9dicos-y-expertos.

43
Otro el elemento importante es el rompimiento de las cadenas pro-
ductivas que en el caso de América Latina vienen desde el Norte y Asia
(sobre todo China y en menor importancia Japón y Corea del Sur). Como
Adolfo Laborde señala “todos aquellos países que han cambiado su lógica
industrial, a través de la adquisición de equipo, refacciones y bienes de ca-
pital de origen asiático o europeo, sufrirían las consecuencias del desabas-
to de repuestos o máquinas que ya estaban consideradas en su programa
de producción y entrega. No cumplirán con los pedidos, o bien, sus proce-
sos serán golpeados por falta de materia prima, lo que tendrá graves con-
secuencias para el flujo de efectivo de las empresas que dependen de las
divisas para aceitar sus operaciones y procesos productivos globales..”(LA-
BORDE, 2020). Esto implica para el futuro una posible re-orientación de
la producción de insumos estratégicos en alimentacion y salud hacia una
producción regional y/o nacional.
Para convertirse en un proyecto alternativo real frente al imperante
neoliberalismo, una nueva ofensiva de política social y climática durante
y después de la crisis de Corona tendría que estar vinculada a un proyecto
de hegemonía post-neoliberal programáticamente y económicamente só-
lido. Debe mostrarse cómo se puede modificar el intervencionismo estatal
para retirar sectores económicos enteros de la initiativa privada y conver-
tirlos en un sistema de planificación económica democrática y con soporte
digital. Estos sectores económicos estrategicos podrian ser los servicios de
salud, educación, vivienda y transporte público desde la perspectiva del
bien comun. Al mismo tiempo se tiene que incentivar las formas de auto-
gestion en los sectores económicos no estratégicos.

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45
III

O PAPEL DOS ESTADOS DA AMÉRICA


LATINA EM TEMPOS DE PANDEMIA
GLOBAL A PARTIR DO PENSAMENTO
DE JOHN KEYNES
Anderson Barbosa Paz1

1 Introdução

A atual crise da COVID-19 ou crise do coronavírus tem vitimado


milhares de pessoas ao redor do mundo. Muitos países têm adotado vá-
rias medidas econômicas para mitigar seu impacto. O Estado é um ente
fundamental na diminuição dos impactos econômicos sobre as empresas
e indivíduos. Há, nesse contexto, muitas sugestões sobre quais medidas
concretas os governantes devem tomar para lidar com a crise. Entretan-
to, as medidas práticas para enfrentar a pandemia global precisam de um
substrato teórico que lhes fundamentem.
Mais uma vez, o nome do economista britânico John Maynard Keynes
(1883-1946) é trazido à esfera pública. Keynes foi uma figura central para a
economia nos períodos das duas grandes Guerras Mundiais e também no
entreguerras. Oponente do liberalismo clássico, marcado por uma postu-
ra anti-intervencionista do Estado na economia, o autor britânico buscou
salvar o capitalismo de sua entropia. Assume um pensamento mais con-

1 Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais pela Universidade Federal da Paraíba.


Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Bacharel em LEA Negociações Inter-
nacionais pela Universidade Federal da Paraíba.

46
servador na economia ao defender reformas que preservassem o capitalis-
mo e o livre mercado por meio da garantia da eficiência, da justiça social
e da liberdade.
O pensamento de Keynes possibilitou uma nova forma de análise da
economia, a Macroeconomia. Observando aspectos gerais do âmbito eco-
nômico, ele formulou uma Teoria Geral para responder a questões de am-
plo impacto econômico. Devido à sua contribuição filosófico-econômica,
o presente artigo objetiva estudar o papel dos Estado no pensamento de
John Keynes, a fim de derivar de seus postulados teóricos algumas refle-
xões sobre o comportamento dos Estados da América Latina face a atual
pandemia global de COVID-19.
Para isso, adotar-se-á uma metodologia exploratória através de revi-
são bibliográfica. A abordagem será qualitativa por se tratar de um traba-
lho teórico. E o estudo se concentrará, primordialmente, na obra keyne-
siana A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Buscar-se-á extrair
do pensamento de Keynes algumas conclusões sobre o papel dos Estados
latinos em meio à presente crise pandêmica.

2  Apontamentos sobre a Teoria Geral de John Keynes

Entre 1931 a 1935, Keynes se dedicou a escrever sua magnum opus,


A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, publicada em 1936. Ele
apresenta como objetivo da obra contrastar a natureza de seus argumen-
tos e conclusões com os da teoria clássica, investigando o que determina
o volume de emprego. O motivo de seu trabalho é argumentar que “os
postulados da teoria clássica se aplicam apenas a um caso especial e não
ao caso geral, pois a situação que ela supõe acha-se no limite das possíveis
situações de equilíbrio” (KEYNES, 1982, p. 23).
De início, o economista britânico apresenta que a teoria clássica do
emprego tem dois postulados. Em primeiro lugar, o “salário é igual ao pro-

47
duto marginal do trabalho”2 e a “a utilidade do salário, quando se emprega
determinado volume de trabalho, é igual à desutilidade marginal desse
mesmo volume de emprego”3 (KEYNES, 1982, p. 25). O autor britânico
mantém o primeiro postulado, enquanto critica o segundo.
Esse último é compatível com o desemprego friccional – permite conci-
liar imperfeições que impedem um estado contínuo de pleno emprego – e
o desemprego voluntário – possibilidade de uma pessoa recusar uma remu-
neração equivalente à sua produtividade marginal. Porém, Keynes sugere
que é preciso considerar uma terceira categoria, o desemprego involuntário.
Na concepção da escola clássica, até as pessoas que querem trabalhar,
mas não encontram emprego estão dentro do conceito de desemprego vo-
luntário. A explicação da teoria clássica é que os indivíduos permanecem
desempregados por conta de um acordo declarado ou tácito entre si de não
trabalharem por menos. E que, se todos admitissem uma redução salarial,
haveria ainda mais empregos a serem atendidos, não restando desempre-
gados involuntários. Logo, “as negociações salariais entre trabalhadores e
empresários determinam o salário real” (KEYNES, 1982, p. 28).
O economista britânico rejeita essa possibilidade, argumentando que
os trabalhadores, mesmo em conjunto, não têm meios de fazer reduzir os
seus salários reais a uma certa cifra que possibilitasse o pleno emprego. A
união de trabalhadores só protege seu salário real relativo. O nível geral

2 De acordo com Keynes, “isso quer dizer que o salário de uma pessoa empregada é igual ao
valor que se perderia se o emprego fosse reduzido de uma unidade (após a dedução de quais-
quer outros custos que essa redução evitaria), com a restrição de que a igualdade pode ser
afetada, de acordo com certos princípios, pela imperfeição da concorrência e dos mercados”
(KEYNES, 1982, p. 25). Logo, em certo estado de organização, os salários reais e o volume de
produção são correlacionados de forma que se há um aumento do emprego, haverá um de-
créscimo da taxa de salários reais. Dessa forma, “se o emprego aumenta, isso quer dizer que
em períodos curtos a remuneração por unidade de trabalho, expressa em bens de consumo
dos assalariados, deve, em geral, diminuir e os lucros devem aumentar” (KEYNES, 1982, p. 33).
3 Segundo o economista britânico, “isso significa que o salário real de uma pessoa empregada
é exatamente suficiente (...) para ocasionar o volume de mão-de-obra efetivamente ocupado,
com a restrição de que a igualdade para cada unidade individual de trabalho pode ser alterada
por combinações entre as unidades disponíveis para empregar-se, análogas às imperfeições da
concorrência que qualificam o primeiro postulado” (KEYNES, 1982, p. 25).

48
de salários reais depende de outros fatores. A partir dessa argumentação,
Keynes definirá o desemprego involuntário como aquela situação em que

Existem desempregados involuntários quando, no caso de uma li-


geira elevação dos preços dos bens de consumo de assalariados re-
lativamente aos salários nominais, tanto a oferta agregada de mão-
-de-obra disposta a trabalhar pelo salário nominal corrente quanto
a procura agregada da mesma ao dito salário são maiores que o vo-
lume de emprego existente (KEYNES, 1982, p. 32).

Ou seja, pode haver no mercado uma situação de maior oferta de mão


de obra do que o volume de emprego existente, ocasionando desemprega-
dos involuntários. Dessa definição, por meio de uma dedução lógica, Key-
nes considera que se a teoria clássica é aplicável apenas ao pleno emprego,
ela não pode ser aplicada aos problemas de desemprego involuntário.
O economista britânico também critica um terceiro postulado central
para a escola clássica. Baseados na Lei de Say, os economistas clássicos en-
tendiam que a oferta cria sua própria demanda, de forma que o total dos
custos de produção deve ser completamente gastos na compra do produto.
Ou seja, o preço da demanda agregada é igual ao preço da oferta agregada
para todos os níveis de produção e emprego.
Disso derivava-se que “qualquer ato individual de abstenção de con-
sumir necessariamente leva e equivale a um investimento na produção de
riqueza sob a forma de capital, resultante do trabalho e das mercadorias
assim liberadas da necessidade de consumo” (KEYNES, 1982, p. 34). De
outra forma, se o dinheiro não for gasto de uma forma, será de outra4.
Todos esses postulados da teoria clássica, segundo Keynes, ou se sus-
tentavam de pé conjuntamente ou desmoronavam juntos. Em diálogo com
essas premissas, o economista britânico apresenta sua teoria do emprego.

4 A teoria clássica, baseada na Lei de Say, ainda acreditava que a concorrência criava automa-
ticamente uma taxa de juros pela qual a poupança e o investimento eram iguais. Eventuais
vazamentos por meio de poupança, importações e impostos, eram automaticamente igualados
pelas injeções de exportações, gastos do governo e empréstimos dos recursos poupados. Logo,
ter-se-ia uma demanda agregada automaticamente igual à oferta agregada (KUNT e LAUTZE-
NHEISER, 2013).

49
Em linhas gerais, ela pode ser posta como segue. Quando o emprego au-
menta, eleva-se a renda real agregada. Quando essa renda aumenta, o con-
sumo – propensão a consumir da comunidade – também aumenta, mas
não tanto quanto a renda. Em consequência, os empresários aumentam
o investimento para absorver o excesso da produção total sobre o que a
comunidade deseja consumir.
O nível de equilíbrio do emprego – nível em que os empresários não
se sentem conduzidos a aumentar ou reduzir o emprego – dependerá do
montante do investimento corrente que, por seu turno, depende do in-
centivo a investir. O investimento dependerá da relação entre a eficiência
marginal do capital – capacidade de um ativo se reproduzir e deixar um
excedente –, das taxas de juros sobre os empréstimos e da propensão a
consumir.
Um maior consumo aumenta o investimento que possibilita mais em-
pregos. Haverá um nível de emprego compatível com o equilíbrio, mas
que não será igual ao pleno emprego – haverá certo grau de desemprego
involuntário. Assim, “a propensão a consumir e o nível do investimento
é que determinam, conjuntamente, o nível de emprego, e é este que, cer-
tamente, determina o nível de salários reais – não o inverso” (KEYNES,
1982, p. 41-42).
Em suma, o autor britânico reflete sobre o comportamento econômi-
co sob a incerteza, combinado com um modelo de determinação de ren-
da, no curto prazo, que enfatizava a quantidade de ativos como variável
de ajustes. Na Teoria Geral, Keynes oferece uma teoria abrangente sobre
a demanda e oferta de produtos, ao enfatizar os efeitos de mudanças no
nível de produção, e aponta para formas de sair da recessão de maneira
organizada.
Ele ressalta que a elevada propensão a poupar e entesourar pode se
traduzir em desemprego endêmico. Seu objeto de investigação é enten-
der o que determina o volume de produção em uma economia monetária.
Para isso, focaliza a análise dos efeitos da incerteza sobre o investimento, e
a taxa de juros que equilibra a oferta e o investimento (SKIDELSKY, 1999).

50
Nesse cenário de depressão econômica, o Estado desempenha um papel
importante.

3  O Estado em tempos de depressão econômica

Keynes não sistematizou, em um capítulo específico de sua Teoria Ge-


ral, qual deve ser a ação do Estado em tempos de depressão e de cresci-
mento econômicos. Porém, sua obra oferece delineamentos gerais sobre
como o governo pode agir para diminuir o tempo e os efeitos da depressão
econômica, e conservar o máximo possível o período de crescimento eco-
nômico. A partir de sua abordagem sobre a propensão a consumir, a pre-
ferência pela liquidez, o efeito marginal do capital e a necessidade de in-
vestimentos para a promoção de consumo e emprego, pode-se perceber os
papéis do Estado e do livre mercado na depressão e expansão econômicas.
Para o economista britânico, a demanda efetiva insuficiente pode pa-
ralisar o aumento do emprego antes de haver ele alcançado o nível de ple-
no emprego. Sua insuficiência inibe o processo de produção. A inibição de
demanda ou crise de consumo abre espaço para a depressão econômica,
alicerçada na perda de confiança na economia. A economia capitalista os-
cila a ponto de entrar em crise de recessão e depressão. Tal crise pode levar
a uma situação de rompimento do estado de confiança em que as decisões
de investir e produzir são alcançadas por uma incerteza radical. Keynes
sugere que o Estado atenue os impactos da crise e diminua as oscilações
dos ciclos capitalistas que levam às crises (KEYNES, 1982).
Para o economista britânico, o mercado capitalista se baseia na noção
de convenção, pela qual os atores preferem seguir mercados organizados
que definem parâmetros que garante a previsibilidade e segurança jurídi-
cas. O capitalista sempre toma decisões a partir de incertezas – expectati-
vas condicionais – que dependem de uma ampla gama de ações colaterais
que, por sua vez, podem afetar os resultados das preleções.
Porém, o aumento de incerteza e o rompimento das convenções levam
os agentes a preferirem a liquidez. Na crise, os capitalistas buscam formas

51
líquidas de manter os ativos, ao invés de formarem capital fixo que alimen-
taria a demanda efetiva. No cenário de crise, há uma profunda ruptura
das expectativas. Empresários e investidores passam a concordar sobre o
rompimento das convenções. Como efeito colateral, a política econômi-
ca perde força, especialmente a política monetária5, tornando a economia
presa à armadilha da liquidez. (AFONSO, 2012).
Essa armadilha se dá, conforme Keynes percebe, porque os indivíduos
têm certa preferência pela liquidez, isto é, eles cultivam uma expectativa
mental que conserva certa inclinação para conservar dinheiro líquido que
se traduz em detenção efetiva de moeda. O autor entende que os indiví-
duos têm preferência pela liquidez por pelo menos quatro motivos: (i) o
motivo-renda, isto é, a necessidade de garantir a transição entre o recebi-
mento e o desembolso da renda; (ii) o motivo-precaução, ou seja, o desejo
de segurança futuro de certa parte dos recursos totais serem garantidos no
presente; e (iii) o motivo-especulação, isto é, o propósito de obter lucros
por entender que o mercado lhe beneficiará no futuro; e (iv) o motivo-ne-
gócios, para assegurar o intervalo entre o começo das despesas e o recebi-
mento do produto das vendas (KEYNES, 1982).
Com efeito, o economista britânico entende que o consumo é o único
fim e objetivo da atividade econômica. As oportunidades de emprego de-
pendem da extensão da procura agregada. A demanda agregada só pode
ser derivada do consumo atual ou das reservas para o consumo futuro. O
emprego só pode aumentar à medida que o investimento também aumen-
ta, salvo se houver uma mudança na propensão a consumir. Havendo mais
consumo, aumentar-se-á o investimento. Por meio de um efeito multipli-
cador de investimento6, aumenta-se o emprego. Porém, em épocas de de-

5 “A política monetária, em particular, seria pouco eficaz na fase da incerteza radical porque, na
recessão, os juros perderiam a capacidade de operar como conseguiam quando ocorria uma
mera flutuação nas atividades econômicas” (AFONSO, 2012, p. 27).
6 Baseado na Teoria do Multiplicador de Richard Kahn (1931) que buscava quantificar as rela-
ções entre o estímulo do investimento e o emprego ao considerar que “um impulso de investi-
mento inicial tende a aumentar o emprego por ondas sucessivas de importância decrescente”
(GAZIER, 2011, p. 58).

52
pressão, essa lógica não ocorre, podendo ser necessário um investimento
considerável para se aumentar o emprego. (KEYNES, 1982).
O efeito multiplicador do investimento gerado pela propensão a con-
sumir torna-se maior quando o desemprego for mais severo do que quan-
do o pleno emprego estiver para ser alcançado. Dessa forma, a ação estatal
em períodos de depressão econômica difere de períodos de crescimento
econômico. É nesse sentido que Keynes (1982, p. 109) afirma que

Em tempos de desemprego rigoroso, as obras públicas, ainda que de


duvidosa utilidade, podem ser altamente compensadoras, mesmo
que apenas pelo menor custo dos gastos de assistência, desde que
se possa admitir que a parte poupada da renda seja menor quanto
mais intenso for o desemprego; porém a validade desta proposição
torna-se cada vez mais contestável à medida que nos aproximamos
do pleno emprego.

Dessa forma, Keynes entende que, em tempos de depressão econômi-


ca, gastos inúteis – por exemplo, o Estado enterrar garrafas e permitir que a
iniciativa privada em livre concorrência as desenterre – podem enriquecer
a comunidade, através da diminuição de desemprego e aumento do con-
sumo, por meio de um efeito multiplicador do investimento. De outra for-
ma, se há um estado de desconfiança econômica e consequente depressão,
o crescimento do capital é reprimido pela baixa propensão a consumir.
Medidas para redistribuir a renda e para aumentar o consumo podem ser
favoráveis ao aumento do capital.
A abstinência dos ricos quanto ao consumo mitiga o crescimento da
riqueza. Para aumentar o consumo, é necessário desestimular a poupança
ao se diminuir a taxa de juros para se elevar o número de empregos. Nesse
sentido, o Estado tem o recurso para manter uma poupança agregada a
ponto de gerar crescimento do capital até que a escassez desapareça. E ao
investir, o governo, pelo efeito multiplicador, coloca mais moeda em cir-
culação que propicia mais consumo (KEYNES, 1982).
A intervenção governamental deve se dar em um sentido de encurtar
o período de depressão econômica, ou seja, diminuir o tempo do ciclo

53
econômico em seu estado depressivo. Keynes percebe que as crises capita-
listas, que vão da fase ascendente para a descendente, têm uma transição
repentina, enquanto que da fase descendente para ascendente não se tem
uma transição célere.
Em momentos de depressão, o pessimismo e a incerteza sobre o fu-
turo, acompanhado de um colapso da eficiência marginal do capital, oca-
sionam um aumento da preferência pela liquidez e uma consequente ele-
vação da taxa de juros, havendo diminuição da circulação de moeda, e a
consequente queda no consumo que diminui a quantidade de empregos.
A preferência pela liquidez aumenta após o desmoronamento da efi-
ciência marginal do capital que afeta negativamente a propensão a consu-
mir. Nesse momento, nenhuma redução da taxa de juros basta para con-
trabalancear o colapso da eficiência marginal do capital. Surgem dúvidas
sobre a confiança no rendimento esperado. Assim, “o remédio consistiria
em tomar várias medidas capazes de aumentar a propensão a consumir
através de uma redistribuição da renda ou de um processo semelhante”
(KEYNES, 1982, p. 250). Essas medidas necessárias podem ser tomadas
pelo Estado.
Com efeito, Keynes sugere que o Estado assuma o investimento, tem-
porariamente, para reaquecer a economia. De forma que, por meio de um
efeito multiplicador, o investimento estatal inicial eleve a renda agregada,
criando um montante que aumente a demanda agregada e promova postos
de trabalho. Então, “é a preferência pela liquidez que torna instável uma
economia capitalista descentralizada e garante que suas oscilações ocor-
ram normalmente em torno de um nível de subemprego” (SKIDELSKY,
1999, p. 109).
Para o economista britânico, a principal causa da depressão é a inca-
pacidade de os capitalistas acharem oportunidades de investimento que
possam compensar os altos níveis de poupança gerados pelo crescimento
econômico e pela preferência pela liquidez (KUNT e LAUTZENHEISER,
2013).

54
Nesse cenário, é preciso acionar a política fiscal para injetar gastos e
dívidas na economia, a fim de se aumentar a circulação da moeda e a de-
manda agregada. Para Keynes, em meio à crise, é necessário retomar a
eficiência marginal de capital. Para tanto, deve-se reduzir a taxa de juros e
se expandir a política fiscal (ainda que se provoque déficit), elevando-se os
gastos em qualquer formato – gastos inúteis7 – para se gerar renda e em-
prego, e para reverter a ruptura das convenções econômicas. Mesmo que a
economia capitalista se recuperasse no longo prazo, através de seus ciclos,
a ação do Estado visava diminuir os danos da crise e diminuir seu tempo
de duração, já que “no longo prazo todos estaríamos mortos” (AFONSO,
2012).
Com efeito, ao passo que a ação do Estado gera mais déficit, deve-
-se financiá-lo por meio da emissão de títulos do Tesouro8, o que atende
a demanda dos poupadores da economia que não mais querem aplicar
em investimento e produção. Em suma, para enfrentar a diminuição da
demanda por ativos reais e o aumento da preferência por ativos líquidos,
Keynes propõe um tripé de gasto, déficit e dívida.
A intervenção do Estado aumenta a receita por meio do multiplicador
disparado pelo gasto público, cuja demanda e renda, a posteriori, eleva a
arrecadação do governo. Dessa forma, Keynes sugere que os gastos do go-
verno, tomados dos poupadores por empréstimos, financiem mesmo que
gastos inúteis, para se gerar mais renda e emprego9 (AFONSO, 2012).

7 “Mesmo que Keynes pudesse preferir o investimento governamental – que seria um gasto
útil à nação (por aumentar o seu estoque de capital físico) –, ele aceitava até o gasto inútil para
combater a grande crise. Em meio a uma situação excepcional – a da depressão –, seria preciso
aumentar o gasto público a qualquer custo” (AFONSO, 2012, p. 34).
8 “Ele pregava não apenas que o governo aumentasse o gasto, mas que isso fosse feito à custa
de maior endividamento. Este era necessário para equacionar a busca dos agentes econômicos
por novas opções de aplicação de seus recursos que atendessem a preferência por liquidez
exacerbada no ápice da crise” (AFONSO, 2012).
9 “Keynes defendia o déficit governamental e financiado por emissão de títulos como uma
ação deliberada visando fechar a equação do rearranjo na macroeconomia, de modo a resta-
belecer a confiança dos agentes econômicos até que fossem retomadas as condições normais
da economia. Em um cenário excepcional (o da Grande Depressão) caberia uma resposta go-
vernamental igualmente excepcional” (AFONSO, 2012, p. 42).

55
Portanto, a proposta de Keynes é a de que, em tempos de depressão,
quando a poupança supera o investimento, o governo tome por emprés-
timo o excesso de poupança e gaste o dinheiro em projetos in(úteis), de
forma a aumentar a capacidade produtiva da economia sem diminuir as
oportunidades de investimento futuros. Com os gastos do governo, têm-se
mais recursos que criam o equilíbrio de emprego.
O pensamento de Keynes não perdeu sua força e importância singular.
Com o colapso imobiliário norte-americano de 2008, crise dos subprimes,
o pensamento keynesiano voltou a ser objeto central de debates. Naquele
período de crise, o Estado deveria interferir na economia para abreviar a
depressão econômica.
Em The Return of the Master (2010), do biógrafo keynesiano Robert
Skidelsky, apresenta-se a relevância que ainda tem o pensamento de John
Keynes. O Estado deve dar um passo à frente na economia, enquanto esta
retrocede. O pensamento de Keynes se apresenta relevante no enfrenta-
mento da pandemia de COVID-19.

4  O papel Dos Estados Latinos em tempos de covid-19

Em recente relatório, Estudio Económico de América Latina y el Ca-


ribe, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL)
estimou que a contração do PIB da América Latina e do Caribe, em 2020,
chegará a 9,1%. Essa é a pior crise econômica do presente século. Esse re-
trocesso no PIB levará a América Latina aos níveis de 2010. Nesse cenário,
o desemprego poderá atingir 44 milhões de pessoas, representando um
aumento significativo ao se comparar com 2019. A pobreza poderá alcan-
çar os níveis de 2005, enquanto que a extrema pobreza poderá atingir o
patamar da década de 1990.
Ao longo de todo o relatório da CEPAL, prevê-se a necessidade de os
Estados latinos e do Caribe adotarem medidas macroeconômicas anticí-
clicas. Sugere-se que os Estados atuem no sentido de garantir a estabilida-

56
de financeira por meio do fortalecimento de receitas públicas, ampliação
de políticas monetárias, e regulação do fluxo de capital.
Nesse contexto de crise pandêmica do COVID-19, o pensamento de
Keynes sobre o papel do Estado em momentos de depressão econômica
tem relevância. Para o economista britânico, em períodos de depressão, é
preciso que o Estado atue para ativar a economia por meio de investimen-
to público e de políticas públicas que gerem demanda agregada, aumen-
tando o consumo e a oferta de empregos. É possível extrair do pensamento
keynesiano implicações para tomadas de decisões econômicas face às con-
sequências econômicas da COVID-19 no contexto latino.
A atual crise pandêmica já tem gerado desemprego involuntário. Com
a perda do faturamento das empresas em cumprimento ao isolamento so-
cial, muitos funcionários já foram ou serão demitidos. Consequentemen-
te, haverá no mercado mais mão de obra que emprego. O excesso de oferta
de mão de obra ocasiona, nos termos keynesianos, desemprego involun-
tário. Isto é, haverá um maior contingente de trabalhadores em busca de
emprego sem encontrá-lo.
A perda de emprego ocasiona a diminuição do consumo que, por sua
vez, arrefece a confiança privada para investimento. Visto ser o sistema
capitalista sustentado no consumo, tal cenário poderá aprofundar a de-
pressão econômica. Somam-se a isso os montantes de poupança acumu-
lados que representam a não circulação de moeda e a consequente dimi-
nuição do consumo. Nesse contexto, o investimento privado permanece
estagnado.
Conforme postulava Keynes, em momentos assim, é preciso que o Es-
tado aja para diminuir os impactos da crise econômica. A atuação estatal
deve se dar no sentido de aumentar o investimento, o consumo, e o conse-
quente emprego. O Estado pode usar de gastos inúteis, aqueles gastos que
não causam necessariamente consequências úteis em termos de produtos
e serviços, mas fazem circular moeda gerando um consequente efeito mul-
tiplicador da demanda.

57
Esse efeito se dá à medida que o Estado investe certa quantia por meio
de investimento público, p. ex. obras públicas, ou políticas públicas, in-
centivando a ação dos investidores privados no sentido de diminuírem
suas poupanças e investirem. Tal movimento multiplica o valor inicial in-
vestido pelo Estado ao fazer que novas demandas consumeristas surjam,
abrindo vagas de emprego e aumentando, posteriormente, o recolhimento
de impostos.
Além de injetar moeda na economia, o Estado deve desestimular a
poupança por meio de baixas taxas de juros para que possa incentivar que
os agentes privados invistam. Ademais, o Estado pode aumentar o inves-
timento público que induza a aplicação de recursos privados, mesmo que
se aprofunde, temporariamente, o déficit orçamentário. Pois o Estado, em
tempos de depressão econômica, deve atuar de forma anticíclica, a fim de
diminuir o tempo e o aprofundamento da crise de demanda e de oferta.
Se os entes privados não podem investir e movimentar a economia, é
necessário que o Estado o faça. Portanto, é preciso que os Estados latinos
atuem para ativar a economia por meio de investimento público e de po-
líticas públicas que gerem demanda agregada, aumentando o consumo e a
oferta de empregos em meio a atual crise pandêmica.

Referências
AFONSO, José Roberto Rodrigues. Keynes, crise e política fiscal. – São
Paulo: Saraiva, 2012.
Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL). Es-
tudio Económico de América Latina y el Caribe. 2020 (LC/PUB.2020/
12-P), Santiago, 2020. Disponível em https://repositorio.cepal.org/hand-
le/11362/46070. Acesso em 14 de dezembro de 2020.
GAZIER, Bernard. John Maynard Keynes. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. –
São Paulo: Atlas, 1982.

58
KUNT, E. K.; LAUTZENHEISER, Mark. História do Pensamento Econô-
mico: uma perspectiva crítica. – 3. ed. – Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.
SKIDELSKY, Robert. Keynes. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.

59
IV

DISPUTAS IMPERIALES: MIRARES


DE LA PANDEMIA COVID-19 DESDE
CENTROAMÉRICA
Óscar Barboza Lizano1

La pandemia COVID-19, ha sorprendido al mundo en marzo del


2020. El impacto más duró no son los miles de muertos que este virus ha
cobrado por su paso en el globo. Aunque, debemos recalcar que cualquier
vida humana que se pierde es una desgracia. Decíamos que el impacto, sin
duda, es al sistema mundo capitalista conocido. Después de la pandemia
del 2020, saldremos de nuestros encierros a un mundo diferente. La pre-
gunta es: ¿cómo será?
Mirando la pandemia desde Centroamérica, debemos echar atrás
nuestro mirar. Ya que los antecedentes de esta, como muchos ya lo han
afirmado, están en la guerra comercial entre un Imperio decadente2 y un
Imperio emergente3. El analista Daniel Estulin planteaba: “Estamos vi-
viendo el fin del capitalismo, una crisis sistémica planetaria” (23 de abril,
La razón) en una entrevista al diario La Razón de España. Algo que ya
se había planteado antes de la pandemia por: John Saxe, Noan Chomsky,
Caros Taibo, Arturo Escobar, Anna Lowenhaupt, David Harvey, Terence
Hopkins e Immanuel Wallerstein, entre otros.

1 Académico Universidad Nacional de Costa Rica. Facultad de Artes Liberales, Universidad de


Varsovia, Polonia. Presidente Fundación Prof. Andrzej Dembicz.
2 Debemos entender como Imperio decadente: Estados Unidos de Norte América.
3 Debemos entender como Imperio emergente: República Popular de China.

60
Muchos de estos planteamientos se hicieron con el 911 del 2001, y la
crisis del 2008 en el sistema financiero. Aunque, considero que es 911 del
2001 el más simbólico como punto de partida. Ese evento responde a la
necesidad de darle un respiro a la crisis de los EE.UU, y su agotamiento
hegemónico. Es simbólico porque el 911 de 1973, se iniciaba el plan piloto
para poner en práctica en un Estado de América Latina, las ideas de Fre-
derick Von Hayek y la sociedad Mont Pelerin.
A finales del 2019, la meca del neoliberalismo colapsaba. De todas
partes llegaban los manifestantes que demostraban el inicio del fin del
neoliberalismo en la misma capital que lo vio imponerse y exportase al
mundo. Hayek, decía que la única forma en que el libre mercado funcio-
nará era mediante una dictadura, mientras daba sus asesorías al gobierno
dictatorial del general Pinochet. Es decir, la llegada de la “democracia li-
mitada” a Chile, demostró que Hayek tenía razón. A saber, mediante una
democracia sus ideas serían imposibles de mantener.
Recordamos aquella imagen emblemática en Santiago de Chile con la
bandera Mapuche ondeando en lo más alto de la insurrección, significa
el símbolo de libertad y de un Chile que despertó. Aquella fecha para no
olvidar debe entrar a los anales de la historia. El 25 de octubre del 2019,
se tomaba esa fotografía por la actriz Susana Hidalgo. Al fondo la meca
del neoliberalismo ardía. Esta imagen fue comparada con la pintura de
Eugène Delacroix de 1830, en conmemoración a la sublevación de 1830,
conocidas como las tres jornadas gloriosas. Al igual que en París de 1830,
en Chile (2019), no existía un solo líder, la libertad es el símbolo. Una li-
bertad descolonial, que no solo intenta enterrar el capitalismo neoliberal y
sus consecuencias de desigualdad, sino que la bandera Mapuche represen-
ta esas revoluciones que intentan acabar con el sistema mundo impuesto
desde el siglo XVI.
Un año después que Chile despertó, siguiendo las “teoría del domino”
atribuida a Eisenhower, cuyas raíces están en Mackinder, la insurrección
llega a Centroamérica, entrando por Costa Rica. La Costa Rica del pura
vida para unos pocos y que en el año 2007, acogía el modelo neomargina-

61
lista como su solución e iniciaba una profundización del modelo de Ha-
yek. La otra Costa Rica, la de la Costa pobre despierta. Un despertar que la
pandemia solo retardó por algunos meses.
Parafraseando a Estulin, este decía al diario La Razón que, en dos mil
años solo habían ocurrido dos procesos similares al que estábamos por
entrar con la pandemia y la postpandemia. “La primera fue entre el si-
glo IV y VI cuando apareció el feudalismo. Y el segundo momento vino
con el nacimiento del capitalismo a partir del siglo XIV.” (Estulin, 2020).
Entonces, aunque, muchos dicen que no hay que hacerle caso a Estulin,
coincidimos en que estaríamos viviendo un momento histórico, es una
encrucijada para la humanidad.
Retomando el octubre del 2019, a inicios de ese mes, nos reuníamos
una serie de latinoamericanistas para debatir sobre nuestra América.
Como es costumbre en la Universidad de San Petersburgo, reunión bienal,
que se va convirtiendo en el cónclave más importante del latinoameri-
canismo mundial. Así, en el IV Foro Internacional Rusia e Iberoamérica
en el mundo globalizante. Historia y perspectivas: se discutió mucho sobre
las relaciones entre América Latina y China, cuya principal plenaria la ha
impartido el profesor Enrique Dussel Peters, sin duda, una magnifica con-
ferencia. Allí se plantaba que la siguiente fase de la guerra comercial entre
los EE.UU y China, estaba por iniciar, por lo cual en pocos meses esta-
ríamos en medio de guerras de baja intensidad. Conociendo de historia,
todos acentuamos que esa etapa seguiría, y que los posibles escenarios de
guerra de baja intensidad sería una desestabilización con el financiamien-
to de grupos armados desde el Imperio decadente contra el gobierno de la
República Bolivariana de Venezuela, la guerra civil que se impulsaría en
Bolivia por la reelección de Evo, y el continuar desestabilizando la Repú-
blica de Nicaragua, entre otros frentes que se abrirían en Asia y Oriente
Medio.
Un año después observamos como el efecto domino que ha iniciado la
agonía del modelo neoliberal global, nos permite ver un triunfo mediante
la vía democrática en Bolivia de Luis Alberto Arce Catacora, candidato

62
del Movimiento al Socialismo (MAS) y al cual se le ha llamado el delfín
de Evo Morales y Álvaro García Linera. El reciente 18 de octubre del 2020,
hemos visto como después del golpe de Estado dado contra Evo Morales,
en octubre del 2019, el MAS con casi el 53 % de los votos en las urnas
logra una victoria contundente frente a los que pretendía la restauración
neoliberal-NEOCON4.
De lo anterior es importante recordar que en el II foro en San Peter-
sburgo en el 2015, el profesor Horacio Cerutti Guldberg, planteaba en la
mesa dirigida por el profesor Yamandú Acosta, -parafraseándole- cuando
la bestia está herida es cuando más peligrosa se vuelve. Continuaba Cerutti
alegando que estábamos en un proceso de transición imperial. Decía vehe-
mente Horacio que, esos procesos de transición siempre eran catastróficos
y este no sería la excepción. Incluso, vendría cambios políticos en América
Latina. Como hemos sido testigos eso sucedió y se dieron transiciones de
los gobiernos nacional progresistas por elecciones, los intentos golpistas
y/o golpes de Estado aprovechando la “judicialización de la política.”
Las disputas entre el Imperio decadente y el Imperio emergente en
tiempos de transición, llevaron a ambos a establecer políticas para asegu-
rar sus áreas de influencia. Así en el Oriente, China popular se convirtió en
el árbitro entre las Coreas y disputó y construye islas para extender su zona
de seguridad marítima. Por su parte en Occidente los EE.UU, iniciaron
una ofensiva para remover por todas las formas posibles a los gobiernos
nacional progresistas que se suaviza con la pandemia y la crisis interna
política durante los meses de campaña electoral.
El Imperio emergente, inclusive, buscó en algún momento asegurar la
ruta comercial con la construcción del gran canal interoceánico en Nica-
ragua. Recordemos que Hernán Cortés le decía a su emperador Carlos V:
el que controle la ruta comercial de la mar del sur y la mar del norte será el
dueño del mundo. Durante el siglo XX, Panamá le otorgó ese privilegió a

4 Neoconservadores asociados al fanatismo religioso.

63
los Estados Unidos. Este, siguiendo a Cortés, se convirtió en el dueño del
mundo.
Dentro del proyecto del gran canal interoceánico de Nicaragua, apare-
cía otro actor en la disputa global; un aliado al multipolarismo y miembro
fundador de BRICS. Así, el gran oso parece que está destinado a convertir-
se en la nueva policía del mundo. Por consiguiente, Rusia daría la seguri-
dad del gran canal de Nicaragua. (Jeifets & Adrianova, 2017). Sin embargo,
como nos los indica Jeifets & Adrinova, la relación es pragmática y no
ideológica como en el pasado.
De lo anterior se desprende que el dominio y disputa por Mediterrá-
neo americano, a saber, el Caribe y el Golfo de México, son los medios para
consolidar ese eje multipolar en las narices mismas del Imperio decadente.
De allí que las inversiones en el mega puerto del Mariel, más el gran canal
interoceánico en Nicaragua, son clave en la disputa por la hegemonía mun-
dial. Sin embargo el canal por Nicaragua una vez más queda pendiente,
junto a los otros proyectos de canales secos en el Istmo centroamericano.
Está el Caribe en disputa. Las disputas por el dominio de las rutas
comerciales y la posesión de la Córcega y la Sicilia del Caribe y la dis-
puta de la potencia energética de Occidente, definirán la nueva hegemo-
nía. Por lo que en el fondo las inversiones en infraestructura y seguridad
desde BRICS, han buscado generar nuevos centros de poder en vías del
multipolarismo.
Dado esos antecedentes, tenemos que entender algunos aspectos im-
portantes que nos expusieron Andrés Serbin presidente de CRIES, Carla
Oliva de la Universidad de Rosario y Gonzalo Paz de la Universidad de
Georgetown, en un foro organizado por el profesor Luis Fretes, vía zoom.
Estos proponen que la pandemia y las relaciones América Latina – China,
deben analizarse en tres dimensiones: 1- política diplomática, 2- liderazgo
de gobernanza global y 3-la dimensión comercial.

64
LOS MOVIMIENTOS DIPLOMÁTICOS, LA DISPUTA POR EL LIDE-
RAZGO, GOBERNANZA Y EL COMERCIO GLOBAL.

Los movimientos diplomáticos

Desde la primera década del siglo XXI, la República Popular de China


realiza una ofensiva diplomática, la cual trabaja en esfuerzos por lograr un
establecimiento de relaciones políticas, comerciales y contratos de infraes-
tructura con todos los países a nivel global. El propósito tiene que ver con
la consolidación del bloque BRICS, el cual es construir la multipolaridad
que equilibre las fuerzas hegemónicas y establezca una nueva gobernanza
global. De esta manera, se iniciaron en América Latina una serie de apoyos
sur-sur, y cooperación para establecer estas relaciones diplomáticas con el
gigante asiático.
Para entender mejor lo anterior habrá que remontarse al año 1996 y
estudiar a fondo la política exterior desarrollada por Yevgueni Maksímo-
vich Primakov (1929-2015) para Federación Rusa. Aunque, sólo estuvo 2
años como Ministro de Asuntos Exteriores de Rusia. Primakov, se formó
en el Instituto de Estudios Orientales de Moscú y en Economía en la Uni-
versidad Estatal de Moscú. Lo que le permitió virar su mirar. Por lo tanto,
propuso como bastión alternativo a las crisis que vivía Rusia, valerse y
generar un triángulo China-India-Rusia y así iniciar un nuevo centro del
mundo. Un nuevo centro de poder. Ese nuevo centro de poder formado
lo viene a aprovechar China desde el año 2000 (Paz, 2020). A partir de
allí, se desarrolla, una diplomacia China en defensa de los bienes públicos
globales, el uso de los mares5, el respeto a la soberanía de los países, la no
injerencia y el derecho a la autodeterminación de los pueblos.
Las condiciones de las nuevas relaciones de cooperación y diplomacia
se manejan en primero desconocer a la República de China (Taiwán) y
posteriormente iniciar los otros acuerdos planteados en la mesa según la

5 Lo que nos recuerda la necesidad de retomar grandes clásicos como la obra de Braudel,
Mediterráneo y otros escritos de este autor. Además, la obra de Geoffrey Till con el poder de
los Espacios y el poder marítimo.

65
particularidad de cada país. De esta manera poco a poco se fue avanzando
en alcanzar una relación con muchos países que son parte de la gran in-
fluencia de los EE.UU. Logrando desplazar a Taiwán de la región latinoa-
mericana. Este movimiento diplomático no llegó a preocupar mucho al
Imperio decadente hasta el 13 de junio del 2017, día simbólico, en que se
reanudan las relaciones entre la República Popular de China y la República
de Panamá. Lo menos que podía suceder, ya que la República Popular de
China, se ha convertido en el segundo usuario con más tránsito de buques
comerciales por el canal panameño.
Por lo tanto, era necesario la oficialidad de las relaciones diplomáticas
y el establecimiento de acuerdos de cooperación, sobre todo, en materia de
seguridad entre el gigante asiático y el país canalero. Para Serbin, y como
bien afirma de mera especulación, eso generó un sisma en el triángulo es-
caleno. Lo que prefiero llamar: tríada China- Latinoamérica- EE.UU. Pa-
reciera que la potencia oriental valoró, después del intento fallido del canal
interoceánico por Nicaragua, que era mejor aprovechar el ya existente y
mover sus fichas en el tablero del Mediterráneo americano.
Las condiciones de pandemia y postpandemia, hacen que las relacio-
nes de China con América Latina, avancen en donaciones de equipos para
hacer frente al Covid19 y que se adquieran ciertos compromisos:
1. desde la producción global se regrese a satisfacer algunas materias
primas al gigante asiático desde el subcontinente.
2. desde la política diplomática dar apoyo a los orientales en las orga-
nizaciones internacionales y otros espacios donde los necesite.
3. desde la cooperación, finiquitar contratos de infraestructura me-
diante los préstamos y construcción de “llave en mano” que ofrecen
los asiáticos.
Todo una política exterior de solidaridad y avances en puntos concre-
tos. Sin embargo, el gobierno chino y sus gerentes empresariales, se han
encontrado con el tan odioso estereotipo o realidad del “mañana” por par-
te de sus homólogos latinoamericanos. A saber, como Dussel Peters lo ha

66
dicho: “Los que se tardan mucho en decidir son los gobiernos latinoame-
ricanos para cerrar contratos y negocios con las empresas chinas” (2019).
Postpandemia dudamos mucho que esa lentitud para tomar decisiones y
finiquitar negocios con el gigante asiático, pueda cambiar. Esto por la vo-
cación de servicio a Washington tan inculcado en la mayoría de las pocas
escuelas diplomáticas latinoamericanas.
La vocación del servicio a Washington, no les permite ver con clari-
dad que los EE.UU, retrocede en los países de América Latina, y que este
ya no tiene nada que ofrecer. Se ahoga en muertos por la pandemia, y la
campaña política interna revela el pésimo sistema de salud pública que
poseen. Por lo tanto, se corre la cortina del error republicano por el cierre
del “Obamacare”. El modelo capitalista de salud es el más debatido en estos
momento en el Imperio decadente. De allí que, no es de sorprenderse que
ambos precandidatos demócratas coincidieran, de llegar a la Casa Blanca,
en crear un sistema social de salud. La contienda entre republicanos y de-
mócratas está por definirse, Trump antiglobalización se enfrenta a Biden
al último representante de los demócratas de centro que se aliaron a los de-
mócratas conservadores y que creen en el expansionismo y globalización
para mantener la hegemonía estadounidense. Después de esta elección la
izquierda más progresista del partido demócrata asumirá el control del
Burro. Por lo cual, sin duda, habrá un radical cambio que podría acelerar
el desgaste hegemónico del Imperio decadente.
Por su parte en América Latina, los países no logran unificar y crear
políticas comunes tanto para la región como para las negociaciones con el
gigante asiático o Unión europea. La “atomización” como le llama Serbin,
lleva a los países de Latinoamérica a pensarse poco solidarios y establecer
lo que él llama “sálvese el que pueda” (Serbin, 2020). Es decir, existe una
política exterior de naufragio por parte de los países de subcontinente.
Desde el 2004, la ofensiva diplomática de la República Popular Chi-
na se basa en una narrativa por el desarrollo del pacífico, y la promoción
de los Institutos Confucios por el mundo. La narrativa en la gestión di-
plomática de China popular, se enfoca en la gobernanza global. La nueva

67
diplomacia de la República Popular de China espera las oportunidades es-
tratégicas que hacen que esta se vea proactiva, pragmática y protagonista.
A saber se centran en realizar propaganda muy bien estructurada de los
aportes chinos a la humanidad.
Además como sostiene Karla Oliva los diplomáticos utilizan activa-
mente las redes sociales para defender y dar a conocer sus ideas y opinio-
nes en los países que están de misión. Por su puesto, todo dirigido a una
rentabilidad y mejor vivir del colectivo chino. Es la praxis del “soft power”
(poder blando).
La tendencia es precisamente, lo que Horacio Cerutti (2015), denomi-
naba en San Petersburgo como época de transición. Transición que mu-
chos veíamos como única en la historia de la humanidad. Para nosotros la
transición parecía pacifica; según lo visto en el Foro Económico de Davos
2017. Allí un nuevo líder asumía la defensa del libre mercado y la globali-
zación, por su parte el líder del Imperio decadente no participaba de este
foro del 2017. Incluso, con el inicio de la llamada “guerra comercial”, pare-
cía como que la famosa gran guerra caliente no se iba a desarrollar entre el
Imperio que consolida una nueva hegemonía mundial multipolar y el que
dejaba la silla del soberano imperio global.

La diplomacia de la solidaridad pandémica

El COVID19, ha tratado de dañar la imagen de China popular. Sin


embargo, la estrategia del gigante asiático es más fuerte y han logrado,
incluso, revertir esa imagen con una diplomacia, agresiva, asertiva y fuer-
te. La cooperación solidaria y los donativos a los países para enfrentar la
pandemia por parte de Beijing (Pekín), han logrado construir una imagen
de más inversión interna en salud y en lo internacional de comunidad hu-
mana y solidaridad con todos los países del globo.
La narrativa china de la cooperación se basa en lograr la confianza
política, crear vínculos culturales y tratar de cerrar acuerdos entre comu-
nidades supranacionales. Por ejemplo entre La república popular de Chi-

68
na y la Comunidad de Estados Latinoamericanos y Caribeños (CELAC),
esto se ha presentado desde la declaración de Santiago, Chile. En esta, se
acordaron dos aspectos fundamentales: 1-cooperación cultural y 2-coo-
peración en seguridad. Este último siempre enciende las alarmas de Was-
hington como ha sucedido con el caso de la cooperación bilateral China
popular-Panamá.
De lo anterior esa cooperación en seguridad ha generado declara-
ciones por parte del representante de la Casa Blanca, John Bolton que ha
dicho: “América Latina no necesita nuevas potencias coloniales”, y cuya
respuesta ha sido por parte de Pekín: “América Latina No es propiedad de
ningún país ni tampoco es el patio trasero de ningún Estado”, hechas por
Geng Shuang, porta voz de la cancillería de la República Popular de China.
Así las tenciones entre los imperios que disputan la hegemonía mundial
tienen connotación en frases históricas, ya conocidas en la región.
Coincidimos con los planteamientos de Gonzalo Paz de la Universi-
dad Georgetown que en 500 años las disputas por el poder son de larga
duración, siguiendo a Braudel. Por lo que habrá que estudiar esos 16 cam-
bios de poder o transiciones de poder en estos 528 años. De esta manera
podremos entender mejor lo que ocurre para encontrar una salida post
pandemia para América Latina. Para Paz, el análisis debería ir por “Power
is back” “Power is King”. (Paz, 2020). Sin embargo, podrían verse otros
prismas desde esta premisa. Siempre, respetando la larga duración. Lo que
nos podría llevar a respaldar a Estulin.
La premisa del “Power is back” (El poder está de regreso), se funda-
menta con la reactivación de la doctrina Monroe, derogada por el presi-
dente Barack Obama, la cual fue restablecida en el 2017 por la adminis-
tración Trump. Por lo cual EE.UU, reconoce abiertamente como enemigos
a China y Rusia. Así en el 2020 se reactiva el Comando Sur (USSOUTH-
COM) mucho más agresivo y se incrementa el patrullaje tratando de hacer
una demostración de poder en la región latinoamericana. Sin embargo, los
fallidos intentos de invasión a Venezuela, con la complicidad de Colombia,
la humillación persa-bolivariana al Comando Sur y a la doctrina Monroe,

69
así como la derrota electoral de los NEOCON en Bolivia, por parte de la
WIPHALA, establecen nuevos posibles escenarios para una América La-
tina que retomé lo pendiente de los gobiernos nacional progresistas, que
deben ya definirse y centrarse en el papel desde una política común con el
establecimiento de la nueva y ampliada Ruta de la seda.
Para muchos, como ya lo hemos descrito, la transición del poder es
traumática. La cual provoca una “globalización bifronte” (Paz, 2020), pro-
ducto de la pandemia. Por un lado el COVID19, con aislamiento social,
burbujas sociales, poco contacto humano y aeropuertos que se activan len-
tamente. Por otro lado un exceso de conexión virtual en lo local, regional y
global, lo cual legitima el uso selecto de la tecnología 5 G.
Lo anterior, sin duda, pone unos puntos al haber del Imperio emer-
gente. Recordemos el conflicto de “geopolítica 5 G”, generados por la em-
presa Huawei, que es la que más contratos tiene y lidera el cambio al 5
G. Conflicto que en el año 2019, recrudeció la guerra comercial entre el
Imperio decadente y el Imperio emergente. Ganando en esa ocasión la
batalla Pekín con la amenaza de no exportar más tierras raras a los EE.UU.
Este conflicto produjo el arresto de Meng Wanzhou en Canadá y que se
encuentra bajo prisión domiciliar tratando de evitar la extradición a los
Estados Unidos, por su parte como respuesta la República Popular China
ya imputó a los dos espías canadienses Michael Kovrig y Michael Spavor
arrestados, también en el 2018.

Derechos Humanos y gobernanza global

Para Carla Oliva y Gonzalo Paz, la mirada de los derechos humanos


en China es muy distinta al mirar occidental. Incluso, como se enfatizó
en letras anteriores el manual ideológico radica en las máximas confu-
cianas especialmente en el principio de armonía y no hagas a otros lo que
no quieres para ti mismo. Así como en los escritos y enseñanza védicas.
Recordemos que, Mao, basa su revolución agraria en la idea de la orga-
nización agraria del Kalpulli Azteka, en el funcionamiento social eficaz
y la solidaridad comunitaria en grupos familiares de costumbres para la

70
supervivencia de la sociedad. Ya que lo individual debe ajustarse al bien
común. Algo que debemos estudiar a fondo partiendo de los que Humber-
to Bertolini Miranda, plantea en sus libros.
La polémica que se genera en torno a los derechos humanos, no es
más que una confrontación de la visión occidental frente a la visión asiáti-
ca de los derechos humanos, algo que el Occidente colonial no termina de
entender. Esta ignorancia Occidental es consecuencia del adoctrinamien-
to que el cuarto poder hace en el imaginario civilizatorio occidental. Así, la
visión asiática de los derechos humanos, como bien lo recalca la profesora
Carla Oliva, se basa en tres nociones básicas para el primer derecho hu-
mano fundamental:
1. derecho a la vestimenta
2. derecho a la alimentación
3. el derecho a la vivienda
De lo anterior, se desprende que China popular se basa en satisfacer
y garantizar a su población esos tres aspectos del primero de los derechos
humanos desde la visión oriental. La república popular de China, defiende
la visión asiática de esos derechos humanos como eje primordial de su
sociedad y reclama su derecho a tener su etapa de industrialización, de la
misma forma que la tuvo Occidente.
En estas etapas de transición imperial vemos como incluso las orga-
nizaciones que permiten ir estableciendo una nueva gobernanza global
viven la transición. Una evidencia de ello es que la diplomacia multipolar
logró que en la Asamblea de la Organización de Naciones Unidas (ONU),
votó por el ingreso al Consejo de Derechos Humanos de la ONU por las
“altas civilizaciones” y la Sicilia del Mediterráneo americano es decir, la
República Popular de China, la Republica de Cuba y la Federación Rusa el
pasado martes 13 de octubre del 2020.Todos los movimientos diplomáti-
cos en medio de la pandemia COVID 19 y la llegada de la segunda oleada
del virus a Europa.

71
PANDEMIA Y POST-PANDÉMICO. CENTROAMÉRICA, EL CARI-
BE Y SU PAPEL EN EL COMERCIO GLOBAL.

El papel de Centroamérica y el Caribe en medio de esta guerra bilógica,


como etapa posterior de una guerra comercial entre un Imperio decadente
y un Imperio emergente es de larga data. Se trata de estar una vez más en
medio de aquel que desea asegurar la ruta comercial para consolidar su
hegemonía. El dato que tenemos nos dice que por el Canal de Panamá
pasa el 6 % del tráfico de mercancías comerciales globales. Y se necesitan
más rutas en el Istmo por lo que se proyecta un aumento. Sin embargo,
está claro que el principal rubro es el querer hacer valer los acuerdos de
cooperación en materia de seguridad. A saber, asegurar el espacio del mar,
es decir, el Mediterráneo americano y la iniciativa del desarrollo Pacífico.
Algo muy importante es garantizarse el uso permanente del canal de Pa-
namá y la seguridad de sus mercancías al transitar por este, China popular
es el segundo usuario del canal, por lo que estar allí es toda una necesidad
en medio de guerra comercial y biológica. Por supuesto esto con el interés
a futuro de lograr concretar el megaproyecto de la Ruta de la Seda.
De lo anterior, se entiende porque la diplomacia de la China popular
se ha preocupado por lograr que 19 países de la región latinoamericana
se suscribieran a la iniciativa. Es un acto simbólico. El golpe que generó el
sisma es, sin duda, el del 13 de junio del 2017. Entonces, siguiendo a Paz, la
disputa por el poder “is back”. Este aspecto debería unir a los centroameri-
canos y proponerse el abrir más rutas comerciales de este a oeste, canales
secos, el canal interoceánico de Nicaragua e incluso, crear una infraestruc-
tura de rutas de súper carreteras y vías férreas de norte a sur con el objetivo
de hacer valer su condición de Istmo, quizás el más importante del mundo.
Como bien lo hemos estudiado el poder se basa en el dominio del
espacio que ayuda a tener el dominio tecnológico, donde la trasferencia de
datos es fundamental en el ecosistema tecnológico-financiero global que
consolida el comercio global. Podrían los países centroamericanos aprove-
char la transición y construir la infraestructura pendiente para que el Ist-
mo cumpla su papel histórico-geográfico en el concierto de las naciones.

72
REFLEXIÓN COMO BÚSQUEDA DE APERTURA A MÁS DEBATE.

Europa, está rezagada y busca su lugar en esa reconfiguración mul-


tipolar del poder. Rusia, busca su lugar o ya lo tiene desde la visión del
mundo multipolar del poder. América Latina y el Caribe, ni se percatan
de que habría que buscar su lugar y mucho menos Centroamérica. Las
disputas del poder tienen grandes repercusiones en una América Latina
desunida, la cual debería retomar los proyectos pendientes y repensarse
como un bloque de bloques como lo planteaba Simón Bolívar en la Carta
de Jamaica desde 1815. Además, debemos releer la conferencia de París del
22 de junio de 1856, cuando nos bautizaba Francisco Bilbao, como Amé-
rica Latina. Decía: “vemos a Panamá vacilar suspendida, mecer su destino
en el abismo y preguntar: ¿seré del Sur, seré del Norte? (Bilbao, 1856). Hoy,
sin duda , preguntamos: ¿será del Oriente, será del Occidente ?
Se debe insistir en la unión latinoamericana para enfrentar cualquier
tipo de imperialismo y poder lograr como bloque latinoamericano lo me-
jor para los pueblos de nuestra América. La búsqueda de la confederación
deben ser los derroteros del futuro en medio de una guerra biológica, la
cual una vez más no es nuestra guerra. Ya se vislumbran esperanzas en
nuestra Abya Ayala, con el retorno de la Wiphala, y el despertar de los
pueblos del cóndor.
La pandemia nos encerraba. Y aparecía nacionalismos arcaicos, los
gobiernos centroamericanos se disputaban entre sí, cuál ha tenido el mejor
manejo de la pandemia. Los encierros se terminan no desde la oficialidad,
sino desde la legitimidad de los pueblos que despiertan, incluso hasta los
pueblos considerados más dóciles como el de Costa Rica se levanta frente
a los malos gobiernos y el colapso sistémico que ya es insostenible.
La estrategia de entretenimiento a la población despertando el orgullo
nacional de ser mejores que los vecinos comenzó a desgastarse y cae tan
fuerte como la lluvia del otoño del 2020 en el hemisferio norte. El Estado
totalitario como lo ha planteado el profesor Antonio Colomer Viadel en el

73
diario: “La hora de mañana”. Siguen presentes como amenaza a la realidad
centroamericana y global.
Las fuerzas internas en los países centroamericanos nos reflejan una
disputa entre dos modelos: el Estado Keynesiano o el continuar por el
odioso sistema colapsado del neoliberalismo. El aislamiento, pareciera que
revelo un problema mental de las élites para gobernar y le permiten al gran
capital buscar el acabar con todo vestigio de un Estado social, repartirse lo
que queda y acumularlo en los paraísos fiscales. Sin embargo, la población
consciente clama por más Estado con seguridad social y sobre todo que
sea solidario.
Reinician los despertares que desde Santiago de Chile en el 2019
clamaban por una justicia social. La insurrección puesta a la marcha en
Costa Rica pone a pensar a muchos en la encrucijada que enfrenta una
vez más la humanidad: retornar a un sistema feudal o profundizar cami-
nos de la construcción social solidaria con el bien colectivo como ideal se
confrontan.
Las poblaciones ni se percatan que la guerra bilógica y futurista ha lle-
gado, que las literaturas de ciencia ficción parecen más escritos de profetas
cuyas predicciones se han cumplido. Por ejemplo, “Los ojos de la obscu-
ridad “ de Koontz publicada en 1981, y que habla de la pandemia que se
desata por la enfermedad Wuhan 400, desde la ciudad de Wuhan, China.
Precisamente, la ciudad donde quisieron hacer creer que apareció el virus.
Esta obra obtuvo el reconocimiento por la Revista Time de ser el “best se-
ller” nº 1 de esos años. Otro de estos “best seller”, que llama la atención es
la obra de Sylva Browne, “End of days”, la cual dice que iniciaría en el 2020,
una pandemia que causaría serios problemas en las vías respiratorias. Na-
die se pregunta: ¿por qué el actual escenario ya había sido diseñado? Es el
mismo formato que se encuentra en los guiones de películas y libros de
ciencia ficción, el objetivo: normalizar en la población mundial por medio
de la industria cultural occidental el Estado de excepción global. Sin em-
bargo, este Estado no se impondrá sin que los pueblos hagan resistencia.

74
Este anterior y simple hecho, debería abocarnos a una reflexión pro-
funda de nuestra razón humana para una transformación honda de cons-
ciencia. La transición no llegará postpandemia, los cambios serán en Oc-
cidente asimilados con naturalidad, entre ellos la democracia funcional
occidental virará hacia el modelo exitoso del socialismo de mercado, don-
de incluso, la era del partido único habrá llegado. El problema que sin
un proceso profundo de revolución cultural como el que vivió el gigante
asiático. Podría llevarnos por un camino desastroso para los pueblos de
la nueva Abya Ayala, ya que la estructura del nueva de organización polí-
tica en América Latina no servirá al colectivo y al bien común, sino a las
mismas élites que se ajustarán muy bien a ese nuevo orden político que
llega desde oriente. Y al cual le sacarán provecho una vez más llevando a
la América Latina rumbo a una especie de novus-feudalismo-postpandé-
mico. Este escenario pesimista solo lo podrán evitar los pueblos en resis-
tencia permanente.

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Video conferencia
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76
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turo de las relaciones Chinas y América Latina. <https://us02web.zoom.
us/j/4632544061>.

77
PARTE II

PANDEMIA E POLÍTICA:
OLHARES LOCAIS

78
V

TIEMPOS DE PANDEMIA:
CORONAVIRUS EN ARGENTINA
Bruno Sancci1
Karl Schurster2

Se puede afirmar que, si bien se vivía una crisis económica, la profun-


dización y expansión de la pobreza, un desahucio social y una ampliación
en las brechas políticas, la aparición del Covid-19 y las medidas de preven-
ción basadas en el aislamiento social obligatorio que fueron implementa-
das en Argentina han actuado como una suerte de catalizador en algunos
procesos sociales, políticos y económicos que la sociedad argentina venía
transitando desde hace algunos años.
La población ha aceptado el nombre del combate, o la guerra, a una
enfermedad desconocida de la cual no se supo casi nada en su momento
y apenas se sabe algo ahora, a mitad del 2020. El Estado se ha hecho car-
go, de forma subrepticia, del cuidado de cada uno de los habitantes sin la
oportunidad (o conveniencia) de preguntarles a los ciudadanos si se podía
confiar en ellos para ser responsables en el cuidado de su persona.
Esta tutela paternalista fue impuesta de forma expansiva como la úni-
ca alternativa de proteger a la población y de preparar un sistema de salud
que esté a la altura de las circunstancias que, se sabía, irían a llegar reflejo

1 Tesista del doctorado de Interuniversitario de Educación PIIDE (UNTREF-UNLA-UNSAM), Do-


cente e investigador de la Universidad Nacional de la Patagonia San Juan Bosco, del ISFDA 805.
Documentalista.
2 Profesor Titular de Historia en la Universidad de Pernambuco e Investigador Visitante en la
Universidad de Porto. Postdoctorado de la Universidad Libre de Berlín.

79
de lo que sucedía en Italia y España en ese momento. Tal vez el miedo de
la sociedad, el temor a la muerte, el enfrentarse a lo desconocido, hizo que
la imagen del presidente de la nación tuviera altísimos niveles de aproba-
ción. En contrapartida, se instauró un régimen de vigilancia del cual no se
puede salir so pena de ser considerado un peligroso transgresor de lo que
Giorgio Agamben podría llamar como un transitorio estado de excepción.
El escenario actual permite remitirnos a algunos autores que traba-
jaron la situación de excepcionalidad cuya naturaleza pretendía analizar
Eric Fromm en su texto “El miedo a la libertad”, en el cual llama la aten-
ción sobre cierto mecanismo que tienen algunas personas -o pueblos- de
aceptar una imposición de matriz autoritaria, pero protectora, a cambio de
entregar su libertad sin tener que preocuparse, por ello, de la responsabili-
dad y las difíciles elecciones del libre albedrío.
También nos permite, salvando las distancias, repensar a Arthur
Koestler, Tzvetan Todorov o Adam Schaff, cuando analizaron las diná-
micas de las sociedades autoritarias de Europa del este durante fascismo
y antes de la caída del muro de Berlín. Inclusive la sagacidad satírica de
Sławomir Mrożek están presentes al analizar y relatar, de forma casi intem-
pestiva y desde el ojo de la tormenta, el instrumento catalizador en que se
convirtió la crisis sanitaria.
Si bien estamos en una sociedad diferente, también se utilizan como
referencia necesaria las matrices interpretativas que nos brindan Noam
Chomsky en aquel texto de “Política y cultura a finales del siglo XX” y el
de John Kenneth Galbraith en “La cultura de la satisfacción”.
Se solicita al lector contemplación por lo extenso y arduo del texto ya
que, sin pretender abarcar la totalidad y la complejidad presente en la so-
ciedad argentina de la pandemia, solo tiene espacio para algunos enfoques
incompletos sobre algunos aspectos que plantea. La necesidad de describir
ciertas cuestiones fácticas tiene que ver tanto con brindar herramientas
más o menos objetivas al lector y permitir la verificabilidad de los datos.

80
1: Cuarentena nacional y trinchera contra el virus

La llegada del virus a la República Argentina estuvo plagada de des-


información y contradicciones por parte de las autoridades nacionales.
Ginés González García, el ministro de salud de la República, relativizó el
peligro que acecharía a los argentinos y aseguró que las autoridades hacían
todo lo necesario para evitar que el virus se instalara en el país. Declaró
que “No descarto el tema del coronavirus, hacemos todo lo que tenemos que
hacer. Pero hoy tenemos un problema con el sarampión y dengue, que les
tengo más cuidado”, destacando que la gripe común hacía estragos en el
hemisferio norte. El 30 de enero había tranquilizado a la población subra-
yando que no existían casos de la enfermedad en Argentina y que “estamos
reunidos constantemente para tomar las medidas necesarias y en contacto
permanente con los responsables de la OMS”.3
El presidente Alberto Fernández decretó la cuarentena total a partir
del 20 de marzo, con una duración provisoria hasta el 31 de marzo, im-
primiendo una nueva dinámica en la forma de enfrentar esta enfermedad
mortal que había sobrepasado todos y cada uno de los controles que se
habían establecido.4
En dicha oportunidad se dirigió al pueblo argentino mediante un dis-
curso pronunciado el 19 de marzo5, compartiendo las generalidades de lo
que sería el Decreto de Necesidad y Urgencia 297/2020, que regularía una
cuarentena sin precedentes en el país.6

3 https://www.pagina12.com.ar/244796-gines-gonzalez-garcia-en-la-argentina-no-hay-ningun-
caso-de-.
4 Sobre esto el ministro de salud Ginés González García tuvo que reconocer, al día siguiente,
que pensó que la nueva gripe “tardaría más en llegar”. https://www.lanacion.com.ar/sociedad/
gines-gonzalez-garcia-coronavirus-pais-pense-iba-nid2341559.
https://www.infobae.com/sociedad/2020/03/10/gines-gonzalez-garcia-yo-no-creia-que-el-coro-
navirus-iba-a-llegar-tan-rapido-nos-sorprendio/.
5 https://www.casarosada.gob.ar/informacion/discursos/46783-palabras-del-presiden-
te-de-la-nacion-alberto-fernandez-luego-de-su-reunion-con-los-gobernadores-para-anali-
zar-la-pandemia-del-coronavirus-covid-19-desde-olivos.
6 DECNU-2020-297-APN-PTE - Disposiciones.

81
Es de destacar que fue una maniobra inteligente que le permitiría mi-
nimizar los errores anteriores y achatar notablemente la curva de conta-
gios mediante la declaración de una cuarentena. Esto traería como con-
secuencia casi inmediata un alto grado de aprobación inicial por parte
de la población argentina sin distinguir entre quienes lo habían votado y
quienes no.
Se cerraron las fronteras mientras que algunos rubros considerados
prioritarios tales como la venta de alimentos, ferreterías, actividades de
las fuerzas de seguridad y del sector de la salud seguían liberadas para los
casos de necesidad básica de la población.
La ciudadanía se encontró, inesperadamente, con una nueva forma de
vida regulada a partir del desconocimiento y del miedo que produjo una
enfermedad totalmente ignota sobre la cual los medios y las redes sociales
iban dando pistas a cuentagotas.
La gestión de la emergencia encabezada por del presidente Fernández
comenzó con un alto grado de evaluación positiva por parte de la socie-
dad. Sin embargo, con el correr de las semanas se fueron cometiendo
desaciertos que erosionaron su imagen.
El lanzamiento temprano de la cuarentena conocida oficialmente
como ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio) mostró a un
presidente preocupado por la salud de la población, quién se haría cargo
de las problemáticas que fueran surgiendo a partir de una actitud segura
y firme que consiguió, de forma casi inmediata, el apoyo de la oposición.
Es de destacar que el tono de su mensaje había sido firme, claro, sin ti-
tubeos y con la suficiente apertura para generar un buen impacto, tratando
de unir a los ciudadanos en pro de la lucha contra un enemigo en común:
el Covid-19. Fue así como el virus se convirtió rápidamente en el enemigo
de los argentinos, quienes deberían hacer el esfuerzo de quedarse en sus
casas por un tiempo indefinido y sin certezas de un éxito contundente.

82
Primeras medidas

Se comenzó con el establecimiento de medidas que gozaron de bastan-


te popularidad, como la decisión de pagar 10.000 pesos compensatorios a
quienes se encontraran en situación difícil y no tuvieran cómo acreditar
ingresos en el tiempo de la pandemia. La ayuda se centraría en quienes es-
taban parados de manera involuntaria por pertenecer al mercado informal
y tenían que gestionar sus propios trabajos. Se anotaron siete millones de
personas, pero solo recibieron el importe apenas tres millones. Finalizan-
do junio aún no habían podido pagar el 100% de las ayudas por problemas
técnicos y de registro bancario e informático.7
También se tomó la decisión de pagar la mitad de los salarios de aque-
llas empresas que contaran con 200 empleados, pero que no podrían ob-
tener ingresos por la imposibilidad de continuar su producción normal-
mente (sea fabricación, venta o distribución de materiales o servicios). De
unas 30.000 empresas iniciales que se anotaron, el Estado pagaría a casi
dos millones de trabajadores privados una suma cercana a 16.000 pesos (el
mismo esquema continuó para el mes de mayo, pero con muchas más res-
tricciones, produciendo una baja en la ayuda real brindada a los pequeños.
Sin embargo, fueron los grandes sectores económicos quienes se bene-
ficiaron con el Programa de Asistencia en Emergencia para el Trabajo y la
Producción (ATP) ya que el Estado desembolsó más dinero para las gran-
des empresas que para pequeños y medianos productores.8 Fueron bene-
ficiados el Grupo Clarín, Techint, Ledesma, Volkswagen, Mercedes-Benz,
Mc Donald´s, entre otras. Aunque, por diversas razones, en algunos casos
los subsidios de abril se devolvieron con interesas en mayo.9 Para las pe-

7 10.000 pesos equivalían a aproximadamente 110 dólares a precio oficial (incluidos 30% de
impuestos) o a unos 70 dólares a precio paralelo dependiendo del mes en cuestión:
https://www.cotizacion-dolar.com.ar/dolar-historico-2020.php.
8 http://www.laizquierdadiario.com/El-Gobierno-puso-mas-plata-en-subsidios-de-ATP-para-
grandes-empresas-que-para-pymes-chicas.
9 Varias empresas prefirieron hacer lo mismo ya que el aceptar las ayudas a tasa cero los obli-
gaba a no acceder al mercado de títulos, de cambio ni exportar capitales. https://www.ambito.
com/atp/controlaran-mas-grandes-empresas-que-reciban-ayuda-pagar-salarios-n5103214.

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queñas empresas se habían ofrecido créditos blandos de rápida ejecución a
razón de una taza de 25% anual sin mayores cargos. Los préstamos debían
tramitarse y efectivizarse en apenas 48 horas desde su solicitud, pero por
razones poco claras, habiendo concluido abril, apenas el 20 por ciento de
los emprendimientos pudo hacerse del efectivo.
Se intentaron algunas soluciones que no conformaron a todos: se con-
gelaron los alquileres y se prohibieron los desalojos mediante el Decreto
de Necesidad y Urgencia 320.10 Así fue como, de la mano de las posibles
soluciones, vinieron también los problemas. Mientras el presidente fue la
cara visible y eficiente del combate a la pandemia en el transcurso de las
primeras semanas de la cuarentena, CFK prácticamente no apareció en
público en la lucha contra el COVID-19, y solo se manifestó a través de al-
gunos twitts personales, atacando a la oposición en el marco de la zozobra
social y económica que enfrentó el país.
A mediados de mayo y apenas unos días después de una reunión de
Cristina Fernández de Kirchner (CFK) con el presidente, cuyo contenido
apenas trascendió en forma de comentarios en la prensa, la Oficina Anti-
corrupción se retiró como querellante en las causas judiciales “Sauces” y
“Hotesur” (en ambas tanto la vicepresidente como sus hijos estaba en una
situación comprometida).11
La vicepresidenta promovió a un funcionario clave al frente del siste-
ma de protección a testigos: Juan Martín Mena, ex integrante de la Agen-
cia Federal de Inteligencia y procesado por la firma del Memorándum de

10 DECNU-2020-320-APN-PTE - Alquileres.
11 Si bien hay 8 causas abiertas a Cristina Kirchner, dos son las más comprometidas debido a
la existencia de pruebas acusatorias. En la causa “Los Sauces” se investiga si los empresarios
Báez (empresario amigo de la familia Kirchner) y el empresario Cristóbal López (Grupo Indalo),
habrían alquilado propiedades de una sociedad llamada Los Sauces perteneciente a los Kirch-
ner como pago de favores por las adjudicaciones de obra pública entre 2003 y 2015. Báez hoy
está detenido. La causa fue elevada a juicio estando a cargo del Tribunal Oral en lo Criminal
Federal N° 5.
En el caso de “Hotesur”, CFK, Máximo y Florencia Kirchner (sus hijos) fueron procesa-
dos por lavado de activos y asociación ilícita. Se investiga si hubo lavado de dinero a tra-
vés del alquiler de habitaciones del Hotel Alto Calafate, la causa fue elevada a juicio, a car-
go del Tribunal Oral en lo Criminal Federal N° 8. https://chequeado.com/el-explicador/
cfk-esta-procesada-en-11-casos-cuales-son-las-causas-en-su-contra/.

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Entendimiento con Irán. De esta manera, podría controlar y tener acceso
a información sobre las personas que los habían denunciado, trabajando
codo a codo con Santiago Eguren, abogado y apoderado del Frente de To-
dos, nombrado a tres días de la declaración de la cuarentena.

La economía: el talón de Aquiles

Millones de trabajadores independientes quedaron prácticamente


fuera del circuito económico porque no pudieron continuar trabajando.
No se debe olvidar que las cifras del trabajo en negro y/o economía infor-
mal afectan a gran parte de la población y la cuarentena obligatoria aisló
a muchos en sus domicilios. El 10,4% de la población económicamente
activa se encuentra desempleada y y el 49,3% trabaja en el mercado negro
o informal (INDEC).12
Esta situación los privó de la posibilidad de subsistencia con la que
venían soportado los embates de una economía ya tambaleante. Una cosa
es soportar un encierro de una semana o quince días cuando no se tiene
un respaldo económico, y otra es hacerlo durante más de tres meses.
Las grandes empresas vieron sus ingresos reducidos de manera consi-
derable. Techint, con facturación cero durante el mes de abril, había des-
pedido a más de 1.100 trabajadores. La aeronáutica Latam, BASF y Axalta
(fabricantes de pintura para autos) cerraron sus puertas y se fueron del
país.
El Decreto de Necesidad y Urgencia 329/2020 prohibió los despidos y
suspensiones durante el lapso de 60 días (luego se renovó por otro plazo
equivalente), pareciendo otorgar algo de aire a los empleados, pero po-
niendo en jaque a los empleadores, sean estos grandes empresas o peque-
ños emprendimientos.13

12 Instituto Nacional de Estadísticas y Censos, datos del 23 de junio de 2020. Primer trimes-
tre del año: https://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/mercado_trabajo_eph_1tri-
m20AF03C1677F.pdf.
13 La medida, que vencía el 31 de mayo, se extendió luego hasta el 31 de julio (Boletín Oficial
del Decreto 487/2020).

85
Sin embargo, ante la coyuntura se dieron retiros voluntarios, acordan-
do entre empleadores y empleados. Sucedió, en muchos casos, que a pesar
de que los despidos estaban prohibidos, los empleados que no tenían la
seguridad de la continuidad de su trabajo y ante la suspensión de la doble
indemnización (por causa del mismo decreto que no reconocía los des-
pidos) preferían desvincularse con algo en mano y no correr el riesgo de
quedar sin nada.
Muchos sindicatos peronistas alineados con el gobierno aceptaron
importantes quitas en el sueldo de los empleados. La Asociación Obrera
Textil aceptó quitas de entre un 30% a un 50% y los Sindicatos del Gas y
Petroleros aceptaron reducciones hasta el 50% y suspensiones tempora-
rias. La Confederación General del Trabajo (CGT) aceptó que los trabaja-
dores cobren al menos el 75% de sus haberes en tiempos de pandemia. El
Sindicato de Empleados de Comercio acató una reducción salarial de un
25%.14
En Argentina existen registrados solamente 11.929.000 de empleos
formales. De ellos el 80,8% trabaja en relación de dependencia: 5.982.000
provienen del sector privado (el 50,1% del total de ocupados), 3.179.000
del sector público (26,6%) y 481,300 del personal de casas particulares
(4,0%).15
Un estudio de la UCA publicado en junio de 2019, el 81,7% de los tra-
bajadores tenían un empleo precario o subempleo inestable y el 75,9% no
contaba con aportes jubilatorios, así como el 51,3% no poseía cobertura de
salud nominativa.16

14 Aunque los aportes al sindicato se mantenían en un 100%, afectando a los trabajadores,


pero otorgando aire a los dirigentes sindicales.
15 SITUACIÓN Y EVOLUCIÓN DEL TRABAJO REGISTRADO. Ministerio de Trabajo. Datos de mar-
zo de 2020. http://www.trabajo.gob.ar/downloads/estadisticas/trabajoregistrado/trabajoregis-
trado_2003_informe.pdf.
16 Universidad Católica Argentina: http://wadmin.uca.edu.ar/public/ckeditor/Observato-
rio%20Deuda%20Social/Documentos/2019/2019-OBSERVATORIO-DOCUMENTO-ESTADISTI-
CO-HETEROGENEIDAD-FRAGMENTACION.pdf.

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Según el informe del Ministerio de Trabajo publicado en junio de
202017, para marzo todos los sectores registraron caídas de empleo, a ex-
cepción de electricidad, gas, agua y salud. En el mes de abril el 19% del
total de las empresas relevadas no operó y el 38% de las firmas operó a me-
nos del 50% de su capacidad productiva (hasta allí llegan los datos oficiales
actuales). Según la UCA, aproximadamente 900.000 personas perdieron
su empleo entre el inicio de la cuarentena y el cierre de mayo.18
No se tienen datos oficiales en lo que se refiere a la suerte de los co-
mercios, aunque se pueden referenciar algunos casos como los notificados
por la Cámara Argentina de Comercio, destacando que el 11,5% de los
locales que cesaron su actividad comercial el 20 de marzo ya no abrirán
sus puertas. Los pequeños comercios que continuaron trabajando en la
atención al público se han visto afectados por la poca concurrencia y no
llegan a vender más del 30% que el año anterior.19
El cierre definitivo de los comercios no augura un buen panorama,
ya que también se dio de la mano de créditos tomados al inicio de la cua-
rentena y el gasto de ahorros para cubrir el funcionamiento mínimo de
los negocios, cuyos servicios básicos no han podido ser cubiertos en un
contexto en el cual no han bajado las cuentas de luz o gas, quedando en
evidencia el sistema arbitrario de las tarifas y, por ende, supeditados a los
cortes del servicio.20

17 http://www.trabajo.gob.ar/downloads/estadisticas/reportelaboral/Reporte_Laboral_Ju-
nio_2020.pdf.
18 https://www.infobae.com/economia/2020/06/05/para-la-uca-unas-900000-personas-per-
dieron-su-trabajo-durante-la-cuarentena/.
19 https://www.adnsur.com.ar/sociedad/el-11-5--de-los-locales-que-cerraron-por-la-cuarente-
na-no-volveran-a-abrir_a5ed7b4b6825a585eb6a3498b.
20 A pesar de que los negocios estaban cerrados, las facturas de éstos servicios llegaban con
precios equivalente a la utilización plena y, en algunos casos, aumentos infjustificados:
https://www.pagina12.com.ar/261964-por-la-cuarentena-las-empresas-de-gas-y-luz-en-
vian-facturas- y:
https://www.inforegion.com.ar/2020/04/29/las-facturas-de-luz-llegan-con-un-estimado-y-au-
mentos/, y:
https://www.clarin.com/sociedad/coronavirus-cortes-luz-gas-siguen-mayoria-deudores-colas-
-4-horas-pagar-servicios_0_sqWuQoHSN.html.

87
2: Autoridad y autoritarismo en el marco del Covid-19

“No saben cuánto valoro la libertad. Pero quiero recordarles que la liber-
tad se pierde siempre cuando uno muere. Para ser libres hay que vivir”

Alberto Fernández 26/06/2020

Más allá del consenso social inicial que tuvo el inicio de la cuarentena,
tanto el mensaje presidencial como las acciones de control establecidas
traían implícitas una serie de condiciones que comenzaron a producir pro-
testas y rispideces relacionadas a la discusión sobre el avasallamiento de
los derechos constitucionales.
Si bien al principio miles de personas imitaban el ejemplo cívico ita-
liano de salir a los balcones y aplaudir a los trabajadores de la salud que se
encontraban en la primera línea de trinchera del combate a la desconocida
enfermedad, con el correr de las semanas la situación fue cambiando pau-
latinamente, de forma tal que se comenzaron a dar grandes enfrentamien-
tos ideológicos, políticos y legales en torno a lo que fue llamado “nueva
normalidad”.
Es de destacar que el Estado argentino, en su forma republicana, se en-
contró interrumpido. Si se habla de los principios que fundamentan la di-
visión de poderes y la transparencia de los actos de gobierno, se manifiesta
que las instituciones del Poder Ejecutivo, Legislativo y Judicial sufrieron
un gran desequilibrio que, de haber sido corta la cuarentena, tal vez hubie-
ran vuelto rápidamente a la naturaleza de sus funciones.
La justicia fue suspendida, decretándose una feria judicial de 100 días
que afectó muchos procesos naturales normales del derecho. El poder le-
gislativo (Congreso y Senado) tuvo, y de forma tardía, muy pocas reu-
niones (salpicadas de acusaciones y escándalos) que incluyeron sesiones
virtuales mal resueltas y una legislación fuera de agenda, cuyos procederes
acordados no fueron respetados.

88
El poder ejecutivo funcionó centralizando las decisiones sobre la
pandemia en los hombros del presidente Alberto Fernández (rodeado y
aconsejado por científicos), el gobernador de Buenos Aires, Axel Kicillof,
y el Intendente (prefeito) de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Hora-
cio Rodríguez Larreta.
A la vez que los gobernadores de las provincias (estados) fueron los
responsables del combate al coronavirus en cada uno de sus territorios,
también dependían del gobierno central para ciertas autorizaciones, lo
cual tenía como consecuencia la pérdida de autonomía en las decisiones
inmediatas sobre los testeos y la imposición de protocolos. Tal es el caso
de la centralización inicial de los testeos en el Instituto “Dr. Carlos G. Mal-
brán”, localizado en la ciudad de Buenos Aires, lo que demoraba y hacía
poco efectivo el análisis de los casos. Esto se debía a que en numerosas
ocasiones se demoraban días en remitir la muestra, su análisis y posterior
informe.

La violencia en el Estado de cuarentena

El discurso del presidente había sido claro, prometiendo rigor a la


hora de controlar a la población. De las palabras de Alberto Fernández
anunciando la cuarentena se destacan algunos párrafos que permitirán el
análisis de algunos tópicos:

A partir de ese momento nadie puede moverse de su residencia,


todos tienen que quedarse en sus casas. (…) pero entiéndase
bien, que a partir de la 00:00 horas, la Prefectura, la Gendarme-
ría, la Policía Federal y las policías provinciales estarán contro-
lando quién circula por las calles. Y entiéndase que aquel que no
pueda explicar lo que está haciendo en la calle se verá sometido,
a las sanciones que el Código Penal prevé para quienes violan
las normas que la autoridad sanitaria dispone, para frenar una
epidemia o – en este caso - una pandemia.

Vamos a ser absolutamente inflexibles, la realidad es que esta es


una medida excepcional, que dictamos en un momento excepcio-
nal, pero absolutamente dentro del marco de lo que la democracia
permite.

89
Hemos calculado absolutamente todo, lo único que necesita-
mos es que cada uno de nosotros haga su parte, es lo único que
necesitamos.

Les he pedido a todos los gobernadores la máxima severidad, y


quiero decirles a todos que vamos a ser muy severos con los que
no respeten el aislamiento que estamos planteando; y vamos a ser
muy severos porque la democracia nos los exige (…).21

Dichas estas palabras, al día siguiente se hizo público el Decreto de


Necesidad y Urgencia 297/20 y pretendió hacerse cumplir.22
La policía, la gendarmería y otras fuerzas del orden desincentivaban
a la ciudadanía a circular por las calles. Si bien no fue la normalidad, en
muchos casos las órdenes se llevaron adelante de las peores formas, gene-
rando denuncias concretas por parte de la población. Es de destacar que
la masividad de los celulares con cámara permitía a las personas registrar
fílmicamente algunos abusos y malos tratos, siendo éstos diseminados en
las redes sociales y los noticieros ávidos de audiencia.
En ese sentido, el Estado se había hecho cargo de la libertad de las per-
sonas de una forma ostensiva. Tal vez un contexto corto de la cuarentena
hubiera servido, más allá de las formas, para hacerla cumplir de una forma
en la cual muchas voces se acallaran o se relativizara la acción represiva del
Estado como excesos aislados. Pero no fue el caso.
En algunas provincias y centros urbanos, varios uniformados eran
denunciados por atropellos puntuales: malos tratos, abuso de autoridad
y hasta desaparición de personas. Un caso de resonancia se dio en la pro-
vincia de Tucumán el día 15 de mayo de 2020. Luis Espinoza, de 31 años
fue encontrado por la policía en la localidad de Simoca, lugar en cual se
desarrollaba una carrera ilegal de caballos violando la cuarentena. El hom-
bre se resistió al arresto, cayéndose de su caballo en la refriega mientras era
perseguido por varios policías. Uno de ellos le disparó por la espalda y la

21 El destacado en negritas se realizó para resaltar algunos puntos en el artículo.


22 https://www.argentina.gob.ar/normativa/nacional/decreto-297-2020-335741.

90
bala le perforó un pulmón, situación que motivó su posterior trasladado
a la comisaría.
Luego de haber desaparecido, su familia no tuvo novedades sobre su
paradero y lo comenzó a buscar intensamente. Recién seis días después (22
de mayo) un hermano encontró su cuerpo en un barranco a 150 metros de
profundidad y a 120 kilómetros de la comisaría en una localidad fronteri-
za. Los 9 policías involucrados habían hecho un pacto de silencio, envuelto
su cuerpo en plástico y trasladado lejos para ser arrojado al abismo.23
También se ha registrado un caso de posible violencia institucional
el día 5 de abril de 2020, cuando se halló el cuerpo sin vida de Magalí
Florencia Morales de 39 años en la comisaría de Santa Rosa de Conlara,
Provincia de San Luis. Supuestamente habría sido detenida por circular
en bicicleta a contramano violando la cuarentena y, según versiones dadas
por los policías, se habría suicidado. Sin embargo, la familia de Morales
afirmó que había sido asesinada por los policías. A pesar de haber presen-
tado signos de autodefensa, al día de la fecha el proceso de la investigación
se encuentra paralizado y no se han citado siquiera a los testigos que la
habrían oído gritar y pedir ayuda.24
Veinte días después, el 25 de abril, en Villa Mercedes (también pro-
vincia de San Luis) ocurrió otro hecho que involucró a efectivos policiales.
Luego de la detención de un adolescente de 16 años por supuesto intento
de robo en el cual se le habrían incautado dos cuchillos, se halló su cuer-
po colgado por el cuello de una prenda de vestir atada a los barrotes de
una ventana. Varias fuentes señalaron que se le intentó hacer reanimación

23 https://www.clarin.com/policiales/trama-encubrimiento-policial-crimen-luis-espinoza_0_
slmBxKTPI.html.
24 https://www.pagina12.com.ar/263849-el-cuerpo-de-florencia-morales-tenia-signos-com-
patibles-con-, y:
https://www.lavoz.com.ar/sucesos/denuncian-que-esta-paralizada-investigacion-sobre-muer-
te-de-una-mujer-en-una-comisaria-de-sa.

91
cardiopulmonar, pero cuando llegó la ambulancia del servicio médico ya
había fallecido. También se abrió una investigación que está en curso.25
El 24 de mayo, el asentamiento precario de 4.000 personas denomi-
nado Villa Azul (en la localidad de Quilmes, provincia de Buenos Aires)
fue rodeado por la policía y aislado completamente, convirtiéndolo en un
ghetto virtual de la cuarentena. La población, que vive en condiciones de
pobreza, se encontró prisionera en sus precarios hogares sin siquiera tener
los elementos básicos para su vida cotidiana debido a la falta de estructura
habitacional reinante en el lugar. La medida fue levantada por la presión
social luego de encontrarse más de 270 casos positivos y de 2 muertes de
vecinos a causa del Covid-19.26
En la madrugada del 2 de junio un grupo de seis policías ingresó a
la fuerza en un domicilio del barrio Cacique Pelayo-Banderas Argentina,
de la localidad de Fontana (provincia del Chaco) y arremetió a los golpes
contra los moradores. Luego del hecho, que fue filmado con un teléfo-
no celular, se llevaron a cuatro jóvenes a una comisaría cercana y, según
las denuncias, fueron golpeados y torturados. Todas las víctimas eran del
pueblo Quom, originarios del lugar que sistemáticamente son sometidos a
atropellos por parte del Estado desde hace años.27 La pandemia volvería a
traer malas noticias para ellos.28
Otro hecho relevante ocurrió el día 15 de junio, a las 4:30 hs de la
madrugada, en el barrio Inta de la ciudad de Trelew, provincia del Chubut
(en la zona patagónica). En el marco de un operativo (blitz) que detuvo a
varias personas con armas blancas, un vehículo policial fue filmado mien-
tras se efectuó un disparo desde su interior que habría herido en el rostro

25 https://www.lavoz.com.ar/sucesos/polemica-en-una-comisaria-de-san-luis-aparecio-ahor-
cado-otro-joven-detenido.
26 https://www.infobae.com/sociedad/2020/06/03/confirmaron-las-dos-primeras-muertes-
-por-coronavirus-en-villa-azul-eran-pacientes-que-estaban-internados/.
27 http://www.laizquierdadiario.com/La-mala-memoria-de-Cristina-Nunca-hubo-persecucion-
-y-judicializacion-a-los-qom.
28 https://www.telam.com.ar/notas/202006/471516-alberto-fernandez-repudio-ataque-poli-
cial-comunidad-qom-chaco.html.

92
al trabajador Gabriel Frede. El caso se encuentra en investigación a cargo
del Ministerio Público Fiscal.29
De los casos referenciados, dos resultaron filmados con celulares. En
ellos, las autoridades locales y nacionales repudiaban los hechos, pedían
informes o publicaban twits, como el caso del presidente Alberto Fernán-
dez en el ataque a los Quom: “Las imágenes de violencia institucional que
hemos visto en las últimas horas en el Chaco son inaceptables. Celebro que
el Ejecutivo provincial haya apartado a los efectivos, pero debemos trabajar
más profundamente en una problemática que es una deuda de la democra-
cia”.30 En los otros casos no sucedía lo mismo.
El 24 de junio de 2020, Walter Ceferino Nadal, de 43 años, había sido
detenido por un intento de robo en San Miguel de Tucumán. Según el dia-
rio Página 12, mientras un policía tenía su rodilla en la nuca, el detenido
pedía por salir de la situación diciendo “me falta el aire, me falta el aire”.
Su muerte fue registrada en el acta policial como un infarto, aunque los
forenses determinaron posteriormente que su fallecimiento había sido por
asfixia.31
Este último caso fue muy semejante al de Goerge Floyd, que originó
la ola de protestas y saqueos en USA. En medio del caos generado por
el hecho, el presidente argentino se había manifestado responsabilizando
a Donald Trump del accionar de la policía. En su momento dijo que lo
sucedido “es una acción denigrante a la condición humana: alguien que se
apoya sobre el cuello de alguien tirado en el piso que le está diciendo que se

29 https://www.pagina12.com.ar/272525-violencia-institucional-en-chubut-un-policia-dis-
paro-a-un-vez. y: https://www.diariojornada.com.ar/275844/provincia/investigan_a_policias_
que_tirotearon_a_vecinos_de_trelew_en_un_operativo_liderado_por_massoni/.
30 Twitt de @alferdez, 02 de junio de 2020, 7:51 PM: https://publish.twitter.com/?query=ht-
tps%3A%2F%2Ftwitter.com%2Falferdez%2Fstatus%2F1267952094490828800&widget=Tweet.
31 https://www.pagina12.com.ar/274889-denuncian-que-la-policia-de-tucuman-mato-a-un-
-detenido-con-l?cx_testId=3&cx_testVariant=cx_1&cx_artPos=0#cxrecs_s.

93
asfixia y aun así lo deja asfixiarse”; en el caso de Nadal, no se manifestó
acerca del hecho.32

Las cárceles de la pandemia y la agenda fallida

Durante el confinamiento social un sector del kirchnerismo -y otros


desde la presidencia- impulsaron la liberación masiva de presos con el ar-
gumento de que la superpoblación carcelaria y las malas condiciones de
salubridad ponían en riesgo a los recluidos. En realidad, según se supo
después, la cuarentena habría sido la excusa para la imposición de una
agenda previa que naufragó por las protestas de la ciudadanía.33
Al principio de la cuarentena habían sido liberados algunos conde-
nados por corrupción y hechos violentos que habían pertenecido al go-
bierno anterior de CFK aduciendo motivos de salud y peligro de contagio.
Cuando cientos de reclusos solicitaron derechos semejantes la situación
comenzó a desbordarse y hubo manifestaciones violentas.
Hacia finales de abril se produjeron motines en varias cárceles y co-
misarías, se dieron sabotajes y destrucción de las instalaciones carcelarias
con la finalidad de degradar las condiciones del sistema penitenciario que
ya se encontraba hiper poblado.
El motín más sangriento se dio en la cárcel de Devoto en la cual se pu-
dieron contabilizar varias víctimas, algunas producidas por los internos y
otras por la reacción policial. Como algunas imágenes explícitas pudieron
ser vistas por televisión la opinión pública tuvo la posibilidad de observar
casi en primer plano los pormenores de la violencia que se había desatado.
Según los registros, el mismo día del fin del motín fueron liberados 320
presos del Sistema Penitenciario Federal.

32 http://soldelapuna.com.ar/noticias/george-floyd-fernandez-comparo-la-violencia-en-ee-uu-
-con-la-pelicula-el-guason/.
33 El periodista Hernán Zantero, del diario La Nación, reveló que las liberaciones de presos ha-
bían sido planeadas meses antes del brote de la pandemia, remitiéndose al repaso de dos reu-
niones acaecidas el 19 y el 27 diciembre del 2019. Publicado el 2 de mayo de 2020. https://www.
lanacion.com.ar/seguridad/coronavirus-idea-liberar-presos-empezo-tomar-forma-nid2360842

94
El 23 de abril, el juez Víctor Horacio Violini otorgó un hábeas corpus
masivo a 2.300 presos y les permitió a muchos la vuelta a sus hogares.
Algunos, unos 1200 delincuentes condenados por delitos leves recibie-
ron la cuasi libertad anticipada, mientras que otros deberían cumplir las
condenas en sus domicilios.34 Muchos de ellos ni siquiera eran contro-
lados de manera efectiva ya que el número de tobilleras electrónicas era
insuficiente.
Algunos Presos condenados por crímenes sexuales volvieron a habitar
en cercanía de sus víctimas, otros volvieron a delinquir casi inmediata-
mente, hubo casos en los que se tirotearon con la policía, mientras que va-
rios tuvieron conflictos con sus vecinos, dándose intentos de linchamiento
y hasta un recluso pidió volver a la cárcel porque discutía con su esposa.35
Muchos sectores de la sociedad se manifestaron en contra de la li-
beración indiscriminada de los presos e inclusive se dieron disidencias
en algunos grupos que habían apoyado abiertamente la fórmula Fernán-
dez-Fernández en las elecciones del año anterior. El colectivo de Actrices
Argentinas y algunas organizaciones feministas pidieron que no se liberen
a femicidas, violadores y delincuentes que hayan cometido violencia de
género; las madres de plaza de mayo también se quejaron ante la prisión
domiciliaria otorgada a un ex médico de la ESMA.
Se puede afirmar que la bisagra en la situación se dio el 1 de mayo de
2020, cuando se hizo un cacerolazo contra la liberación de los delincuen-
tes que propiciaban los garantistas. Lo inédito de esta manifestación fue
que no se redujo a un barrio o a un sector social determinado, sino que se
extendió prácticamente a todos los lugares del país incluidos la ciudad de
Buenos Aires y los distritos más poblados del conurbano bonaerense y los
barrios carenciados que habían sido bastiones electorales del Peronismo.

34 Los perpetradores de delitos considerados graves deberían remitir sus causas a los jueces
correspondientes.
35 https://www.ellitoral.com/index.php/id_um/240373-rechazo-la-domiciliaria-y-pidio-volver-
-a-la-carcel-porque-discute-con-la-mujer-insolito-sucesos.html

95
Al ver una reacción tan sólida y pública, el sector del kirchnerismo
que había impulsado la medida comenzó a cambiar el discurso y a negar
que se trataba de una decisión política impulsada por la dirigencia inten-
tando desviar el foco hacia el funcionamiento de la justicia, desvincularse
del desacierto.
Más allá de las voluntades políticas y ante el masivo rechazo que tuvo
por parte de la población argentina, la Suprema Corte de Justicia Bonae-
rense revocó la decisión del Hugo Violini y determinó que cada caso sea
analizado de forma individual por los jueces naturales a los que les corres-
pondiera. De esta manera, una parte de la agenda acelerada por la cuaren-
tena había fracasado ante el rechazo social.

Ciberpatrullaje y espionaje ilegal en la Argentina pandémica

La ministra de Seguridad de la Nación, Sabrina Frederic había afirma-


do ante la Comisión de Seguridad Interior de la Cámara de Diputados que
“Todas las fuerzas, incluyendo a la Gendarmería, realizan ‘ciberpatrullaje’
(…) El patrullaje en las redes sociales es para detectar el humor social y,
sobre todo, detectar las zonas en las que esto es preponderante”. Acotando
que “Esto nos ha permitido trabajar sobre alertas tempranas, para prevenir
diversas situaciones”, en referencia a posibles saqueos u otras alteraciones
que se pudieran producir.36
El reconocimiento del espionaje a la población produjo un amplio re-
chazo en la franja opositora, políticos y personalidades que a ello se refi-
rieron, destacaron que la excepcionalidad de la pandemia no estaba por
encima de los derechos constitucionales.
El 24 de mayo de 2020 el diputado nacional de Juntos por el Cambio
Álvaro de La Madrid, denunció que la gendarmería nacional había reali-
zado espionaje ilegal en torno a las protestas de trabajadores mineros en
Andacollo (Neuquén).

36 https://www.youtube.com/watch?v=1wLfD-dGct4&feature=emb_logo.

96
El gobierno nacional, quien da las órdenes a Gendarmería, negó tener
participación en los hechos y la misma ministra de seguridad apartó a tres
gendarmes relacionados con el caso. Sin embargo, al día siguiente fueron
dadas a conocer en la prensa partes del “INFORME DE INTELIGENCIA
ESPECIAL (IIE) N 6/20”, en el cual se detallaban los métodos de infiltra-
ción y espionaje.37
Fue también durante la pandemia que se destapó un escándalo por
escuchas ilegales a políticos, periodistas y líderes de la oposición, funcio-
narios y aliados del gobierno durante la presidencia de Mauricio Macri. La
Agencia Federal del Inteligencia (AFI) habría llevado a cabo las tareas de
espionaje. Una de las víctimas habría sido CFK, quien solicitó convertirse
en querellante de la causa. Esta situación es análoga a cuando, en el marco
de un operativo judicial, se hallaron archivos de espionaje a jueces, em-
presarios y movimientos migratorios del fiscal Nisman, quien había sido
asesinado luego de denunciarla públicamente.38 El tema se convirtió en
agenda mediática tanto para opositores, oficialistas e independientes, cru-
zando culpas por espionaje ilegal y filtración de escuchas e informaciones
protegidas por ley en los períodos presidenciales anteriores.
Pero una temática que quedó casi fuera de la agenda mediática fue
la implementación de una aplicación (app) para smartphones basados en
plataformas Android e IOs, como requisito obligatorio para circular y ac-
ceder a los puestos de trabajo en las zonas de la Ciudad de Buenos Ai-
res y gran Buenos Aires en época de cuarentena.39 La aplicación CuidAR
debe ser habilitada con todos los datos del usuario, quien voluntariamente
acepta una opción en la que establece que el Estado utilice sus datos y geo-

37 https://www.clarin.com/politica/piden-interpelar-ministra-seguridad-espionaje-ilegal-gen-
darmeria-protesta-minera_0_0V7zCGaJJ.html.
38 Los documentos habían sido encontrados los primeros días de junio de 2019 en el marco de
un allanamiento ordenado por la justicia. Esta vez, el querellante principal de la causa derivada
del hallazgo fue el exespía “Jaime” Stiuso, basado en una carpeta con inteligencia que hablaba
de él, sus filiaciones y posibles propiedades: http://www.diariodeloeste.com.ar/las-carpetas-en-
contradas-en-la-casa-de-cristina-kirchner-revelan-como-se-espio-a-empresarios-jueces-y-com-
pradores-de-dolares/.
39 http://webapp.app.covid.ar.

97
localización. En ella, las personas deben dar fe de su temperatura corporal
y, dependiendo del trabajo que tengan, generar los permisos cada día o al
menos una vez por semana.
Si bien algunos políticos de la oposición ensayaron algunas protes-
tas, la app fue obligatoria en la ciudad capital, gobernada por Rodríguez
Larreta, quien no tuvo el mínimo reparo en implementarla. Ni siquiera
se oyeron voces que se alzaran sobre la exclusión que produce el gadget,
ya que quienes no posean un teléfono inteligente o, si éste no funcionara
con plataformas de otra codificación, directamente quedan sin derecho a
circular o a moverse de sus casas.
Cuando el día 26 de abril se anunció la vuelta a la fase 1 de la cuaren-
tena en Ciudad Autónoma de Buenos Aires y Gran Buenos Aires, entre el
1 y el 15 de julio, se prohibió la circulación de la población exceptuando
veinticuatro actividades consideradas esenciales. Llegados al día 100 de la
cuarentena, funcionarios públicos destacaron que se sincronizarían los da-
tos de CuidAR con las tarjetas SUBE, utilizadas para el transporte urbano,
habilitando solamente a los autorizados.40
Quedaba claro que el Estado se tomaba atribuciones que mellaban la
libertad personal y las garantías constitucionales. El control que en otros
países no había sido aceptado fue muy poco discutido en Argentina. Los
tiempos se aceleraron y la población tendría un nuevo problema: la con-
tinuidad del confinamiento hasta el 15 de julio, sin saber que sucedería al
día siguiente.

3: La discusión sobre las libertades y en tiempos de Pandemia

Infectadura en debate: alerta sobre la situación de los derechos

Hacia finales de mayo de 2020, pasados casi dos meses y medio del
inicio de la cuarentena, un grupo de intelectuales, periodistas y figuras

40 https://www.infobae.com/sociedad/2020/05/16/la-sube-quedara-habilitada-solo-para-tra-
bajadores-esenciales-y-exceptuados/.

98
públicas, dieron a conocer un breve documento crítico con las medidas
tomadas por el Estado, llamando la atención sobre las características de
la entrada al virus en el país, la falta de testeos masivos y el aislamiento
temprano de casos.
La carta, titulada “La democracia está en peligro” señalaba el anuncio
del presidente Fernández sobre “la hora del estado”, destacando el peligro
de la concentración del poder,

En nombre de la salud pública, una versión aggiornada de la ’segu-


ridad nacional’, el gobierno encontró en la ‘infectadura’ un eficaz
relato legitimado en expertos (…) En dos meses, hubo un número
alarmante de detenidos y sancionados en nombre de su propia sa-
lud (…) Clases suspendidas, enfermos que no pueden seguir sus
tratamientos, familias separadas, muertos sin funerales y, ahora, la
militarización de los barrios populares.41

También manifestaban que su preocupación:

llamamos a grupos y organizaciones de la sociedad civil, partidos,


sindicatos, formadores de opinión y medios de comunicación inde-
pendientes a redoblar una actitud crítica y vigilante hacia al poder
gubernamental, aumentando la deliberación y la conversación so-
cial sobre las consecuencias del aislamiento obligatorio y exigiendo
la presentación de un plan de salida para esta situación anormal.42

En el cierre del texto, que llevaba 300 firmas, se destacaba lo respon-


sable que había sido el pueblo argentino a la hora de demostrar su acata-
miento a las leyes, normas y consejos sanitarios. Rematando con un “es
hora de que el presidente haga lo mismo”.43

41 https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSc0vddQft-M4IpuPlPg6EGPKce_RX5Bx5uE2nv-
txSNWgyXkIw/viewform.
42 Idem.
43 El día anterior, el presidente Fernández había estado con su comitiva en una provincia que
no tenía casos registrados de coronavirus y se abrazó y besó a Gildo Insfrán, gobernador de
Formosa. Muchos lo acusaron de no predicar con el ejemplo y de poner en riesgo a la población
formoseña. A los 15 días se habían detectado 38 casos en Formosa (aunque la mayoría de ellos
con vínculo externo).

99
La reacción oficialista fue virulenta. Los funcionarios públicos res-
pondieron rápidamente al planteo, los medios de comunicación oficialis-
tas comenzaron a atacar a los firmantes, y miles se manifestaron: grupos
de intelectuales, actores y personajes famosos alineados al gobierno los
atacaron en redes sociales, radio y televisión.44 Sumado a esto, el jefe de
gabinete Santiago Cafiero dijo que estas personas le faltaban el respeto a la
sociedad argentina que no quería que muera la gente, el ministro de salud
respondió que ““La derecha del mundo se ampara en los derechos indivi-
duales. Nosotros los respetamos, pero tenemos la obligación de defender los
derechos colectivos”.45
La réplica más resonante fue la del grupo de pensadores de Comuna
Argentina, encabezados por Ricardo Forster, ex Secretario de Coordina-
ción Estratégica para el Pensamiento Nacional durante el segundo gobier-
no de Cristina Kirchner. La respuesta se basó en la defensa de la cuaren-
tena destacando que, como medida excepcional, ha tenido grandes logros
de Argentina.46

En comparación con los demás países latinoamericanos con gran-


des metrópolis, Argentina es el que obtuvo mejores resultados en el
control de la pandemia de COVID-19. Como lo muestran las esta-
dísticas de todo el mundo, disminuir la movilidad de la población
funciona. (…) Para que la nueva etapa de la cuarentena sea efectiva,
es necesario que se conjuguen tres responsabilidades: política, civil
y periodística.47

44 https://www.pagina12.com.ar/271774-medicos-de-caba-repudian-la-carta-de-la-infectadu-
ra .
45 https://www.iprofesional.com/politica/317018-que-dice-la-carta-infectadura-que-disparo-
-la-ira-del-gobierno.
46 Entre junio de 2014 y diciembre de 2015 Forster dirigió la secretaría del Ministerio de Cul-
tura de la República Argentina. Que tenía como objetivo coordinar el pensamiento político,
cultural e ideológico del país.
https://www.cultura.gob.ar/noticias/debates-sobre-el-pensamiento-y-la-educacion-en-clave-
-nacional/.
Algunos críticos se referían a ésta como el “ministerio de la verdad” del libro 1984 de
Orwell: https://fortuna.perfil.com/2014-06-04-139859-la-secretaria-del-pensamiento-nacio-
nal-el-nuevo-ministerio-de-la-verdad/.
47 https://www.infobae.com/sociedad/2020/06/01/tras-la-polemica-por-la-infectadura-inte-
lectuales-y-cientificos-firmaron-un-carta-en-defensa-de-la-cuarentena/.

100
En el apartado de responsabilidad política destacaron la necesidad de
realizar una política de salud coordinada en todo el país, en cuanto a lo ci-
vil aconsejaban el uso de barbijo y acusaron a parte de la población por no
ser cuidadosas “Vimos en varias jurisdicciones en los últimos días cómo una
sola conducta irresponsable puede conducir a que se tengan que retrotraer
las medidas de apertura”.
En referencia a lo periodístico, la transcripción completa:

Responsabilidad periodística. Resulta indispensable que los me-


dios de comunicación asuman su rol entendiendo que, aun con sus
imperfecciones y efectos colaterales negativos, la cuarentena con-
tinúa siendo la mejor herramienta que tenemos para controlar la
propagación del virus y evitar miles de muertes. Cuanto mejor se
explique desde los medios masivos que si se respeta el aislamiento
necesitaremos menos tiempo de cuarentena, más posibilidades de
éxito tendremos.

A esta altura de las circunstancias, la grieta social se había estrechado


de manera abrupta. Los que defendían al gobierno desde lo político lo
hacían en absolutamente todos lo tópicos de manera uniforme, los que
criticaban algún aspecto, o varios, fueron puestos en la bolsa discursiva de
los “anticuarentena”, los que están a “favor de la muerte”, los “defensores de
la economía”, los “antipueblo” o simplemente “gorilas”.48
Originalmente, el tono confrontativo había sido marcado por el Pre-
sidente Aberto Fernández, quien no solamente había anunciado una cua-
rentena a ser respetada con el rigor de ley, sino que había vertido una serie
de consideraciones en tono elevado y transmitía un mensaje que, al coque-
tear con la base peronista, generaba divisiones muy tajantes tanto por el
contenido como por el tono.
A los diez días del inicio cuarentena había calificado de miserables a
empresarios: “Algunos miserables olvidan a quienes trabajan para ellos y en

48 Gorila es el mote peyorativo que los peronistas aplican a los antiperonistas.

101
la crisis los despiden”, (…) “A esos miserables les habló el papa Francisco y
ahora les digo yo que no dejaré que lo hagan”.49
Su punto más débil fue con la prensa, y el tema que lo crispaba era la
economía. El 13 de abril retuitteó un mensaje de un periodista kirchne-
rista cuyo contenido estaba dirigido a otro colega más crítico ““El gordito
lechoso dice en A24 que Alberto Fernández ‘se aferra a la cuarentena por las
encuestas’. O no entendieron la gravedad de lo que pasa o son muy malas
personas. Y no se puede ser buen periodista siendo mala gente”. Luego de las
críticas que recibió se disculpó y borró el twitt.50
En este sentido había maltratado en vivo a varios periodistas: Un en-
viado de Bloomberg le preguntado sobre la salida económica de la pande-
mia “La verdad es que discutí mucho sobre que me planteen esta cuestión en
el medio de una pandemia, porque hemos hecho un enorme esfuerzo con el
ministro [de economía], Martín Guzmán, para manejar esta situación, que
no es muy distinta a la que vive todo el mundo (…) yo sé que usted viene de
un medio especialista en esos temas, pero hoy prefiero no hablar de econo-
mía“. La respuesta había sido en un tono elevado y crispado.51
Luego cruzó a la periodista Luciana Geuna de TN (Grupo Clarín)
cuando se le consultó acerca de porqué el Secretario de DDHH había pe-
dido la liberación de Ricardo Jaime (preso por corrupción): “Hay que es-
tudiar más y no opinar tan fácilmente (…) “El problema son ustedes porque
hacen una mala lectura. Arrancan a decir que el Gobierno pidió que liberen
a alguien y el Gobierno no pidió nada”, le aclaró.52
El incidente en el momento más álgido de la cuarentena lo tuvo cuan-
do Cristina Pérez le preguntó sobre la polémica en torno a la intervención

49 http://www.laprensa.com.ar/487188-Alberto-Fernandez-llamo-miserables-a-los-empresa-
rios-que-despiden-en-medio-de-la-crisis.note.aspx
50 https://www.lanacion.com.ar/politica/coronavirus-argentina-alberto-fernandez-retuiteo-a-
gravio-al-nid2353608.
51 https://elintransigente.com/politica/2020/07/01/el-gobierno-esta-condenando-a-la-mise-
ria-a-gran-parte-de-la-argentina/.
52 https://urgente24.com/actualidad/politica/alberto-f-contra-periodistas-de-tn-hay-que-estu-
diar-mas-y-no-opinar-tan.

102
de la empresa Vicentín. En vez de responder el presidente dijo “la pregunta
funcionaría mucho mejor si Cristina dejara de lado las adjetivaciones” (…)
“Le recomiendo que además lea la Ley de expropiaciones, porque faculta a
que a la hora de expropiar uno pueda intervenir. Me ahorraría muchas cosas
si, por lo menos, leyera la Constitución y la Ley de expropiaciones”.53
Ninguna organización feminista llamó la atención sobre el maltrato
sufrido por la periodista, dando cuenta de la existencia de una militancia
selectiva que considera como iguales a aquellos que piensan desde la mis-
ma matriz política. De hecho, la única entrada que el buscador de Google
permite mostrar al respecto es de un blog de Eduardo de la Serna: “Una
breve nota feminista: Tras las respuestas presidenciales a Cristina Pérez,
hubo críticas del feminismo de derecha (como si eso fuera posible)”.54
De hecho, el diario peronista Página12 tituló la noticia “Cristina Pérez
vs. Alberto Fernández: el duro y divertido cruce sobre Vicentin”. Relatando
la noticia con un tono jocoso:

¿hay una chance de que haya un estadío intermedio para no llegar


a esa situación, que para muchos compromete las garantías al dere-
cho a la propiedad privada establecida por la constitución?

Alberto Fernández la escuchaba serio y al final esbozó una sonrisa.


“A mí me parece que la pregunta funcionaría mucho mejor si Cris-
tina deja de lado los adjetivos”. 55

Mas allá de el carácter del presidente o el comprensible nivel de pre-


sión al que está sometido, el hecho es que su comportamiento público atizó

53 Afirmó, además que “Yo se lo quiero marcar al oyente, porque el solo hecho de adjetivar
como ‘polémica y cuestionable’... Que diga: ‘Yo creo que es así‘, entonces. Yo eso lo entiendo,
pero eso no es el común, eso es lo que usted cree” (…) https://www.cronista.com/economia-
politica/Tenso-cruce-entre-Cristina-Perez-y-Alberto-Fernandez-por-la-intervencion-de-Vicen-
tin-20200618-0006.html
54 “Lo que hizo Alberto fue dignidad… y paciencia. ¿O resulta que, a una supuesta periodista,
traída a los MCS por el genocida Bussi, ahora tenemos que pedirle perdón por “cantarle las
cuarenta”?”. https://dejamelopensar.com.ar/2020/06/19/una-breve-nota-feminista/.
55 https://www.pagina12.com.ar/273011-cristina-perez-vs-alberto-fernandez-el-duro-y-di-
vertido-cruc.

103
las grietas existentes en la sociedad, radicalizando conductas extremistas,
tanto en su defensa como en lo que refiere a sus críticos.
Luego de que el kirchnerismo colocara en el ruedo el concepto de law-
fare. El abogado de CFK, Maximiliano Rusconi explicaría a la prensa como
la utilización de la ley y de los procedimientos jurídicos se convertían en
una operación de persecución: “Elegido un sector, por ejemplo político,
como enemigo, la ley y los procedimientos judiciales son utilizados por
los agentes públicos como una forma de perseguir a aquellos que fueron
estigmatizados como enemigos”.56
Consecuentemente, este concepto de guerra jurídica automáticamen-
te exceptuaba de culpa y cargo a todos los acusados y condenados por
corrupción, robo, estafa y demás delitos cometidos desde el Estado por
aquellos kirchneristas que en teoría se convertían en perseguidos políticos
por una derecha neoliberal y antipopular.
El caso más resonante en ese sentido es el de la dirigente Milagro Sala,
presa en la provincia de Jujuy por diversos delitos y caballito de batalla dis-
cursivo de la militancia kirchnerista que en la época de la presidencia de
Macri manifestaba que era una presa política. Al asumir Alberto Fernán-
dez el discurso debió cambiar para adaptarse a la realidad: si fuera presa
política sería responsabilidad de un poder ejecutivo arbitrario, así que Sala
pasó a ser oficialmente considerada como “una víctima”. 57
La naturalización de los ataques a la prensa en la época de la pande-
mia se convirtieron en moneda corriente y algunas normas tuvieron que
retrotraerse al hacerse públicas. Tal fue el caso del periodista Angel Etche-
copar, de perfil polémico y coprolálico que denunció el 18 de junio una
resolución del Ente Nacional de Comunicaciones (ENACOM) orientada
a restringir la presencia de invitados que no sean médicos o funcionarios

56 https://www.infobae.com/politica/2019/12/03/que-es-el-lawfare-el-significado-del-termino-
-que-uso-cristina-kirchner/
57 Estela de Carlotto: “Alberto nos dijo que Milagro Sala no es presa política, sino detenida
arbitraria”. https://www.perfil.com/noticias/politica/estela-de-carlotto-alberto-nos-dijo-que-mi-
lagro-sala-no-es-presa-politica-sino-detenida-arbitraria.phtml”.

104
en los programas de televisión. Luego de que el periodista entrevistara al
director del ente, se volvió sobre los pasos y la normativa se convirtió en
recomendación.58
La noche el 20 de junio, en una cena televisada el mismo periodista
manifestó que para él CFK era un cáncer para argentina. Más allá de sus
disculpas, los medios afines al gobierno comenzaron a plantear seriamente
un castigo para los periodistas que se expresasen de maneras incorrectas
o violentas aduciendo cuestiones de género y derechos de las mujeres.59
Página12 directamente planteó que el periodista había ejercido una
política del odio y puso en consideración de los lectores si “¿La penaliza-
ción de estos discursos es válida? ¿Debe haber límites a la libertad de expre-
sión?”. El solo hecho de poner sobre la mesa del debate la posibilidad de
avanzar contra la libertad de expresión es, en sí, un acto de censura.60
Noam Chomsky, en su libro de principios de los 90 hablaba del con-
cepto de la democracia y la importancia de informar al público, decía que
en las sociedades avanzadas como la norteamericana se gobernaba a espal-
das del ciudadano común y se lo mantenía aislado para que no se inmis-
cuyera en los asuntos públicos. En ese esquema la prensa jugaba un papel
importante.61
Chomsky afirma, sobre la importancia de la información que “cuando
una sociedad se hace más libre, a través de la lucha popular que amplía el

58 El Enacom (Ente Nacional de Comunicaciones) emitió un comunicado en el que actualiza y


refuerza las recomendaciones y medidas de emergencia establecidas por la pandemia
“Enacom solicita limitar invitados en programas para contribuir al aislamiento”, en el comuni-
cado se recuerda que “de acuerdo a la normativa vigente, sólo podrá concurrir a los estudios
de los diferentes medios de comunicación la dotación mínima de personal afectado para la
continuidad de las emisiones. Respecto de los invitados, recomendamos que concurran, con las
medidas sanitarias adecuadas, de manera excepcional y siempre que ello resulte imposible de
realizar de manera remota “. https://www.seprin.info/2020/06/18/mirtha-de-censura/.
59 https://infocielo.com/nota/119804/baby-etchecopar-dijo-que-cristina-era-el-cancer-de-ar-
gentina-y-luego-pidio-disculpas/
60 https://www.pagina12.com.ar/275094-de-baby-etchecopar-a-los-trolls-que-hacer-con-el-
-discurso-de
61 Chomsky, Noam. Política y cultura a finales del siglo XX. Una panorama de las actuales ten-
dencias. Buenos Aires: ARIEL, 1996.

105
ámbito de libertad, resulta más difícil controlar a la chusma por la fuerza.
Y es necesario, en consecuencia; apoyarse cada vez más en la propaganda”
(Idem). Cuando habla de los medios de control dice que hay un segundo
método: separar a las personas.

Si la gente está sola, si la gente más pobre, gente impotente, combate


sola contra el poder concentrado, está desvalida. No sabe qué pen-
sar, no puede tener ideales, ni tampoco realizarlos, no se ve capaz
de hacer nada por ellos. Es muy importante, pues, destruir las orga-
nizaciones y aislar al ciudadano.

Se podría afirmar que en la Argentina esto se cumplió con mayor o


menor efectividad en los 90s. Pero es de destacar que el peronismo ha
dado un paso más adelante sobre las formas de organización y las estruc-
turas de militancia, No destruye las individualidades, sino que adquiere
adquiere el control mismo de las organizaciones. Desde los sectores po-
líticos que dominan el país se les impone una agenda, una doctrina y, al
mismo tiempo, les ofrecen subsidios y concesiones.
De esta manera se instalan agendas que distraen a la gente común.
Más allá de las dicotomías que se establecen para ser discutidas y para que
la gente escoja bandos para defender, se establecen temas: el campo y la
oligarquía terrateniente, las discusiones territoriales, el sistema de salud, la
pesada herencia, el mismo coronavirus, los runners, el odio, el género, la
inseguridad, el grupo Clarín, los empresarios insolidarios, la representati-
vidad popular, etc. Algunos, vale aclarar, son problemas o temas genuinos,
pero ninguno es tratado de forma tal que afecte la agenda de los grupos de
poder, sean o no afines al peronismo.
El banalizar las cuestiones y plantearlas desde falsos binomios impide
el análisis profundo de las cuestiones. Por objetivos políticos se distrae
a la población para que no mire lo que los dueños del poder hacen. Se
descalifica a los que poseen pensamiento crítico, se etiqueta a los rivales
y luego se crea la ilusión necesaria para que la gente vote por un bando u
otro, cuando en realidad, si se los mira a la luz de la historia reciente, todas
las opciones representan al mismo bando reconfigurado para la ocasión.

106
Por esta razón se adoctrina en una dirección que permite y alienta el bo-
rrar la historia. En nuestro caso, la cuarentena sienta perfecto para estas
maniobras, porque la gente está cansada, con miedo de morir, susceptible
y generando identidades al filo del abismo, en el borde de la crisis.
Y como afirma Charles Taylor “nuestra identidad se moldea en parte
por el reconocimiento o por falta de éste; a menudo, también por el falso reco-
nocimiento de otros, y así, un individuo o un grupo de personas puede sufrir
un verdadero daño, una auténtica deformación si la gente o la sociedad que
lo rodean le muestran, como reflejo, un cuadro limitativo, o degradante o
despreciable de sí mismo”.62
Ambos bandos radicalizados, y extremos de la grieta, colocan a la ciu-
dadanía en el centro de un huracán cada vez más autoritario volviendo a
discutir cuestiones precámbricas, básicas de las libertades y los derechos.
Como si el conocimiento, el avance de la humanidad y su derrotero nunca
hubieran existido. Rebajan a la ciudadanía en los lodos ideologicistas dan-
do discusiones ridículas y carentes del sentido de la verdad, del conoci-
miento de la historia y el mantenimiento de los mínimos contenidos éticos
necesarios para la convivencia.
De esta manera, los discursos, las acciones, las respuestas y la desazón
que se dan en épocas de crisis tienden a profundizar no solamente los
enfrentamientos, sino el sentido de pertenencia o exclusión de un indivi-
duo o grupo de individuos. Pero cuando es el Estado mismo quién marca
la agenda, elabora y difunde el discurso, castiga simbólicamente al que
piensa distinto y al mismo tiempo domestica a la sociedad para seguir una
lógica política, las libertades comienzan a flaquear y el fascismo se presta
a resurgir.

62 TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del reconocimiento. Fondo de Cultura


Económica. México, 2009. , 53-54.

107
4. Sobre la estructura política y la matriz ideológica, algunas aclaracio-
nes prepandemia

Esta breve reseña tiene por objetivo llamar la atención sobre lo si-
guiente: más allá de los discursos que estos políticos esgrimen, todos
ellos han construido su poder intentando cooptar la estructura del Es-
tado sin abandonar, excepto cuando la economía así se los permitía,
la estructura del modelo neoliberal impuesto por el peronismo en la
época menemista y la profundización de su agenda en el período de la
pandemia.
Para entender la particular situación política de Argentina en el con-
texto de la pandemia es necesario dejar de lado las referencias normales
cuando se habla de un presidente o del poder político como una unidad.
Es importante señalar, en primer lugar, que se trata de un país presidencia-
lista más que de una república parlamentarista.
A diferencia de otros países en los cuales existe una suerte de parla-
mentarismo equilibrado en el cual un presidente no puede disponer del
Estado, la tradición argentina suele medirse por el poder de los presiden-
tes y su capacidad para imponer voluntades en los ámbitos del congreso
y el senado. Sobre todo, cuando pertenecen al partido peronista, ya que
el radicalismo no suele poseer mayorías en las cámaras cuando gana las
elecciones.
Analizar la estructura del poder de Argentina de forma que permi-
ta dilucidar quién es quién y qué lugar ocupa en una trama que se pre-
senta dinámica a simple vista, implica una mirada diacrónica basada en
separar los discursos de las prácticas públicas superficiales y las miradas
adoctrinadoras.
Existe una lógica interpretativa altamente expandida que muestra un
sistema neoliberal que, si bien encontró sus bases ideológicas antikeyne-
sianas en las fomentadas por los herederos de la Sociedad de Mont Pelerain
e implementadas en el Chile de Pinochet y sus intentos de penetración
en la última dictadura militar argentina, fue instaurada por el peronismo

108
durante la presidencia de Carlos Menem, quien tuvo que renegar de su fe
islámica y ser apóstata para luego convertirse en cristiano y, más tarde, ser
presidente.63
La crisis de 2001 evidenció los límites del modelo. Luego de la acefalía
política, Néstor Kirchner llegó a la presidencia y produjo una profunda
crítica del modelo anterior. De orígenes políticos casi desconocidos para la
población argentina, este exgobernador de una pequeña provincia patagó-
nica construyó poder en base a una serie de alianzas personales con políti-
cos territoriales, aprovechando la compra de voluntades propiciada por las
condiciones económicas ventajosas brindadas por algunas exportaciones
de petróleo, productos agrícolas y un ciclo de rebote de la economía.
Pragmáticamente Kirchner borró su historial privatista en el caso YPF
y propició un nuevo modelo centrando sus discursos en lo “nacional y
popular” exacerbando el nacionalismo, explotando la crítica al neolibe-
ralismo (que siempre había fomentado en su accionar) y promoviendo un
capitalismo de amigos que permitió adosar personajes advenedizos -de su
confianza- al esquema de corrupción estatal.
El kirchnerismo tuvo la habilidad de cooptar a la intelectualidad pro-
gresista, seduciéndola con la incorporación de un discurso de izquierda
nacionalista y la revalorización del discurso de los DDHH como arista
simbólica. Todo ello, aprovechando la estructura estatal y la temporal bo-
nanza económica en un mundo que espabilaba de la crisis del primer de-
cenio del siglo XXI.64
Parte de la estrategia implicó un acceso más profundo y controlado a
los medios de comunicación mediante su compra directa por parte de sus
amigos (algunos acusados de testaferros), el ataque a sus exaliados como
Magnetto (Grupo Clarín), el diario la Nación y el estrangulamiento de los

63 A pesar de la separación de la iglesia y el Estado, hasta la reforma de 1994, para poder ser
presidente en Argentina debía profesarse la fe católica.
64 El texto aconsejado para esta trama es el del periodista de investigación MON Hugo Alcona-
da. La Piñata. Planeta: Buenos Aires, 2015.

109
pequeños medios independientes a partir de la eliminación de la pauta
estatal y la intimidación a sus anunciantes.65
Luego del fallecimiento de Néstor Kirchner, sobrevino su esposa Cris-
tina en la presidencia de la nación, marcando un personalismo importante
y continuando sus políticas, que incluyeron la expropiación y nacionaliza-
ción de algunas empresas ahora estatales que terminaron beneficiando a
empresarios amigos y costando al país sumas mayores que los respectivos
patrimonios. CFK es un personaje más advenedizo en el entramado de po-
der, aunque siempre fue importante en su labor como senadora acompa-
ñado por su eterno aliado Miguel Ángel Pichetto (luego candidato macris-
ta). Si bien su irrupción y salto a la popularidad se dio luego de la muerte
de Néstor, fue la legisladora que propuso en el 2007 la Ley Antiterrorista
Argentina que fue aprobada en 2011 (tales eran las exigencias de EEUU
luego de los atentados a las Torres Gemelas). Luego, como presidenta, y ya
convertida en millonaria, presionó para votar en contra del aborto, vetó la
jubilación móvil del 82% e intentó llegar a modificar la constitución para
acceder a una tercera elección consecutiva.
Mauricio Macri, hijo de la burguesía empresarial nacional, que re-
presentó simbólicamente la posibilidad de acabar con una plutocracia
corrupta. No pudo -o no le interesó- hacerlo y fue incapaz de pagar la
deuda externa dejada por el gobierno anterior, profundizando más aún su
compromiso con los capitales externos. Luego de esta breve experiencia
de corte liberal, y en gran parte determinado por el fracaso económico
del gobierno establecido en 2015, triunfó el tándem Alberto Fernández y
CFK.66
Hoy la situación política interna de quienes gobiernan aún no ha que-
dado claramente definida. Fernández es un presidente que no ha logrado

65 Tal fue el caso de Crónica de la Argentina, de Jorge Lanata, tal como lo revelaron los docu-
mentos de Wikileaks publicados en Argentina por el periodista Santiago O`DONELL en Argen-
leaks Buenos Aires: Sudamericana, 2011.
66 A diferencia de casi todos los procesos electorales mundiales, fue la vicepresidente quién
anunció a su candidato a presidente y la dinámica encontró su correlato en la efectivización del
poder.

110
construir poder y establecer un grupo propio en las estructuras del Estado
por carecer de un handicap natural en un contexto en el cual los seguido-
res leales a Cristina Kirchner no lo reconocen como líder, cuestión que
manifiestan de forma constante y en los medios de comunicación. Esta lu-
cha permanece sin dirimirse claramente. No se sabe si Alberto Fernández
se respaldará en CFK y la Cámpora, o si buscará la mediación de un sector
menos familiar, compuesto por Massa y la oposición, que se ha mostrado
dialoguista en el contexto.
Si se hace un análisis somero de las alianzas políticas y la prevalencia
de uno u otro de los detentores del poder, se podrá observar que todos fue-
ron hombres de confianza de todos, amigos o enemigos ocasionales pero
surgidos de la cantera menemista y neoliberal.
No solamente Macri fue hijo pródigo del Menemismo. Daniel Scio-
li fue diputado nacional de Menem, exvicepresidente, exgobernador de
Buenos aires y actual embajador en Brasil. Alberto Fernández, con perfil
activo de articulador político, trabajó con Menem a cargo de la Superin-
tendencia de Seguros de la Nación, con Eduardo Duhalde en Gerenciar
SA y el grupo Bapro, legislador en la ciudad de Buenos Aires del grupo del
ex ministro de economía Domingo Cavallo, jefe de gabinete del gobierno
de Néstor Kirchner, lobista de YPF, contacto y mediador con la embajada
norteamericana.
Podemos mirar también las trayectorias de Gustavo Beliz, el actual se-
cretario de asuntos estratégicos del gobierno. Fue ministro del interior de
Menem y ministro de justicia de Néstor Kirchner, luego empleado del BID.
Sergio Massa fue militante del derechista Unión de Centro Democrático,
padre intelectual y ejecutor del neoliberalismo nacional. Luego migró al
peronismo, fue jefe de gabinete de CFK, luego su rival político y de vuelta
aliado como presidente de la cámara de diputados de la nación. El espía
Antonio Stiuso comenzó su carrera a fines de la dictadura militar y fue

111
hombre de confianza y espía de Néstor Kirchner y enemigo declarado de
CFK.67
En el ámbito de los que realmente manejan el poder político, nadie
resiste un archivo. Hay algo que no suele preguntarse en público y el pro-
gresismo, tan crítico discursivamente con el neoliberalismo siempre ha
evitado: es el debate de por qué el Carlos Menem ha integrado, en los úl-
timos 15 años el frente político kirchnerista. Algunos sugieren que es de-
bido a su pacto de impunidad y cuidado mutuo originado por las causas
penales en las que fue hallado culpable como el tráfico de armas a Ecuador
y Croacia.68
Mas allá de sus pertenencias políticas, lo observable es el giro discur-
sivo que se elabora hacia la izquierda en medio de una seducción a la in-
telectualidad progresista que ayuda a deshistorizar las trayectorias y las
pertenencias políticas que forjaron quienes navegan en el timón del poder
del Estado durante los últimos 30 años.
Estas alternancias estratégicas precisan de un conjunto de legitimida-
des que van más allá de lo discursivo, ya que es necesario controlar polí-
ticamente a las masas de trabajadores que, siendo siempre los más casti-
gados por un modelo capitalista que no ha cedido espacios, deben rendir
pleitesía a los gobernantes que definen sus destinos en nombre del pueblo.
Para ello, el peronismo siempre ha podido contar con sindicatos domes-
ticados, dirigidos por obreros que se han hecho millonarios gracias a su
militancia continua y que suelen alternar el poder a través de mecanismos
típicos de una nobleza advenediza hereditaria.

67 Ver el texto de YOUNG, Gerardo. Código Stiuso. Planeta: Buenos Aires, 2015. En este texto
hay un análisis interesante del submundo de los servicios de inteligencia y la descripción de su
accionar en los últimos gobiernos.
68 GASPARINI, Juan Carlos. El Pacto Menem-Kirchner. La matriz de corrupción que reúne en
Suiza los destinos de los ex presidentes. Burnos Aires; Sudamericana, 2019. El autor decía en
una entrevista que “Se trata de un pacto de no agresión en Suiza de dos ex presidentes argenti-
nos. Expresa una actitud funcional de Kirchner a preservar la impunidad de Menem, una forma
de consolidar su propia impunidad, en un país cuya banca albergó los famosos 520 millones
de dólares de los fondos de Santa Cruz, nunca rendidos en su cabal transparencia. Kirchner
decidió no apelar la decisión de la justicia de Ginebra de no entregar las cuentas de Menem a la
justicia argentina” https://www.lapoliticaonline.com/nota/nota-56820/.

112
De hecho, los sindicatos suelen servir como tropa de choque al parti-
do peronista que encuentra en las patotas sindicales el complemento a los
grupos paraestatales que se convierten en brazos de violencia, domestica-
ción y sofocamiento de las protestas sociales que se opongan al poder de
turno pero que nacen en génesis independientes o ajenas.
El historiador de izquierda Fabián Harari ha investigado y afirmado
que éstas son bandas represivas paraestatales cuyo contacto con grupos
delictivos de barras bravas (torcidas organizadas), mafias y narcotrafican-
tes permitió a los gobiernos el armado de grupos irregulares con objetivos
coercitivos. Destacando que el kirchnerismo es responsable de 46 asesina-
tos de obreros por parte de estas mafias.69
Ahora bien, uno se pregunta ¿dónde está la izquierda? Aliada, domes-
ticada o excluida. La izquierda parlamentaria suele ser acompañante fun-
cional de los poderes que gobiernan al país. Así lo demuestran las alianzas
políticas con la derecha y a la hora de votar ciertas leyes o medidas en el
congreso de la nación. Es el Caso de Libres del Sur, de los socialismos del
Frente de Todos o de independientes como Victoria Donda, que consi-
guen siempre algún cargo oportuno que les permite ampliar su militancia
y seguir sobreviviendo en la lid política
Otra izquierda, mucho más genuina, es la excluida, siendo su proble-
ma principal, la incapacidad de desprenderse de un discurso confrontativo
que utiliza una retórica marxista basada en la lucha de clases y que cae en
clichés explicativos que no suelen contribuir a generar el pensamiento crí-
tico en la gente a la que se lo comunican. Poseen un discurso poco capaz
de ser debatido entre los ciudadanos a los cuales la política no les importa,
sino que desean vivir sus vidas tranquilas, subsistiendo lo mejor posible

69 HARARI, Fabián. La Triple K. Los grupos de represión paraestatales en la Argentina recien-


te (1999-2016). Buenos Aires: Ryr, 2019. “Con el kirchnerismo, de los 46 asesinatos de obreros
en situación de conflicto social, 33 fueron ejecutados por fuerzas estatales y 13 por fuerzas
irregulares, es decir, patotas. El asesinato de Fuentealba o Mariano Ferreyra, entonces, no son
excepciones ni excesos, sino que se inscriben en una línea de comportamiento, desde el año
2000 e incluye la masacre de Plaza de Mayo (20 de diciembre de 2001) y Puente Pueyrredón
(26 de junio de 2002)” https://razonyrevolucion.org/algo-para-leer-la-triple-k-de-fabian-harari.

113
sin estresarse demasiado en los vericuetos del sistema, más o menos como
lo plantea Galbraith en la Cultura de la Satisfacción.70
¿Quién ganó realmente las elecciones? Apuntes sobre la agenda
económica previa y la pospandemia
En un contexto de desencanto y frustración con el gobierno macrista
y sus ministros CEOs, gran parte de los votos que hicieron la diferencia en
el 2015 fueron depositados en Alberto Fernández y otros candidatos me-
nores. El actual presidente mostró maneras moderadas y diálogo con mu-
chos opositores, forjando alianzas con otros sectores peronistas, radicales,
progresistas y de izquierda, construyendo consensos y sumando un caudal
político temporal -pero determinante- a una base de votos que posee el
kirchnerismo de manera constante en la segunda década del siglo XXI.71
El triunfo electoral de Alberto Fernández le permitió acceder a la pre-
sidencia en diciembre de 2019. A pesar de un contenido discursivo an-
tineoliberal, conciliatorio en lo político pero crítico con la derecha, las
reformas que encaró parecieron el recrudecimiento del mismo ciclo de
Macri y una profundización del modelo anterior, pero con un tinte redis-
tributivo con los sectores bajos, ofreciendo algunas sumas fijas de entre 30
y 60 dólares para poseedores de planes sociales de diversa índole. El con-
junto de medidas que se describen a continuación, fueron llamadas “LEY
DE SOLIDARIDAD SOCIAL Y REACTIVACIÓN PRODUCTIVA EN EL
MARCO DE LA EMERGENCIA PÚBLICA” (Ley 27541).
Implementó un ajuste solapado, aumentos de impuestos, beneficios
al capital especulativo y la continuidad del modelo anterior que cosechó
elogios por parte de los grandes grupos capitalistas, quienes salieron a fe-
licitarlo y a apoyarlo públicamente.72

70 GALBRAITH, John Kenneth. La cultura de la satisfacción. Barcelona: Ariel, 1992.


71 En un país en el cual las elecciones son obligatorias y con un padrón de 33,858,733 de elec-
tores inscriptos, con una participación del 81,31% el Frente de Todos, encabezado por Alberto
Fernández obtuvo el 48,24% de votos, triunfando sobre Macri, quien sacó el 40,28%. En tercer
lugar, quedó el peronista Roberto Lavagna (6,14%), seguido por Nicolás del Caño del Frente de
Izquierda (2,16%).
72 http://servicios.infoleg.gob.ar/infolegInternet/anexos/330000-334999/333564/norma.htm.

114
Alejandro Werner, director del FMI para el Hemisferio Occidental, se
explayó sobre el caso manifestando que “Un eje importante en este sentido
será el ajuste del gasto que comenzó el Gobierno al desindexar las jubilacio-
nes y la sustentabilidad del aumento de impuestos que supone un aumento
del 2% del PBI”.73
Por su parte, Cristiano Rattazzi, Presidente de Fiat Argentina; Vice-
presidente de la Asociación de Fabricantes de Automotores, lo felicitaba
abiertamente: “Creo que fue brillante. (…) Todos pensaban que Guzmán iba
a emitir, pero él dijo “acá no se emite, yo quiero controlar la inflación, quiero
un país serio y quiero arreglar con los acreedores (…) Hay medidas dolorosas
como el sistema previsional, pero si no se reforma, no hay solución de ningún
tipo, excepto volver a la hiperinflación dentro de meses o en pocos años. Hay
que seguir reduciendo gastos en todos los sectores”.74
Con respecto a las jubilaciones (aposentadurías) se dieron bonos de
hasta 5.000 pesos a los que ganan la mínima, para completar un tope com-
pleto hasta 19.068. En contrapartida, se congelaron los aumentos con el
sistema de cálculo vigente y sólo se establecen subas arbitrarias por de-
creto presidencial cada tres meses. Con ello los pasivos pierden la carrera
contra la inflación y ven reducida la entrada de dinero.
Se estableció un “dólar solidario” por 5 años con recargo del 30% a la
compra de moneda extranjera, incluidos los cheques de viajero y gastos
de viajes en el exterior, reduciendo el tope de compra y/o extracción por
cajeros a 200 U$S mensuales.
Esta medida exceptuaba a los políticos funcionarios jerárquicos de
empresas del Estado e hijos de desaparecidos. El dólar oficial pasó de 60
pesos a 83 en dos días. A comienzos de julio la moneda se cotiza a 93.44
pesos, generando 8 tipos de dólar y blue a 128.

73 https://www.infobae.com/economia/2020/01/09/el-fondo-monetario-elogio-el-primer-
-mes-de-gestion-del-nuevo-gobierno-pero-espera-los-detalles-de-un-plan-economico-integral/.
74 https://www.infobae.com/politica/2020/01/01/cristiano-rattazzi-el-primer-mes-de-gobier-
no-de-alberto-fernandez-fue-brillante/ También agregaba que “habiendo ahora dos partidos
fuertes, haya una alternancia de 4 u 8 años, que es muy sana y que le hace muy bien a la de-
mocracia republicana”.

115
Se dio una amnistía para todos los acusados por causas de contraban-
do y tráfico ilegal de bienes con una retroactividad de cuatro años, lo cual
hizo desaparecer casi automáticamente todos los procesos y denuncias de
los tribunales.75
Se incrementaron los impuestos del tributo que pagan automóviles,
motos y lanchas, y se permite ajustar las tarifas de servicios básicos a partir
de junio.
Se suben los impuestos al patrimonio de 0,50% a 1,25%, según el ex-
cedente de patrimonio. Para activos radicados en el exterior se facultó al
Ejecutivo hasta duplicar la alícuota (a 2,50%), pero se las reducirá al nivel
original si al menos un 5% de esos activos son repatriados. Finalmente se
estableció un techo de 2,25%. En la provincia de Buenos Aires se aumen-
taron los impuestos inmobiliarios un 50% a algunos sectores.
El Ministerio de Economía realizó tres licitaciones de Letras del Teso-
ro en pesos (Letes). La Ley de Emergencia autorizó al Tesoro a tomar U$S
4.571 millones de reservas del BCRA para afrontar vencimientos. Asimis-
mo, se eximió del Impuesto a la Renta Financiera a todas las colocaciones
en moneda nacional a plazo fijo y en títulos públicos argentinos. Estos
mismos títulos se dejaron de pagar en abril de forma unilateral postergan-
do los vencimientos de un default selectivo para el mes de diciembre.
Subió el 100% el impuesto al cheque por retiro de dinero en efecti-
vo de las entidades financieras para las grandes empresas que tributar un
0,6% adicional. También se acordó una retracción del precio de los com-
bustibles de YPF por un mes.
También se dieron una serie de montos fijos a varios planes sociales
para la gente con menores ingresos, mitigantes de la inflación galopante
que traía el período. Esto permitiría llegar a rápidos acuerdos con varios
sectores sociales y a las organizaciones que manejaban los planes y habían
confrontado anteriormente con el gobierno de Macri.

75 https://aduananews.com/blog/La-extinci%C3%B3n-penal-aduanera-por-efecto-ley-solidari-
dad-social.

116
Con el objetivo de no utilizar reservas para afrontar compromi-
sos locales, se priorizó el pago de la deuda que se dirimía en tribunales
extranjeros.76
Un dato interesante de destacar y que iba a contramano del discurso
oficial, fue que el único acreedor privilegiado al que siempre se le pagó fue
el Fondo Monetario Internacional. El 8 de mayo los diarios anunciaron el
desembolso del Estado nacional para pagar intereses de la deuda contraída
con la entidad. Al día siguiente, La Izquierda Web titulaba “El gobierno
privilegia al FMI pagando a escondidas US$324 millones”.
Esta profundización del modelo neoliberal que muchos criticaban en
lo teórico y discursivo, pero no percibían para nada su implementación,
fue aprobado contando con el apoyo de tres legisladores de la oposición, la
izquierda aliada y varios partidos independientes.77

5. Algunas conclusiones parciales

La cuarentena fue implementada de forma temprana con el objetivo


de preparar al sistema de salud ante el panorama que mostraban los paí-
ses europeos. Luego de más de 100 días de impuesto el aislamiento social
obligatorio no se percibe una estrategia de salida, con el agravante que, en
la región metropolitana de Buenos Aires, se ha vuelto a la fase uno a partir
del día 1 de julio. La misma durará hasta el día 16 pero aún no se sabe la
eficacia de la estrategia que pretende aplanar la curva de contagios. En
cuanto al sistema de salud presenta una ocupación de aproximadamente el
50% de las camas de terapia intensiva (UTI) a nivel país. Mientras que los
testeos masivos sólo se han registrado en algunos sectores de la urbe que
presentaron complicaciones.78

76 De esta manera no cumpliría con el Bonar 2020, (USD 2.650 millones), Bonar 2024, (USD
1.560 millones); Discount Ley Argentina (USD 600 millones); Par Ley Argentina (USD 48,8 millo-
nes) ni con las Letras del Tesoro emitidas también en dólares por unos 3.900 millones.
77 https://drive.google.com/file/d/1xS2qCvp7yWq_VTcwnnwXUqP8OSE9oNBa/view.
78 https://www.infobae.com/politica/2020/06/25/coronavirus-en-argentina-como-aumento-
-la-ocupacion-de-camas-de-terapia-intensiva-en-los-ultimos-tres-meses/.

117
En lo que se refiere al grado de preparación del sistema de salud frente
al brote, las autoridades informan que no podría soportar el crecimiento
exponencial de los contagios. La salud se ha visto prácticamente suspen-
dida en algunos formatos ya que la gente ha dejado de concurrir masiva-
mente a hospitales y clínicas posponiendo la atención primaria y diagnós-
tica de otros problemas que no presentan urgencia, pero, sin una profilaxis
adecuada, traerá grandes problemas a futuro.
Desde el punto de vista de los pacientes estos se darán a nivel indivi-
dual pero también se ha detectado una merma importante de ingresos en
el sector de la salud privada repercutiendo en la desactualización de insu-
mos normales y en el pago de los salarios de los trabajadores de la salud.79
El sistema educativo no trae buenas noticias. No hay datos concretos
sobre el efecto de la suspensión de la enseñanza en sus distintos niveles y,
si bien se ha registrado un gran esfuerzo de instituciones y docentes que
realizaron enseñanza virtual (sin existir una preparación previa específi-
ca), dichos esfuerzos son aún inconmensurables.
Existe un gran desconocimiento del alcance de lo perdido por no
poderse medir los efectos de lo hecho. Una gran cantidad de estudiantes
quedaron fuera del sistema por falta de conectividad y de acompañamien-
to pedagógico adecuado. Ello sin contar que la aparición del virus y las
medidas tuvieron el efecto de encapsular el momento, deteniendo en el
tiempo una serie de conflictos en el ámbito educativo. Lejos de encontrar

79 Según una encuesta de la Universidad Nacional de la Matanza realizada el 2 de junio, “Asimis-


mo, el 43,8 por ciento manifestó sentir angustia, el 33,6 por ciento insomnio, el 22,6 por ciento
miedo y el 12,4 por ciento depresión. Además, el 76,8 por ciento aseguró no recibir acompaña-
miento psicológico para abordar alguna de las manifestaciones anteriormente mencionadas,
pese a que el 85,5 por ciento de los encuestados cree necesaria la asistencia”. Solamente 57,3 por
ciento sostuvo que, en el lugar de trabajo, se proveen los recursos necesarios para desempeñar
las tareas. https://www.unlam.edu.ar/index.php?seccion=-1&accion=difusion&idNoticia=9921.

118
una solución a los mismos, el costo es que algunos estudiantes no posean
continuidad educativa desde hace, por lo menos, un año.80
La desigualdad social podría profundizarse a partir de un acceso dife-
rencial a la educación, ya que el acompañamiento de los hábitos de estudio
se ve favorecido -aunque no asegurado- en familias que poseen más recur-
sos materiales o de capital social y cultural. También debería considerarse
el grado de conectividad de internet que alcanza al 65,8%% de los hogares
argentinos, pero representando apenas el 30% del territorio, es comple-
mentado con conexiones de datos a través la telefonía celular de pago, cuya
utilización está relacionada más al acceso cultural de la mensajería y redes
sociales.81
El abordaje de la pandemia en los medios de comunicación tradicio-
nales como radio y televisión (en señales abiertas o de cable) que suelen
responder en muchos casos a sus espónsores económicos, terminaron
convirtiendo la pandemia en un espectáculo alarmante y eterno. Ya sea
por la necesidad de captación de audiencia o por cuestiones comerciales
o de agenda política, han contribuido a difundir un nivel de saturación y
miedo en una población que ve mermada la capacidad de movimiento y
de socialización a la que estaban acostumbrados.
El contexto de encierro favoreció el aumento de los casos de femici-
dios, la violencia de género y los conflictos familiares, según datos brinda-
dos por la Casa del Encuentro (ONG) hasta el 3 de junio se habían come-
tido 67 femicidios.82

80 Tal es el caso de la provincia de Chubut, en la cual la lucha docente incluyó huel-


gas y retenciones de servicio desde julio de 2019 hasta prácticamente diciembre, pa-
ros en febrero y marzo y la suspensión de las actividades áulicas entre el 20 de marzo
hasta, como mínimo, agosto de 2020. https://www.infobae.com/educacion/2019/11/18/
tras-17-semanas-de-paro-docente-hubo-acuerdo-en-chubut-y-el-martes-vuelven-las-clases/.
81 Es de destacar que la conectividad también debe ser relacionada con la velo-
cidad. Siendo que el período de la pandemia registró bajas importantes en la ve-
locidad de la navegación. Cámara Argentina de Internet: https://www.cabase.org.
ar/wp-content/uploads/2020/02/InfografiaVF-01-01.png, y: https://elcanciller.com/
conectividad-4-de-cada-10-hogares-argentinos-no-tiene-acceso-fijo-a-internet/.
82 https://www.inforegion.com.ar/2020/06/13/se-cometieron-67-femicidios-durante-la-cua-
rentena-tres-victimas-en-la-region/, Casa del Encuentro: http://www.lacasadelencuentro.org/.

119
El nivel de intimidación ejercido por fuerzas del orden en diversas
partes del país no ha sido reconocido como una problemática global inhe-
rente al mismo Estado, sino muchas veces, relativizado, acallado, ignorado,
deslindado (en responsabilidades) hacia otros actores sociales. Es posible
-o no- que a partir del abordaje de estos hechos se cree una sensación de
naturalidad, impunidad y un sentimiento de anomia con respecto a lo que
al estado de derecho se refiere.
Los sectores de los DDHH solo se han manifestado en casos puntua-
les, pero no en la generalidad, tal vez debido a intereses políticos contra-
puestos. En el caso de la violencia de género y los femicidios se han hecho
leves manifestaciones contra ellas por internet o declaraciones de ciertos
grupos, pero no se trató de la visión del Estado como un todo, sino que se
parcializaron las protestas, que estuvieron centradas en personas puntua-
les, intendentes u algún gobernador, pero siempre desde una posición de
oposición política, no basada en derechos universales.
La politización de la cuarentena ha contribuido no solamente a la des-
información pública y la capacidad de centrar a la ciudadanía en los peli-
gros reales del virus y su propagación, sino que trajo como consecuencia la
instauración de falsas dualidades que se manifestaron en la construcción
de un imaginario discursivo de vida Vs economía, grieta-antigrieta, cua-
rentena-anticuarentena, cuarentena inteligente-obediencia, capital-pro-
vincia, discurso oficial -discurso del odio, autoridad del Estado-libertad,
libertad-comunidad, autoridad-autoritarismo, corrupción-política, poder
concentrado-república, entre otros.
Estos planteos usualmente presentados como dualidades hacen que la
gente sea propensa a elegir bandos, y luego defender esas posiciones como
parte de la construcción de una identidad, vea alterada la posibilidad de
un pensamiento crítico que les brinde la oportunidad de pensar reflexiva-
mente más allá de los miedos instaurados y de las opiniones políticas que
comienzan a profundizarse como extremas.
No hay una estrategia económica para la salida de la cuarentena, así
como tampoco una previsión de las futuras medidas que se tomarán para

120
paliar la inevitable crisis que se está acelerando en el contexto del aisla-
miento social.
En el caso de los adultos mayores han sufrido este período por ser po-
blación de riesgo y víctima real, así como por la merma de sus ingresos por
decisión de un Estado que, en vez de utilizar el sistema de referencia que
le permitía ajustar sus mensualidades al avance de la inflación, depende de
su arbitrariedad para esperar un aumento a intervalos regulares.
Asimismo, el panorama referido impactó profundamente en los secto-
res medios y en los más humildes se ven afectados profundamente por la
crisis que conlleva el aislamiento social y sus derivados económicos. Más
allá de la cantidad de empleos perdidos se ha dado la imposibilidad de
continuar, en el corto plazo, con emprendimientos que ofrezcan, desde el
ámbito de lo privado, una salida laboral a los más necesitados. Si a eso se
le suma la gran cantidad de trabajo informal que fue interrumpido en los
últimos meses, el panorama poco alentador.
Una tendencia que parece marcada en este proceso catalizador en lo
social y laboral tiene un correlato inesperado que superó los niveles de la
crisis de 2001 y que tiene que ver con la búsqueda de trabajo, seguridad y
de calidad de vida en el exterior. Varios headhunters han puesto la mirada
en muchos jóvenes con formación profesional que desean emigrar: según
la consultora Valuar, las solicitudes de empleo fuera del país, han subido a
niveles históricos en el marco de la cuarentena y, una vez que se levante, es
esperable una migración importante.83

83 Valuar es una empresa asociada al Agilium Worldwide executive group. Entrevista en el


programa LANATA SIN FILTRO, de Radio Mitre a la directora ejecutiva de Valuar, Cristina Bom-
chil, el 02 de julio de 2020. http://www.valuar.com/. Véase también https://www.cronista.com/
apertura-negocio/empresas/Por-la-cuarentena-explotaron-los-pedidos-de-ejecutivos-argenti-
nos-para-irse-al-exterior-20200626-0003.html.

121
Referencias bibliográficas:
AGAMBEN, Giorgio, Estado de Excepción. Valencia: Pre-Textos, 2004.
CHOMSKY, Noam. Política y cultura a finales del siglo XX. Una panorama
de las actuales tendencias. Buenos Aires: ARIEL, 1996.
FROMM, Eric. El miedo a la libertad. Buenos Aires, Paidós, 1990.
GALBRAITH, John Kenneth. La cultura de la satisfacción. Barcelona:
Ariel, 1992.
GASPARINI, Juan Carlos. El Pacto Menem-Kirchner. La matriz de corrup-
ción que reúne en Suiza los destinos de los ex presidentes. Burnos Aires;
Sudamericana, 2019.
HARARI, Fabián. La Triple K. Los grupos de represión paraestatales en la
Argentina reciente (1999-2016). Buenos Aires: Ryr, 2019.
MON, Hugo Alconada. La Piñata. Planeta: Buenos Aires, 2015.
MROŻEK, Sławomir. El elefante. España: Acantilado, 2010.
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TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del reconocimiento.
Fondo de Cultura Económica. México, 2009.
YOUNG, Gerardo. Código Stiuso. Planeta: Buenos Aires, 2015.

122
VI

POVOS INDÍGENAS DO BRASIL: UM


NOVO CAPÍTULO DE UMA VELHA
HISTÓRIA
Aimée Schneider Duarte1

Considerações iniciais

A recente síndrome respiratória causada pelo novo Coronavírus (Co-


vid-19) se propagou rapidamente ao redor do mundo, fazendo com que a
Organização Mundial da Saúde (OMS) a caracterizasse, em 11 de março
de 2020, como uma pandemia. Enquanto a ciência moderna não chega à
descoberta de um remédio ou vacina apto a combater o vírus e sua expres-
siva margem de letalidade, a OMS vem orientando governos e populações
a adotar práticas de isolamento social, de modo a reduzir a disseminação
do contágio. Essa pandemia é responsável, ainda, por expor e agravar as
desigualdades sociais. Embora o novo Coronavírus ataque sem distinções
socioeconômicas, vem se conformando um cenário onde a vasta maioria
dos infectados é composta por pessoas desprovidas dos recursos que lhes
permitiriam evitar aglomerações e ficar em casa – sem contar o próprio
acesso diferenciado a serviços básicos como saúde e saneamento bási-
co. Grupos sociais mais vulneráveis, como os indígenas, observam com
apreensão acentuada a expansão da crise do coronavírus.

1 Doutoranda em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em sociologia


e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), integrante da Comunidade de Estudos de
Teoria da História (COMUM-UERJ).

123
De acordo com dados apresentados em maio pelo site Quarentena In-
dígena – instituidor de uma comunidade digital voltada para a divulgação
e articulação de suporte aos povos indígenas no período da pandemia –, o
contingente de mortos entre tais povos no Brasil é maior que o somatório
de mortes em seis outros países da América do Sul: Uruguai (19), Paraguai
(11), Guiana (10), Suriname (1), Guiana Francesa (1) e Venezuela (10).2
Este índice de mortalidade, cabe notar, possui também relação direta com
a omissão do governo federal em face da pandemia – à guisa de exemplo,
tem-se a resposta do atual Presidente da República, Jair Messias Bolsona-
ro, ao ser questionado por jornalistas sobre o número recorde de vítimas
letais do Coronavírus em todo o país: “E daí? Lamento, quer que eu faça o
quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”.3
Exsurge, portanto, de tal conjuntura um cenário preocupante. As
questões dele decorrentes demandam, para que seja possível elaborar o
mínimo esboço de respostas, que se proceda a uma investigação histórica
sobre como os grupos indígenas se fizeram representar na Constituição
que rege o país desde 1988 para que seja possível, então, lançar luz sobre a
maneira como seus direitos vêm sendo ameaçados em uma nova conjun-
tura que, não obstante a sua gravidade global, se instaura, no ordenamen-
to sociojurídico brasileiro, sob as diretrizes constantes de um documento
promovido como garantista e baseado na dignidade da pessoa humana.
Desse modo, o próximo tópico aborda a efetiva participação indígena no
processo de feitura da Constituição da República Federativa do Brasil de
1988, engendrado pela Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 (do-
ravante ANC). A partir das informações verificadas neste escopo, parte-
-se para as considerações atinentes ao (des)caso multifacetado da crise de
preservação ambiental e da saúde pública, conjugando o desmatamento da

2 QUARENTENA INDÍGENA. Morte entre indígenas por Covid-19 no Brasil já é maior que o número
total de mortes em 6 países da América do Sul, 2020. Disponível em <http://quarentenaindigena.
info/2020/05/16/morte-entre-indigenas-por-covid-19-no-brasil-ja-e-maior-que-o-numero-total-
-de-mortes-em-6-paises-da-america-do-sul/>. Acesso em 20 de jun. de 2020.
3 GAZETA DO POVO. “Ótima escolha”, diz Weintraub sobre novo ministro da Educação, 2020.
Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/otima-escolha-diz-wein-
traub-sobre-novo-ministro-da-educacao/>. Acesso em 26 de jun. de 2020.

124
Amazônia com o impacto do Coronavírus à luz das decisões tomadas pelo
governo vigente.

Os povos indígenas na ANC de 1987-88

A campanha promovida pelos povos indígenas no seio da ANC de


1987-88 acarretou, no texto da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 um efeito extraordinário, sob a forma de um capítulo ela-
borado especificamente para a disciplina de seus direitos (Capítulo VIII –
Dos Índios).4 Havia, originalmente, na CRFB/88, 15 passagens que citam
diretamente os índios; tal número aumentou para 16 com a EC nº 06/95,
que acrescentou o § 1º ao artigo 176 do diploma constitucional.
O debate sobre o rumo a uma nova ordem político-jurídica não teve
início na década 1980, mas antes: remonta aos primórdios do autoritaris-
mo, quando uma série de movimentos sociais se organizou em favor da
democracia. As mobilizações da sociedade pela Anistia Ampla, Geral e Ir-
restrita desaguaram na campanha pelas Diretas Já! e, em seguida, na cam-

4 Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.§ 1º São terras tradicional-
mente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais neces-
sários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a
sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e
dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os poten-
ciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser
efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, fican-
do-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que
trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º
É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso
Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no inte-
resse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer
hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo
efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a
que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a
União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. § 7º Não
se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 3º e 4º. Art. 232. Os índios, suas comuni-
dades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e
interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

125
panha nacional pró-Constituinte, construindo os alicerces dos debates
constitucionais. Apesar de frustrado em suas principais intenções, o episó-
dio das Diretas Já! serviu para que os movimentos sociais vislumbrassem
o seu potencial de mobilização em torno dos seus anseios, apresentando
os primeiros indícios acerca de como a presença da população na políti-
ca viria a ser fundamental para os rumos do país. Nas eleições indiretas,
ocorridas em sessão solene no dia 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves
e José Sarney foram eleitos. Entretanto, no meio de tal cenário político,
Tancredo viria a falecer antes de tomar posse, com seu vice assumindo a
titularidade da pasta presidencial.
Antes mesmo do início dos trabalhos da Assembleia Nacional Cons-
tituinte de 1987-88 já existiam reivindicações da sociedade brasileira: o
Congresso Nacional, por exemplo, desde o ano de 1986 recebeu diversas
correspondências de todo o país, seja de forma individual, seja através de
entidades sociais. Entre março daquele ano e julho de 1987, o ente estatal,
através da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, lançou o plano
“Diga Gente e Projeto Constituição”, com o intuito de que os cidadãos ex-
pressassem suas sugestões para a vindoura Lei Maior. Cinco milhões de
formulários foram distribuídos e disponibilizados nas agências dos Cor-
reios do Brasil, que os encaminhava, sem custos, para o Senado Federal,
que recebeu um total de 72.719 respostas. Ao pesquisar o termo “indíge-
na”, foram encontrados 267 registros; o termo “índio”, 518; e “silvícola”, 04.
O critério dessa pesquisa se deu para demonstrar que a esfera indígena
já se fazia presente como uma demanda da sociedade e, em paralelo a esta
forma de participação, a sociedade também se manifestava por diferentes
formas: envio de sugestões por entidades sociais, audiências públicas, car-
tas pessoais e emendas populares. A característica marcante deste processo
constitucional consistiu na articulação entre inúmeros atores extraparla-
mentares que se valeram principalmente das ações como caravanas/lobby,
reuniões com Constituintes e encontros de articulação dos movimentos.
A ruptura com a perspectiva integracionista se fez fundamental para a
construção de uma nova mentalidade, na medida em que as Constituições

126
brasileiras, até então, não eram representativas dos anseios dos diversos
segmentos sociais. Com relação aos índios, o paradigma assimilacionista
se expressava sob três vertentes: a manutenção da ideia do índio como
incapaz; a suscetibilidade das suas terras e recursos naturais a pressões
econômicas; e a doutrina da segurança nacional. Predominava a imagem
de uma incapacidade jurídica e política que só seria superada pela inte-
gração dos silvícolas, como eram denominados nos textos constitucionais
até então, à nação, meta assimilada pelo tratamento constitucional e pelo
próprio Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73).
As questões ideológicas acima expostas evocam uma linha de pen-
samento que perseverava, inclusive, no final dos anos 1980. Para se ter
uma dimensão deste problema, o Decreto Presidencial nº 94.946, de 23 de
setembro de 1987, indo de encontro ao que estava sendo discutido nos tra-
balhos da ANC de 1987-88, estabelecia tipos diferentes de terras indígenas
de acordo com um suposto grau de aculturação: os povos considerados
aculturados teriam suas terras reduzidas, demarcadas na forma de “Colô-
nias Indígenas”. A coexistência de tais diretrizes com o próprio estímulo
à integração progressiva dos indígenas vem ratificar a importância de se
romper com a noção do índio como um ser aculturado e incapaz de fazer
uso de recursos vindos de fora de suas aldeias, tais como os sucessivos ad-
ventos tecnológicos do Ocidente.
Cabe destacar que, pela primeira vez na história do país, a Constitui-
ção foi elaborada com a participação dos povos indígenas. A criação da
União das Nações Indígenas (UNI), em 22 em abril de 1980, trouxe maior
visibilidade para o movimento e, em 1985, a UNI promovia reuniões pre-
paratórias dos povos indígenas para debater sobre a Constituinte. O eixo
das reivindicações não estava centrado na exibição de peso numérico, mas
na denúncia do pequeno número ao qual o índio fora reduzido. O pilar
central era o direito ancestral à terra e à proteção da cultura dos índios. A
despeito dessa mobilização, episódios em que a cultura indígena era ne-
gada foram recorrentes – vide exemplo de um servidor que impediu a en-

127
trada de um índio que não estava trajado de forma adequada aos padrões
culturais ocidentais:

DEPUTADO JOSÉ CARLOS SABÓIA – Sr. Presidente, em primei-


ro lugar, gostaria de fazer só uma observação inicial, fora do contex-
to da minha fala – é um elogio à atitude que o nosso Presidente Ivo
Lech teve diante do fato de um dos índios ter sido barrado à entrada
desta Casa. Foi uma atitude muito bonita, que mostrou claramente
o espírito desta Subcomissão. O índio foi barrado por não trajar
a roupa convencional, estava ele com os ornamentos mais bonitos
que carrega, com toda a sua cultura, com todo o seu ritual e foi bar-
rado porque isso não é valorizado nos padrões da nossa sociedade,
e aqui nesta Casa ainda não estava sendo valorizado na portaria.

Perante este cenário, o movimento indígena se organizou para tentar


influenciar as Subcomissões e Comissões: “os índios vieram a Brasília às
centenas acompanhar as votações, fazer lobby nos corredores e gabinetes,
fazer rituais para os espíritos, marcando presença em todos os momentos”.5
Apesar de não terem conseguido eleger nenhum representante nativo nas
sessões da ANC de 1987-88,6 um ponto de destaque foi o reconhecimento
de que as lutas dos movimentos indígenas guardavam correspondências
com toda a população. Corroborando essa perspectiva, a professora da
Universidade de São Paulo (USP) e Presidenta da Associação Brasileira de
Antropologia, Manuela Carneiro da Cunha, falou sobre o reconhecimento
dos valores das sociedades diferentes e, em particular, das sociedades indí-
genas, abordando a sua vulnerabilidade e importância para o patrimônio
cultural da Humanidade, sem deixar de reconhecer a contribuição, neste
âmbito, do Brasil enquanto um país incontestavelmente plural, compor-
tando 180 sociedades diferentes com 180 línguas próprias.7

5 BACKES, Ana Luiza; AZEVEDO, Débora Bithiah de; ARAÚJO, José Cordeiro de (orgs.). Audiências
Públicas na Assembleia Nacional Constituinte: A Sociedade na Tribuna. Brasília: Câmara dos De-
putados, Edições Câmara, 2009, p. 519.
6 Mario Juruna, primeiro índio eleito Deputado Federal, pelo PDT-RJ, e criador da Comissão
Permanente do Índio na Câmara dos Deputados, não conseguira se reeleger ao fim de seu
mandato.
7 Ata da 4ª Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias, realizada em 23 de abril de 1987, p.18.

128
Sob esse prisma, o Senador Severo Gomes afirmou que o meio social
se perde dentro das tradições do eurocentrismo e que a “questão dos índios
não é uma questão só dos índios, é uma questão de toda a sociedade brasi-
leira”.8 O que se propagava era a visão de um homem branco ocidental: por
causa dessa imagem, difundia-se a noção de que os índios não possuíam
cultura e não eram civilizados. A pluralidade cultural foi defendida pelo
indígena Ailton Krenak, da União das Nações Indígenas, que enfatizou a
necessidade de se registrar, no texto constitucional, a cultura indígena, que
fora e continuava sendo oprimida por questão econômica. O que a análise
da mobilização social torna evidente é a inserção de vozes até então jamais
ouvidas em uma ANC, inclusive pela transposição das barreiras físicas do
Congresso Nacional, uma vez que alguns parlamentares foram até uma
aldeia indígena. Em 06 de maio de 1987, a Subcomissão dos Negros, Popu-
lações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias realizou uma Audiência
Pública Extraordinária na Aldeia Gorotire, no sul do Pará.9
O diploma constitucional de 1988 simbolizou um avanço dos interes-
ses de povos indígenas na sua representação por um Estado pluricultural,
promovendo um rol de direitos, tais como: a) o abandono das políticas in-
tegracionista e paternalista através do fim da tutela, garantindo aos índios,
suas comunidades e organizações a defesa de seus interesses em juízo, com
o acompanhamento do Ministério Público; b) a autenticação do direito à
língua materna indígena, com uma educação diferenciada; c) a supressão
do princípio assimilacionista, herdeiro de uma política de dominação co-
lonial; d) o reconhecimento dos direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam; e) a vinculação da exploração mineral à auto-
rização do Congresso Nacional; e f) a nulidade de atos que tenham como
objeto o domínio e posse das terras indígenas.

8 Ata da 3ª Reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e


Minorias, realizada em 22 de abril de 1987, p. 12.
9 Estavam presentes, nesta comitiva, os Deputados Ivo Lech (presidente da Subcomissão;
PMDB – RS), Benedita da Silva (PT – RJ), José Carlos Sabóia (PMDB – MA), Salatiel Carvalho (PFL
– PE) e Ruy Nedel (PDT – RS).

129
A Fundação Nacional do Índio (FUNAI), criada em 1967, teve como
marco inicial a adoção de políticas paternalistas, mantendo as sociedades
indígenas submissas e dependentes – e somente com a nova Constituição
passou a atuar de forma mais ativa no sentido de garantir os direitos des-
ses povos. No ano seguinte à promulgação da Carta de 1988, foi criado o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, atuando no com-
bate ao desmatamento e à invasão ilegal de qualquer ecossistema preserva-
do. Anos depois, em 2010, deu-se a criação da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (SESAI), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, para gerenciar
a atenção à saúde dos indígenas. No entanto,

[n]ada disso impediu, claro, que milhares de indígenas continuas-


sem sendo massacrados, perdessem suas casas ou sofressem ata-
ques de guerrilheiros ou garimpeiros. Mas os indígenas passaram a
ter armas institucionais – ministros, secretários, leis e fiscais – para
se defenderem. Parecia que finalmente alguma coisa ia começar a
mudar, ainda que lentamente, ainda que de forma insuficiente; aí
chegou o Bolsonaro. Quando o Bolsonaro ganhou as eleições, ime-
diatamente rolou um clima de “liberou geral” para madeireiros, ga-
rimpeiros e grileiros. No dia da votação [das eleições presidenciais],
uma escola e um posto de saúde que atendia os indígenas da etnia
Pankararu, em Pernambuco, foram incendiados em comemoração
– e tem alguma coisa muito errada quando a celebração envolve
botar fogo em escola e em posto de saúde.10

Pandemia, invasão e abandono

A assimilação dos indígenas é uma ideia antiga, utilizada em diversos


momentos históricos brasileiros e tendente a pautar as políticas públicas
no país. Conforme analisado, quase todas as Constituições posteriores à
Proclamação da República qualificavam tal empreitada como uma neces-
sidade. Com a Constituição de 1988, entretanto, essa ideia foi descartada
– o que não impede o atual governo federal, por sua vez, de retomar tal

10 DUVIVIER, Gregório. Indígenas. Programa Greg News na HBO. Disponível em <https://www.


youtube.com/watch?v=ya1TgJ_5N0Q>. Acesso em 27 de jun. de 2020.

130
mentalidade quando o Presidente do país ecoa e endossa a proposta de
civilizar os indígenas. Em 2020, Jair Bolsonaro criou o Conselho Nacional
da Amazônia, que funciona sem a participação de representantes do IBA-
MA e da FUNAI, cabendo a sua coordenação ao vice-presidente da Repú-
blica, Hamilton Mourão. Convém apontar que o atual vice-presidente, à
época apenas candidato, declarou, em um evento público de campanha em
Caxias do Sul/RS, no dia 06 de agosto de 2018, o seguinte: ‘[t]emos uma
certa herança da indolência, que vem da cultura indígena”, revelando um
patamar de racismo histórico agravado, ainda, pela sua própria ascendên-
cia indígena.
Para agravar a situação, ainda neste ano, a FUNAI suspendeu o for-
necimento de cestas básicas às comunidades indígenas de terras demar-
cadas e parou de atender aqueles que vivem em áreas urbanas, reforçando
a mentalidade preconceituosa – e corriqueira – de que o índio que sai da
floresta não é mais índio. A importância de destacar essa postura se faz
na medida em que, se os povos indígenas são completamente aculturados
– ou exterminados –, é possível desconectá-los de suas terras, já que a jus-
tificativa jurídica para a existência de terras indígenas é a preservação do
seu modo de vida; não havendo mais tal modo de vida a ser preservado,
economicamente a exploração econômica das terras outrora ocupadas se
torna viável. Isto se alinha com o fato de que, quando Bolsonaro assumiu a
Presidência, todos os processos de reforma agrária e demarcação de terras
então em andamento foram paralisados – e, em seu primeiro dia no cargo,
o Presidente retirou atribuições da FUNAI, delegando-as ao Ministério da
Agricultura.
O retrocesso socioambiental se dá, igualmente, quando se verifica, no
cenário pós Constituinte de 1987-88, o constante direcionamento imposto
por interesses vinculados ao capital às transformações legislativas, frequen-
temente culminando na supressão de direitos constitucionalmente garan-
tidos aos indígenas. Na lista de prioridades do setor econômico, cita-se a
exploração de territórios indígenas, com o Ministro de Minas e Energia,
Bento Albuquerque, defendendo a liberação da agropecuária, mineração

131
e garimpo, entre outras medidas. Entre os projetos alinhados a esta linha
de raciocínio em trâmite no Congresso Nacional estão a PL de nº 191/20
e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) de nº 187/16, ambos vol-
tados para a exploração econômica em terras indígenas. Enquanto isso, a
grilagem de terras, garimpos e a exploração ilegal de madeira, amparados
por um governo omisso, estão aumentando na Amazônia, em um escopo
reforçado pela volta da MP 910 da grilagem – que, criada no início desse
ano, anistiava terras invadidas ao conceder título de propriedade para es-
peculadores imobiliários, que vivem de desmatar e vender terras públicas
– à Câmara do Congresso sob a forma do Projeto de Lei 2.633/20, incen-
tivando garimpeiros e grileiros a intensificar a invasão de terras, contando
com a subsequente anistia. De acordo com o Instituto Nacional de Pes-
quisas Espaciais (INPE), entre janeiro e maio deste ano, o desmatamento
havido na Amazônia entre janeiro e maio deste ano foi o maior desde que
se começou a medir a devastação em suas florestas, em agosto de 2015.11
A invasão prática e simbólica às terras indígenas, todavia, transcendeu
a esfera socioeconômica, ferindo questões de saúde com a pandemia do
Coronavírus: precariamente assistidas pelo governo e pressionadas pela
crescente onda de investidas sobre seus territórios, as comunidades indí-
genas enfrentam quase sozinhas o avanço da circulação viral nas aldeias.
Um relatório produzido por pesquisadores da FIOCRUZ e da FGV de-
talha a vulnerabilidade e o risco de expansão do contágio pelo Covid-19
entre as populações indígenas brasileiras.12 Ademais, as políticas de isola-
mento – e, consequentemente, o vácuo deixado pela ausência da FUNAI,
da Agência Nacional de Mineração (ANM) e a redução dos controles pela
Polícia Federal e Exército – fizeram com que se intensificasse o já acentua-

11 AMARAL, Luciana. Bolsonaro ignora desmatamento e vê ‘desinformação’ em imagem ruim do


Brasil. UOL Notícias, 2020. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-
-noticias/redacao/2020/06/22/bolsonaro-meio-ambiente.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em
23 de jun. de 2020.
12 FIOCRUZ, Fundação Oswaldo Cruz; FGV, Fundação Getúlio Vargas. Risco de espalhamento da
COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica
e sociodemográfica, 2020. Disponível em <https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/
documentos/relatorios_tecnicos_-_covid-19_procc-emap-ensp-covid-19-report4_20200419-in-
digenas.pdf>. Acesso em 15 de jun. de 2020.

132
do ritmo de invasão de suas terras por garimpeiros e exploradores ilegais
que, ao contrário das agências de governo, não fazem home office. Soma-
-se a esta conjuntura o próprio risco de que os mesmos invasores sejam
portadores do Coronavírus, aumentando a possibilidade de disseminação
da pandemia entre os indígenas. Comprimidos entre os avanços do Co-
ronavírus e dos invasores, o risco de genocídio é real.13 No ano de 1500,
cerca de 8 milhões de pessoas viviam no território hoje identificado como
o Brasil, divididas em 1.000 tribos; segundo o Censo do Instituto Brasilei-
ro de Geografia e Estatística, realizado em 2010, o Brasil possuía, quando
da realização da pesquisa, 305 etnias e cerca de 900 mil índios.14 Não à
toa, muitos estudiosos consideram que os indígenas viveram o holocausto
mais longo da história da humanidade. Na fala de Gregório Duvivier, “no
Brasil, o genocídio indígena é um projeto macabro de racismo para explo-
ração fundiária (...) E esse ano, esse projeto ganhou um aliado de peso: a
pandemia de Covid-19”.15
Passados meses da declaração inicial de pandemia pela OMS, o Bra-
sil segue enfrentando um cenário que inclui falta de testes e protocolos
de tratamento, atingindo, sobretudo, as populações vulneráveis. Em abril
deste ano, os boletins epidemiológicos da SESAI indicaram um aumento
de 68,7% de diagnósticos confirmados da Covid-19 entre índios, preo-
cupando infectologistas.16 A própria forma de organização da vida indí-
gena a partir de uma estrutura comunitária – baseada, em grande parte,
em casas coletivas, compartilhando utensílios como cuias, tigelas e outros
objetos – favorece as situações de contágio. Em 21 de agosto de 2020, o

13 MARTINS, Ribamar. Coronavírus avança no país e pode dizimar toda a população indígena
brasileira. SINPRO-DF, 2020. Disponível em <https://www.sinprodf.org.br/coronavirus-avanca-
-no-pais-e-pode-dizimar-toda-a-populacao-indigena-brasileira/>. Acesso em 20 de jun. de 2020.
14 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico 2010: Característi-
cas Gerais dos Indígenas – Resultados do Universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2012
15 DUVIVIER, Gregório. Indígenas. Programa Greg News na HBO. Disponível em <https://www.
youtube.com/watch?v=ya1TgJ_5N0Q>. Acesso em 27 de jun. de 2020.
16 SESAI. Boletins epidemiológicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena. Disponível em <ht-
tps://saudeindigena.saude.gov.br/>. Acesso em 26 de jun. de 2020.

133
SESAI registrou 467 óbitos de indígenas por Covid-19;17 tal estatística di-
verge acentuadamente, porém, do registro realizado pela Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil (APIB).
Para o coordenador da APIB, Dinamam Tuxá, os números contabi-
lizados pela SESAI podem estar subnotificados, por conta dos relatos de
indígenas morrendo com sintomas da Covid-19 sem serem testados. Tuxá
alerta que “não dá para discutir uma política mais eficaz e específica, pois
a própria SESAI se nega a catalogar os casos de indígenas em contexto
urbano”.18 Muitos povos já perderam seus anciãos – considerados, em sua
cultura, portadores de saberes ancestrais; sua perda, portanto, além da di-
mensão afetiva imediata, equivaleria à destruição, no mundo acidental, de
um museu ou biblioteca.
Para qualificar os dados e monitorar o avanço da pandemia, a APIB,
juntamente com organizações indígenas de várias regiões do país e ou-
tros coletivos e ativistas, construiu a Plataforma “Emergência Indígena”. A
falta de testes, no entanto, perpetua uma disparidade significativa entre o
número de casos confirmados e a quantidade real de pessoas infectadas.
No dia 22 de agosto, o número de óbitos registrados por Covid-19 entre
indígenas era de 859 – o dobro em relação ao número divulgado pelo SE-
SAI. Os dados disponíveis mostram um total de 37.540 casos confirmados,
englobando 158 povos indígenas.19 A APIB atualiza diariamente, em seu
website, o quantitativo de casos de Covid-19 entre indígenas, assim como
o número de óbitos. Ademais, uma rede de solidariedade passou a se dedi-
car às ações de comunicação, criando cartilhas, panfletos, cartazes, vídeos
e podcasts com orientações sobre o enfrentamento ao Covid-19.

17 Idem, 2020.
18 BRAZILIENSE, Correio. Covid-19: Povos indígenas mostram-se vulneráveis ao avanço do vírus.
Diário de Pernambuco, 2020. Disponível em <https://www.diariodepernambuco.com.br/no-
ticia/brasil/2020/06/covid-19-povos-indigenas-mostram-se-vulneraveis-ao-avanco-do-virus.
html>. Acesso em 23 de jun. de 2020.
19 ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB). Emergência Indígena, 2020. Dispo-
nível em <https://emergenciaindigena.apiboficial.org/>. Acesso em: 12 de ago. de 2020.

134
Durante a reunião ministerial de 22 de abril de 2020 – data em que o
país rememorou os 520 anos do primeiro contato dos povos indígenas do
Brasil com os colonizadores europeus –, o ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles, sugeriu que o governo federal aproveitasse que a imprensa
estava cobrindo a pandemia para mudar as regras de proteção ambiental
e da área da agricultura, enxergando, em um cenário marcado pelo quan-
titativo crescente de mortos, um momento oportuno para o desmonte de
garantias ao patrimônio ambiental.

Fonte: Brasil de Fato, 2020.

As tensões políticas seguiram, então, sua escala ascendente e no meio


de uma crise sanitária, o presidente da FUNAI, Marcelo Augusto Xavier
da Silva, emitiu a Instrução Normativa nº 9/2020, que permite a legaliza-
ção do crime de grilagem em de áreas indígenas.20 Rasgando os preceitos
da Constituição Brasileira, que garante aos índios o direito originário ao
território tradicional, o governo busca atender aos interesses do agronegó-
cio, grileiros, latifundiários e mineradoras. O Ministério Público Federal

20 INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 9, disponível em <http://www.in.gov.br/web/dou/-/instrucao-


-normativa-n-9-de-16-de-abril-de-2020-253343033>. Acesso em 22 de jun. de 2020.

135
emitiu recomendação pela anulação do documento; e, no dia 08 de junho,
a Justiça Federal em Mato Grosso suspendeu seus principais efeitos.21
Em vista desse quadro alarmante, em 01 de junho de 2020, a APIB e
os partidos de oposição ao governo – Partido Socialista Brasileiro (PSB),
Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Partido Comunista do Brasil (PC
do B), Rede Sustentabilidade (Rede), Partido dos Trabalhadores (PT) e
Partido Democrático Trabalhista (PDT) – propuseram no Supremo Tri-
bunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Funda-
mental (ADPF) nº 709 contra a União Federal. Tal ação tem por objeto um
conjunto de atos comissivos e omissivos do Poder Público, relacionados
ao combate à pandemia por Covid-19, que implicariam uma real possibi-
lidade de extermínio de povos indígenas. Na petição inicial, consta como
grande preocupação a transmissibilidade da doença, que coloca os povos
indígenas diante de um cenário devastador, sobretudo em razão de sua
maior vulnerabilidade social, econômica e de saúde, decorrente do caráter
remoto das regiões que habitam.22
Segundo o relatório da decisão cautelar – parcialmente deferida em 08
de julho do corrente ano –, os proponentes imputaram os seguintes atos
omissivos e comissivos ao Poder Público:

(i) a não contenção de invasões terras indígenas ou a não remoção


de seus invasores, que ingressam nas respectivas áreas para a prá-
tica de ilícitos como: grilagem, garimpo ilegal e extração ilegal de
madeira, forçando contato com as tribos; (ii) ações imperitas do
governo federal em matéria de saúde, com o ingresso, em terras
indígenas, de equipes de saúde sem cumprimento de quarentena e
sem a observação de medidas de prevenção ao contágio; (iii) deci-
são política da Fundação Nacional do Índio – FUNAI e da Secre-
taria Especial de Saúde Indígena - SESAI de só prestar assistência

21 AZEVEDO, Reinaldo. Justiça suspende medida que permitia ocupação e venda de terras indí-
genas. UOL Notícias. 2020. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/colunas/reinaldo-azeve-
do/2020/06/09/justica-suspende-medida-que-permitia-ocupacao-e-venda-de-terras-indigenas.
htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 23 de jun. de 2020.
22 ARTICULAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL (APIB) et al. Descumprimento de
Preceito Fundamental. Brasília, 2020. Disponível em <https://www.jota.info/wp-content/
uploads/2020/06/adpf-apib-compressed.pdf>. Acesso em: 12 de ago. de 2020.

136
especializada de saúde a povos residentes em terras indígenas ho-
mologadas, remetendo-se os indígenas não aldeados (urbanos) ao
SUS geral (sem expertise para trato de indígenas) e, aparentemente,
deixando as demais tribos, que residem em terras indígenas pen-
dentes de homologação, sem atendimento; (iv) não elaboração de
um plano pormenorizado e concreto, que contenha uma estratégia
de proteção das comunidades indígenas e um cronograma de im-
plementação, com a participação das comunidades indígenas.23

O Ministro Luís Roberto Barroso determinou uma série de medidas


a serem adotadas com o objetivo de conter o avanço da Covid-19 entre
indígenas. Convém registrar que o próprio Ministro reconhece a resistên-
cia do governo quanto à concretização dos direitos dos povos indígenas,
citando matérias publicadas na imprensa que atribuem ao atual Presidente
da República as seguintes declarações:

“Não entro nessa balela de defender terra pra índio”; “[reservas indí-
genas] sufocam o agronegócio” (Campo Grande News, 22.04.2015);
“Em 2019 vamos desmarcar [a reserva indígena] Raposa Serra do
Sol. Vamos dar fuzil e armas a todos os fazendeiros” (No Congres-
so, 21.01.2016); “Se eu assumir [a Presidência do Brasil] não terá
mais um centímetro quadrado para terra indígena” (Dourados,
Mato Grosso do Sul, 08.02.2018); “Reservas indígenas inviabilizam
a Amazônia” (Revista Exame, 13.02.2020). Esse é o contexto, por-
tanto, em que se insere a presente discussão e que reforça o dever de
cuidado por parte do Tribunal quanto a tais povos.24

No dia 05 de agosto de 2020, o Plenário do STF confirmou sua deter-


minação, direcionada ao governo federal, pelo implemento de medidas de
contenção do avanço da Covid-19 nas comunidades indígenas. No entan-
to, o pedido de desintrusão imediata foi negado sob o argumento de que os
invasores só podem ser removidos com base em um plano a ser elaborado
pela União. A despeito de considerar como ilegal as ocupações, a Corte

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida cautelar na arguição de descumprimento de pre-


ceito fundamental 709, Distrito Federal. Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, DF, 8 de junho
de 2020. Disponível <em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/adpf709.
pdf>. Acesso em: 10 de ago. 2020.
24 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Op. Cit. 2020, p. 13..

137
observou a necessidade de protocolos de atuação para a retirada dos in-
vasores25 – o que leva à constatação de que o grito de socorro dos povos
indígenas no órgão de cúpula do Poder Judiciário pátrio foi parcialmente
sufocado.

Considerações finais

De acordo com Censo 2010 do IBGE, 63,8% das 896 mil pessoas que
se declararam indígenas no país residem em áreas rurais.26 Os resultados
desse Censo apontam para condições menos vantajosas de vida para os
indígenas quando comparados ao restante da população, atestadas atra-
vés de indicadores sociodemográficos e sanitários diversos, com destaque
para a elevada mortalidade precoce. Não se ignora o quão suscetíveis são
os não-indígenas a vírus desconhecidos, como é o caso da Covid-19; mas
os povos indígenas possuem condições particulares que os deixam mais
vulneráveis a epidemias e pandemias, como o relativo isolamento geográ-
fico e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Segundo dados da
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, essa doença mata, proporcio-
nalmente, ainda mais indígenas do que o restante dos brasileiros, pois a
letalidade da Covid-19 entre esses povos “chega a 8,8% enquanto a popu-
lação brasileira geral é de 5,1%”.27

25 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF referenda medidas de enfrentamento da Covid-19 em


terras indígenas. Notícias. Brasília, DF, 5 de agosto de 2020. Disponível em: <http://stf.jus.br/
portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448997>. Acesso em: 17 de ago. 2020.
26 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico 2010: Característi-
cas Gerais dos Indígenas – Resultados do Universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2012
27 COIAB, Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira. Nota de resposta
à coletiva de imprensa do governo federal sobre a Covid-19 em comunidades e povos tradicionais.
APIB, 2020. Disponível em <http://apib.info/2020/06/14/nota-de-resposta-a-coletiva-de-im-
prensa-do-governo-federal-sobre-a-covid-19-em-comunidades-e-povos-tradicionais/>. Acesso
em 24 de jun. de 2020.

138
A ascensão de um governo anti-indígena e apologista da ditadura,28
capaz de defender sem pudores o uso da violência como política pública,
aprofunda essas mazelas. A impunidade encontra eco na reprodução sis-
temática de concepções que perduram no tempo e que se fazem presen-
tes no funcionamento das próprias instituições que deveriam operar para
a defesa dos direitos indígenas, haja vista que os recentes movimentos,
da parte de agentes públicos, no sentido de se afastarem de suas funções,
ou ao menos torná-las menos frequentes, para evitar o risco de contágio
vem abrindo brechas para os invasores. Mais que necessário, portanto, é
urgente que tais desdobramentos sejam freados. Neste sentido, há uma
demanda por medidas imediatas, tais como o fortalecimento da atuação
da SESAI-SUS e uma articulação mais eficaz com Secretarias Municipais e
Estaduais de Saúde, a FUNAI e outros órgãos públicos, juntamente com as
organizações e lideranças indígenas.
Procedeu-se, no presente trabalho, ao levantamento de discussões en-
sejadoras de análises e balanços a partir do entrelace entre o ontem e o
hoje, articulados pela reflexão acerca da relevância histórica da Constitui-
ção Federal de 1988 e o seu compromisso para com os direitos e garantias
de todos os que habitam a República Federativa do Brasil – entre eles, e
com notável precedência cronológica, os indígenas. Assim é que a ambi-
guidade das políticas indigenistas invoca as diversas faces de uma violên-
cia ora engendrada pela ação, ora pela omissão do Estado, conformando
um panorama de enfrentamentos que, sobretudo à luz da crise pandêmica
promovida pelo Covid-19, não mais pode ser postergado. É preciso com-
bater as práticas de extermínio de modos de vida que diferem da lógica
capitalista.

28 O relatório da Comissão Nacional da Verdade revelou que, no mínimo, 8,3 mil índios foram
assassinados durante a ditadura militar. A título de comparação, esse mesmo relatório reco-
nheceu 434 mortes e desaparecidos políticos nessa ditadura. Ver: BRASIL, Kátia; FARIAS, Elaíze.
Comissão da Verdade: Ao menos 8,3 mil índios foram mortos na ditadura militar. Amazônia Real,
2014. Disponível em <https://amazoniareal.com.br/comissao-da-verdade-ao-menos-83-mil-in-
dios-foram-mortos-na-ditadura-militar/>. Acesso em 26 de mai. de 2020.

139
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141
GAZETA DO POVO. “Ótima escolha”, diz Weintraub sobre novo ministro
da Educação, 2020. Disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/
republica/breves/otima-escolha-diz-weintraub-sobre-novo-ministro-da-
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te-entre-indigenas-por-covid-19-no-brasil-ja-e-maior-que-o-numero-to-
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jun. de 2020.

142
VII

PANDEMIA, CUBA E A REVOLUÇÃO


SOLIDÁRIA
Alberto Dias Mendes1

A pandemia como resultado de uma crise civilizatória

“Uma Revolução não é um mar de rosas.

É uma luta de morte entre o futuro e o passado”.

(Fidel Castro, 1961)

O desastre que se abateu sobre a humanidade em 2020, a pandemia do


SARS-CoV-22, transmissor da Covid-19, evidenciou uma profunda crise
civilizatória cuja gênese e suas consequências podem ser encontradas no
estudo da forma como nos relacionamos com a natureza e produzimos os
meios de sobrevivência3. A análise deve ser confrontada com o passado
das sociedades e suas vicissitudes ou idiossincrasias.

1 Bacharel em Ciências Sociais e Dr. em História Política pela Uerj. Professor do curso de Direi-
to do Centro Universitário Gama e Souza. E-mail: mendesad@yahoo.com.br.
2 Síndrome Respiratória Aguda.
3 Não tive objetivo de analisar a gênese da pandemia e as diversas teorias. Pode ser ainda
prematuro analisar sem as devidas evidências, conforme afirmaram PETRUCCELLI Y MARE
(2020).

143
As características de transmissão do vírus impuseram, como condição
de não propagação, uma quarentena com “confinamento”, “distanciamento
social” ou “isolamento” para a maioria da população mundial. Um proble-
ma foi evidenciado a partir da decisão de paralisação forçada das ativida-
des produtivas, comércio e serviços: a gritante ausência de condições das
sociedades contemporâneas em praticar aquela que se dizia a regra mais
eficaz para o momento. A des-organização espacial das grandes cidades,
fome, miséria, renda pelo trabalho informal, escassez de água potável fo-
ram alguns dos fatores que demonstraram a degradante situação em vivia
o povo em diversos países, principalmente os mais dependentes, o que
dificultava (em alguns casos impossibilitava) o cumprimento das orienta-
ções da Organização Mundial de Saúde. A situação agravava-se com a falta
de vontade política de alguns governos em investir em melhorias sanitá-
rias para evitar a propagação do vírus.
As condições de sobrevivência demasiadamente desumanas tornaram
as narrativas midiáticas de “fique em casa”, “isolamento social” e “cuide-
-se” frases vazias de sentido, ao mesmo tempo em que a forma discursiva
sensacionalista causava mais pânico e medo do que encorajamento. Em
alguns países, impôs-se uma falsa dicotomia de “economia vs saúde”, como
se pudesse fazer economia sem pessoas saudáveis, por vezes, com um in-
centivo ao “salve-se quem puder” (BOTTO, 2020).
A irresponsabilidade de determinados governos, alimentados pela ló-
gica hobbesiana de que o homem é lobo do homem, ao colocar as disputas
políticas e econômicas à frente da vida, permitiu uma catástrofe humani-
tária. Esta tem, por sua vez, duas dimensões que estão intimamente rela-
cionadas. A primeira é material, que se expressa pelo notório esgotamento
de um modelo societário fundado em uma forma de produzir os meios
de sobrevivência que é, por definição, concentrador, excludente, desigual,
perverso e, portanto, desumano. A outra dimensão eu chamaria moral,
expressa pela natureza predatória (BORON, 2005) da relação entre a hu-
manidade e a natureza, imposta pelo sistema econômico hegemônico.

144
Para o capital, tudo vira mercadoria e, como tal, pode ser comerciali-
zado com objetivo de acumulação privada. A fase do imperialismo, com
sua versão neoliberal selvagem do século XXI, beira a insanidade destru-
tiva. O desemprego na América Latina, por exemplo, cresceu de 26 mi-
lhões, em 2019, para 41 milhões em 2020, segundo dados da Organização
Internacional do Trabalho. A economia entrou em retração vertiginosa e a
previsão é de queda do crescimento na ordem de -9,4%, de acordo com o
Fundo Monetário Internacional4.
As diferentes ações dos diversos governos, em relação à pandemia,
resultaram, por sua vez, em distintos números de casos e óbitos por coro-
navírus. Vejamos a tabela a seguir:

Tabela 1 – países da América e Europa

EUA CHINA BRASIL ITALIA REINO UNIDO

TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS

15/mar 3.010 22 81.032 3.217 176 1 24.747 1.809 2.626 104

22/abr 839.836 46.399 83.868 4.636 45.757 2.906 187.327 25.085 134.637 18.151

25/mai 1.702.685 99.743 82.985 4.634 365.213 23.102 230.158 32.877 261.184 36.914

27/ago 6.046.634 184.796 85.013 4.634 3.764.793 118.726 263.949 35.463 330.368 41.477

16/set 6.609.770 196.023 90.244 4.736 4.382.263 133.119 289.990 35.633 376.676 41.753

ESPANHA FRANÇA VENEZUELA CUBA MUNDO

TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS

15/mar 7.753 152 5.400 148 17 0 4 0 170.000 7.074

22/abr 208.389 21.717 159.315 21.373 288 10 1.189 40 2.623.231 182.740

25/mai 282.480 26.837 182.942 28.432 1.121 10 1.947 82 5.567.673 346.892

30/mai 286.308 27.125 188.625 28.771 1.459 14 2.025 83 6.153.380 370.870

27/ago 451.792 28.996 259.698 30.576 41.965 351 3.806 92 ######### 835.309

16/set 603.167 30.004 433.905 31.007 62.655 502 4.803 108 ######### 936.156

Fonte: Johns Hopkins Univesity e Covidvisualizer.com

4 Ver ilo.org (sigla em inglês).

145
A partir da tabela 1, cujo levantamento foi realizado pelo autor ao
longo do período apresentado, pudemos fazer algumas avaliações sobre
o ritmo de crescimento da doença no mundo, bem como algumas infe-
rências sobre o comportamento em cada país. Uma primeira advertência
foi sobre a China, primeiro país a reconhecer que tinha o vírus e infor-
mar ao mundo, ainda em dezembro de 2019, por meio da Organização
Mundial da Saúde (OMS). O alerta ocorreu por médicos que atenderam
casos de pneumonia em grau elevado. O governo chinês, imediatamente
enviou peritos a Wuhan, cidade que informou sobre os casos. Mesmo com
casos aumentando em outros países e já controlados na China, a OMS
só declarou a pandemia em março de 2020, tendo em vista os protocolos
internacionais.
Conforme alertaram os especialistas preocupados com a vida huma-
na, a única medida naquele momento possível que poderia evitar maior
contágio era algo inimaginável: o fechamento (lockdown), uma quarentena
por confinamento, distanciamento social, com isolamento de pessoas com
comorbidades. Os serviços essenciais deveriam obedecer ao protocolo
com uso de máscaras faciais e higienização, principalmente das mãos. A
identificação do contágio pelo contato com gotículas de saliva ou secreção
abriu um alerta nas autoridades sanitárias. A tabela anterior mostrou o
ritmo maior a partir de abril, quando a disputa discursiva foi maior e al-
guns governos autoritários resolveram desafiar a ciência e criaram a falsa
dicotomia entre “economia ou saúde”.
Uma análise mais detalhada possibilitou ainda perguntas como: que
tipo de situação é essa que enfrentamos? Por que admitia tantas contra-
dições? Por que Cuba e Venezuela tiveram ritmos de contágios e óbitos
menores do que outros países como os Estados Unidos, por exemplo, que
se vangloriava tanto de ser uma grande potência?5

5 México, Peru e Colômbia tinham registrado mais de 600 mil casos no momento da escrita
desse artigo. Chile e Argentina tinham mais de 400 mil e 500 mil respectivamente. Nenhum
deles havia ultrapassado os 100 mil óbitos como o Brasil.

146
Precisamos, entretanto, descer ainda mais fundo à realidade para ex-
plicar com maior rigor a nossa tese sobre as contradições implicadas na
pandemia. Conforme exposto no Dossiê 28 do Instituto Tricontinental de
Pesquisa Social, a “pandemia global deixa às claras as tendências destruti-
vas do capitalismo em sua fase neoliberal” (2020, p.06), ou seja, podería-
mos dizer que o neoliberalismo, como “versão avançada” do sistema ca-
pitalista. Ainda a respeito da pandemia, segundo o periódico Granma, “a
crise multidimensional que ela provocou demonstra claramente o imenso
erro das políticas desumanizadas impostas a todo custo pela ditadura do
mercado” (2020). A fome e o desemprego são problemas agravados expo-
nencialmente com a situação, conforme chamaram atenção a Organização
Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e a Agricultura (FAO). Diante desse infortúnio, algumas
questões saltam à imaginação: haveria um antídoto para essa crise? Até
que ponto poderíamos atribuir ao sistema econômico a responsabilidade
total pela crise sanitária?
Os pressupostos estão colocados, pois, na realidade material, em par-
ticular na esfera da produção, por meio da qual erigiu uma relação social
que opôs o capital ao trabalho, considerado este último como uma ativida-
de social geradora de valor (MARX, 2011). Para o autor d’O Capital, ana-
lisar o capitalismo com rigor científico significava partir de um princípio
ainda mais específico, de uma unidade material. Esta unidade é a merca-
doria, que se expressa por um duplo caráter, a saber, valor de uso e valor
(ou valor de troca). Esse ponto de partida, segundo Marx, indicaria o fio
condutor para a compreensão da sociedade capitalista que havia se con-
solidado com a Revolução Industrial do século XVIII e suas contradições.
Entre outras leituras, tomando como referencial as teses anteriores de
Smith e Ricardo, Marx avançou na análise e seus estudos evidenciaram
que o segredo da exploração capitalista não estava apenas na produção
em si, mas no resultado do processo de produção-circulação-distribuição,
onde a mercadoria transformava-se em produto de consumo e o dinheiro,
como expressão monetária do valor de troca, assumia maior relevância

147
do que o trabalho. O trabalho, como relação da pessoa com a natureza,
é o meio pelo qual a natureza é humanizada e, por consequência, a pró-
pria pessoa se humaniza no ato do trabalho. O capitalismo, ao apropriar-se
do trabalho, como mão de obra, retira dela sua característica humanitária
para impor-lhe um caráter de “produtor de mercadorias” para o mercado
consumidor. No primeiro volume d’O Capital, Marx foi à raiz do problema
da exploração da força de trabalho, que afirmou ser inerente ao sistema
capitalista, pois está alicerçado na extração de mais valor (mais valia).
Se a mercadoria tem um duplo caráter, a mais-valia tem duas formas
que são peculiares: mais valia absoluta e mais valia relativa. A primeira
explicita-se pela intensidade da jornada de trabalho para além daquela
necessária à produção do valor da mercadoria. Com relação à segunda,
está mais oculta no processo de produção, pois é extraída por meio da
qualificação do (a) trabalhador (a) e da mecanização dos meios de pro-
dução hoje denominada, por vezes, de “novas tecnologias”, o que diminui
o tempo de produção, ao mesmo tempo em que eleva a quantidade de
mercadorias produzidas. Essa é a forma, grosso modo, como o capitalista
extrai mais valor da força de trabalho para acumular capital e manter seu
poder político.
O objetivo aqui não é discutir a teoria do valor, mas fazer compreen-
der que ela compõe a essência do debate da falsa dicotomia entre econo-
mia e saúde. Pareceu-me muito evidente que a prioridade é a acumulação
de capital. Essa lógica acumulativa tende a reproduzir-se na adoção das
políticas públicas, notadamente na área da saúde, o que se expressa em
ações opostas. Enquanto uns governos investiam em sistema preventivo,
outros atuam apenas quando o problema aparece. Do ponto de vista da
saúde pública, esse é um elemento fundamental.
Foi por esse caminho que entendemos o vínculo entre a teoria do valor
e os sistemas de saúde pública. Nos países onde os governos reproduzem
estratégias neoliberais, a tendência foi negligenciar a prevenção e investir
em resoluções na medida em que os casos foram detectados. Há um dito
popular conhecido que é “criar o problema para vender a solução”. A saúde

148
é, assim, tratada também como mercadoria, vendida por meio de planos
privados. No Brasil, por exemplo, durante a primeira fase da pandemia,
no segundo trimestre de 2020, os planos de saúde tiveram lucro de R$1,3
bilhão6. Em campo oposto, nos países com maior preocupação com a vida
humana, as medidas buscaram seguir os protocolos orientados para a pre-
venção do contágio e, por conseguinte, evitar número elevado de óbitos.
Essa é uma das respostas que podem explicar o bom desempenho de Cuba
e Venezuela, por exemplo, diante da pandemia. Seus governos antecipa-
ram-se, seguiram os protocolos e colocaram em relevo a vida humana.
A situação tornou-se mais complexa pela crise internacional do ca-
pitalismo. A emergência econômica da China no cenário mundial, com
desenvolvimento de elevada tecnologia e sua rapidez no controle do vírus,
alterou o panorama global. O avanço colossal para a tecnologia 5.0 (5G)
abriu um alerta no imperialismo, que logo retaliou a empresa Huawei. A
China apresentou uma projeção de crescimento em 1,2% nesse ano da
pandemia e de 9,2% para 2021(JABOUR, 2020).
Essa conjuntura mundial agravada pela pandemia, inclusive, apontou
para um retorno de movimentos de inspiração nazi-fascista, com estra-
tégias diversionistas por vezes intituladas como “guerras híbridas” (KO-
RIBKO, 2018). O nazi-facismo, por sua vez, pode não se repetir nas mes-
mas condições históricas, mas pode “naquilo que lhe é essencial”, advertiu
Vianna (2018). O avanço da extrema direita, com uma tática negacionista,
criou dificuldades maiores para os organismos internacionais no enfrenta-
mento sério ao coronavírus, tendo em vista criação de discursos evasivos,
por vezes com falsas informações. Na América Latina não foi diferente, o
que contrastou com ações humanitárias como o exemplo de Cuba.

América Latina e Caribe e os valores de uma revolução

Até aqui analisamos a pandemia no contexto da crise que vive o im-


perialismo. Vamos analisar agora a situação na América Latina. O Brasil

6 Correio Brasiliense, 25/08/2020.

149
foi o primeiro país latino-americano a registrar caso de COVID-19. As
veias de nossa América continuam abertas e o sangue sugado pelo capital
monopolista mundial. Em abril, um mês depois da oficialização da pande-
mia, a América Latina registrou 213 mil casos de coronavírus, com 11.100
mortos aproximadamente7. No início do mês de outubro de 2020, a região
já registrava 10.470.495 infectados, com 380.038 falecidos8 durante os me-
ses da pandemia. Só o Brasil foi responsável pela metade desses números,
registrando 5,2 milhões de casos e 153.905 até meados de outubro9. Os
números registrados em alguns países foram os que seguem abaixo, con-
forme levantamento feito pelo autor:

Equador Peru México Argentina Colômbia

TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS

Abril 26.336 1.063 37.000* 4.370* 17.799 1.732 4.201 207 6.507 293

Outubro** 156.423 12.395 868.675 33.759 851.227 86.167 989.680 26.267 959.572 29.102

Panamá El Salvador Nicarágua Guatemala Honduras

TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS TOTAL OBITOS

Abril 6.378 178 395 9 60* 4* 585 16 771 71

Outubro** 124.745 2.574 31.666 926 5.353 154 101.599 3.541 88.425 2.568

*dados de maio de 2020 (uol)

A primeira coisa que se deve atentar é para a população de cada país, a


fim de fazer a proporção mais adequada em relação à evolução da doença
no período estudado. Quatro países apresentaram crescimento vertigino-
so de casos e óbitos, Peru, México, Argentina e Colômbia. Todos eles su-

7 Brasil de Fato, 30/04/2020.


8 Dados da Telesur, 19/10/2020. Reiteramos que todos os órgãos de controle, na época, con-
fessavam que havia subnotificação que podia chegar a 30 para cada caso notificado (ver folha.
uol de 02/04/2020). Registre-se que o número de indivíduos recuperados até outubro foi de 8,9
milhões, segundo Telesur.
9 Dados da Johns Hopkins University.

150
peraram meio milhão de casos, sendo que os dois últimos estão próximos
de um milhão de casos. Outro fato comum entre eles, isso inclui o Brasil, é
que a curva de contágio acentuou-se a partir do mês de julho, o que pode
estar associado à pressão pela abertura de setores como comércio e ser-
viços, além de entretenimento, além da irresponsável desobediência dos
negacionistas.
Como Brasil, Cuba e Venezuela já constaram da tabela 1, não foi neces-
sário repetir. O Chile tornou-se um caso à parte, pois passou a pandemia
em estado de exceção, por um golpe de Estado que colocou no governo
o direitista Sebastián Piñera. O país, que iniciou a pandemia com o fe-
chamento dos aeroportos, apresentou em outubro 493.305 casos e 13.767
óbitos10. A Bolívia, por sua vez, também esteve em processo eleitoral, após
um dos mais duros golpes de Estado que, de forma criminosa e violenta,
retirou Evo Morales da presidência e impôs um governo ilegítimo coman-
dado por Jeanine Áñez.
Como se pode observar, não foi apenas a pandemia que aterrorizou
a população latino-americana, mas também a onda de extrema direita,
cujos métodos violentos, personagens e discursos assemelhavam-se nos
diversos países por onde passou. A elevação do número de casos e óbitos
deixou dúvidas se não seria uma estratégia articulada: ausência de testa-
gem em massa; proposta de “imunização de rebanho”; incentivo à desobe-
diência aos protocolos, por vezes de forma violenta; retenção de investi-
mentos para enfrentar a crise; negação da ciência; uso de redes sociais para
disseminação de notícias falsas. Nos países de governos de direita, como
Brasil, o próprio poder público encarregou-se das medidas que agravaram
a situação. Nos países que promoviam um melhor controle da pandemia,
as ações eram sabotadas por movimentos que tentavam desestabilizar po-
liticamente os governos, como o da Argentina, que decretou o fechamento
completo no início, mas sofreu pressões por opositores que promoveram
protestos com aglomerações, o que facilitava a propagação do vírus.

10 A fonte dos números é Johns Hopkins University.

151
Em meio à nova “luta de classes” que assolou a América Latina, a pan-
demia do novo coronavírus acentuou os problemas sociais como desem-
prego, fome e miséria nos países de regime neoliberal como o Brasil. À
pandemia, juntou-se o pandemônio. Não foi, entretanto, o que ocorreu
em Cuba. O pequeno país do Caribe, com uma população de pouco mais
de 11 milhões de habitantes, esteve entre os que alcançaram os melhores
índices de combate à COVID-19. El Salvador, com metade da população
de Cuba, teve cinco vezes mais o número de casos e oito vezes mais o de
óbitos. Outros fatores também deveriam ser analisados em estudo compa-
rativo, mas esse dado era bastante significativo. Em relação à Cuba, nosso
objeto principal de estudo, um conjunto de questões concorrem para o
êxito exemplar no combate ao coronavírus, entre elas sua revolução. Ela
está na gênese de todas as vitórias da Ilha desde então.
A Revolução Cubana mudou, definitivamente, o equilíbrio de forças
na região e no mundo. Segundo Mendes (2018),

A Revolução Cubana foi o fato histórico de maior impacto na Amé-


rica Latina após a Segunda Guerra Mundial: (a) alterou a lógica do
poder continental; (b) rompeu o paradigma dos partidos comunis-
tas como dirigentes da revolução; (c) desencadeou o novo método
da Guerra de Guerrilhas; (d) atualizou conceitos como marxismo
e revolução; (e) converteu em realidade histórica o sonho da es-
querda latino-americana; (f) forçou a adoção de novos parâmetros
nas relações internacionais; e (g) introduziu, de forma mais eficaz
e prática, o socialismo na América. Do ponto de vista interno, ela
destruiu as estruturas de exploração capitalistas, desmontou os es-
quemas de corrupção e inaugurou uma nova forma de democracia:
o poder popular.

Cuba não foi a primeira nem a última revolução “proletária e cam-


ponesa” da América no século XX, mas, certamente, foi a que teve mais
êxito e virou o século XXI com sua vitoriosa forma de governar. Além
dos aspectos já elencados, a Revolução Cubana uniu dois princípios muito
de inestimável valor aos seus combatentes, a solidariedade e o interna-
cionalismo. Um novo mundo possível poderia emergir sob as bases da
solidariedade internacionalista ou do internacionalismo solidário. Anali-

152
sar o comportamento de Cuba em sua totalidade frente à pandemia não
é possível se não compreendermos as raízes de sua revolução e os valores
que dela emanaram. A base fundamental constitui herança de José Martí,
cujos ensinamentos reforçavam que “Pátria é humanidade”.
A ação solidária promovida por Cuba, por meio do envio de equipe
de saúde especializada para vários países do mundo, subverteu a lógica da
irracionalidade ocidental-moderna-capitalista que naturalizou o egoísmo
e o individualismo. A iniciativa solidária das “Brigadas Médicas Henry
Reeve”11 representou, para nós, uma ação contra-hegemônica aos princí-
pios individualistas e egoístas do imperialismo que apontaram em dois
sentidos. Do ponto de vista externo, evidenciou o socialismo como alter-
nativa de modelo societário e incentivou a integração regional e mundial.
Do ponto de vista interno, a ação humanitária solidária reforçou o de-
senvolvimento de valores humanitários, revolucionários e a autoestima da
sociedade, com um apelo ao “orgulho de ser cubano”12.
Nos primeiros anos da Revolução, Che Guevara esteve à frente do
Banco Nacional e foi muito crítico às teses sobre a teoria do valor que
não modificasse as bases associadas ao dinheiro, ao salário como finali-
dade material e, portanto, objetivo a ser alcançado pela sociedade. Para
ele, a construção do “homem novo” se daria pela rejeição aos princípios
que regem o capitalismo, como a apresentada na primeira parte de nossa
apresentação. O projeto societário de Che Guevara passava por “procla-
mar o fim da dominação, unido ao término do egoísmo e individualis-
mo” (2011). A análise profunda e crítica que Che Guevara realizou em
sua carta a Quijano, em 1965, resultou em relevante documento histórico
conhecido como “o socialismo e o homem em Cuba”, onde Che apresentou
suas considerações acerca da construção de uma nova dimensão humana.

11 Passarei a denominar “Brigadas Médicas Henry Reeve” ou apenas “Brigadas Médicas” à que
foi oficialmente criada, em 2005, sob o título Contingente Internacional de Médicos Especializados
em situações de desastres e graves epidemias “Henry Reeve”.
12 Campanha promovida em Cuba durante a pandemia (ver granma.cu)

153
A nova sociedade, afirmava Che, precisa concorrer duramente com o
passado. O processo exigiria educação e reeducação constante das mas-
sas. Para ele, por trás de todo processo reside a teoria do valor associada
ao dinheiro e, como tal, precisava ser rechaçada, a fim de não permitir o
avanço dos valores capitalistas. A mercadoria, conforme vimos, é a “célula
da sociedade capitalista” e de todas as formas o capitalismo busca transfor-
mar cada produto em mercadoria. No fim, até mesmo a força de trabalho
transforma-se em mercadoria, debaixo das relações sociais de produção.
Os serviços, por sua vez, como saúde, educação, transporte, dentre outros
de grande necessidade para a população, são transformados em mercado-
ria, para que possam deles extrair valor. Para “se construir o comunismo”,
concluía Che, é preciso “criar um homem novo”.
A Revolução Cubana não foi, nesse sentido, uma “excepcionalidade”
(GUEVARA, 1962). Ela foi vanguarda e ainda persiste, aprofundando-se
em cada ação humanitária, como a que vimos com as Brigadas Médicas.
Os precedentes históricos remontam 1961, quando o governo cubano ado-
tou o programa de “Brigadas de alfabetização” e uma multidão de volun-
tários de várias idades contribuiu para erradicar o analfabetismo da ilha,
com a insígnia “Yo, si puedo” (Sim, eu posso)13. Na área da saúde, a incrível
percepção de Fidel Castro orientou os investimentos do governo para a
construção de sua autonomia e desenvolvimento de profissionais com ex-
pertise suficiente para trabalhar em catástrofes ou graves epidemias. Mais
uma vez, a perspicácia visionária de Fidel repetiria suas palavras proferi-
das quando da defesa em relação ao assalto ao Quartel Moncada: “A histó-
ria me absolverá”.

O PROTAGONISMO CUBANO NA PANDEMIA: BRIGADAS HENRY


REEVE

A amplitude e profundidade da visão de Fidel Castro proporciona-


ram a Cuba um protagonismo inigualável em relação a duas áreas prin-

13 O método é utilizado no Brasil pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) com
êxito.

154
cipais: saúde e educação. No campo da saúde, o princípio da prevenção
foi elemento-chave para o governo cubano, pois permitiu antecipar-se aos
acontecimentos e impedir regressões, crises ou derrotas. Prevenir tem um
significado muito profundo e, por vezes, é negligenciado pelas sociedades
ocidentais, tendo em vista que a prevenção é, por natureza, inimiga do
sistema capitalista. A Revolução,

talvez como a primeira grande contribuição em saúde pública, que


possibilitaria os ambiciosos programas educacionais desenvolvidos
nas ciências médicas em mais de seis décadas, introduziu o concei-
to de universalização do ensino médico, integrando estudantes de
medicina e a enfermagem durante o processo de formação para as
unidades de ensino, o que também permitiu massificar os progra-
mas de capacitação de recursos humanos na área da saúde. Foram
criados os pressupostos humanistas que configuraram a Faculdade
de Medicina de Cuba, estabelecendo a prevenção como conceito
primordial do sistema de saúde no cuidado, a fim de eliminar as
defasagens da velha medicina, que tratava a doença e não o doente.
Da mesma forma, a criação de centros científicos foi orientada para
a atenção sistemática das atividades científicas, cujas investigações
responderam às necessidades do país, a curto e longo prazo; as di-
retrizes gerais foram elaboradas e os recursos materiais e humanos
foram garantidos para o sucesso dessas tarefas. (González Gonzá-
lez, 2020)

Entre os projetos mais promissores, Cuba destacou-se pelo “médico


de família”, uma forma revolucionária de prevenir a doença por meio de
cadastros e visitas à população de determinada área geográfica. O país in-
vestiu alto em pesquisas e construção de centros e laboratórios que fo-
mentassem a investigação, o que resultou em medicamentos eficazes para
vários tipos de doenças. Cuba está, ainda, entre os primeiros países a testar
uma vacina contra a COVID-19, a Soberana 1.
No que tange à saúde, organismos internacionais como a FAO e OMS
acrescentaram que a fome e a falta de saneamento são fatores preponde-
rantes para a disseminação de doenças. Não precisa ser cientista para con-
cluir que, ao resolver o problema da fome e do saneamento, o percentual
de pessoas acometidas por doenças diminui consideravelmente. Segundo

155
a OMS (2017), “três em cada dez pessoas não têm acesso à água potável” o
que dificultava sobremaneira a higiene, ainda mais em momentos de pan-
demia. Após o 1º de janeiro de 1959, Cuba investiu para não apresentar
mais esse problema. As doenças não são mais aquelas associadas à pobre-
za, mas as que afetam a humanidade independente de modelo econômico.
A criação das Brigada do Contingente Internacional de Médicos Es-
pecializados em situações de desastres e graves epidemias “Henry Reeve”
são, por assim dizer, um fator preponderante na luta internacionalista, mas
também no aprofundamento de uma nova sociabilidade. Elas representam
o protagonismo cubano na área da saúde, principalmente. A escolha do
nome, por sua vez, não foi por acaso. Como diria Bourdieu (1989), o po-
der simbólico pode “construir uma realidade” e ajudar a estabelecer um
“sentido imediato do mundo”. O nome de Henry Reeve significou muito
mais do que um indivíduo, pois nele estão contidas uma ideia e uma pers-
pectiva. Ele foi um norte-americano que chegou ao posto de General de
Brigada ao combater os espanhóis na guerra de independência cubana.
Reeve foi considerado herói de guerra porque lutou até o esgotamento,
inclusive quando havia perdido uma das pernas e amarrava-se ao cavalo
para lutar honradamente.
O projeto, concebido por Fidel Castro, guarda um significado maior
do que aquilo que podemos ver. Uniu uma multiplicidade de fatores que
representaram um certo “espírito” revolucionário. Entre esses fatores estão
o voluntarismo e a solidariedade, como princípios de uma nova humani-
dade, a partir do internacionalismo solidário. Com Fidel na presidência,
Cuba enviou ajuda humanitária para o Chile, em 1960, quando um ter-
remoto devastou o país e enviou soldados para a luta na Argélia contra
o colonialismo francês em 1961, quando a própria ilha era atacada pelos
mercenários norte-americanos em Praia Girón. De meados da década de
1970 até final de 1980 Cuba enviou um total de 300 mil soldados para lutar
contra o Apartheid na África do Sul. Além desses, Cuba também atuou no
Congo, na Guiné Bissau e tantos outros países. Sob a coordenação de Fi-

156
del, Cuba ainda protagonizou a Operación Milagro14 que consistiu em ação
humanitária na América Latina para operar catarata em pessoas pobres,
sem condições de financiar a cirurgia. Em tempos de globalização, o lema
cubano é “globalizar a solidariedade”.
O voluntariado também tem raízes nos pensamentos de Che Guevara
e nos exemplos do Comandante em Chefe da Revolução, Fidel Castro, que
denominou a medicina como uma “nobre atividade humana”. No discurso
proferido quando da criação das Brigadas, Fidel afirmou:

Nem o clima nem o potencial genético são a causa da tragédia.


Cuba, país tropical, de clima caloroso e úmido, mais propício a ví-
rus, bactérias e fungos, mistura de etnias sua população, submetida
a um bloqueio cruel e a uma guerra econômica durante quase meio
século, mostra, apesar de tudo, um índice de mortalidade infantil
menor de 6 em cada mil nacidos vivos em seu primeiro ano de vida,
abaixo do Canadá por uma estreita margem, e caminha para chegar
a menos de 5 e, talvez menos de 4 em um futuro não longínquo,
para ocupar o primeiro lugar do continente. Ao mesmo tempo, de-
morará metade do tempo que empregou a Suécia e o Japão para ele-
var de 70 para 80 anos sua expectativa de vida, que hoje chega aos
77,5 anos. Os seus serviços médicos têm elevado essa expectativa
em quase 18 anos a partir de, aproximadamente 60 anos, quando do
triunfo da Revolução, em primeiro de Janeiro de 1959. (CASTRO,
2005)

Em plena era de revolução científico-técnica, que os países mais ricos


têm plenas condições de constituir o contingente ou até maior, Cuba, com
desenvolvimento econômico limitado pelo bloqueio, adotou um progra-
ma dos mais revolucionários, formar médicos para atuar em outros países
para salvar vidas. Segundo Castro (2005),

O Contingente “Henry Reeve” pode não só apoiar a população em


casos de furacões, enchentes e outros desastres naturais similares.
Determinadas epidemias constituem verdadeiros desastres naturais
e sociais. Chega dizer, por exemplo, o dengue hemorrágico, que
açoita um número crescente de países latino-americanos, privando
da vida nomeadamente crianças, e outras novas e velhas doenças

14 Ver https://www.operacionmilagro.org.ar/nueva/, acesso em 10/10/2020.

157
graves, das que podemos e devemos conhecer as maneiras mais efi-
cientes de combatê-las. Existe em particular, uma terrível epidemia
— chamemo-la assim — que açoita o mundo: a Adis. Ela ameaça
de liquidar nações inteiras e inclusive extensas regiões continentais.
Na prevenção e na luta contra essa doença, Cuba ocupa um lugar
destacado no mundo. Examinando o índice que prevalece neste he-
misfério, pode-se apreciar que há países com um nível médio de
infecção, onde a prevalência da Aids no ano 2003 – foi a ultima
publicada — pode ser 2,4 %, 2,3%, 3,2%, da população adulta entre
15 e 49 anos. Não cito nomes, por rações obvias. Noutros a infecção
é ainda mais alta. O melhor índice depois de Cuba é 0,6%. Também
não cito nome. Em Cuba é 0,07%, quer dizer, 8,6 vezes menor pre-
valência que o país que mais se aproxima.

Com uma visão ampla e estratégica, Castro percebeu que o imperia-


lismo estava esgotado e vivia da miséria dos povos. Não haveria saída para
a humanidade que não fosse pela ajuda mútua, pelo trabalho solidário. Há
um século, Hilferding (1985) afirmou que a superação do capitalismo, em
sua fase imperialista, não se daria pelo campo econômico, mas político e
social, devido ao avanço das forças produtivas e o elevado grau de fluidez
do valor, que ele chamou de capital fictício.
Cuba contou, em 2020, com 14 Brigadas Médicas Henry Reeve, com
um efetivo de 593 profissionais da área da saúde. Desde sua criação, fo-
ram mobilizadas 28 brigadas que atuaram em 22 países, principalmen-
te na África, Ásia e América Latina. Para Fidel Castro, Cuba daria uma
demonstração de que “há respostas para muitas tragédias do planeta”
(CASTRO, 2005). De acordo com o periódico virtual Cuba Hoje, “Mais
de 7.950 profissionais enfrentaram os efeitos de 16 inundações, oito fu-
racões, oito terremotos e quatro epidemias, e vale ressaltar três brigadas
que enfrentaram o Ebola na África Ocidental”. A experiência dos cuba-
nos com catástrofes sanitárias é, portanto, inegável. Mais ainda, sua opção
pela solidariedade internacional, em que pese todos os percalços sofridos,
principalmente pelo bloqueio econômico criminoso perpetrado pelo im-
perialismo norte-americano.
A primeira ação solidária cubana de projeção internacional durante a
pandemia foi com relação ao episódio do cruzeiro britânico MS Braemar

158
que pediu ajuda a vários países, pois estava com casos de COVID-19 a
bordo e nenhum país permitiu que atracasse em seus portos. Com 682
viajantes e 381 tripulantes, o navio não teve autorização para atracar nem
pelos Estados Unidos, ex-colônia inglesa. Cuba estendeu a mão ao mundo,
para que pudessem fazer o traslado ao aeroporto e fossem resgatados de
avião, pois a viagem de navio, com o novo coronavírus representava alto
risco de contaminação e possíveis óbitos. Para Cuba, a vida vale a pena.
No caso da Itália, o mundo assistia, atônito, ao maior drama que a hu-
manidade poderia passar, a escolha entre quem vive e quem morre. Com
corpos e pacientes dividindo espaço nos hospitais lotados naquele país ba-
nhado pelo Mediterrâneo, os médicos anunciavam a triste realidade a que
estavam submetidos diariamente. No dia 21 de março de 2020, um grupo
de 52 médicos viajou para a Itália em uma ação solidária que comoveu o
mundo. Eram profissionais que haviam estado na África, na linha de fren-
te contra o Ebola, uma doença gravíssima, o que conferia àquela equipe
todo crédito para o combate necessário. No início da pandemia, com o
mundo ainda sem muita informação sobre a doença e com a orientação de
isolamento, Cuba reafirmou sua coragem e fé na vida.

Considerações finais

A pandemia do novo coronavírus revelou contradições infinitas. A


forma de combate a ela foi uma demonstração de que Cuba sempre este-
ve no caminho certo de uma nova humanidade, com valores éticos, mo-
rais e humanísticos. As Brigadas Médicas “Henry Reeve” foram formadas
em 2005 com objetivos humanitários e sanitários, como exemplo para o
mundo.
A contagem de casos e mortos foi acelerada, isto sem contar os casos
de países como o Brasil onde houve denúncias de subnotificação. A crise
sanitária mundial revelou o esgotamento do capitalismo como modelo e
exige uma nova ordem mundial.

159
As crises do capitalismo são cíclicas, mas ocorrem cada vez mais
acentuadas, cujos sintomas são recessão, inflação e os resultados mais de-
sastrosos como desemprego, fome e miséria da classe trabalhadora, hoje
precarizada (SANTOS JR, 2018). Em um prognóstico que parece atual,
mesmo que escrito em outra época, pergunta-se “Qual seria a evolução
possível da crise da América Latina, levando em conta os elementos que
a conformam? Em suma, quais são as alternativas que se apresentam aos
nossos países imersos nesta situação?”. Estaríamos diante do que Santos Jr.
profetizou, de “socialismo ou fascismo”?
A encruzilhada em que nos encontramos, de elevação do tom com que
o imperialismo domina o mundo, demonstra que a experiência cubana é
uma resposta digna e eficaz contra o terror e a barbárie do capital. Como
bem acentuou Botto (2020) “la salida será coletiva o no será”. O pensamen-
to e a prática humanistas, cujo princípio segue a ideia da solidariedade,
tornam-se um golpe fatal na natureza individualista do capitalismo. As
Brigadas Médicas “Henry Reeve” constituem, assim, uma perspectiva de
integração regional e mundial, cujo objetivo é derrotar o imperialismo e
apontar um caminho para a construção de uma virada civilizatória. Este é
o desafio das nações e, em particular da Organização das Nações Unidas
(ONU), estimular a integração mundial e a solidariedade.

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162
VIII

AMÉRICA LATINA E OS IMPACTOS


ESTRUTURAIS OCASIONADOS PELA
COVID-19
Paulo Maurício do Nascimento1

Introdução

O objetivo deste trabalho é procurar deslindar os possíveis impactos


estruturais ocasionados pela Covid-19 na América Latina. Delimitamos
nossa pesquisa no período: de 31 de dezembro 2019 a 12 de maio de 2020,
e o lançamos com a seguinte indagação: o que vem a ser a Covid-19?
A Covid-19 é a denominação dada pela OMS - Organização Mundial
da Saúde, em fevereiro de 2020, ao novo vírus (Sars-Cov-2) pertencente
ao grupo Corona vírus – grupo viral conhecido desde meados de 1960
- que provoca infecções respiratórias em seres humanos e animais. As ra-
zões da mutação que favoreceram o surgimento do novo vírus ainda são
desconhecidas pela ciência, ainda são especulativas. Outras variações do
Corona vírus são de domínio da comunidade científica, entre as quais:
Sars-Cov e Mers-Cov. Ambos chegaram aos humanos por contato com

1 Mestrando em História, com ênfase em História da África, pela Universidade do Estado


do Rio de Janeiro – UERJ (2020). Pesquisador do Áfricas: grupo interinstitucional de pesquisa
(UERJ-UFRJ). Bacharel em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2019).
p.mauricio30@hotmail.com.

163
animais: no caso do vírus Sars-Cov, através dos gatos e do vírus Mers-Cov,
através dromedários, respectivamente2.
Os primeiros registros de casos da Covid-19 foram na cidade de
Wuhan, província de Hubei, na República Popular da China, com popula-
ção estimada em torno de 11 milhões de habitantes. Em 31 de dezembro
de 2019 as autoridades chinesas notificaram o surgimento de uma desco-
nhecida pneumonia à OMS, levando-a emitir o primeiro alerta a respeito
do vírus.
A Organização Mundial da Saúde, em 30 de janeiro de 2020, declara
a exitência de um surto, seu grau de gravidade e o classifica de emergência
internacional. Em 11 de março de 2020, o surto da Covid-19 foi caracteri-
zado como uma pandemia pela OMS. Em 24 de abril, a pandemia já havia
alcançado aproximadamente 185 países, com alguns milhões de casos con-
firmados e centenas de milhares de vítimas fatais.
As peculiaridades da Covid-19, o classifica como uma das maiores
ameaças da contemporaneidade, sendo as seguintes:
1. Acentuada capacidade de disseminação e contaminação;
2. Velocidade com que atingiu todos os continentes;
3. Capacidade do desenvolvimento, em curto espaço de tempo, de
insuficiência respiratória grave e diversas complicções clínicas aos
pacientes;
4. Inexistência de tratamento específico;
5. Indisponibilidade de medicamentos e vacinas específicos.

2 OMS: Organização Mundial da Saúde: é uma agência especializada em saúde, fundada em 07


de abril de 1948 e subrodinada à ONU – Organização Mundial das Nações Unidas. Sua sede é
em Genebra, na Suíça. O atual diretor-geral è, desde de 2017, o etíope Tedros Adhanom. A OMS
tem suas origens nas guerras do fim do século XIX.

164
Impactos gerais

A pandemia provocada pela Covid-19 direciona a um cenário inédito


e um complexo desafio. A pandemia transcende as questões epidemio-
lógicas, impactando questões sociais, econômicas, envolvendo inclusive
questões no âmbito político. Em razão da inexistência de um tratamento,
vacina e medicamentos específicos, contribuindo à disseminação do ví-
rus, as autoridades chinesas adotam como medida, o isolamento social,
em Wuhan, local de origem do surgimento do vírus. O isolamento social
é uma medida de caráter extremo, que aponta a possibilidade de conside-
ráveis alterações nas conjunturas sociais dos países3. Uma das medidas de
isolamento são as denominadas quarentenas4.
O isolamento social, no tocante à economia, provoca a redução das
atividades econômicas - caracterizadas pela constrição dos fluxos produti-
vos, de serviços, do comércio e do consumo – acarretará perdas significa-
tivas que indicam a possibilidade de grandes impactos sociais.
Quanto os aspectos sociais, em razão da redução das atividades eco-
nômicas, percebemos o crescimento de desemprego; as atividades dos tra-
balhadores informais estão sendo atingidas acentuadamente; cresce a vul-
nerabilidade das camadas sociais menos favorecidos, expondo-se à fome e
à precariedade dos sistemas públicos de saúde de inúmeros países.

Condutas adotadas por alguns países atingidos pela covid-19

Como já mencionamos, o surto da Covid-19 foi classificado como


pandemia pela OMS em 11 de março de 2020. Essa pandemia revela um
grande desafio – sua capacidade de disseminação. Comparada à pandemia
do vírus H1N1 de 2009, é quase o dobro, a sua capacidade de contágio, se-
gundo a OMS. Enquanto o H1N1 era capaz de infectar de 1,2 a 1,6 pessoas,

3 Conjuntura social: é a configuração, organização, combinação ou concorrência de aconteci-


mentos ou eventos num dado momento.
4 Quarentena: reclusão de indivíduos ou animais sadios pelo período máximo de incubação
da doença, contado a partir da data do último contato com um caso clínico ou portador, ou da
data em que esse indivíduo sadio abandonou o local em que se encontrava a fonte de infecção.

165
o índice para a Covid-19, que varia de local para local, gira em torno de
2,79 pessoas.
Essa realidade conduz governos a decisões significativamente distintas:
enquanto países como Coréia do Sul, Portugal, Alemanha, Argentina e
Paraguai adotam o fechamento de suas fronteiras e a implantação do iso-
lamento social, obtendo resultados satisfatórios no controle da pandemia,
favorecendo um baixo número de contágios e vítimas fatais, governos
como Itália, Espanha, Reino Unido e Brasil, por exemplo, subestimam a
potencialidade do vírus, postergando ações efetivas, provocando resul-
tados extremamente desastrosos, marcados por números expressivos de
contaminação e de vítimas fatais. As providências tardias dos países cita-
dos anteriormente acarretam graves consequências:
1) Sobrecargas dos Sistemas de Saúde: falta de leitos hospitalares; insu-
ficiência de Unidades de Terapias Intensivas (UTI); insuficiência de
insumos hospitalares, desde aparelhos, como respiradores mecâni-
cos à matérias-primas e produtos; insuficiência de Equipamentos
de Proteção Individual (EPI); indisponibilidade de profissionais
capacitados suficientes;5
2) Acentuado impacto do contágio às populações - até a data 12 de
maio de 2020, a OMS apresentou oficialmente, isto é, casos confir-
mados, os seguintes números:
a. Estados Unidos: contaminados: 1.416.258 - vítimas fatais: 85.813;
b. Brasil: contaminados: 255.368 – vítimas fatais: 16.856;
c. Reino Unido: contaminados: 236.711 – vítimas fatais: 33.998;
d. Espanha: contaminados: 231.606 – vítimas fatais: 27.709;
e. Itália: contaminados: 225.886 – vítimas fatais: 32.607

5 Insumos hospitalares: matérias-primas, produtos e equipamentos utilizados em todos os


setores de uma unidade hospitalar.

166
Em consequência dos resultados em relação aos posicionamentos
iniciais dos governos exemplificados, os mesmos redirecionam – com ex-
ceção do Brasil, em que trataremos adiante- suas condutas alinhando-se
às medidas protocolares da OMS em combate a Covid-19, como o iso-
lamento social. As afirmações de Amarílis Busch Tavares nos permitem
uma inserção no contexto: Com efeito, medidas quarentenárias, com di-
versos graus de restrição, assumiram um papel fundamental no combate à
pandemia e suas consequências, ainda que isso tenha um impacto sobre as
economias e mercados de trabalho, trazendo à tona discussões sobre segu-
rança alimentar, combate à desigualdade e proteção de grupos vulneráveis
especialmente afetados pela pandemia.
O prolongamento da crise constitui um desafio não somente aos siste-
mas de saúde, mas aos de proteção social, na medida em que mais pessoas
ficam desempregadas e trabalhadores informais passam a ter suas ativida-
des restringidas. Particularmente isso pode ser um problema ainda maior
na América Latina, em virtude do ponto de partida da região, que vinha
crescendo abaixo da média global, e das políticas recentes de austeridade
fiscal, que reduziram de forma acentuada o gasto público em políticas so-
ciais. (TAVARES: 2020, p.112)
Os impactos da pandemia - revela uma fragilidade nas sociedades -
que podem ser entendidos como consequência da ausência de uma polí-
tica de investimentos, a longo prazo, em necessidades básicas, principal-
mente na saúde, como na América Latina6.

América Latina – aspectos gerais

Historicamente, a América Latina é marcada pelo subdesenvolvimen-


to; pela industrialização tardia e dependente de capital externo; pelas gra-
ves e acentuadas desigualdades sociais e; em certa medida, pela instabi-
lidade política. Nos aspectos sociais, predomina-se a má distribuição, a

6 América Latina: é uma região do continente americano que compreende todos os países lo-
calizados a partir do México em direção ao sul, compreendendo um total de trinta e três países
independentes, que são todos os países.

167
acentuada concentração e o difícil acesso à renda; aos recursos produtivos,
como a terra; aos bens, em seus diversos aspectos e serviços; ao emprego;
os desafios que envolvem a qualidade e o acesso da educação, fundamentais
à cidadania e na formação de mão de obra qualificada; e saúde pública. A
vulnerabilidade das camadas sociais menos favorecidas, marcada pela alta
taxa de populações abaixo da linha da pobreza, entre inúmeras questões.
Tratando das questões voltadas à economia, a América Latina ocupa
uma posição periférica – dialogando com o conceito de sistema-mundo de
Immanuel Wallerstein.7 O setor primário: agricultura, mineração, pesca,
pecuária, extrativismo vegetal e caça é predominante na América Latina.
Brasil, Argentina, Chile e México, destacam-se no setor secundário (in-
dústria). Na extração de petróleo merecem destaques a Venezuela, Brasil,
Argentina, Colômbia, Equador e México. O setor terciário (serviços) foi o
que mais cresceu nas últimas décadas na maioria dos países da América
Latina. O Brasil, México e Argentina são responsáveis por cerca de 75% do
Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina.
A América Latina passa por um processo de transformações mar-
cantes a partir da primeira metade década do século XXI em razão dos
aspectos do sistema econômico internacional – exemplificando a corpu-
lenta dependência dos países centrais – o crescimento econômico recente
da China provoca uma reconfiguração no comércio mundial em razão da
necessidade de acesso à matérias-primas, como as commodities e produtos
agropecuários – principais produtos de exportação da América Latina -
a internacionalização das empresas chinesas e sua adesão à Organização
Mundial do Comércio (OMC) em 20018. A aceleração do crescimento da
América Latina acarreta significativas alterações sociais, como o a redução

7 Immanuel Maurice Wallerstein foi um sociólogo estadunidense, mais conhecido pela sua
contribuição fundadora para a teoria do sistema-mundo. Ver: WALLERSTEIN, I. Análises dos
sistemas-mundos como movimento do saber. In:VIEIRA, P.A, LIMA VIEIRA, R, & FILOMENO, F.A.
(Org.). O Brasil e o capitalismo hitórico: passado e presente na análise dos sistemas-mundo.
São Paulo: Cultura Acadêmica Ed., pp.17-28.
8 Commodities: são matérias-primas básicas como milho, dólar, boi, café, petróleo, ouro e ou-
tras. Sua principal característica é ser processada, sendo utilizada na produção de maior valor
agregado.

168
da taxa de desemprego e aumento da participação feminina no mercado de
trabalho. Esse crescimento se manteria até o final da década de 2010.
Os ciclos de avanços e retrocessos são recorrentes na América Lati-
na, contribuindo a uma determinada vulnerabilidade. A globalização - em
todos os seus aspectos e desdobramentos - envolve a região numa série de
desafios, em razão dos constantes processos de transformações nas con-
junturas mundiais. Apesar de seu empenho, dinamismo, a América Latina
esbarra numa série de adversidades para o seu desenvolvimento, marcada
por amplas e heterogêneas desigualdades estruturais.

América Latina e a covid-19 (estudo de casos)

A América Latina é uma região composta por trinta e três países, a


contar pelo México, na América do Norte, passando pelos países caribe-
nhos, América Central e América do Sul. A América Latina é uma região
dotada de similaridades e contrastes nos mais diversos aspectos: naturais,
sociais, econômicos e políticos. Tratando do fenômeno da pandemia da
Covid-19, foram diversas as medidas tomadas pelos governantes de seus
respectivos países, com desdobramentos significativamente distintos. Ele-
gemos alguns desses trinta e três países para analisarmos suas respectivas
relações com a pandemia da Covid-19 - com destaque ao Brasil - os im-
pactos e o possível cenário pós- pandemia para a região.

1-Brasil

É numa conjuntura protofascista, norteada pela destruição das polí-


ticas públicas e sociais, que nos deparamos com o fenômeno Covid-19, no
Brasil.9 Jair Messias Bolsonaro, eleito presidente do Brasil, em 2018, num
período de crescimento da ultradireita em todo mundo, inclusive na Amé-
rica. Tomamos alguns exemplos da ascensão da ultradireita ao poder na

9 Protofascista deriva do conceitoProtofascismo: pode ser entendido como determinados as-


pectos sociais, políticos e ideológicos do nazifascismo, que podem estar presentes, parcialmen-
te ou na sua plenitude, conforme a situação política, inclusive na atualidade, e no Brasil.

169
Europa e na América: na Polônia, em 2015 o Partido Lei e Justiça vence as
eleições – em razão de algumas alterações políticas, desde 2017, Mateusz
Morawieoki assume o posto de 1° Ministro; na Espanha, em abril de 2019,
o Vox (Partido Nacional Conservador) vence as eleições e Adolfo Suá-
rez é eleito 1° Ministro. Na América Latina tomamos como exemplo a as-
censão do centro-ultradireita com a eleição do presidente Martin Vizcarra,
em março de 2018, através do Partido Peruanos Por el Kambio e findando
nossos exemplos, citamos a eleição de Andrés Manuel Lopez Obrador, no
México, em 2018, através do Partido Movimento Regeneração Nacional.
Enquanto a pandemia se expande pelo mundo de forma inusitada e
avassaladora com resultados extremamente catastróficos, além das orien-
tações apresentadas pela OMS, o presidente Jair Messias Bolsonaro adota
uma retórica negacionista quanto à gravidade da doença. O mesmo torna-
-se a própria personificação dos interesses do neoliberalismo. As determi-
nações das maiores autoridades científicas e com o próprio exemplo das
medidas tomadas por países que obtiveram resultados satisfatórios, Jair
Messias Bolsonaro desqualifica a potencialidade da Covid-19, a tratando
como uma “gripezinha”10.
Em razão da inexistência de uma vacina, medicamentos e tratamentos
específicos ao combate à pandemia e sua alta capacidade de disseminação,
as autoridades científicas entendem que medidas extremas se faz necessá-
rio como: o isolamento social; entre as quais, medidas quarentenárias; a
paralisação das atividades econômicas; restrição de direitos individuais;
contenção da mobilidade pública; e fechamento das escolas. A imple-
mentação de tais medidas acarretará acentuadas desestruturações sociais.
Resistindo aos resultados positivos de outros países e as determinações
científicas, que apontam a necessidade do isolamento social, Jair Messias
Bolsonaro defende a não paralisação das atividades econômicas, defen-
dendo o isolamento vertical (em que os idosos e grupos de risco mante-
nham-se em quarentena), enquanto a faixa etária que compõe a mão de

10 Neoliberalismo: doutrina, desenvolvida a partir da década de 1970, que defende a absoluta


liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta
ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo.

170
obra ativa permaneça em atividade. Entendemos que o posicionamento do
presidente da república representa os conceitos da necropolítica neoliberal.
Em nosso entendimento, esse sistema divide a sociedade em excluídos e in-
cluídos: desconsidera os primeiros e atemoriza os segundos para perpetuar
e aumentar o poder e a riqueza dos privilegiados. Em que consiste a necro-
política neoliberal: os corpos que não são rentáveis para o capitalismo neo-
liberal, que não produzem nem consomem, são deixados para morrer11.
Despreocupado com um plano nacional de ao enfrentamento da Co-
vid-19, as ações do presidente da república são centralizadas somente para
retomada econômica, colocando em risco a saúde nacional diante de uma
crise viral, a qual não se tem certeza sobre a dimensão, dentro de um país
com tamanha desigualdade e carências. Carente de um plano coordenado
pelo governo federal coube às secretarias estaduais e municipais desenvol-
verem seus próprios projetos, orientandos por cientistas brasileiros e pela
OMS.
O Estado de São Paulo torna-se o epicentro da pandemia. A primeira
morte da Covid-19 ocorre na capital em 14 de março. Com o avanço da
disseminação da pandemia, o governador João Dória inicia medidas res-
tritivas, e baixa o Decreto Estadual n° 64.881, em 22 de março de 2020,
determinando o isolamento social, em que favorece, entre outras medidas,
a paralisação de inúmeras atividades econômicas; fechamento das escolas;
e restrição de circulação.
Prefeituras também adotaram medidas de isolamento social, como a
prefeitura da cidade de São Paulo, através do Decreto Municipal nº 59.298,
em 23 de março de 2020, baixado pelo prefeito Bruno Covas. As ações
tomadas pelo governador de São Paulo e pela prefeitura da cidade de São
Paulo provocaram reações de repúdio por parte do presidente Jair Messias
Bolsonaro. Em 12 de maio de 2020, o Estado de São Paulo apresentava

11 Necropolitica Neoliberal: As políticas neoliberais são políticas de morte. Não tanto porque os
governos nos matam com sua polícia, mas porque deixam morrer pessoas com suas políticas
de austeridade e exclusão. Tal conceito surge a partir do conceito de necropolitica desenvolvida
pelo filósofo e historiador camaronês AchilleMbembe.

171
como números oficiais 47.719 de infectados e 3.949 vítimas fatais, tendo a
primeira morte confirmada em 14 de março.
Por meio do Decreto Estadual n° 46.966, em 11 de março de 2020,
o governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, determina o
isolamento social, provocando também reações adversas por parte do pre-
sidente da república. O prefeito Marcelo Crivella em 21 de março de 2020,
também baixa medidas restritivas à cidade do Rio de Janeiro, através do
Decreto nº 47.282. Em 12 de maio o Estado do Rio de Janeiro apresentava
18.486 infectados e 1.928 vítimas fatais, tendo como primeiro caso fatal
registrado em 25 de março.
Finalizando o estudo de caso relacionados aos estados brasileiros, tra-
taremos do Estado do Ceará, que também apresenta números consideráveis
consequentes dos efeitos da pandemia. Considerado o terceiro estado a
sofrer os efeitos da Covid-19, em 16 de março, o governador Camilo San-
tana baixa o isolamento social através do Decreto Estadual 33.519. Em
15 de março foi registrado o primeiro caso fatal no estado, e até a conclu-
são deste trabalho, o estado apresentava 18.400 infectados e 1.280 vítimas
fatais.
Em razão do aumento significativo da disseminação da Covid-19, ca-
racterizando uma emergência de saúde pública, e mesmo se posicionando
contrariamente à comunidade científica, o presidente Jair Messias Bolso-
naro atribui ao ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, a condução
do combate à pandemia. A Portaria 356 – 11 de março estabelece as me-
didas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importân-
cia internacional. Uma das determinações incluía o isolamento de pessoas
sintomáticas ou assintomáticas com o objetivo de evitar a propagação da
infecção e transmissão.
As medidas necessárias para contenção da disseminação do vírus, de
acordo com as orientações da OMS e o ministro da saúde Luiz Henri-
que Mandetta, incluio isolamento social, o auto isolamento de trabalha-
dores e consumidores; paralisação das atividades econômicas, fechamen-

172
to de fábricas, lojas e serviços; a proibição de atividades esportivas; e de
entretenimento.
O presidente é crítico aberto do isolamento, sob o argumento de que a
economia não deve ser abalada em razão dos meios apresentados ao com-
bate à epidemia, sendo, portanto, contrário à paralisação das atividades.
Jair Messias Bolsonaro defende o isolamento vertical – como esclarecido
anteriormente. Essa medida, segundo as autoridades científicas, não im-
pede a propagação do vírus e nem protege os grupos vulneráveis. Alguns
países citados anteriormente retardaram pôr em prática as determinações
da OMS e tiveram como resultado o colapso de seus sistemas de saúde. A
Covid-19 é dotada de uma alta capacidade de contágio, não favorecendo
o atendimento a todos que necessitam de assistência médica, provocando
um elevado número de contaminação e alto grau de letalidade.
O então ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta, conduz as medi-
das de enfrentamento à pandemia da Covid-19 alinhado-se às condutas
da comunidade científica internacional, ratificando a necessidade do iso-
lamento social, visando o impedimento do colapso do sistema público de
saúde, no caso o SUS, e privado, tendo como propósito a preservação da
vida de um número incalculável de cidadãos. Os estados do Rio de Janei-
ro e São Paulo são os precursores nas medidas quarentenárias, acirran-
do a rivalidade entre o presidente e os governadores, em que o primeiro,
insiste em seu posicionamento necropolítico neoliberal. A conduta plan-
gente do presidente Jair Messias Bolsonaro, é a sua escolha pela politi-
zação diante da gigantesca e inusitada ameaça que representa a Covid-19,
subestimando e desrespeitando tanto as determinações da OMS, quanto
do próprio Ministério da Saúde. Apresentamos alguns fatos que eviden-
ciam a politização, por parte do presidente, da pandemia:
1. Discursos que minimizam a potencialidade da Covid-19;
2. Culpa a mídia como propagadora de informações desmedidas so-
bre a pandemia provocando “histeria” na sociedade;

173
3. Desrespeita as medidas de isolamento, promovendo aglomeração
de seus apoiadores;
4. Não faz uso publicamente de máscara de proteção;
5. Promove o uso dos medicamentos: Hidroxicloroquina e Cloroqui-
na, sendo sua eficácia questionável pelas principais instituições
científicas mundiais;
6. Discursos ofensivos aos governadores e prefeitos que seguem as
determinações do Ministério da Saúde;
7. Desqualifica publicamente o posicionamento e a condução da pan-
demia por parte do ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta;
8. A condução do ministro da saúde à pandemia é aprovada por 76,2%
da população, enquanto a reprovação das condutas do presidente
gerava em torno de 62,4%.

Esse cenário de embates não contribui com uma política unificada de


combate à pandemia. A condução da pandemia por parte do ministro da
saúde resulta em 76,2% de aprovação, enquanto à do presidente gerava
em torno 37,6%. O índice de aprovação social na direção do combate a
Covid-19, gera uma significativa visibilidade ao ministro Luiz Henrique
Mandetta, que consequentemente traz insatisfação ao presidente em re-
lação às suas pretensões políticas. Essa convergência de fatos culmina na
demissão em 16 de abril. Em 17 de abril é nomeado ministro da saúde,
Nelson Luiz Sperle Teich – médico oncologista, consultor em saúde e em-
presário. A nomeação de Teich é entendida, não apenas como uma medida
política por parte do presidente, mas um possível retrocesso no combate à
pandemia, em razão da ausência, por parte de Teich, do conhecimento do
funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS).
Enquanto o governo federal permanece com a politização da pande-
mia, onde o presidente da república, visando exclusivamente às questões
da economia, responsabiliza governadores e prefeitos as consequências

174
impostas pela Covid-19, o país segue com a proliferação do vírus, provo-
cando alto índice de contágio e de vítimas fatais em razão do colapso do
sistema de saúde.
A paralização das atividades econômicas, agrava a vulnerabilidade de
milhões de brasileiros em estado de desemprego, dos autônomos, micro
e pequenos empreendedores, dentre outros. Esse cenário mobiliza ações
efetivas, principalmente por parte dos parlamentares. Por medida dos
Deputados Federais é redigida a Lei nº 13.982/2020 sancionada em 02 de
abril, promovendo o Auxílio Emergencial em três parcelas de R$ 600,00 a
segmentos sociais pré-definidos. Também foi instituído programa de for-
talecimento às pequenas e microempresas; a desoneração da folha de pa-
gamento de empresas e a concessão de empréstimos para o setor privado
para a quitação da folha de pagamento no período também de três meses,
através da Lei nº 13.999/2020 (Pronampe – Programa Nacional de Apoio
às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), sancionada em 18 de
maio, de autoria do Senador Jorginho Mello (PL-SC).
Nos parece claro que em razão da politização - do fenômeno da Co-
vid-19 – o Brasil caminha em direção a uma calamidade sanitária, apre-
sentando no período abordado deste trabalho 178.214 contaminados,
12.461 vítimas fatais e ocupando o 6° lugar na escala epidêmica mundial.

2-Argentina

Seguindo um sentido oposto ao Brasil, o governo argentino optou


imediatamente por medidas extremas, isto é, o isolamento social e fecha-
mento das fronteiras para o enfretamento da Covid-19. Em 20 de março, o
presidente Alberto Fernandéz lançou um decreto proibindo a mobilidade
da população, exceto em casos de primeira necessidade ou emergenciais.
A circulação é permitida mediante autorização prévia, como funcio-
nários públicos e outros profissionais que precisam exercer atividades pre-
senciais. O governo adotou uma severa fiscalização, resultando números
satisfatórios: 6.563 contaminados e 319 vítimas fatais.

175
3-Paraguai

O número de contaminados pela Covid-19, no Paraguai, também é bem me-


nor que no Brasil,por consequência direta na decisão adotada pelo governo em 10
de março. O país decretou uma quarentena obrigatória e paralisou as atividades
não essenciais e fechou as fronteiras do país três dias após o registro do primeiro
caso oficial da Covi-19, em 07 de março, em território paraguaio. A maioria
dos casos foi registrada na capital. Assunção, região mais populosa do país
e seguida pelo Alto Paraná, na fronteira com o Brasil. No período analisa-
do o país computava 368 contaminados e 16 vítimas fatais.

4-Costa Rica

A política adotada pelo país é o isolamento social a partir dos pri-


meiros casos, sendo o primeiro registrado em 06 de março. Autoridades
sanitárias da Costa Rica ordenaram o fechamento dos estabelecimentos co-
merciais e as mais diversas atividades econômicas. Uma das determinações
do ministro da saúde, Daniel Salas, que a população viaje ao exterior em
casos de extremas necessidades. O sistema de saúde do país já foi muito
fragmentado, mas as reformas nos anos 90 e 2000 criaram um esquema
sólido que lhe permitiu responder a essa pandemia.
Enquanto países como Itália, Espanha, Reino Unido e Brasil, entre tan-
tos outros, enfrentam números insuficientes de leitos de UTIs (Unidades
de Tratamento Intensivo) para atender suas demandas, a Costa Rica dis-
punha de aproximadamente uma centena de leitos disponíveis para aten-
dimento de 16 pacientes e somente 8 necessitando de cuidados intensivos.
Com apenas seis mortos e mais de 700 casos, a Costa Rica é um dos
países com a menor taxa de letalidade por Covid-19 na América Latina
e no mundo. A taxa de letalidade, que indica o número de mortos entre
pacientes infectados, é de 0,86%, segundo cálculos da OMS, enquanto no
Brasil, a média nacional é de 6,8%, segundo o Ministério da Saúde.

176
5-Equador

Uma das mais calamitosas situações em consequência da pandemia da


Covid-19, na América Latina, possivelmente seja no Equador. O sistema
de saúde entrou em colapso, seguido também do sistema funerário, em
Guayaquil, capital do estado de Guayas.
Estima-se em Guayaquil, aproxidamente 2.700.000 habitantes e, se-
gundo o prefeito Andrés Guschmer, um terço da população encontra-se
contaminada. O colapso do sistema funerário leva a população abandonar
os corpos de seus familiares, falecidos em suas residências, pelas calçadas,
aguardando em média cinco dias para o recolhimento dos corpos.
O primeiro caso registrado no Equador foi em 14 de fevereiro. Em 17
de março foi decretada a quarentena, mas com baixa adesão pela popula-
ção. Em 12 de maio as autoridades computavam 30.300 contaminados e
1.654 vítimas fatais.

6-México

O presidente mexicano André Manuel López Obrador segue a mes-


ma linha do presidente do Brasil Jair Messias Bolsonaro em relação ao
enfrentamento da pandemia da Covid-19, ou seja, defende os interesses
econômicos à vida humana. Até 12 de maio o México apresentava 45.032
contaminados e 4.767 vítimas fatais, superando inclusive o número de ví-
timas fatais na China - 4.637, mesmo com uma população estimada em
mais de 1.400.000.000 em 2020.
Uma das consequências pela política adotada pelo presidente mexi-
cano são os hospitais sobrecarregados e incapazes de atender novos pa-
cientes. Com uma população em torno de 126 milhões de habitantes, as 4.767
mortes no país representam 3,55 mortes para cada 100 mil habitantes. No
ranking do número de contágios nas Américas, o México está atrás apenas
de Estados Unidos (1.417.889), Brasil (203.165) e Peru (80.604).

177
O presidente Obrador defende a volta dos trabalhadores às fábricas e
ambientes de trabalho, expondo-os à doença e à morte para proteger os
interesses do lucro. Obrador não se posiciona apenas aos interesses dos
capitalistas mexicanos, mas sob asa ordens da administração Trump e dos
fabricantes automotivos, de armas e de outras indústrias dos EUA, cujas
cadeias de abastecimento dependem da produção do México.

7-Peru

Desde o início das medidas de isolamento social tomadas pelo pre-


sidente Martin Vizcarra, entre as quais, o fechamento das suas fronteiras
e aeroportos, por tempo indeterminado, sendo um dos primeiros países
latino-americanos a adotar medidas quarentenárias, o Peru – próximo ao
término da primeira quinzena do mês de maio - apresentava 72.059 infec-
tados e 2.057 vítimas fatais, se tornando o quarto em número de mortos na
América Latina, depois do Brasil, México e Equador.

A covid-19 – impactos e projeções na América Latina

Segundo os relatórios da CEPAL, a pandemia da Covid-19 possivel-


mente trará impactos às economias da América Latina e do Caribe, por
meio de fatores externos e internos cujo efeito levará a uma das piores
contrações de sua história. Segundo as últimas estimativas, está prevista
uma contração regional média de -5,3% para 202012.
Em 21 de abril, a CEPAL apresentou o relatório intitulado Dimensio-
nar os efeitos da COVID-19 para pensar a reativação, que analisa os efeitos
econômicos e sociais da pandemia na região. Segundo o relatório, a Améri-
ca Latina e o Caribe amargavam um crescimento médio de 0,4% entre 2014
e 2019. A crise que a região está sofrendo neste ano de 2020, com uma
queda do PIB, conforme já salientamos, de -5,3% será a pior em toda sua

12 CEPAL: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe foi criada em 1948 pelo Con-
selho Econômico e Social das Nações Unidas com o objetivo de incentivar a cooperação entre
os seus membros.

178
história. Também, segundo o relatório, alguns foram os aspectos que con-
tribuíram significativamente com a crise da Covid-19 na América Latina e
no Caribe, em que podemos citar: a retração do comércio internacional;
queda dos produtos primários entre as quais as commodities; intensifica-
ção da aversão ao risco e o agravamento das condições financeiras mun-
diais; e menor demanda de serviços, entre os quais de turismo.
O relatório segue afirmando, que inúmeros países da região serão
atingidos pela queda da atividade econômica da China, importante im-
portador dos produtos latinos americanos, sendo, por exemplo, o prin-
cipal parceiro econômico do Brasil. Quanto a América Central, a queda
seria de -2,3%, afetada pela queda do turismo e pela redução da atividade
nos Estados Unidos, seu principal parceiro comercial e fonte de remessas;
enquanto o Caribe contrairia - 2,5%, devido à redução na demanda por
serviços turísticos.
O Brasil e o México terão impactos significativos em suas economias,
em razão do nível de desenvolvimento de seus parques industriais, com
uma queda em torno de 15% de suas exportações. A especialização da
América do Sul na exportação de produtos primários – matéiras-primas
- entre os quais as commodities e a interrupção das cadeias de valor pro-
duzida pela pandemia, impactará com maior intensidade as economias
brasileira e mexicana, além da Argentina, que possuem os maiores setores
manufatureiros da região, o valor das exportações da região cairia cerca de
15%. Os maiores impactos seriam nos países da América do Sul, especia-
lizados na exportação de bens primários e, portanto, são mais vulneráveis
à diminuição de seus preços. Por sua vez, o valor das exportações da Amé-
rica Central, do Caribe e do México sofrerá o impacto da desaceleração da
economia dos Estados Unidos. O México também será atingido pela que-
da no preço do petróleo.
Os estudos apresentados pelo relatório indicam a deterioração da ofer-
ta de frentes de trabalho, principalmente as atividades formais em 2020. A
taxa de desemprego ficaria em torno de 11,5%, um aumento de 3,4% com
relação ao nível de 2019. O número de desempregados na região poderia

179
alcançar 37,7 milhões. Os incentivos de países como o Brasil e o México,
ou mais precisamente, suas políticas não estão voltadas assistir as peque-
nas e médias empresas, responsáveis por mais de 60% da mão de obra
formal. Podemos ratificar as análises da CEPAL quanto às políticas econô-
micas pretendidas, por exemplo, do governo brasileiro, quando na reunião
ministerial, em 22 de abril - que tornou-se de domínio público – o minis-
tro da economia Paulo Guedes afirma explícitamente que a assistência e
incentivos do governo federal deveria ser voltado às grandes empresas.
Nos estudos do relatório da CEPAL aqui expostos, a Secretária Execu-
tiva da instituição, a economista mexicana Alicia Bárcena, afirma que o fe-
nômeno da Covid-19, provoca a retração da economia, que possibilitará o
aumento do desemprego, que teria um efeito negativo direto sobre a renda
dos domicílios e sua possibilidade de contar com recursos suficientes para
satisfazer as necessidades básicas. Nesse contexto, a taxa de pobreza na
região aumentaria em 4,4% durante 2020, passando de 30,3% para 34,7%,
o que significa um aumento de 29 milhões de pessoas em situação de po-
breza. Por sua vez, a extrema pobreza cresceria 2,5%, passando de 11,0%
para 13,5%, o que representa um aumento de 16 milhões de pessoas. Uma
das possíveis mudanças pós-pandemia seria o aumento da regionalização e
cooperação econômica, na região, visando atenuar os efeitos inerentes aos
movimentos da globalização, devido a elevada dependência de manufatu-
ras importadas.
Segundo os estudos da CEPAL, em razão das possíveis adequações da
economia mundial, deve a região se direcionar à uma maior integração re-
gional, tanto no aspecto produtivo, comercial e tecnológico.

Considerações finais

Segundo os estudos da CEPAL, a Covid-19 caracteriza-se por um fe-


nômeno desestruturante que transcende as questões sanitárias. Ela foi ca-
paz, de certa forma, de ocasionar impactos nas demandas do viés econô-
mico vigente. Os impactos da Covid-19 resultam de um longo período de
desinvestimento na área da saúde em todo mundo. A lógica capitalista é

180
insustentável na saúde pública, provavelmente de maneira mais explícita
do que em outras áreas, ainda mais em momentos catastróficos. A pande-
mia expõe as consequências mais nefastas do viés econômico vigente, isto
é, o neoliberalismo e seus efeitos na saúde pública e na política. Na Amé-
rica Latina, essa lógica fica mais evidente, no qual tomamos por exemplo,
os posicionamentos dos presidentes brasileiro Jair Messias Bolsonaro e
mexicano André Manuel López Obrador e que nos leva a refletir sobre o
neoliberalismo e a luta de classes mesmo em tempos da Covid-19. A luta
de classes é um dos primeiros esforços a pensar criticamente a pandemia
da Covid-19.

Referências
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latório da CEPAL. Disponível em: https://www.cepal.org>comunica-
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ralismo, bolsonaro ‘vírus mental’ e a pandemia da COVID-19 como casos
de saúde pública: o real resiste. Florianópolis, v.32, n 61, p. 01-18, jan./mar.
2020. Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: https://doi.
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nau.adm.ufba.br>. Acesso em: 20 de mai. de 2020.

182
PARTE III

A PANDEMIA DE COVID-19:
ASPECTOS PSICOLÓGICOS,
EDUCACIONAIS E CULTURAIS

183
IX

PANDEMIA E COSMOVISÕES -
SOLIDÃO, MEDO E MORTE
Profa. Dra. Maria Teresa Toribio B. Lemos1

Desde a Antiguidade as sociedades sofrem com as epidemias dizi-


mando grande parte da população. Esses surtos produzem perdas de vida
irreparáveis e desequilibram política e economicamente as sociedades
fragilizadas, podendo inclusive fazê-las desaparecer. Em determinadas
épocas, essas pestes atingem proporções incontroláveis, espalhando-se e
contagiando várias partes do mundo: é a pandemia infectando povos de
vários países, aterrorizando e dizimando centenas de milhares de pessoas
em todas as partes. Ninguém consegue deter a força da destruição e da
morte.
A epidemia da varíola foi devastadora e as primeiras evidências foram
detectadas em múmias egípcias do século III. Para alguns pesquisadores, a
doença teria surgido na Índia. Descrita por Tucídides2 como uma doença
desconhecida que causava febre muito forte, dores e deformações no cor-
po, a varíola foi responsável pelo extermínio de um terço da população de
Atenas em 430 a.C.
Nos séculos II e III a doença ressurgiu arrasadora no Império Roma-
no, levada pelas tropas que se encontravam na cidade de Partia, na Meso-
potâmia. Infectadas, no retorno, as tropas contaminaram o Império, di-

1 Professora Titular em História da América. Pesquisadora-Visitante do Programa de Pós-Gra-


duação em História Política da UERJ. Professora Colaboradora da Faculdade de Direito/UERJ.
2 Tucídides – historiador grego Atenas -460aC -400aC.

184
zimando grande parte da população da Europa. As rotas comerciais para
a Índia e a China também se tornaram veículos de contaminação entre o
Oriente e Ocidente.
Uma das epidemias mais mortíferas, a varíola atravessou séculos e di-
zimou milhões de pessoas, causando danos irreparáveis à Humanidade. A
doença se tornou muito conhecida em nossa sociedade, devido ser a ela
atribuída a destruição de grande parte das sociedades indígenas na Amé-
rica, no século XVI. A descoberta da vacina no século XVIII, por Edward
Jenner, em 1796, deteve a doença, considerada erradicada em 1977, quan-
do foi registrado o último caso na Somália. Tornou-se responsável pela
morte de 300 milhões de seres humanos no século XX3.
As pestes continuaram ao longo dos séculos assolando as sociedades e
eliminando os mais fracos e pobres, devido às condições precárias ou qua-
se inexistentes de higiene e alimentação, embora também atingissem os
demais segmentos pelo contágio, obrigando as autoridades, especialmente
as religiosas, a promulgarem atos coercitivos contra os menos favoreci-
dos e punições como a condenação à morte, acusando-os de pacto com o
diabo.
Ainda sob os efeitos das consequências da epidemia que se expandia
pelas cidades e áreas rurais, em 1348 a Europa voltou a sofrer os horrores
do apocalipse anunciado, assistindo a morte de um quarto de sua popula-
ção. A peste não veio sozinha, pois trouxe consigo manchas negras, produ-
zidas pelas gangrenas. A doença se naturalizou como uma pandemia e daí
por diante somente imagens da morte, medos, dores, sofrimentos e misé-
rias. O grande flagelo ficou conhecido como Peste Negra, aterrorizando

3 McNeill, William Hardy No século XVIII, a varíola foi responsável por cerca de 10% dos óbi-
tos. No início do século XVIII práticas de injetar o vírus em crianças com vírus vivo da doença ,
comuns na China e no Oriente Médio, foram exportadas para a Europa Ocidental, começando
pela Inglaterra, sob influência do I. Otomano. Para convencer a população, a própria família
real inglesa foi inoculada publicamente. Era recolhido pus de pústulas e, com algodão e uma
seringa, a secreção era injetada em uma outra pessoa. A mortalidade da doença acabou caindo
para 1%, já que as crianças estavam com seu sistema imunológico em formação, reduzindo a
possibilidade de 40% de infecção da doença por contato aéreo- The Rise of the West: A History
of the Human Community. University of Chicago Press.

185
pelo aspecto medonho, e dominou os imaginários e as memórias, gerando
preconceitos, discriminações, exclusões e xenofobia.
Seguindo a rota das epidemias anteriores, a Peste Negra chegou à
Europa através das caravanas e do comércio com a Ásia, especialmente a
China. Mercadorias chegavam aos portos do Mediterrâneo para os ricos
comerciantes e aristocratas de Gênova e Veneza e de lá contagiava o resto
da população.

Práticas culturais e representações

A Peste Negra diferenciou-se das outras doenças, deixando marcas


profundas no corpo e na alma. Além de causar manchas negras na pele das
pessoas, inchaços nas axilas, virilha e pescoço, consequência das infecções
provocadas pelo bacilo, trazia a marca da infâmia,

[....] Os sintomas não deixavam dúvidas. Atacada por uma febre de


40 graus, a vítima sentia crescer na virilha ou na axila um inchaço
que assumia a forma de um doloroso furúnculo do tamanho de um
ovo ou de uma laranja. Insônia e delírios complementavam o mal-
-estar, fazendo com que o infeliz temesse tanto o sono como o des-
pertar. No segundo ou no terceiro dia, seu corpo estaria tomado por
esses bubões (ínguas). Se tivesse sorte, os caroços se abririam em
pus, diminuindo a dor e a febre[...]. Além das dores e do desespero
surgiram [...]manchas pretas na pele (SCHILLING, 2019).

A doença deixava marcas profundas e manchas pretas apareciam na


pele, nas mãos e no corpo. As feridas purulentas ardiam por todo o corpo.
O doente sentia-se no inferno e pensava mesmo que era castigo. O aspecto
e o mau cheiro tornavam-no repelente. Os olhos inchados pelas infecções
e os membros cobertos pelas pústulas eram o sinal evidente que a sua hora
chegara e nada no mundo o salvaria. Nesse momento de agonia, nos ester-
tores de uma tremedeira sem-fim, ninguém mais se aproximava dele. Nem
pai, nem mãe, irmão ou amigo que se apiedasse daquela situação. Todos
debandavam, temendo a contaminação. Cerca de uma semana depois dos

186
primeiros sintomas, a vítima estava morta. E, entre 1347 a 1351, a pande-
mia ceifou cerca de 25 milhões de pessoas.
Um sofrimento terrível anunciava uma das mortes ainda mais angus-
tiante, acompanhadas pelo abandono, pelo medo e pela discriminação. O
doente condenado à solidão dos infernos sofria mais pelo desprezo que
despertava naqueles que um dia o amaram e o respeitaram. O medo não
permitia a aproximação de ninguém. As tremedeiras das vítimas aterro-
rizavam. Ao pavor e à repelência juntava-se o nojo causado pelas feridas
infectadas. Não se percebia rastro de qualquer sentimento cristão. O medo
não era tanto pelo número de contagiados e mortos, mas pela maneira
sorrateira como a peste se propagava4.
Imaginando ser castigo divino, o doente se autoflagelava, rezava e fa-
zia promessas. De nada adiantavam as confissões, pois o diabo já possuíra
sua alma. Era um sofrimento eterno. Muitos se suicidavam e outros eram
confundidos com os mortos e jogados vivos nas valas comuns. Muitos ca-
dáveres, abandonados nas ruas, eram triturados por cães famintos. O fim
do mundo estava próximo.
A cosmovisão medieval sobre a peste negra associava essa febre aos
cultos demoníacos e à morte devastadora. As mulheres desempenharam
papel fundamental, atenuando as dores e os sofrimentos dos moribundos.
Eram procuradas e respeitadas e por isso acusadas de pacto com satanás5.
Passado o pânico, as mortes diminuíram, mas as doenças continuaram
em escala menor que nas epidemias, pois os hábitos de higiene custaram a

4 Nos dias atuais, com o Covid-19, o medo tem a ver com o capitalismo cognitivo e a conectivi-
dade (redes) como forma de convivência. O que chama a atenção é que apesar do desenvolvi-
mento da ciência, ainda não se conseguiu encontrar solução para conter a pandemia. O debate
sobre a vacina não está voltado para solucionar um problema de saúde pública, mas sim de
caráter geopolítico com vantagens no mercado mundial da indústria farmacêutica. Deleuze e
Guatarri (capitalismo e esquizofrenia).
5 As perseguições aos hereges permitiram que [...]curandeiras, parteiras e outras mulheres
que tinham acesso a métodos contraceptivos fossem acusadas de bruxaria e consequente-
mente de fazerem pacto com o demônio[...] impedindo os pais gerarem filhos, afetando a
produtividade. Também foram acusadas pelo conhecimento que possuíam sobre o corpo, as
doenças e os segredos das ervas, dos chás e as práticas para curar, o que trazia algum prestigio
naquela sociedade patriarcal.

187
ser introduzidos. A imundície dominante se encarregava da seleção social.
Os pobres, famintos, vivendo das migalhas, se amontoavam nos cortiços e
nas ruas sujas pelos esgotos e repletas de ratos.
As febres matavam pobres e ricos. A morte não escolhia. Ricos e po-
bres sucumbiam naquela Europa suja e degradada. Os homens e os ratos
disputavam o mesmo espaço urbano.
A pandemia estabeleceu para os vivos o isolamento, o uso de másca-
ras contra o hálito fétido dos doentes, e, nos últimos momentos de vida;
para os que agonizavam restaram à solidão, o abandono e o medo. Essa
catástrofe exigiu mudanças e acelerou a criação de um novo mundo, um
mundo moderno, com novas formas de poder e exploração. Antes da pes-
te, morria-se de fome na Europa6.
Após a pandemia, o mundo sofreu mudanças significativas. A peste
dizimou a mão de obra local, desestruturou o sistema feudal e contribuiu
para as grandes migrações, atraindo pessoas livres de várias partes, tanto
das cidades como de outras áreas rurais, acelerando as transformações no
modo de produção.
Para a sociedade favorecida que pretendia manter em suas mãos pri-
vilégios, riquezas e os meios de produção, a pandemia não era tão ruim
assim. As permanências de um imaginário preconceituoso e xenófobo res-
surgiram com as práticas discriminatórias contra os menos favorecidos
e excluídos. Mortes e famílias destroçadas tornaram-se memórias e lem-
branças de uma época extinta. O silêncio continuou envolvendo as vozes
que suplicavam por igualdade e liberdade.
Durante o surto da peste, predominava o medo na vida cotidiana, que
se instalou na memória coletiva da sociedade. Quando a pandemia aca-
bou, o mundo mudou. A agricultura se desenvolveu e a alimentação ficou
mais farta, além da carne, com o desenvolvimento da criação. As mortes,

6 Marton, F., em 1315, a Grande Fome provocada pela falta de alimentos, devido às chuvas que
castigavam o campo, afetando a agricultura e causando a morte de rebanhos, causou, além das
doenças e mortes “um surto de canibalismo – que vitimou principalmente crianças. RJ, Suécia,
S/ed, 2020.

188
o isolamento e outros medos foram esquecidos. Não haveria retorno para
tantas desgraças. Mas, como explicar o que passou?
Amedrontada, a população acompanhou as mudanças. O povo se per-
guntava qual a razão de tantas mortes e quais os culpados? Nem os médi-
cos entendiam ou conseguiam explicar, apelavam para os “humores cor-
porais” e miasmas. A doença era consequência dos ares fétidos. Usavam
máscaras para se proteger e não aspirar ao fedor da podridão dos corpos
doentes.
Os culpados não apareciam e, enquanto não chegassem a uma con-
clusão, acusavam os judeus. Misturavam ódios étnicos e ideológicos para
perseguir e trucidar os judeus. Eram acusados de envenenar a água e as
comidas dos cristãos.7 O século XIV, além das epidemias, perseguições
religiosas e extermínio de populações, assistiu também a perseguição às
bruxas, acusadas de pacto com o diabo. As mulheres, pelo conhecimento
das ervas para tratar das doenças em suas casas, eram consideradas pe-
rigosas e deveriam ser vigiadas e até condenadas, se acusadas de exercer
cuidados de saúde.
Doenças, epidemias, mortes, perseguições e medos prosseguiram até
o século XVIII. Ratos e pulgas faziam parte da vida cotidiana e nem de
longe se tornaram suspeitos de produzir doenças. Conviviam com as fa-
mílias, nas casas, nos mercados, nas ruas, eram livres, cidadãos do mundo
subterrâneo.
Enquanto prosperava o domínio do medo, a ciência tentava sem êxito
descobrir as causas, mas os estudos e as dissecções dos cadáveres precisa-
vam ser realizados às escondidas, à noite, nos cemitérios.
Enfim, descobriram o vilão! E os ratos e as pulgas começaram a ser
combatidos e a higiene fazer parte da vida cotidiana. No século XIX, a
ciência assumiu o espaço do saber e as descobertas contribuíram para mi-
norar os males do mundo, assim como a associação das doenças com as
péssimas condições de vida. Moradias precárias, falta de esgotos e de água

7 Entre 1347 e 1351, houve 350 eventos de extermínio de judeus, destruindo 310 comunidades.

189
limpa e o excesso de lixo contribuíam para a proliferação das doenças.
Entre 1817e 1824 a malária a e a cólera dizimaram centenas de milhares
de pessoas.
De grandes proporções, assolando o mundo, a Gripe Espanhola foi
uma das mais temidas pandemias do século XX. Arrasadora, atingiu todos
os continentes entre 1918 e 1919, dizimando cerca de 50 a 100 milhões de
pessoas. Dos primeiros infectados nos Estados Unidos,8 a gripe se espa-
lhou pelo mundo com os deslocamentos das tropas militares durante a
Primeira Guerra, atingindo diretamente os países envolvidos.
No Brasil, cerca de 35 mil pessoas morreram infectadas pelo vírus9,
espalhado por todas as regiões do país. Como toda doença contagiosa, a
gripe foi discriminada pelo preconceito e xenofobia. No imaginário co-
letivo, a gripe foi satanizada e seu nome proscrito. Causava pânico! Era
necessário não se tocar no seu nome. Atraia desgraça devido ao medo que
causava e ao prenúncio da morte.
As informações eram censuradas e a imprensa evitava divulgar a ex-
tensão do mal para que os soldados não entrassem em pânico. Morria-se
calado! A doença era uma vergonha e pensava-se que só matava os frá-
geis. A imprensa espanhola foi a única a divulgar o surto da gripe, pois
o país não tinha compromissos com a guerra e não precisava esconder a
pandemia da sociedade e de seus soldados. Como as notícias chegavam
através dos noticiários hispânicos, a gripe ficou conhecida como “gripe
espanhola”, imaginário que predomina até nossos dias na cultura popular
(FRANCO, 2020).
A gripe espanhola, contagiosa e letal dizimava milhares de pessoas.
Os países não estavam preparados para tantas mortes e o colapso dos sis-
temas de saúde mostrou a triste realidade e nem todos tiveram acesso ao
tratamento. Precisou-se improvisar a emergência médica e, de maneira

8 Fontes indicam que a gripe pode ter surgido na China, assim como nos Estados Unidos, sem
assinalar a região, embora haja registro dos primeiros doentes no Fort Riley, estado do Kansas
e semanas depois cerca de 1100 soldados desse foram internados com a mesma gripe.
9 A gripe espanhola, mutante do vírus da influenza, transmitido de aves para os seres humanos.

190
precária, hospitais e leitos foram criados para atender aos doentes infec-
tados. Aos pacientes mais graves restava a morte, pois naquela época não
existiam remédios para o tratamento (HAYS, 2005).
Medidas, já conhecidas quando da pandemia da peste negra, foram
adotadas, como o isolamento social, uso de máscaras para evitar os espir-
ros no rosto das pessoas, fechamento de escolas, igrejas, comércio e repar-
tições públicas em diferentes locais. Segundo Hayes (2005) “a quarentena
em alguns lugares, como na Austrália, teve grande sucesso, uma vez que o
país foi atingido pela primeira onda da gripe [..] (pg. 386)”, e essa medida,
assim como as anteriores, foram adotadas inclusive no Brasil.
Durante o século XX, doenças graves assolaram o mundo e após mor-
talidade intensa foram amenizadas com o avanço da ciência com a desco-
berta de novos medicamentos, tratamentos e vacinas como malária, tifo,
gripe suína e AIDS, entre outras enfermidades contagiosas.
Como o mal nunca desaparece totalmente, na segunda década do sé-
culo XXI, em 2019, o mundo despertou assustado com novo vírus –o Sars
Cov 2 produzindo uma doença conhecida como - Covid-19! (Coronavirus
Disease -19).
Ainda que infecções ou surtos de corona vírus serem já conhecidos,
este surgiu de maneira insidiosa no mundo ocidental, pois a morte estava
longe, na Ásia, numa grande cidade da China e, naquele momento, ainda
não assustava o resto do mundo. As notícias chegavam rápido e com elas
mitos e lendas sobre os hábitos exóticos dos asiáticos. Eram inverossímeis
as charges e as histórias contadas e o vilão assassino da vez eram os morce-
gos, embora ratos e pulgas continuassem dominando em muitas socieda-
des e até adorados como na cidade de Bikaner, na Índia10.

10 Cidade de Bikaner, região do Rajasthan, norte da Índia. Templo de Mata Karni - os indianos
cultuam a deusa Durga. Estima-se que no templo vivam mais de 25 mil ratos soltos e que divi-
dem espaço e comida com humanos que também moram lá.

191
Solidão, medo e morte - do coronavirus à covid-19

O mundo foi alertado pelo número de mortos na cidade de Wuhan11.


Imediatamente, o governo chinês adotou os protocolos de contenção e
alertou a OMS (Organização Mundial da Saúde). Apesar da advertência,
a doença, apresentou uma característica não esperada, era altamente con-
tagiosa, e devido as características da sociedade atual se expandiu para
a Europa, EUA e atingindo todos os países do continente americano. O
contágio começou pelas pessoas que chegavam do exterior, pelo intenso
movimento dos aeroportos e comercio. Como acreditar que chegaria a
toda a sociedade.
Não obstante os avanços na identificação do vírus, ainda não existem
tratamento especifico ou vacina, restando apenas mecanismos de defesa
contra o contágio conhecidos desde a Idade Média – o distanciamento e
o isolamento12. Essas medidas mostraram apenas o poder de “diminuir a
velocidade de propagação do vírus, mas não a mortalidade nem o número
de contagiados”13.
O vírus que aniquilou milhares de pessoas na China e que se espalhou
velozmente pelo mundo foi considerado pela OMS (Organização Mundial
da Saúde) de Emergência de Saúde Pública de importância internacional.
Conhecido como Sars Cov 2 tornou-se o terror da humanidade na segun-
da década do terceiro milênio.
Em janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deu o
mais alto grau de alerta sobre o surto da doença, que dois meses após, em
11 de março de 2020, foi caracterizado como uma pandemia, a Covid-1914.

11 Wuhan é a capital e maior cidade da província de Hubei. É a cidade mais populosa da China
Central, com de mais de 10 milhões de habitantes. Devido ao seu papel fundamental no trans-
porte doméstico, Wuhan é chamada de “Chicago da China».
12 Quando este texto estava sendo elaborado pesquisas em andamento em várias universida-
des e institutos da China, Reino Unido, EUA e Brasil intensificaram seus esforços para encontrar
a vacina para a Covid 19.
13 Afirmação feita pelo médico intensivista do Grupo Hospitalar Conceição POA RS-RS, Luis
Cuadras.
14 Folha informativa – Covid-19 (doença causada pelo novo coronavírus) -18 de maio de 2020.

192
A partir dessas recomendações foram tomadas medidas como distan-
ciamento, lavar as mãos com frequência com água e sabão, utilizar álcool
em gel e usar máscaras, evitando pingos de tosse ou espirro. Caso sur-
gissem outros sintomas, deveriam ser monitorados, como tosse ou febre
leves.
Apesar das notícias sobre milhares de mortes na Europa e da indica-
ção de isolamento social adotado pela maioria dos países asiáticos e euro-
peus, o Brasil não seguiu o mesmo caminho.
Seguindo o exemplo do Governo Central, que politizou a Pandemia,
contrariando as determinações da OMS e do Ministério da Saúde a popu-
lação deu pouca importância ao surto que vinha dizimando milhares de
pessoas, não poupando idosos, jovens e crianças.
Para o imaginário popular, para grande número de pessoas, o vírus era
seletivo, matava especialmente as pessoas ricas, e o ambiente quente dos
trópicos permitiria que os pobres fossem poupados. As informações mé-
dicas e dos Institutos de Pesquisa, diariamente, referiam-se sobre a expan-
são do vírus e seu poder de destruição, tentando esclarecer a população.
Todo esforço foi em vão.
O isolamento foi seguido, assim como a quarentena, mas os que tripu-
diavam, foram contagiados e infectaram mesmo os que se defendiam no
isolamento. Nos dias atuais, o autoflagelo consiste na privação de contato
social e os dispositivos digitais são os que substituem a presença do Outro.
Vírus estranho! Como se propaga e evolui! Os números de mortos
aumentam assim como as transgressões. Isolamentos desrespeitados e a
morte sendo chamada para a briga. Nesse quadro complexo predomina o
medo. O medo do vírus, medo da morte, medo das covas abertas para re-
ceberem centenas de mortos, medo do medo, e as imagens da peste negra,
gripe espanhola e varíola, entre outras pandemias, envolvem a atmosfera
desse início do terceiro milênio. A humanidade chegou viva, até quando?

193
Imaginários, memórias e permanências

Atualmente vive-se a incerteza, a solidão do isolamento e a expecta-


tiva temerosa do amanhã. Assim acontecia durante a peste negra, a gripe
espanhola e as demais pestes. Essas lembranças retornaram contadas pelos
livros, pelos mais velhos, pelos jornais, revistas e programas de Tv.
Apesar do distanciamento, da quarentena e do uso de máscaras e ál-
cool gel (este, introduzido nesta pandemia) as mortes continuam num rit-
mo avassalador pelo colapso do sistema de saúde. O contágio vem de toda
parte. Isoladas em casa, as pessoas tentam viver a normalidade na anorma-
lidade. As dificuldades surgem assim como as amarguras, os desesperos e
as desesperanças. Mas a morte fica à espreita e, quando menos se espera,
chega uma notícia avassaladora. Um anúncio de morte, sempre alguém
conhece uma pessoa ou família atingida. A morte não poupa ninguém.
Antes, apenas os velhos com idade de risco, eram objeto de maior cuidado,
mas o vírus continua avançando, assim como seus mutantes e chegou aos
recém-nascidos, não os poupando também. E, com grande sentimento,
acompanhamos o sofrimento dos pais e familiares, inconformados com a
falta de piedade do mal15.
O medo, o pavor da morte e a expectativa aceleram o desespero. To-
dos têm medo. Desde os médicos aos pacientes, dos poderosos dirigentes
aos mais humildes dos cidadãos, todos temem o inimigo que não manda
aviso. E as idiossincrasias ressurgem. Preconceitos, discriminações e xeno-
fobias afloram e dominam os imaginários.
Enquanto que na Idade Média as heresias confrontaram a ordem do-
minante e as perseguições e punições aos heréticos assumiram o lugar da
peste negra, liquidando e torturando os que discordaram nos dias atuais o
desconhecimento e a ignorância sobre o Corona vírus, associados às notí-
cias falsas e ao obscurantismo permitiram o retorno dos antigos fantasmas
medievais, lançando lógicas ilógicas e irracionais para explicar o ataque do

15 Atitudes irresponsáveis negacionistas dos governantes atuais do país e do ex. Presidente


Trump dos EUA.

194
vírus. Os fantasmas da memória reapareceram ressignificados dominando
os imaginários e revivendo as práticas culturais medievais.

Considerações

A Covid-19 ampliou a brecha existente das minorias privilegiadas e


dos pobres. Incialmente, no imaginário popular, o Corona vírus era uma
doença de ricos agora abre espaço ao nojo e à repelência. Como gênios
do mal, preconceitos, discriminações e xenofobias, saídos da garrafa da
memória coletiva onde estavam guardados, foram reintroduzidos pelas
classes favorecidas que, sem piedade, jogam a culpam da propagação da
pandemia à sociedade empobrecida. O outro sempre é o culpado. E esse
outro são os excluídos, os pobres e humilhados, perdidos nas filas da fome
à espera de um mísero apoio para suas desgraças. Eles expõem a dor da
miséria nos rostos sofridos, a marca da infâmia que os torna invisíveis
para a sociedade, exceto para o Corona vírus, que os acolhe aos milhares
em seus longos braços da morte.
As múltiplas visões e interpretações produzidas pela cultura popular
sobre a pandemia tentam, junto com a ciência, dar conta do medo que
envolve a sociedade diante do extermínio de centenas de pessoas, de todas
as idades, classes sociais, cores e gênero, embora os mais pobres e abando-
nados tenham sido os mais atingidos.
Surgem indicações e receitas fabulosas! Misturas incríveis, que nem
os alquimistas medievais se atreveriam a experimentar, são passadas pelos
amigos, familiares, vizinhos e autoridades da saúde e até os mais céticos
se deixam levar por fórmulas e crendices. E, assim, surgem chás de erva,
gengibres, cebolas roxas, vinagre de maçã com limão, remédios para lom-
brigas e piolhos e outros indicados inescrupulosamente pelas farmácias
pela ânsia de vender suas drogas, e remédios sem eficácia indicados para
doenças como malária e lúpus, com contraindicações gravíssimas. O de-
sespero diante do vírus e a luta pela vida ameaçada arrastam multidões
para a cura imaginária.

195
A humanidade conseguiu sobreviver às guerras, fomes e pandemias.
Conseguiu chegar ao Terceiro Milênio, mas não de forma gloriosa, pois se
esgotou nesse enfrentamento. Após o Covid-19 como será a Humanidade?
Continuará resistindo ou sucumbirá diante do assédio desse vírus fatal?
Enfim, a Humanidade chegou viva ao século XXI, vencendo múltiplos
percalços, sobrevivendo aos males das guerras, fome, exílio, refúgios, pre-
conceitos, desigualdades e perseguições, entre outras terríveis consequên-
cias da vida. Mas também feliz por ter vencido todos os enfrentamentos
impostos para viver, pois a morte assombra, não explica e mete medo.
Se viver é uma arte, manter a vida é um desafio! Como toda espécie de
primata superior, a Humanidade tem convivido com pestes, pragas, epide-
mias e pandemias através dos séculos, conseguindo adaptar-se a todas. A
morte, porém, não acabou com a xenofobia, enquanto os preconceitos, ao
contrário, acirraram as discriminações e desigualdades, defendidas pelos
setores privilegiados, estigmatizando os invisíveis. E, desde a antiguidade
aos dias atuais, a epidemia é o pretexto para mudanças efetivas, eliminan-
do os mais velhos, fracos e menos aptos, permitindo que somente jovens
fortes sobrevivam.
Essa premissa na organização social humana não é verdadeira. A rea-
lidade é mais cruel que a imaginação. De concreto e efetivo é que as epi-
demias condenavam à morte a maioria das pessoas que já não existiam, os
invisíveis, numa sociedade desigual. Predestinados à morte, na vanguarda
estavam sempre os mais pobres, os excluídos e os discriminados.
Ironia! Apesar de fracos, doentes e mal alimentados, mostraram-se
fortes diante do flagelo da morte. Nem todos pereceram e, esquecidos e
despercebidos, sobreviveram ao ataque ensandecido da peste.

Referências
DELUMEAU, Jean. A História do medo no Ocidente (1300-1800). Editora
Companhia de Bolso, 2009.
FRANCO, Sebastião P. – a Gripe Espanhola. Gazeta, 2020.

196
HAYS, J. N. Epidemics and pandemics. Their impacts on human history.
Austin, Texas: Fundação Kahle, 2005.
RICHARDS, Jeffrey – Sexo, Desvio e Danação. RJ, Jorge Zahar, 1993.
SCHILLING, Voltaire. Modernismo e antimodernismo. Editora GP, 2019.

197
X

A PANDEMIA DA COVID-19 E AS
MUDANÇAS NA ATUAÇÃO DOCENTE:
O TRABALHO EM CASA COMO
(FALTA DE) ESTRATÉGIA DIDÁTICA
José Lúcio N. Jr1
Patrícia Mª P. do Nascimento2

A classe se delineia segundo o modo como os homens e mulheres


vivem suas relações de produção e segundo a experiência de suas
situações determinadas, no interior do “conjunto de suas relações so-
ciais”, com a cultura e as expectativas a eles transmitidas e com base
no modo pelo qual se valeram dessas experiências em nível cultural.

Eduard P. Thompson

1 Mestre e doutorando em História (PPGH-UERJ). Especialista em História Contemporânea


(UFF). Graduado em História (UNISUAM) e Pedagogia (UNIFACVEST). Membro dos Grupos de
Pesquisa: e-MAIS (UNISUAM), NUCLEAS (UERJ), NUPEP (UFRRJ) e NEDATTE (UFF). Professor de
História e Sociologia no C.E. Graciliano Ramos e nas Faculdades de História e Arquitetura &
Urbanismo da UNISUAM.
2 Mestre e doutoranda em Ensino de Ciências. Especialista em Gestão Ambiental (FTC) e Ges-
tão de Sistemas Integrados em QSMS (AVM). Bacharel e Licenciada em Ciências Biológicas (UNI-
GRANRIO). Membro do Grupo de Pesquisa: GPTEEA-IFRJ. Docente do curso Técnico em Segu-
rança do Trabalho no SENAC.

198
I- Introdução

A realidade imposta pela pandemia da COVID-193 tem levado muitos


intelectuais, de diversas áreas, a analisá-la. Alguns deles, buscam projetar
cenários futuros a partir de seus estudos teóricos. Outros buscam com-
preender o momento, demonstrando como algumas das adversidades que
se tornaram (mais) visíveis (ou ainda continuaram invisíveis) são fruto
das relações capitalistas que dominaram o mundo com a Globalização e
o advento do Neoliberalismo. Nós, contudo, buscamos examinar algumas
transformações na experiência e vivência que a pandemia trouxe à tona e
que podem se transformar drasticamente enquanto esse período durar: a
atuação docente.
No final de um artigo recentemente publicado, Bruno Latour (2020)
convidou seus leitores a pensar em “Quais as atividades agora suspensas
que você gostaria de que não fossem retomadas?” e em “Quais as ativida-
des agora suspensas que você gostaria que fossem ampliadas/retomadas
ou mesmo criadas a partir do zero?”. Em ambos os questionamentos, que
foram seguidos de perguntas de aprofundamento, vê-se que o autor estava
olhando para atividades suspensas, ou seja, que devido a pandemia foram
interrompidas. Em nosso caso, o presente estudo visa debater algumas
transformações evidenciadas pela pandemia do coronavírus na relação
de ensino-aprendizagem, em especial analisando algumas transformações
ocorridas no fazer docente.
De início, adianta-se que apresentamos análises ainda não terminadas,
uma vez que a própria pandemia ainda não terminou nesse ano de 2020,
porém, mesmo provisórias, já revelam o impacto negativo que podem tra-
zer para a forma de como a relação de ensino-aprendizagem ocorre no
Brasil. Para tanto, partimos da hipótese de que as transformações motiva-

3 Segundo a Organização Mundial da Saúde, temos que os coronavírus “são uma grande fa-
mília de vírus que podem causar doenças em animais ou humanos. Em humanos, sabe-se que
vários coronavírus causam infecções respiratórias que variam do resfriado comum a doenças
mais graves, como a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS) e a Síndrome Respiratória
Aguda Grave (SARS). O coronavírus descoberto mais recentemente causa a doença de corona-
vírus COVID-19” (WHO, 2020).

199
das pela COVID-19 provocaram uma aceleração na busca por formas de
ensino multiplataformas e essa atualização está modificando as relações de
ensino-aprendizagem, não pelo uso em si de tais meios, mas pela vivência
e experiência que tal modalidade de ensino tem proporcionado a parte dos
educadores e educandos brasileiros.
Para trilharmos esse caminho de análise, nos questionamos sobre
quais mudanças sociais e tecnológicas têm o potencial de gerar novas prá-
ticas docente? E qual o impacto delas no fazer do professor? Para tanto, o
presente estudo se divide em duas partes. Na primeira, faz-se uma breve
distinção entre o Ensino à Distância e outras formas de ensino multipla-
taforma, em especial o Ensino Híbrido. Para, em seguida, analisar alguns
dos impactos que o Ensino Remoto, ou seja, essa tentativa de reproduzir
no ambiente digital, traz para o fazer docente.

II- Diferenciando educação a distância (ead) do uso de tecnologias da


informação e comunicação

A pandemia trouxe a cena um debate que não é novo no Brasil (e no


mundo): o Ensino à Distância (EaD). Ao contrário do que o senso comum
pensa, o EaD é anterior ao uso dos Tecnologias de Informação e Comuni-
cação (TICs). Segundo Adalberto Henrique e Karine Castelano (2018, p.
12), “as TIC’s – computadores, internet e outros recursos midiáticos – são
resultados da fusão de três grandes vertentes técnicas: a informática, as
telecomunicações e as mídias eletrônicas”. Existem vários estudos sobre
o desenvolvimento dessa modalidade de ensino no Brasil. Como não é
nosso objetivo historicizar tal processo, apresentamos o quadro 1 como
síntese dele.

200
QUADRO 1 – SÍNTESE DA HISTÓRIA DO EAD

1ª Geração 2ª Geração 3ª Geração 4ª Geração 5ª Geração


(até 1970) (1970) (1980) (2000) (2002...)

Áudio /
Estudo por Transmissão
Vídeo e Vídeo / Tele- Internet /
Características correspondên- por rádio
Correspon- conferência Web
cia e TV
dência
Multimí-
Multimídia
Monomídia dias mó-
Múltiplas Multimídia colaborativa
Mediatização (materiais veis com
mídias interativa em páginas
impressos) base em
da Web
apps
Veiculação
Sistemas
Emissões da Educa- Digitaliza-
Distribuição de Serviço e cor- de trans-
radiofônica e ção numa ção / Pági-
conteúdo reio postal mis-são
televisiva abordagem nas da Web
a fio
sistêmica
Comunicação Pouco fre- Muito fre- Muito fre-
Muito rara usual
professor/aluno quente quente quente
Comunicação Existente e Existente
Existente e
estudante / Inexistente Inexistente pouco signi- e Significa-
Significativa
estudante ficativa tiva

Fonte: SILVA; SPANHOL: 2017, p. 36.

O que podemos ver pela análise do Quadro 1, consiste no fato de que


o EaD é anterior ao advento das TICs. Então, nesse tempo de pandemia
onde o ensino presencial foi invadido pelas TICs como forma de continuar
existindo, muitas vezes, esse processo é visto como migração de uma mo-
dalidade para outra. Contudo, acreditamos que para questionar tal pro-
cesso podemos olhar para um caminho que também não é novo, mas tem
ganhado cada vez mais espaço na Educação Brasileira: ao fazermos uma
provocação entre o Ensino Híbrido e as metodologias ativas. Quanto a
segunda, seu início encontram-se em teóricos da Educação que no come-
ço do século XX propunham um novo olhar sobre a o fazer do professor,
tais como Jean Piaget (1896-1980) e John Dewey (1859-1952). Tal meto-
dologia propõe a participação ativa do discente ao longo do processo de
ensino-aprendizagem, sendo base de crítica ao ensino tradicional. Nessa
metodologia o discente é visto como protagonista da sua aprendizagem.

201
Quanto ao Ensino Híbrido, suas propostas são mais recentes e estão
vinculadas, em alguns casos, ao desenvolvimento de Novas Tecnologias de
Informação e Comunicação, e ao uso de mídias como parte do processo
educativo. Segundo Lilian Bachich e José Moran (2018), o ensino híbrido
parte da defesa da aprendizagem ativa, sustentada em proposta de teóricos
como Jean Piaget e John Dewey; além disso, nessa proposta, a prática de
ensino-aprendizagem deve ser desenvolvida a partir de multiplataformas,
podendo ser presencial, virtual, digital etc.; e, aliado a isso, o docente dei-
xa de ser o transmissor de conhecimento e passa a ser (ou deve se colocar
como) um design de caminhos, sendo ele quem cria os itinerários formati-
vos que os discentes podem escolher para realizar seu percurso formativo.
A proposta de Ensino Híbrido, tal como estamos apresentando, a partir
de dois de seus maiores defensores no Brasil, não é algo que surgiu com a
pandemia, apenas ganhou mais espaço devido as alterações abruptas que
a ela gerou.
Quando analisamos as propostas apresentadas, ora pelo Ministério da
Educação, ora por algumas Secretarias Estaduais e Municipais de Educa-
ção, nesse momento de pandemia, vemos a defesa de que o ensino pode
continuar em diferentes plataformas, tais como em videoaulas no Youtube,
transmissões ao vivo pelo Instagran ou pelo Google Meet, transmissões de
aulas em canais aberto de televisão etc. Os chefes desses órgãos insistem
em dizer que não é uma defesa da EaD, e sim novas formas de se adaptar
ao momento que está se vivendo. A posição de tais personas se materializa
na propaganda em várias mídias que incentiva os estudantes do ensino
médio (concluintes em 2020) a estudar “de qualquer lugar, de diferentes
formas, pelos livros, internet, com ajuda a distância dos professores” (BRASÍ-
LIA: 2020)
. Ou seja, a escola e o professor em sala de aula são vistos como mais
um recurso na construção do conhecimento desse estudante, que se torna
protagonista de sua formação.
Para os defensores do Ensino Híbrido, esse é o momento para divulgar
essa nova forma de organizar os processos de ensino-aprendizagem. Em
suas páginas nas redes digitais, Lilian Bacich tem divulgado suas ideias de

202
Ensino Híbrido, mas também formações e materiais que possam “ajudar”
o professor nesse momento de pandemia. É perceptível a busca pelo uso
desse novo suporte por parte dos professores, pois ao utilizarem os docen-
tes estarão experimentando novas formas de ensinar, que, possivelmente
em momento anterior a pandemia, haveria uma resistência muito maior
do que a que está havendo enquanto a quarentena avança no Brasil.
Em livro publicado em 2004, ou seja, no início do século XXI, o crítico
literário Hans Gumbrecht analisou as transformações que estão ocorrendo
na atualidade. Para ele,

é claro que somos, a maioria de nós, românticos no que toca ao


ensino – e como pode alguém ser totalmente contra o ensino cara
a cara (nem que seja porque a sobrevivência dele oferece a melhor
perspectiva para o futuro da universidade como local de trabalho)?
Apesar de tudo, não pode haver dúvidas de que a maioria das aulas
estritamente limitadas à transmissão de conhecimento padrão em
breve será – e deverá ser – substituída por uma variedade de aparatos
tecnológicos que não exigem a cooperação física de alunos e professo-
res (GUMBRECHT, 2010 [2004], p. 160-161, Grifos nossos).

A experiência de utilização de TICs e de mídias digitais na educa-


ção não se iniciou na pandemia e, antes dela ocorrer, já era prevista por
teóricos da área das humanidades. A presença cada vez maior dessas fer-
ramentas nas salas de aula ou em substituição a ela, já eram percebidas
(defendidas ou combatidas) desde o final do século XX e início do século
XXI. Analisando as transformações motivadas pelas mídias digitais, desde
os anos de 1990, Pierre Levy (1999; 2001) apontava que as redes digitais
promoveriam rupturas nas formas de ensinar, aprender e viver. Pensando
a integração das redes digitais na vida cotidiana, não se pode deixar de
apontar as transformações nas mídias (enquanto sistemas de informação),
mas também nas tecnologias de informação, tais como os smartphones que
surgiram na década de 1990, possibilitando uma nova relação com tais
mídias.
Como propõe tal tecnologia, o smartphone (cuja tradução é telefone
inteligente), quando surgiu, se colocava como uma nova forma de se rela-

203
cionar com o mundo, pois permitia, em um mesmo aparelho, diferentes
funções de comunicação. Nesse sentido, quando declarada a pandemia em
março de 2020 pela OMS, vários níveis do governo (o municipal, o esta-
dual e o federal) perceberam nessa tecnologia uma forma de superar a bar-
reira imposta pelo isolamento social, uma vez que acreditava que a geração
nascida após o surgimento dessa tecnologia e que ocupa os bancos escola-
res de ensino fundamental e médio conseguiriam se adaptar facilmente a
esses novos processos educativos por serem nativos digitais.
Cabe recordar que o isolamento social que vem sendo realizado no
Brasil, pelas autoridades estaduais e municipais, desde a terceira semana
de março de 2020, não prevê que todos fiquem em casa ao mesmo tempo,
tal como o lockdown (confinamento). A modalidade adotada em território
brasileiro consiste na restrição de uma parte de atividades consideradas
não-essenciais, categoria que muda semanalmente e que é de difícil pre-
cisão. O confinamento, por sua vez, prevê que praticamente todas as pes-
soas ficarão em casa, podendo sair apenas as ligadas a saúde e segurança
pública para suas atividades profissionais e a parcela da população que
precisar porventura comprar alimentos, sairão com a devida autorização
dos órgãos públicos competentes.
Retomando a questão de as gerações mais jovens serem mais bem
adaptadas ao mundo virtual, Moacir Gadotti nos diz que

a cultura do papel representa talvez o maior obstáculo ao uso inten-


sivo da Internet, em particular da educação a distância com base na
Internet. Por isso, os jovens que ainda não internalizaram inteira-
mente essa cultura adaptam-se com mais facilidade que os adultos
ao uso do computador. Eles já estão nascendo com essa nova cultu-
ra, a cultura digital (GADOTTI, 2000, p. 5).

Tal postura pode ser vista tanto no comercial da inscrição do ENEM


(Exame Nacional do Ensino Médio), onde é apresentado adolescentes e
jovens utilizando essa e outras tecnologias para convidar todos aqueles
interessados em realizar tal avaliação a se inscreverem; como nas ações le-
vadas a cabo pela Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro que

204
chegou a anunciar a distribuição de chips de celular para que docentes e
discentes pudessem utilizar a plataforma digital escolhida pela secretaria.
Tal como Pierre Levy (1999; 2001) aponta, tais tecnologias de infor-
mação aliadas a mídias digitais promovem uma nova forma de aprendiza-
gem, assim como é necessário que se tenha uma nova postura sobre como
aprender com ela. Contudo, como uma parcela significativa dos professo-
res não haviam pensado nas mídias digitais como ferramenta pedagógica,
sua utilização de forma apressada motivada pela pandemia da COVID-19
também mostrou uma outra face da realidade brasileira: os professores
não sabiam utilizá-las para fins pedagógicos. Mas defensores do ensino
híbrido, tais como Lilian Bacich e José Moran, apontavam, em sua obra
publicada em 2018, que faltava a escola estar pronta para o novo mundo
(o digital) e que os professores devem se adaptar, colocando-se abertos a
tais inovações.
Ao considerar também as ações financiadas pelo Banco Mundial e
outros organismos internacionais, tais como a Organização para a Coo-
peração e Desenvolvimento Econômico (OCDE), percebe-se que desde a
década de 1990, quando em vários países do mundo ocorreram reformas
curriculares e a instauração do modelo de ensino por competências, já
haviam teóricos da Educação que defendiam que os professores deveriam
se adaptar as TICs. Tal incentivo pode ser observado, segundo Gimeno
Sacristán (2011) no uso de avaliações externas, do tipo PISA (Program-
me for International Student Assessment), onde as realidades internas são
desconsideradas frente ao uso de indicadores internacionais. Além disso,
o escalonamento proposto por tal avaliação pouco auxilia a conhecer as
características internas dos países, nem como agir para melhorá-las. Nesse
esteio que as propostas do Ensino Híbrido encontram ressonância, pois
se colocam como panaceia para melhorar os resultados baixos alcançados
pelos países nesses tipos de avaliação.
Ao analisar a realidade das reformas educacionais latino-americanas
na década de 1990, Vera Maria Candau (2013) apontava como havia o
interesse do Banco Mundial (BM) de que tais reformas fossem realizadas.

205
O BM ocupou o espaço deixado pela UNESCO (Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e, segundo Candau (2013,
p. 35) transformou-se “na principal agência de assessoria técnica para os
países em desenvolvimento e, também, de atividade de apoio a essa fun-
ção de assessoria técnica, numa referência importante para a pesquisa em
educação”. No caso brasileiro, a reforma educacional realizada no final
da década de 1990 levou a mudança para o Ensino por Competências,
tal como pode ser observado nos Parâmetros Curriculares Nacionais de
Ensino Fundamental e Ensino Médio (BRASIL: 1997; 1998). Junto a tais
propostas, havia também a defesa do uso de tecnologias como parte do
desenvolvimento de um ensino mais eficiente. Contudo, essas transforma-
ções foram aceleradas pela pandemia da COVID-19.

III- O trabalho em casa (home office) como desregulação da relação


ensino-aprendizagem

Como vimos na sessão anterior, o início do Ensino à Distância (EaD)


é anterior a pandemia. Além disso, nos últimos anos propostas de meto-
dologias ativas baseadas em suporte multiplataforma também se tornaram
cada vez mais defendidas, tais como no Ensino Híbrido. No contexto da
pandemia, as autoridades governamentais defendem que o uso de plata-
formas virtuais é uma forma de Ensino Remoto, ou seja, que se vale de
múltiplas plataformas, uma vez que se defende o retorno ao ensino presen-
cial quando a pandemia passar. No caso da Portaria nº 343, de 17 de março
de 2020, o MEC autorizou, para o Ensino Superior,

em caráter excepcional, a substituição das disciplinas presenciais,


em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de infor-
mação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em
vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema
federal de ensino, de que trata o art. 2º do Decreto nº 9.235, de 15
de dezembro de 2017 (MEC, 2020, sem página).

206
Seguindo a mesma linha, o Conselho Estadual de Educação do Rio
de Janeiro (CEE-RJ), na deliberação CEE n° 376, de 23 de março de 2020,
indicou com caminho para as ensino de forma remota, que

Art. 2º. Para garantir o direito à educação com qualidade, à prote-


ção, à vida e à saúde de estudantes, professores, funcionários e co-
munidade escolar, exclusivamente, nesse período de excepcionali-
dade, as atividades domiciliares, em regime especial, somente serão
admitidas para o cômputo do calendário letivo 2020, nos termos
que seguem:

[...]

II - As instituições de ensino básico devem, com a participação de


seu corpo docente, planejar e organizar as atividades escolares, a
serem realizadas pelos estudantes fora da instituição, indicando:

a) os objetivos, métodos, técnicas, recursos, bem como a carga ho-


rária prevista das atividades a serem desenvolvidas de forma não
presencial pelos alunos, de acordo com a faixa etária;

b) formas de acompanhamento, avaliação e comprovação da reali-


zação das mesmas por parte dos alunos.

Como forma de organizar as atividades fora da instituição, a Secreta-


ria de Estado de Educação apresentou por meio da CI SEEDUC/SUGEN
SEI Nº26, Rio de Janeiro, 23 de abril de 2020, sua definição de Ensino Re-
moto. Segundo tal documento:

o ensino remoto não se confunde com o ensino a distância, o últi-


mo trata-se de uma modalidade de ensino com natureza e singu-
laridade próprias. O ensino remoto por sua vez, extrapola as pos-
sibilidades fornecidas por uma plataforma digital, ele diz respeito
a um conjunto de ações pedagógicas que fazem uso de diferentes
ferramentas e estratégias e mobilizam atores diversos, como os alu-
nos e suas famílias (SEEDUC: 2020, p. 4).

207
Então, o que mudou com a passagem do Ensino Presencial para o En-
sino Remoto foi apenas a plataforma? O que isso traz como consequências
para o trabalho docente?
A primeira questão que precisa ser considerada é o local de trabalho.
Com o ensino presencial, os docentes e discentes possuíam um local de
encontro onde se realizava o processo de ensino-aprendizagem: as Ins-
tituições de Ensino (tais como Escolas, Colégios, Centro Universitários,
Universidades etc.). A primeira relação que se quebrou foi espacial, pois a
educação presencial pressupõe que professores e estudantes compartilhem
o mesmo ambiente ao mesmo tempo. A aula, nesse sentido, é um evento
sincrônico. Com a passagem para o remoto, modificou-se o ambiente para
a residência, entendido aqui como local de moradia, passou a ser também
local de trabalho. Essa realidade não está sendo vivenciada por todos, uma
vez que parte da rede pública, seja ela municipal, estadual ou federal, ainda
não iniciou o processo de ensino-aprendizagem com suporte em mídias
digitais. Tal como apontam os diferentes especialistas reunidos na coletâ-
nea organizada por Andrea Borges e Leila Marques (2020), no Brasil, de
uma forma geral, as residências da classe média não foram pensadas para
o trabalho ou estudo em casa e muitos setores das camadas populares não
possuem condições básicas de moradia, quiçá espaço para estudo em casa.
Além desse fator, tem que se pensar a questão do tempo a partir de
duas dimensões. O isolamento social que vem sendo realizado no Bra-
sil, pelas autoridades estaduais e municipais, desde a terceira semana de
março de 2020, não prevê que todos fiquem em casa ao mesmo tempo, tal
como o lockdown (confinamento). A modalidade adotada em território
brasileiro consiste na restrição de uma parte de atividades consideradas
não-essenciais, categoria que muda semanalmente e que é de difícil preci-
são. O confinamento, por sua vez, prevê que praticamente todas as pessoas
ficarão em casa, podendo sair apenas as ligadas a saúde e segurança públi-
ca para suas atividades profissionais e a parcela da população que precisa
sair para comprar alimentos, mas com a devida autorização dos órgãos
públicos competentes. Então, o tempo em casa pressupõe uma rotina in-

208
determinada e que pode mudar semanalmente, o que afeta as relações de
trabalho que por sua vez, impactam no ensino-aprendizagem.
O segundo fator, para a Instituições de Ensino que adotaram o Ensi-
no Remoto consiste na possibilidade de atividade assincrônica. A maior
parte das plataformas virtuais de aprendizagem permitem que a relação
educando-educador possa ocorrer em tempos diferentes, seja porque a
transmissão da aula pode ficar gravada, seja porque ela possui recursos
de atividades que podem ser disponibilizados a qualquer tempo. Ou seja,
mesmo um professor que ministra sua aula no turno da manhã, pode aces-
sar a plataforma em outro turno e disponibilizar uma atividade.
Seguindo tal raciocínio, temos, por exemplo, o uso de fóruns nos am-
bientes virtuais, onde a questão motivadora pode ser disponibilizada em
um determinado horário e a mesma pode ser respondida ao longo do tem-
po da aula, do dia, da semana ou do mês. A assincronia, por sua vez, a nos-
so ver, gera uma mudança que sem a devida análise tem potencial de gerar
sobrecarga de trabalho por parte do corpo docente: quando o corpo dis-
cente busca resposta de forma rápida, por exemplo, quando um estudante
se utiliza de um fórum para enviar uma mensagem com uma pergunta ao
docente fora do horário de aula (no fim de semana) e espera ser atendido
de prontidão.
Para entender tal questionamento faz-se necessário que recordemos
que outras mídias digitais, tais como WhatsApp, Facebook e Instagram,
possuem formas de comunicação interativa e de alta velocidade, já ten-
do sido incorporada por parte da população brasileira, poderíamos dizer,
também mundial. E que a maioria das plataformas digitais utilizadas para
o Ensino Remoto pode ser acessada de aparelhos do tipo Smartphone. A
combinação das duas situações gera a falsa sensação de que a relação entre
o educador-educando pode ocorrer a qualquer hora, estando disponível
para mesma. Ao analisar as características do capitalismo tardio, o qual o
qualifica como 24/7, Jonathan Crary (2016, p. 13) destaca que os merca-
dos atuam “em regime 24/7 – 24 horas por sete dias da semana – e a in-
fraestrutura global para o trabalho e consumo contínuos existem há algum

209
tempo”. E ao analisar o significado de Smart na maioria dos aparelhos que
assim são qualificados, destaca que

o capitalismo 24/7 não é a mera apreensão contínua ou sequencial


da atenção, mas também uma composição densa do tempo em ca-
madas, na qual múltiplas operações ou atrações podem ser atendi-
das quase simultaneamente, independente de onde estamos ou do
que estamos fazendo. Os assim chamados aparelhos “smart” rece-
bem esse nome não tanto pelas vantagens que podem oferecer aos
indivíduos, mas por sua capacidade de integrar o usuário a rotinas
de 24/7 forma mais completa (CRARY: 2016, p. 93).

Mas, antes que alguns indaguem que tais características do capitalis-


mo 24/7 seria impossível para a relação de ensino-aprendizagem desen-
volvidas pelo Ensino Remoto, cabe apontar as conclusões da pesquisa de
doutoramento realizada por Jaqueline Abreu Viana. Em artigo recente,
Viana e Crivellari apontavam que

ao investigar as variáveis que permeiam o trabalho mediado por


TIC, frequentemente associadas a tais ganhos, as constatações con-
vidam a uma reflexão não somente acerca das possibilidades, mas,
mais profundamente, sobre as consequências da interiorização des-
sa lógica pelo trabalhador, quando ele “incorpora” a ideia de que o
trabalho em diversos lugares e horários, além daqueles previstos ou
formalizados em contrato pela empresa, corresponde a uma condi-
ção “normal” e está implicitamente estabelecida (VIANA; CRIVEL-
LARI: 2014, p. 31 e 32).

Como apontou-se anteriormente, a pandemia tem proporcionado


novas modalidades de ensino-aprendizagem que, muitas vezes, não eram
pensadas pela maioria dos professores. Desse modo, para parte dos que,
por causa do isolamento social imposto pelo cenário pandêmico, migraram
para o Ensino Remoto, essa realidade está sendo uma novidade e como tal
vem sendo vivenciada e experimentada. Passar para o Ensino Remoto não
significa, ao contrário do que o senso comum imagina, a simples transpo-
sição de modalidade: da presencial para a digital; mas uma outra forma de
conceber a Educação e o processo de Ensino-aprendizagem. O ingresso
nessas plataformas digitais indica uma mudança na rotina de trabalho, que

210
pode indicar não apenas o acréscimo de trabalho, mas uma parte de tal
trabalho não ser remunerada, aumentando a mais-valia4 do empregador
(seja ele uma empresa pública ou privada), pois sua contabilização pode
ser de difícil precisão.
Os próprios defensores do Ensino Híbrido indicam que o processo de
personalização da educação de tal modalidade necessita de

docentes muito bem preparados e remunerados, bom apoio ins-


titucional e infraestrutura tecnológica. Os professores precisam
descobrir quais são as motivações profundas de cada estudante,
o que os mobiliza a aprender, os percursos, técnicas e tecnologias
mais adequados para cada situação e combinar equilibradamente
atividades grupais, presenciais e on line (MORAN, 2018, p. 6. Gri-
fos Nossos).

Ou seja, pensar que os docentes em suas casas possuíam antes da pan-


demia infraestrutura tecnológica (para não entrar na questão do apoio
institucional) para realizar a passagem do ensino presencial para o remoto
é desconsiderar a realidade brasileira, uma vez que situações como essa
podem até ocorrer para um pequeníssimo grupo de educadores que atuam
em Instituições de Ensino voltadas para a elite, o que não condiz com a
realidade da maior parte da classe docente.
Outro fator que podemos inferir das palavras de José Moran citadas
anteriormente, consiste no fator preparação, isto é, atuar com Ensino Hí-
brido ou Ensino Remoto não é a simples transposição de um método de
ensino para outra plataforma de ensino. Exige preparação. Tal posição
também pode ser vista no Plano de Ação.

Ciente da possível realidade de servidores da rede estadual de en-


sino que podem não possuir acesso a recursos tecnológicos para a
realização de suas atividades de trabalho remoto, no contexto atual,

4 A mais-valia segundo Johnson (1997, p. 137) pode ser entendida quando “uma vez que os tra-
balhadores não possuem nem controlam os meios de produção, eles dependem dos patrões,
que compram seu tempo em troca de salários. Os empregadores exploram essa dependência
pagando aos trabalhadores apenas uma parte do valor do que eles produzem e conservam o
resto – a mais-valia – para si mesmos sob a forma de lucro.

211
a SEEDUC oportunizará formação continuada em momentos dife-
renciados de forma a contemplar todos os servidores de nossa rede
(SEEDUC: 2020, p. 17).

Além da questão da formação, as residências tanto de professores


como de estudantes não estavam preparadas para as mudanças provoca-
das pela pandemia, muitos professores também não conheciam os méto-
dos de Ensino Remoto, pois como apontou-se previamente, ele possibilita
tanto o contato sincrônico como assincrônico; além do ambiente virtual
servir como um mediador na relação educador-educando. Lecionar por
meio de plataformas digitais, tal como se pode observar, já consiste em
uma relação mediada, ou seja, que traz para a relação outros fatores liga-
dos a tecnologias da informação, que para muitos, não haviam sido consi-
derados quando o ano letivo se iniciou em 2020.
A necessidade de suporte tecnológico evidenciou de forma ainda mais
latente a desigualdade social. Como parte dos estudantes não possuem
um smarphone ou computador em casa; outra o possui, mas sem pacote
de dados suficientes para seu aparelho ou rede de internet banda larga
que o possibilite acessar tais plataformas digitais, as ações levadas a cabo
pelos governos estaduais, municipais ou federal têm se mostrado inefi-
cientes, frente ao cenário que a pandemia coloca para todos. Mesmo em
Instituições de Ensino Superior (IES) podemos constatar situação similar,
onde parte dos cursos que já eram realizados a distância, assim dizendo,
na modalidade EaD, boa parte do corpo discente, em seu cotidiano, utili-
zavam os laboratórios de informática ou outros tipos de equipamento para
realizarem suas atividades. O fato de não poderem sair de casa durante a
quarentena para a IES, os coloca de fora tanto da EaD como do Ensino
Remoto que está sendo empregado como tentativa de resposta durante a
pandemia.

IV- Considerações finais

Ao fim cabe trazer algumas palavras ditas no início. Tal como Edward
P. Thompson (2001) teorizou para pensarmos o que seria classe social,

212
vemos com a pandemia que ela emerge de suas experiências e vivências.
Como a pandemia ainda não terminou, talvez ainda esteja cedo para con-
cluir que ela trouxe mudanças significativas para a prática docente. Porém,
não há como negar que mudanças estão em curso e que apenas com o
exame da materialidade vivida conseguiremos compreendê-la ao seu final.
Por isso, não é hora de se posicionar como defensores ou detratores de tais
mudanças, mas nos colocarmos como pesquisadores que tem como obje-
tivo compreender o processo vivido (seja no presente, seja no passado).
Em suma, o ensino remoto vem para ficar? Não sabemos! Mas não
é possível ignorar que ele é complexo e traz em si questões que podem e
devem ser aprofundadas em estudos posteriores. O que se buscou-se nas
linhas subjacentes foi tensionar transformações que estão em curso na so-
ciedade atual, sem perder de vista que algumas transformações não eram
recentes e que elas foram aceleradas pelas condições impostas pela Pan-
demia. Tal como Bruno Latour (2020), consideramos que é importante
terminar esse texto com um questionamento e com um convite. Quanto
ao primeiro: Quais profissões / ocupações / formas estão se modificando
com a pandemia você pode auxiliar a compreender as transformações?
Para finalizar, o segundo: junte-se a nós na busca pelo questionamento da
realidade imposta pela pandemia do Coronavírus.

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213
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215
XI

EDUCAÇÃO REMOTA EM UM
CONTEXTO PANDÊMICO: ISONOMIA
E UNIVERSALIDADE - EDUCAÇÃO
PÚBLICA /RJ
Prof. Dr. André Luis Toribio Dantas1

A pandemia provocada pelo novo corona vírus – Covid-19 – que as-


sola o Rio de Janeiro cria um debate ideológico sobre o isolamento social
generalizado. A OMS – Organização Mundial da Saúde enfatiza que o foco
é a proteção da saúde da população.
Alguns segmentos da sociedade legitimam autoridades da educação
escolar que impõem o oferecimento da educação remota. A Secretaria de
Educação – SEDUC – exerce pressão sobre o professorado para o seu ofe-
recimento. O Ministério Público, por sua vez, recomenda que a Secretaria
de Educação e Cultura/ SEEDUC-RJ suspenda as atividades não presen-
ciais por meio de qualquer plataforma educacional.
O oferecimento de educação a distância por qualquer meio digital não
é coisa simples ou fácil. As autoridades que optam por seu oferecimento
agem açodadamente, fetichizadas pelo potencial das novas tecnologias e
de forma autoritária querendo salvar as próprias peles como se o sinal de
Internet fosse gratuito, universal e de qualidade igual para aproximada-
mente 250 mil estudantes e 40 mil professores.

1 FAETEC/NUCLEAS /UERJ.

216
Parecem desconhecer ou fazem vistas grossas à realidade socioeconô-
mica de discentes e docentes que, em grande parte, somente têm acesso
por meio de telefones pré-pagos e, portanto, com tempo limitado e caro.
Também parecem desconhecer que as operadoras mais populares têm
péssima cobertura, muitas áreas de sombras, e sinais de pequeno alcance.
Existem regiões no Rio de Janeiro desprovidas de luz elétrica de qua-
lidade durante as vinte e quatro horas do dia, há locais onde os geradores
a diesel são desligados às 22 horas e outros onde os lampiões e lamparinas
ainda são indispensáveis. A grande quantidade de usuários de Internet que
habita estes lugares tem acesso precário, sinais fracos e total incapacidade
de usar os recursos disponíveis de streaming, por exemplo. Há ainda quem
tenha de subir em árvores para obter melhores sinais.
Estamos ainda muito distantes da democratização do sinal de Internet,
mas não apenas dele. Também continuamos carentes de boas e eficientes
redes de manutenção de PCs, computadores portáteis e telefones inteli-
gentes. Não são todos os usuários que acessam esta rede que têm dinheiro
suficiente para pagar os serviços técnicos indispensáveis.
Receber o sinal de Internet nos bairros de Botafogo, Lagoa, Jardim Bo-
tânico, Humaitá ou Barra da Tijuca 2é uma coisa que chega a ser prazerosa;
outra, de natureza bem diferente, é recebê-lo na Rocinha, Complexo do
Alemão, Rio das Pedras, Cambuci ou Maria da Graça3. Muitos estudantes
destes lugares, inclusive, somente usam os telefones celulares de seus pais
quando eles permitem e mesmo assim com tempo contado.
O ciberespaço está longe de conhecer a igualdade social, ele reproduz
com integralidade a mesma divisão de classe da sociedade capitalista. As
classes populares sofrem nele as mesmas agruras do mundo real. Os mais
ricos se deliciam e se enriquecem mais e mais com os avanços científico-
-tecnológicos e a subordinação deles como rápidas e eficientes forças de
produção.

2 Bairros da Cidade do Rio de Janeiro


3 Comunidades / Favelas da Cidade do Rio de Janeiro

217
Por esta razão, a determinação de oferecer educação a distância para
o alunado do Estado do Rio de Janeiro é desprovida de empatia e alteri-
dade, ao mesmo tempo em que contribui para aprofundar as desigualda-
des sociais existentes. Não vem acompanhada de políticas garantidoras da
igualdade de acesso para os estudantes fluminenses. Os mais abonados e
remediados poderão acessar a plataforma onde se encontram os textos, ví-
deos, bibliotecas online etc. nos seus próprios tempos, os mais vulneráveis
que se virem. O princípio da universalidade, o fundamento da democracia
social vem sendo atropelado.
O pragmatismo que a impregna a determinação da SEEDUC-RJ se
preocupa com os fins, sem observar a iniquidade e imoralidade dos meios
que usa para satisfazer parte da sociedade e obter bons dividendos políti-
cos, já que o calendário eleitoral de 2020 ainda está em curso. Na equação
político-eleitoreira com a qual opera, dar uma satisfação social, ainda que
promova mais desigualdade educacional, é melhor do que nada e passa a
ser uma poderosa promessa de campanha eleitoral.
Este Projeto de Educação Remota do Governo do Estado do Rio de
Janeiro enquanto Política Pública de Educação vem sendo construído de
forma focada com os interesses dos grandes Fundos de Investimentos da
Bolsa de Valores desde o Governo de Luiz Fernando (2018), com a gerên-
cia tecnocrata do Ex-Secretário de Educação4.
Há cinco anos estamos acompanhando as diminuições de turmas, fe-
chamentos de Escolas Públicas, abandono das Escolas Técnicas, precariza-
ção sem precedentes da carreira docente.
A Plataforma de Educação Remota vem sendo construída com Fun-
dações Privadas, ligadas a estes Fundos de Investimentos. Operadoras de
vendas de dados de Internet, fazem partes do Aglomerado Privado orga-
nizado para se apropriar do Fundo Público da Educação do Estado do Rio
de Janeiro.

4 o Governo de Luiz Fernando (2018), com a gerência tecnocrata do Ex-Secretário de Educação
Wagner Victer.

218
A EaD –Ensino à Distância- é um instrumento pedagógico importan-
tíssimo. Mas de forma complementar e a inegociável Educação Presencial
com o fortalecimento da Escola Pública .Da forma como veio apresentada
no Projeto de Lei /PL de autoria do Presidente da assembleia Legislativa do
Rio de Janeiro /ALERJ,5 na parceria política com a oligarquia que domina
o Rio de Janeiro há mais de duas décadas , possui intuitos claros voltados
para a privatização da Educação Pública no Estado do Rio de Janeiro e o
acesso do Fundo Público da Educação por parte das Empresas Privadas
em EaD que são gestionadas por acionistas ligados aos Fundos de Investi-
mentos da Bolsa de Valores.
Se conseguirem que o período emergencial seja contabilizado como
dias letivos, e também derem faltas para os docentes que se negarem a
participar deste processo emergencial neste período de “Isolamento So-
cial”, teremos o Laboratório necessário para a implementação imediata
deste Projeto Ultraliberal de Privatização da Educação Pública, Laica e de
Qualidade.
Da forma como a SEEDUC-RJ lutou pela implantação desta Platafor-
ma de Educação Remota, sem nenhum diálogo com os diversos atores do
Sistema Educacional do Estado do Rio de Janeiro, fica claro o desespero
eleitoral da família Oligárquica do Pedro Fernandes, visando concorrer a
vaga de Prefeito nas próximas eleições.
Com o retorno do Brasil ao mapa da fome, o aumento acelerado da
população em situação de rua e do desemprego, fica evidente que os mais
pobres e vulneráveis serão os mais atingidos pela Pandemia. E embora
especialistas da saúde venham afirmando a gravidade da situação, o presi-
dente do Brasil Jair Bolsonaro desdenha das evidências e incita a popula-
ção a infringir as orientações do Ministério da Saúde consoantes às da Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS) para conter o avanço epidemiológico.
É neste cenário que estados e municípios têm produzido respostas
para lidar com a crise no âmbito da gestão das políticas públicas em ge-

5 Deputado Estadual André Ceciliano.

219
ral, e da educação em particular, especialmente no sentido de construir
alternativas às aulas presenciais e ao cumprimento das horas e dias letivos
fixados em lei para a educação básica. A questão a ser levantada é que mui-
tas dessas respostas, baseadas na oferta de atividades remotas, não consi-
deram os princípios e objetivos da educação nacional expressos na LDB.
Destacamos que:
1. Considerando que grande parte dos alunos das redes públicas
de ensino não tem, efetivamente, amplo acesso à internet, a op-
ção pelo uso de plataformas digitais, como modalidade de ensino
não presencial para contabilizar horas e dias letivos se converte em
instrumento que aprofunda as desigualdades e assimetrias sociais.
Fere, neste sentido, o princípio de igualdade de condições de acesso
e permanência na escola;
2. O uso de recursos não presenciais não pode ser confundido com
a disseminação de EAD, que requer, além da mediação presencial
de professores, uma perspectiva diferente do ensino conteudista e
improvisado que vem se proliferando nas plataformas digitais;
3. A manutenção de vínculos entre escolas, alunos e professores pode
ser construída por outros canais e deve contribuir para complemen-
tação de conhecimentos, criação de redes de solidariedade e de cul-
turas conectados a um contexto adverso e incomum que precisa ser
enfrentado, inclusive com a promoção de políticas intersetoriais;
4. A suspensão das aulas presenciais e a utilização de plataformas
digitais não podem ser mecanismos que ampliem os constrangi-
mentos, a flexibilização, a super exploração do trabalho docente, as
demissões e supressões de contratos observados na rede privada de
ensino;
5. A revisão do calendário escolar e reposição de aulas devem ser de-
batidas, após o fim da pandemia do corona vírus, em cada rede de
ensino, com as comunidades e conselhos escolares, bem como con-
selhos de educação e sindicatos, assegurando a gestão democrática,

220
o debate público e o controle social para a defesa da educação como
direito inalienável de todos e todas;
Diante destes contextos apresentados os alunos da Rede Pública de
Ensino do Estado do Rio de Janeiro não poderão ser avaliados e nem te-
rem frequências averiguadas. As ações da SEEDUC-RJ atuam para a pre-
carização intelectual (docentes não participam da construção do conteúdo
da Plataforma de Educação Remota Google), salarial, funcional e até da
necessidade no Sistema Educacional do Estado do Rio de Janeiro.
As consequências desta Política Pública de Exceção da SEEDUC-RJ
são as diminuições brutais de turmas presenciais, Escolas Públicas, Con-
cursos Públicos e salários docentes. A SEEDUC-RJ apresenta soluções
simples para uma questão complexa: adotar uma medida que corrompe
a essência do ensino e aprendizagem que é a interação social a partir do
universo escolar, além de ferir a autonomia pedagógica quando o mesmo
apresenta a solução “mágica” de adesão a plataformas digitais como a ofe-
recida pelo Google.
Essa prerrogativa expurgada pelo secretário tem como alicerce o Con-
selho Estadual de Educação e o reforço do Projeto de Lei no 2036/2020
em tramitação na ALERJ. A decisão do primeiro (Conselho Estadual de
Educação), através da Deliberação no 376 de 26 de março de 2020, orienta
equivocadamente o desenvolvimento de atividades escolares não presen-
ciais enquanto durarem as medidas de isolamento. O art. 2º do documento
determina que o objetivo é “garantir o direito à educação de qualidade”, ou
seja, atribuindo a modalidade de Educação Remota a mesma dimensão de
um ensino presencial em suas variáveis sociais que incluem merenda, ma-
teriais didáticos, acompanhamento cotidiano, transporte, dentre outros.
O mesmo artigo reitera junto a alínea “a” do inciso II que objetivos,
métodos, técnicas, recursos, assim como atividades não presenciais devem
ser desenvolvidas de “acordo com a faixa etária”, ou seja, ironicamente de-
nuncia as próprias limitações da Educação Remota incapacitada de, coti-
dianamente, estabelecer avaliações e diagnósticos do educando a partir da
interação estabelecida no universo escolar.

221
Tal medida corrompe o caráter social da escola, que traz em sua essên-
cia o aprendizado coletivo no diálogo com o diferente, algo fundamental
num contexto demarcado pela intolerância. O mesmo inciso ainda apre-
senta no parágrafo quatro que locais de difícil acesso (grande parte da
rede), “onde houver impossibilidade de acompanhamento aos estudantes,
deve-se garantir que não haja prejuízos aos mesmos”, ou seja, basicamente,
um encaminhamento genérico que, grosso modo, assume a ineficiência da
Educação Remota para educandos que residem distantes dos centros, um
setor da sociedade onde a escola assume um papel central em suas vidas.
O artigo 5º destaca que cabe as instituições zelarem pela “frequência
dos alunos”, se tratando de Educação Remota. Fazer o login numa plata-
forma para constar, enquanto, os pouquíssimos alunos que têm acesso ao
celular ou laptop estão cometendo mil tarefas de lazer ao mesmo tempo no
aparelho como games, redes sociais etc.
Algo elementar na condução desta política da SEEDUC-RJ carrega um
processo que traz consigo um mercado educacional frutífero para lucros
de grandes empresários como a EAD. As limitações didáticas pedagógicas
já foram expostas acima, porém, há ainda fatores de ordem econômica.
O ministro da economia Paulo Guedes, por exemplo, tem investimentos
no setor educacional privado e a distância que lhe rendem R$1 bilhão de
fundos de pensão por ano, assim como sua irmã Elizabete Guedes, uma
das mais ardorosas defensoras dessa modalidade de ensino no governo
Bolsonaro (ver portaria 343/2020).
Mesmo com números da Associação Brasileira de Ensino a Distância
destacando um índice de evasão em 50% para EADs, tal modalidade re-
presenta uma “mina de ouro” para empresários da educação, que não têm
nenhuma preocupação para que esse setor convirja a valores emancipa-
tórios, característica tão propagandeada pelo ensino presencial público.
Para esses empresários o que importa é a não utilização de um espaço
físico (sem despesas com água, luz etc.) ou a presença de profissionais,
permitindo uma redução acintosa em contratos trabalhistas. Para se ter
uma ideia, é possível maximizar o número de alunos e reduzir o número

222
de professores a partir dessas plataformas ou em canais virtuais que com
várias turmas simultâneas.
E, coincidentemente, em meio a uma Pandemia, autoridades de âmbi-
to federal, estadual e, em breve, municipal (conforme o Conselho Estadual
de Educação autoriza) absorvem o debate da EAD sem um debate prévio,
num contexto onde o horizonte não se faz de presente diante da falta de
Políticas Públicas adequadas de Saúde e direcionadas com exatidão a re-
dução de danos de contágios de Corona vírus.
Utilizar-se da vulnerabilidade da conjuntura para executar uma polí-
tica que destoa das necessidades dos profissionais da educação e dos edu-
candos (assim como de toda comunidade escolar) só demonstra a perver-
sidade de tubarões do ensino a distância, preocupados com seus lucros e
dissonantes ao legado de grandes educadores brasileiros, que defendiam
um modelo de educação público libertador, condizente a transformação
das pessoas.
As grandes discussões e mobilizações de educadores dos anos 1980
que legitimaram a criação de políticas concretas para a escola pública, são
agora atravessados por prerrogativas oportunistas diante de uma calami-
dade social, onde o público e qualquer preocupação social devem ser dizi-
madas. Nesse sentido, uma medida tida como temporária – a da Educação
Remota em tempos de Pandemia – dá espaço a um fantasma da incerteza:
a extinção da escola pública.
O surto pandêmico da Covid-19 impactou sobremaneira a todo o
Globo. As atividades econômicas, já prejudicadas em todo o mundo ca-
pitalista, devido aos reflexos da grave crise financeira de 2008-9, foram
ainda mais prejudicadas pelo atual quadro de expansão da doença que se
alastra como resultado da condição planetária do capitalismo, sistema cuja
amplitude se estende por todos os quatro cantos do mundo.
No Brasil, não seria diferente. Elo frágil – dependente e periférico –
da economia capitalista, o país, com uma estrutura social extremamente
desigual, com um quadro das grandes cidades em que inexiste uma in-

223
fraestrutura urbana que dê conta de atender às demandas mais básicas da
vida humana, fruto de anos e décadas de abandono por parte do Estado,
que, agora, mais do que nunca vem num processo de ajuste fiscal, corte de
verbas, privatização e aprofundamento da tendência de um Estado cada
vez mais mínimo, a resposta a esse quadro de extensão da epidemia é perto
de zero.
Medidas paliativas são adotadas como isolamento social, adoção de
medidas individuais de higiene, sem levar em consideração, no entanto,
que as medidas devem ser de longo alcance, tanto em termos de tempo
quanto do número de pessoas atingidas, contados respectivamente em
meses e em dezenas de milhões.
Os efeitos dessa crise sanitária, somados à crise econômica e política do
estado brasileiro vêm agravar o quadro social em franca degenerescência.
Temos a ameaça clara e evidente de empobrecimento e aprofunda-
mento da desigualdade social, como resultado não só do declínio das ati-
vidades econômicas nos mais variados setores, mas também da ampliação
da precarização das relações de trabalho e do desemprego, fruto de uma
política ultraliberal do atual governo.
Nos três níveis da esfera de poder, federal, estadual e municipal, não
vemos uma política social de amparo aos mais pobres e vulneráveis, que
busque proteger o emprego e a renda das classes trabalhadoras, uma polí-
tica de paralisação da prática privatista e de financeirização da economia,
e que busque frear o sucateamento e a terceirização dos serviços públicos.
A recuperação da capacidade do Estado de programar políticas públi-
cas é decisiva para atenuar sobremodo os efeitos mais nocivos da pande-
mia. Em todos os níveis, inclusive na educação.
A adoção precipitada e sem discussão ampla com todos os setores da
sociedade civil, em especial os mais afetados que são os profissionais de
educação e os filhos das famílias de trabalhadores – público amplamen-
te majoritário das escolas públicas municipais e estaduais – de medidas
como a da Educação Remota, vem jogar uma cortina de fumaça sobre as

224
reais exigências e necessidades da Educação Pública no Estado do Rio de
Janeiro.
As medidas da SEEDUC-RJ vão de encontro a uma verdadeira Educa-
ção Pública, extensiva como direito social fundamental para todo o povo
fluminense. Retira o direito de crianças, adolescentes e jovens à escola pre-
sencial, a interação básica e necessária entre o educando e o educador,
numa fase da vida em que não possuem ainda maturidade emocional e
intelectual para desenvolver seus estudos.
Ademais, esta política de Educação Remota pressupõe que a Comu-
nidade Escolar, que não foi ouvida ou consultada para deliberar sobre os
destinos da escola pública, tenha condições materiais de possuir em seus
domicílios uma aparelhagem necessária para dar prosseguimento aos es-
tudos via on-line.
Alguns questionamentos permanecem:
1. Seriam fáceis a divulgação e o pronto atendimento acerca das dúvi-
das dos alunos, famílias e profissionais quanto à implementação da
Educação Remota?
2. As deliberações não podem deixar de contemplar não apenas as en-
tidades representativas dos trabalhadores em educação, como tam-
bém o seu público-alvo, que são os alunos e suas famílias, igual-
mente membros importantes das comunidades escolares, através
dos conselhos escola-comunidade.
3. E quanto aos conteúdos curriculares? Como ministrá-los sem pre-
juízo da garantia da sua real acessibilidade e integridade? Como
fazer com que a avaliação seja estendida a todos e todos e devida-
mente devolvida em condições e em tempo hábil em que se possa
efetivamente avaliar de forma justa? E isso sem que se incorra em
injustiças derivadas da inadequação do método que foge ao contro-
le do profissional de educação e que não atende às necessidades dos
nossos alunos e de suas famílias.

225
4. E num momento de calamidade pública, enfrentado não apenas
pelos municípios e Estado do Rio de Janeiro, como também pela
República Federativa do Brasil e por outras inúmeras nações espa-
lhadas pelo mundo, em que 92 por cento da população entendeu a
importância de se paralisar os espaços escolares para garantir o não
alastramento da pandemia, não é mais importante e fundamental a
garantia do direito à vida, isto é a segurança da saúde e o bem-estar
social da população brasileira?
Segundo a Unicef, 154 milhões de estudantes estão sem aulas na Amé-
rica Latina e Caribe. A entidade alerta que a situação poderá se estender, e
há risco de abandono escolar definitivo.
Pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br),
entre agosto e dezembro de 2018, e divulgada em 2019 aponta que 58% dos
domicílios no Brasil não têm acesso a computadores e 33% não dispõem
de internet. Entre as classes mais baixas, o acesso é ainda mais restrito. A.
Os dados apontam que, nas áreas rurais, nem mesmo as escolas têm acesso
à rede mundial de computadores: 43% delas afirmavam que o problema é a
falta de infraestrutura para o sinal chegar aos locais mais remotos.
Para Alexsandro Santos6 é importante pensar sobre o grau de inde-
pendência que uma criança tem para estudar acompanhando uma plata-
forma virtual, já que o modelo de ensino tradicional abre pouco espaço
para a autonomia dos estudantes.

A interação que as crianças têm no mundo virtual, normalmente,


é bastante passiva. Quando a gente está chamando elas para uma
interação de ensino aprendizagem, a gente precisa que elas atuem,
que sejam ativas nessa interação com a plataforma. Mesmo quando
a gente pensa em crianças mais velhas – como os adolescentes de

6 Educador e formador na área de Educação e Saúde, com foco em Inovação Pedagógica, Pe-
dagogia da Intuição e Narrativas (Auto) Biográficas. Graduado em Psicologia pela Universidade
Luterana do Brasil (2003), Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria
(2005), Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2012) e Pós-
-Doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – Pernambuco (2016).
Atualmente, Professor Adjunto do Curso de Bacharelado em Saúde Coletiva da Universidade
Federal de Pernambuco.

226
12, 13 anos –, é importante se perguntar se a gente preparou essa ge-
ração para construir hábitos de estudos autônomos, afirma Santos.

Felippe Zancarli7 também considera que a falta de maturidade de alu-


nos dessa faixa etária para tocar as atividades por conta própria pode ser
um problema. Para ele, o suporte dos pais no dia a dia será fundamental.

Precisamos lembrar que os nossos lares não dão conta sozinhos


do processo de sociabilização, proteção e cuidado. Muitas vezes,
a escola é o lugar onde as crianças comem direito, onde as crian-
ças aprendem a utilizar as ferramentas sociais de convívio, onde as
crianças podem contar situações difíceis que estão passando em sua
casa. Mesmo que a gente tivesse todas as condições tecnológicas,
eu ainda diria que a escola presencial é fundamental para garantir
outro direito para as crianças.8

O desespero de cumprir o conteúdo tem feito diversos colégios, públi-


cos e privados, exigirem de seus professores a produção de material didá-
tico para ser enviado aos alunos durante o período de quarentena. Mas as
aulas não estão suspensas? Não houve até quem dissesse que estávamos de
férias? Por que temos de produzir?
A resposta é simples: nossa visão de educação ainda é conservadora. A
forma como a educação à distância (EAD) está sendo implementada pelas
redes pública e privada em tempo de pandemia é a prova disso. Não adian-
ta citar Paulo Freire, modificar LDB, criar leis de inclusão cultural e social,
falar sobre igualdade, pluralidade, se não conseguimos o básico: entender
que educação não é só conteúdo.
O Corona vírus está nos dando uma oportunidade única de nos re-
pensarmos enquanto humanidade, isso inclui pensar que tipo de educação
queremos no futuro. “É uma pena que o caráter da escola, o que há de
informal na experiência que se vive nela (...) seja negligenciado. Fala-se
quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino lamentavelmente

7 Felippe Zancarli, coordenador de Tecnologia Educacional do Salesiano Santa Teresinha.


8 Santos, idem ,op. cit.

227
quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das
razões que explicam esse descaso em torno do que ocorre no espaço-tem-
po da escola (...) vem sendo uma compreensão estreita do que é educação
e do que é aprender”, pontua Paulo Freire, para quem “educar exige bom
senso”, entre outras coisas.
Quando o Ministério de Educação e Cultura /MEC elege a EAD como
saída para que não haja prejuízo aos alunos, ele não só desconsidera a
realidade socioeconômica de nosso país como também ignora que “ensi-
nar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua
própria produção ou a sua construção”.

Considerações finais

Não somos contra o ensino à distância, muito menos defendemos a


ausência de conteúdo escolar. Obrigar professores a produzirem conteúdo,
pressionar alunos a estudarem agora os fará adoecer. Estudar as matérias
da escola por prazer e não por cobranças.
O conteudismo com a representação simbólica falsa de EaD, levará
os atores alunos, responsáveis e professores a percorrerem um ano letivo,
corrido e estressante. Quando o perigo passar, nos reorganizaremos, tudo
vai se encaixar e a maturidade que tivemos para lidar com a situação nos
dará orgulho. Vamos aproveitar a travessia para alimentar nosso ser daqui-
lo que realmente nos importa e nos falta.
Alguns gestores estão num mundo que não existe mais, achando que
depois da pandemia tudo volta a ter continuidade – como dantes. Outros
acham que, mesmo durante a pandemia, basta transferir o ensino para a
modalidade não presencial.Não, o mundo parou e quando voltar a rodar,
no tocante às pessoas, será diferente e isso inclui os pais, professores, dire-
tores e estudantes.
As soluções propostas, usadas com a intenção de substituição do tra-
balho do professor durante o fechamento das escolas de educação básica,
estão fadadas ao fracasso e a acelerar a desigualdade educacional. Isso não

228
significa que não faremos nada durante o fechamento das escolas. O ma-
gistério está se desdobrando tentando dar cobertura aos estudantes, mas
isso implica em uma intensificação do trabalho em um momento em que
ele igualmente também é atingido pela pandemia.
Além disso, a transferência do ensino para o ambiente familiar traz
o problema do “limite de tempo de tela”: as crianças não podem ficar pe-
ríodos inteiros em frente a telas de dispositivos estudando sem que isso
lhes acarrete graves problemas físicos e psicológicos. A questão não é sim-
plesmente ter uma plataforma de ensino virtual e colocar à disposição da
criança.
As dificuldades deste caminho estão ficando mais claras para os país.
E eles poderão ser um importante aliado para deter as falsas soluções que
gestores ingênuos ou muitas vezes a serviço de interesses econômicos pos-
sam querer impor.
Melhor faremos se reconhecermos a real gravidade da situação e os
impactos na formação e delegarmos para as redes de ensino a criação e
gradação das soluções, seja durante ou após a pandemia, para que sejam
formuladas de acordo com a intensidade dos problemas locais nos muni-
cípios do Estado do Rio de Janeiro.
Contrariando as terceirizadas que operam na venda de avaliação para
municípios e estados, este processo exigirá, é claro, que se suspendam to-
das as avaliações censitárias de larga escala, sejam municipais, estaduais
ou federais (SAEB), permitindo que cada localidade trace um plano de
recuperação para suas escolas, levando em conta os danos emocionais que
a magnitude da pandemia está causando em professores, diretores, funcio-
nários e estudantes, para restabelecer a normalidade das escolas durante
os anos de 2020/2021.
Os próximos dois anos deveriam constituir um ciclo único, apenas
com avaliações de diagnóstico conduzidas pelos professores, dando tempo
às redes para atuar na recuperação dos desempenhos segundo suas reali-

229
dades específicas. Não é hora de meritocracia e performatividade. É hora
de solidariedade e acolhimento.

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233
XII

POSSÍVEIS CIDADES PÓS-


PANDÊMICAS: COVID-19 E A
PASSAGEM DA CIDADE MODERNISTA
À CIDADE “NÃO-MODERNA”
Rodrigo Agueda1

Introdução

A deflagração da pandemia do Covid-19 levantou múltiplos questio-


namentos nas mais diversas esferas da vida social, como sabemos. O im-
pacto imediato nas ciências da saúde, que estabeleceram uma rápida e pio-
neira onda de cooperação e produção no sentido tanto de conhecer o vírus
como no sentido de combate-lo, veio acompanhado de uma virada no foco
das outras tantas ciências. A ciência política, na sua – talvez inocente – ten-
tativa de explicar os divergentes caminhos tomados por chefes de estado, a
antropologia que se viu na necessidade de transformar campos físicos em
virtuais2, a geografia na urgência de pensar um momento dicotômico da
globalização em que fluxos se restringem e relações se voltam ao escopo
local, ao mesmo tempo em que as dimensões da crise mostram o resultado
de uma “compressão espaço-tempo” nunca antes vista (MONTIEL, 2020),
entre muitas outras. Os impactos sociais da pandemia criam um campo de
análise incomensurável também para a sociologia, evidenciando estudos

1 Universidade Federal do Rio de Janeiro.


2 O antropólogo Daniel Miller fez um video tratando dessa mudança, disponível em https://
www.youtube.com/watch?v=NSiTrYB-0so&feature=emb_title.

234
sobre redes (BRASIL JR e CARVALHO, 2020), pensando formas de mobi-
lização social (GOMES, 2020), refletindo sobre o “distanciamento social”
que é, na realidade, um distanciamento físico, aprofundando questiona-
mentos sobre o significado da casa (ARAUJO, 2020; MOTTA, 2020), entre
tantos outros. Dentre as inúmeras frentes de reflexão possíveis, das quais
citamos apenas uma parte ínfima, nosso foco nesta breve análise gira em
torno dos estudos urbanos e dos impactos da pandemia nas estruturas das
cidades.
Em voga desde muito antes de imaginarmos que chegaríamos a mais
de 13 milhões de casos e mais de 570 mil mortes decorrentes do novo
coronavírus3, a discussão sobre a cidade durante e pós a crise sanitária
tem sido levantada por diversas frentes, de antropólogos e sociólogos à ar-
quitetos, urbanistas e engenheiros. Evidente que surgiram disso inúmeras
propostas de mudanças quanto à mobilidade, possibilidades de interação,
novas formas e espaços de trabalho e planejamento urbano. Nosso obje-
tivo, portanto, não se dá no sentido de se opor a elas, e nem mesmo de
fornecer novas possibilidades, mas sim no sentido de refletir sobre elas,
questionar seu caráter inovador e pensar sobre que cidades estão sendo
construídas - materialmente e figurativamente - por elas.

Cidade pandêmica e cidade pós-pandêmica

Assim como ocorreu com a gripe espanhola no início do século XX,


mudanças no sentido de como se pensar a cidade e as construções ganham
destaque com a chegada do Covid-19. Se a primeira influenciou na arqui-
tetura modernista, trazendo a prioridade por espaços abertos com ampla
ventilação, distanciamento de edifícios e maior abertura para a incidên-
cia de luz solar, a segunda reforça novas necessidades. Para além de frisar
esses mesmos aspectos, o problema de circulação e contato nas grandes
cidades ganha destaque. Medidas emergenciais de lockdown e home office
seguidas de limitações nos transportes públicos e aglomerações, alertam

3 Dados referentes à data em que escrevo (12/07/2020), de acordo com a plataforma www.
worldometers.info/coronavirus

235
para o pós-pandemia. O significado da casa tem sido posto em questio-
namento, já que a mesma passa a ter novos significados e a comportar
novas relações. Favelas e prédios com grande concentração de pessoas têm
aparecido – ainda mais - como ‘problema’. De forma mais geral, a ideia de
“urbano” como o espaço de interações nas cidades, no sentido clássico de
Simmel (2013[1903]) onde há heterogeneidade e uma multiplicidade de
estímulos, vem sendo vista como nociva.
Essas inquietações motivam propostas de planejamento urbano e
reorganização dos cotidianos nas grandes cidades. A adoção de home of-
fice e revezamento em grandes empresas, somada à reorganização dos es-
critórios, é uma delas. A substituição de ônibus por outros modais, como
a bicicleta, levou Bogotá a criar 22 quilômetros de ciclovias temporárias
(SALLUM, 2020), por exemplo. Uma matéria do Estadão apontou para
a autossuficiência de bairros e menores deslocamentos para se chegar
ao trabalho ou à escola como possíveis alternativas (WOLF e PEREIRA,
2020). No imaginário social, o repentino confinamento em casa gerou
uma vontade por espaços de moradia maiores, que comportem funções
que antes eram feitas fora. Limitações foram impostas aos locais públicos,
como a demarcação em parques de Nova Iorque (WHITEMAN, 2020), as
cercas de metal para a restrição de circulação na China (LI, 2020), a sus-
pensão da “Paulista Aberta” em São Paulo (PARA…, 2020) e a proibição
de atividades nas praias do Rio de Janeiro até a aparição de uma vacina
(MAGALHÃES, 2020), e se mostram como opção para o futuro não só do
coronavírus, mas das possíveis ameaças que ele nos faz atentar. A prefeita
de Paris, Anne Hidalgo, propõe que sua cidade se torne uma “cidade de 15
minutos”, onde todas as atividades essenciais possam ser feitas a pé ou de
bicicleta, algo parecido com as “vizinhanças de 20 minutos” de Portland e
Melbourne. Sem a pretensão de oferecer alternativas melhores, cabe a nós
refletir sobre a viabilidade desses processos em um contexto brasileiro, e
que tipo de “cidade pós-pandêmica” estamos propondo com eles.
Nos parece óbvio o equívoco que são as afirmações – não pouco co-
muns – que tratam do vírus como “democrático”, por não escolher quem

236
atinge. Não faltam pesquisas recentes para mostrar o caráter desigual do
mesmo, e como os mais atingidos tem classe e tem cor (MORENOFF &
WILEDEN, 2020; LEITE, 2020; SOARES, 2020). Especialmente no caso
do Brasil, onde o vírus foi trazido pelos mais ricos para atingir despropor-
cionalmente os mais pobres, assim como teve sua maior propagação nas
grandes cidades para causar um maior estrago em outras regiões, que não
tiveram estruturas prontas para enfrentá-lo. O dano que ele tem causado
em comunidades indígenas é um grande exemplo (VICK, 2020), recor-
dando-nos das doenças trazidas pelos colonizadores europeus no século
XVI. Mas mesmo o que se aparenta óbvio deve ser questionado. Aliás, o
que motiva o presente artigo é exatamente o fato da obviedade da desi-
gualdade que circunda o vírus não se refletir nas propostas pensadas para
as cidades quando ele “passar”.
Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, reflete sobre tal desigual-
dade ao dizer que, ao contrário do que muitos dizem, não estamos no
mesmo barco. Talvez estejamos no mesmo mar e na mesma tempestade,
mas uns estão em transatlânticos e iates enquanto outros estão em canoas.
(LIMA, 2020 apud RIBEIRO, 2020). Acredito que, para as pessoas que
estão perdendo parentes próximos ao mesmo tempo que perderam seu
emprego e se aproximam do dia em que não haverá comida à mesa, talvez
uma canoa não ilustre tão bem a dimensão dessa desigualdade. Seguindo
na metáfora, de que adianta propor iates para se proteger da tempestade,
enquanto a maioria não tiver acesso nem à canoa? De que adianta tra-
zer a proposta de “cidade de 15 minutos” para o Rio de Janeiro, onde há
tamanha discrepância de oferta e qualidade de serviços e infraestruturas
entre bairros? Manter as pessoas em raios de 15 minutos seria acentuar um
acesso já muito desigual à cidade. De que adianta chegar a conclusão de
que o ideal seria que trabalhadores morassem mais perto de seus locais de
trabalho, se uma integração de trem e metrô ou BRT e ônibus é a realidade
de tantos? Quais residências no Brasil estão prontas para receber um home
office? Algumas, o que nos leva ao próximo ponto. A cidade pós-pandemia
que está sendo proposta, seria mesmo algo novo, ou apenas uma expansão
do que já existe?

237
O Rio de Janeiro é um bom caso para se pensar essa última pergunta.
O processo de urbanização carioca sempre se deu de forma dual: enquan-
to as classes trabalhadoras comandavam a expansão para a Zona Norte,
as elites se expandiam pela Zona Sul, seguindo o caminho do mar. Em
um primeiro momento buscando o afastamento do Centro em direção à
Copacabana, e depois fugindo dessa última em direção à Barra da Tijuca,
a urbanização que acompanhou as classes altas cariocas sempre se deu
em oposição a algo negativo associado à cidade, em seu sentido de centro
urbano. No primeiro momento em função do saneamento e dos cortiços,
no segundo em função do caos do não-planejamento e das favelas. Desde
a década de 80, a busca por semelhantes, por segurança e tranquilidade
já se apoiava em possibilidades de se viver onde a circulação é limitada,
os espaços são amplos e o cotidiano é possível em um espaço fechado.
Os grandes condomínios residenciais da Barra da Tijuca, pensados como
“bairro planejados”, mas que comportam em si a autossuficiência de uma
cidade, se encaixam perfeitamente nas propostas de cidade pós-pandemia,
mesmo não sendo nenhuma novidade. O que vemos, então, é que as pro-
postas acabam por apontar para um caminho não apenas de limitação de
aglomerações e contatos, mas um caminho de segregação e potencializa-
ção das desigualdades.
O caráter essencialmente urbano da pandemia evidencia a relação
entre a crise sanitária e uma crise de moradia, ambas muito anteriores à
pandemia. O processo de auto-segregação e “encastelamento” que vinha
ocorrendo no Brasil nas últimas décadas não era problematizado no grau
que se deveria. Com a crise do Covid-19, esse processo ganha evidência,
mas, muito mais do que gerar uma reflexão crítica sobre seu caráter nega-
tivo, ele tem sido colocado ao lado das propostas de solução. Ou será que a
aversão aos centos urbanos, a proposta de evitar serviços de transporte pú-
blico e de limitar as interações não condiz com a vida oferecida dentro dos
condomínios residenciais privados do Brasil? Não cabe a nós, de forma al-
guma, se colocar contra as orientações das organizações e profissionais de
saúde quanto às medidas a serem tomadas no futuro. Mas o que nos cabe
é não deixar que tais medidas sejam impulsoras de uma sociedade ainda

238
mais desigual. Porque, ao nosso ver, os ônibus privados dos condomínios
que levam seus moradores até os locais de trabalho, somados aos merca-
dos dentro da propriedade e oferta de espaços de trabalho no próprio pré-
dio de moradia, ao mesmo tempo que condizem com as orientações, não
são realidade para a maioria, nem agora e nem em um futuro próximo.
São resultado de um desenvolvimento fundamentado em formas urbanas
excludentes e elitistas. É imprescindível que haja cautela quanto a isso.

Do Modernismo ao “não-moderno”

As “cidades” modernistas, da Chandigarh de Le Corbusier à Brasília e


Barra da Tijuca de Lúcio Costa, guiadas pelos impulsos de ordem e racio-
nalidade na organização do espaço urbano, puderam ser organizadas “do
zero”, ou seja, a partir de planejamentos. Isso permitiu que esses exemplos
citados trouxessem de forma clara muitos dos ideais desse movimento,
sem maiores barreiras. Foram, principalmente os casos brasileiros, como
laboratórios de experimentação, como trouxe Gorelik (2005 apud BAL-
THAZAR, 2020), que já contavam com a separação entre pedestres e veí-
culos, aspectos de cidade pré-moderna e um imaginário de moderniza-
ção e progresso (REZENDE e LEITÃO, 2003). Essas mesmas “cidades” já
traziam as preocupações resultantes da gripe espanhola, a influência da
figura do urbanista e utopias de cidades mais civilizadas. Os resultados, no
entanto, foram espaços cada vez mais segregados e desiguais, visíveis seja
na comparação entre Brasília e Ceilândia (DF) ou entre Barra da Tijuca e
Cidade de Deus (RJ). São exemplos de uma nova etapa na produção das
cidades brasileiras que, mesmo contando com diversos fatores para o seu
sucesso, não deixou de reproduzir condições desiguais no espaço urbano.
Teresa Caldeira (2000) afirma que nos tornamos uma sociedade “não
moderna”. Os condomínios privados, assim como os múltiplos mecanis-
mos de privação do espaço público e de propagação dos espaços privados
como locais de encontro, descontroem as características simmelianas da
cidade moderna. Ela é também uma cidade “não-democrática” (Idem),
onde a heterogeneidade é evitada e o uso da cidade é cada vez mais se-

239
gregado. E essa mesma cidade dos enclaves, da forma urbana condomínio
como principal motor da urbanização, é a cidade com espaços autossufi-
cientes, com o trabalho próximo da moradia, com a redução de aglomera-
ções e interações urbanas. Mas não para todos. O discurso - presente em
muitas lives e eventos acadêmicos virtuais que discutem o pós-pandemia
– que advoga pela possibilidade de uma volta à cidade pré-moderna e de
um processo de encastelamento, de uma aversão aos centros urbanos e
um romantizado retorno ao campo, é o mesmo presente nos anúncios de
condomínios que estampavam os jornais desde o final do século passa-
do. E não é necessário trabalharmos com suposições sobre o futuro, já
que a reação de grande parte das elites nas maiores cidades do mundo ao
Covid já foi de fugir para o campo. Em Paris, mais de um milhão de pes-
soas deixaram a cidade (TIDMAN, 2020). Em Nova Iorque, em dois meses
foram mais de quatrocentos e vinte mil saindo (PAYBARAH, BLOCH e
REINHARD, 2020), com um maior esvaziamento nos bairros mais ricos
(QUEALY, 2020). Mas isso não é tanto uma novidade quanto um exagero
de um processo antigo. No mundo inteiro, as classes altas têm a possibi-
lidade de “fugir” dos aspectos negativos da cidade, não é de hoje. Basta
lembrar os anúncios que Caldeira analisa em São Paulo, ou até mesmo
as logomarcas de grandes condomínios da Barra da Tijuca, como o Novo
Leblon e Nova Ipanema, que trazem imagens de coqueiros, praias e sol na
tentativa de contrastar com a cada vez mais urbanizada Zona Sul carioca.
Tudo isso para insistir que o tipo de cidade que está sendo pensada não é
novidade, é mais do mesmo.
Pensar a cidade “pós-pandemia” se tornou uma necessidade devido
aos impactos imediatos e vastos do novo coronavírus. Mas pensar a cida-
de que queremos deveria levar em consideração também os impactos da
cidade que já tínhamos. Considerar que nossas cidades não estão prontas
para os vírus que virão não deve prevalecer sobre a consideração que elas
já não estavam prontas para oferecer vidas dignas para todos, muitos antes
do Covid. O consenso existente de que a atual crise econômica, social e sa-
nitária coloca em evidência as desigualdades não tem produzido soluções
que levem tais desigualdades como ponto de referência. A crise põe em

240
xeque uma crise do modelo de desenvolvimento urbano neoliberal, e isso
deve vir como prioridade nas propostas de futuro. Pensar cidades prontas
para enfrentar novas doenças não deve contribuir para criar cidades ainda
mais excludentes. Pensar novas formas urbanas e modelos de planejamen-
to que não gerem concentrações, não pode ignorar as estruturas fundiárias
existentes da terra urbana. O problema de super-ocupação de imóveis nas
favelas não deve prevalecer sobre o problema de sub-ocupação de imóveis,
seja como moradia das elites ou como especulação. Deve-se lembrar que
para os quase 7 milhões de habitantes sem moradia no Brasil, existem pelo
menos 6 milhões de imóveis vazios. Antes de pensarmos caminhos para
a construção civil, devemos refletir sobre a função social do solo urbano.
Os impulsos que nos levam a pensar a cidade “pós-pandêmica” devem ser
acompanhados de disputas políticas por uma nova ordem urbana. Sem to-
mar tais providências, estaríamos continuado o caminho – que está longe
de ser sinônimo de progresso – das cidades modernistas para as cidades
“não-modernas” e cada vez mais desiguais.

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Tipografias
Minion Pro
Superclaredon

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