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Organizadores

Francisco Luiz Corsi


Agnaldo dos Santos
Marina Gusmão de Mendonça

A CONJUNTURA
LATINO-AMERICANA
INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA
Organizadores

Francisco Luiz Corsi


Agnaldo dos Santos
Marina Gusmão de Mendonça

A CONJUNTURA
LATINO-AMERICANA
INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA

1ª edição 2021
Marília, SP
Copyright© Projeto Editorial Praxis, 2021

Coordenador do Projeto Editorial Praxis


Prof. Dr. Giovanni Alves

Conselho Editorial Nacional


Dr. Ariovaldo Santos (UEL) Dr. José dos Santos Sousa (UFRRJ)
Dr. André Luis Vizzaccaro (UEL) Dr. Marco Aurélio Santana (UFRJ)
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Conselho Editorial Internacional


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Dra. Íside Gjergji (CES - Portugal)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, Campo Grande/MS)

C76 A conjuntura latino-americana: instabilidade e resistência / organização


1.ed. Francisco Luiz Corsi, Agnaldo dos Santos, Marina Gusmão de
Mendonça. – 1.ed. – Marília, SP : Projeto Editorial Praxis, 2021.
221 p.; 16 x 23 cm.

Bibliografia.
ISBN 978-65-995130-7-7

1. América Latina. 2. Capitalismo. 3. Crise econômica. 4. Economia.


5. Política. Corsi, Francisco Luiz. II. Santos, Agnaldo dos. III. Mendonça,
Marina Gusmão de.

06-2021/97 CDD 320.98

Índice para catálogo sistemático:


1. América Latina : Ciências políticas 320.98

Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

Projeto Editorial Praxis


Free Press is Underground Press
www.editorapraxis.com.br

Impresso no Brasil/Printed in Brazil


2021
SUMÁRIO

APRESENTAÇ ÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

C APÍTULO 1
A INSUS TENTÁV EL LE V EZ A DO C A PITA LISMO GLOBA L –
O C A PITA L DIA NTE DE SEUS LIMITES NO SÉCULO X XI . . . . . . . . 13
Giovanni Alves

C APÍTULO 2
A S ELEIÇÕES DOS EUA 2020 E
OS IMPAC TOS REGION AIS N A A MÉRIC A L ATIN A. . . . . . . . . . . . . . . 31
Cristina Soreanu Pecequilo

C APÍTULO 3
JOE BIDEN TOMOU P OSSE:
O QUE O ESPER A E O QUE NOS ESPER A . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Luís Antonio Paulino

C APÍTULO 4
A INSERÇ ÃO DA A MÉRIC A L ATIN A NO CONTE X TO
MUNDIA L EM 2021: INSERÇ ÃO DOS TEMP OS OU
TEMP OS DA INSERÇ ÃO?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos
C APÍTULO 5
A S LUTA S ÉTNICO - CL A SSIS TA S NA AMÉRIC A L ATINA DO
SÉCULO X XI: APONTAMENTOS SOBRE EQUADOR E BOLÍVIA. . . . 97
Leandro Galastri

C APITULO 6
PLEBISCITO EN CHILE:
¿QUEREMOS UN A NUE VA CONS TITUCIÓN?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117
José Luis Valenzuela

C APÍTULO 7
CRISES JUS TA P OS TA S:
DO “P ÓS - NEOLIBER A LISMO” E DO NEOLIBER A LISMO . . . . . . . . 135
Agnaldo dos Santos

C APÍTULO 8
A ECONOMIA BR A SILEIR A EM TEMP OS DE PA NDEMIA. . . . . . . . 161
Francisco Luiz Corsi

C APÍTULO 9
LIBER A LISMO E NEG ACIONISMO CIENTÍFICO:
DA RE VOLTA DA VACIN A À COVID 19. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Marina Gusmão de Mendonça
Daniel Campos de Carvalho
APRESENTAÇ ÃO

A coletânea “A conjuntura latino-americana: instabilidade e


resistência” apresenta diversos textos sobre os temas debatidos no
XX Fórum de Análise de Conjuntura. O Fórum de Conjuntura,
ocorrido entre 24 e 28 de agosto de 2020, é um dos eventos mais
tradicionais da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da UNESP
e, no ano passado, assumiu um caráter interinstitucional, tendo
sido organizado pelo Grupo de Pesquisa Estudos da Globalização,
pelo Departamento de Relações Internacionais da Escola Paulista
de Política, Economia e Negócios (EPPEN), da Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP) - Campus de Osasco e pelo Instituto de
Estudos de Economia Internacional (IEEI) da UNESP.
A partir de uma abordagem interdisciplinar, os textos tratam
da situação política, econômica e social da América Latina em um
contexto marcado pela pandemia do COVID 19, pela crise econô-
mica e pela eleição de Biden nos EUA. Especial atenção foi dispen-
sada ao Brasil.
A persistência da crise estrutural do capitalismo global, que
se arrasta desde 2008, e o mundo multipolar que parece se consoli-
dar como um dos resultados da referida crise, constituem o pano de
fundo das discussões. Os impactos desses processos na região foram
profundos, ao que se somou uma série de crises internas. O resul-
tado foi um período de fortes turbulências. A América Latina sofreu
uma guinada política para a extrema-direita, principalmente com a
eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil. Esta guinada
marcou o esgotamento da onda de governos de centro-esquerda,
que avançou na região desde o início da década de 2000. A crise
dessas experiências históricas, voltadas para o crescimento econô-
mico e para o enfrentamento da desigualdade social e da miséria, se
deu no rastro do fim do boom de commodities.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 7


Entretanto, a deterioração da situação econômica e social,
associada à agenda neoliberal, sobretudo no que se refere à política
de austeridade econômica, começou a encontrar resistência popular
em diversos países, como Chile, Equador, Colômbia e Bolívia, onde
um golpe de Estado, que retirou a esquerda do governo, foi revertido
graças à mobilização popular.
A pandemia de COVID 19 representou um agravamento das
contradições vividas pela região, ao aprofundar a crise econômica
e social em muitos países latino-americanos, tornando o quadro
extremamente complexo. As políticas neoliberais mais uma vez se
mostraram inadequadas para o enfrentamento de uma situação
catastrófica que, tudo indica, projetar-se-á por um largo período de
tempo. Foi nesta conjuntura de crescente deterioração das condi-
ções econômicas, sociais e sanitárias que ocorreram os debates do
XX Fórum de Conjuntura, cujos resultados são apresentados nesta
obra.
A coletânea está dividida em 9 capítulos. No primeiro deles,
Giovanni Alves discute a crise estrutural do capitalismo global.
Segundo o autor, a crise resultaria, de um lado, da queda tendencial
da taxa de lucro, que seria a determinação subjacente das suces-
sivas crises e do baixo desempenho do sistema desde a década de
1970. Esta tendência aprofundada a partir da crise de 2008. De
outro lado, a crise decorreria da desmedida do valor, processo de
expansão do capital que tende a solapar as suas próprias condições
de valorização. Além disso, a crise articulada à deterioração do
meio ambiente. Portanto, estaríamos diante dos limites do modo
de produção, que não mais apresentaria condições de relançar uma
nova etapa expansiva e de assegurar as formas de sociabilidade
capitalista.
Depois dessa ampla discussão acerca das tendências de longo
prazo do capitalismo global, o segundo capítulo, escrito por Cristina
Soreanu Pecequilo, analisa os impactos das eleições dos Estados
Unidos na América Latina, tendo como referência as concepções
estratégicas norte-americanas para a região. O texto também aborda
a politica de Trump e as suas propostas para a América Latina, assim

8 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


como discute as propostas de Biden para a região. Por último, debate
os possíveis posicionamentos dos países latino-americanos diante
desse quadro.
Sobre essa mesma temática, Luis Antonio Paulino aborda,
no terceiro capítulo, os desdobramentos da vitória de Biden para
a América Latina e, em especial, para o Brasil. A análise do autor
parte da discussão das condições difíceis que Biden vai enfrentar,
sobretudo na economia, que apresenta clara deficiência na infraes-
trutura, na saúde pública, na questão da crescente desigualdade
social e nas relações internacionais, em que os EUA terão dificul-
dade para enfrentar tanto a China quanto a Rússia. Neste quadro,
o Brasil poderia ser favorecido pela postura multilateral do governo
Biden, mas isso dependeria da posição norte-americana em relação
ao meio ambiente e à ascensão chinesa. Uma postura mais dura no
que se refere a essas duas questões traria dificuldades e dilemas ao
governo direitista de Bolsonaro.
Os dois artigos seguintes têm como objeto a América Latina.
Rodrigo Passos analisa a conjuntura da região no início do século
XXI. Sua análise tem como base a ideia segundo a qual os proces-
sos históricos não são lineares, sendo que elementos modernos e
atrasados se articulam de maneira diversa em diferentes situações e
experiências. Também considera que a conjuntura precisa ser discu-
tida como um momento de um processo histórico de longa duração.
O autor discute a partir dessa perspectiva a instabilidade política e
econômica, os dilemas e a inserção da região no capitalismo global,
em um contexto de acirramento dos conflitos interimperialistas.
No capítulo seguinte, a partir da análise dos processos his-
tóricos do equador e da Bolívia, Leandro Galastre aborda as lutas
étnico-classistas na região no século XXI, tendo como referência a
contribuição de José Carlos Mariátegui. Galastre indica que, his-
toricamente, o movimento indígena foi a espinha dorsal da luta
étnico-classista, em boa parte da Indo-América andina. Foram
esses movimentos e organizações populares que, ao resgatarem
a sua plurinacionalidade e a sua cultura, conseguiram resistir ao
avanço do neoliberalismo e apontar para projetos de autonomia a

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 9


partir dos interesses das classes subalternas, reelaborando propostas
socialistas.
No sexto capítulo, José Luis Valenzuela discute a irrupção na
cena política de massivos movimentos sociais no Chile a partir de
2019, que protestavam contra a degradação das condições de vida
naquele país, indicando o esgotamento do modelo neoliberal forjado
desde a ditadura de Pinochet. Para entender o desfecho desse movi-
mento, que desembocou na convocação de um plebiscito acerca da
Constituição, e os dilemas atuais da sociedade chilena, o autor parte
da discussão das condições socioeconômicas e políticas subjacentes
a explosão de descontentamento social que abalou o país.
Os três últimos capítulos debatem o Brasil. Agnaldo dos Santos
procura demonstrar uma situação inusitada: ao mesmo tempo que
o projeto “pós-neoliberal” da esquerda latino-americana entrou em
crise, também o projeto neoliberal típico não conseguiu entregar o
que prometeu. Tal situação abriu espaço à eleição de um governo de
feições autoritárias no Brasil, com Jair Bolsonaro. Mas mesmo com
a onda conservadora de 2018, o ritmo econômico continuou lento
em 2019 e se agravou com a pandemia em 2020, afetando a popu-
laridade do governo, ainda que mantendo uma aprovação maior do
que se esperava nessas condições. É uma situação de “crises justa-
postas”, que convivem simultaneamente, sem apontar um desfecho
claro para o próximo período.
Francisco Corsi discute os impactos da pandemia na economia
brasileira, assumindo uma perspectiva de longo prazo. Também con-
sidera que ela só pode ser entendida como parte da economia mun-
dial. Para o autor, a economia brasileira apresenta, desde a década
de 1980, uma tendência de baixo crescimento, reforçada recente-
mente pela severa recessão 2015-2016, pela fraca recuperação que
se seguiu e pela tendência depressiva da economia mundial depois
da crise de 2008. A pandemia de COVID 19 acarretou uma grave
crise. A política econômica do negacionista e reacionário governo
Bolsonaro, apesar de mitigar os efeitos da recessão, não logrou uma
rápida e consistente recuperação da economia. Os indícios sugerem
que a economia brasileira, nos próximos anos, não terá condições

10 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


de superar a tendência de baixo crescimento, o que implicará, entre
outros problemas, o aprofundamento da deterioração das condições
de vida e trabalho da classe trabalhadora.
Por último, Marina Gusmão de Mendonça e Daniel Campos de
Carvalho abordam as semelhanças existentes entre a conjuntura de
1904, quando, diante de uma grave epidemia, o governo Rodrigues
Alves tentou impor à população do Rio de Janeiro a vacinação obri-
gatória contra a varíola, levando à chamada Revolta da Vacina, e a
situação atual da pandemia de Covid-19, cuja gravidade o presidente
da República, Jair Bolsonaro, nega sistematicamente, assumindo
posturas anticientíficas e mesmo de sabotagem das medidas preco-
nizadas para o enfrentamento da crise, afirmando também que não
aceita a obrigatoriedade de vacinação.
Esperamos, mais uma vez, contribuir (por meio desta publi-
cação) com o debate acerca das condições políticas, econômicas e
sociais do Brasil, do conjunto da América Latina e do mundo, numa
conjuntura que vem apresentando nas últimas décadas contornos
estruturais de crise sistêmica cada vez mais inequívocos.
Boa leitura

Francisco Luiz Corsi


Agnaldo dos Santos
Marina Gusmão de Mendonça

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 11


CAPÍTULO 1

A INSUS TENTÁVEL LE VEZ A


DO C APITALISMO GLOBAL –
O C APITAL DIANTE DE SEUS
LIMITES NO SÉCULO X XI

Giovanni Alves1

Após dez anos da crise de 2008, o capitalismo global encontra-


-se novamente diante de uma profunda recessão global por conta
da pandemia do novo coronavírus. Mas a culpa do desastre econô-
mico do capitalismo global em 2020 não foi apenas da pandemia.
É parte natural do ciclo das economias capitalistas ter recessões.
Entretanto, o problema não diz respeito apenas às recessões das
economias capitalistas, mas sim, à profundidade da queda da ati-
vidade econômica que deve promover efetivamente a explosão de
contradições econômicas, sociais e políticas superiores àquelas que
ocorreram na recessão de 2008. No big crash de 2008 o que salvou
as economias capitalistas desenvolvidas foram os Bancos Centrais
que injetaram trilhões de dólares para salvar o sistema bancário2;

1 Giovanni Alves é professor da UNESP-Marília (Brasil), pesquisador do CNPq e coordena-


dor-geral da RET (www.estudosdotrabalho.org). É autor de vários livros e artigos na área
de sociologia do trabalho, globalização e reestruturação produtiva, entre eles “Trabalho e
subjetividade” (2011) e “O Duplo Negativo do Capital: Ensaio sobre a crise do capitalismo
global” (2018). Seu ultimo livro intitula-se “As contradições metabólicas do capital: crise
ecológica, envelhecimento e extinção humana” (Praxis, 2020) E-mail: alvesgiovanni61@
gmail.com
2 Em 2008, a quebra do Lehman Brothers tornou-se marco da crise que levou EUA e Europa
a injetarem trilhões no mercado para evitar derrocada mundial, como a de 1929. Leia-se

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 13


e depois, foi aplicada uma política de afrouxamento monetário
visando a recuperação das economias capitalistas (a estratégia do
quantitative easing)3. Decorridos dez anos da crise de 2008, perce-
be-se que o maior problema das economias capitalistas mais desen-
volvidas é o alto endividamento do setor público e do setor privado4.
Apesar da estratégia do quantitative easing, as economias centrais
não conseguiram ter crescimento sustentável e diante das amea-
ças de desaceleração e inclusive, recessão, cresceu o temor de novo
crash financeiro num cenário “explosivo”: os Bancos Centrais não
têm mais ferramentas monetárias para realizar injeções de dinheiro
na economia tal como fizeram em 2008 (para além do quantitative
easing, os bancos centrais têm utilizado as políticas de taxas de juros
negativas ou NIRP, sigla em inglês – “Negative Interest Rate Policy”)
para fazer o dinheiro circular e deste modo, reanimar as economias
endividadas.5
Mas, como temos salientado, a crise do capitalismo global
desde 2008, pelo menos, diz respeito a seus fundamentos materiais:
a crise estrutural de lucratividade por conta da pressão histórica da

a reportagem “Após crise global estourar em 2008, bancos receberam socorros bilioná-
rios”, O Globo, 05/08/2014. https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/apos-crise-
-global-estourar-em-2008-bancos-receberam-socorros-bilionarios-13495994. Acesso em
06/11/2019.
3 Quantitative easing (QE), conhecido também como flexibilização quantitativa, afrouxa-
mento quantitativo ou política de harmonização financeira quantitativa é uma ferramenta
de afrouxamento monetário que visa a criação de quantidades significantes de dinheiro
novo eletronicamente, por um banco, mas autorizado pelo Banco Central, mediante o
cumprimento das normas de percentuais pré estabelecidos. É um jargão para uma ação de
política monetária do Banco Central. Os bancos centrais utilizam-se desta estratégia há
muito tempo e mantém a sua prática como forma de reanimar a economia sem precisar
confeccionar o dinheiro físico, mas só a partir das recessões de início dos anos 2000, no
Japão, e da Crise do subprime, nos EUA, que esta medida se tornou expressiva.
4 Verificamos hoje no capitalismo global um nível de endividamento jamais visto desde a
Segunda Guerra Mundial que ameaça inocular o veneno da próxima crise. Eis a manchete
do El País: “Bomba da dívida mundial ameaça explodir”. https://brasil.elpais.com/bra-
sil/2018/06/08/economia/1528478931_493457.html
5 “Negative Interest Rate Policy (NIRP) Definition”. In: https://www.investopedia.com/
terms/n/negative-interest-rate-policy-nirp.asp. Ou ainda, para maiores esclareci-
mentos sobre tal estratégia da economia capitalista: https://www.nexojornal.com.br/
expresso/2019/10/14/Por-que-h%C3%A1-pa%C3%ADses-com-juros-negativos.

14 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


composição orgânica do capital. Na medida em que não existem
perspectivas de lucratividade, reduz-se o investimento produtivo e
a massa de capital-dinheiro desloca-se para a esfera da especulação
financeira. Apesar do significativo aumento da Taxa de Exploração
e do novo salto tecnológico da Quarta Revolução Industrial, a Taxa
de Lucro não se recuperou de forma sustentável numa proporção
capaz de propiciar o desenvolvimento das economias capitalistas. A
financeirização da riqueza capitalista não opera efetivamente como
movimento contratendencial à queda da taxa de lucro, mas apenas
desloca as contradições do sistema. É provável que na década de
2020, iremos presenciar o esgotamento da estratégia de financeiri-
zação no deslocamento das contradições do capital.
Desde 2018, há pouco mais de dez anos do big crash, as eco-
nomias dos países capitalistas centrais se desaceleram, indicando a
inversão do pequeno ciclo de crescimento que começou em 2017. De
2010-2014 temos um primeiro ciclo de crescimento das economias
centrais. Entretanto, logo tiveram uma desaceleração e queda, sem
se configurar como recessão, que durou até 2016, voltando a cres-
cer em 2017, mas não se sustentando, indicando uma desaceleração
em meados de 2018, com perspectiva de recessão global. O que se
verifica desde 2008, são períodos curtos e insustentáveis de cresci-
mento, seguidos de desacelerações e quedas que ameaçam uma nova
recessão.
Por exemplo, leia-se o Gráfico 1 que demonstra a instabilidade
da produção industrial diante da crise do capitalismo global. A pro-
dução industrial é bom indicador das perspectivas de crescimento
da economia. Neste Gráfico, vemos que os EUA têm uma recupe-
ração da produção industrial no começo de 2016, crescimento que
prossegue até meados de 2018. Dentre as economias desenvolvidas,
os EUA apresentam a melhor performance da produção industrial
neste ciclo de crescimento pós-crise de 2008 (inclusive superior à
China, que no começo de 2015 tem uma queda significativa, vol-
tando-se a recuperar no começo de 2016, tal como a economia nor-
te-americana. Entretanto, a produção industrial da China recupe-
ra-se de forma errática, começando a cair novamente no começo

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 15


de 2018. A produção industrial da Alemanha mantém-se crescendo,
oscilando pequenos ciclos de altas e baixas, desde o começo de 2015
até o começo de 2018, quando verificamos uma queda abrupta,
seguindo a queda da produção industrial da China. De certo modo,
no começo de 2018, a produção industrial cai em todos os países
capitalistas desenvolvidos, principalmente na China, com impactos
no crescimento do PIB chinês que caiu de forma significativa6.

Gráfico 1
Produção Industrial

(*) França, Itália, Holanda e Espanha


Fonte: FMI, WORLD ECONOMIC OUTLOOK, Growth Slowdown, Precarious Recovery,
2019

Façamos um alongamento da perspectiva de desenvolvimento


do capitalismo mundial, pelo menos desde 1979. Os dados são do
Fundo Monetário Internacional (FMI). Verificamos que, numa pers-
pectiva de longa duração – pelo menos quarenta anos – de desenvol-
vimento do capitalismo global, o mundo tem oscilado altas e baixas
taxas de crescimento e queda do PIB. A linha azul demonstra uma
leve inclinação para baixo com uma queda abrupta em 2008 – o ano

6 “Economia da China cresce 6,6% em 2018; taxa é a menor desde 1990”, In: https://g1.globo.
com/economia/noticia/2019/01/21/economia-da-china-cresce-66-em-2018.ghtml. Acesso
em 06/11/2019.

16 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


do crash financeiro global. A linha vermelha, que indica a evolução
do PIB das economias desenvolvidas, o núcleo orgânico do capita-
lismo global, apresenta-se mais rebaixada ainda, descolando-se (para
baixo) da linha azul, que indica a evolução do PIB mundial, no ano de
2000. Isso pode ser explicado pelo ciclo exuberante de crescimento da
China, que deve ter elevado o crescimento do PIB mundial.
Verificamos isso no caso da evolução das economias emergen-
tes e em desenvolvimento, que a partir de 2000, tem um salto de
crescimento do PIB, sendo a China responsável por isso até o crash
de 2008, quando todas as economias do mundo caem e a partir de
2010, recuperam-se num patamar rebaixado. Mas o que interessa
demonstrar neste Gráfico 2 é a operação de tendência de queda da
taxa de lucratividade pelo menos nos trinta anos de capitalismo
global, operando com vigor – nos países centrais do capitalismo
global – e de forma “contida” na China onde a lei do valor opera
sob restrições. Mesmo assim, devido os vínculos orgânicos da China
com o mercado mundial, a economia chinesa não deixa de ser afe-
tada pelo movimento de crise do capitalismo global.

Gráfico 2
Crescimento do PIB
(1970-2010)

Fonte: FMI, Global Economic Slump Challenges Policies, 2009.

O Gráfico 3 apresenta a evolução da produção industrial,


volume do comércio mundial e a tendência das ordens de compra

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 17


da Manufatura global no que diz respeito à economia global. Nesse
caso, incluem todos as economias do mundo. Verificamos a evolu-
ção descrita no Gráfico 1. No que diz respeito à produção industrial
verificamos com clareza, um decrescimento até começo de 2016 a
partir do qual a produção industrial volta a crescer e começa a cair
novamente no começo de 2018. O volume do comércio mundial
acompanha a produção industrial, alcançando altos níveis e tendo
uma queda abrupta em meados de 2018 por conta da guerra comer-
cial entre a China x EUA.
O indicador de tendência das compras de manufatura acom-
panha a produção industrial e volume do comércio mundial, indi-
cando um rebaixamento em meados de 2017 e uma queda abrupta
no começo de 2018. Todos os indicadores indicam uma desacele-
ração abrupta da economia global por conta de elementos contin-
genciais (guerra comercial China x EUA, Brexit, etc.) e elementos
de fundo com respeito a indicadores de endividamento global com
riscos sistêmicos e ainda, elementos estruturais, que temos salien-
tado como sendo a taxa de lucratividade rebaixada e com dificul-
dades de aumentar por conta da pressão da composição orgânica
do capital.

Gráfico 3
Produção Industrial, Comércio Mundial e Tendência da Manufatura
- Economia Global -

18 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Fonte: FMI, WORLD ECONOMIC OUTLOOK, Growth Slowdown, Precarious Recovery,
2019

Vejamos a taxa de lucro dos EUA, a economia capitalista domi-


nante do núcleo do capitalismo global e que observamos seus ciclos
de queda, recuperação e crescimento no que diz respeito a produção
industrial no Gráfico 1. Na medida em que cresce a economia dos
EUA exerce um efeito no Japão e União Europeia e inclusive América
do Sul. As dificuldades na lucratividade nos EUA sinalizam proble-
mas também em outros países do mercado mundial. O Gráfico 4
apresenta a evolução da lucratividade nos EUA desde o pós-guerra,
demonstrando uma evolução descendente que oscila altos e baixos
com ligeira inflexão para cima a partir de 2000 – a ascensão do capi-
talismo global – e uma oscilação para baixo em 2015.

Gráfico 4
Taxa de Lucratividade (EUA)
(1946-2018)

Fonte: Carchedi e Roberts (2018)

O Gráfico acima apresenta medidas da taxa de lucro nos EUA


baseadas em custos históricos (CH) e atuais (CA). O que isso mostra
é que a medida de custo atual atingiu seu ponto baixo no início dos
anos 1980 e a medida de custo histórico não o fez até o início dos

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 19


anos 1990. O que explica a diferença entre a medida da taxa de lucro
pelo custo histórico e o custo atual é a inflação. Se a inflação estiver
alta, como ocorreu entre os anos 1960 e o final dos anos 80, a diver-
gência entre o custo histórico e o custo atual da medida da taxa de
lucro será maior. Quando a inflação cai, a diferença nas mudanças
entre as duas medidas de CH e CA diminui. De 1965 a 1982, a taxa
de lucro dos EUA caiu 20% pela medida do custo histórico: ou 35%
pela medida do custo atual. De 1982 a 1997, a taxa de lucro dos EUA
aumentou apenas 9% (pelo custo atual), ou aumentou 29% (pelo
custo atual). Mas durante todo o período do pós-guerra até 2018,
houve uma queda secular na taxa de lucro dos EUA (pela medida
do custo histórico de 30% e pela medida do custo também de 30%!).
Como observou Michael Roberts:

Os dados confirmam a explicação de Marx sobre as ten-


dências da lucratividade. Segundo Marx, as mudanças na
lucratividade dependem do movimento relativo de duas
categorias do processo de acumulação do capital: (1) a
composição orgânica do capital (c/v); e (2) a taxa de mais-
-valia (ou taxa de exploração) (m/v) – onde c é o capital
constante; v, o capital variável; e m, a massa de mais-valia.
Desde 1965, houve um aumento secular na composição
orgânica do capital (medida pelo custo histórico) de 60%,
enquanto o principal elemento contratendencial à queda
da taxa de lucro - a taxa de mais-valia - caiu mais de 9%.
Então a taxa de lucro caiu 30%. Inversamente, no chamado
período “neoliberal” de 1982 a 1997, a taxa de mais-valia
aumentou 16%, mais do que a composição orgânica do capi-
tal (11%); então a taxa de lucro aumentou 9%. Desde 1997,
a taxa de lucro dos EUA caiu cerca de 5%, porque a compo-
sição orgânica do capital aumentou quase 17%, superando
assim, o aumento da taxa de mais-valia (4%). 7

Desde 2011, a China reduziu o ritmo de seu crescimento, afe-


tando o crescimento do PIB de países que dependem de exportações

7 ROBERTS, Michael. “US rate of profit measures for 2018”. In: https://thenextrecession.
wordpress.com/2019/11/04/us-rate-of-profit-measures-for-2018/. Acesso em 06/11/2019.

20 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


de commodities (como o caso do Brasil). Na verdade, embora tenha
crescido 10,6% em 2010, reagindo à queda de 2008 e 2009 (9,7% e
9,4%), a partir de 2011, o PIB da China começa a decrescer (9,5 em
2011; 7,9 em 2012; 7,8 em 2013; e 7,3 em 2014), afetando por exemplo
o Brasil e os países dependentes da venda de commodities (a queda
lenta e persistentes do ritmo de crescimento da segunda maior eco-
nomia do mercado mundial, continuaria nos anos seguintes: 6,9%
em 2015; 6,7% em 2016; 6,8% em 2017 e 6,6% em 2018. A guerra
comercial com os EUA e a desaceleração do PIB de parceiros comer-
ciais por conta da crise do capitalismo global, da qual faz parte a
China, explicam o mais baixo índice de crescimento do PIB nos
últimos 27 anos).

Gráfico 5
Crescimento da China – PIB
1990-2018

Fonte: FMI Apud https://pt.countryeconomy.com

No decorrer da década de 2010, as economias dos países da


América Latina acompanharam a desaceleração da economia
global, tendo como principal referência a desaceleração da econo-
mia da China. A construção do modelo de desenvolvimento a partir

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 21


da exportação de commodities8 , e não pela produção industrial com
maior valor agregado, vulnerabilizou as experiências de desenvol-
vimento social na América latina (como, por exemplo, a Venezuela,
Argentina e Brasil). O Gráfico abaixo nos mostra a queda dos preços
de commodities que afetou as economias latino-americanas a partir
de 2011 e que corresponde com a desaceleração do crescimento da
economia chinesa.

8 “A palavra inglesa “commodity” significa simplesmente mercadoria. Mas no mercado o


termo se refere a produto básico, em estado bruto ou com baixo grau de transformação.
São mercadorias com pouco valor agregado e quase sem diferenciação - que podem, por-
tanto, ser negociadas globalmente sob uma mesma categoria. Minério de ferro, madeira,
carne e frango “in natura” e petróleo são algumas das mais comercializadas. O frango in
natura produzido no Brasil e exportado para o mundo todo é uma commodity. Já produ-
tos feitos a partir dele, como nuggets e salsichas, não. O que faz um nugget deixar de ser
commodity é seu grau de processamento. Não é commodity por ser diferenciado. Esses
produtos são divididos em agrícolas e minerais. Os agrícolas englobam culturas como
soja, milho, algodão, açúcar. Os minerais vão desde o minério de ferro até o petróleo,
passando pelo cobre e o ouro. As commodities representam 65% do valor das exporta-
ções brasileiras, segundo levantamento de 2014 da Conferência das Nações Unidas so-
bre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). As dez primeiras posições no ranking do
MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior) de produtos mais
exportados são ocupadas por commodities. Com a exportação de commodities represen-
tando 6,8% do PIB brasileiro (UNCTAD, 2014), a queda dos preços e a redução da deman-
da chinesa a partir de 2011 colaboraram para que os resultados na economia se deterio-
rassem”. Apud “As commodities e seu impacto na economia do Brasil”. In: https://www.
nexojornal.com.br/explicado/2016/03/31/As-commodities-e-seu-impacto-na-economia-
do-Brasil. Acesso em 07/11/2019.

22 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Gráfico 6
Índice de Preços de Commodities
2012/2013 média = 100

Fonte: Reserve Bank of Australia (https://www.rba.gov.au/chart-pack/commodity-


-prices.html)

O caso do Brasil é o exemplo trágico: enfrentou a maior reces-


são da história em 2015-2016, em parte provocada pelas medidas
de austeridade neoliberal adotada pelo ministro Joaquim Levy
(governo Dilma); e depois, de 2017-2018, com a política hiperliberal
do ministro Henrique Meirelles (governo Temer) e a continuidade
da crise política e social, a economia brasileira permaneceu estag-
nada, perdendo, nesse período, o momentum de crescimento das
economias desenvolvidas (iremos tratar disso na Aula 8).
Como vimos, diante da crise de lucratividade, o movimento do
capital opera como principal contratendencia, o aumento da Taxa de
Exploração e/ou a desvalorização do capital constante. Como vimos,
nos EUA, desde meados da década de 1960 verifica-se o aumento
secular na Composição Orgânica do Capital (COC) que tem pressio-
nado para baixo a Taxa de Lucratividade nos EUA. Entretanto, para
operar o movimento contratendencial, o principal recurso tem sido
o aumento da Taxa de Mais-Valia (ou Taxa de Exploração). Caso a
COC cresça e a Taxa de Mais-Valia não acompanhe o crescimento,

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 23


a Taxa de Lucro deve cair – foi o que vimos acima. Nos EUA, o neo-
liberalismo da década de 1980 contribuiu para aumentar a Taxa de
Mais-Valia, que cresceu mais do que a COC, elevando, deste modo,
a Taxa de Lucro das empresas. Pelos dados de Michael Roberts, de
1982 a 1997, a Taxa de Mais-Valia aumentou 16%, mais do que a
Composição Orgânica do Capital (COC) (11%), então a taxa de lucro
aumentou 9%. Entretanto, diz ele, para que a Taxa de Lucro conti-
nuasse aumentando, era necessário que a Taxa de Mais-Valia cres-
cesse acima do aumento da COC, o que não ocorreu. Não é que a
Taxa de Exploração não tenha aumentado, mas o aumento da COC
foi maior. Portanto, a crise do capitalismo global se desenvolve num
cenário histórico em que o capital precisa fazer a Taxa de Exploração
aumentar mais do que o crescimento da COC – o que deve ser bas-
tante improvável.
A questão que se coloca é saber em que medida a Quarta
Revolução Industrial vai contribuir para o aumento da COC nos
próximos anos (ou décadas), colocando a necessidade do capital
aumentar a Taxa de Exploração num patamar superior ao aumento
da COC. O desenvolvimento da gig economy (economia de bicos) e
o novo patamar de precarização estrutural do trabalho visam rea-
lizar tal necessidade da acumulação de capital. Ao mesmo tempo,
o capital pode efetuar um movimento de desvalorização do capital
constante por meio da renovação tecnológica das empresas (o que
vai exigir maior capacidade financeira delas).
A necessidade do aumento da Taxa de Exploração (ou da Taxa
de Mais-Valia) é o que explica a precarização estrutural do trabalho
no capitalismo global. A disseminação da superexploração do tra-
balho para além do capitalismo dependente é outro movimento do
capital visando aumentar a Taxa de Exploração. Tanto a exploração,
quanto a superexploração, articulam-se com o tecnocapitalismo e o
novo imperialismo do século XXI, colocando novos elementos da
transfiguração crítica do processo de trabalho e das cadeias de valor
no século XXI.

24 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


A crise de longa duração do sistema do capital

A crise do capitalismo global é expressão da crise de longa


duração histórica marcada por altos e baixos da conjuntura da
economia e da política. Salientamos que a crise estrutural do capi-
tal diz respeito à crise do modo de produção capitalista e crise do
modo de controle sociometabólico estranhado (a relação-capital),
que tem caracterizado secularmente as sociedades humanas de
classe. Portanto, não se trata apenas de uma crise do modo de pro-
dução cujo declínio iniciou-se em meados da década de 1970 com
a primeira grande recessão global do capitalismo do pós-guerra.
O capitalismo global representa a forma histórica no interior da
qual se desenvolve o declínio do capitalismo como modo de pro-
dução. Trata-se de um processo de longa duração histórica que
deve percorrer o século XXI. Não se trata apenas do declínio do
capitalismo como modo de produção, mas o colapso das formas da
relação-capital como regulação sociometabólica. Aprofundou-se o
estranhamento social na forma de fetiches (fetichismo da merca-
doria, fetichismo do Estado, fetichismo da Técnica, etc) e assis-
timos o progressivo colapso ambiental no que diz respeito à
relação homem x natureza e homem x homem. Portanto, não se
trata apenas de crise do capitalismo, sim a crise do capital como
forma histórica, colocando em risco, pela primeira vez na história
da humanidade, a própria existência do homem como espécie no
planeta Terra (nenhuma crise do modo de produção adquiriu tal
radicalidade histórica).
A crise do capitalismo global contém em si como elemento de
fundo estrutural o desenvolvimento de tendências indicadas por
Marx na sua crítica da economia política. Identificamos a crise do
capitalismo como tendo como um dos seus elementos compositivos,
a crise estrutural de lucratividade (como salientamos acima).
Resgatamos uma interpretação ortodoxa da crise capitalista na
perspectiva de Marx e Engels. Existem uma controvérsia entre mar-
xistas sobre o significado da categoria da queda da taxa de lucro no
desvendar da natureza da crise capitalista. Vários autores marxistas

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 25


não apenas negam a lei do valor mas negam a interpretação da crise
pela lei de queda tendencial da taxa de lucro. Entretanto, nas últimas
décadas, verificou-se um acúmulo de evidências históricas da ação
da lei tendencial de queda da taxa de lucro. O debate marxista enri-
queceu-se nas últimas décadas ao mesmo tempo que o capitalismo
expõe sua incapacidade de crescer. Afirma-se o que autores neokey-
nesianos denominam de estagnação secular – no caso dos EUA. Tais
evidências históricas representam na nossa perspectiva, a operação
de longa duração da lei tendencial de queda da taxa de lucratividade.
Inclusive afirmamos que existe uma “crise estrutural” no sen-
tido de que fechou-se a possibilidade do capitalismo como modo de
produção repetir ciclo de crescimento e bem-estar como ocorreu no
século XXI. As dificuldades de valorização do capital que se expõem
como crises financeiras são dificuldades estruturais. O capitalismo
como modo de produção está “afetado de negação” – utilizando a
linguagem dialética (nunca a lógica dialética foi tão indispensável
para apreender o sistema social em sua etapa de crise estrutural).
Como diria Marx, ocorre num patamar de maior densidade histó-
rica, a suprassunção do capitalismo no interior do próprio capita-
lismo (suprassunção como negação, superação e conservação).
Temos utilizado o conceito de “duplo negativo do capital” para
explicar a crise estrutural do capitalismo global. Ele diz respeito,
por um lado, à crise estrutural da lucratividade; e, por outro lado,
à desmedida do valor (o movimento de expansão do capital tende
a suprassumir as bases de sua própria valorização). O duplo nega-
tivo do capital tem sido intensificado pelo tecnocapitalismo ou as
mudanças tecnológicas em curso que aumentar a produtividade do
trabalho.
As alterações tecnológicas na composição orgânica do capital são
de fundamental importância para apreender os elementos de fundo
que determinam o desenvolvimento do sistema de produção de mer-
cadorias e acumulação de mais-valor. Portanto, o duplo negativo ou
o duplo movimento que afeta de negatividade o movimento do capi-
tal e seu modo de produção, aparecem na nossa exposição como a

26 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


dimensão da objetividade que, por si só, não é suficiente para vislum-
bramos a efetividade da crise do capital no sentido pleno da palavra.
A ação histórica da luta social e política das classes é elemento
de necessidade, pois a história é feita pelos homens, embora sob
determinadas condições. Mas a ação histórica ocorre dentro de
limites materiais, pois não dependem só da vontade política dos
agentes, embora se possa construir fantasias e ilusões, logo negadas
pelo movimento objetivo da economia política.
Perguntemos: diante do movimento do “duplo negativo” como
deve operar a luta de classes? Quais as questões políticas e sociais
que devem se expressar como telos do movimento das massas do
proletariado no século XXI?
O duplo negativo do capital opera com contradições candentes
na medida em que se desenvolve o tecnocapitalismo. Temos salien-
tado que o movimento de mudança tecnológica na produção tende
a corroer as bases da própria valorização do capital. Mas além da
intensificação das mudanças tecnológicas, inclusive como forma de
desvalorização do capital constante, explicita-se, cada vez mais, no
século XXI, a disputa política acirrada pelo fundo público (o espaço
do Anti-valor), a partir das quais se constituem as reivindicações
candentes da massa do proletariado por conta da crise social decor-
rente da expansão da “nova precariedade salarial” (a luta pelos direi-
tos trabalhistas, sociais e previdenciários); da crise demográfica,
tendo em vista o envelhecimento da população mundial e a necessi-
dade de serviços de saúde e educação de novo tipo; e da crise ecoló-
gica na medida em que avança o colapso ambiental e a necessidade
de acolhimento das vítimas do aquecimento global.
No decorrer do século XXI, deve-se ampliar a crise da demo-
cracia liberal, aprofundada como crise de legitimidade do poder
político do capital. O capital deve acirrar o poder da ideologia e
expandir a manipulação social e novos processos de subjetivação
alienada visando retardar/bloquear a formação da consciência crí-
tica das massas de proletários. Devem surgir formas de “Estado
de exceção”. Podemos dizer que o “Estado de exceção” é o Estado
capitalista do século XXI cujo fundo público foi desativado como

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 27


elemento de legitimidade política, apelando para dispositivos de
repressão policial ou militar (necropolítica). Deve se aprofundar a
crise de representatividade política das massas, dificultando o enca-
minhamento de saídas políticas para problemas estruturais no inte-
rior da “ordem democrática”. Mas a crise do capital deve se deslocar
para dentro do próprio Estado, na medida em que o Estado político
é o Estado do capital no interior do qual devem ocorrer a luta de
classes como luta de vida e morte (aprofundamento da crise social e
conflitos políticos complexos nas várias “democracias capitalistas”).
Os limites da financeirização como forma de deslocamento das
contradições do capital se expõe na medida em que as crises finan-
ceiras se tornam ameaças para a sobrevivência do próprio sistema
de poder do capital. Os movimentos de contenção do capital fictício
devem aprofundar a crise do capitalismo senil, pois o sistema será
obrigado a dar resposta às contradições na sua origem (o modo de
produção de valor).
A massa de capital-dinheiro incapaz de autovalorizar-se, deve
provocar o “colapso” da forma-valor, um “colapso” que se prolonga
no tempo-espaço. Na verdade, a forma-valor se encontra “afetada de
negação”. Mas deve ser salientado que o valor é uma relação social
de poder, o que significa que as contradições estruturais do sistema
devem se resolver no plano histórico da luta de classes – mesmo que
isso possa significar sua auto-extinção.
Talvez o impedimento do deslocamento das contradições na
direção da financeirização possa reativar os movimentos contra-
tendenciais clássicos à crise de lucratividade, embora eles manifes-
tem os limites de sua eficácia histórico-social e político-moral (por
exemplo, o aumento da Taxa de Exploração, levando ela a interver-
ter-se em “superexploração”; e o aumento da velocidade de “obsoles-
cência planejada” dos valores de uso, tal como indicou Mészáros no
seu livro clássico “Para Além do Capital” (2003).
Enfim, o capital como valor, na sua etapa de crise estrutural,
defronta-se com seus limites, tendo em vista que os limites fazem
parte da sua própria natureza. O valor – na medida em que se “aco-
plou” ao capital – tornou-se uma forma de ser que desde sempre,

28 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


colocou obstáculos para si, superando-os efetivamente. Entretanto,
diante da sua crise estrutural, o capital como valor em processo,
encontra-se não diante de barreiras – plenamente superáveis – mas
sim, diante de limites que representam o próprio capital como causa
sui (a causa de si próprio).

Referências Bibliográficas
CARCHEDI, Guglielmo (Ed.) and ROBERTS, Michael (Ed.). World in Crisis: A Global Analysis
of Marx´s Law of Profitability. Chicago/Illinois: Haymarket Books, Chicago/Illinois, 2018.

COUNTRYECONOMY. Disponível em: https://pt.countryeconomy.com/ Acesso em 06 de nov.


de 2019

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FMI, Global Economic Slump Challenges Policies, 2009.

HAYES, Adam. Negative Interest Rate Policy (NIRP) Definition. Investopedia, 26 de mar. de
2020. Disponível em: https://www.investopedia.com/terms/n/negative-interest-rate-policy-nirp.
asp.

G1.Economia da China cresce 6,6% em 2018; taxa é a menor desde 1990, G1, 21 de jan. de 2019.
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/01/21/economia-da-china-cresce-
66-em-2018.ghtml. Acesso em 06 de nov. de 2019.

O GLOBO. Após crise global estourar em 2008 bancos receberam socorros bilionários. Acervo
O Globo 05 de Ago. de 2014. Disponível em:

https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/apos-crise-global-estourar-em-2008-bancos-
receberam-socorros-bilionarios-13495994. Acesso em 06 de nov. de 2019.

RESERVE BANK of AUSTRALIA, https://www.rba.gov.au/chart-pack/commodity-prices.html.

ROBERTS, Michael. US rate of profit measures for 2018. Michael Roberts Blog. 4 de Nov de
2019. Disponível em:

UNCTAD. Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. UNCTAD,


2014.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 29


30 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA
CAPÍTULO 2

A S ELEIÇÕES DOS EUA 2020


E OS IMPAC TOS REGIONAIS
NA AMÉRIC A L ATINA 1

Cristina Soreanu Pecequilo2

Tradicional zona de influência dos Estados Unidos, o hemisfé-


rio americano sofre, historicamente, os impactos da política interna
e externa desta nação em suas dinâmicas geopolíticas e econômicas.
Tais impactos são multidimensionais e afetam o contexto e os fluxos
sociais, políticos, econômicos, estratégicos e culturais dos países
latino-americanos. Seja no imaginário, como na prática, o apoio
aos EUA (e dos EUA) a determinadas elites e coalizões de política
doméstica na América Latina impactam o contexto geral da região,
definindo padrões de dependência ou autonomia diante da potên-
cia hegemônica global. Diante deste contexto, as eleições nos EUA
detêm impactos para o presente e as perspectivas do cenário político
da América Latina, dentro do qual o Brasil se encontra.
Em 2020, o pleito presidencial norte-americano esteve pola-
rizado em torno das candidaturas de Donald J. Trump do Partido
Republicano, que buscava sua reeleição, e Joe Biden, do Partido

1 Artigo baseado na apresentação na Mesa “Processos Eleitorais na América Latina” para os


Anais do XX Fórum de Conjuntura. O texto dos Anais foi atualizado, ampliado e concluí-
do em 07 de Fevereiro de 2021.
2 Professora de Relações Internacionais da UNIFESP e dos Programas de Pós-Graduação
em Relações Internacionais San Tiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP e em
Economia Política Internacional da UFRJ. Pesquisadora do NERINT/UFRGS e do CNPq.
E-mail: crispece@gmail.com

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 31


Democrata. Em ambas as campanhas, a América Latina apareceu
de forma incidental, com baixa prioridade. O agravamento da crise
econômica estadunidense e a pandemia do COVID-19, assim como
as polarizações sociais e políticas em torno de temas relacionados a
nacionalismo, gênero e raça foram dominantes. Quando mencio-
nada, a América Latina se encontrava associada a questões securitá-
rias no campo dos direitos humanos, narcotráfico, meio ambiente,
imigração e ideologia. Enquanto Trump procurava enfatizar a
agenda de ameaça relacionada a estas questões, e a necessidade de
uma ação mais sistemática dos EUA contra estes riscos, o caminho
de Biden era o oposto: o discurso da cooperação para o enfrenta-
mento dos problemas comuns.
Estas visões de intervenção e cooperação são representativas
de tendências táticas distintas para o comportamento regional nor-
te-americano, que se encontram inseridas dentro da mesma concep-
ção estratégica sobre a América Latina: a da construção do Sistema
Americano e da Esfera Regional. A origem desta concepção estraté-
gica deriva de uma dimensão estrutural da política externa dos EUA
para o seu espaço geopolítico e geoeconômico3, originária do século
XIX: a Doutrina Monroe (DM, 1823). Assim, os EUA, em relação
à América Latina, visam: a preservação da governança democrá-
tica e da estabilidade regional e a contenção de poderes intrarre-
gionais, de poderes extrarregionais e parcerias multilaterais intra e
extrarregionais.
Do século XIX ao XXI, esta lógica tem prevalecido.
Entretanto, a utilização do termo Doutrina Monroe muitas vezes
causa desconforto pelas implicações políticas que traduz para os
EUA e a região. Este desconforto relaciona-se à percepção de que
as relações EUA-América Latina se basearam em dinâmicas de
intervenção direta e ingerência política da potência hegemônica,

3 Os conceitos de geopolítica e geoeconomia aqui utilizados referem-se às concepções de


Blackwill and Harris (2016): a geopolítica corresponde à capacidade de domínio e projeção
dos recursos físicos por parte de um Estado, enquanto a geoeconomia relaciona-se à utili-
zação e instrumentalização de mecanismos comerciais e financeiros para a consolidação
do poder.

32 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


acentuando assimetrias. Isso elevaria uma percepção de submissão
da América Latina aos EUA, o que, para muitos, poderia obscure-
cer a luta pela autonomia regional. Igualmente, argumenta-se que
a repetida utilização do termo poderia dificultar alternativas de
cooperação potenciais ou mesmo apagar períodos nos quais essa
agenda prevaleceu no hemisfério americano. Por fim, outra fonte
de desconforto reside na linguagem política aplicada à definição
do intercâmbio diplomático.
Este é um falso debate. Use-se ou não a expressão DM, não
se pode esquecer que a DM não é apenas um conceito teórico ou
elemento de discurso retórico de governos. O que a DM estabeleceu
em 1823 são pressupostos básicos da geopolítica e da geoeconomia
que se referem aos interesses norte-americanos em seu espaço físi-
co-geográfico e que não se alteram ao longo do tempo.
O pressuposto inicial é facilmente perceptível: os EUA são
parte do hemisfério americano e os acontecimentos que se sucedem
nesta região possuem potencial de afetar o país. Segundo, a região
americana é composta de três subsistemas, a América do Norte, da
qual os EUA fazem parte, a América Central e o Caribe, e a América
do Sul, sendo que os dois primeiros causam efeitos ainda mais
diretos ao país devido à proximidade geográfica. Terceiro, se há
uma mudança na correlação de forças nos demais subsistemas aos
quais os EUA não pertencem, e a que também nos referimos como
América Latina, pode ser elevado o potencial de risco para este país.
Alterações no equilíbrio de poder regional causam efeitos na capa-
cidade de projeção norte-americana e podem diminuir sua margem
de manobra local e limitar a consecução de seus interesses.
Quarto, a presença de atores extrarregionais que se tornem pro-
porcionalmente mais atuantes no hemisfério representam ameaça
ao livre trânsito e presença dos EUA na região, afetando o terceiro
fator já apontado: o equilíbrio de forças regional. Esta presença pode
ser estabelecida por meio de relações bilaterais com os países latino-
-americanos ou organismos (e acordos) multilaterais nos quais os
EUA não estariam incluídos.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 33


Todos estes potenciais cenários afetam os interesses dos EUA e
se correlacionam diretamente aos pilares clássicos da DM (i.e a con-
cepção estratégica dos EUA para a América Latina). Como citado,
estes pilares não se alteram ao longo dos séculos visto serem elabo-
rados a partir desta lógica estrutural. Portanto, tendo como pano
de fundo esta concepção estratégica duradoura, objetiva-se verifi-
car como estes elementos se desenrolaram nas eleições presidenciais
dos EUA em 2020. Para dar conta deste desafio, o texto encontra-se
dividido, além desta Introdução em mais três partes: as dimensões
táticas Trump-Biden (2017/2020), os cenários possíveis e as conside-
rações finais.

As Dimensões Táticas Trump-Biden (2017/2020)

No contexto das eleições presidenciais estadunidenses, a


América Latina insere-se na agenda de temas “intermésticos”
(international and domestics). Questões como imigração, tráfico de
drogas, regimes ideológicos “de esquerda” tendem a capturar mais a
atenção do público, à medida que se caracterizam como problemas
que podem ser associados a “inimigos externos” regionais e extrar-
regionais (especificamente China e Rússia), aos fenômenos transna-
cionais (meio ambiente e direitos humanos) e a crises econômicas
(comércio e finanças).
Os dois últimos ciclos de eleição presidencial nos EUA, 2016
e 2020, apresentaram debates político-partidários em torno destas
mesmas linhas. Cabe, portanto, examinar a evolução das posições de
Trump de 2016 a 2020, incluindo um breve balanço de seu governo,
seguindo-se uma análise das propostas de Biden.

A) A Agenda Trump

Analisando a agenda Trump para a América Latina em 2016,


e suas implicações em termos de políticas governamentais, deve-se

34 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


destacar que o discurso regional se encontrava embasado pelas lógi-
cas do America First e do Make America Great Again (MAGA4).
Como destaca Ayerbe (2019),

(...) Donald Trump esboza una retomada de la lógica


intervencionista plasmada en la tradición de la Doctrina
Monroe, en que la perspectiva de coexistencia con la
pluralidad de formas de gobierno tiende a ser substituida
por una apuesta en la eliminación del campo adversario.
(AYERBE, 2019, p. 226)

Em termos práticos, estes temas podem assim ser resumidos:


A.1) A Reativação da Doutrina Monroe; A.2) As Ameaças Ideológicas
de Esquerda; A.3) A Valorização das Parcerias Estratégicas com os
Países-Amigos; A.4) As Relações EUA-México; A.5) Os Fluxos e a
Política Migratória; A.6) Os Riscos Extrarregionais. Analisemos
estes temas e suas sobreposições.

A.1) A Reativação da Doutrina Monroe


Em 2013, o então Secretário de Estado da presidência Obama
John Kerry (2013) anunciou que a DM tinha chegado ao seu término
não se configurando em uma política nem desejada e nem adequada
para definir as relações hemisféricas. Esta afirmação ia de encon-
tro às políticas de Obama com relação à região, na qual se buscara
imprimir uma retórica menos confrontacionista, a cooperação eco-
nômica por meio de tratados bilaterais, a arquitetura do Parceria do
Pacífico (TPP) e a reaproximação com Cuba5. Ainda que políticas de
pressão a governos como o de Hugo Chavéz (1999/2013) e seu suces-
sor Nicolás Maduro (2013 não tenham se alterado substancialmente

4 Em 2020, Trump também inseriu o slogan “Keep America Great Again”, dando continui-
dade a estas mesmas percepções nacionalistas e unilateralistas. As pautas de 2017 foram
sintetizadas na Doutrina Trump, a Estratégia de Segurança Nacional de 2017.
5 Recomenda-se PECEQUILO e FORNER, 2017 para um balanço das ações Obama na
América Latina.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 35


o que se observava era uma agenda menos agressiva e a ampliação
de contatos diplomáticos.
Por sua vez, Trump, desde o início de seu mandato em 2017,
nas figuras do ex-Secretário de Estado Rex Tillerson e de seu suces-
sor Mike Pompeo, seguiu o caminho oposto, reafirmando a pre-
valência dos princípios da DM no trato das relações hemisféricas
(GRAMER; JOHNSON, 2018). A preocupação era dupla: sinalizar
aos governos não alinhados aos EUA que haveria uma presença nor-
te-americana mais direta na região e oferecer apoio aos movimentos
de direita e conservadores na América Latina, visando fortalecer seu
alinhamento aos EUA. No que se refere a estes dois últimos elemen-
tos, no contexto de 2017, o primeiro liga-se à Venezuela e Cuba, e
o segundo, a países como o Brasil (e na época também ao Chile e à
Argentina). Além disso, a reativação da DM passava pela avaliação
de ameaças extrarregionais e temas securitários como imigração e
narcotráfico.
Uma outra dimensão relevante da agenda Trump foi a estra-
tégia simultânea de esvaziamento e instrumentalização das insti-
tuições multilaterais do sistema interamericano, a Organização dos
Estados Americanos (OEA), o Tratado Interamericano de Assistência
Recíproca (TIAR) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID). De acordo com Tokatlian (2020), os EUA fizeram uso deste
sistema, com o apoio, inclusive de países latino-americanos como o
Brasil, para pressionar países locais como a Venezuela, e para isolar
a região (ver itens B e C).
Seja em nível regional ou global, a relação Trump-
Multilateralismo baseou-se com muita frequência nesta dualidade
esvaziamento-instrumentalização. Embora a utilização destes dois
termos possa parecer contraditória, ambos revelam a complexidade
da tática Trump neste campo. Muitas vezes confundida com isola-
cionismo, a postura do Presidente diante das instituições multila-
terais era representativa, na verdade, de uma ação unilateral. Nesta
ação, as instituições, quando úteis, como no caso latino-americano,
eram mecanismos para reforçar a cooptação de aliados e contenção
de países não-amigos de menor poder relativo.

36 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Quando vistas como não úteis, e dentro das quais os EUA
teriam que enfrentar resistências de países com maior poder relativo,
como, por exemplo, a Alemanha dentro da Organização do Tratado
do Atlântico Norte (OTAN), e serem forçados a negociar, eram cri-
ticadas, colocadas de lado ou esvaziadas. Nos casos da Organização
Mundial de Comércio (OMC) e da Organização Mundial de Saúde
(OMS), o America First traduziu-se na não participação nos orga-
nismos, desrespeito a suas regras e saída unilateral, com o não paga-
mento de suas responsabilidades financeiras.
A partir do exame destas diferenças táticas pode-se argumen-
tar que Trump não desejava o fim do multilateralismo em si, mas a
sua repactuação em torno de linhas mais favoráveis aos EUA devido
à diminuição de sua influência devido aos processos de desconcen-
tração de poder mundial6. Processos estes que favoreciam outros
eixos de poder como o das nações emergentes como a China e a
Índia, ou nações desenvolvidas como o Japão e as do bloco europeu
(VISENTINI, 2019). Como aponta Mearsheimer (2019),

(….) orders can comprise institutions that have a regional or


a global scope. Great powers create and manage orders (…)
Unsurprisingly, the great powers write those rules to suit
their own interests. But when the rules do not accord with
the vital interests of the dominant states, those same states
either ignore them or rewrite them. (MEARSHEIMER,
2019, p. 9)

Na América Latina, porém, a prevalência do poder dos EUA


tornava as instituições facilmente manipuláveis e instrumentos
de projeção e interferência não sendo preciso “ignorar ou rees-
crever a ordem” como indica Mearsheimer. Prevalecia portanto, a

6 Para debates ampliados sobre multilateralismo e EUA ver o projeto: CEBRI. 2020.
Conversas Estruturadas do CEBRI https://www.cebri.org/portal/publicacoes/cebri-textos/
conversas-estruturadas-ll-reorientacoes-do-multilateralismo;jsessionid=EA25A2A15F-
40DD722A615A1773FC6C9B. Para um balanço da política externa de Trump recomen-
da-se MAGNOTTA, 2021

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 37


manutenção das instituições como instrumentos úteis para a aplica-
ção da DM quando necessário.

A.2) As Ameaças Ideológicas de Esquerda


A campanha 2016 de Trump caracterizou como ameaças ideo-
lógicas países latino-americanos cujo regime político era conside-
rado de esquerda. Classificados como comunistas e socialistas, no
discurso de Trump estas nações exerciam, como na Guerra Fria
(1947/1989), uma influência negativa no hemisfério.
Para se enquadrar nesta nomenclatura, ser de esquerda era
entendido como exercer uma política declarada ou não declarada
por parte do país de centralização do Estado, controle de empre-
sas estatais, agenda nacionalista de recursos estratégicos e políticas
públicas no campo do bem-estar como saúde, educação, auxílios
alimentação, dentre outros. No campo externo, estes países bus-
cavam parcerias extrarregionais e pautas de autonomia, que eram
vistas como anti-hegemônicas.
Essa definição ampliada permitia alocar não só Cuba e
Venezuela neste campo, mas quaisquer governos de caráter popular
ou progressista com agendas internas e externas similares. Nações
como Bolívia, Nicarágua, Argentina, El Salvador, ou qualquer uma
que não optasse por uma ação de alinhamento aos EUA era con-
siderada ameaça. Deve-se lembrar que o período no qual Trump
assume, e exerce o seu primeiro mandato, é concretamente um de
recuo das forças progressistas na região, que ficaram conhecidas
como “Onda Rosa” na primeira década do século XXI. Portanto, a
homogeneização da região como ameaça era mais subjetiva do que
factual.
A gestão republicana interrompeu, de imediato, a normali-
zação das relações EUA-Cuba que havia sido iniciada por Obama.
Além deste rompimento político, novas sanções políticas e embar-
gos econômicos foram impostos. No caso da Venezuela, somadas às
sanções e embargos observaram-se tentativas sistemáticas de deses-
tabilização do regime de Nicolás Maduro (2013 em diante) e o reco-
nhecimento de Juan Guaidó, líder da oposição, como Presidente.

38 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Na sequência em 2019, diversos países latino-americanos também
reconheceram Guaidó, incluindo o Brasil (as exceções foram Cuba,
Bolívia, Uruguai e México). No restante do mundo, China e Rússia,
parceiros econômicos e estratégicos do governo venezuelano criti-
caram a ingerência dos EUA e mantiveram seu apoio a Maduro. A
UE inicialmente reconheceu Guaidó, e abandonou esta política em
2020. Como indica Sabatini (2020),

Early in his presidency, Trump moved to roll back


some aspects of his predecessor’s easing of the US Cuba
embargo by limiting flights and cruises to the island,
forbidding US travellers from staying in state-owned
hotels once there, and reducing the dollar amounts Cuban-
Americans could send to family and friends in Cuba. The
Trump administration also ramped up pressure on the
government of Nicolás Maduro in Venezuela, at first using
the provisions developed under the Obama administration
to increase targeted sanctions on individuals and impose
financial sanctions on state entities. When, in January
2019, Venezuela’s National Assembly voted to endorse its
speaker, Juan Guaidó, as the country’s interim president
(Maduro’s re-election in 2018 being regarded by Venezuela’s
opposition and much of the international community as
illegitimate), the Trump administration, along with more
than 50 other governments, quickly recognized Guaidó as
head of state. To pressure Maduro to step aside, the White
House stepped up measures against his regime, imposing
an embargo on US trade (with humanitarian exceptions)
with Venezuelan state entities, principal among them
the oil company PDVSA and the oil refiner and retailer
CITGO. While the measures against Cuba were largely
taken unilaterally by the US, its pressure on Venezuela
has been more aligned with the responses of a coalition of
governments in Latin America and Europe, although it has
gone further in terms of sanctions than other countries,
collectively or individually. (SABATINI, 2020, s/p)

Os casos venezuelano e cubano referem-se a agendas históricas


dos EUA na América Latina, e que percorrem todo o século XX,

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 39


alternando fases de cooperação, conflito e ingerência. Neste con-
texto, não se deve encarar a gestão Trump como um ponto fora da
curva, à medida que somente reproduziu ações anteriores. As ten-
sões EUA-Cuba existiram desde a Revolução Cubana (1959), com o
interregno da normalização em Obama (2014/2016). O mesmo se
aplica à Venezuela que, desde a década de 1950, é uma das principais
fornecedoras de petróleo aos EUA. Ambos são representativos de
agendas estruturais, que englobam a lógica da DM, e dos interesses
estratégicos norte-americanos (e que se reflete na agenda de Biden
examinada adiante).
Adicionalmente, Cuba e Venezuela são temas políticos relevan-
tes na agenda doméstica, que impactam no padrão de votação de
estados como a Flórida, que possui uma população latina de viés
conservador (composta de exilados dos regimes cubano e vene-
zuelano7). Com isso, tanto em 2016, quanto em 2020, a questão da
ameaça socialista externa foi associada à interna, sugerindo-se que
estes países estariam influenciando o poder nos EUA. A associação
ia mais além, colocando que estas agendas socialistas estavam sendo
incorporadas pelo Partido Democrata para impor o comunismo aos
norte-americanos.
É preciso deixar claro que estas associações de Trump são
baseadas puramente em uma retórica agressiva e de instrumentali-
zação de fatos. Na prática, nenhuma política do Partido Democrata
pode ser associada a uma agenda similar aos países supracitados, ou
ao histórico do que é o socialismo, mas são temas que causam res-
sonância a um eleitorado mais conservador, nacionalistas e supre-
macista branco da base eleitoral de Trump. Trata-se de uma elevada
simplificação, mas que abre as portas para um discurso de guerra,
intervencionista e protecionista.

7 O Texas possui um eleitorado latino de perfil conservador, mesmo entre hispano-america-


nos residentes legalmente nos EUA, que reflete preocupações mais associadas à proteção
de fronteiras contra imigração ilegal e tráfico de drogas. Enquanto isso Califórnia, Nevada
e Arizona, detém um perfil mais progressista, secular e jovem, cuja maior preocupação é
a sua inserção nos EUA como cidadãos e com novas políticas de imigração. Voltaremos ao
tema no item sobre política de migração. (PEW RESEARCH, 2020)

40 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Ainda que não seja o foco deste texto, é preciso lembrar que
esta retórica de Trump esteve na raiz da mobilização dos grupos
supremacistas brancos que participaram da invasão do Capitólio
nos EUA em 06 de Janeiro de 2021 (dia no qual a eleição de Joe Biden
seria certificada no Legislativo com a contagem final dos votos do
colégio eleitoral8). Ao contestar a legitimidade da eleição presiden-
cial, ao atribuir aos democratas a responsabilidade por uma suposta
destruição do país, Trump elevou as perspectivas de uma guerra
interna. Como resultado, mesmo após sua saída do poder, Trump
converteu-se no único presidente a sofrer dois processos de impea-
chment: o primeiro por tráfico de influência com países estrangei-
ros e o segundo por insurreição que se iniciou em Janeiro de 2021.
(CNN, 2020; USNEWS, 2021)

A.3) A Valorização das Parcerias


Estratégicas com os Países-Amigos
Outro tema recorrente na pauta Trump é o da retórica favorá-
vel a nações que apresentem alinhamentos político-ideológicos aos
EUA. Tais nações são apontadas como modelos a serem seguidos
pelas demais e o seu alinhamento é instrumentalizado em coalizões
que sejam do interesse norte-americano na economia, na estratégia
e em temas sociais conservadores.
Na economia, incluem-se temas como a abertura comercial a
produtos dos EUA (independente de uma recíproca para a diminui-
ção do protecionismo dos EUA), a pressão pela exclusão de outros
parceiros de setores estratégicos (particularmente a China e a dis-
puta pelo mercado do 5G na América Latina) e a quebra de coa-
lizões de países em desenvolvimento em temas como patentes de
medicamentos (que se tornou prioritária no cenário da pandemia
do covid-19), de autonomia e pró-multipolaridade. Nas agendas

8 Para um debate sobre o sistema eleitoral e o cenário pós-Trump recomenda-se o dossiê


“Visões sobre a diplomacia Pós-Trump” publicado pela Revista Austral com artigos de
diversos pesquisadores. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/austral/issue/view/4221/sho-
wToc. Acesso em 10 jan. 2021.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 41


político-sociais, incluem-se a crítica ao multilateralismo, a recusa
em participar de fóruns de negociação, o negacionismo científico
no que se refere à mudança climática, meio ambiente e mais recente-
mente à pandemia, e posturas conservadoras e religiosas no campo
dos direitos humanos (direitos reprodutivos e de gênero são os prin-
cipais alvos).
Um dos casos mais emblemáticos dessa prática foi o do Brasil a
partir da ascensão de Jair Bolsonaro ao Planalto em Janeiro de 2019.
Ainda que sem colher benefícios concretos de seu alinhamento pes-
soal e ideológico com Trump, Bolsonaro e o Ministro das Relações
Exteriores Ernesto Araújo aderiram à retórica anti-globalismo, oci-
dentalista, conservadora em costumes de Trump (ARAUJO, 2017).
Estrategicamente apoiaram a ação anti-Cuba e Venezuela, reprodu-
zindo o discurso da ameaça comunista. No caso venezuelano, um
dos episódios mais emblemáticos foi a visita do Secretário de Estado
Pompeo à Roraima em 2020, em sinal de pressão ao regime Maduro
(UOL, 2020).
Como aponta Casarões (2020), isto levou a uma quebra da tra-
dição diplomática brasileira, e uma agenda de subordinação e con-
cessões sem respaldo. Durante o período Trump, o comércio bila-
teral Brasil-EUA apresentou um recuo significativo, que não pode,
ou deve, ser atribuído unicamente à pandemia: visando atender o
interesse de grupos de interesse no setor do aço, Trump sobretaxou
o aço brasileiro, dentre algumas medidas. O Brasil abriu mão de seu
status de país em desenvolvimento, em nome da entrada na OCDE
(Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico), foi
aventado como potencial membro da OTAN. Houve ainda a assi-
natura de um Protocolo Brasil-EUA, que na verdade se consistia
em um acordo de liberação e facilitação de comércio, mas que foi
apresentado pelo governo brasileiro como um tratado bilateral
(PROTOCOLO ATEC, 2020). Abaixo, o gráfico9 ilustra o recuo da
dimensão comercial:

9 WATANABE, Marta. “Comércio com os EUA caí ao menor nível em 11 anos”. Disponível
em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/10/14/comercio-com-eua-cai-ao-menor-
-nivel-em-11-anos.ghtml. Acesso em 20 out. 2021.

42 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Há de se mencionar as pressões dos EUA para a exclusão da
China do mercado do 5G no Brasil, um tema relevante como citado.
Mesmo com a China hoje sendo o maior parceiro comercial e inves-
tidor do país, o Brasil muitas vezes aderiu a um discurso naciona-
lista, xenofóbico, securitário, incompatível com o caráter produtivo
que estas relações de Cooperação Sul-Sul (CSS) sempre tiveram.
A despeito da troca de presidência nos EUA, no dia 29 de Janeiro
o Ministro Araújo, no Fórum Econômico Mundial de Davos (do
qual o Presidente Bolsonaro não participou), ainda alinhado com
a agenda Trump, criticou a existência de um suposto “tecno-tota-
litarismo global”. Somado a isso relatou o risco do globalismo, dos
modelos de sociedade distintos, sem aludir diretamente à China10.
A pauta diplomática do Brasil, pelo menos até a conclusão deste
texto, continua reproduzindo a agenda Trump mesmo sem Trump
no poder.

A.4) As Relações EUA-México


Em 2016, México e China foram os protagonistas dos ataques
do nacionalismo trumpista definidos como ameaças econômicas,
securitárias e existenciais aos EUA. Seguindo logo de perto o risco

10 GIELOW, Igor. “Brasil e EUA precisam barrar ‘tecno-totalitarismo’, diz Ernesto Araújo
em referência à China”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/01/
brasil-e-eua-precisam-barrar-tecno-totalitarismo-diz-ernesto-araujo-em-referencia-a-
-china.shtml?origin=uol. Acesso em 29 jan. 2021.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 43


sino-mexicano encontrava-se a questão terrorismo e do funda-
mentalismo islâmico, que também seria objeto de ataques em 2016.
Avaliando o México11 especificamente, trata-se de uma relação de
interdependência complexa, e que foi objeto de amplas críticas de
Trump. Ao longo de seu primeiro e único mandato, Trump nego-
ciou estas temáticas com duas administrações mexicanas: Peña
Neto (2012/2018) e Manuel Lopez Obrador (2018 em diante)
Como indicado, o tripé de ameaças era econômico, securitário
e existencial. Na agenda econômica, o foco era a renegociação do
Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), ou o seu
término, à medida que este tratado era apresentado como fonte de
prejuízo ao gerar desemprego e fuga de indústrias. Caso esta rene-
gociação não fosse concluída, Trump prometia dar ao NAFTA o
mesmo destino do TPP: a saída unilateral dos EUA do acordo que,
no caso do TPP, ocorreu em Janeiro de 2017 por meio de ordem
executiva.
Em termos securitários, os dois temas centrais eram a imigra-
ção ilegal e o tráfico de drogas. Como solução para ambos os casos,
eram apresentados o aumento da repressão à imigração e ao narco-
tráfico e a construção do Muro na fronteira EUA-México. Embora
apresentado como um projeto de Trump, o Muro data do governo
George W. Bush (2001/2008), com sua construção iniciada em 2006.
Construção essa que não foi interrompida por Obama. A “novi-
dade” no que se refere ao Muro era a demanda de Trump para que o
México financiasse a sua construção.
Tanto a imigração quanto o narcotráfico correlacionavam-
-se ao último componente do tripé, a ameaça existencial aos EUA,
pois os discursos de Trump associavam ambas as questões a uma
decadência norte-americana. O discurso não é somente naciona-
lista, mas igualmente xenofóbico, pois igualava imigrantes ilegais
e legais, suspendia as políticas de imigração de Obama (ver A.5),
estava em desacordo com regimes de direitos humanos e incluía ini-
ciativas para barrar o uso do espanhol em órgãos e sites do governo

11 Para as relações EUA-México recomenda-se PECEQUILO e FRANZONI, 2019.

44 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


norte-americano. Portanto, a influência mexicana (e hispânica em
geral), era apresentada como nociva.
No que se refere a políticas governamentais, Trump deu conti-
nuidade à construção do Muro, com recursos americanos, devido à
recusa do México em contribuir. O orçamento direcionado ao Muro
foi objeto de inúmeras disputas da Casa Branca com o Legislativo
e envolveu acusações de corrupção ao Executivo por desvio de
fundos, fraudes no levantamento de recursos e superfaturamento de
custos. Um dos envolvidos nestas acusações era Steve Bannon, um
dos principais assessores de Trump, que chegou a ser preso pela acu-
sação, liberado sob fiança e depois perdoado pelo Presidente antes
de sua saída no poder12.
A renegociação do NAFTA, atualmente USMCA (United
States, Mexico, Canada), pode ser concluída durante a gestão Trump
ao longo de 2018/2019, entrando em vigor em Julho de 2020. Os
principais setores afetados foram o de carne e leite (na relação com
o Canadá, que abriu seu mercado aos EUA), e o automobilístico.
Como indicam Franzoni e Carvalho (2020),

O USMCA busca elevar o grau de integração das cadeias


regionais de valor e conter a participação crescente de
produtos chineses (...) o essencial do USMCA são as novas
diretrizes para a indústria automobilística dos EUA. Até
2023, para que o automóvel seja comercializado sem taxas o
valor de conteúdo regional (VCR) passa de 62,5% do custo
líquido para 75%, nas partes essenciais; 70%, nas principais;
e 65%, nas complementares. Se este nível não for atingido,
as vendas estarão sujeitas às medidas tarifárias aplicadas a
produtos de fora do bloco (...) Outra medida (...) é a cria-
ção da cláusula de valor de conteúdo laboral (VCL): 40%
do valor agregado dos veículos leves deve ser produzido

12 Sobre o tema ver G1. 2020. “Steve Bannon, ex-estrategista-chefe de Trump, é preso sob
acusação de fraude”. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/08/20/ste-
ve-bannon-ex-assessor-de-trump-e-acusado-de-fraude.ghtml. Acesso em 20 jan. 2021 e
VALOR ECONÔMICO. “Trump concede perdão a seu ex-estrategista”. Disponível em:
https://valor.globo.com/mundo/noticia/2021/01/20/eua-trump-concede-perdao-a-seu-
-ex-estrategista-chefe-steve-bannon.ghtml. Acesso em 20 jan.2021.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 45


por trabalhadores que ganhem ao menos US$ 16 por hora,
condição atendida apenas por EUA e Canadá. À primeira
vista, a exportação sem tarifas de automóveis produzidos
no México estaria inviabilizada – mesmo com a política de
aumento de salários de López Obrador, o salário mínimo
por hora no setor manufatureiro mexicano é US$ 2,4 (...)
reafirmou os EUA e o Canadá como polos tecnológicos e
o México como plataforma de exportação de bens manu-
faturados trabalho-intensivos, produzidos nas maquilado-
ras e integrados às cadeias regionais de valor. (Franzoni e
Carvalho, 2020, s/p)

Somadas às políticas repressivas na imigração e narcotráfico


à renegociação do NAFTA, Trump alardeava como um sucesso
sua política diante do México. Adicionalmente, o cenário interno
não era propício a estas mesmos temas de 2016 em 2020 devido ao
agravamento da crise econômica pela pandemia e a polarização dos
movimentos sociais internamente. Esta polarização, por uma com-
binação de elevação de tensões domésticas devido a episódios de
violência racial contra a população negra, a repressão ao movimento
Black Lives Matter (BLM) e a exacerbação de Trump de sua base
supremacista branca, diminuíram o foco da imigração hispânica da
campanha e o redirecionaram para estas agendas.
Assim, o México não obteve tanto destaque como “inimigo” dos
EUA na campanha 2020. Em 2020, ainda, o risco fundamentalista
islâmico e do terrorismo esteve em segundo plano. Curiosamente,
estas agendas e as sobre Oriente Médio somente apareceram com
mais destaque, e em suas dimensões geopolíticas, no discurso de
despedida de Trump13 (lembrando que Trump foi o primeiro presi-
dente dos EUA a não estar presente na posse de seu sucessor).

13 TELEGRAPH. 2021. “Donald Trump farewell address in full”. Disponível em: https://
www.telegraph.co.uk/news/2021/01/20/donald-trumps-farewell-speech-full-movement-
-just-beginning/. Acesso em 29 jan. 2021.

46 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


A.5) Os Fluxos e a Política Migratória
Tanto na campanha de 2016 quanto na 2020, a questão interna
e externa relativa à política migratória dos EUA obteve grande des-
taque na agenda Trump à medida que reflete polarizações sociais,
étnicas e raciais bastante e que são decisivas na escolha de eleito-
rados estaduais. Dentre estes California, Arizona, Nevada, Texas e
Florida (ver nota 7), são alguns dos mais relevantes à medida que
possuem uma significativa população de migrantes legais e ilegais e
são impactados por políticas de fronteira e fluxos de pessoas.
As políticas de Trump apelaram a um eleitorado mais conser-
vador (que também é afetado pelas mencionadas questões ideoló-
gicas), visando o desmonte da era Obama e o endurecimento das
políticas migratórias internas e externas.
No que se refere ao desmonte da Era Obama, a política de
Trump revogou a reforma estabelecida em 2014, a Immigration
Accountability Executive Action, que tinha como principais pontos
o reforço de uma política de portas abertas, acompanhada de
um endurecimento das medidas securitárias de prisão, deporta-
ção, remoção e retorno. Em termos securitários, o foco de Trump
era, como mencionado, a construção do Muro na fronteira com
o México, e a limitação de entrada de migrantes no país. A forte
repressão nas fronteiras levou a episódios de separação entre pais e
filhos, em imagens presentes em toda mídia de centros de detenção
para ilegais14. Para a gestão republicana eram medidas tanto puniti-
vas quanto de dissuasão de novos fluxos migratórios.
Embora apresentada de uma forma negativa por Trump por
supostamente permitir a entrada descontrolada de imigrantes, a
premissa das portas abertas era sustentada em duas bases: primeiro
a atração de imigrantes compostos de profissionais ou estudantes
das áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) e,
segundo, a legalização de migrantes que viviam nos EUA de forma

14 Foram inúmeras reportagens sobre o tema, indicando-se esta leitura a título de exemplo
o texto do El País: “Crianças imigrantes relatam maus-tratos, frio intenso e humilhações
em centros nos EUA”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/19/interna-
cional/1531961414_789237.html

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 47


produtiva, ligados a estes setores, ou a quaisquer setores de ativi-
dade econômica, nascidos ou não nascidos em território norte-ame-
ricano. Este segundo ponto visava a legalização de indivíduos que,
na prática, já se encontravam inseridos no país a décadas, mas que
não eram legalizados ou cidadãos. Um dos elementos norteadores
desta política era o Deferred Action of Childhood Arrival (DACA),
também conhecido como Dream Act.
Trump prometia e efetivou o reverso: as portas fechadas a todo
e qualquer imigrante seja de origem hispânica ou de outros países
que foram classificados como ameaças aos EUA, principalmente
Síria e Irã. Esse padrão de tolerância zero levou à suspensão de pro-
cessos de legalização que estavam em andamento e mesmo de vistos
de trabalho e permanência já emitidos. Ao mesmo tempo, os EUA,
em desacordo com regimes internacionais de direitos humanos pas-
saram a dificultar a concessão de status de proteção temporária, a
refugiados e asilo. Além disso, intensificaram a repressão externa e
interna, deportando mesmo indivíduos e famílias que já viviam no
país a décadas e com contribuições diretas a comunidade. (PIERCE,
2019; POPE, 2020)
Estes padrões se mantiveram estáveis durante toda a gestão
Trump e foram explorados em 2020 mais uma vez como forma de
mobilizar a base eleitoral mais radical, nacionalista, xenofóbica e
conservadora republicana. Por outro lado, trouxeram um custo a
Trump em meio ao eleitorado hispânico moderado, que foi afetado
pelo endurecimento das políticas de migração, em particular as sus-
pensões dos processos de legalização e cidadania relativos ao DACA.

A.6) Os Riscos Extrarregionais


Ainda sobre a pauta Trump de campanhas 2016/2020 e de
governo, o último elemento a ser mencionado é o relativo aos riscos
extrarregionais. Tanto regional quanto globalmente a China é a
principal ameaça. A presença chinesa no hemisfério tem sido reco-
nhecida como um dos grandes desafios da política externa norte-a-
mericana e é uma temática que antecede Trump. Autores como Ellis
(2009;2014), já indicavam seus riscos geopolíticos e geoeconômicos

48 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


no início do século XXI, que é produto das transformações do sis-
tema de relações internacionais chinês em direção a maior assertivi-
dade15 e do vácuo regional de poder estadunidense durante a gestão
de W. Bush (2001/2008).
Somada à ameaça chinesa, Trump igualmente procurou ressal-
tar os riscos representados pela Rússia e o Irã, tendo como foco a sua
parceria com a Venezuela. As parcerias bilaterais da Venezuela com
a Rússia, a China e o Irã, tem componentes defensivos que buscam
suprir a presença dos EUA no país e burlar suas sanções e embargos.
Três setores destacam-se: petrolífero, militar tradicional e tecnolo-
gia nuclear. A presença russo-iraniana, contudo, é mais restrita à
Venezuela e tem menos implicações regionais do que a chinesa.
Sendo a China a principal ameaça, ao longo de seu governo,
Trump iniciou uma guerra comercial-tecnológica com este país em
larga escala, além de manter e aprofundar processos de militariza-
ção na Ásia Pacífico. Como aponta Mearsheimer (2019), as relações
EUA-China representam o núcleo das interações que definirão
o futuro do equilíbrio de poder mundial. A presença chinesa na
América Latina é apenas um dentre os muitos desafios que este país
impõe à hegemonia estadunidense.
Finalizando a agenda Trump, é preciso fazer referência ao docu-
mento “Overview of Western Hemisphere Strategic Framework”
(THE WHITE HOUSEa, 2020), no qual o governo Trump estabe-
leceu cinco pilares estratégicos para o hemisfério americano (e que
reforçam os elementos aqui apresentados): segurança do território
americano (tendo como prioridades os temas da imigração, drogas,
crime organizado e o aprofundamento das parcerias com as forças
armadas de países latino-americanos); promoção do crescimento
econômico e dos mercados livres; reafirmação do compromisso da

15 A política do desenvolvimento pacífico e harmonioso (DPH) leva à China a intensificar a


sua agenda de Cooperação Sul-Sul (CSS) em uma estrutura ganho-ganho durante a pri-
meira década do século XXI. Regiões como a África e a América Latina passam a ser
prioridades neste processo, por terem sido marginalizadas pelas grandes potências oci-
dentais no pós-Guerra Fria e por suas vantagens comparativas em termos de produção de
commodities minerais e alimentares. No governo de Xi Jinping, o DPH será substituído
pela “busca de conquistas” (striving for achievements).Ver ZHU, 2013.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 49


região com a democracia e a legalidade; a contenção da agressão eco-
nômica e da influência política maligna (entendida como a presença
político-econômica-estratégica da China16 na região); e a expansão
e fortalecimento da comunidade de aliados regionais (definidos
como like minded partners, com identidade ideológica alinhada aos
EUA de Trump, de extrema direita e ultraconservadora). Somados,
estes componentes representam o que Cepik (2019) definiu como o
Corolário Trump à Doutrina Monroe, que

(...) mescla retórica anticomunista, valores sociais neofas-


cistas e interesses patrimoniais e tecnocráticos. Seu método
político (chamemos assim) é fundado em coação grosseira
para forçar governos e grupos de interesse (aliados e com-
petidores) a realizar concessões econômicas e políticas
unilaterais. Uma implementação que alija a diplomacia e
as instituições, operada por um grupo político ad hoc (mas
alinhado ideologicamente ao presidente), amparado pelo
protagonismo direto do aparato de segurança nacional
(Forças Armadas, polícias, ministério público, forças cons-
tabulares e serviços de inteligência) em defesa de interesses
e empresas. (CEPIK, 2019, p. 248-249)

Na sequência, será examinada a pauta democrata de Joe


Biden, e as primeiras ações já perceptíveis de sua presidência para
a América Latina.

B) A Agenda Biden

A agenda de Biden para a América Latina, disponível em seu


site de campanha (BIDEN, 2020), girava em torno dos mesmos
temas de imigração, tráfico de drogas e parcerias, mas com ênfase
em mecanismos cooperativos para a solução de problemas comuns

16 Pode-se destacar nesta agenda, a chamada guerra comercial EUA-China, que detém forte
dimensão tecnológica e securitária simbolizada na questão do acesso ao 5G e o papel da
empresa Huwaei no exterior. (THE WHITE HOUSEb, 2020)

50 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


(e com destaque à América Central nestes tópicos). Além disso, bus-
cava destacar as questões do meio ambiente e dos direitos humanos,
em um tom de engajamento positivo: reforço dos intercâmbios polí-
tico-econômicos-diplomáticos, visando o fortalecimento das demo-
cracias; incentivo à prosperidade; e maior atenção às organizações
multilaterais e aos regimes internacionais.
É uma agenda que representaria uma quebra das priorida-
des e da linguagem agressiva de Trump (não havendo menção a
intervenções, ao risco do socialismo etc), retomando a perspectiva
de uma interação positiva entre os EUA e a região. Isso não sig-
nifica que os EUA irão deixar de se preocupar com ameaças, mas
sim que propostas de mudança de regime, contenção de poderes
intra e extrarregionais seriam feitas pelo engajamento e não pela
repressão. Haveria, portanto, um novo fim da DM, e uma reto-
mada da Era Obama. Como se destacou na Introdução, usar ou
não usar o termo DM, tem implicações retóricas e práticas. Mas,
não o usar, não significa que a concepção estratégica de preser-
var o hemisfério como zona de influência tenha sido abandonada.
Independente do saudosismo que se possa ter da Era Obama, em
nenhum momento as realidades geopolíticas e geoeconômicas da
DM deixaram de existir.
Tomando como base os itens de referência da Agenda Trump,
além da DM, a presidência Biden trará, como já parece sinalizar
desde sua posse, importantes diferenças, mas também significati-
vas semelhanças. Em termos de ameaças ideológicas de esquerda, a
sinalização é de uma política de descongelamento com Cuba, mas
com a manutenção da política para a Venezuela. A sinalização ini-
cial do governo é pela continuidade do reconhecimento de Guaidó
como presidente, pelo menos nestes primeiros meses de governo,
visto a premência de problemas domésticos nos EUA associados
à pandemia e à crise econômica. A lógica, contudo, não será a da
“ameaça comunista” que paira sobre os EUA e o hemisfério, estando
mais voltada à premissa de promoção da democracia e mudança de
regime contra o autoritarismo.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 51


Considerando as parcerias estratégicas com os países amigos,
o que se observa é uma mudança completa de conteúdo das priori-
dades que envolvem estas parcerias: a agenda fundamentalista reli-
giosa, negacionista em termos sanitários e ambientais, unilateralista
e “anti-globalista” não terá mais espaço, e sim uma defesa dos princí-
pios multilaterais, científicos e com respeito aos regimes de direitos
humanos. A chave neste processo será o do reforço da governança
democrática, e o isolamento e reenquadramento das nações que não
se orientam em torno destes valores e princípios. Neste sentido,

When Joe Biden is sworn in as the 46th president of the


United States, he will bring to the White House a deeper
knowledge of Latin America and the Caribbean than any of
his recent predecessors. Biden traveled to the region a record
16 times while serving as Barack Obama’s vice president,
and many more times before and since. In Biden, Latin
Americans will have a partner in Washington who views
our shared hemisphere not as the United States’ backyard
but as its strategic home base—a region whose stability and
success are tied intrinsically to that of the nation he has
been elected to lead. The President-elect has pledged to end
the “incompetence and neglect” that characterized Donald
Trump’s approach to Latin American and the Caribbean.
He has proposed an ambitious $4 billion plan to address
violence, poverty, and corruption in Central America. He
has called for an end to Trump’s demonization of migrants
and the countries they come from, and for the restoration of
US hemispheric leadership based on principles of respect,
responsibility, and partnership. (THE DIALOGUE, 2020)

Ainda sobre as parcerias estratégicas com países amigos, nações


como o Brasil que tinham alto grau de proximidade com Trump pre-
cisarão necessariamente se adaptar. Para isso, não devem ser levadas
em conta só as pautas mais gerais da agenda Biden, mas também as
pressões de grupos de interesse interno no país e dentro do Partido
Democrata como foco em meio ambiente e direitos humanos. Em
janeiro de 2021, a The US Network for Democracy in Brazil lançou
o policy paper “Recommendation on Brazil to President Biden and

52 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


the new administration”, que reforça a necessidade de mudanças
no Brasil para uma melhoria e continuidade da relação bilateral.
Embora “não oficial” é documento relevante que sinaliza a tendên-
cia de muitas correntes do Partido Democrata.
Avaliando os últimos três elementos, as relações EUA-México,
os fluxos e a política migratória e os riscos extrarregionais, a prin-
cipal mudança, além da tática, deve ser de conteúdo no campo de
fluxos e política migratória. Nesta agenda pode-se esperar, até pelas
declarações e primeiras medidas do próprio Biden uma retomada
da Era Obama na dimensão securitária e referente aos processos de
legalização interna. No caso das relações EUA-México não devem
ser observadas alterações no USMCA, e o tom do intercâmbio deve
ser positivo.
Na questão dos riscos extrarregionais, os mesmos atores em
ordem importância serão considerados ameaças: China, Rússia e
Irã. De acordo com Ellis (2020),

With respect to actors such as China, Russia, and Iran, the


Biden team should clarify that it will push back on non-
transparent, corrupt, or predatory forms of engagement,
particularly in sensitive sectors such as telecommunications
infrastructure, that threaten the ability of Latin American
partners to make private, autonomous decisions about
foreign policy. It is important for the administration
to clarify that the United States respects transparent
commercial engagement on a level playing field that follows
rule of law—but will strongly resist activities that endanger
the wellbeing, institutional health, and autonomy of the
region and thereby endanger the United States. Washington
should reassure that it will not apply such principles in an
authoritarian fashion but will work to educate the region
about the risks, provide commercially credible alternatives
consistent with the principles it advocates, and strengthen
the region’s institutions so that it can commercially engage
with all actors, including the PRC (ELLIS, 2020, p. 10-11)

É preciso mencionar que estes elementos de continuidade


e descontinuidade também se relacionam às forças internas que

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 53


influenciam a formulação de políticas e tomadas de decisão nos
EUA. No caso da América Latina, grupos de interesse similares
definem as políticas de qualquer um dos eleitos: setor energético,
agrícola, forças armadas e os diversos lobbies diferentes que se ori-
ginam da comunidade hispânica que reside nos EUA.
No campo da agenda securitária regional, além das citadas pro-
blemáticas das drogas e da imigração, temas correlacionados mas
que aparecem menos para o grande público como o Atlântico Sul e a
Amazônia (i.e Amazônia Azul e Amazônia Verde conforme o Livro
Branco de Defesa Nacional, 2020) merecem espaço. O potencial
energético e ambiental destas duas regiões é essencial para o inte-
resse estadunidense, assim como de outras commodities estratégicas
na região, e o setor de infraestrutura, no qual os EUA sofrem con-
corrência direta da China (MYERS;WISE, 2017). Por fim, a América
Latina tem sido objeto de novas formas de intervenção e ingerên-
cia, no que vem sido conhecido como “Guerra Híbrida”. Feitas estas
considerações, é possível projetar hipóteses para a América Latina
sob a gestão Biden, iniciada em 20 de Janeiro de 2021.

Os Cenários Possíveis

Considerando o equilíbrio de forças políticas na América


Latina, e a futura política externa dos EUA, pode-se indicar que
se mantém duas dinâmicas: a da aplicação da DM de “Dentro para
Fora” e a de sua implementação de “Fora para Dentro”. O primeiro
caso refere-se a explorar dinâmicas de política interna aos países
latino-americanos para favorecer e fortalecer os interesses estaduni-
denses, enquanto o segundo depende de uma ação mais direta dos
EUA na busca de seus interesses. Neste sentido, na agenda inicial,
são os governos locais que realizam as políticas a favor dos EUA e,
na segunda, a presença dos EUA é mais proativa por meio de medi-
das de política externas aplicadas à região.
A primeira hipótese de cenários possíveis, a DM de “Dentro
Para Fora” refere-se à instrumentalização, da parte dos EUA, de

54 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


alianças com grupos de interesse internos aos países latino-ame-
ricanos, pró-alinhamento, atraindo elites político-sociais locais
para a sua agenda; esta agenda é composta por elementos que vão
muito além da identidade ideológica, e muitas vezes independem
dela, focando-se no aumento da atuação norte-americana em seto-
res estratégicos latino-americanos como energia e tecnologia (vide
o caso do pré-sal e do 5G); a preocupação dos EUA em conter a
retomada dos poderes intrarregionais, mantendo os processos de
integração regional autônoma na América Latina em compasso
de espera ou em curso de desconstrução; valorização dos modelos
econômicos neoliberais para os países latino-americanos, visando
a interpenetração de suas economias); e explorar a insatisfação, a
fragilidade e a vulnerabilidade política do hemisfério que deriva das
contradições sociais e econômicas internas de seus países.
Como bem ilustrado pelo policy paper sobre as relações Brasil-
EUA, os EUA com Biden não se furtarão a exercer pressões mais
diretas sobre o Brasil caso considerem que as políticas atuais são
contraproducentes ao seu interesse. O tema se insere no segundo
cenário possível que se aplica não só ao Brasil mas a qualquer nação
latino-americana que não tenha políticas em consonância com as
prioridades da gestão Biden.
Este cenário é sustentado na hipótese de que os EUA desen-
volverão medidas mais proativas diante da região por meio de: con-
trabalançar parcerias extrarregionais por meio de alianças e incen-
tivos políticos estratégicos (com foco na contenção da expansão da
presença político-econômica da China principalmente, mas que não
exclui outros riscos extrarregionais como a Rússia); valorização do
multilateralismo global e das políticas de atração dos países locais,
buscando engajar e conter relações internacionais autônomas (par-
cerias bilaterais, novas coalizões de geometria variável com outros
Estados que não os EUA e integração regional autóctone); e instru-
mentalização, quando necessário das alianças bilaterais com países
na região e por meio do sistema interamericano.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 55


Considerações Finais

Como analisado, a política externa dos EUA e sua hegemonia


mantém-se como essenciais na definição dos rumos da América
Latina historicamente. O maior ou menor grau desta influência ao
longo do tempo depende de dois fatores: de como os EUA definem
sua agenda hemisférica, foco deste artigo, e de como a América
Latina reage a estas definições. Menos explorado no texto, este
segundo fator reflete uma realidade bastante presente no hemisfé-
rio: o peso estrutural dos EUA na definição da política dos países
localmente e a dificuldade em estabelecer projetos políticos autóc-
tones que reforcem a autonomia e não a dependência da América
Latina diante dos EUA.
Aos EUA não interessam uma América Latina altamente instá-
vel. Porém, ao mesmo tempo, não interessa aos EUA uma América
Latina que reforce seus laços intra e extrarregionais devido aos
riscos que uma região forte poderia trazer aos seus interesses polí-
ticos e econômicos. Neste ponto, as maiores ameaças são ainda a
liderança do Brasil, caso o país retome um curso autônomo em suas
relações internacionais (o que não parece possível no curto prazo),
e o aumento da presença da China no hemisfério. Esta dinâmica
é contraditória mesmo para os estrategistas norte-americanos,
porque depende de uma linha tênue entre estar mais presente nos
países locais via engajamento positivo ou por meio de intervenções
(que trazem igualmente custos para os EUA).
Para a América Latina a linha também é tênue em suas apostas,
que tem sido cada vez mais polarizadas: apostar na relação tradicio-
nal com os EUA? Investir pesadamente na parceria com a China?
Ou retomar a integração regional? Tais opções, na realidade, não
podem e não devem ser excludentes, mas assim se tornam em meio
a embates políticos sobre modelos de desenvolvimento na região e
os riscos da ingerência externa.
A vitória de Biden em 2020, e sua posse em 2021, mudou pelo
menos taticamente a forma de atuar dos EUA na região, como se
procurou ressaltar. Como indica Camilleri (2020), trata-se de uma

56 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


oportunidade, pelo menos no médio e longo prazo, de repensar o
relacionamento hemisférico em termos mais produtivos para os
EUA e a América Latina diante de um novo cenário mundial. De
imediato, o novo presidente estará mais atento à política doméstica
norte-americana, ao multilateralismo (e à reconstrução das esferas
de influência dos EUA neste campo e dos regimes internacionais
principalmente meio ambiente e direitos humanos), à Eurásia e à
China. Porém, estas são agendas com aderência ao hemisfério e
terão impacto em suas políticas. Afinal, a América Latina encontra-
-se inserida neste quadro de forma transversal, e nunca abandonada.

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60 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


CAPÍTULO 3

JOE BIDEN TOMOU POSSE: O QUE


O ESPER A E O QUE NOS ESPER A 1

Luís Antonio Paulino2

Introdução

No dia 20 de janeiro Joe Biden tomou posse como 46º presi-


dente dos Estados Unidos. Os problemas que terá pela frente não são
poucos. Com o número de mortos pela Covid-19 já tendo ultrapas-
sado as 400 mil pessoas, um dos grandes desafios de seu governo é
acelerar o processo de vacinação para garantir que a economia volte
ao normal o mais rápido possível. Não se trata de algo simples de ser
feito, mesmo com os Estados Unidos sendo um dos principais cen-
tros mundiais de produção de vacinas. Diferentemente do Brasil, por
exemplo, onde temos uma ampla rede pública de saúde, os nossos
bem conhecidos “postos de saúde”, para onde toda a população pode
se dirigir para ser vacinada, nos Estados Unidos isso simplesmente
não existe, ou seja, mesmo com as vacinas disponíveis não há luga-
res onde a população possa se dirigir com facilidade para toma-la.
Em lugares com grandes centros universitários, os hospitais
universitários podem ajudar, mas onde não há, essa operação que

1 Uma versão anterior deste artigo foi publicado no site do Instituto José Bonifácio (https://
bonifacio.net.br/joe-biden-tomou-posse-o-que-o-espera-e-o-que-nos-espera/)
2 Professor Dr. Luís Antonio Paulino, Departamento de Ciências Políticas e Econômicas
Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” – UNESP, Diretor do Instituto Confúcio na Unesp e Pesquisador do
Instituto de Estudos de América Latina da Universidade de Hubei, China

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 61


para nós é tão simples, para eles é mais complicada. Parece algo sur-
real, mas é o resultado de uma sociedade que delegou ao mercado o
atendimento de necessidades básicas da população, como a saúde.
Se você vive nos EUA, mas não tem um plano de saúde, você está em
maus lençóis. Há milhares de casos em que famílias com pessoas
que morreram da Covid-19 ficaram ainda com dívidas de milhares
de dólares com os hospitais privados. É o modelo que Paulo Guedes
gostaria de implantar no Brasil, pois para ele e seus “Chicago Boys”
o problema do Brasil é o Estado.
Acrescente-se, ainda, que o movimento anti-vacina nos Estados
Unidos é muito forte. De acordo com pesquisa da Monmouth
University, um a cada quatro americanos dizem que não pretendem
tomar a vacina (Monmouth University, 2021). Segundo reportagem
do jornal New York Times, “cerca de um terço dos membros do
exército americano recusaram vacinas.Quando as vacinas se torna-
ram disponíveis pela primeira vez para os trabalhadores do asilo de
Ohio, cerca de 60% disseram que não” (Leonhardt, 2021). Conforme
relata a mencionada reportagem até algumas estrelas da NBA tem
sido cautelosas em aparecer em anúncios de serviços públicos incen-
tivando a vacinação.
Há também o problema da economia. A economia americana
vinha bem até o início da pandemia, tanto que há pouco mais de
um ano era quase unânime a avaliação de que Trump não teria difi-
culdade de se reeleger. Com o desemprego em baixa e os salários
subindo se considerava uma missão quase impossível desalojá-lo da
Casa Branca apesar de seu comportamento patológico e narcisista e
sua compulsão para a mentira. Com a Covid-19 a situação mudou.
O desemprego disparou e milhões de americanos ficaram sem
renda, dependendo da ajuda pública para sobreviver. Milhares de
pequenos negócios fecharam as portas definitivamente. A economia
americana encolheu, em 2020, 3,2%, a maior queda desde 1946 e o
déficit fiscal chegou a 15,8% do PIB. Lá, como aqui, o governo terá
que estender as medidas de apoio à população. Biden propôs um
novo pacote de ajuda de US$ 1,9 trilhão, que prevê uma nova rodada
de pagamentos diretos de US$ 1.400 por pessoa para a maioria das

62 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


famílias do país, uma suplementação do seguro-desemprego de US$
400 por semana até setembro, a extensão das licenças remuneradas
e aumentos no valor de dedução por filhos menores no imposto de
renda (RUBIN; COLLINS, 2021).
Como destacou recentemente o prêmio Nobel de Economia
Joseph Stiglitz, “Há evidências esmagadoras de que o pacote de
recuperação irá fornecer um enorme estímulo à economia, e que
o crescimento econômico vai gerar receitas fiscais substanciais,
não apenas para o governo federal, mas também para os estados e
municípios que agora estão famintos dos fundos de que precisam
para fornecer serviços essenciais” (STIGLITZ, 2021). Caso contrá-
rio, lembra Stiglitz, “Há um risco real de que não passar um grande
pacote de recuperação causará danos enormes, e possivelmente de
longa duração” (STIGLITZ, 2021).
O desafio, entretanto, é convencer os Republicanos a apoiar o
plano. Os Republicanos, que no governo Trump pouco se impor-
taram com o aumento do déficit público dos Estados Unidos, que
encerrou 2020 na casa dos 16% do PIB, de repente passaram a
externar suas preocupações com o equilíbrio fiscal e o aumento da
dívida pública americana. Trata-se de uma prudência fiscal seletiva
que não existiu, por exemplo, quando Trump cortou impostos dos
mais ricos. É óbvio que o objetivo principal do Partido Republicano
é fazer todo o possível para evitar que o governo Biden dê certo.
Há alguns deputados e senadores que se opõem, digamos, de
“boa fé” ao tamanho do novo pacote de ajuda, receosos que um
pacote tão generoso poderia levar ao desperdício de recursos públi-
cos, dar dinheiro para quem não precisa, gerar incentivos perver-
sos e adiar o retorno a uma atmosfera de normalidade. Trata-se,
entretanto, de uma preocupação infundada. Como lembrou Paul
Krugman em artigo recente no New York Times, em momentos
como esse é melhor errar para mais do que para menos. Se errar para
menos, todo o esforço terá sido em vão; se errar para mais, sempre se
pode corrigir mais à frente. Como lembra o economista, um pouco
de inflação nos Estados Unidos a essa altura não seria ruim. O pior
cenário de todos, também lembra editorial do Financial Times, seria

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 63


o esgotamento de uma recuperação econômica por falta de ajuda
fiscal. A verdadeira prudência aqui é pecar pela generosidade, diz o
jornal (FINANCIAL TIMES, 2021).
Considere-se ainda que a taxa de juros para os títulos do
tesouro americano de 10 anos está na faixa de 1%. Como a economia
americana está crescendo a uma taxa superior a essa, a tendência é
que o aumento da dívida pública como proporção do PIB se dilua
nos próximos anos e se torne irrelevante. Como observou a nova
secretária do Tesouro, Janet Yellen, experiente economista de 74
anos, “Mas agora, com as taxas de juros em baixas históricas, a coisa
mais inteligente que podemos fazer é agir grande. No longo prazo,
acredito que os benefícios superarão em muito os custos, especial-
mente se nos preocupamos em ajudar as pessoas que têm lutado por
muito tempo.” (Politi, 2021). Também ajuda o fato de Jerome Powell,
presidente do FED, estar dizendo que não há previsão de alta de
juros.

O grande desafio de unir o país

Embora os desafios econômicos e sanitários sejam enormes,


talvez o maior e mais difícil desafio de Biden seja o unir novamente o
país, cindido de alto abaixo não só pelas políticas de ódio de Trump,
mas principalmente pelas condições econômicas e sociais que per-
mitiram a sua e que não desaparecerão apenas porque Trump saiu de
cena. Não será simples. Se Biden não apresentar alternativas concre-
tas para essa enorme massa de deserdados da globalização – a classe
média baixa, que viu seus empregos desaparecerem com a automa-
ção crescente e deslocamento da produção para regiões de mão-de-
-obra barata – esse enorme segmento da sociedade americana vai
continuar a ser presa fácil de aventureiros que prometem soluções
fáceis e equivocadas, como ficou patente com a guerra comercial
contra a China, que além de não resolver o problema, jogou o custo
das tarifas sobre as empresas e consumidores americanos.

64 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Dizendo a que veio: as primeiras ordens executivas

Mal tomou posse, o Presidente Joe Biden assinou uma dezena


de ordens executivas, mais do que qualquer um dos seus antecesso-
res. O objetivo é, de um lado, destacar o sentido de urgência que a
crise sanitária e econômica por que passa o país impõem às ações
do novo governo. De outro lado, é sinalizar a ruptura com a polí-
tica isolacionista de Trump e anunciar o reengajamento dos Estados
Unidos na agenda global.
O que move Biden nesses primeiros movimentos é a necessi-
dade de enfrentar o que Ron Klain, chefe da assessoria de Biden,
denominou as “quatro crises sobrepostas e compostas”, ou seja, a
pandemia, a economia, o meio-ambiente e a igualdade racial e res-
taurar o lugar dos Estados Unidos no mundo.
Como era de se esperar as primeiras ordens executivas de
Trump vão ao encontro de suas promessas de campanha. O can-
celamento da permissão do oleoduto Keystone XL está de acordo
com sua agenda ambiental e já provocou forte reação da indústria
petroleira, que o acusa de estar suprimindo milhares de empregos
bem remunerados. No dia 27 de janeiro, o governo Biden anunciou
uma série de medidas que chamou de ambiciosas para enfrentar a
crise climática. As ações atingem fortemente a indústria de gás e
petróleo ao proibir novas explorações em terrenos públicos e cortar
subsídios de combustíveis fósseis, além de estabelecer uma série de
políticas para incentivar a economia de forma sustentável. Também
cita a necessidade de proteção da floresta amazônica, ponto de pos-
sível atrito entre o governo Biden e o governo brasileiro (Pamplona,
2021). A reversão da proibição de viagens de vários países africanos
e de maioria muçulmana também sinaliza a reversão de políticas
racistas e xenófobas de Trump.
Como as ordens executivas não dependem da aprovação do
Congresso, elas podem ser implementadas mais rapidamente. As
áreas em que o presidente americano tem maior discricionariedade
para tomar decisões são aquelas relacionadas com a política externa.
Embora a política externa não seja a prioridade do governo Biden no

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 65


momento, uma vez estar com seu foco totalmente voltado para os
problemas internos do país, há algumas decisões importantes sendo
tomadas que sinalizam a mudança de rumo da política externa
americana. Entre elas está a decisão de os Estados Unidos voltarem
a participar da OMS e do Acordo de Paris sobre o Clima.
O plano de Joe Biden, de se apoiar no nacionalismo econô-
mico e no reforço do “Buy American” (compre produtos dos EUA)
para relançar nos próximos anos a economia americana já colocou
outros governos em alerta, sobretudo o Canadá, cuja economia é
profundamente integrada à economia dos Estados Unidos. O plano
“Buy American” que Biden adotou durante a campanha exigia um
aperto nas regras sobre compras governamentais, aumentando
os requisitos de conteúdo nacional e fechava brechas disponíveis
para compras de produtos estrangeiros. Pela proposta, o governo
Biden deverá destinar US$ 400 bilhões em quatro anos para a
aquisição de bens e serviços produzidos nos EUA. Além disso,
US$ 300 bilhões para financiar a pesquisa e desenvolvimento de
novas tecnologias e de energias verdes. Ocorre que os EUA estão no
Acordo de Compras Governamentais (ACG) com outros 47 países
da Organização Mundial do Comércio (OMC). Pelo acordo, os
países abrem a estrangeiros seus mercados de compras públicas e
dão mais transparência à concorrência internacional num mercado
estimado em US$ 1,7 trilhão por ano. Para um governo que pro-
mete o retorno ao multilateralismo e ao fortalecimento da aliança
com seus parceiros tradicionais, restringir o acesso ao mercado de
compras governamentais dos Estados Unidos pode ser uma sinali-
zação negativa.

Política externa: a China continua a ser o alvo

Embora a política externa seja a área em que o presidente dos


Estados Unidos tenha maior liberdade de ação, sem depender tanto
da aprovação do Congresso, como ocorre com medidas de polí-
tica interna, não parece que seja essa, em um primeiro momento, a

66 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


prioridade de Biden e nem que ele pretenda fazer tantas mudanças
como o retorno à OMS e ao Acordo de Paris poderiam nos levar a
supor.
É bem verdade que é uma prioridade do novo presidente ame-
ricano romper com o auto isolamento que Trump promoveu com
sua política do “America First”, refazer a rede de alianças que foram
rompidas ou esgarçadas por Trump e recolocar os Estados Unidos
como o principal protagonista no processo de globalização. Mas a
questão central para a política externa dos Estados Unidos atual-
mente, que são suas relações com a China e o movimento de desaco-
plamento da economia chinesa, provavelmente não sofrerá mudan-
ças radicais.
Não se pode negar que apenas a mudança de estilo nas nego-
ciações com a China, recorrendo menos às ameaças e mais à diplo-
macia, como parece ser o estilo de Biden e seu secretário de Estado,
já é uma importante mudança, que pode distensionar as relações
bilaterais com reflexos positivos em todo o mundo. A exigência de
Trump de que o resto do mundo escolhesse um dos lados em uma
disputa que não tem prazo para acabar tensionou desnecessaria-
mente as relações internacionais. Era a tática de dividir, que Trump
adotou na política interna americana e que tanto mal fez aos Estados
Unidos, estendida para o plano internacional.
Daqui para a frente a luta será com luvas, mais civilizada, mas
nem por isso menos violenta. Não podemos esquecer que durante
a campanha eleitoral Joe Biden chamou o presidente da China, Xi
Jinping, de “bandido” (thug) e até agora os dois não trocaram uma
única palavra. Alguns de seus principais auxiliares, quando que se
referem à China, utilizam termos duros, não muito diferentes dos
utilizados na era Trump. Antony Blinken, secretário de estado, diz
que “os EUA devem vencer a batalha entre “tecno-autocracias” -
China - e “tecno-democracias”. Jake Sullivan, conselheiro de segu-
rança nacional, e ex-conselheiro de segurança nacional do então
vice-presidente Biden, se tornou cada vez mais agressivo com a
China. A Secretária do Tesouro, Janet Yellen que, como presidente
do Fed, trabalhou com reformadores chineses no banco central, diz

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 67


que a China é o “concorrente estratégico mais importante” (DAVIS;
WEI, 2021).
Há, ainda, o problema adicional de que, dado o consenso
bipartidário existente em relação à China, qualquer “piscadela” que
Biden der em direção aos chineses poderá ser interpretado como um
gesto de fraqueza. A audiências de confirmação de Gina Raimondo,
a nova secretária de comércio (USTR), se tornaram tensas quando
ela não se comprometeu a manter a gigante de telecomunicações
chinesa Huawei Technologies Co. em uma lista negra que a impede
de obter semicondutores estrangeiros (DAVIS; WEI, 2021). Tudo
indica, portanto, que as medidas tomadas por Trump contra a
China, tornarem-se uma espécie de barra de referência, abaixo da
qual não se pode recuar.
É preciso considerar, ainda, que a continuidade das manobras
da Marinha dos Estados Unidos no mar do Sul da China, desafiando
a reivindicação chinesa de soberania sobre o mar territorial ao redor
das ilhas que, historicamente, fazem parte de seu território, e o voo
de um bombardeiro americano B-52, verdadeira fortaleza voadora,
sobre o Golfo Pérsico, depois da posse de Biden, mostram que há
condutas intrínsecas à condição americana de potência imperialista
que não dependem do governo de plantão.

Relações Brasil-Estados Unidos: o que nos espera

Há uma certa preocupação no Brasil se as atitudes recentes do


presidente brasileiro poderiam prejudicar a interlocução entre os
dois governos e suas parcerias estratégicas. Bolsonaro e seu ministro
das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, fizeram coro com Donald
Trump e a extrema-direita americana ao afirmar que as eleições
dos Estados Unidos teriam sido fraudadas e chamar os invasores do
Capitólio de cidadãos de bem que se sentiram agredidos e traídos
pela classe política americana.
Ao agir desse modo, o Presidente brasileiro apenas reforçou a
visão negativa do Partido Democrata a seu respeito, que o vê como

68 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


um radical de extrema direita, fiel a Trump e capaz de tomar deci-
sões contrárias aos interesses de seu próprio país apenas para manter
sua fidelidade ideológica à extrema direita dos Estados Unidos.
É possível que haja ruídos de comunicação entre os dois gover-
nos, sobretudo na área ambiental, mas na economia possivelmente
não haverá grandes mudanças e caso haja poderão ser até para
melhor, uma vez que a proximidade entre Trump e Bolsonaro não
resultou em ganhos significativos para o Brasil. Ao contrário, com
sua política do “America First”, Trump não hesitou em tomar medi-
das prejudiciais ao Brasil sempre que lhe pareceu necessário.
A área comercial foi a que teve mais avanços nas relações
Brasil-EUA nos últimos dois anos. Brasil e Estados Unidos con-
cluíram um acordo sobre temas não tarifários, como facilitação de
comércio, boas práticas regulatórias e anticorrupção, com poten-
cial para reduzir custos e gerar mais comércio e investimentos em
âmbito bilateral.
Os EUA voltaram a permitir a importação de carne in natura
brasileira e Brasil e EUA buscaram aprofundar seus laços comerciais
em áreas como bens, defesa, energia e infraestrutura. Além disso,
os EUA endossaram a candidatura do Brasil à Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Entretanto, os
ganhos econômicos desses acordos foram pouco relevantes para o
Brasil e beneficiaram mais os Estados Unidos.
Depois da China, os Estados Unidos são o principal parceiro
comercial do Brasil. O superávit da balança comercial do Brasil, em
2020, deve alcançar US$ 50,9 bilhões, dois quais a China contribuiu
com US$ 33,6 bilhões no superávit, enquanto entre os principais
parceiros a contribuição dos Estados Unidos foi negativa. O saldo
da balança entre Brasil e EUA foi negativo em 2019 em US$ 400
milhões, e em 2020, o déficit se aprofundou para US$ 2,7 bilhões.
Apesar disso, as exportações brasileiras para a China são concen-
tradas em poucas commodities e são pouco expressivas em serviços.
Em contraste, a relação comercial do Brasil com os EUA se mostra
mais diversificada, de maior valor agregado e com maior partici-
pação intrafirma. Em 2019, segundo o USTR, o volume total do

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 69


comércio de produtos e serviços dos EUA com o Brasil foi de US$105
bilhões, sendo US$ 73,7 bilhões em bens e US$31,4 bilhões em ser-
viços. Enquanto os EUA são o nosso segundo parceiro comercial
global, o Brasil ocupa a segunda posição em relevância comercial
para os EUA na América Latina, atrás do México. A importância
dessa relação de comércio e de investimentos, com a presença sig-
nificativa de empresas americanas no Brasil e empresas brasileiras
nos Estados Unidos, tende a exercer uma influência positiva para a
construção de relações pragmáticas entre os dois países.
A nova política externa dos Estados Unidos, sob o governo Biden,
que certamente deverá valorizar mais o multilateralismo, a diploma-
cia e o diálogo poderá até ser mais benéfica aos interesses brasileiros.
Não se deve, entretanto, esperar muitos avanços em relação ao que já
foi feito nos últimos dois anos. Como destacou relatório recente da
Câmara America de Comércio no Brasil (AMCHAM, 2021):

A negociação de um acordo mais abrangente de comér-


cio, por exemplo, envolvendo a redução de tarifas e outros
temas mais intrincados, como serviços, propriedade inte-
lectual e compras públicas, embora pudesse ser iniciativa
benvinda, está envolta de enorme complexidade. Além do
já mencionado desacordo entre os dois países em relação
à questão climática, seriam necessárias consultas prévias
ao Congresso americano e, do lado brasileiro, uma defi-
nição se as negociações ocorreriam em conjunto com o
MERCOSUL ou de forma individual pelo Brasil – o que
demandaria, nesse último caso, alteração das regras do
bloco, em consenso com Argentina, Paraguai e Uruguai.
Além disso, a negociação de um acordo comercial envol-
vendo Brasil e EUA sempre será desafiador, em grande
parte pelo fato de as economias serem muito parecidas em
vários aspectos (ambos são grandes produtores de com-
modities agrícolas e produtos industrializados, como aço,
alumínio e automóveis)”

Além disso, uma iniciativa dessa natureza não deve ser priori-
dade na agenda comercial dos EUA, sobretudo nos primeiros anos
da administração Biden. Dada a grande experiência de Biden com o

70 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


tema das relações internacionais, é pouco provável que o novo pre-
sidente norte-americano busque uma política de confronto com o
Brasil. Se o comportamento de Biden como vice-Presidente na gestão
Obama serve de guia, é provável que o novo Presidente norte-ame-
ricano buscará menos o confronto e mais a diplomacia e o diálogo.
É bem verdade que auxiliares próximos de Biden dizem que seu
governo não será um governo “Obama 3.0”. Afirmam que o mundo
mudou, que sobretudo a China mudou e que a política externa de
Biden levará em conta essas transformações. Mas é pouco provável
que a política externa de Biden seja tão errática e intempestiva como
a de Trump. Certamente haverá maior previsibilidade.
No caso do Brasil, mesmo considerando a questão da
Amazônia e as acusações de fraude nas eleições americanas feitas
pelo Presidente brasileiro, é pouco provável que a administração
Biden busque uma política de confronto direto. O que não quer
dizer que, nos bastidores, a administração americana não possa tra-
balhar até por um eventual impeachment do Presidente brasileiro,
caso o movimento ganhe força no Brasil nos próximos meses, dada
a gestão calamitosa de Bolsonaro no enfrentamento da pandemia da
Covid-19. Isso não seria inédito na América Latina.
Uma chave importante para entender qual será a política de
Biden em relação ao Brasil e à América Latina é saber como evo-
luirá a relação Estados Unidos com a China na gestão democrata.
Toda a política externa da administração Trump para a América
Latina esteve orientada no sentido de barrar a presença econômica
e a influência política da China na região. Caso Biden mantenha a
política de confronto com a China, é provável que isso tenha refle-
xos nas relações dos Estados Unidos com a América Latina e o
Brasil. Enquanto maior economia da América Latina e com um
peso geopolítico inquestionável, o Brasil ocupa espaço regional
de destaque. Apesar dos EUA deterem o maior estoque de inves-
timentos estrangeiros em território brasileiro, seu crescimento
anual vem diminuindo desde o início da década. Por outro lado, a
China vem se tornando uma importante fonte de aporte de capi-
tais no Brasil.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 71


Em carta de congratulações enviada a Biden no dia de sua
posse, em 20 de janeiro, o Presidente brasileiro afirmou que a rela-
ção entre o Brasil e os Estados Unidos “é longa, sólida e baseada
em valores elevados, como a defesa da democracia e das liberdades
individuais”. Nessa frase cifrada está a oferta implícita do governo
brasileiro ao novo Presidente americano de o Brasil continuar a agir
como linha auxiliar dos Estados Unidos não apenas na região, mas,
sobretudo, em seu confronto com a China.
Biden já anunciou que pretende construir uma aliança global
de democracias liberais para confrontar regimes que os Estados
Unidos consideram “autoritários”. É óbvio que o alvo número um
de Biden é a China. A questão, entretanto, é que na visão dos demo-
cratas americanos o Presidente brasileiro é um político de extre-
ma-direita com pendores autoritários e, em tese, o Brasil deveria
ser igualmente alvo dessa ação conjunta comandada por Biden em
nível internacional. Entretanto, a experiência histórica mostra que
os Estados Unidos têm sido extremamente tolerantes com regimes
autoritários da América Latina desde que façam o seu jogo.
Uma grande incógnita é saber qual será a posição do governo
americano em relação ao governo Bolsonaro no que diz respeito à
questão climática e como isso poderá afetar as relações econômi-
cas. Durante a campanha eleitoral o presidente Biden fez duras
críticas ao Brasil, ameaçando-o com sanções econômicas caso não
enfrente com seriedade o aumento desordenado do desmatamento
da Amazônia. O Presidente brasileiro respondeu com bravatas,
dizendo que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”.
Na carta enviada a Joe Biden, Bolsonaro também menciona
o desejo de cooperar com os Estados Unidos na questão do clima.
É pouco provável, entretanto, que venha a tomar qualquer posição
mais dura a respeito do tema, seja porque isso desagradaria sua base
política, seja porque a gestão ambiental do governo Bolsonaro tem
sido desastre completo.
A questão que fica, portanto, é se os Estados Unidos de fato
confrontarão o governo brasileiro sobre a questão do meio-ambiente
ou se adotarão uma postura mais tolerante em troca de ter o Brasil

72 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


como linha auxiliar na região e principalmente em sua política de
enfrentamento com a China.
Relatório recente da Câmara Americana de Comércio no Brasil
aposta que o tema da sustentabilidade e da preservação ambien-
tal ganhará centralidade na agenda de comércio e de investimen-
tos envolvendo o Brasil, assim como já ocorre hoje na relação do
Brasil com os países europeus. Segundo o mencionado relatório, “A
percepção sobre o compromisso brasileiro na área ambiental será
determinante para os rumos do relacionamento com os EUA, assim
como a habilidade e a disposição de ambos os países em buscar solu-
ções mutuamente satisfatórias para os diversos desafios nessa seara”
(AMCHAM, 2021)
Isso vai depender, entretanto, se a ênfase de Biden na ques-
tão do clima é apenas um circo para agradar a esquerda do Partido
Democrata ou se de fato ele pretende que os Estados Unidos se
tornem um novo campeão na defesa do clima do planeta. Se a
segunda hipótese for verdadeira, o que parece ser pela indicação de
John Kerry, ex-secretário de Estado do governo Obama, como “tzar
do clima”, o Brasil poderá vir a ter problemas mais sérios.
Uma questão importante entre empresários e analistas é de
como a eleição de Biden pode mudar algo na forma como as empre-
sas brasileiras e latino-americanas fazem negócios com os Estados
Unidos. Certamente vão ocorrer mudanças importantes. Trump era
contrário ao multilateralismo e privilegiou os acordos bilaterais. Por
seu estilo agressivo de negociar costumava tomar decisões rápidas,
para pressionar o outro lado. Com Biden será diferente. Ao privile-
giar as relações diplomáticas, a globalização e o multilateralismo, o
ritmo e o conteúdo das negociações certamente sofrerão mudanças.
Ao trazer todos para a mesa de negociação, certamente a construção
de acordos vai ser mais demorada.
Mas, em contrapartida, haverá maior previsibilidade, mesmo
porque as pessoas que Biden está trazendo para os cargos chave são
conhecidas, com grande experiência em relações internacionais.
Havia uma preocupação inicial por parte dos empresários de que
Biden iria trazer para algumas funções chave do governo membros

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 73


da ala progressista, mais à esquerda do Partido Democrata, mas não
é isso que está ocorrendo.
É óbvio que nos próximos um ou dois anos, as relações econô-
micas entre Estados Unidos e Brasil dependerão muito da evolução
da pandemia da Covid-19 e seus efeitos sobre a economia de ambos.
Mas com certeza essas mudanças trarão novas oportunidades para
as empresas brasileiras. A possibilidade de rearranjos nas cadeias glo-
bais de suprimento pode abrir novas oportunidades para os países da
região, inclusive o Brasil, porque é grande a presença de empresas nor-
te-americanas no Brasil e de empresas brasileiras nos Estados Unidos.

Conclusão

A ascensão de Joe Biden à presidência dos Estados Unidos


poderá mudanças importantes no tabuleiro das relações internacio-
nais. Ao tentar devolver aos Estados Unidos o protagonismo inter-
nacional reduzido substancialmente com a política isolacionista de
Donald Trump, Biden irá se defrontar com resistências internas e
externas.
Internamente, o ativismo internacional dos Estados Unidos
já era objeto de críticas internas desde o governo Obama, dado o
enorme dispêndio de recursos, enquanto a infraestrutura norte-a-
mericana se deteriorava a olhos vistos pela falta de investimentos.
O contraste entre a rápida modernização da infraestrutura chinesa,
com trens super rápidos cruzando todo o país a mais de 300 quilô-
metros por hora, enquanto a estrutura ferroviária norte americana
cai aos pedaços só reforça essa sensação.
Externamente, o reengajamento dos Estados Unidos nos orga-
nismos multilaterais abandonados por Trump, como a OMS e a
OMC, além do retorno ao Acordo de Paris sobre mudanças climáti-
cas foi recebido com otimismo pela comunidade internacional. Mas
o fato é que a maioria dos países do G7, para não falar de China e
Rússia, não pretende mais amarrar sua política externa aos interes-
ses dos Estados Unidos.

74 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Na sua disputa com a China, Biden provavelmente vai ter mais
dificuldade do imagina para construir a coalização internacional de
democracias liberais para fazer frente ao gigante asiático. Ninguém
está disposto a sacrificar seus próprios interesses para defender o
domínio tecnológico das empresas norte-americanas, mesmo tra-
vestidos de defesa da democracia e dos direitos humanos. Talvez
um ou outro governo vá querer continuar a prestar vassalagem aos
norte-americanos.
No caso do Brasil, embora essa tendência seja forte, paradoxal-
mente, o governo Bolsonaro é visto com desconfiança por Biden e
pelo Partido Democrata por seu histórico político de extrema-direita
e, sobretudo, o descaso com o meio-ambiente. Isso não significa que
os norte-americanos rejeitarão a oferta, ainda mais sem custos. Mas
isso vai depender muito de como as relações entre Estados Unidos e
China evoluirão nos próximos meses e anos.
Se a rivalidade entre as duas potências se aguçar é provável que
a cisão do mundo em dois campos antagônicos venha a ocorrer –
uma nova versão da velha “Guerra Fria”. Se isso ocorrer, o Brasil
ficará sem muito espaço de manobra, pois embora, por razões ideo-
lógicas, o atual governo brasileiro tenda a se alinhar incondicional-
mente aos Estados Unidos, continuará a depender da China para
manter o único setor de sua economia, o agronegócio, que responde
por mais de 20% do PIB e pela totalidade do saldo comercial brasi-
leiro, funcionando.

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project-syndicate.org/commentary/biden-right-to-launch-massive-rescue-plan-by-joseph-e-
stiglitz-2021-02

76 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


CAPÍTULO 4

A INSERÇ ÃO DA AMÉRIC A L ATINA


NO CONTEX TO MUNDIAL EM
2021: INSERÇ ÃO DOS TEMPOS
OU TEMPOS DA INSERÇ ÃO?

Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos1

Introdução

Avaliar a conjuntura da América Latina não é tarefa simples e


sempre se corre vários riscos. Seja no sentido de tomá-la de forma
homogênea e unitária2, seja no sentido de incorrer na imprecisão
que uma avaliação de conjuntura pode proporcionar em termos de
sua inserção no processo histórico de maior duração. Em qualquer
das possibilidades, as diferentes temporalidades históricas que são
atinentes à América Latina e ao restante do globo nem sempre são
consideradas no sentido de uma maior acuidade avaliativa do ponto
de vista histórico. Neste sentido, o presente texto almeja apresentar
uma modesta contribuição para buscar situar conjunturalmente a
América Latina no início do ano de 2021.
Uma pergunta geral que motiva este texto coloca em evidên-
cia a questão dos tempos em face da América Latina. O tempo da

1 Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da FFC-Unesp de Marília.


2 Há muito pouco de substantivo até mesmo em termos de cooperação e aproximação atual
entre os Estados latino-americanos, ocupados principalmente com suas crises econômica
e sanitária, dentre outras causas (STUNKEL, 2021).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 77


condição histórica da América Latina está ligado a uma questão
mais ampla do capitalismo global ou, de forma alternativa, podem-
-se descortinar temporalidades em que a América Latina poderá
superar suas debilidades sociais e econômicas? Em outras palavras,
a América Latina se insere nos tempos da peculiaridade histórica
global ou ela poderá vislumbrar tempos de uma inserção numa
dinâmica capitalista mais desenvolvida e menos aviltante para seus
grupos e classes subalternas? Ou ainda, escrito de outra forma,
pensar a América Latina na inserção mundial com maior presença
implica a sua inserção nos tempos das tendências transformadoras
dos grandes centros3, como um projeto futuro a ser buscado? Ou de
forma diferente, as suas temporalidades de transformação e inser-
ção no contexto mundial se dão de forma diferente, embora conec-
tadas a outras fortes tendências de curto ou longo prazo? Inclino-me
à segunda hipótese.
Tomando a segunda hipótese de forma um pouco mais precisa,
ela aponta para o entendimento de que a conjuntura latino-ameri-
cana do início de 2021 se situa em um processo histórico de maior
duração em que os tempos de transformação histórica na região
não seguem uma única linearidade assim como os tempos do plano
internacional mais amplo no qual ela se desenvolve no âmbito do
capitalismo imperialista hegemonizado pelos Estados Unidos da
América.
Adotam-se como centrais para empreender esta análise as cate-
gorias de desenvolvimento desigual e combinado de Leon Trotsky
(1977) e de relações de força conforme Antonio Gramsci (1975).
No que se refere ao líder revolucionário russo, a perspectiva
que se toma por base lida com a ausência de uma linearidade única e
homogênea nos tempos e velocidades das várias dimensões da vida,
inseridas nas múltiplas determinações e contradições do conjunto
de uma sociedade e das diferentes sociedades em nível global. Longe
de sugerir que a história e a transformação se dão de forma evolu-
tiva, retilínea e uniforme, avanços e atrasos em todas as dimensões

3 Como o projeto de um desenvolvimento industrial que possa viabilizar um welfare state,


proposta semelhante à de David Harvey (2005).

78 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


da vida se dão de forma acelerada ou não sem que haja um padrão
único, amalgamados num quadro histórico em que simultâneo e
não simultâneo, arcaico e moderno se combinam de formas com-
pletamente peculiares na história.
O líder revolucionário italiano, por sua vez, sugere que qual-
quer avaliação conjuntural não pode se sobrepor a uma temporali-
dade histórica mais ampla, de longa duração, o que ele chamou de
análise das relações de força. Tempos desiguais podem incidir sobre
as transformações das diversas dimensões da vida envolvendo uma
interação constante entre a ideologia, o aparato estatal e as relações
sociais fundamentais sem que se possa enfatizar um único aspecto,
seja ele econômico, político, estatal, individual etc. Tal lógica res-
salva a grande dificuldade de se situar demasiadamente na análise
conjuntural, sugerindo uma análise de totalidade histórica de longo
prazo que considere o desenvolvimento e esgotamento das forças
históricas como um elemento central para a avaliação histórica.
A linha argumentativa a ser percorrida seguirá a ordem por
ora apresentada. Em primeiro momento, uma caracterização bas-
tante genérica em termos de indicadores quantitativos gerais da
América Latina comparada com o restante do mundo. Em seguida,
um escrutínio de algumas tendências relevantes da literatura sobre
como situar a América Latina no mundo, com foco em autores rele-
vantes para a análise do temário internacional. Posteriormente,
seguem-se um brevíssimo esboço de análise conjuntural e também
brevíssimas conclusões.

Uma visão geral da América Latina e do


mundo em números: os tempos desiguais.

Abordar as dificuldades e vicissitudes da América Latina em


termos de seu desenvolvimento baixo e de suas lacunas sociais cos-
tuma associar os impactos das dívidas externas e dificuldades eco-
nômicas da década de 80 como “década perdida”, repercutindo nos
indicadores atrasados em relação ao restante do mundo até os dias

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 79


atuais, lembrando ser fevereiro de 2021 o período de escrita deste
texto.
Uma breve exemplificação disto pode ser extraída de um
rápido comparativo envolvendo números da América Latina alinha-
vados com congêneres do restante do mundo.
A desigualdade dos tempos na questões econômica e demográ-
fica pode ser facilmente constatada quando se comparam os dados
numéricos latino-americanos com algumas cifras do restante do
mundo.
A população latino-americana totaliza algo em torno de
586 milhões de habitantes, distribuídos aproximadamente em 21
milhões de quilômetros quadrados. Seu produto interno bruto tota-
liza aproximadamente 5 trilhões de dólares. A título de comparação,
só o produto interno bruto do estado da Califórnia, a unidade mais
pujante economicamente da federação norte-americana, totaliza 3
trilhões de dólares, mais do que a metade do congênere latino-ame-
ricano. Em termos de outra comparação, o orçamento de defesa dos
Estados Unidos se situa em torno de 700 milhões de dólares, quase
um quinto do PIB dos latino-americanos. O produto interno bruto
dos Estados Unidos é de aproximadamente 22 trilhões de dólares e
o congênere da República Popular da China é de 14 trilhões de dóla-
res. O produto interno bruto aproximado da Ásia é de 30 trilhões de
dólares. A população asiática integraliza 4,4 bilhões de habitantes.
Tudo isto inserido no âmbito global em que o produto interno bruto
do globo se aproxima dos 85 trilhões de dólares, ante uma popula-
ção de 7,8 bilhões de habitantes e uma superfície terrestre total de
150 milhões de quilômetros quadrados.
Uma avaliação grosseira apontaria, a partir destes números,
de uma irrelevância latino-americana em termos decorrente de seus
mercados consumidores e de sua pobreza, como se fosse possível
conceber os tempos desiguais evidenciados nesta rápida compara-
ção de forma estanque e desconexa, comparando-a, inclusive com
a África, embora não sendo pior do que este último continente
mencionado, que se situa na ordem de 3 trilhões de dólares. Sabe-se
que excedentes econômicos destinados aos Estados Unidos, dentre

80 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


outros, proporcionados em parte pelos que ficam abaixo do Rio
Bravo4 possibilitam estas discrepâncias e descartam a irrelevância
latino-americana presente nesta linha de argumentação. Esta desi-
gualdade dos tempos se insere nesta dinâmica e na relação passiva
e ativa que a localização geográfica da América Latina proporciona
em relação ao hegemon norte-americano, ponto que suscita a neces-
sidade de resgatar algumas avaliações relevantes relacionadas às dis-
paridades mencionadas. Em uma palavra, como avaliar a presença
do hegemon no continente americano e seu impacto sobre a América
Latina? Isto será desenvolvido no próximo tópico, resgatando-se
alguns autores que se debruçaram sobre o temário internacional e
trataram, de alguma forma, desta questão.
A perspectiva repetitiva e de analogia histórica focada no pano
de fundo anárquico enunciado por Aron e Mearsheimer não encon-
tra par nas avaliações dos autores de matiz marxista. Tais autores
servirão de base para a avaliação a ser empreendida no próximo
tópico.

Algumas análises sobre os Estados


Unidos e a América Latina

A presença hegemônica norte-americana normalmente é vista


como um fator eclipsador da América Latina quanto a uma maior
proeminência em diferentes dimensões no âmbito global. Tomando
por base diferentes premissas, diferentes autores de distintas linhas
argumentativas sustentam esta tese geral com componentes e ênfa-
ses distintas.
Raymond Aron (1986) percebe a presença hegemônica dos
Estados Unidos no continente americano como importante fator
inibidor da ascensão de um Estado que venha a desafiar tal posição.
Tal perspectiva se insere em elemento perene histórico de ausência
de um monopólio legítimo da violência na sociedade internacional

4 Rio que demarca a fronteira dos Estados Unidos com o México.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 81


que faz a dinâmica interestatal na história estar permanentemente
“à sombra da guerra” regatando o elemento de analogia com o
estado de natureza hobbesiano, mais conhecida pelos internaciona-
listas que professam avaliações semelhantes como a anarquia inter-
nacional. Desta forma, não há a possibilidade da América Latina
alçar qualquer perspectiva desafiadora do poder norte-americano.
É esta a anarquia internacional também o pano de fundo da
análise de John Mearsheimer (2001) para quem – diferentemente
da análise de Aron – dificilmente encontrará par a condição de
um hegemon global em toda a história das relações interestatais.
De forma diversa, o ambiente anárquico do sistema internacional
desde os primórdios das lutas inter-hegemônicas – envolvendo,
por exemplo, Atenas e Esparta – dificilmente registrará um hege-
mon global. De forma distinta, o hegemon será regional, como são
os Estados Unidos no continente americano, não havendo qualquer
Estado digno de dimensões de poder que possam sequer se aproxi-
mar de todas as suas características dominantes em termos milita-
res, econômicos etc. Conforme Mearsheimer, o Estado dominante
no sistema internacional nos dias atuais, os Estados Unidos, possui
tal condição em vista da sua hegemonia continental e hemisférica.
Novamente, o argumento do constrangimento à América Latina se
desenvolver e transformar se impõe e até de forma mais incisiva,
na medida em que Mearsheimer ressalta a enorme importância do
controle e projeção de poder territorial e terrestre, ponto que certa-
mente se aplica a todos aqueles abaixo do Rio Bravo.
As avaliações de matiz marxista não corroboram a analogia
e a repetição histórica que caracterizam os enfoques que situam a
anarquia internacional, como aqueles mencionados acima.
Ao contrário, situam a particularidade histórica orgânica mais
ampla como o capitalismo imperialista inaugurado em 1870 no qual
o capital financeiro hegemoniza a reprodução do capital em suas
várias sínteses e formas (HILFERDING, 1981), conduzindo a con-
flitos violentos em tal dinâmica. O deslocamento do centro do capi-
talismo para uma antiga periferia (os Estados Unidos) e do antigo
centro (Grã-Bretanha) para a periferia evidenciam um processo

82 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


histórico marcado por choques interimperialistas e inter-hegemôni-
cos violentos com maior ou menor magnitude que proporcionaram
tal transformação. Em tal contexto histórico mais amplo se situa a
América Latina.
Como outro Antonio Gramsci (1977) formulou, a posição geo-
gráfica de um Estado segue logicamente as suas inovações estrutu-
rais, reagindo sobre elas numa certa medida (exatamente na medida
em que as superestruturas reagem sobre a estrutura, a política sobre
a economia). Este deslocamento do centro do capitalismo para os
Estados Unidos apresenta consequências históricas importantes,
estreitando os nexos hegemônicos e imperialistas de Washington
com o restante do continente. Apontemos algumas destas conse-
quências históricas mais recentes.
Os Estados Unidos e seu capital financeiro passaram uma crise
de lucratividade nos anos 70 que levaram ao deslocamento desde
então de boa parte de seu contingente industrial e produtivo para
áreas periféricas, entre elas a própria América Latina (BIELER;
MORTON, 2018). O Brasil foi uma destas plataformas intermediá-
rias de exportação de manufaturas a serviço do capital financeiro
e da hegemonia dos Estados Unidos, dotado de uma relativa auto-
nomia que o credenciaram, segundo Ruy Mauro Marini (2012),
para uma posição subimperialista. Tudo isto devido a um projeto
expansionista e de certa coesão de suas frações de classe, a extra-
ção de excedentes altíssimos de seus vizinhos, a composição orgâ-
nica de sua economia e a superexploração de suas classes trabalha-
doras e também dos países das circunvizinhanças. A Argentina
não possui tais características e a proximidade do México com os
Estados Unidos seria um inibidor neste sentido, pontos que não os
credenciam como subimperialistas. Este deslocamento não atenuou
as características dependentes do Brasil, características históricas
estruturais ligadas ao capitalismo também de natureza dependente,
bem como os traços aviltantes do ponto de vista econômico e social
impostos às suas classes trabalhadoras.
Todavia, em meio às pressões hegemônicas e imperialistas, o
que se mostra ao longo da história e da conjuntura latino-americana

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 83


é que as tendências se manifestam em temporalidades diferentes.
A mesma presença hegemônica dos Estados Unidos na região não
evitou um governo contrário a tais pressões como o de Salvador
Allende, dentre outros, bem como as lutas e as resistências de vários
tipos, mesmo com a fortíssima história autoritária da América Latina
em temporalidades desiguais e combinadas, ponto que não resiste a
meras avaliações formais ou meramente declaradas no âmbito jurí-
dico ou formal de que a democracia se faz existir, como demonstra
a atual experiência em curso no Brasil. Em termos de uma análise
muito mais ampla das forças históricas, como aquela sugerida por
Florestan Fernandes (2006), o quadro brasileiro não é autoritário
apenas em termos conjunturais, mas em termos históricos.
Ao mesmo tempo, desde os anos 70, o foco principal das rela-
ções econômicas brasileiras gradativamente se deslocou dos Estados
Unidos para a então Comunidade Econômica Europeia e depois
para a República Popular da China. Trata-se de outro argumento
que mostra que a hegemonia e a pressão imperialista não se mani-
festam numa única linearidade histórica e de forma homogênea.
A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos pode ser lida como
um fato conjuntural de grande impacto que incide como um divisor
de águas sobre o processo histórico de longa duração? Em princípio,
a hipótese embrionária a ser enunciada refuta esta demarcação, a
despeito de se reconhecer o revés sofrido pelas forças autoritárias no
mundo todo com a derrota de Donald Trump. Ainda em termos de
hipótese, a temporalidade histórica mais ampla que combina tanto
aspectos das categorias de desenvolvimento desigual e combinado
como da análise das relações de força suscita que as condições de
crise de hegemonia e do capital se desdobram em várias tendências
autoritárias, conservadoras e xenófobas na América Latina e no
mundo. As ações do novo governo Biden levarão tempo para surtir
efeito e estão envoltas em dúvidas sobre os seus efetivos rumos
futuros. Ao mesmo tempo, observa-se recentemente a ascensão de
governos autoritários, conservadores e de direita no mundo todo,
citando-se apenas alguns exemplos: Duterte, nas Filipinas, Orban,
na Hungria; Morawiecki, na Polônia; Kurz, na Áustria; Erdogan, na

84 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Turquia; Bolsonaro, no Brasil; Bukele, em El Salvador. Outro exem-
plo que não se pode perder de vista é a saída britânica da União
Europeia, fortemente inspirado por eleitorado fortemente marcado
por motivações xenófobas, nacionalistas e conservadoras.

Um brevíssimo esboço analítico


conjuntural do início de 2021

O presidente norte-americano Richard Nixon enunciou nos


anos 70 que a América Latina se inclinaria para o lado para o qual
Brasil se dirigisse.
Recentemente, o advento de governos progressistas na América
Latina pareceu seguir a mesma linha com a eleição de Lula. Pode-se
até argumentar que isto seguiu, em certo sentido, uma tendência
mais favorável nos Estados Unidos com um governo supostamente
mais progressista como aquele de Barack Obama. Fato é que junto
com tal ascenso de governos progressistas o Brasil e a América
Latina passaram também posteriormente por processos com tem-
poralidades distintas de reversão autoritária e conservadora simul-
taneamente aos tempos de aprofundamento da desindustrializa-
ção e, no caso latino-americano, o agravamento de um quadro de
primarização de sua economia, focada em matérias primas, não
distante das tendências históricas já apontadas por Caio Prado
Junior no tocante à formação histórica brasileira (2011). A condi-
ção subimperialista brasileira outrora analisada por Marini – nos
anos 70 – focada na industrialização diversificada agora é focada na
exportação de matérias-primas (LUCCE, 2013: p. 139), inclusive nos
governos Lula e Dilma.
A instabilidade política da América Latina que seguiu diferen-
tes tempos na Venezuela, no Brasil, no Paraguai, na Bolívia, no Chile,
na Argentina e no Equador não pode ser tomada, como hipótese,
como um sintoma da democratização destes países5. Pelo contrário,

5 Outras avaliações sugerem que a instabilidade política e econômica de vários países da


América Latina é pouco atrativa para os investimentos estrangeiros, em constante fuga,

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 85


fosse a democratização um dado estrutural, orgânico, contínuo
e de longa duração, as classes e grupos subalternos no Brasil e na
América Latina não assistiriam a uma destruição em enorme veloci-
dade do que pouco do que sobrou de seus direitos sociais. Ao mesmo
tempo, não veria o aparato de sustentação destes governos progres-
sistas ruírem com tanta facilidade. A possibilidade de mudança
deste quadro, com a enorme explosão de mobilização registrada em
diferentes países, com especial destaque para o Chile, já aponta des-
dobramentos desiguais e combinados, não homogêneos, em relação
à reversão autoritária e reacionária em curso em boa parte do conti-
nente, acrescida do plebiscito chileno que descartou a Constituição
ditada por Pinochet, além de eleição de governos progressistas na
Argentina e na Bolívia. A enorme explosão de movimentos nos
Estados Unidos, Europa e América Latina com demandas antirra-
cistas e antiautoritárias não se desdobrou de forma tão incisiva no
Brasil, fazendo jus à dinâmica histórica não repetitiva dos tempos
desiguais e combinados.
Na perspectiva de distintas temporalidades, o Brasil segue
tendência distinta e incerta, agravada por uma avaliação de longo
prazo, em termos de relações de força, de uma profunda crise de
hegemonia (BIANCHI, 2017).
No Brasil, há um governo politicamente autoritário e ultrali-
beral que se pauta pela completa inépcia frente às dificuldades de
fundo do país, particularmente aquelas de enfrentamento da pan-
demia. Com inúmeras medidas de destruição dos parcos e rema-
nescentes direitos das classes trabalhadoras brasileiras, os indica-
dores econômicos e sociais do país não param de piorar. Posições
de fundo de inspiração antiiluministas, conservadoras e com fortes
conotações fundamentalistas religiosas completam um quadro de
um governo cujo círculo familiar e grupal buscou se beneficiar de

bem como várias empresas estrangeiras. Comparativamente à China, tal instabilidade


seria um óbice à América Latina. E uma tendência de desenvolvimento desigual e combi-
nado de longo prazo associa a gigantesca aceleração econômica da China em pouquíssi-
mo tempo às desindustrializações, ao advento de uma parte das direitas na Europa e nos
Estados Unidos. Ver a respeito Rosenberg; Boyle (2019).

86 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


inúmeras concessões sem precedentes ao imperialismo norte-ame-
ricano, mas com uma “política externa” de fidelidade pessoal ao
ex-mandatário estadunidense Donald Trump, que se viu desconcer-
tada diante da vitória do seu oponente nas eleições estadunidenses.
Em crescente isolamento e desmoralização diplomática com gran-
des desdobramentos na dificuldade na aquisição das vacinas para o
Sars-Cov-2, – desprezadas e ignoradas pelo governo brasileiro em
2020 - o governo Bolsonaro prioriza agendas monetaristas – como
a autonomia do Banco Central recentemente aprovada na Câmara
dos Deputados – e de facilitação e desoneração da compra e impor-
tação de armamentos, ante um quadro de crescente insatisfação
com o fim do auxílio emergencial aos trabalhadores e a ausência
de perspectivas de uma retomada econômica mais substantiva
com a vacinação em massa, uma vez que o processo de imunização
ocorre em velocidade e quantidade muito lenta em função da falta
de imunizantes nas quantidades necessárias. Ao mesmo tempo, des-
cortinam-se horizontes preocupantes no Brasil com a coalizão de
forças que apoiam o atual presidente em aliança com os partidos de
centro-direita vencedores das eleições municipais e de composição
majoritária no Congresso Nacional.
As novas frações de classe que emergem com Biden indi-
cam que criarão dificuldades para o governo brasileiro a partir de
uma aparente coerência e comprometimento com pautas situadas
numa perspectiva laica de democracia, direitos humanos, combate
à corrupção e defesa ambiental. As circunstâncias políticas, prova-
velmente, mostrarão a fragilidade destas diretrizes com um com-
prometimento ad hoc a ser ditado pelas circunstâncias, como já se
demonstrou anteriormente em várias gestões presidenciais norte-a-
mericanas em diferentes oportunidades em distintas conjunturas.
O ensejo anterior da década perdida nos anos 80 leva à consta-
tação conjuntural de um quadro ainda pior decorrente da pandemia
do coronavírus, com a ressalva sempre recorrente de um quadro
desigual e combinado.
Dados da CEPAL (Comissão da ONU para o Desenvolvimento
Econômico da América Latina) indicam (apud UOL, 2020) seis

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 87


economias mais atingidas por esta conjuntura num contexto mais
amplo avaliado como a maior crise social, econômica e produtiva da
região nos últimos 120 anos.
O maior índice é o da Venezuela, com uma retração de 30%
em 2020 num processo contínuo de encolhimento econômico que
vem desde 2014 com a crise petrolífera e as sanções impostas pelos
Estados Unidos. A mesma CEPAL estima que uma retomada econô-
mica poderá levar a um crescimento regional da ordem de 3,7%, que
não incidirá sobre a Venezuela, que deverá ter uma queda do ritmo
de desaceleração do seu PIB de 7%.
O segundo maior índice é o do Peru, com uma retração esti-
mada em 2020 pela CEPAL de 12,9%. A retração dos parceiros eco-
nômicos e a queda do consumo e produção internos são apontados
como as principais causas deste encolhimento.
Segue como terceiro índice o Panamá com um encolhimento
de 11%, avaliado como resultante das medidas internas contra a
pandemia, uma queda de 23,7% das exportações e, em particular,
aquelas originadas da Zona Franca de Cólon, que respondem por
90% das exportações panamenhas. Também contabilizam nestas
perdas o encolhimento dos setores de turismo, hotelaria e cassino,
considerados importantes na economia panamenha.
O quarto índice é o da Argentina, da ordem de 10,5%. O país
platino também tinha processo anterior de significativa retração
antecedente, sendo o terceiro ano nesta sequência. Além do quadro
da pandemia, incidiram para tal a queda de investimentos, do con-
sumo privado, do consumo público, da hotelaria, do turismo, de
serviços comunitários, de transporte, da construção civil e da pesca,
exacerbando os desequilíbrios macroeconômicos do país. A CEPAL
estima um crescimento de 4,21% com a retomada das atividades
econômicas em 2021.
O quinto índice é o do México com 9%, que já vinha também
numa depreciação econômica desde 2019. Respondem por tal indi-
cador uma queda de 42% com as receitas decorrentes do petróleo e
a queda de 18,3% de investimentos externos diretos, incidindo sobre
vários setores da economia nacional.

88 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


O Equador também fica no patamar de decréscimo na casa dos
9%, com forte depreciação também desde 2019. Tal índice decorre
da queda do consumo interno e uma diminuição nas exportações de
petróleo da ordem de 20%.
Neste panorama, o Brasil é apontado pela CEPAL como por-
tador de um índice de queda de 5,3% do PIB em 2020. Estima-se
uma retomada econômica na ordem de 3,2%, muito provavelmente
bastante superestimada, como, de resto, todas as demais estimativas
anteriores de crescimento assinaladas.
E quanto aos Estados Unidos em relação à América Latina?
Não há como nutrir ilusões a respeito de um imperialismo
“mais benevolente” e uma hegemonia “mais humana” com a nova
gestão do Partido Democrata. A hegemonia estadunidense na região
não sugere grandes pontos de inflexão na política exterior norte-a-
mericana, claramente mais focada em redesenhar suas relações com
a Europa e a China, vistas como temas mais prioritários.
Um primeiro ponto contundente nesta direção é a sua postura
idêntica à gestão Trump no sentido de buscar sufocar o governo
Maduro na Venezuela, reconhecendo o autoproclamado Juan
Guaidó como presidente do país.
Em se tratando de antecedentes, a grande experiência de Biden
em questões de política externa e como negociador internacional,
seja como senador, seja como vice-presidente na gestão de Barack
Obama, não sugere substantivas mudanças até mesmo quando a
referência é aquela do quadriênio democrata que antecedeu a gestão
Trump.
A atuação pregressa de Biden no âmbito do plano Colômbia
sugere uma continuidade na abordagem militarizada da questão do
combate ao tráfico de drogas, envolvendo a imposição de agendas
neoliberais em troca do aparato militar disponibilizado ao país sul-
-americano com graves implicações sociais em termos da violência
no país.
A questão dos migrantes latino-americanos, objeto de grande
expectativa para a nova gestão democrata, é apresentada no âmbito
retórico como algo a ser buscado em termos de investimentos

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 89


norte-americanos no México e na América Central que estimulem
a economia e combatam a corrupção, fortalecendo a democracia, os
direitos humanos, possibilitando assim a retenção de ondas migra-
tórias (BIDEN JR, 2020). Exames mais críticos de tais experiências
na gestão Obama, porém, apontam que tal agenda não resolverá pro-
blemas nem fixará as ondas migratórias, em vista da tradição auto-
ritária dos países da região. Ela buscará aprofundar pauta econô-
mica pro-EUA com medidas neoliberais. Ademais, muitas dúvidas
pairam porque as políticas de deportação aumentaram em números
concretos, inclusive na gestão Obama (WASHINGTON, 2020).
Pode-se perguntar: como os governos de esquerda se situam
neste processo? Alguns aspectos relativos a esta pergunta já foram
avaliados em outras oportunidades e não serão repetidos (PASSOS;
FRANCO, 2017). Em linhas gerais, consoante à avaliação histórica
de totalidade das relações de força, não é a ação voluntarista de um
governante, partido ou governo de esquerda que suplanta os nexos
com a hegemonia e o imperialismo norte-americanos. Neste sen-
tido, por mais que os governos de Lula e Dilma tenham em algum
sentido se distanciado dos Estados Unidos e buscado diversificar as
relações brasileiras, não estiveram fora da temporalidade histórica
da hegemonia e imperialismo norte-americanos, nos marcos do
capitalismo imperialista.
A análise que recai sobre algumas outras experiências recentes
de governos de esquerda latino-americanos sugere a hipótese para
ulterior investigação de se inserirem em processos de revolução pas-
siva a partir de uma leitura desta categoria como hipótese de traba-
lho presente na obra carcerária de Antonio Gramsci. Não se trata
de sustentar de que todos os processos históricos sejam revoluções
passivas, mas propor hipóteses a serem investigadas de que proces-
sos históricos particulares seguiram uma lógica passivizadora de
transformações limitadas cooptando demandas e frações de grupos
e classes subalternas sem que estas hegemonizassem tais proces-
sos, resultando em composições para a administração das crises e
para a gestão do capitalismo em trajetórias envolvendo a hegemo-
nia histórica do capital financeiro de forma desigual e combinada

90 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


em diferentes Estados. Em outras palavras, a possibilidade de que
tais processos guardem tais características em suas peculiaridades
dentro de uma lógica geral de um processo restrito e incompleto de
hegemonia que Gramsci aventou como uma possível hipótese expli-
cativa de modernização, formação dos Estados e consenso em favor
das frações burguesas sem uma ruptura radical e profundamente
transformadora.
No caso boliviano, a hipótese de uma revolução passiva como
trajetória histórica mais ampla possuiu algumas características.
Foram elas, o processo de um limitado reconhecimento pluricio-
nalidade indígena hegemonizado sob o MAS, o Movimiento al
Socialismo, um partido esquerda da Bolívia. Tal partido envolveu a
incorporação da retórica de aspectos do pensamento de Gramsci a
partir dos intelectuais tradicionais do MAS. Entretanto, observou-se
na prática uma grande distância entre retórica e prática, como por
exemplo, no tocante à implementação de grandes projetos e explo-
ração de recursos bolivianos, como os hidrocarbonetos. Observa-se
esta mesma distância entre retórica e prática na medida em que se
intensifica o aprofundamento de inserção boliviana no dinâmica
capitalista de fornecimento de commodities para os grandes centros
capitalistas e não implementa de forma universal o poder e a voz a
todas as nacionalidades (RAFTOPOULOS; COLETTA, 2020).
Um último processo pontual que talvez guarde um nexo com a
possibilidade de uma hegemonia restrita enquanto revolução passiva
diz respeito ao governo de esquerda de López Obrador no México.
Um mandatário dissidente dos partidos da política tradicional mexi-
cana que assumiu sob a aura de uma grande transformação em vista,
comparável em expectativas, inclusive, à revolução de cunho popu-
lar iniciada em 1910. Tendo fundado outro partido, o MORENA,
obteve vitória em 32 dos 31 estados mexicanos em que dois terços do
eleitorado compareceram às urnas. Sua gestão não conseguiu lidar
com a dependência estrutural e histórica em larga medida da eco-
nomia norte-americana em termos de uma ruptura. Ao contrário
de suas promessas humanizadoras neste tópico, seu governo cola-
borou em grande medida com o congênere norte-americano para

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 91


restringir a migração (SANTOS; FRANZONI, 2020). Estes pontos,
em certa medida, resumem a lógica gramsciana de que algo precisa
mudar para que no essencial nada mude, em que pese a discussão de
processos históricos mais amplos no México como revolução passiva
tenha lastro também em outras análises (MORTON, 2011 e 2012).
O caso mexicano parece apontar que, aos poucos, a América
Latina pode retomar um processo de limitadas mudanças dentro de
novos governos progressistas como aqueles da Bolívia, Argentina e,
possivelmente, no Equador.
Por último, mas não menos importante, uma análise processual
histórica latino-americana em linhas gerais pode também convergir
para a sugestão investigativa de hipótese quanto à possibilidade de
análises de processos de revolução passiva de gestão do capitalismo
neoliberal com pequenas concessões a algumas demandas de classes
e grupos subalternos nas iniciativas dos governos latino-america-
nos de esquerda recentes. Nesta linha, a análise de Stolowicz (2020)
sugere algumas caracterizações gerais. Seriam elas: a implementa-
ção de políticas limitadas de neodesenvolvimentismo sem a busca
de transformações mais substantivas em termos de um desenvolvi-
mentismo distributivo; uma atenção maior à pobreza como uma das
características do “pós-neoliberalismo” situado depois dos anos 90;
a ausência de questionamento da distribuição de riqueza, com a sua
respectiva administração, sem enfrentá-la e falseando-a na lógica
multiculturalista (cotas, igualdade de oportunidades) e pequenas
concessões alardeadas como “empoderamento”; o apego a slogans
como a “Terceira Via”; o recurso a “parcerias público-privadas”; a
“nacionalização” do capital transnacional supostamente em nome
do “interesse nacional”; o bonapartismo como trânsito entre todas
as classes por parte das elites governamentais; o aumento do con-
sumo com enorme endividamento; o fortalecimento político das
Forças Armadas; Projetos de Infraestrutura (Plano Puebla-Panamá
e IIRSA – a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional
Sul-Americana) para o imperialismo e o capital transnacional
implementarem o neodesenvolvimentismo transnacional e, por fim,
reformas para contrarrevoluções, restaurações. Em uma palavra,

92 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


aquilo que a autora analisa como uma lógica da revolução passiva
como recolhimento discursivo, uma expropriação da linguagem dos
oponentes do neoliberalismo com um respectivo esvaziamento do
conteúdo transformador.
Depois deste brevíssimo esboço de análise conjuntural, passe-
mos às conclusões, ainda que também parciais.

Considerações Finais

Como resumir grosseiramente a conjuntura relacionada à pan-


demia no âmbito da América Latina neste início de 2021?
A pandemia como referência da conjuntura iniciada em 2020
atesta um movimento duplo: a desigualdade do tempo de sua difu-
são na América Latina, com um ritmo muito forte no Brasil, tor-
nando mais vulnerável os grupos e classes subalternos no Brasil e
em todo o continente latino-americano. Por que todas as tendências
explosivas que a pandemia e os movimentos massivos de 2019 nos
Estados Unidos e na Europa não se desdobraram em consequên-
cias de transformação de mais vulto no Brasil e na América Latina?
Seguem algumas hipóteses embrionárias que poderiam explicar.
1) A temporalidade de longo prazo e a consciência a ela asso-
ciada ainda não ter alcançado o grau de relações de força para
uma ruptura que leve a uma nova completa hegemonia nos termos
gramscianos, ou seja, de transformação radical e conduzida pelas
massas.
2) O caráter nacional integrado ao caráter internacional que
proporciona diferentes desdobramentos históricos.
3) As tendências passivizadoras das distintas combinações his-
tóricas que Gramsci atribuiu, como hipótese, aos processos históri-
cos de longa duração desde os processos de formação dos Estados
nacionais, ponto que poderia ser atribuído à América Latina. Em
outras palavras, os diferentes atenuantes passivizadores propor-
cionadas de forma desigual e combinada pelos distintos governos
dos Estados atenuaram, em certa medida, os efeitos aviltantes da

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 93


pandemia para que eles tivessem desdobramentos mais radicais.
Mesmo naqueles casos, como o brasileiro, em que não mais se trata
de um processo de revolução passiva, haveria elementos residuais
dotados de um caráter passivizador na conjuntura decorrentes da
temporalidade histórica anterior.
A temporalidade mais ampla, orgânica e de longa duração
insere a América Latina no capitalismo imperialista e na hegemonia
estadunidense. O significado disto nas diferentes conjunturas certa-
mente não seguirá uma linearidade única de transformação.
A crise de hegemonia em curso no Brasil e os diferentes tempos
de transformação e inserção dos movimentos sociais na América
Latina aumentam as incertezas e tornam mais difíceis as projeções
para o futuro próximo.
De forma desigual e combinada, elementos de mudança que
parecem retomar uma nova onda de governos progressistas - com
muitos limites, sublinhe-se - na Bolívia, na Argentina (com a impor-
tante conquista do direito ao aborto para as mulheres) e, possivel-
mente, no Equador confirmam que avanços e retrocessos na história
e nas transformações não são padronizados. Este mapa da transfor-
mação, neste momento, parece excluir o Brasil de forma contun-
dente, pelo menos neste momento.
As incertezas das avaliações persistem. Para uma melhor com-
preensão, resta apenas buscar combinar as tendências orgânicas
desiguais e combinadas das relações de força com cada novo ele-
mento conjuntural para buscar uma compreensão adequada de todo
este processo histórico com o devido processo investigativo apro-
fundado de todas as peculiaridades nacionais. Portanto, algo que
nem sempre a avaliação conjuntural e rápida permitem de forma
imediata ao analista.

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96 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


CAPÍTULO 5

A S LUTA S ÉTNICO - CL A SSIS TA S


NA AMÉRIC A L ATINA DO
SÉCULO X XI: APONTAMENTOS
SOBRE EQUADOR E BOLÍVIA

Leandro Galastri1

Introdução

No continente americano, no conjunto de suas sociedades plu-


riétnicas, não é possível criticar com alguma profundidade o fenô-
meno social do racismo sem associar sua renitência à questão dos
antagonismos das classes sociais. Na América Latina, o marxista
peruano José Carlos Mariátegui foi, de longe, quem mais tratou de
tal associação em suas últimas consequências. São bem conhecidos
os textos nos quais ele aprofunda essas reflexões, embora tenha se
ocupado centralmente das questões indígenas, dos povos autóctones
das Américas.2 Mariátegui demonstra como a penúria material e
cultural das populações herdeiras do império incaico se deve direta-
mente ao regime de propriedade da terra e como o racismo colonial

1 Professor de Ciência Política da Unesp/Marília. E-mail: leandro.galastri@unesp.br


2 Principalmente nos ensaios segundo (“O problema do índio”) e terceiro (“O problema
da terra”) de sua obra-prima “Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana”
(MARIÁTEGUI, 2010, pp. 53-114) e em “El problema de las razas em la America Latina”
(MARIÁTEGUI, 1974, pp. 21-86). Uma interessante análise sobre as contradições e avan-
ços da reflexão mariateguiana a respeito da questão negra pode ser lida em Forgues (2020,
pp.199-218).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 97


e criollo foi e continuou sendo utilizado para perpetuar os regimes
de escravidão e servidão impostos aos indígenas, camponeses em
sua grande maioria.
Para Mariátegui, apenas a liquidação do que ele chama de “feu-
dalidad” poderia assentar as bases econômicas, sociais e políticas
para a resolução do “problema das raças e da terra”. A colonização
da América Latina significou o retrocesso, o morticínio e a disper-
são, em diversas tribos agrícolas, de povos como o Quéchua e o
Azteca. Para Mariátegui, o preconceito da inferioridade das raças
indígenas justificou, para o colonizador branco, a máxima explora-
ção da força de trabalho dos povos autóctones, quando não a sim-
ples eliminação física: “Boa parte de nossos burgueses e gamonales
sustenta calorosamente a tese da inferioridade do índio. O problema
indígena é, em seu juízo, um problema étnico cuja solução depende
do cruzamento da raça indígena com raças superiores estrangeiras”
(MARIÁTEGUI, 1974, p. 29), uma tese que Mariátegui não consi-
dera sequer digna de debate.3
Para o imperialismo norte-americano ou inglês, as terras
indoamericanas teriam um valor econômico muito menor se a força
de trabalho contida nelas não fosse explorada em regime de semi-
-servidão ou precário assalariamento rural (MARIÁTEGUI, 1974,
p. 26). A condição para que a indústria açucareira peruana no início
do século XX, por exemplo, pudesse concorrer com a de outros
países detentores de técnicas mais avançadas, bem como a compen-
sação para os elevados fretes para sua exportação, eram garantidos
justamente pelo baixíssimo valor da mão-de-obra autóctone.
O racismo criollo aparece como elemento central das relações
de dominação e exploração das classes camponesas. Funciona como
obstáculo para a construção de uma verdadeira “questão nacio-
nal”, de luta por autonomia em relação aos países de capitalismo
central, nos países americanos com grande proporção de população

3 Quijano (2014, p.770) problematiza os usos que Mariátegui faz das categorias “raça” e
“etnia”, apontando tanto a originalidade do marxista peruano no uso do segundo ter-
mo em intercâmbio com o primeiro quanto, ao mesmo tempo, certa ambiguidade em tal
utilização.

98 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


indígena, o que Mariátegui considera ser um problema também
presente nos continentes asiático e africano. Assim, nesses países,
o racismo das burguesias e aristocracias fundiárias locais “contra
os índios, tanto contra os negros e mulatos”, está no mesmo nível
do desprezo que os imperialistas estrangeiros brancos sentem por
essas populações: “o sentimento racial atua nessa classe dominante
em um sentido absolutamente favorável à penetração imperialista”
(MARIÁTEGUI, 1974, p. 27). Um sentimento, segundo o pensador
peruano, que se estende também a grande parte das classes médias,
que imitariam a aristocracia e a burguesia em seu desdém pela
“plebe de cor”, a despeito de sua própria e característica mestiçagem.
Mas Mariátegui refuta o perigo reacionário de reivindicar um
retorno tout court ao passado das etnias do império incaico e suas
relações políticas, ou qualquer “fé messiânica” na restauração das
sociedades locais pretéritas. Para ele, apenas transformações nas
condições econômicas e sociais contemporâneas (principalmente o
regime de propriedade da terra) poderiam fazer com que a massa
indígena se elevasse material e intelectualmente. É nessas mudanças
que estariam as possibilidades reais da ideia de emancipação nacio-
nal, ou “o dinamismo de uma economia e uma cultura que tragam
consigo o gérmen do socialismo” (MARIÁTEGUI, 1974, p. 31).
Importante lembrar que Mariátegui destaca a coincidência
entre as reivindicações indígenas e as causas populares em geral
nos países com grande participação demográfica das populações
autóctones:

Em países como o Peru, a Bolívia e [...] o Equador, onde a


maior parte da população é indígena, a reivindicação do
índio é a reivindicação social e popular dominante. Nesses
países, o fator raça se entrelaça com o fator classe de uma
maneira que uma política revolucionária não pode deixar
de levar em conta. O índio quéchua ou aimará vê seu opres-
sor [...] no branco” (MARIÁTEGUI, 1974, p. 32).

Nessas sociedades, a estabilidade das relações de força repou-


saria sobre a aliança entre o latifúndio “feudal” e a burguesia

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 99


mercantil. O primeiro seria o inimigo a ser abatido primeiro, o que
deixaria sem forças a segunda. Além disso, é justamente a aristocra-
cia fundiária o pilar das relações de exploração e opressão da massa
indígena e camponesa. Assim, para o marxista peruano, uma polí-
tica socialista realista, que saiba atuar sobre as características con-
cretas dessas formações sociais, tem a obrigação de converter o fator
raça em elemento revolucionário.
Para o sociólogo peruano Aníbal Quijano (1999), a ideia de
“raça” é o mais eficaz instrumento de dominação social inventado
nos últimos 500 anos. A posição de centro hegemônico do nascente
capitalismo mundial permitiu aos europeus, em particular ociden-
tais, impor a ideia de raça na base da divisão mundial do trabalho e
do intercâmbio entre as regiões, bem como na “classificação social
e geocultural da população mundial” (QUIJANO, 1999, p. 12).
Permitiu, ainda, à Europa manter plena hegemonia na elaboração
intelectual deste processo histórico e mitificar seu próprio papel
nele:

“A modernidade, como padrão de experiência social, mate-


rial e subjetivo, era a expressão da experiência global do
novo poder mundial. [...] Sua racionalidade foi produto
da elaboração europeia, [...] foi a expressão da perspectiva
eurocêntrica do conjunto da experiência do mundo colo-
nial/moderno do capitalismo” (QUIJANO, 1999, p. 13).

A questão da “raça” e o consequente fenômeno do racismo são


o pilar da permanência e reprodução, na América Latina, do que
Quijano classifica de “colonialidade do poder”, que seria “um dos
elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder
capitalista” (QUIJANO, 2009, p. 73). Trata-se da imposição de uma
classificação racial/étnica da população do mundo como articula-
ção desse padrão de poder, classificação que atua em cada uma das
dimensões da existência social, originando-se e mundializando-se
a partir da colonização da América. Para Quijano, a percepção das
relações econômicas de poder no Peru presente nos “Sete Ensaios de
Interpretação da Realidade Peruana”, bem como as implicações do

100 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


que Mariátegui apresentava como o “fator raça”, são indispensáveis
para desenvolver contemporaneamente essas questões (QUIJANO,
2014, p. 769).
Quijano enxerga no marxismo de Mariátegui uma proposta de
“racionalidade alternativa”, em oposição à “racionalidade eurocên-
trica” que impediria reconhecer a heterogeneidade histórica, cultu-
ral e subjetiva desenvolvida na América Latina desde a conquista
espanhola (QUIJANO, 1995). Assim, Mariátegui assume a tarefa de
elaborar uma proposta autônoma frente ao cientificismo evolucio-
nista da socialdemocracia herdeira da Segunda Internacional, bem
como diante da opção bolchevique marxista-leninista da década de
1920: “Mariátegui procura constituir na América Latina o que Sorel
havia feito na França: um pensamento filosófico político vinculado
à herança intelectual de Marx, que parte dela, mas mantém sua
autonomia intelectual” (QUIJANO, 1995, p. 41).
Mas também com respeito ao próprio Sorel Mariátegui guarda
sua independência teórica, partindo das condições concretas e das
relações sociais de força em presença no Peru de sua época. Ele
assume o filósofo francês mais como uma referência para o sentido
de sua própria reflexão e para a elaboração de uma proposta própria,
que se apoiaria em algumas proposições sorelianas. Quijano sustenta
que tal proposta não é sistematicamente exposta em nenhum de seus
textos, mas suas ideias matrizes, as de uma racionalidade alterna-
tiva àquela do Ocidente, se delineiam seguindo o ritmo de seu pen-
samento, o movimento de suas indagações (QUIJANO, 1995, p. 42).
Tal racionalidade alternativa provém, antes de tudo, de Marx.
Contém os pressupostos de que o conhecimento é um produto
histórico-social, ou seja, sempre referido a um universo intersub-
jetivo historicamente constituído, sendo parte de um complexo no
qual ação e transformação estão associadas. As propostas teóricas
de Marx sobre a sociedade e o poder são assumidas como orienta-
ção central de suas indagações gerais. Por meio delas, no entanto,
desvela a originalidade da formação histórica da América Latina,
a qual não é possível compreender apenas com base na experiência
europeia.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 101


Para Quijano (1995, p. 44), a tensão subjetiva individual que
Mariátegui considerava necessária para participar na luta revolucio-
nária, para o envolvimento nos intentos de transformação da socie-
dade, é o elemento que dirige sua atenção para as ideias de Sorel,
bem como para o “neohegelianismo liberal” de Croce e Gobetti
para, num movimento semelhante ao do Gramsci dos Cadernos do
Cárcere, proceder a uma assimilação crítica dessas matrizes filosófi-
cas com base na estrutura dialética do pensamento de Marx.

Sugiro, por isso, que o mais característico em Mariátegui


é, precisamente, o projeto de elaborar uma racionalidade
integradora dessas fontes heterogêneas. E isso não diz
respeito apenas à sua liberdade em relação a suas fontes
intelectuais. São tão ou mais importantes os elementos
vivenciais e intelectuais que provém da própria experiên-
cia histórica, material e subjetiva, que correm pelas veias
profundas da experiência latino-americana, que não ape-
nas convergem para o mesmo canal das fontes intelectuais
anteriores, mas que as modulam, em determinado sentido
as transformam na constituição dessa racionalidade alter-
nativa” (QUIJANO, 1995, p. 45)

É esse esforço de integração de suas fontes intelectuais e expe-


riências de vida em uma “racionalidade alternativa” que faz possível
rejeitar qualquer acusação de ecletismo em Mariátegui. Trata-se,
antes, de um modo de elaboração da realidade a partir do centro
de sua historicidade. Esta não se desenvolve na América Latina
ao longo de uma linha homogênea e linear do tempo, mas é um
processo constituído por elementos históricos heterogêneos e que
não podem ser apreendidos de outra forma. No Peru, e na América
Latina, se trata então da questão de “como incorporar às ideias da
revolução socialista um sentido dotado da mesma força mobiliza-
dora para uma população com universos subjetivos heterogêneos e
até conflitivos” (QUIJANO, 1995, p. 46). Aqui, o problema “racial”
e/ou “étnico” é questão axial da heterogeneidade cultural, de modos
e de fontes de produção de sentidos e formas de vida material e
simbólica.

102 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Algumas questões sobre as lutas
contemporâneas na América Latina

Embora os pertencimentos étnicos na América Latina tenham


se tornado demograficamente menos homogêneos se levarmos em
consideração o início do século XX, ser pobre, subalterno, despos-
suído ou explorado nessa região do mundo significa, ainda, ser não-
-branco. E vice-versa. A América indígena, ou “Indoamérica”, ainda
se enfrenta com muitas das contradições desveladas e combatidas
por Mariátegui na década de 1920. O levante zapatista no sul do
México em 1994 foi o último grande exemplo do século passado,
cujo crepúsculo foi caracterizado pelas agruras sociais aprofunda-
das pela ascensão do neoliberalismo.
Na aurora do século XXI a América do Sul testemunhou a che-
gada ao poder de governantes, partidos e propostas políticas que se
reivindicavam francamente contrárias ao neoliberalismo vigente,
que se colocavam à esquerda desse regime político-econômico
vigente na região desde a década de 1990. A dita “onda progressista”
durou, mais ou menos, até meados da segunda década, quando
assédios direitistas em série e movimentos abertamente golpis-
tas foram minando, uma a uma, aquelas experiências.4 Honduras,
Paraguai, Equador, Argentina, Uruguai, Brasil e Bolívia sofreram
rodopios à direita que recolocaram essas sociedades nos trilhos do

4 Vários sinais indicam que sucessivos governos dos Estados Unidos atuaram, direta ou
indiretamente, na desestabilização desses regimes, fomentando a insurreição civil das eli-
tes e classes médias por meio da chamada “guerra híbrida”, uma combinação de métodos
de guerra não convencionais para agitar setores mais conservadores de uma população,
com o uso de grupos armados paramilitares - ou milícias, e da “lawfare”, prática de per-
seguição jurídico-política sistemática justificada pelo pretexto, ideologicamente incon-
testável, do “combate à corrupção”. Sobre a guerra híbrida, ver a reportagem do diário
eletrônico independente NSNBC (2012): “US-Military Logic behind Syrian Insurgency.
The ‘Special Forces Unconventional Warfare’ manual TC 18 01” (https://nsnbc.wordpress.
com/2012/02/15/us-military-logic-behind-syrian-insurgency-the-special-forces-uncon-
ventional-warfare-manual-tc-18-01/); o próprio documento das forças armadas estadu-
nidenses (DEPARTMENT...2010): “Special Forces-Unconventional Warfare”, em https://
nsnbc.files.wordpress.com/2011/10/special-forces-uw-tc-18-01.pdf; e ainda KORYBKO
(2018). Sobre a “lawfare”, uma rápida e objetiva abordagem é oferecida por MASCARO
(2020) em https://aterraeredonda.com.br/lawfare-uma-introducao/.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 103


ultraliberalismo econômico e, em alguns casos, do conservado-
rismo social de laivos neofascistas.
Recentemente, um kirchnerismo enfraquecido pela vulnerabi-
lidade econômica retornou ao poder na Argentina em 2019 e, em
plena pandemia da COVID-19, o MAS (Movimento ao Socialismo)
venceu novamente as eleições presidenciais na Bolívia, aproxima-
damente um ano após o golpe militar que havia derrubado Evo
Morales5. O governo chavista venezuelano, por sua vez, resiste
ainda a tentativas cotidianas de golpe patrocinadas pelo governo dos
Estados Unidos, pelas elites locais e, mais comumente, pela associa-
ção dos dois.
Em meio a essa conturbada história política recente, movimen-
tos populares se destacaram pelo protagonismo nas lutas de classes
intimamente associadas a questões étnicas em seus países. Nesse
texto, pretendo apresentar brevemente as características de dois
deles, os movimentos indígenas-camponeses de Equador e Bolívia.

Equador

A história recente do movimento indígena no Equador tem


um precedente importante em 1944, quando é fundada a Federação
Equatoriana de Índios (FEI). Nela foram articuladas reivindicações
de classe, como acesso camponês à terra, com demandas étnicas
centradas na cultura quéchua. Em 1986, a história da luta indígena
no país conheceu novo momento marcante com a fundação da
Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador – Conaie
(KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 179).
A Conaie nasceu e se desenvolveu em contexto de aprofun-
damento das políticas neoliberais, na virada das décadas de 1980 e

5 Um impressionante relato da violência sofrida pelos parlamentares do MAS durante o


golpe de Estado de 2019 é feito pela cientista política e ex-senadora do partido, Adriana
Salvatierra, na entrevista “La discriminación y el racismo se convirtieran em voluntad
de Estado”, em https://www.telesurtv.net/opinion/La-discriminacion-y-el-racismo-se-
convirtieron-en-voluntad-de-Estado-20200812-0039.html. (SALVATIERRA, 2020).

104 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


1990, agregando movimentos indígenas de todo o país (regiões cos-
teira, andina e amazônica). A organização surgia, assim, a partir
da estruturação de diferentes organizações indígenas regionais,
congregando a maior parte das organizações indígenas do país e
seus diferentes grupos étnicos. Em maio de 1990, promoveu um
levante abrangente, no qual milhares de índios protestaram contra
suas condições sociais de vida, inaugurando nova etapa na atua-
ção política das organizações indígenas. Constava do programa de
reivindicações do movimento, além da denúncia do caráter opres-
sivo e excludente do sistema econômico em vigor, a fundação de
um “Estado Plurinacional” em oposição ao modelo uninacional
(SOUSA; FERRAZ, 2016, p. 78).
Várias manifestações e iniciativas políticas foram lideradas
pelo movimento indígena sob a coordenação da Conaie ao longo
de década de 1990, como “La marcha por la Vida” e a campanha
dos “500 Años de Resistência Indígena y Popular”, em 1992; “La
Movilización por La Tierra, em 1994; participação na campanha
eleitoral em 1996; “Jornadas de Lucha”, em 1997 e 1999, além, final-
mente, dos “Levantes” de 2000 (SOUSA; FERRAZ, 2016, p. 78). Tais
movimentos apresentavam reivindicações que contemplavam toda a
sociedade equatoriana e marcaram a ascensão do movimento indí-
gena na cena social do Equador:

Essas manifestações baseavam-se em uma dupla estraté-


gia: por um lado, lutas não institucionalizadas, via ações
de massa e de protestos de forma aberta e direta contra
o Estado; por outro lado, ações institucionalizadas bus-
cando, por dentro do sistema político, realizar as mudan-
ças que possibilitassem, na visão de parte da militância,
implementar o projeto político do movimento indígena
(SOUSA; FERRAZ, 2016, p. 78)

Essa revigorada atuação do movimento indígena equatoriano


e tomada de consciência dos povos originários ocorreu por meio
da associação da memória histórica através, por exemplo, da foca-
lização da crítica às celebrações dos 500 anos da invasão colonial

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 105


ocidental e da memória imediata de uma invisibilização crônica das
demandas indígenas e das classes populares, severamente castigadas
pelas políticas econômicas neoliberais.6
A reivindicação da instituição do Estado Plurinacional permi-
tiu que um debate de décadas pudesse se concretizar em um pro-
grama político de demandas ao Estado existente. A ideia incluía
modificações estruturais no modelo econômico que viabilizassem
um modelo de economia mista, ao mesmo tempo em que denun-
ciava o caráter colonial e excludente da forma política vigente.
Encontrava-se aí a chave que permitiu combinar as demandas pró-
prias do movimento indígena e as das classes sociais subalternas. A
crescente mobilização nacional convergiu para a formação, nos anos
de 1995 e 1996, do Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik
Nuevo País (MUPP-NP), que combinou movimentos indígenas e
urbanos. No mesmo ano de 1996, o MUPP-NP concorreu às elei-
ções locais e conseguiu importante representação nos municípios
e no Congresso Nacional (KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 182).
O “Pachakutik”, como ficou conhecido, nasceu como um par-
tido político alternativo, com um programa que assimilava as várias
demandas dos diferentes atores sociais envolvidos em seu processo
de criação, com pontos que postulavam, por exemplo, oposição ao
modelo neoliberal e “a quem o sustenta”, aliança política e social
antineoliberal, democracia “autenticamente” participativa, inter-
rupção das privatizações, fortalecimento das empresas públicas
e cogestão com as comunidades e setores organizados, não paga-
mento da dívida externa, redistribuição da riqueza e do poder nos
níveis social e territorial (PLAN..., 2006). Fica clara a afirmação da
necessidade da mudança do caráter do Estado centralizado e homo-
gêneo para outro de tipo descentralizado e nacionalmente plural,

6 Essa intensificação da mobilização camponesa-indígena adquiriu contornos continentais:


“Não por acaso ocorre, em 1990, a primeira ‘Marcha pelo Território e pela Dignidade’, na
Bolívia, convocada pelos povos indígenas do oriente boliviano ou o levante em armas, em
1º de janeiro de 1994, dos indígenas zapatistas liderados pelo EZLN na selva Lacandona
de Chiapas; enquanto, já em 1996, na Bolívia, ocorria a segunda ‘Marcha pelo Território,
pelo Desenvolvimento e pela Participação Política dos Povos Indígenas” (KLACHKO;
ARKONADA, 2017, p. 181).

106 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


em que o impulso do funcionamento econômico não seja o lucro,
mas uma lógica comunitária tendo o bem-estar como prioridade.
Para Sousa e Ferraz (2016, p. 85-86),

apesar de a proposta política do Pachakutik-NP buscar


refletir o conjunto das forças sociais que o compunham,
percebe-se [...] o predomínio de proposições originais do
movimento indígena, cada vez mais compartilhadas por
outros sujeitos políticos e servindo de núcleo primordial
de um projeto de caráter global do conjunto dos grupos
subalternos do país.

A Conaie seguiu sendo, no entanto, a principal referência das


organizações populares no choque e/ou interlocução com o Estado,
reforçando e consolidando sua legitimidade, aumentando seu reco-
nhecimento como representante do movimento indígena e das classes
e grupos sociais subalternos do Equador, e transformando o movi-
mento indígena em “fator real de poder” (DÁVALOS, 2001, p. 190).
Tanto em seu discurso quanto em suas formas organizativas, o
movimento indígena equatoriano sofreu uma série de transforma-
ções qualitativas ao longo da década de 1990. Tais transformações
foram tomando corpo na sociedade, que acabou por incorporar os
indígenas como um poderoso ator social no cenário nacional. Desde
os levantes do início da década de 1990 até a criação e participação
nas eleições do partido político Pachakutik, o movimento indígena
equatoriano agregou à luta pela terra, característica das décadas de
1950 a 1980, a luta pela plurinacionalidade, o que significava questio-
nar a própria estrutura jurídica do Estado (DÁVALOS, 2001, p. 190).
O ápice desse desenvolvimento de forças ocorreu em janeiro de
2000, quando foi anunciada a dolarização da economia pelo então
presidente Jamil Mahuad, medida que fez parte de seu pacote neoli-
beral do combate à inflação e socorro a bancos privados. No dia 20,
os movimentos populares tomaram o Congresso Nacional e a Corte
Suprema de Justiça. Milhares de populares, coordenados principal-
mente pela Conaie, marcharam em direção ao Palácio do Governo
e destituíram Mahuad, que fugiu do país. O poder foi ocupado de

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 107


forma relâmpago por um triunvirato do qual faziam parte o presi-
dente da Conaie e o coronel Lucio Gutierrez. No dia seguinte assu-
mia o vice-presidente Gustavo Noboa. Gutierrez é eleito presidente
em 2002.
Os próximos anos continuariam a conhecer grandes mobi-
lizações populares antineoliberais, que culminaram na queda de
Gutierrez em 2005. Em 2006, Rafael Correa vence em segundo turno
as eleições presidenciais com seu movimento “Aliança País”, apoiado
pela Conaie, outros movimentos indígenas, setores da esquerda e
organizações populares. Correa instala um processo constituinte e
aprova em 2008, por referendo popular, a nova Constituição, com
numerosos avanços nos direitos sociais e culturais do povo equa-
toriano. Além disso, promoveu uma auditoria da dívida externa
que, entre 2008 e 2011, poupou o equivalente a 7 bilhões de dólares,
investidos em políticas sociais e aumento do salário mínimo, o que
resultou em uma diminuição geral de 30% nos índices de pobreza
desse período (KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 187).
Em 2017, o ex-vice-presidente de Rafael Correa, Lenín Moreno,
foi eleito para sucedê-lo pelo partido Aliança País. Rapidamente,
porém, Moreno abandonou os princípios da chamada “revolução
cidadã” promovida por Correa e passou adotar ortodoxos princí-
pios neoliberais na condução da economia nacional, fazendo com
que o país regredisse em relação aos avanços sociais obtidos ante-
riormente. O governo de Moreno também perseguiu Correa, pro-
movendo uma investigação que o condenou, sumariamente, a oito
anos de prisão por “corrupção”. O ex-presidente vive, hoje, exilado
na Bélgica. No momento em que este texto é escrito, o Equador
aguarda pela definição, por meio de recontagem de votos, do candi-
dato que disputará o segundo turno das eleições de 2021 com o líder
candidato correísta, o economista Andrés Arauz.

108 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Bolívia

A estrutura econômica da Bolívia, da qual tiveram de partir


as ações recentes do do governo popular de Evo Morales, tem as
seguintes características:

1) Uma economia de base natural, pouco integrada ao


mercado, camponesa e com fortes traços comunitários,
incluindo cerca de 40% da população; 2) uma economia de
base familiar, forte em áreas urbanas, ligada ao mercado,
abarcando cerca de 35% da população; 3) uma economia
de base mercantil, calcada em tecnologias mais sofisticadas
e contando com mais divisão do trabalho, dela formando
parte as indústrias mineira e petrolífera, abarcando 25%
da população (GUIMARÃES; DOMINGUES; MANEIRO,
2009, p. 15).

Na Bolívia, o neoliberalismo chegou oficialmente em 1985, com


o presidente Víctor Paz Estenssoro, que aplicou as notórias políticas
de privatização de empresas públicas (nesse caso específico, conces-
sões às empresas estrangeiras, as “capitalizações”) justificadas pela
suposta ineficiência dos serviços e empresas estatais (ineficientes
em vários casos, pois permanentemente sucateadas pelos próprios
governos). A “abertura econômica” foi feita entregando-se o con-
trole da economia ao capital transnacional. As consequências sobre
a sociedade, embora, como lembram Klachko e Arkonada (2017,
p.105), “não sejam patrimônio (exclusivo) dos governos neoliberais”,
foram trágicas: “apenas o departamento de La Paz continha, em
2002, 50,9% de pobres”.
Há antecedentes históricos recentes que são importantes para
se considerar a trajetória política e social no país que desembo-
cou na eleição de Evo Morales, em 2005. Entre meados das déca-
das de 1980 e 1990 atuou no país o Exército Guerrilheiro Túpac
Katari (EGTK). Junto à utilização das contribuições teóricas do
marxismo e do leninismo clássicos e latino-americanos, o EGTK
também se utilizou das experiências organizativas tradicionais dos
povos nativos Aymara e Quechua, dos camponeses e dos operários

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 109


sindicalistas. Essa insurgência armada reivindicava um Estado
indígena que retomasse modos de organização sócio-comunitários
socialistas e questionava as políticas neoliberais já então em curso
no país (KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 105).
O EGTK atuava tanto no âmbito da legalidade institucional
quanto fora dela. No primeiro caso, organizava grupos de forma-
ção política junto aos trabalhadores mineiros, operários e indígenas,
participava em atividades de organizações de trabalhadores, como
congressos sindicais e práticas coletivas de resistência ao neolibe-
ralismo, publicação de revistas e livros que articulavam, no estudo
teórico, o marxismo e o indigenismo. A dimensão ilegal ou clandes-
tina das atividades centrava-se no treinamento militar para ações de
guerrilha, com o objetivo de organizar a sublevação das comunida-
des indígenas (LINERA, 2018, p. 11).7
Outro importante antecedente mobilizatório ocorreu em
agosto de 1990, quando a país testemunhou a “Marcha Indígena
pelo Território e a Dignidade”, que daria visibilidade nacional e
relevância política para o movimento indígena. Foi um impulso
para que as reivindicações ligadas à diversidade étnica boliviana
conseguissem se institucionalizar e alcançar um público de massa,
para além dos debates entre intelectuais, políticos e ativistas. A
“marcha” evidenciou uma ampliação de movimentações sociais e
políticas que tinham, agora, base também em identificações étnicas.
Desenvolveu-se uma nova agenda política que incluía as deman-
das pelo reconhecimento institucional da diversidade étnica, dos
diferentes povos indígenas como sujeitos coletivos de direito (e não
apenas individuais). Além disso, essa nova demanda se conectava
com a reivindicação da propriedade coletiva do território, bem como
do uso de seus recursos naturais conforme suas tradições. As coleti-
vidades indígenas, dessa forma, reforçaram a luta por sua igualdade
econômica, social e política. Assim, os movimentos indígenas acres-
centavam a questão da etnicidade às suas lutas, sem negar, por sua

7 Diversos dirigentes do EGTK foram presos em 1992 e passaram vários anos na cadeia,
entre eles o ex-vice-presidente boliviano Álvaro García Linera.

110 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


vez, sua condição simultânea de classe camponesa (GUIMARÃES,
2009, pp. 89-91).
Finalmente, dois momentos centrais de luta de classes na
Bolívia marcaram esse processo de inflexão da sociedade boli-
viana para o protagonismo dos movimentos indígenas populares
na política nacional. O primeiro, a “Guerra da Água” de 2000, em
Cochabamba, se caracterizou por uma intensa mobilização popu-
lar contra os planos de privatização dos serviços de abastecimento
e irrigação pelo presidente Hugo Banzer, em benefício da empresa
estadunidense Bechtel. Houve massivas lutas sociais e confrontos
com as forças de segurança, sendo os camponeses o pilar central
da resistência. O governo foi derrotado e retirou a concessão. Um
dos principais efeitos da vitória popular, nesse caso, foi a organi-
zação política que se consolidou entre os populares: “um dos saltos
qualitativos (...) é a constituição de uma instância de organiza-
ção unificada, que respeita e responde às assembleias populares”
(KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 106).
O segundo desses momentos foi a chamada “Guerra do gás”,
em 2003. Foi um ciclo de confrontação popular contra a privatiza-
ção dos hidrocarbonetos do país para a empresa australiana Pacific
LNG, que exploraria e exportaria o gás pelo porto chileno de Tarija.
Formaram-se jornadas insurrecionais indígenas e populares nos
meses de setembro e outubro, concentradas nas cidades de El Alto
e La Paz. Nessa insurreição popular desempenharam papel central
as organizações de bairros, as “juntas vicinais”, as organizações
sindicais e indígena-camponesas. As forças repressivas enviadas
pelo presidente Sanchez de Lozada deixaram 75 mortos nas fileiras
populares. Para enfrentar a repressão, trincheiras foram construídas
no meio das ruas, mantidas pelo alto grau de organização popular.
Em 17 de outubro, o presidente renunciou e fugiu para os Estados
Unidos (KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 109).
Dessa forma e com esse histórico acumulado das lutas recen-
tes, se formou na Bolívia um novo sujeito político plural que é com-
posto, em seu “núcleo duro”, pelo movimento indígena e camponês,
que resolve e supera a “falsa dicotomia entre classe e identidade”.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 111


Nessa perspectiva metodológica (mas, na vida real, fundamental-
mente política), a luta de classes atravessa os conflitos bolivianos e
se entrelaça com as reivindicações dos povos originários, fundindo
a luta pela terra com aquela pelo reconhecimento de suas culturas
e tradições e desembocando em uma estratégia popular de luta
de libertação nacional (KLACHKO; ARKONADA, 2017, p. 161). É
por esse caminho que o líder camponês do movimento cocalero e
representante do partido Movimento ao Socialismo – Instrumento
Político para a Soberania dos Povos (MAS_IPSP) chega ao poder na
Bolívia em 2005.
Há um processo de transformação em curso na Bolívia ini-
ciado, portanto, em 2000, com a luta dos setores populares contra
a privatização da água, que passou pelo acúmulo de forças desses
setores e a vitória eleitoral de Evo Morales e do MAS (Movimento
ao Socialismo). A partir daí, iniciou-se o que Linera (2019) chamou
de uma relação “tensa e criativa” entre o Estado e as reivindicações
dos movimentos populares, no sentido de se tentar avançar na “uni-
dade plurinacional e popular boliviana”. Trata-se de constatar que,
nesse período, houve a formação de um bloco popular notadamente
indígena, camponês e operário. Faz parte do projeto de construção
da hegemonia desse bloco na Bolívia mover-se em direção ao que
se chama de “socialismo comunitário do bem-viver”. A base desse
projeto encontra-se, num primeiro momento, no processo de indus-
trialização e nacionalização das indústrias dos setores estratégicos
do país e a soberania de seus recursos energéticos.
Linera (2019, p. 17) enfatiza o que considera ser “a consolida-
ção de uma estrutura estatal plurinacional, autônoma”, cujas soli-
dez e estabilidade se encontrariam “na unidade do povo boliviano e
suas organizações indígenas-camponesas, operárias, comunitárias
e populares”. Em geral, a estratégia aparece como a construção de
uma identidade indígena-camponesa na Bolívia, em que a condição
“indígena” raramente se separa da condição “camponesa” e que o
qualificativo étnico com frequência aparece primeiro. Isso signi-
fica que, para falarmos de qualquer vontade “nacional-popular” no
país, tanto uma condição – “nacional” – quanto a outra – “popular”

112 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


– estão atreladas à condição indígena. Em seus próprios termos, é
uma proposta plurinacional descolonizadora, que constrói “uma
única nação estatal, na qual convivam múltiplas nações culturais e
povos (LINERA, 2019, p. 19, grifos do autor).
Na dimensão da política institucional, a opção é formada por
variadas formas plurais de democracia, que incluem as práticas de
democracia representativa, direta e comunitária, além da descen-
tralização do poder pela prática da desconcentração territorial e das
autonomias regionais. Assim, o Estado plurinacional, a autonomia,
a industrialização dos recursos naturais e uma economia plural
formariam os pilares da “Revolução Democrática e Cultural” na
Bolívia (LINERA, 2019, p. 20). Por fim, o governo de Evo Morales
se denomina um “governo de movimentos sociais”, em que Linera
enumera setores sociais que constituem uma espécie de vanguarda
sem hierarquia – mas nessa ordem - da nova relação de forças na
Bolívia: indígenas, camponeses, trabalhadores, operários, comuni-
dades e estudantes (LINERA, 2019, p. 59).
Essa experiência de governo popular na Bolívia sofreu uma
interrupção de aproximadamente um ano, entre o golpe civil mili-
tar que depôs o presidente Evo Morales em novembro de 2019, utili-
zando extrema violência contra os políticos e partidários do MAS e
a população mais pobre do país, e a vitória e posse do candidato do
partido Luís Arce, ex-ministro de Morales, em novembro de 2020. O
país agora procura retomar os trilhos do desenvolvimento político
e social que caracterizou a primeira gestão do MAS, numa situação
agravada pela pandemia de COVID 19.

Considerações provisórias

Vimos acima, ainda que em breves traços, como o movimento


indígena foi a coluna vertebral de intensos processos de luta étnico-
-classista em parte importante da Indoamérica andina. São movi-
mentos e organizações populares movidos por suas memórias de
lutas ancestrais ou, como diria José Carlos Mariátegui, “elementos

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 113


de socialismo prático” (2010, p. 69) presentes, sobretudo, em sua
relação material e simbólica com seus territórios. O resgate de sua
plurinacionalidade, aliás em constante redefinição, articula e cons-
titui os interesses indígenas em um bloco nacional popular de luta e
resistência antineoliberal, para o qual o reconhecimento estatal de
suas culturas, idiomas, símbolos e tradições próprias não se separa
do embate pelas condições materiais de sua existência e reprodução
de suas vidas, como bem demonstraram suas lutas nos últimos 500
e tantos anos. O estudo mais aprofundado e detalhado da evolu-
ção das questões étnica e camponesa da América Latina, em chave
de resistência ao capital, requer a consolidação do que Antonio
Gramsci chamou de uma “historiografia dos subalternos”, que dê
conta da identificação dialética entre história e política e funcione
como instrumento de emancipação progressiva das classes popula-
res indoamericanas.

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A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 115


CAPITULO 6

PLEBISCITO EN CHILE:
¿QUEREMOS UNA NUE VA
CONS TITUCIÓN?1

José Luis Valenzuela

Introducción

El día 15 de noviembre de 2019, tras larguísimas reuniones, los


partidos políticos chilenos con representación parlamentaria, con la
excepción del Partido Comunista, lograron el llamado “Acuerdo por
la Paz Social y la Nueva Constitución”.
Los puntos de dicho acuerdo incluyen:
1. (Punto 1) Los partidos que suscriben este acuerdo vienen
a garantizar su compromiso con el restablecimiento de la paz y el
orden público en Chile y el total respeto de los derechos humanos y
la institucionalidad democrática vigente.
2. (Punto 2) Un Plebiscito en el mes de abril de 2020 que
resuelva dos preguntas: a) ¿Quiere usted una nueva Constitución?;
b) ¿Qué tipo de órgano debiera redactar la nueva Constitución?
Convención Mixta Constitucional (50% de Constituyentes elec-
tos y 50% de parlamentarios designados por el Congreso de entre
sus propios miembros), o Convención Constitucional (100% de
Constituyentes electos).

1 Presentado por este autor en el XX Foro de Coyuntura de la UNESP, Brasil, agosto 28, 2020

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 117


3. (Punto 5) El órgano constituyente que en definitiva sea ele-
gido por la ciudadanía, tendrá por único objeto redactar la nueva
Constitución, no afectando las competencias y atribuciones de los
demás órganos y poderes del Estado y se disolverá una vez cumplida
la tarea que le fue encomendada. Adicionalmente no podrá alterar
los quorum ni procedimientos para su funcionamiento y adopción
de acuerdos.
4. (Punto 6) El órgano constituyente deberá aprobar las normas
y el reglamento de votación de las mismas por un quorum de dos
tercios de sus miembros en ejercicio.
5. (Punto 8) Una vez redactada la nueva Carta Fundamental
por el órgano constituyente ésta será sometida a un plebiscito rati-
ficatorio. Esta votación se realizará mediante sufragio universal
obligatorio.
6. (Punto 11) El plazo de funcionamiento del órgano consti-
tuyente será de hasta nueve meses, prorrogable una sola vez por
tres meses. Sesenta días posteriores a la devolución del nuevo texto
constitucional por parte del órgano constituyente se realizará un
referéndum.
La Constitución vigente, llamada Constitución de 1980 o
Constitución de Pinochet, fue redactada sin participación popular
y aprobada en un Plebiscito celebrado en estado de sitio, sin que
existiera un registro electoral, un padrón de votantes, ni libertad
para hacer campaña en contra. Comenzó a regir de forma transito-
ria (amoldada a la Junta de Gobierno) el 11 de marzo de 1981, y de
manera plena el 11 de marzo de 1990, junto con la reanudación del
proceso democrático en Chile. (ZALDÍVAR, 2004).
Su itinerario incluyó una Comisión de Estudios de la Nueva
Constitución Política, integrada por siete personas nombradas por la
Junta de Gobierno (conocida como Comisión Ortúzar, 1976-1978),
la posterior intervención modificatoria del Consejo de Estado2
(1978-80) y, finalmente, las modificaciones de la Junta de Gobierno.
(BCN, 2018).

2 Cuyas autoridades también eran nombradas por la Junta de Gobierno

118 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Las modificaciones introducidas por la Junta de Gobierno
motivaron la renuncia de don Jorge Alessandri a la presidencia del
Consejo de Estado (agosto 12, 1980), ya que dichas modificaciones
alteraron significativamente el texto corregido por el ex presidente
de Chile.
Puede concluirse así que, tanto en su redacción como en su
aprobación, la Constitución de 1980 estuvo muy lejos de emanar de
un proceso democrático.
Tampoco había sido tan democrática la génesis de su antece-
sora, la Constitución de 1925, suspendida en su vigencia tras el golpe
de estado de 1973.
En efecto, el presidente de entonces, don Arturo Alessandri
Palma, con el apoyo de la facción dominante del ejército, encabe-
zada por el entonces futuro presidente de Chile don Carlos Ibáñez
del Campo, convocó a una Comisión Consultiva de 122 miembros
directamente nominados, cuya consulta derivó en la formación de
una Comisión de 15 personas encargadas de la redacción de una
nueva Constitución, la que fue presidida por el propio Alessandri
Rodríguez. La redacción definitiva fue desarrollada entre el 16 de
abril y el 13 de julio de 1925. El 3 de agosto se convocó a un plebiscito
para el día 30 del mismo mes, el que aprobó la Constitución con un
43,03% de los votos3 (BCN-2, 2020).
Así, la Constitución de 1925 no fue democrática en su génesis,
y el plebiscito aprobatorio merece reproches.
La anterior Carta Magna de Chile, la Constitución de 1833,
tampoco responde a cánones democráticos. Fue redactada por una
Comisión de siete miembros nominados por la Gran Convención,
Asamblea de 36 miembros formada principalmente por diputados
(30 de los 36). Aprobado el texto por la Gran Convención, fue pro-
mulgado y jurado por el Presidente de Chile don José Joaquín Prieto.
Se sustituía así la Constitución de 1828 (BCN, 2020).
En sus orígenes, las tres constituciones reseñadas son un pro-
ducto de una Guerra Civil (1829-30, decidida por la Batalla de Lircay

3 El Plebiscito pedía pronunciarse por una de tres iniciativas, a saber, aprobar el proyecto tal
cual estaba, aprobar el proyecto pero con régimen parlamentario, rechazar el proyecto.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 119


a favor del bando conservador), un movimiento social apoyado por
la mayoría del ejército y el Presidente, en contra de un Congreso
conservador, 1924-25) y, ahora, un movimiento social, espontáneo,
autoconvocado y alejado de los políticos de derecha e izquierda,
también originado en razones sociales.
En conclusión, Chile no ha tenido nunca una Constitución
que emane de la voluntad popular expresada en una Constituyente
elegida en su totalidad por los ciudadanos electores. Tampoco una
constitución nacida de la reflexión, sino de la violencia y sus vence-
dores. Debe entonces rescatarse lo valioso de vivir un proceso cons-
tituyente nacido a partir de manifestaciones sociales de la ciudada-
nía, sin dejar por ello de reconocer las limitaciones del proceso.

El Movimiento Social chileno y la


Revolución Social de Octubre 2019

El llamado “Acuerdo por la Paz Social y la Nueva Constitución”


es fruto directo de una gran movilización social del pueblo chileno,
cuyos orígenes se remontan a movimientos estudiantiles de los años
2006 en adelante.
En 2006, los estudiantes se movilizaron con reivindicaciones
económicas que pronto derivaron hacia una demanda “por igualdad
de acceso a una educación de calidad”. Los estudiantes, en su gran
mayoría de la educación secundaria, eran una primera generación
nacida después de la dictadura de Augusto Pinochet (septiembre
1973- marzo 1991) (DONOSO, 2011). El movimiento resurgió con
fuerza en varias ocasiones, en particular los años 2011, 2016 y 2017.
Las manifestaciones se intensificaron a partir de 2018
(Gobierno de Sebastián Piñera) y culminaron el viernes 18 de octu-
bre con una masiva evasión del pago del transporte metropolitano
(Metro de Santiago), convocada por los estudiantes y acogida por la
población de Santiago y luego por todo el país.
El volumen del movimiento y la cuantía de la violencia sorpren-
dieron a la mayor parte del país. Aparecieron grupos organizados

120 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


dedicados a actos de violencia de gran connotación y hubo una
represión extremadamente violenta contra gente que se manifestaba
de manera pacífica. Aun se investiga cuáles acciones correspondie-
ron a grupos de extrema izquierda, de extrema derecha, a infiltra-
dos, a la delincuencia, a grupos insertos en organismos armados
de carácter oficial. En los primeros días un gobierno sorprendido y
descolocado llamó a un estado de sitio y declaró que estábamos en
guerra, basado en dudosas investigaciones de inteligencia que habla-
ban de miles de infiltrados provenientes de la Venezuela chavista,
instigados por la Rusia heredera de la Unión Soviética y su aliado
cubano (al estilo puro de la Guerra Fría).
A una semana del estallido social se produjo en el país la mayor
concentración popular de la historia, que movilizó a aproximada-
mente un 20% de la población a lo largo y ancho del país, manifes-
tándose de manera absolutamente pacífica y descolocando aún más
a las autoridades, incluido el ejecutivo y el legislativo.
En efecto, se trata de un movimiento social conducido por
todos y por nadie. El pueblo movilizado no responde a ninguna cor-
riente política, incluye a la mayoría de las clases sociales que con-
forman el 80% de la población. Uno de sus medios de expresión, el
“Matapakos”, decía en diciembre:
Hasta que entiendan que ningún partido nos representa
NI IZQUIERDA NI DERECHA
Somos los de abajo y vamos por los de arriba
Citado en (VALENZUELA; ACUNA, 2020: 187)
El Acuerdo por la Paz Social ya citado es el resultado de un
esfuerzo coordinado por la unión del gobierno y la oposición, que
buscó, y en buena medida consiguió, encauzar el movimiento por
caminos conocidos, con la promesa de una nueva constitución.
Ya en agosto 2020, es necesario entender con claridad que la
paz social en Chile obedece a una tregua decidida por un movi-
miento social como el descrito. Los “de arriba” deben demostrar con
hechos indiscutibles que han escuchado a “los de abajo”. La forma de
demostrar su nuevo compromiso es a través de una nueva constitu-
ción que inequívocamente cambie el modelo imperante por otro de

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 121


justicia social y participación de todos en los frutos del progreso. Las
manifestaciones son menores pero permanentes.

Los antecedentes macroeconómicos del hastío social

Un análisis completo de dichos antecedentes se desarrolla en el


ya citado libro “La Revolución Chilena de Octubre”, de este autor en
conjunto con Manuel Acuña.
La esencia del problema está en el desbalance producido entre
el crecimiento económico del país y el mejoramiento de la situación
de las clases media y baja (en el orden económico).
Sin dudas, en los últimos 30 años (1990-2018), la riqueza eco-
nómica del país ha crecido de manera considerable, siendo Chile
uno de los tres países de América Latina (A.L.), junto a República
Dominicana y Panamá, con el mayor crecimiento del ingreso per
cápita. Asimismo, el crecimiento de estos tres países más Uruguay y
Bolivia (todos ejemplos positivos de A.L.) se contrasta con el creci-
miento del Continente Latinoamericano y el Mundo en Gráfico Nº1.
Sucede lo mismo con la disminución de la pobreza (2000-2018
o primer año con datos-último año con datos). Uruguay, Chile y
Perú muestran la mayor disminución, tanto en pobreza como en
pobreza extrema (% de pobreza en 2018 como porcentaje del % de
pobreza en 2000).
Al analizar la disminución de la desigualdad en A.L., medida
según la evolución del Índice Gini, Chile deja de estar entre los tres
mejores países de ALC. Asimismo, la disminución de la desigualdad
en Chile es inferior a la media de la disminución de desigualdad en
A.L. Sea que dicha disminución se mide en porcentaje o se mide
en puntos de disminución, Chile está bajo la media latinoameri-
cana. La comparación entre Chile y América Latina se muestra en
el Cuadro Nº2.
Esta carencia es aún más grave si se considera que Chile ha
alcanzado en 2018 el nivel de ingreso medio per cápita (US$ Intl.
PPP) de 25.000, cifra simbólica y umbral de comparación con los

122 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


países que han logrado dicha meta. Esta relación entre el nivel de
desigualdad de los países el año en que alcanzan dicho nivel de
ingresos se muestra en el Gráfico Nº2, donde cada punto representa
un país que alcanzó dichos ingresos a partir de 1990.

Gráfico Nº1:

Fuente: (Banco Mundial, 2020)

Cuadro Nº1: Evolución de Pobreza y Pobreza Extrema en A.L. 2000-2018

Pobreza Extrema Pobreza 2020 vs 2000


País 2000 2018 2000 2018 Pobreza Extrema
Uruguay 19,3% 2,9% 2,6% 0,1% 15,0% 3,8%
Chile 42,8% 10,7% 6,3% 1,4% 25,0% 22,2%
Perú 45,1% 16,8% 16,3% 3,7% 37,3% 22,7%
Ecuador 53,5% 24,2% 20,2% 6,5% 45,2% 32,2%
Panamá 29,8% 14,5% 13,1% 6,2% 48,7% 47,3%
Bolivia 67,4% 33,2% 38,1% 14,7% 49,3% 38,6%
Brasil 38,4% 19,4% 7,2% 5,4% 50,5% 75,0%
Paraguay 37,7% 19,5% 13,2% 6,5% 51,7% 49,2%
Colombia 53,8% 29,9% 23,8% 10,8% 55,6% 45,4%

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 123


Costa Rica 27,5% 16,1% 4,9% 4,0% 58,5% 81,6%
Venezuela 44,2% 28,3% 4,8% 12,0% 64,0% 250,0%
R. Domin. 32,5% 22,0% 9,5% 5,0% 67,7% 52,6%
A. Latina 44,0% 30,0% 12,1% 10,7% 68,2% 88,4%
El Salvador 49,1% 34,5% 17,5% 7,6% 70,3% 43,4%
Nicaragua 65,1% 46,3% 35,8% 18,3% 71,1% 51,1%
México 48,8% 41,5% 13,8% 10,6% 85,0% 76,8%
Guatemala 53,6% 50,5% 16,9% 15,4% 94,2% 91,1%
Honduras 57,4% 55,7% 27,3% 19,4% 97,0% 71,1%

Fuente: (CEPALSTAT, 2020)

Cuadro Nº2: Disminución del Índice Gini de Chile y A.L. período 2000-2017

Disminución puntos Gini Disminución % Gini


América Latina 6,3 11,9%
Chile 5,3 10,5%

Fuente: (CEPALSTAT-2, 2020)

Gráfico Nº2: Índice Gini de los países al alcan-


zar ingreso per cápita de US$ Intl. 25.000 PPP

Fuente: (Banco Mundial, 2020) (Ingreso per cápita PPP (2) e Índice Gini (3)),
(Universidad de Texas, 2020) (Índice Gini si Banco Mundial no tiene la información),

124 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


(WID, 2020) (Ingreso por deciles para Bahréin, utilizado para estimar su Gini en la
ausencia de datos de otras fuentes).

La situación producida por el desbalance entre el progreso


económico medio del país y la pobre mejoría de su distribución del
ingreso, unida a un creciente deseo de las nuevas clases medias por
afirmar su reciente estatus llevó, entre otras cosas, a un creciente
endeudamiento que, una vez agotado se transformó en una impor-
tante obligación de pagos mensuales que empeoró las posibilidades
de consumo hasta un nivel insostenible. El Gráfico Nº3 muestra la
evolución de la deuda y la morosidad de los hogares chilenos en el
período 2014-2018. En dicho período el gasto en intereses se man-
tiene en torno al 15% del ingreso mensual, la deuda crece y la moro-
sidad alcanza cada vez niveles mayores. La doctora Lorena Pérez,
especialmente en el tema, define la existencia de una ola de endeu-
damiento caracterizada por “la deuda como extensión del salario.
Aquí el estudio se centra en la última década y vemos a la deuda ins-
talada en el corazón del hogar chileno. Hoy esa presencia produce
angustia en más del 70% de las familias”. (RAMOS, 2020).

Gráfico Nº3: Evolución de la deuda y morosi-


dad en hogares chilenos, 2014-2018

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 125


Fuente: (Equifax y USS, 2019)

El cuadro de estrés económico de la sociedad chilena se com-


pleta al observar la caída en el crecimiento de la economía produ-
cida en los últimos años, lo que aumenta la desesperanza en un
futuro mejor:

Gráfico Nº4: Crecimiento último trienio PGB per cápita


Chile 1993-2019 (US$ a precio constante)

Fuente: (CEPALSTAT-3, 2020)

El dilema actual

El Plebiscito, programado inicialmente para abril 2020, fue


postergado a octubre 2020 debido a la pandemia. Dada la descon-
fianza en las autoridades, la calle mantuvo una vigilancia activa
para desalentar nuevas postergaciones.
El 25 de octubre votaron los chilenos. Aun cuando los enfer-
mos o sospechosos de Covid-19 no pudieron votar, la participa-
ción en Chile y en el exterior fue la más alta desde el inicio del voto

126 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


voluntario, y también la mayor en número absoluto de sufragios.
Alcanzó a 50,90% en Chile y 51,93% en el exterior.
Aunque aumentó la participación, sigue ausente de las urnas
gran parte de la mayoría de quienes se han estado manifestando en
las calles.
El resultado fue de 78,27% por Apruebo y 78,99% por
Convención Constitucional. Así, los grandes derrotados fueron los
partidarios de la Constitución de 1980 y los partidos políticos. Los
primeros por la gran mayoría del Apruebo y los segundos por el
enorme rechazo a la Convención Constitucional Mixta, que le per-
mitía al Congreso elegir de entre sus miembros a la mitad de los
constituyentes.
Aun no están definidos todos los aspectos para la elección
de constituyentes, pues el Congreso discute la paridad de género
y el aseguramiento de la presencia de los pueblos indígenas en la
Constituyente.
La elección será el 11 de abril 2021, junto con las elecciones
de Gobernadores Regionales. Alcaldes y Concejales Municipales.
Mientras eventualmente trabaja la Convención Constituyente
(probablemente durante un año a partir de su conformación), los
chilenos tendremos primarias Presidenciales, de Diputados y de
Senadores (4 de julio 2021), elección de Presidente, Diputados,
Senadores y Consejeros Regionales (21 de noviembre 2021), y una
probable segunda vuelta Presidencial (19 de diciembre), lo que
augura que el trabajo de los constituyentes se desarrollará en un
país altamente politizado.
El referéndum Aprobatorio para la eventual nueva Constitución
debiera desarrollarse en algún momento del primer semestre 2022,
según la estimación del Servicio Electoral chileno (SERVEL, 2020).
Planteado el itinerario, es necesario analizar los problemas que
enfrenta el país en el período en que se desarrollan acontecimientos
de carácter trascendental para la definición de su futuro.
Por cierto, como la gran mayoría de los países del mundo, Chile
aún no logra superar la pandemia. Si bien es cierto que se superó

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 127


la primera gran ola de contagios, ello se logró al costo de perder
muchas vidas, claramente más que el promedio global.
La situación chilena se refleja bien en la comparación entre las
cifras mundiales y nacionales y entre los países sudamericanos, lo
que se muestra en el Cuadro Nº3 y el Gráfico Nº5.

Cuadro Nº3: Pandemia en cifras: Chile y el Mundo (al 5 de noviembre 2020)

Totales Chile Mundo


Casos Totales 516.582 48.969.475
Personas Recuperadas 493.538 34.937.953
Defunciones 14.404 2.238.335
Por Millón de Habitantes
Casos Totales 26.943 6.282
Defunciones 751 158,9

Fuente: (Worldmeters, 2020)

Así, los casos por millón de habitantes en Chile son 4,3 veces el
promedio mundial y las muertes son 4,7 veces el promedio mundial.
Es posible que la comparación sea injusta en este momento, es posi-
ble que las estadísticas chilenas sean más confiables que la media
mundial, pero claramente no son buenos resultados. Los resultados
definitivos de las acciones de los gobiernos para enfrentar la pan-
demia se conocerán, si ello se hace posible solamente después de
su erradicación mediante una vacunación globalmente masiva. El
indicador de defunciones de los países sudamericanos se muestra en
el Gráfico Nº5, en conjunto con la caída de la economía (ingreso per
capita) pronosticada por el FMI para 2020.
En cualquier escenario, las cifras de muertes en Chile no cor-
responden a un país destacado en América Latina, como sí sucede
con las cifras de Uruguay.
Las consecuencias económicas de la pandemia, que en el caso
de Chile se confunden con efectos atribuibles al malestar social y
con la decadencia del crecimiento económico ya evidenciada, se
indican en el mismo gráfico, puesto que la combinación de paráme-
tros permite hacer un primer análisis de la situación global.

128 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Gráfico Nº5: Muertes por millón de habitan-
tes en países sudamericanos al 5/11/2020

Fuente: (Worldmeters, 2020) y (FMI, 2020)

Uruguay presenta cifras extraordinarias y confiables, seguido


por Paraguay. El caso de Venezuela no es analizable por falta de con-
fianza en las cifras. . El análisis posterior permitirá deducir si existe
alguna relación entre la política económica y la política de salud. La
hipótesis para el análisis será que la caída económica atribuible a la
pandemia guarda relación inversa con la gravedad de la pandemia
sobre la vida y salud de la población, basándose en que aperturas
económicas prematuras y apoyo económico insuficiente para la cor-
recta cuarentena de las personas afectan negativamente los resulta-
dos de la salud y favorecen un menor caída económica.
Es probable que las políticas de salud y de apoyo social reflejen
otra oportunidad perdida para muchos gobiernos de la región.

Conclusiones

La gente salió a la calle a luchar por la solución de los proble-


mas que hacían su vida cada día más estresante. Salieron también

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 129


a la calle grupos violentos organizados, probablemente de extre-
mos antagónicos, fuerzas de orden encargadas de controlar y otras
encargadas de reprimir, algunas con la intención de herir y torturar.
El poder gobernante se asustó, creyó en una masiva interven-
ción extranjera, se declaró en guerra contra enemigos poderosos,
recurrió a las fuerzas armadas.
La mayor parte de la gente se entusiasmó, se emocionó y se
unió al movimiento ciudadano hasta lograr la mayor concentración
en la historia del país.
Uno de los resultados triste del proceso son las decenas de
muertos, las centenas de personas que perdieron parcial o totalmente
la visión, los miles de detenidos, heridos y torturados, los cientos de
miles de violentados de una u otra forma, los millones de afectados
económicamente, los barrios sacrificados, los comercios destruidos,
los cientos de miles que quedaron por meses sin locomoción digna
o sin abastecimiento cercano. Una vez más los derechos humanos
atropellados, la dignidad pisoteada.
Son “costos”, como también lo son los funcionarios policiales
heridos.
Fue quedando claro que la mayor parte de los problemas eran
de carácter estructural y derivaban de un modelo de desarrollo neo-
liberal que no los hacía visibles. Ello se reflejó en las declaraciones
de Jaime Mañalich, ministro de Salud: “hay un nivel de pobreza y
hacinamiento del cual yo no tenía conciencia de la magnitud que
tenía”, agregando que “lo que quiero decir es que se hace muy difí-
cil, y la tasa de contagiosidad por lo tanto aumenta, hacer un aisla-
miento social en las circunstancias, perdón que divida, de Santiago
Poniente” (REYES, 2020).
El movimiento en la calle no tiene, ni reconocería, un liderazgo
centralizado. Al mismo tiempo el gobierno se ha debilitado y está
en discusión su legitimidad, luego que su aprobación cayera al 2%
durante el primer mes del movimiento social. El poder legislativo
alcanzó niveles de aceptación del 3% a nivel nacional.
En esta situación, se hace indispensable que el proceso de gene-
ración de una nueva constitución signifique que los clamores de la

130 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


calle fueron escuchados. Sin embargo, hace pocos días el ex presi-
dente de chile Ricardo Lagos, en referencia a las protestas, declaró
que “la calle así no existe. Existen instituciones”, agregando que
“la voluntad ciudadana se expresa por las instituciones, por los
que eligieron un congreso, por lo que ocurrió en el plebiscito”
(CONCIERTO, 2020).
Queda así un escenario tremendamente peligroso. El camino
elegido por el congreso y consagrado en el plebiscito está hoy a
merced de los partidos políticos, puesto que las reglas electorales
que se aplicarán para la elección de constituyentes son las mismas
que se aplican para la elección de diputados, enormemente favora-
bles para grandes coaliciones y muy desiguales para las candidatu-
ras de independientes. Dos grandes coaliciones, una desde el centro
hacia la derecha y otra desde el centro hacia la izquierda dejarían
completamente ahogados a los candidatos independientes.
El estrecho camino institucional hacia un futuro mejor pasa
entonces por partidos políticos que abran sus puertas de manera
muy generosa a verdaderos independientes, valorados por defender
las demandas de esa calle que no existe.

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gid=6

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 133


CAPÍTULO 7

CRISES JUS TAPOS TA S: DO


“PÓS - NEOLIBER ALISMO” E
DO NEOLIBER ALISMO1

Agnaldo dos Santos2

Introdução

O momento conturbado que o Brasil e o mundo vivem, em um


contexto de eclosão da pandemia do novo coronavírus entre o fim
de 2019 e início de 2020, tem uma trajetória que se iniciou bem antes
da crise sanitária. Podemos até considerar que a pandemia materia-
liza, por meio da biologia, os graves problemas econômicos e sociais
destas primeiras décadas do século XXI.
A economia nunca conseguiu se reerguer após o desastre do
crash financeiro de 2008, cujos efeitos se tornaram mais signifi-
cativos no Brasil no final do 1º mandato de Dilma Rousseff. Após
dois mandatos do primeiro presidente negro dos Estados Unidos,
elegeu-se como típico representante da extrema-direita (a autodeno-
minada alt-right) o empresário Donald Trump, um outsider do sis-
tema partidário daquele país. A “onda vermelha” que havia atingido

1 Este artigo é uma versão alterada e ampliada do texto “O impacto da pandemia no merca-
do de trabalho e na legislação trabalhista”, publicado nos anais do XX Fórum de Análise
de Conjuntura.
2 Docente do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas (DCPE) e do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da Faculdade de Filosofia e Ciências da
Unesp, campus Marília. E-mail: agnaldo.santos@unesp.br

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 135


a América Latina nos primeiros anos do século, que alguns entu-
siastas já chamavam de governos “pós-neoliberais”, sofreu diversos
reveses, sendo o mais paradigmático o impeachment de Dilma em
2016 e a ascensão do governo neoliberal de Michel Temer. Ocorre
que o baixo crescimento econômico mundial, com a exceção do
continente asiático (ainda assim, com crescimento menor do que na
década anterior), trouxe uma situação que tem desafiado os manuais
econômicos do mainstream.
Temos então uma situação inusitada: ao mesmo tempo que
o projeto “pós-neoliberal” da esquerda latino-americana entrou
em crise, também o projeto neoliberal típico não consegue entre-
gar o que promete. Esse quadro abriu o cenário para a eleição de
um governo de feições autoritárias no Brasil, com a vitória de Jair
Bolsonaro. Mas mesmo com a onda conservadora de 2018, o ritmo
econômico continuou lento em 2019 e se agravou com a pandemia
em 2020, afetando a popularidade do governo, ainda que mantendo
uma aprovação maior do que se esperava nessas condições. É uma
situação de crises justapostas, que procuraremos analisar em termos
exploratórios. Inicialmente passaremos pelas características da pri-
meira crise do neoliberalismo no final do século passado, que permi-
tiu a ascensão de partidos de centro-esquerda em nosso continente.
Olharemos depois para as virtudes e as limitações da experiência dos
governos petistas, cuja arquitetura política foi batizada de lulismo. A
seguir, apontaremos como os governos estadunidenses voltaram sua
atenção para o seu “quintal” latino-americano e como isso desestabi-
lizou a região. Por fim, discutiremos como se somaram o revival neo-
liberal pós-2016 e a ascensão dos discursos anti-política e do ódio que
acabaram elegendo Bolsonaro, e em que medida o fenômeno político
que ele representa poderá ter ou não longevidade.

Neoliberalismo dos anos 90 em crise

Em meados da década de 1990 muitos aceitavam a tese de


Francis Fukuyama sobre o “fim da história”. Partidos políticos,

136 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


especialmente os de esquerda, deveriam se ajustar aos novos tempos
da globalização, gestada na década anterior por governos con-
servadores na Europa e nos Estados Unidos e sacramentada com
o fim do socialismo soviético em 1991. A chamada “terceira via”
proposta pelo sociólogo Anthony Giddens e articulada pelo premiê
trabalhista inglês Tony Blair, na qual a social-democracia clássica
deveria aceitar a primazia do mercado, foi inicialmente vitoriosa.
Bill Clinton nos EUA, Lionel Jospin na França, Massimo D´Alema
na Itália, Gerhard Schroeder na Alemanha e Fernando Henrique
Cardoso no Brasil protagonizaram com Blair aquela agenda, que
misturava pautas progressistas (como “economia verde”) com priva-
tizações, flexibilização de leis trabalhistas, abertura às importações
e desregulamentação de fluxos financeiros.
Mas não tardou para a globalização começar a cobrar sua fatura:
crise financeiras na Ásia (1997), na Rússia (1998), na Argentina
(1998-2002) no Brasil (1999) e a Bolha da Nasdaq (2000) começa-
ram a mostrar os limites do Consenso de Washington, especial-
mente para a periferia do sistema. Ainda que por razões distintas,
todas essas crises tinham em comum a crença de que a facilitação
na circulação financeira garantiria investimentos estrangeiros dire-
tos, fortalecendo as moedas nacionais e reduzindo processos infla-
cionários, conduzindo ao crescimento econômico. Tudo isso se o
papel do Estado fosse reduzido, especialmente na seguridade social,
que deveria apenas desenvolver políticas focais (aos mais pobres),
deixando o provimento de saúde, educação, transporte etc. ao mer-
cado. O ataque especulativo que atingiu estes países desencadeou
processos políticos de questionamento do receituário neoliberal, e a
América Latina vivenciou um ciclo de ascensão de governos de cen-
tro-esquerda, na Venezuela, Brasil, Argentina, Uruguai, Equador,
Paraguai e Bolívia, entre 1999 e 2014.
O período em questão coincidiu também com a expansão da
demanda por commodities, como alimentos in natura, petróleo e
minerais, ocasionada pelo crescimento vigoroso da China desde
o final do século passado. E os países latino-americanos logo se
tornaram importantes fornecedores para os chineses, que por seu

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 137


turno ganharam destaque como principais fornecedores de manu-
faturados, papel que coube outrora aos europeus e estadunidenses.
O aumento das exportações à China, somado às políticas sociais e
de ampliação do mercado interno, garantiram popularidade e votos
nestes governos de esquerda latino-americanos, que estimularam
algumas avaliações bastante otimistas entre alguns analistas acerca
destas experiências “pós-neoliberais”.

Os governos do Lula e da Dilma podem ser caracterizados


como pós-neoliberais, pelos elementos centrais de ruptura
com o modelo neoliberal – de Collor, Itamar e FHC – e
pelos elementos que têm em comum com outros governos
da região, como os Kirchners na Argentina, da Frente
Ampla no Uruguai, de Hugo Chávez na Venezuela, de Evo
Morales na Bolívia e de Rafael Correa no Equador. (...) O
campo político se polarizou entre o governo e seu modelo
econômico-social, com suas políticas de integração regio-
nal e um Estado indutor do crescimento econômico e
garantidor dos direitos sociais, e uma oposição, dirigida
pela mídia privada e refugiada nas denúncias de corrup-
ção contra o governo. A polarização não poderia ser mais
favorável ao governo, que se beneficiou das grandes trans-
formações sociais que promoveu para alcançar índices
inéditos de aprovação popular (SADER, 2013, pp. 142-145).

De fato, o governo petista conseguiu vencer quatro eleições


consecutivas, mas houve superestimação da capacidade do lulismo3
em garantir estabilidade política, quando erros internos e recrudes-
cimento do panorama econômico externo solaparam as bases de
apoio parlamentar e popular do segundo mandato de Dilma.
E esse panorama externo muito complicado foi consequência
exatamente da grande crise financeira de 2008, que pôs abaixo os fun-
damentos teóricos (e práticos) do neoliberalismo. Do mesmo modo
que nos Brasil, alguns autores na Europa e nos EUA começaram a

3 A mais conhecida referência de análise sobre o lulismo é o livro de André Singer, Os


Sentidos do Lulismo (2012). Continuou suas reflexões em O Lulismo em crise (2018).
Discutiremos no próximo ítem as características gerais desse período.

138 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


decretar o fim da agenda neoliberal ao redor do mundo, inclusive
quando comparados os modelos ocidental e asiático, onde vemos
neste último o papel indutor do Estado na dinâmica econômica.
Para esses autores, a globalização neoliberal promoveu a hipertrofia
do setor financeiro, desestruturou cadeias produtivas e encolheu a
participação dos salários no produto interno dos países, jogando os
trabalhadores no endividamento bancário.

O neoliberalismo é um novo estágio do capitalismo que


surgiu na esteira da crise estrutural da década de 1970.
Ele expressa a estratégia das classes capitalistas aliadas aos
administradores de alto escalão, especificamente no setor
financeiro, de reforçar sua hegemonia e expandi-la global-
mente. (...) Essa estratégia parecia ser bem-sucedida, consi-
derando seus objetivos, a renda e a riqueza de uma minoria
privilegiada e o domínio de um país. A crise de hoje é resul-
tado das contradições inerentes àquela estratégia e revela seu
caráter insustentável, que levou ao que pode ser chamado de
“crise do neoliberalismo” (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 11).

Além dos economistas franceses, que fazem uma interessante


análise sobre alianças classistas (no imediato pós-guerra e depois na
crise do anos 1970) para disputar a hegemonia política que garantiu
aquele projeto econômico, vemos também no Prêmio Nobel Joseph
Stiglitz uma crítica contundente à agenda neoliberal que conduziu
à crise de 2008.

O mantra do livre mercado significava não só acabar com


as velhas regulações, mas também não fazer nada para
enfrentar os novos desafios dos mercados do século XXI,
inclusive os que foram criados pelos [mercados de] deriva-
tivos. O Tesouro e o Banco Central dos Estados Unidos não
só não propuseram novas regulações com resistiram, com
força - e por vezes quase com brutalidade - , as quaisquer
iniciativas nesse sentido (STIGLITZ, 2010, p. 226).

Para o economista estadunidense, boa parte das crises eco-


nômicas, como a dos anos 1930 e a de 2008, tinham na raiz a

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 139


desregulamentação e a crença nos mercados auto-regulados. E todas
as políticas macroeconômicas deveriam, portanto, abandonar esse
dogma. Mas, nesse livro lançado dois anos depois da crise finan-
ceira, o autor constatou que pouco havia sido feito para controlar o
setor financeiro desregulamentado. O “naufrágio econômico” (como
chama Stiglitz) não foi acompanhado por mecanismos de controle
dos fluxos financeiros, de incentivos para aumento dos postos de
trabalho ou de geração e transferência de renda, tampouco de fortes
iniciativas em direção ao que se costuma chamar de “economia de
baixo carbono”. Pelo contrário: a crença cega da agenda neoliberal
sofreu forte abalo, em especial nos grandes centros intelectuais do
planeta, mas não foi completamente abandonado. Especialmente
nos países da periferia do sistema, como é o caso do Brasil após 2016.
Então, por que a crise do neoliberalismo não levou à sua superação?

Um impasse: o que fazer com o Welfare State?

Nas últimas quatro décadas, uma enorme bibliografia foi produ-


zida para discutir o enfraquecimento da capacidade fiscal dos Estados
nacionais. Esse enfraquecimento não é meramente fiscal-contábil,
mas fruto de uma mudança na correlação de forças sociais com as
transformações do capitalismo contemporâneo. A redução dos postos
de trabalho no setor industrial, que pagavam maiores salários, e a pul-
verização da classe trabalhadora no setor de serviços, além do cres-
cimento das modalidades de trabalho informal, atingiram a base do
sindicalismo e dos partidos de esquerda. Esse enfraquecimento polí-
tico na base social levou em geral ao avanço das pautas de austeridade
fiscal, privatizações e de redução de direitos sociais e trabalhistas.
Esse é o contexto, já descrito acima, da ascensão dos projetos
de “terceira via”, que fundamentalmente eram a gestão da agenda
econômica neoliberal com pitadas de políticas progressistas, como
discursos de defesa do meio ambiente, dos direitos das minorias etc.
Mas suas vitórias eleitorais e governos foram acompanhados de crí-
ticas acerca de sua capitulação diante do projeto neoliberal.

140 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


A terceira via desenvolve um entendimento diverso em
relação às teses do receituário-ideal do neoliberalismo
sobre o tamanho, as funções e a organização do Estado.
A tese neoliberal do Estado mínimo não estaria de acordo
com a era da nova economia, marcada pelo dinamismo
dos mercados financeiros e pelas inovações tecnológicas e
das comunicações. Segundo [Anthony] Giddens, o debate
deveria ser desviado deste eixo. O Estado, na atual confi-
guração do capitalismo, deveria ser forte, mantendo um
grau de soberania frente aos mercados, que, por si só, não
poderiam dar conta de problemas como as desigualdades
sociais. De toda forma, o mercado deveria ser preservado
de uma ingerência indevida do Estado tal qual a ocorrida
no período da social-democracia clássica, pois, segundo
Giddens, seria a melhor forma de organização social para a
produção da riqueza e, em alguns casos, até mesmo para a
sua distribuição (CASTELO, 2013, pp. 286-287) .

O projeto social-democrata clássico, que não sugeria a supe-


ração do capitalismo, mas ainda continha algum verniz classista, é
abandonado em nome da auto-intitulada Terceira Via, que o autor
citado e outros chamam de “social-liberalismo”. Ele deveria reunir
o que “haveria de melhor” no liberalismo e no socialismo, superan-
do-os, mas mantendo a lógica de acumulação do capital intacta. O
fruto disso é que, nos primeiros anos do século XXI, os índices de
desigualdade já se assemelhavam aos da era vitoriana, no século XIX

Todos os elementos de que dispomos nos fazem pensar que


as forças de divergência são atualmente dominantes no
topo da hierarquia mundial das riquezas. Isso vale não só
para os patrimônios dos bilionários do ranking da Forbes,
mas também para os patrimônios da ordem de 10 milhões
ou 100 milhões de euros. Ora, isso representa massas mais
significativas de pessoas e, portanto, de fortunas: o grupo
social constituído pelo milésimo superior (4,5 milhões de
pessoas que detêm em média 10 milhões de euros) possui
cerca de 20% da riqueza mundial, o que é muito mais subs-
tancial do que o 1,5% detido pelos bilionários da Forbes
(PIKETTY, 2014, p. 428).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 141


O aumento das desigualdades na Europa e nos Estados Unidos
demonstraram que esse pretensioso projeto apenas reforçou o pro-
jeto neoliberal, abrindo espaço para a ascensão de partidos decla-
radamente de extrema-direita, pretensamente anti-establishment.
Sobre esse fenômeno da nova extrema-direita, discutiremos ao final
do artigo. Mas a bancarrota da Terceira Via e do projeto neoliberal
puro só vieram mesmo com a eclosão da crise financeira de 2008.

No pós-neoliberalismo, essas ligações privilegiadas [entre


capitalistas e classe gerencial altamente remunerada]
poderiam operar no curto prazo, para atrasar a realização
das mudanças radicais urgentemente necessárias, caso os
gerentes e funcionários hesitem em prejudicar por meio de
medidas drásticas os interesses de seus “primos” sociais,
os proprietários capitalistas. Desde 2009, estes acordos
parecem prevalecer. Mas em prazo mais longo, essas con-
figurações ocultas no topo das hierarquias sociais também
oferecem bases robustas para uma estratégia conjunta das
classes altas, independentemente da distribuição de poder
e das consequências sobre os padrões de renda. Isso signi-
fica um grande potencial de mudança, embora não favorá-
vel às classes populares (DUMÉNIL; LÉVY, 2014, p. 348).

Nessa leitura do imediato pós-2008, ao longo do governo


Obama nos EUA, os autores diziam que, entre uma opção de
esquerda (rejeitada pela elite do dinheiro) e de extrema-direita, um
novo compromisso com pontos neoliberais mais brandos poderia
se viabilizar. Na verdade, como discutiremos adiante, a opção mais
à direita acabou se viabilizando. De todo modo, indicou um freio
de arrumação na globalização neoliberal, inclusive com traços de
protecionismo. O caso brasileiro, e de certa forma latino-americano,
também parecia caminhar na direção de um pós-neoliberalismo.
Mas revestido de certas particularidades que depois se mostraram
daninhas em termos de consolidação de uma plataforma política
popular.

142 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


A conciliação impossível: o caso brasileiro

Conforme já indicado, o final da década de 1990 e o início dos


anos 2000 foram caracterizados pela ascensão de forças de centro-
-esquerda na América Latina. Por suas dimensões continentais e
pelo escopo econômico, a vitória eleitoral mais significativa foi a do
Partido dos Trabalhadores no Brasil, em 2002. Mas não represen-
tou a vitória plena de uma agenda de esquerda: a campanha de Luís
Inácio Lula da Silva sinalizou, com a Carta aos Brasileiros (desti-
nada, na verdade, ao mercado financeiro), que compromissos assu-
midos pelo governo anterior não seriam rompidos, especialmente
nas medidas macroeconômicas. A avaliação feita à época era que a
margem de manobra política para mudanças estruturais era estreita,
e que seria preciso conviver com uma agenda econômica mais con-
servadora, pelo menos nos primeiros anos de governo. André Singer
considerou aquele movimento uma decisão política e ideológica:

O governo Lula afastou-se de aspectos do programa de


esquerda adotado pelo PT até o fim de 2001, o qual criticava
“a estabilidade de preços [...] alcançada com o sacrifício de
outros objetivos relevantes, como o crescimento econô-
mico”, a abolição das “restrições ao movimento de capitais”
e a Lei de Responsabilidade Fiscal por tolher “elementos
importantes de autonomia dos entes federados, engessando,
em alguns casos, os investimentos em políticas sociais”. O
objetivo foi impedir que uma reação do capital provocasse
instabilidade econômica e atingisse os excluídos das rela-
ções econômicas formais. Para trabalhadores com carteira
assinada e organização sindical, a luta de classes em regime
democrático oferece alternativas de autodefesa em momen-
tos de instabilidade. Porém, os que não podem lançar mão
de instrumentos equivalentes, por não estarem organiza-
dos, seriam vulneráveis à propaganda oposicionista contra
a “bagunça” (SINGER, 2012, edição epub).

Esse compromisso acabou se viabilizando tanto por fato-


res externos quanto internos. Mesmo mantendo os fundamentos

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 143


macroeconômicos do período anterior4, o governo Lula beneficiou-
-se da expansão da demanda por commodities, especialmente da
China. Aos poucos, vai construindo políticas sociais (tendo no Bolsa
Família, transferência de renda para famílias com baixa renda, a
maior marca) e investindo em infraestrutura, ampliando os gastos
públicos de modo a ampliar emprego e renda, logo o próprio mer-
cado interno.

Em resumo, o processo de redução das desigualdades no


Brasil durante esse período explica-se, essencialmente, por
mudanças na base da pirâmide, resultado em boa parte
das políticas de transferência de renda e de valorização do
salário mínimo. Essas transformações, por sua vez, reper-
cutiram no padrão de consumo das famílias brasileiras:
produtos e serviços antes consumidos apenas pelos mais
ricos passaram a ser consumidos também pela população
de baixa renda (CARVALLHO, 2018, p. 23).

Nos dois mandatos de Lula, e no primeiro mandato de Dilma,


houve um processo que parecia ser um autêntico win-win, onde os
interesses do grande capital não foram afrontados, mas também
houve melhoria para as camadas mais baixas da sociedade. Apesar
disso, tal sistema “conciliatório” não duraria muito tempo, eviden-
ciado na violência discursiva das eleições de 2014 e na crise polí-
tica que teve como desfecho a interrupção do segundo mandato de
Dilma, em 2016. Em geral, a literatura aponta erros econômicos e
políticos cometidos pelo PT e por Dilma, passando por políticas
equivocadas de desoneração fiscal, preços administrados congela-
dos por longo período, inabilidade nas articulações no Congresso
Nacional e contenção da agitação das bases populares, seu suporte
político (CARVALLHO, 2018; SINGER, 2012). Além desses elemen-
tos intrínsecos à luta política interna, o panorama externo também

4 “No final de 2004, após dois anos de mandato, as medidas adotadas pelo governo Lula
surtiram algum efeito. De acordo com dados do IBGE, a taxa de crescimento do PIB no
ano foi de 4,90% - a melhor variação desde 1994, quando atingiu 5,85%” (Machado, 2007,
p. 110).

144 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


sofreu alterações, em parte consequência do recrudescimento da
crise financeira de 2008.

Retorno ao quintal: Obama e Trump

O crescimento da economia chinesa no final do século pas-


sado, bem como a eleição de governos de centro-esquerda na
América Latina, coincidiram com mudanças nas preocupações da
política externa estadunidense. Os atentados de 11 de setembro de
2001 levaram os EUA, sob a presidência de George W. Bush, a con-
centrarem suas energias diplomáticas e bélicas no Oriente Médio.
A caça a Saddam Hussein e a Osama Bin Laden (por sinal, antigos
aliados da Casa Branca) fizeram os EUA deixar temporariamente
de interferir na América Latina, compreendida desde a Doutrina
Monroe como seu quintal. Seguiu-se essa postura ainda no início
do primeiro mandato de Barack Obama, com todas as atenções vol-
tadas para a recuperação da crise de 2008.
Contudo, essa política externa norte-americana vai mudando
ao longo do seu primeiro mandato, e hoje abundam evidências de
que o governo dos Estados Unidos voltou, no início da segunda
década deste século, a interferir nas políticas domésticas dos vizi-
nhos do sul. Foram usadas tanto operações clássicas de espionagem
contra governos da região, como também o aliciamento e treina-
mento de membros do poder judiciário e do ministério público
desses países para desestabilizar o sistema partidário interno.

Em 2009, William Engdahl publica um livro analisando a


nova política de dominação total do Pentágono, que prevê
a primazia americana desde a produção de armas conven-
cionais e nucleares até a retórica dos direitos humanos e o
domínio das comunicações. No caso brasileiro, a hipocri-
sia americana contava com o apoio da hipocrisia secular da
elite brasileira contra o próprio povo. No ataque à demo-
cracia brasileira, a Lava Jato também estaria supostamente
apenas combatendo a corrupção para que ela nunca mais
voltasse [...] (SOUZA, 2020, p. 91).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 145


As chamadas jornadas de 2013, a campanha eleitoral de 2014
disputada em alta voltagem política, a eclosão da operação Lava Jato,
que desestruturou o sistema político e importantes setores econômi-
cos, são melhor compreendidas se considerarmos as diversas táticas
de guerra híbrida adotadas por think tanks e órgãos públicos dos
Estados Unidos, dispostos a anular eventuais concorrentes geopolí-
ticos e econômicos em seu próprio quintal.

Se a sociedade e o Estado fossem uma tartaruga fortifi-


cada, a guerra não convencional e a teoria do caos vira-
riam essa tartaruga de cabeça para baixo, efetivamente
imobilizando-a e expondo seu ventre vulnerável a ataques
devastadores que não seriam possíveis em outros contex-
tos. Uma vez de cabeça para baixo, a tartaruga é rapida-
mente exterminada. O mesmo é verdade para a sociedade
e o Estado – se a guerra não convencional conseguir jogá-
-los em um turbilhão caótico que “vire-os de cabeça para
baixo”, o golpe poderá avançar à velocidade da luz e muito
provavelmente terá sucesso (KORYBKO, 2018, pp. 82-83).

Não se deve desprezar os diversos erros políticos cometidos


pelos governos do PT, especialmente no fim do primeiro e início
do segundo mandato (inconcluso) de Dilma Rousseff, como indi-
camos acima. Uma crítica honesta, sem o peso do partidarismo
muito comum em nossa imprensa corporativa, foi feita por Thomas
Pikettty de forma certeira:

Cabe também assinalar o resultado pouco expressivo do


PT na luta contra a desigualdade. Se está claro que as pes-
soas de baixa renda foram beneficiadas com as políticas
realizadas – proporcionando um aumento da participação
dos 50% mais pobres entre 2003 e 2015 –, o problema é que
essa melhora foi toda feita em detrimento da classe média
ou, mais precisamente, dos grupos sociais compreendidos
entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos, sem nunca
prejudicar os 10% mais ricos, que conseguiram manter
sua posição (já normalmente elevada no Brasil). Quando
se trata do 1% mais rico, observamos entre 2002 e 2015

146 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


um crescimento de sua parcela na renda total, parcela esta
duas vezes maior que a detida pelos 50% mais pobres. Esses
resultados decepcionantes e paradoxais têm uma explica-
ção simples: o PT nunca realizou uma verdadeira reforma
tributária (PIKETTY, 2020).

Mas, além de tudo isso, temos hoje diversos indícios e docu-


mentos que reforçam a tese segundo a qual houve uma operação
política que não só retirou uma presidente do cargo sem crime de
responsabilidade, como também à prisão de um ex-presidente em
um processo judicial viciado, além de criar as condições para a
eleição de Jair Bolsonaro em 20185. Que, por seu turno, adotou os
mesmo mecanismos de manipulação das redes sociais e da inter-
net para criar mentiras e disseminar o ódio à política considerada
“convencional”, como Donald Trump nos EUA, vitorioso dois anos
antes. Mas, antes de prospectar os cenários possíveis para o próximo
período, precisamos compreender como foi se engendrando a atual
crise econômica e política que coincidiu com a eclosão da pandemia
de Covid-19.

O experimento: de Temer a Bolsonaro

Com o afastamento de Dilma, em um processo todo viciado,


seu vice Michel Temer assume com o discurso de adotar medidas de
incentivo ao setor privado. Vale notar que o receituário econômico
ortodoxo já mostrava sinais de desgaste nas economias centrais
desde a crise financeira internacional de 2008, contudo as forças
conservadoras na periferia ainda insistem no formato. O leque de
medidas liberalizantes vai desde a lei que instituiu o teto de gastos
públicos por 20 anos, até 2036 (a Emenda Constitucional 95), pas-
sando por reformas trabalhistas que flexibilizam direitos, reforma

5 Vide MILEK, Camila; Ribeiro, Ana Júlia et. al. (org.). Relações indecentes. São Paulo,
Tirant Lo Blanch, 2020. CARVALHO, Marco Aurélio; STRECK, Lenio (org.). O livro das
suspeições - o que fazer quando sabemos que sabemos que Moro era parcial e suspeito?
São Paulo, Grupo Prerrogativas, 2020.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 147


previdenciária (aumentando os tempos de contribuição e idade
mínima para a aposentadoria) e aceleração do programa de priva-
tizações. Como é um conjunto bastante amplo de medidas, vamos
tomar como exemplo, nos governos Temer e Bolsonaro, em seus pri-
meiros anos de mandato, a implementação de medidas para desre-
gulamentar a legislação trabalhista, e o quanto elas impactaram na
atividade econômica.
As medidas implementadas por Temer nos anos de 2017 e 2018,
quanto à legislação trabalhista, foram nessa direção da desregula-
mentação. A reforma trabalhista de Temer instituiu a premissa do
“acordado sobre o legislado”, ou seja, o que acordado nas conven-
ções coletivas entre empresários e trabalhadores se sobrepõem à
Consolidação das Leis do Trabalho. Passou-se, então, a se descon-
siderar as assimetrias de força econômica entre capital e trabalho.
Por outro lado, e de forma aparentemente contraditória, também
instituiu que a homologação da rescisão de contrato de trabalho
não torna mais obrigatória a presença do sindicato da categoria,
que nesta ocasião faz a conferência de todos os direitos a quem tem
um trabalhador demitido. Além disso, acabou com a gratuidade
dos processos trabalhistas para quem recebia salário acima de R$
2.200,00. Em outras palavras, se um trabalhador acionar a Justiça
do Trabalho e perder a causa, deverá arcar com as despesas advoca-
tícias da empresa acionada.
No que se refere à remuneração, a reforma de Temer instituiu
novo entendimento sobre o tempo de deslocamento do trabalhador
entre sua casa e a empresa: caso sofra algum acidente, a empresa
não terá mais responsabilidades com ele. Criou também contratos
intermitentes, que podem ser interrompidos e retomados sem custos
ao empregador, além de formas de pagamento por hora, não mais
por mês. Contratos temporários, que antes poderiam durar até 45
dias, foram estendidos para 180 dias. O período de férias pode ser
dividido, a partir de agora, em três períodos de 10 dias ao longo do
ano, conforme as necessidades da empresa. E o pagamento de horas-
-extras agora pode ser substituído por bancos de horas, também a
serem concedidas de acordo com as necessidades da empresa.

148 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Este conjunto de medidas, que pode ser chamada de “minir-
reforma trabalhista”, foi implementado com a promessa de criar
rapidamente novas vagas de trabalho e dinamizar a economia. Os
números do biênio do governo Temer e do primeiro ano do governo
Bolsonaro mostram que a expectativa era exagerada. A redução dos
direitos trabalhistas, por si, não possui capacidade de gerar con-
fiança de novos investimentos para o setor privado, pelo contrário.
As evidências históricas apontam que a redução da massa salarial
afeta diretamente a capacidade de consumo dos trabalhadores,
reduzindo a demanda que orienta futuros investimentos produtivos
e em serviços.
Estudo do Grupo de Conjuntura do Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas, publicada no mês de março (IPEA, 2020),
aponta que durante os anos do governo Temer (2017-2018) e o pri-
meiro ano do Governo Bolsonaro (2019), a taxa de crescimento do
PIB brasileiro ficou estagnada em 1,1%, depois do tombo de 2015
(-3,5%) e 2016 (-3,3%). Ou seja, as medidas tomadas para flexibili-
zar a legislação trabalhista foram insuficientes para retomar inves-
timentos que poderiam fazer a economia crescer em percentuais
necessários para voltar às taxas do “milagrinho” (média de 4,5%
entre 2006-2010) ou mesmo de 2013 (3%).
Outro indicador que atesta o fracasso das medidas de flexibi-
lização trabalhista na retomada da criação de novos postos de tra-
balho é o da taxa de desemprego. No início de 2015, a taxa de deso-
cupação medida pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) contínua mensal, do IBGE, era de 8% (já elevada, compa-
rada com o período anterior que fechou o “milagrinho”, em torno
6,8% no final de 2012)6. No final de 2016 (já governo Temer) atingiu
12%, elevou-se a mais de 13,7% no primeiro trimestre de 2017, esta-
bilizando-se no patamar de 12% entre o final do governo Temer e o
início do governo Bolsonaro (11%, no final de 2019).

6 Disponível em https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?view=noticia&id=1&id-
noticia=3420&busca=1&t=pnad-continua-taxa-desocupacao-vai-13-7-trimestre-encerra-
do-marco-2017. Acessado em 27/10/2020.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 149


Em outras palavras, apesar das promessas de novos ares com a
deposição de Dilma em 2016, da minirreforma trabalhista de Temer,
da eleição de Bolsonaro (candidato adotado em 2018 pelo mercado,
com o fiasco eleitoral do PSDB de Geraldo Alckmin) e suas mudan-
ças que acentuaram as reformas liberais de Temer, os níveis de deso-
cupação se mantiveram altos, com consequências nos salários, no
consumo das famílias e na dinâmica econômica. Ainda no governo
Temer, o ministro da Fazenda prometia que, com as medidas apro-
vadas, seria possível criar entre 2 e 6 milhões de novos empregos.
Não só tais empregos não vieram, como a taxa de informalidade
subiu de 40,5% para 41,4% entre 2017 e 2018. A tese, segundo a qual
o “excesso de legislação” causaria desemprego, não só não explica
a situação anterior de baixo desemprego entre o final do governo
Lula e início do governo Dilma, como também a permanência de
altas taxas de desocupação até o final de 2019, período anterior ao
impacto econômico do novo coronavírus.
No final de 2019, o governo Bolsonaro apresentou a Medida
Provisória 905 que criava a “carteira verde-amarela”, na qual jovens
entre 19 e 28 anos poderiam ter atividades laborais formalizadas,
com empregos de até 1 salário mínimo e meio. Nesta modalidade de
contrato, o empregador desonerações de encargos trabalhistas por
um prazo de dois anos. Inicialmente, esta MP previa que esta deso-
neração patronal seria compensada por uma contribuição cobrada
de beneficiários do Seguro-Desemprego, mas com a péssima reper-
cussão da proposta, foi retirada no Congresso Nacional. Também
reduz o percentual de recolhimento do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS) a que tem direito o trabalhador. A MP
caducou em abril de 2020, com a promessa de criar 1,8 milhão de
novos empregos, mas gerou no período apenas 13 mil novos postos
de trabalho. De todo modo, o ministro Paulo Guedes externou a
intenção de retomar a ideia com uma nova MP, pois ali estava con-
tida sua concepção de contratos de trabalho, que na sua avaliação
ainda são muito rígidos nas normas da CLT7

7 Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/julianna-sofia/2020/05/gue-
des-aproveita-se-da-crise-para-reciclar-carteira-verde-e-amarela-e-nova-cpmf.shtml.

150 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Então, de um patamar alto de desemprego e baixo crescimento
econômico que caracterizaram o fim do governo Temer e início do
governo Bolsonaro, surgiu a grave crise de saúde pública desenca-
deada pela pandemia do novo coronavírus. Com os primeiros regis-
tros na China nos últimos meses de 2019, espalhou rapidamente
pela Europa e chegou ao Brasil no início de 2020. Em março, diver-
sas cidades e estados decretaram quarentena e medidas de isola-
mento social, devido à velocidade de contágio, aos altos índices de
mortalidade para determinadas parcelas da população (idosa, com
comorbidades, com sobrepeso) e à inexistência de medicamentos ou
vacinas preventivas.
O impacto econômico foi imediato. Diversos setores foram
obrigados a fechar temporariamente devido às restrições de cir-
culação, e mesmo relutante no início, o governo federal precisou
tomar iniciativas para minimizar os prejuízos. A estimativa é que
se perderam, entre março e maio de 2020, aproximadamente 7,8
milhões de postos de trabalho. Também aumentou o desalento na
busca por trabalho diante da pandemia, algo que fez uma parte
da força de trabalho desocupada ficar invisível nas estatísticas. O
Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória 927, apresentada
pelo Executivo, no dia 22 de março. Instituiu estado de calamidade
pública até o final de dezembro e criou mecanismos para evitar
demissões em massa, decorrentes do isolamento social. Liberou
também o trabalho remoto em casa (home office) sem a mediação
dos sindicatos; a antecipação de férias dos trabalhadores e feria-
dos (concentrando-os numa mesma semana durante a quarentena)
igualmente sem a participação sindical; o adiantamento do paga-
mento do adicional de férias; suspensão temporária de férias e licen-
ças para trabalhadores da saúde e de outras áreas essenciais; criação
de banco de horas para compensar os dias não trabalhados na qua-
rentena; adiamento do depósito do Fundo de Garantia (FGTS) dos
trabalhadores, que foi parcelado em até 6 vezes, após julho de 2020.
A MP 927 caducou em 20 de julho de 2020, pois havia uma proposta

Acessado em 27/10/2020.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 151


de emenda no Senado Federal que estendia o adiamento do depó-
sito do FGTS até o ano de 2021, medida com a qual o Ministério da
Economia não concordava, pois levaria à queda na arrecadação8. De
todo modo, o conjunto das medidas adotadas pelas empresas com
base na MP 927 teriam validade até o final da situação de calami-
dade pública, em dezembro do mesmo ano.
O governo apresentou outra medida provisória em abril, a MP
936, depois convertida no Congresso Nacional em Lei 14.020, com
vigência até o dia 31 de dezembro de 2020, que instituiu a redução
salarial proporcional à redução da jornada de trabalho, entre 25% e
70%, por 120 dias; criou o Benefício Emergencial de Preservação do
Emprego, com complementação do salário reduzido proporcional
ao que receberia no Seguro-Desemprego; também liberou a suspen-
são temporária dos contratos de trabalho pelo prazo de até 120 dias.
O Ministério da Economia, por meio da Secretaria Especial de
Previdência e Trabalho, publicou no Diário Oficial em 14 de julho
de 2020 a Portaria 16.6559, permitindo às empresas a recontratação
de um funcionário demitido sem a necessidade de aguardar o prazo
de 90 dias, desde que os termos do novo contrato não sejam inferio-
res ao anterior. Ficaria excetuado dessa condição reduções de alguns
benefícios desde que mediadas por negociação sindical, em prol da
empregabilidade. Sua duração também acompanharia a situação de
calamidade decretada até 31 de dezembro.
Insistindo na tese de que existe na legislação trabalhista bra-
sileira (mesmo com as reformas promovidas pelo governo Temer)
“excesso de proteção”, o governo Bolsonaro ainda planeja reapre-
sentar uma medida provisória, que depois poderá ser conver-
ter em lei, que retoma os princípios da assim chamada “carteira

8 Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-caducidade-da-m-
p-927-e-seus-principais-reflexos-nas-medidas-trabalhistas-de-trato-sucessivo/. Acessado
em 27/10/2020.
9 Disponível em http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/Portaria/PRT/Portaria-16655-20-
ME.htm Acessado em 27/10/2020.

152 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


verde-amarela”10. Porém, nos planos do ministro da Economia
Paulo Guedes, haveria uma ampliação com relação à primeira MP
que caducou: até 50% dos contratos atuais poderiam ser flexibi-
lizados, no qual a remuneração seria feita por hora trabalhada, e
não mais por dia ou mês. Em seu projeto, começaria com 20% dos
atuais contratos e atingiria os 50%11. A equipe econômica de Guedes
defende que tais contratos não devem incluir férias, 13º salário nem
Fundo de Garantia. A contribuição à previdência, e portanto a
garantia de aposentadoria, ficaria por conta do próprio trabalhador.
As centrais sindicais afirmam que este tipo de relação trabalhista
rebaixaria os contratos a uma situação similar à dos trabalhadores
de aplicativos, como Uber ou iFood, sem direitos ou com direitos
muito reduzidos12.
Este conjunto de medidas, em relação ao mercado de trabalho,
indica a persistência do governo Bolsonaro na agenda neoliberal,
apesar da necessidade de um protagonismo maior do Estado para
auxiliar na recuperação econômica. Tudo indica que, para com-
pensar as dificuldades econômicas, Bolsonaro deverá se refugiar na
mesma estratégia que o ajudou a se eleger em 2018: a pauta conser-
vadora de costumes e a ampliação do discurso de ódio. Para fechar
o nosso texto, vamos olhar para os fundamentos dessa estratégia.

A anti-política: a extrema-direita veio para ficar?

Estudiosos vêm se debruçando sobre o fenômeno da ascen-


são da extrema-direita ao redor do mundo. Mesmo que não seja
uma mera repetição do nazi-fascismo dos anos 1920-1930, não é

10 Disponível em https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/carteira-verde-e-amare-
la-de-paulo-guedes-quer-oficializar-uberizacao-do-mercado-de-trabalho/. Acessado em
27/10/2020.
11 Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/08/13/hora-traba-
lho-contrato-verde-amarelo-governo-empresa-patrao-empregado.htm. Acessado em
19/08/2020.
12 Disponível em https://www.cut.org.br/noticias/carteira-verde-amarela-piora-crise-eco-
nomica-avaliam-presidente-da-cut-e-dieese-1531. Acessado em 27/10/2020.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 153


surpreendente que ela ocorra em contextos de crise econômica. O
aumento do desemprego, a perda de status social vivenciada pela
classe média e o ressentimento com a ampliação dos direitos sociais
das chamadas “minorias sociais” (população LGBT, mulheres
negras, indígenas) alimentam o que Mark Lilla (2018) chamou de
“mente naufragada”. Ela se vê atualmente nos destroços de um pas-
sado glorioso, idílico, que se perdeu:

Uma falsa consciência logo se abate sobre a sociedade como


um todo, à medida que ela caminha deliberada e mesmo
alegremente para a destruição. Só aqueles que guardaram
lembrança das velhas práticas são capazes de ver o que está
acontecendo. Depende exclusivamente da sua resistência se
a sociedade será capaz de inverter esse direcionamento ou
se precipitará na própria ruína. Hoje, os islamitas políticos,
os nacionalistas europeus e a direita americana contam
basicamente a mesma história aos seus filhos ideológicos
(LILLA, 2018, p. 12).

No caso brasileiro, este tipo de reconstrução idílica do pas-


sado não se restringe apenas ao passado colonial e imperial, mas (no
caso da onda bolsonarista mais recente) principalmente em relação
ao período da ditadura militar, quando muitos dos atuais generais
eram jovens oficiais. E muitos destes militares estão dando apoio
político ao governo do seu ex-capitão. Nesta mitologia reconstruída,
a intervenção militar em momentos decisivos da história brasileira
ocorreram para restaurar a “ordem” contra a baderna e a corrupção.
E, conforme indicamos acima, tal narrativa é sempre mobilizada nas
estratégias de guerra híbrida. Desse modo, todo o discurso contra a
“corrupção” avalizou o desmonte do sistema partidário brasileiro,
mas atingiu especialmente a esquerda e o PT que, segundo essa nar-
rativa, seriam os responsáveis pelos maiores escândalos de corrup-
ção da história.
É importante relembrar que, na campanha presidencial de
2018, Bolsonaro se negou a entrar em detalhes dos elementos eco-
nômicos de seu programa de governo. Delegou ao economista-
-banqueiro Paulo Guedes a defesa da agenda econômica neoliberal,

154 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


especialmente para o setor financeiro. Enquanto isso, sua campa-
nha centrou fogo nas redes sociais defendendo agendas de costume
(contra o aborto, contra o fantasioso “kit gay”, contra a suposta dou-
trinação esquerdista nas escolas). E ainda contou com o atentado à
faca em plena campanha eleitoral, que o retirou de todos os debates
entre candidatos, quando já era favorito, poupando-os de esclarecer
o que faria com a economia. Note-se a estratégia: deixou para cír-
culos restritos a defesa da agenda neoliberal, para quem tudo isso
soava como música, enquanto para as massas divulgou amplamente
a campanha reacionária de costumes e de notícias falsas.
As quatro eleições seguidas do PT demonstraram que dificil-
mente uma plataforma eleitoral abertamente austera na economia,
com nítidos traços antipopulares, vence uma eleição no Brasil. É
significativo que o PSDB, que governou o país por dois mandatos
com esta plataforma política e foi a principal oposição aos gover-
nos do PT, tenha sofrido uma enorme desidratação eleitoral desde
2018. Enquanto o PT, mesmo bastante abalado pela campanha
antipolítica, tenha conseguido chegar ao 2º turno da última eleição
presidencial.
Essa configuração, também guardando as devidas particulari-
dades históricas, é similar àquela da ascensão do fascismo clássico:
discurso ultra-conservador, desprezo pelo establishment, atribuição
das mazelas econômicas aos “outros”. Ainda que, economicamente,
tanto naquela época como hoje, tenha amparo no grande capital
monopolista, executando políticas de contenção dos interesses dos
trabalhadores, como a ampliação dos direitos trabalhistas e dos pro-
gramas sociais. Mas existem de fato especificidades entre o fascismo
clássico e a atual extrema-direita, que precisam ser ponderadas. E,
além disso, é preciso se perguntar: essa onda é duradoura?

A situação é “administrável”?

Apesar da tentação de buscar mais similaridades entre o


momento político de 100 anos atrás e agora, é forçoso reconhecer

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 155


que são momentos históricos bastante distintos. A crise da hege-
monia britânica, do padrão ouro e do liberalismo clássico não eram
fruto apenas da agitação reacionária, mas também da ação revolu-
cionária comunista. Os bolcheviques haviam chegado ao poder na
Rússia em 1917, e mesmo com as desventuras que levaram ao regime
de Stálin, se apresentavam como alternativa real ao capitalismo. O
nazi-fscismo, principalmente o alemão, ainda que contendo a pres-
são sindical e da esquerda, conseguiu garantir um crescimento
econômico excepcional com sua máquina de guerra. Ou seja, com
políticas econômicas fortemente dirigidas pelo Estado (vide, p.e,
HOBSBAWM, 1995, pp. 113-117).
Nos dias atuais, vemos algumas diferenças. Antes de mais
nada, com o fim da União Soviética em 1991, já não existe mais uma
potência militar socialista que se proponha a ser uma alternativa
ao capitalismo liberal. Além disso, após duas guerras mundiais,
lutas do processo de descolonização na África e na Ásia, avanços
nos estudos de biologia e genética, ampliação dos direitos sociais
e maior reconhecimento dos direitos humanos universais, a extre-
ma-direita precisa recalibrar o discurso. Ela não pode usar a ciên-
cia para justificar seu racismo, como no passado. Usa sua própria
definição de democracia para criticar o Estado na implementação
de “privilégios” às minorias. E tenta resgatar o princípio liberal de
individualismo para defender a ausência de intervencionismo esta-
tal na economia.

Assim, enquanto Trump trava uma batalha permanente


com as instituições democráticas de seu país, há outro
debate em andamento entre pessoas que se recusam a acei-
tar que essa seja a verdadeira história. Vivem no mundo
das sombras das teorias da conspiração e dos fatos alter-
nativos. Um mundo que se baseia no pressuposto de que
um retrato verdadeiro do que acontece só pode ser com-
preendido imputando motivações antidemocráticas aos
principais atores em cena. Pode parecer que a democracia
está funcionando, mas a verdade é que não, porque o outro
lado não está jogando conforme as regras (RUNCIMAN,
2018, p. 27).

156 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Na análise que o autor faz do caso estadunidense, ficam claras
as semelhanças entre o trumpismo e o bolsonarismo. Ainda que
ambos sejam favoráveis a soluções privadas para garantir o pro-
vimento das famílias, da diminuição de regras de fiscalização das
atividades econômicas e de impostos, apresentam-se como outsi-
ders que combatem o sistema. De fato, mesmo perdendo a disputa
eleitoral no final de 2020, Trump mostrou força política com uma
expressiva votação. Da mesma maneira, apesar da crise sanitária e
econômica causada pela pandemia (e da ausência de respostas enér-
gicas para combatê-la), Bolsonaro tem mantido até a metade de seu
mandato um significativo apoio popular, gravitando em torno dos
30% das intenções de votos para 202213.
A pergunta que todos os analistas políticos estão fazendo é:
tal situação é sustentável? O bolsonarismo, a face mais visível da
extrema-direita no Brasil, será longevo? A resposta depende, evi-
dentemente, de muitas variáveis. As oscilações de popularidade do
governo em 2020 ocorreram em função do pagamento do auxílio
emergencial de 600 reais, valor bem maior do que os 50 reais por
beneficiário do Bolsa Famĺia (chegando em um limite por famí-
lia de até 200 reais). Sem dúvidas, esse pagamento, que foi obra do
Congresso Nacional e não do Executivo, aliviou o impacto da pan-
demia na economia devido à retração da renda e ao desemprego.
Contudo, o governo terminou o ano afirmando que não reeditaria o
pagamento do auxílio em 2021, devido aos compromissos de manu-
tenção do teto de gastos e ao fim do regime de emergência dado ao
orçamento em função da pandemia14. É bem possível que o governo
procure formas de garantir a continuidade do benefício, mas se
mantido o teto de gastos, possivelmente proponha cortes em outras
rubricas orçamentárias, como as da educação, saúde ou carreira do
funcionalismo público. Algo que, de todo modo, conduzirá a novos

13 Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/22/cntmda-
-eleicoes-2022-bolsonaro-lula.htm. Acessado em 22/01/2021.
14 “Auxílio emergencial chega ao fim com a última parcela, saques continuam”. Disponível
em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/12/29/auxilio-emergencial-fim-
-ultima-parcela-dezembro-calendario-saques-2021.htm. Acessado em 29/12/2020.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 157


embates dentro e fora do parlamento. A retração econômica poderá
ser aliviada caso o ritmo de vacinação seja veloz e abrangente, o que
por enquanto não está garantido. Mesmo que ocorra alguma recu-
peração, ela acontecerá com um mercado de trabalho desaquecido e
com renda média em queda. Mantida a política de austeridade, difi-
cilmente teremos uma recuperação econômica vigorosa em 2021.
Este cenário pode impedir a reeleição de Bolsonaro em 2022?
Ao final do segundo ano de governo, mesmo com todos os percalços,
as pesquisas indicam que ele estará competitivo na campanha da
reeleição. Não é algo de se estranhar, pois desde a instituição da ree-
leição criada no final do primeiro mandato de Fernando H. Cardoso,
todos os presidentes foram reeleitos. Ademais, conforme indicamos,
a direita clássica (rebatizada por alguns de “centro democrático”)
caiu nos últimos anos em um processo de esvaziamento, e o mais
provável é uma reedição da polarização entre a extrema-direita e a
centro-esquerda ocorrida em 2018, com o PT ou algum arranjo de
frente antibolsonarista. Diante desse quadro, o mais provável é que
o discurso bolsonarista acentue a radicalidade das pautas de costu-
mes, evitando polarizar a disputa na raia econômica, onde terá difi-
culdades de justificar seu desempenho. Existe muita preocupação
também com o flerte de Bolsonaro com militares de baixa patente e
com as polícias militares estaduais, além de sua defesa histórica pelo
armamentismo, que pode abrir espaço para a formação de grupos
de simpatizantes armados, replicando os proud boys15 de Trump,
grupo armado neofascista nos EUA.
Não é um quadro inevitável, mas provável, que depende de
como as instituições de Estado (Suprema Corte, parlamento) e a
sociedade responderão às ameaças. Nos EUA, mesmo fortalecido,
Trump não viabilizou um auto-golpe, que seria inédito na história
daquele país. Os custos de um regime de exceção em um mundo
globalizado não são pequenos. Mas ficar inerte vendo o pior aconte-
cer não pode ser uma alternativa. Até mesmo David Runciman, que
acredita que as democracias estariam numa “crise de meia idade”

15 Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Proud_Boys. Acessado em 22/01/2021.

158 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


e não no fim, aponta para a necessidade da vigilância: “As demo-
cracias continuam a ser eficazes em evitar a hora mais difícil. Sua
incapacidade de se posicionar ou manter as coisas em proporção
é útil para adiar o pior, ainda que a frustração possa ser profunda
quando se tenta fazer melhor que isso” (RUNCIMAN, 2018, p. 228).
A economia é importante, mas não é o único fator que determina o
desenlace político. Se testemunhamos, em 2016, o fim do pacto da
Constituição de 1988, ainda não vimos nascer a alternativa demo-
crática àquela concertação. Os próximos anos poderão ser decisivos
para sua criação ou para tempos ainda mais difíceis. Apostemos na
primeira opção.

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SINGER, André. Os sentidos do Lulismo - reforma gradual e pacto conservador. São Paulo,
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STIGLITZ, Joseph. O mundo em queda livre: os Estados Unidos, o mercado livre e o naufrágio
da economia mundial. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.

160 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


CAPÍTULO 8

A ECONOMIA BR A SILEIR A EM
TEMPOS DE PANDEMIA 1

Francisco Luiz Corsi2

Introdução

O presente capítulo trata da crise econômica desencadeada pela


pandemia de coronavírus no Brasil. Partimos da economia mundial,
pois a economia brasileira não pode ser analisada separadamente
da situação do capitalismo global, que compõem uma totalidade.
Embora a pandemia tanto no Brasil quanto no mundo tenha desen-
cadeado a crise, ela não pode ser reduzida a um problema gerado por
um fator externo ao sistema econômico, que acabou acarretando um
quase simultâneo choque de oferta e demanda e, por conseguinte,
uma forte recessão da atividade econômica e queda do emprego. A
profundidade da atual crise deve-se, em boa medida, ao fato da eco-
nomia global e da brasileira, já antes da crise, apresentarem graves
problemas e uma tendência de baixo crescimento. No caso do Brasil,
observamos uma tendência dessa natureza desde a década de1980,
quando do esgotamento do padrão de acumulação desenvolvimen-
tista e da ascensão do modelo neoliberal.

1 Capítulo baseado na exposição e nos debates realizados no XX Fórum de Análise de


Conjuntura e atualizado a partir da evolução da situação econômica do Brasil ao longo de
2020.
2 Professor de Economia Brasileira da Faculdade de Filosofia e Ciências (FFC) da
Universidade Estadual Paulista (UNESP).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 161


O capitalismo global vive uma crise estrutural desde a chamada
Grande Recessão, que não foi plenamente superada, cujas principais
características são os seguintes: a baixa rentabilidade do capital, o
elevado endividamento de empresas, governos e famílias, a existên-
cia de uma superprodução de capital manifesta em um gigantesco
volume de capital fictício, a excessiva capacidade ociosa em setores
importantes e o acirramento da luta pela hegemonia mundial entre
os EUA e a China. Como em 2008, agora, mais uma vez, as poli-
ticas econômicas neoliberais mostram-se incapazes de enfrentar a
situação e, pelo menos momentaneamente, foram substituídas de
forma generalizada por políticas anticíclicas de inspiração keyne-
siana. Mas estas também apresentam limites diante de uma crise
estrutural de grande envergadura. Desta maneira, o capitalismo
global encontra-se em um impasse e a crise tende a se arrastar para
os próximos anos. Esta situação é particularmente grave no Brasil
que vive uma fase longa de estagnação.
O capitulo é composto por mais três itens, além dessa sucinta
introdução. No primeiro, discutimos a crise mundial desencadeada
pela pandemia em um contexto de crise estrutural de superprodu-
ção de capital. Em seguida discutimos a economia brasileira, dis-
pensando particular atenção as políticas econômicas adotadas e
seus resultados. Por último, tecemos alguns rápidos comentários.
Não se pretende nas breves que se seguem esgotar temas tão comple-
xos, mas somente levantar alguns pontos para o debate.

A pandemia e a crise do capitalismo global

A pandemia de coronavírus desencadeou uma crise de larga


amplitude na economia mundial, que atingiu todos os países do
mundo, embora o tenha feito com intensidade distinta. A zona do
euro, os EUA, o Japão e a América Latina foram duramente atingi-
dos, enquanto a China, polo dinâmico da acumulação de capital,
que sofreu bastante no início de 2020, rapidamente recuperou-se a
partir de uma ampla e eficiente política de combate à pandemia.

162 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Esta crise, a mais profunda desde o pós-guerra, não pode ser atri-
buída apenas à pandemia, um elemento exógeno ao sistema econô-
mico. O capitalismo global não estava em plena expansão quando
foi atingido por esses eventos. Pelo contrário, o capitalismo global
enfrenta uma crise estrutural de longa duração, fruto de múltiplas
determinações, mas cuja principal causa reside na incapacidade de
recuperar a rentabilidade, que apresenta tendência de queda desde
fins da década de 1960, não obstante as profundas transformações
observadas nos últimos 40 anos na economia capitalista3.
Este período foi marcado, entre muitos outros aspectos, por
grande instabilidade e crescimento bastante desigual, com recorren-
tes crises no centro e na periferia do sistema, além de uma reconfi-
guração espacial da acumulação de capital, que colocou a Ásia como
novo espaço dinâmico da acumulação, reafirmando a tendência de
desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo4. A crise
aberta em 2008, chamada por muitos de a Grande Recessão (2008
– 2009), ainda não totalmente superada5, apesar da rápida recupe-

3 Ver a respeito, entre outros, Roberts (2016), Corsi; Santos; Camargo (2018).
4 A reconfiguração espacial da acumulação de capital que transformou a Ásia no centro
dinâmico da acumulação está acarretando um acirramento das disputas entre os EUA
e a China pela hegemonia mundial, o que abre a possibilidade de uma série de conflitos
regionais e no limite pode levar a um conflito aberto. O desfecho da luta pela hegemonia
está longe de estar decidido, dado que os EUA, apesar de crescentemente ameaçados pela
China, que se tornou o centro manufatureiro do mundo e avança rapidamente em ter-
mos tecnológico, ainda dispõem do controle da moeda de curso internacional, do controle
das finanças mundiais, de enorme poderio militar, de considerável desenvolvimento tec-
nológico e de incomparável projeção cultural. Também é preciso observar que a relação
simbiótica entre a China e os EUA, que contribuiu para o salto econômico chinês, está se
desfazendo, à medida que a China busca cada vez mais desenvolver seu imenso mercado
interno, diminuindo sua dependência em relação ao mercado norte-americano, enquanto
EUA continuam dependentes dos produtos chineses baratos para conter a inflação in-
terna, além do fato de inúmeras multinacionais norte-americanas estarem instaladas na
China.
5 Em 2010, o PIB Mundial cresceu 5,4% em relação ao ano anterior, indicando que se re-
cuperara da Grande Recessão. Porém, não foi o que se observou. A economia mundial
apresentou um crescimento modesto, que tendeu a declinar. O crescimento médio dos
países desenvolvidos, entre 2011 e 2019, foi de 1,9% ao ano. Entre 2018 e 2019, o PIB das
economias desenvolvidas declinou de 2,2% para 1,7%. Neste mesmo período, a taxa de
crescimento do PIB chinês caiu de 6,8% para 6,1%, enquanto na Índia a queda foi de 6,8%
para 4,8%. (FMI, 2020).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 163


ração de alguns países, sobretudo do leste-asiático, decorreu, em
grande medida, da queda de rentabilidade e da existência de uma
superprodução de capital, manifesta em enorme volume de capital
fictício, cuja valorização impõem permanente instabilidade ao sis-
tema econômico.
Foi neste contexto, esquematicamente exposto acima, que se
desencadeou a pandemia6. A economia global, de modo geral, já
vinha apresentando sinais de desaceleração em 2019. Neste ano, o
PIB mundial cresceu 2,9% ante 3,6% do ano anterior. Em virtude
da baixa rentabilidade, da existência de capacidade ociosa excessiva
em importantes setores e do elevado endividamento das empre-
sas a acumulação de capital esmoreceu7. A dívida global privada e

6 A rápida expansão da pandemia, acompanhada por medidas de isolamento social, volta-


das para deter a propagação do vírus, afetou negativamente a economia global, acarretan-
do um declínio da produção, do comércio, dos investimentos, dos serviços, do emprego,
dos salários e do consumo. Observou-se, ao longo de 2020, inúmeros problemas de forne-
cimento de insumos nas cadeias produtivas e comerciais em âmbito mundial. Tudo isso
significou um simultâneo choque de oferta e de demanda. Em um primeiro momento, o
risco de grave crise financeira, causado pela insolvência de empresas e famílias, era palpá-
vel, ainda mais diante da existência de uma superprodução de capital, expressa sobretudo
pelos elevados montantes de capital aplicados na especulação, além do endividamento
generalizado (ROBERTS, 2020a; CHESNAIS, 2020).
7 As taxas de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) em relação ao PIB, em 2018, estavam
abaixo das verificadas antes de 2008. Entre 2007 e 2018, nos EUA a taxa caiu de 22,59%
para 21,00%. Neste mesmo período, nos países que compõem a OCDE a queda foi de
23,55% para 20,38%, enquanto na Índia caiu de 41,93% para 31,30% e na China de 46,51%
para 44,05%. O elevado incremento da liquidez e do forte declínio das taxas de juros, que
tenderam a ser negativas em muitos países, não são capazes de estimular o investimento
devido ao elevado patamar de endividamento das empresas, à baixa rentabilidade e à capa-
cidade ociosa excessiva (BANCO MUNDIAL, 2020). De acordo com dados apresentados
por Roberts (2020d), a taxa de lucro média das corporações globais, que já apresentava
uma tendência de queda, declinou, entre 2017 e 2019, cerca de 25%. A política econômica
neoliberal, baseada na contração do gasto público e dos salários e no corte de direitos
sociais se mostrou ineficaz no combate a crise. Esta política ao induzir uma queda da
demanda agregada contribuiu para o seu aprofundamento. Entre julho de 2017 e janeiro
de 2020 o nível de utilização capacidade instalada nos EUA foi de 77%. Na China e na zona
do euro este número, no mesmo período, foi de 83% e 76% respectivamente. Com a crise
de 2020, observa-se uma elevação da capacidade ociosa, que no inicio do ano passado atin-
giu em alguns países cerca de 35% (TRADING ECONOMICS, 2020). Segundo Chesnais
(2020), a dívida global, em 2019, somava US$ 255 trilhões, o que correspondia 322% do
PIB mundial. A política de quantitative easing não foi capaz de estimular um crescimento
vigoroso da atividade econômica, mas estimulou um forte endividamento das empresas,

164 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


pública acelerou sua trajetória de crescimento a partir de 2017, o que
foi importante para sustentar a crescente especulação com títulos e
ações, apesar do crescente endividamento criar as condições para
nova crise.8
A política monetária expansiva, adotada pelos principais
bancos centrais desde 2008 e reforçada em 2020 para evitar, mais
uma vez, um colapso financeiro, inundou de liquidez a economia
mundial. Isto foi central para sustentar a valorização fictícia do capi-
tal, pois a expansão do crédito dirigiu-se sobretudo para financiar
a especulação com títulos, moedas e ações, o que contribuiu para o
endividamento de empresas, bancos e outras instituições financei-
ras. O resultado foi um maior deslocamento da valorização fictícia
do capital das condições reais da acumulação. Não por acaso, obser-
va-se nos mercados financeiros, depois de um breve período de forte
declínio das cotações dos títulos e das ações no primeiro semestre
de 2020, uma crescente valorização dos ativos financeiros, em plena
crise econômica9. Entretanto, esse deslocamento não poderá sus-
tentar-se indefinidamente. Cedo ou tarde, as limitadas condições
de valorização do capital na economia real acabaram se impondo
e as bolhas especulativas estourarão. Ou seja, a própria tentativa de
evitar a desvalorização do capital excedente está criando as condi-
ções para uma extensa crise mais adiante.
Todavia, é preciso observar que, em 2020, as medidas anticícli-
cas buscaram também socorrer as atividades produtivas, os serviços
e o comércio, dada a carência de recursos, ao mesmo tempo em que
eram introduzidas diversas medidas para auxiliar os trabalhadores
desempregados e informais. A soma da ampliação do gasto público,
em especial dos auxílios aos trabalhadores desempregados e infor-
mais, e das garantias de crédito e empréstimos decorrentes dessas

financiando a juros baixos e créditos fartos a especulação com títulos e ações. Também
ficou evidente o quanto é falaciosa a teoria monetarista, pois a inflação continua contida
desde a crise de 2008, apesar da economia mundial ter sido inundada de liquidez.
8 De acordo com Chesnais (2020), a emissão de dívida pública em abril de 2020 somou US$
2,1trilhões, ante uma média mensal de US$ 0,9 trilhão entre 2017 e 2019.
9 Ver a respeito, entre outros, Roberts (2021).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 165


políticas foram, segundo Roberts (2020a), da ordem de 9% do PIB
mundial, contrastando com os dispêndios dessa natureza de cerca
de 2% do PIB na Grande Recessão. Seja como for, a maior parte
desses gastos teve como objetivo manter uma abundante liquidez na
economia mundial10 e assim evitar o colapso da valorização fictícia
do capital. As políticas anticíclicas11 suavizaram a crise, sem, con-
tudo, evitar uma queda profunda da economia mundial. Também
não logrou uma recuperação rápida da economia, como previam
muitos governos e analistas do mercado.
As estimativas acerca do desempenho da economia mundial
apontam que a recuperação não será fácil. Para zona do euro, o FMI
estima uma retração do PIB de 8,3%, em 2020, não obstante a forte
expansão da atividade no terceiro trimestre. Neste ano, o PIB nor-
te-americano recuou 3,5%, a maior queda desde 194612. A econo-
mia chinesa cresceu, em 2020, 2,3%, o pior desempenho em muito
tempo. A sua recuperação deveu-se à eficiente política de combate
a pandemia e às medidas anticíclicas. Dentre principais economias
do mundo, este comportamento parece ter sido uma exceção. Para o

10 Os EUA estão executando uma das mais amplas políticas anticíclicas do mundo, estimada
em 2 trilhões de dólares. Desses recursos, 2/3 constituem dispêndios com empréstimos e
injeção de moeda na economia. A menor parte é destinada aos milhões de trabalhadores
formais e informais, que enfrentam elevado desemprego, na forma de auxílio monetário e
isenções de impostos (ROBERTS, 2020c).
11 A generalização de políticas monetárias e fiscais expansivas não significa necessariamen-
te o fim das políticas neoliberais, baseadas na austeridade fiscal, e a volta do keynesia-
nismo. Na Grande Recessão o neoliberalismo parecia batido, mas rearticulou-se assim
que a situação apresentou alguma melhora a partir de 2010. Como naquele momento, as
políticas keynesianas estão atualmente contribuindo para amenizar a crise. Até o FMI tem
defendido políticas fiscais expansivas, mas advoga o retorno à rígida ortodoxia fiscal as-
sim que a situação permitir. Entretanto, é duvidoso que essas políticas expansivas tenham
a capacidade de sustentarem uma rápida e efetiva retomada da atividade econômica, dada
a magnitude da crise e do capital fictício, que resiste a desvalorização, e dado o baixo
patamar da taxa de lucro.
12 No segundo trimestre de 2020, na fase mais aguda da crise, o desemprego nos EUA, sem
contabilizar os trabalhadores que tiveram a jornada de trabalho reduzida, alcançou a cifra
de 14,7% da força de trabalho, sendo que no mês anterior esse número tinha sido de 4,8%.
Este foi o pior desempenho do mercado de trabalho desde a Grande Depressão dos anos
de 1930.

166 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


FMI a economia mundial, em 2020, deverá sofrer uma contração de
3,5% (EUROSTAT, 2020; FMI, 2020).
A abrangência da crise, em parte, decorre de uma economia
globalizada, baseada em cadeias produtivas e comerciais disper-
sas geograficamente, que conectam quase todas as economias.
Entretanto, a China paradoxalmente concentra a produção manu-
fatureira mundial. Esta arquitetura tornou a economia mundial
vulnerável, sobretudo no que se refere ao fornecimento de insu-
mos, como ficou evidente ao longo de 2020. A enorme dificuldade
de obtenção de equipamentos e insumos médicos essenciais para
enfrentar a pandemia atingiu inúmeros países, em particular os
menos desenvolvidos. A dificuldade de o Brasil obter insumos para
produzir vacinas exemplifica essa situação, em que pese a desastrosa
política do governo Bolsonaro no combate à pandemia. Este episó-
dio demonstrou mais uma vez a posição dependente e subordinada
do pais no capitalismo global.
Nestas circunstâncias, as regiões periféricas, muitas delas
vivendo uma situação de declínio do crescimento ou de estagnação,
como a América Latina, foram fortemente impactados pela crise
desencadeada pela covid 19. Muitos países periféricos sofrem com
as precárias estruturas de saúde, a queda das exportações, a fuga de
capitais e as restrições decorrentes da pandemia, o que resulta em
elevado desemprego, no aumento da pobreza e na contração do PIB.
As saídas para a periferia são limitadas pela vulnerabilidade externa
estrutural e pela situação de dependência. A economia brasileira
tem que ser analisada a partir desse quadro esquematicamente
exposto acima.

A economia brasileira

A economia brasileira foi atingida pela crise desencadeada pela


pandemia em uma situação estrutural de baixo crescimento e de
crises recorrentes, desempenho delineado a partir do novo padrão
de acumulação estabelecido com a crise do desenvolvimentismo nos

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 167


anos de 1980 (FIGUEIRAS, 2012)13. O crescimento mais robusto
verificado no governo Lula foi uma exceção, vinculada em parte
ao boom de commodities, nesta tendência de longo prazo. A quase
estagnação da economia brasileira denota o fracasso das políticas
neoliberais. Na fase de mundialização do capital o Brasil sofreu um
retrocesso estrutural e reforçou sua inserção subordinada e depen-
dente no capitalismo global.
O Brasil já estava a caminho de uma nova crise quando do
advento da pandemia. Em 2019, os sinais de desaceleração eram
evidentes. Neste ano, o PIB cresceu 1,41%, frente ao medíocre cres-
cimento de 1,78%, em 2018, depois de ter crescido 1,4% no ano ante-
rior. No primeiro trimestre de 2020, portanto antes do impacto da
covid 19, dado que as medidas restritivas vinculadas à pandemia
começaram a surtir efeito após a primeira quinzena de março, o PIB
sofreu uma contração de 0,27% em relação ao mesmo período do
ano anterior (IPEA DATA, 2021). O baixo desempenho depois da
crise 2015-2016 deveu-se sobretudo à politica econômica recessiva
implantada por Temer e Guedes, baseada na austeridade fiscal, na
redução do papel do Estado na economia e no corte dos direitos
sociais, e ao baixo desempenho da economia mundial14. Assim, é
falacioso o discurso oficial segundo o qual a economia estaria deco-
lando ao ser atingida pela crise do coronavírus.
A crise foi sentida com toda força no segundo trimestre do
ano passado, em virtude das medidas de isolamento social adotadas
pelos governos estaduais na tentativa de deter o avanço do vírus,
ante a paralisia do governo federal. O PIB, neste trimestre, declinou
10,90%. O Brasil entrou em forte recessão depois de dois trimes-
tres de retração da atividade econômica. A produção industrial, em
retração desde o quarto trimestre de 2019, decresceu, no segundo
trimestre de 2020, 19,5% em relação ao mesmo período do ano
anterior. O valor real das vendas no varejo, no segundo trimestre
de 2020, caíram 7,94% em relação ao segundo trimestre de 2019. O

13 Entre 1981 e 2014 o crescimento médio do PIB foi de 2,2% ao ano. (PRADO, 2020).
14 Sobre a medíocre recuperação da economia a partir de 2017 e a política econômica adotada
no período ver, entre outros, Corsi (2018).

168 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


faturamento real do setor de serviços, no mesmo intervalo de tempo,
apresentou uma retração 16,3%. A Formação Bruta de Capital Fixo
(FBCF), no segundo trimestre de 2020, foi de 15,07% do PIB, man-
tendo o patamar baixíssimo dos últimos anos, contrastando com a
taxa de 21% do PIB, verificada em 2013. Em junho de 2020, o nível
de utilização da capacidade instalada foi de 66%. No ano anterior,
este número, que já estava em um nível bem baixo, foi de 74%. A
taxa de desemprego, manteve-se em um patamar elevado, verificado
desde a crise de 2015. Em setembro de 2020, o desemprego aberto
correspondia a 14,6% da força de trabalho, depois de ter atingindo
13,3% da força de trabalho em junho, perfazendo 12,8 milhões de
desempregados. No primeiro trimestre, a taxa de desemprego tinha
sido de 12,2%. A abrangência da crise se expressou em uma defla-
ção dos preços em abril e maio, segundo o índice oficial que mede a
inflação. Em decorrência da queda da atividade econômica, a arre-
cadação federal, que apresenta um comportamento elástico em rela-
ção ao PIB, no primeiro semestre de 2020, em comparação com o
mesmo período do ano anterior, declinou 14,71%. A estimativa de
diversos analistas e instituições indicam um déficit primário, em
2020, de creca de R$ 800 bilhões, 8% do PIB, ante um déficit primá-
rio de R$ 61 bilhões em 2019. As estimativas em relação ao déficit
nominal apontam para um déficit da ordem de 15% do PIB para
2020. Dessa forma, cerca de 6% do PIB, serão, de acordo com essas
previsões, transferidos para a valorização fictícia do capital. (IBGE,
2021; IEDI, 2021; IPEA DATA, 2021).
Estes números indicam a amplitude da crise e o quanto será
difícil superá-la. Parece pouco provável uma recuperação da econo-
mia na forma de um V, como acreditam muitos neoliberais. Parece
mais provável que a recuperação verificada a partir do terceiro tri-
mestre não terá fôlego para impulsionar uma vigorosa retomada da
atividade econômica. Aqui defende-se a proposição segundo a qual
a economia brasileira retomará a tendência histórica de baixo cres-
cimento, devido tanto a razões estruturais quanto aos limites e equí-
vocos da política econômica do governo Bolsonaro, apesar desta ter
amenizado os efeitos da crise.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 169


Diante da profundidade da crise, as políticas neoliberais, que
vinham sendo aprofundadas por Guedes, mostraram-se incapazes
de enfrentar a situação. O capital, mais uma vez, teve que recorrer ao
Estado para enfrentar a calamidade de saúde pública e a crise eco-
nômica generalizada. O Sistema Único de Saúde (SUS), que vinha
a décadas sendo sucateado pelas políticas neoliberais, mostrou-se
imprescindível. O governo Bolsonaro, viu-se obrigado a adotar uma
política de ampliação da liquidez e do gasto público, visando socor-
rer o sistema financeiro, as empresas, os desempregados e os traba-
lhadores informais. De repente, muitos neoliberais passaram, pelo
menos momentaneamente, a defender ampla ação estatal na econo-
mia na esperança de rapidamente debelar a crise e assim retomar a
política de austeridade.
Apesar da resistência inicial do Ministro da Fazenda, o
Congresso, diante da situação de calamidade pública aprovou o
chamado orçamento de guerra, que permitiu para o ano de 2020 a
flexibilização do teto de gastos, estabelecido por emenda constitu-
cional, para os dispêndios referentes à pandemia. Também flexibi-
lizou a “regra de ouro”, que proíbe a contratação de novas dívidas
para financiar gastos correntes.
O governo Bolsonaro passou a adotar uma politica expan-
siva, cujos principais pontos são os seguintes: 1- Recursos adicio-
nais para o Ministério da Saúde enfrentar a crise; 2- Recursos para
o financiamento da folha salarial, dos trabalhadores que tiveram
seus contratos de trabalho temporariamente suspensos ou salários
reduzidos; 3- Recursos para o financiamento da infraestrutura de
turismo; 4- Transferência de recursos para estados e município para
o enfrentamento da pandemia e para compensar perda de receita; 5-
Auxílio emergencial para trabalhadores desempregados e informais
e microempreendedores individuais (Cinco parcelas de R$ 600,00 e
mais quatro de R$ 300,00). Esta foi uma das medidas mais impor-
tantes ao estabelecer um auxílio emergencial, que atingiu cerca de
70 milhões de pessoas e injetou cerca de R$ 300 bilhões na econo-
mia; 5- Injeção de liquidez no sistema financeiro, cujo montante
previsto era da ordem de R$ 1,2 trilhões

170 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


No entanto, nem todo o montante previsto foi de fato despen-
dido. No que se refere a injeção de liquidez, até agosto, foram imple-
mentadas medidas no montante de R$ 309 bilhões. Dos recursos
adicionais destinados a saúde só cerca de 50% foram aplicados neste
mesmo período, o que ajuda a explicar a catastrófica politica do
governo em relação ao combate a pandemia, desde a falta de vacinas
até a o colapso da saúde pública vivido pelo estado do Amazonas.
Dos recursos destinados para financiar as empresas foram despen-
didos até julho cerca de 17% do total, o que prejudicou sobretudo as
pequenas e médias empresas. Cabe também observar que os recursos
previstos para socorrer cerca de 1/3 da população representam cerca
de 21% dos previstos para serem injetados no sistema financeiro.
Parte do aumento de liquidez no sistema bancário ficou empoçada
e aplicada em títulos, não atingindo a economia real, onde poderia
contribuir para minorar a crise.
Este conjunto de medidas, por um lado, evitou uma crise mais
profunda da economia, mas não conseguiu reverter a regressão da
atividade econômica e do emprego. Tanto é que a queda do PIB, em
2020, será uma das mais acentuadas da história da economia bra-
sileira e a recuperação nos próximos anos, tudo indica, será frágil.
Por outro, lado essa política econômica demostrou as falácias do
discurso neoliberal.
Desde 2013, os neoliberais tinham elevado o tom das críticas
à politica tida como desenvolvimentista do governo Dilma, argu-
mentando que o Estado estava falido e vivíamos uma crise fiscal
de grandes proporções. Crise fiscal que era considerada uma das
causas centrais do descenso da economia brasileira. Seria, portanto,
imprescindível uma política pautada na austeridade fiscal e mone-
tária e nas reformas, que deveriam reduzir os direitos dos traba-
lhadores, para por ordem a casa. Foi essa linha que norteou, em
grande medida, a radicalização neoliberal das políticas de Temer e
Bolsonaro.
Entretanto, o discurso neoliberal segundo o qual não há recur-
sos e o Estado está falido perdeu sustentação ante os dispêndios
públicos realizados para enfrentar a pandemia. Para essa corrente

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 171


haveria um descasamento entre os direitos sociais estabelecidos pela
Constituição de 1988 e as condições fiscais do país. Por isso, viam
como imprescindível as reformas da previdência e a trabalhista. Ou
seja, não há recursos para os trabalhadores e para os gastos sociais,
mas para o capital os recursos são abundantes. Em 2019, só para
citar um exemplo, a título de pagamento da dívida pública, alimen-
tada por décadas por juros escorchantes, foi dispendido cerca de R$
380 bilhões, o que correspondeu a cerca de 13 vezes aos gastos com
o programa bolsa família naquele ano. Desde 20116, o pilar central
da política de austeridade fiscal é o teto dos gastos públicos, esta-
belecido pela emenda constitucional 95, que foi momentaneamente
suspenso. Na crise os recursos apareceram, sobretudo para o grande
capital (BCB, 2020; BATISTA JR., 2020).
O nó górdio da questão, segundo os neoliberais, reside no pro-
blema da dívida pública, que alcançou, ao final de 2020, o patamar
de 89,3% do PIB (BCB, 2020). Para eles, o controle dos gastos públi-
cos e, por conseguinte, a estabilização da relação dívida pública/
PIB seria fundamental para deter as pressões inflacionárias e para
assegurar boas condições de financiamento do Estado no mercado.
O descontrole fiscal acabaria por obrigar a elevação dos juros, cujas
consequências seriam novamente a queda do consumo e do inves-
timento e o aumento da própria dívida pública. Isto sem falar no
efeito negativo do problema fiscal sobre as expectativas dos empre-
sários. Também se colocam frontalmente contra o financiamento
do gasto público por meio de emissão de moeda, pois isso gera-
ria inflação, apesar do mundo viver desde 2008 uma situação de
abundante liquidez sem que isso acarrete pressões inflacionárias. O
incremento da inflação no Brasil nos últimos meses decorre funda-
mentalmente da acentuada desvalorização do câmbio e da elevação
dos preços das commodities, que o Brasil exporta em larga escala,
no mercado internacional, não obstante a política monetária e cre-
ditícia ser expansiva. Tendo como base essa argumentação, os eco-
nomistas neoliberais consideram fundamental a manutenção, assim
que as condições permitirem, da política de austeridade, calcada no
teto dos gastos, na política de redução dos gastos sociais, no ataque

172 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


aos direitos dos trabalhadores, nas privatizações e na plena abertura
ao capital estrangeiro. Esta corrente vê na redução dos custos do tra-
balho o caminho para recuperar os lucros e incrementar os investi-
mentos. Também consideram que a austeridade fiscal, a estabilidade
de preços, as privatizações e o baixo custo da força de trabalho atrai-
riam um volume significativo de capital estrangeiro (BELLUZZO;
GALÍPOLO, 2017; CARVALHO, 2018).
Estas proposições apresentam inúmeros problemas. Injetar
moeda na economia para financiar os gastos não, necessariamente,
gerará inflação, pois o consumo e os investimentos mostram-se
débeis e o nível de desemprego é bastante elevado, ao que se soma
a capacidade ociosa excessiva em diversos setores. A dívida pública
poderia, nestas circunstâncias, ser monetizada. A elevada relação
dívida pública/PIB não necessariamente implica em elevação de
juros, vide o exemplo da Itália. O perfil da dívida não é tão ruim,
apesar do prazo médio de vencimento dos títulos ser curto, 49
meses. Mas a maior parcela dos títulos está nas mãos de investido-
res brasileiros e grande parte deles não está vinculada ao dólar. Por
outro lado, cerca de 65% da dívida é composta por títulos corrigidos
pela inflação e pós-fixados. Contudo, o Brasil possui um elevado
nível de reservas, que reduz, embora não elimine, dada a vulnera-
bilidade externa estrutural, o risco de crise cambial, apesar da polí-
tica equivocada de Guedes de queimar as reservas para segurar o
câmbio. Uma política calcada na austeridade manteria a economia
deprimida e sem aumento da arrecadação não seria possível enfren-
tar os desequilíbrios das contas públicas, que tenderiam a se agra-
var. (BATISTA JR., 2020).
Entretanto, nesta situação de baixo nível de consumo e de
investimento privado e de enorme margem de capacidade ociosa a
única maneira de tentar ativar a economia seria, segundo os eco-
nomistas keynesianos, incrementar o gasto público nos programas
sociais e nos investimentos, uma vez que o incremento da liquidez
e a queda da taxa de juros não tem sido suficientes para estimular
uma retomada consistente da economia, servindo sobretudo para
sustentar a especulação. Mas o sucesso dessa política expansiva é

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 173


também duvidoso, dada a baixa rentabilidade do capital. As polí-
ticas econômicas expansivas podem estimular o crescimento, mas
em uma situação de crise estrutural como a que vivemos no Brasil
e no mundo os seus efeitos anticíclicos são limitados. Ao problema
de baixa rentabilidade se soma uma série de outros, a saber: a exis-
tência de uma massa de capital fictício que resiste a desvalorização,
a regressão estrutural da economia (Desindustrialização e reprima-
rização da pauta de exportações), a crescente dependência tecnoló-
gica, a dependência dos fluxos externos de capital, a inexistência de
forças políticas capazes de sustentar abrangente política de desen-
volvimento e um contexto internacional depressivo.
A proposição segundo a qual a redução dos custos da força de
trabalho automaticamente aumentaria os lucros, o emprego e con-
tribuiria para ativar a economia precisa ser vista com cautela15. Não
obstante a redução de salários e de direitos trabalhistas contribuir
para a elevação dos lucros e aumentar a competitividade das empre-
sas, o nível de emprego depende sobretudo do ritmo da acumulação
de capital. Porém, em uma conjuntura econômica bastante difícil,
caracterizada por elevada capacidade ociosa, alto índice de endi-
vidamento das empresas, queda da demanda e pela crise mundial,
o eventual aumento dos lucros, sozinho, não será provavelmente
capaz de deslanchar uma vigorosa acumulação de capital no curto
prazo, sem que antes a enorme massa de capital constante e de capi-
tal fictício supérflua existente seja fortemente desvalorizada e se
encaminhe o problema do elevado endividamento16.

15 Na crise, a queda dos salários e a desvalorização do estoque de capital contribuem para a


elevação da lucratividade, mais que compensando a pressão baixista decorrente do incre-
mento da capacidade ociosa. Contudo, essa elevação dos lucros dificilmente se traduzirá
de imediato em incremento dos investimentos em uma situação de elevado endividamento
e excessiva capacidade ociosa.
16 Em agosto de 2020, o nível de endividamento das corporações não financeiras brasileiras
somou R$ 4,3 trilhões, o que corresponde a 60,05% do PIB, sendo que em dezembro de
2019 este número era de 51,2% do PIB. Mesmo no difícil ano de 2015, o nível de endivida-
mento, que alcançou a marca de 57,7% do PIB, não chegou ao recorde atual. No início da
série histórica, levantada pelo CEMEC/FIPE (2020), em 2000, o nível de endividamento
era de 34,9%. As razões principais para o crescimento acentuado do endividamento no
último ano foram a desvalorização do real e a necessidade de fazer caixa por parte das

174 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Diante da magnitude da crise enfrentada pelo Brasil e das limi-
tadas alternativas de política econômica, um dos embates centrais
da conjuntura consiste na disputa pelo fundo público. Isto implica
em acirrada luta em torno do teto do gasto público. O ministro da
Fazenda, os economistas neoliberais, a grande imprensa e amplos
setores da burguesia, em especial o setor financeiro, defendem
encarniçadamente a manutenção do teto para 2021, contrapondo-se
as forças, que mesmo no interior do governo, defendem sua flexibili-
zação17. Para bloco de interesses que defende a manutenção do teto o
ajuste das contas públicas deverá ocorrer a partir do corte de gastos
com aposentadorias, com salários dos servidores, com a saúde, com
a educação e com os investimentos. Para esses setores de classe não
haveria alternativa à crise brasileira senão a redução da participação
dos gastos sociais no PIB.
O governo Bolsonaro vive um dilema. De um lado, as frações
da classe dominante que apoiam a política de austeridade (o setor
financeiro, o agronegócio, o grande capital industrial e comercial e
o capital estrangeiro) constituem um pilar central para a sustenta-
ção do governo. Por isso Bolsonaro reluta em romper com a auste-
ridade. De outro lado, sua popularidade passou a depender, em boa
medida, do auxílio emergencial. A recente queda de popularidade

empresas. As principais empresas com levado endividamento são as seguintes Petrobrás,


Vale, Brasken, Suzano, JBS e Azul. As perspectivas para o próximo ano não são das me-
lhores, pois as empresas endividadas vão depender de uma rápida retomada para fazer
frente as suas obrigações financeiras, ainda mais que muitas delas não possuem hege em
relação a essas dívidas (CEMEC/FIPE, 2020). No segundo trimestre de 2020, a rentabilida-
de do capital, para uma amostra de 460 empresas referente a uma pesquisa realizada pelo
CEMEC/FIPE (2020), era de 7,4% ao ano, ao mesmo tempo em que o custo de tomada de
empréstimos para investimentos era de 11,4%. No pior momento da crise de 2009, esses
números foram respectivamente os seguintes 11,5% e 11,4% (INFOMONEY, 2020). A mé-
dia da Utilização da Capacidade Instalada (UCI) da indústria de transformação brasileira,
em 2020, foi de 76,4% (CNI, 2020). Nestas circunstâncias, a retomada vigorosa dos inves-
timentos será, tudo indica, lenta e difícil.
17 Cabe salientar que o teto dos gastos públicos deixa de fora as despesas relativas ao paga-
mento dos juros da dívida pública, que podem aumentar sem restrições. A estabilização da
relação dívida/PIB e a contenção dos gastos em outras áreas é justamente para assegurar
que os juros da dívida serão rigorosamente pagos. Assim, os interesses financeiros serão
rigorosamente respeitados.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 175


de seu governo coincidiu com o fim do auxílio. Ademais, as pre-
tensões de reeleição de Bolsonaro também dependem, em parte, da
retomada mais vigorosa da economia. Ele sabe que a classe domi-
nante o apoia justamente porque ele tem penetração popular, o que
nenhum outro candidato da burguesia mostrou ter até o momento.
Isto é importante para colocá-lo como um candidato forte em 2022.
Neste contexto, o governo Bolsonaro, embora flerte com um
golpe a todo o momento, busca compatibilizar a política de aus-
teridade, que implica na manutenção do teto do gasto público,
com a continuidade de um programa de auxílio aos mais pobres,
mas sem atacar os interesses das classes dominantes. Este cami-
nho parece ser o da nova proposta de auxílio aos mais carentes em
gestação no governo no momento em que as presentes notas estão
sendo escritas.
De qualquer forma, a politica anticíclica adotada a partir da
instalação da pandemia no Brasil amenizou os efeitos da crise,
embora tenha se mostrado limitada, não conseguindo assegurar
uma rápida e consistente recuperação18. O esforço fiscal referente
à pandemia foi considerável, representou cerca de 9% do PIB em
2020. Foi essa elevação do gasto público que evitou uma queda
de 10% do PIB, como alguns analistas previam no início do ano.
Porém, mesmo assim a economia deve sofrer uma fortíssima con-
tração da ordem 5%. A atividade econômica se recuperará, como

18 A produção industrial voltou a subir 3,44% no quarto trimestre, depois de ter caído 19,38
% no segundo e 0,43%no terceiro em relação ao mesmo período do ano anterior. No ano
como um todo, a retração foi de 4,5% em relação a 2019. O valor real das vendas no varejo
se recuperaram já no terceiro trimestre, crescendo 6,30%, sobretudo em virtude do auxílio
emergencial, sendo que a queda em relação ao ano anterior tinha sido de 7,94% no segundo
trimestre. Mas cabe observar que este crescimento vem perdendo fôlego desde novembro,
quando foi de 3,53% contra 8,39% em outubro. Em dezembro, tradicionalmente um mês
de vendas aquecidas, o valor real das vendas cresceu apenas 1,13%. Este comportamento
sugere uma desaceleração da economia, vinculada ao fim do auxílio emergencial. O setor
de serviços, o mais afetado pela pandemia, retrocedeu, em 2020, 7,8% em relação a 2019,
sendo que em dezembro observou-se um recuo de 0,2% depois de seis meses de desem-
penho positivo. O desempenho dos investimentos foi sofrível, verificou-se uma queda de
13,90% no segundo semestre e outra queda de 7,76% no terceiro em relação a igual período
do ano anterior. A taxa de desemprego do terceiro semestre foi de 14,3% (IPEA DATA,
2021; IBGE, 2021).

176 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


já vem acontecendo desde o relaxamento das medidas de distan-
ciamento social, mas deve demorar um tempo para atingir o bai-
xíssimo patamar de 2019. É provável que o Brasil volte a apresentar
a tendência de baixo crescimento, que caracteriza a sua economia
desde os anos de 1980.

Considerações finais

A economia brasileira apresenta uma tendência de longo prazo


de baixo crescimento, que foi reforçada pela severa recessão verifi-
cada entre 2015 e 2016, pela fraca recuperação que se seguiu e pela
tendência depressiva da economia mundial depois da crise de 2008.
Neste contexto, a pandemia de coronavírus jogou o país em uma
grave crise, e a política econômica neoliberal mostrou-se incapaz
de enfrentar a situação. Isto obrigou o negacionista e reacionário
governo Bolsonaro adotar uma política anticíclica, que mitigou
os efeitos da recessão, mas que esta longe de lograr uma rápida e
consistente recuperação da economia. Os indícios sugerem que a
economia brasileira não terá condições de superar a tendência de
baixo crescimento, acompanhada de deterioração das condições de
vida e trabalho da classe trabalhadora. É duvidoso que uma política
de corte keynesiano seja capaz de superar essa tendência de longo
prazo. Romper com essa tendência a partir dos interesses das classes
dominadas implicaria em profundas transformações estruturais,
dentre as quais: a reestatização dos setores estratégicos da econo-
mia, a adoção de amplo programa voltado para gerar empregos, a
planificação da atividade econômica, a adoção de ampla política de
proteção ambiental e de desenvolvimento energias sustentáveis, a
adoção de controles de câmbio e de fluxos de capitais, a redistri-
buição da renda e da propriedade e a adoção de uma ampla política
de desenvolvimento tecnológico. Mas essa saída depende de uma
correlação de forças inexistente.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 177


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A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 179


CAPÍTULO 9

LIBER ALISMO E NEG ACIONISMO


CIENTÍFICO: DA RE VOLTA
DA VACINA À COVID 19

Marina Gusmão de Mendonça1


Daniel Campos de Carvalho2

A atual pandemia de COVID 19 expôs alguns dos principais


problemas enfrentados por diferentes países, bem como as contra-
dições e fragilidades políticas e econômicas do mundo contempo-
râneo dominado pelo neoliberalismo. O confinamento, as formas
confusas e inadequadas de esclarecimento para as populações, a
gravidade da crise econômica desencadeada pela paralisação das
atividades, o desconhecimento da comunidade científica a respeito
da doença e a busca quase frenética por medicamentos e vacinas têm
gerado incertezas, medo, pobreza, desemprego e até mesmo depres-
são em grande número de pessoas.

1 Bacharel em História e em Direito pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre e


Doutora em História Econômica pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FLCH-USP); possui pós-Doutorado em Ciências Sociais
pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – cam-
pus de Marília; Professora Adjunta do Departamento de Relações Internacionais da Escola
Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN) da Universidade Federal de São Paulo
(UNIFESP) – Campus Osasco (e-mail: marinamendonca@uol.com.br).
2 Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP); Mestre e Doutor em Direito
(área de concentração: Direito Internacional) pela Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (USP). Professor Adjunto do Departamento de Relações Internacionais da
Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN) da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP) – Campus Osasco (e-mail: dccarva@uol.com.br).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 181


Nesse contexto, um aspecto dos mais graves é o negacionismo
de governantes e setores sociais influentes que, muitas vezes, preco-
nizam curas e drogas milagrosas sem qualquer embasamento cien-
tífico, utilizando-se do medo de grande parte da população mundial
para seus objetivos políticos e interesses econômicos.
Todo esse quadro gerou uma verdadeira corrida em busca de
uma vacina contra a COVID 19. À parte a dificuldade de se con-
seguir desenvolver uma vacina eficaz em tão pouco tempo, há que
considerar os problemas logísticos envolvidos, tendo em vista que
jamais o mundo se viu diante da urgência de se produzir e minis-
trar uma droga nessa escala e em tão pouco tempo, o que implica,
evidentemente, problemas de fabricação de vidros, rótulos, seringas,
distribuição e – mais grave ainda - a falta de recursos nos países
pobres para adquirir a vacina.
Como se não bastassem esses problemas, diversos governos têm
se empenhado em criar dificuldades onde elas não existem, como é
o caso do Brasil, em que o presidente se apresenta como garoto-pro-
paganda de um medicamento sabidamente ineficaz contra a COVID
19 e com efeitos colaterais extremamente perigosos, além de só
admitir uma vacina, aquela em desenvolvimento pela Universidade
de Oxford, juntamente com laboratórios privados. Por outro lado,
governadores de diversos estados se empenham em obter contratos
de fornecimento de vacinas oriundas de outros países, como China
e Rússia. O governo federal não aceita essas parcerias e procura até
mesmo sabotá-las, tentando mobilizar a população contra uma pos-
sível obrigatoriedade de vacinação.
Como se vê, o quadro que se apresenta diante dos brasileiros
é terrível e nos remete a um episódio ocorrido há quase 120 anos,
quando a população do Rio de Janeiro se levantou contra a tentativa
do médico Oswaldo Cruz, então Diretor Geral de Saúde Pública,
de implantar a vacinação obrigatória contra a varíola, doença que,
ao lado da febre amarela e da peste bubônica, constituía verdadeiro
flagelo para os cariocas. Em apenas uma semana, a cidade foi pra-
ticamente destruída e o presidente Francisco de Paula Rodrigues
Alves enfrentou uma tentativa de golpe de Estado, numa rebelião

182 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


desordenada, deflagrada a partir da divulgação do regulamento
sobre a vacinação obrigatória.
Saliente-se que, naquela época, o governo tinha uma postura
inversa à atualmente adotada pelas autoridades federais: procu-
rava impor a vacinação a toda a população, e empenhava esforços e
recursos para isso. Hoje, o que se tem é a tentativa do presidente da
República e de seus auxiliares de impedir que as pessoas se vacinem,
por meio de atitudes de sabotagem à aquisição do medicamento e
de insumos para a sua aplicação, bem como de uma propaganda
diuturna contra a droga e ataques a governadores e prefeitos que
procuram adquiri-la no exterior e mesmo produzi-la no Brasil.
Por outro lado, cientistas alertam que a vacina contra a COVID
19 só será efetiva se a maioria da população for imunizada, mas o
governo federal procura impedir que isso aconteça, colocando-se
contrário à vacinação obrigatória, a despeito da decisão tomada pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), que julgou favoravelmente à com-
pulsoriedade, sob pena de sanções.
Dessa forma, lembrar o episódio de novembro de 1904, com-
preender suas motivações e analisar os interesses envolvidos mostra-
-se de suma atualidade, tendo em vista que um quadro semelhante
parece se delinear diante de nossos olhos. E, para isso, é preciso con-
siderar que a vacinação obrigatória fazia parte de um projeto mais
amplo, de reforma urbana e saneamento do Rio de Janeiro, desen-
volvido a partir de 1902, durante o governo de Rodrigues Alves,
e diretamente ligado aos interesses das oligarquias cafeeiras e do
grande comércio importador-exportador.
Com efeito, a partir da Proclamação da República e, posterior-
mente, da implantação da Política dos Governadores, estes setores
passaram a desenvolver uma política de cunho liberal (FAORO,
1987, v. 2), mas de caráter nitidamente autoritário, intervencionista e
centralizador em alguns aspectos -, com o objetivo de proporcionar
a plena inserção do Brasil no mercado mundial. Desse modo, um
projeto de modernização, com vistas à completa transformação do
Rio de Janeiro numa vitrine atrativa para capitais e imigrantes, tor-
nava-se prioritário. Era preciso remodelar a cidade de acordo com

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 183


os novos padrões urbanísticos europeus, dadas suas características
tipicamente coloniais, com becos e ruas estreitos e tortuosos, além
de pouco arejados, o que constituía um empecilho ao almejado pro-
gresso do País (HOLANDA, 1971).
Essa política gerou descontentamentos, não só nos grandes
grupos marginalizados que compunham a maioria da população
da cidade, e que tiveram suas condições de vida extremamente
agravadas, como também provocou o acirramento da oposição dos
excluídos do projeto político liberal (jacobinos, positivistas, monar-
quistas e militares), imposto pelas grandes oligarquias agrárias
(SCHWARTZMAN, 1988), tendo em vista que o projeto de remo-
delação e saneamento do Rio de Janeiro revestiu-se de um caráter
extremamente autoritário e elitista, constituindo uma pioneira
intervenção do Estado no espaço urbano, por meio da tentativa de
alteração e até mesmo de eliminação de alguns dos hábitos mais
arraigados da camada mais pobre da população.

A reforma urbana: objetivos, medidas


e descontentamento

Desde o final do século XIX, o Rio de Janeiro apresentava


inúmeros problemas urbanos, com crises sanitárias gravíssimas,
escassez de moradias, poucas possibilidades de trabalho e um custo
de vida muito elevado. Por outro lado, seu porto, embora fosse o
maior do Brasil, passou a se mostrar totalmente desaparelhado para
a quantidade e o calado dos navios que atracavam em seu cais, pro-
vocando o desvio de embarcações para outros pontos3. Além disso,
a topografia da cidade, recortada por morros, baías e mangues,
limitava a expansão urbana, o que era agravado pelo seu próprio

3 Desde a decadência da cultura cafeeira no Vale do Paraíba, a cidade se firmara como


maior centro distribuidor de produtos importados e como mercado consumidor, apesar
de permanecer como pólo abastecedor das regiões centrais, como Minas Gerais, Goiás e
Mato Grosso, bem como do Nordeste.

184 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


traçado, em que predominavam características de urbanização
colonial (ABREU, 1987; LOBO, 1978).
A Abolição tivera uma influência fundamental no aumento
da população da capital, pois uma massa de ex-escravos passou a
se dirigir a ela em busca de possibilidades de sobrevivência. Havia
também os imigrantes estrangeiros, pois a maioria destes traba-
lhadores entrava no país pelo porto do Rio de Janeiro, e muitos ali
permaneciam, sendo o maior contingente o de portugueses. Este
movimento constituía um grande foco de tensões, porquanto a
cidade não oferecia oportunidades de trabalho e habitações para
uma população que crescia a uma taxa de 3% ao ano, sendo que
aos estrangeiros eram reservadas as atividades mais promissoras ou,
pelo menos, ocupações de caráter não eventual.
Essa profunda alteração demográfica agravou a questão habi-
tacional, provocando a valorização dos imóveis e, consequente-
mente, o crescimento da especulação. Isto levou ao aproveitamento
dos antigos casarões do centro para instalação de casas de cômo-
dos e estalagens destinadas à população mais pobre, promovendo
o desenvolvimento de um tipo de moradia extremamente precário,
que se concentrava especialmente nas zonas central e portuária do
Rio de Janeiro. Estas habitações coletivas eram um grande foco pro-
pagador de doenças, uma vez que suas instalações eram totalmente
insalubres e anti-higiênicas4.
Na verdade, a questão da insalubridade constituía um problema
crônico da capital da República. Cidade de clima úmido e excessi-
vamente quente, ela era foco endêmico de várias moléstias, notada-
mente varíola, febre amarela, peste bubônica, cólera e tuberculose.
E, assim, como vários outros centros urbanos que haviam conhe-
cido um processo de crescimento acelerado, era periodicamente
assolada por epidemias, prejudicando não só seu desenvolvimento,
mas também o do próprio país, dada sua condição de capital e de
maior porto da nação. Os estrangeiros eram os mais afetados pelas
epidemias, especialmente as de febre amarela, doença tipicamente

4 A esse respeito, veja-se a bela descrição das casas de cômodos e das condições de vida de
seus habitantes feita por Lima Barreto (LIMA BARRETO, s.d., pp. 60-61).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 185


tropical, o que dificultava a atração de imigrantes, investimentos
e estabelecimento de novas empresas (ATHAYDE, s.d.). A própria
arrecadação alfandegária do Rio de Janeiro ficava prejudicada em
função do desvio de navios para outros pontos do continente.
As epidemias constantes também causavam apreensão perma-
nente em todas as camadas da população, notadamente nos setores
mais abastados, que estavam também sujeitos à contaminação. Por
outro lado, para os segmentos mais baixos, a convivência com as
moléstias era motivo de grande temor, uma vez que elas comumente
provocavam a desagregação de famílias inteiras, com a sucumbên-
cia do chefe, obrigando mulheres a sustentarem sozinhas uma prole
numerosa ou condenando crianças a vagarem pelas ruas, na mendi-
cância ou na criminalidade.
Dessa forma, a burguesia agrário-exportadora e os intelectuais
ligados à classe média tradicional, que pretendiam desenvolver os
instrumentos necessários à plena implantação de seu projeto libe-
ral, procuraram transformar o Rio de Janeiro num pólo de atração
para capitais, investimentos e trabalhadores, isto é, uma verdadeira
metrópole, entendida esta segundo os padrões franceses de urba-
nização, em voga desde a grande reforma de Paris, realizada pelo
Barão de Haussmann, nas décadas de 1850/1860.
Ao assumir o governo, em 15 de novembro de 1902, Rodrigues
Alves apresentou os pontos prioritários de seu programa, que se
concentravam na reurbanização da capital, na reforma e no melho-
ramento de seu porto, e no saneamento da cidade5. Assim, o Rio de
Janeiro foi palco de uma pioneira intervenção do Estado no espaço
urbano, tanto por intermédio do governo federal como da adminis-
tração municipal. Entretanto, o projeto demandava verbas de que

5 Do programa governamental constavam também apoio à produção, estímulo à imigração


e à ocupação de solos férteis, incremento dos transportes e proteção à entrada de capitais,
objetivos, portanto, consoantes com o projeto liberal de desenvolvimento a ser promovido
pelas oligarquias hegemônicas.

186 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


o governo não dispunha, e sua viabilidade, portanto, dependia de
crédito para financiamento das obras6.
A reforma urbana envolvia a organização de grandes esque-
mas de comunicações e transportes (BENCHIMOL, 1982, p. 481), e
tinha quatro objetivos: 1) estratificação urbana do capital e criação
de grandes espaços destinados ao lazer das camadas dominantes;
2) erradicação das frequentes epidemias que colocavam em risco a
política do governo central de estímulo à imigração, ameaçavam a
população em geral e comprometiam a reprodução da força de tra-
balho; 3) criação de vias de comunicação que atendessem às neces-
sidades do movimento e do volume de mercadorias e da popula-
ção; 4) adequação da estrutura portuária, de forma que atendesse
ao volume, à velocidade e à qualidade do momento comercial
(BENCHIMOL, 1982, p. 662).
Rodrigues Alves nomeou para o cargo de prefeito da capital
Francisco Pereira Passos, que passou a ser chamado, pelo Barão
do Rio Branco, o Haussmann brasileiro. Era um engenheiro que
estudara em Paris e que condicionou a aceitação do posto a que lhe
fossem concedidos poderes especiais, o que foi plenamente assegu-
rado. De modo geral, e num primeiro momento, a imprensa, inclu-
sive a de oposição, apoiou a escolha, especialmente pelo fato de não
pertencer Pereira Passos a qualquer partido político (CORREIO DA
MANHÃ, 30/12/1902).
O prefeito começou por alterar radicalmente a legislação em
vigor que regulava os usos e costumes da cidade, incluindo normas
sobre edificações e desapropriações (BENCHIMOL, 1982). O verda-
deiro cerco da prefeitura aos hábitos mais arraigados da população,
especialmente aqueles das camadas mais baixas, constituiu a base
a ser dada à grande realização do projeto de reforma urbana, isto
é, a abertura da Avenida Central, atual Avenida Rio Branco, que

6 Uma das primeiras medidas tomadas foi a criação de uma comissão encarregada do pro-
jeto que, em 24 de setembro de 1903, outorgou concessão a uma companhia inglesa para
a construção de um novo cais para o porto. A assinatura do contrato, sem concorrência
pública, provocou violenta reação por parte dos grupos de oposição ao governo e da im-
prensa, especialmente o Correio da Manhã.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 187


deveria ser construída nos moldes dos grandes boulevards abertos
em Paris pelo Barão de Haussmann. Sua construção implicaria uma
verdadeira onda de demolições dos antigos prédios da área central
da cidade. Isto atingia o coração da capital, o local onde se concen-
travam as moradias da população que compunha a maior parte da
força de trabalho. Além disso, destruía também o espaço onde se
desenvolvia boa parte das atividades econômicas que proporciona-
vam a sobrevivência à camada não ligada ao grande capital, como
formas artesanais e manufatureiras e até mesmo semifabris de pro-
dução, além do pequeno comércio e das atividades eventuais e de
biscate.
Esta fase da reforma urbana do Rio de Janeiro passou a ser
conhecida como “bota abaixo”, e se caracterizou pela demolição em
massa dos prédios localizados na área central da cidade, ferindo inte-
resses os mais diversos (ROCHA, 1983). Com isso, além de privar a
camada mais pobre de suas habitações próximas aos locais de tra-
balho, sem que houvesse preocupação preliminar de acomodá-la, o
Estado entrou em atrito também com o conjunto de proprietários
dos imóveis localizados nas áreas atingidas pelo “bota abaixo”, entre
os quais havia grande número de comerciantes portugueses, antigos
aristocratas, profissionais liberais e viúvas que viviam das rendas de
aluguéis. O conflito passou a se manifestar por cerrada oposição no
Congresso e por meio da imprensa. Aliás, mesmo os jornais nor-
malmente simpáticos ao governo começaram a apresentar artigos
diários contra o projeto de remodelação da cidade7.
Entretanto, o maior efeito provocado pelo “bota abaixo” foi a
alta vertiginosa do custo de vida. E a população pobre sofreria esse
aumento mais que qualquer outra camada, pois as construções que
seriam feitas depois das demolições teriam de obedecer a determi-
nados critérios estabelecidos no projeto, destinando-se, portanto,

7 O Correio da Manhã, que passou a fazer ferrenha oposição à obra, quase todos os dias
publicava notas dando conta da situação dos proprietários, especialmente no que tange às
indenizações, que eram pagas de acordo com o valor declarado do imóvel. Havia também
a suspeita, levantada pelo jornal, de que grandes negociatas estariam sendo feitas em rela-
ção a essas desapropriações, com enormes vantagens para alguns proprietários de imóveis
demolidos.

188 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


apenas às camadas ricas. Os pobres não teriam como pagar os alu-
guéis (VIEIRA, 1934, p. 83), restando-lhes somente a alternativa
das favelas, que começaram a proliferar como única opção para
esses grupos miseráveis. Quanto à pequena burguesia comercial
e industrial das áreas atingidas, tudo indica que grande parte foi
pulverizada, transferindo-se para os subúrbios ou simplesmente se
proletarizando (BENCHIMOL, 1982, p. 464). Para os comerciantes
que viviam da mercantilização de habitações, vestuário e víveres,
a abertura da Avenida Central significou a perda do local-fonte de
rendas, da clientela e, muitas vezes, da pequena propriedade urbana.
Alguns grupos sociais, contudo, não foram prejudicados pela
abertura da avenida, ao contrário. A parcela de comerciantes e
pequenos industriais que puderam permanecer no local, totalmente
transformado e valorizado, teve a possibilidade de ascensão social e
enriquecimento. Ao mesmo tempo, a remodelação da cidade cum-
priu seu papel de preparar o campo para o desenvolvimento das
campanhas sanitárias de Oswaldo Cruz, especialmente contra a
febre amarela, e que reforçaram o descontentamento dos grupos
excluídos dos benefícios da reforma urbana, além de provocar o
acirramento da oposição ao governo oligárquico.

O projeto de saneamento: progresso e autoritarismo

Os crônicos problemas de insalubridade do Rio de Janeiro


necessitavam ser encarados com o máximo rigor, sob pena de colo-
carem por terra todo o restante do projeto de remodelação da capital
da República. E, com exceção da febre amarela, doença tipicamente
tropical, todas as demais moléstias que grassavam na capital eram
características de cidades que conheceram um crescimento popula-
cional muito acentuado.
Com efeito, desde meados do século XIX, verificou-se, nos
países europeus, que o grande índice de mortalidade da popula-
ção estava diretamente vinculado à questão das péssimas condi-
ções de vida do proletariado urbano, o que chegava a comprometer

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 189


o próprio desenvolvimento do capitalismo, uma vez que, além de
prejudicar a reprodução da força de trabalho, impedia o necessário
aumento da produtividade industrial. Nesse sentido, a camada diri-
gente europeia se viu obrigada a organizar tentativas de melhoria
das condições de vida do operariado urbano, por meio da criação de
serviços de saúde, vinculados ao Estado.
No caso da Inglaterra, e tendo em vista seu próprio crescimento
urbano e industrial, houve grande avanço no campo da organização
dos serviços de saúde pública durante o século XIX, principalmente
a partir de 1830, quando a realização de censos decenais passou a
evidenciar as péssimas condições sanitárias em que vivia o prole-
tariado das grandes cidades, pois mostravam que a maior parte das
doenças surgia e se desenvolvia exatamente nos bairros operários,
justamente os locais em que o saneamento público era mais negli-
genciado pelas autoridades (ENGELS, s.d., p. 47).
Contudo, a questão fundamental que se apresentava à classe
dominante é o fato de que algumas dessas epidemias, como cólera
e varíola, uma vez implantadas, disseminavam-se por toda a popu-
lação, indiscriminadamente, a despeito da camada social a que
pertencessem as vítimas. Outras moléstias, como o tifo e a tuber-
culose, entretanto, selecionavam suas vítimas, atingindo principal-
mente os indivíduos cujos organismos estavam mais debilitados, em
função das péssimas condições de trabalho, alimentação e moradia
(ENGELS, s.d.).
A partir do momento em que começaram a proliferar epide-
mias que atingiam toda a população, passou-se a notar uma maior
atenção por parte da administração pública, no intuito de debelá-
-las. E grandes estudos desenvolvidos a respeito das doenças ocu-
pacionais resultaram das tentativas de melhoria das condições de
trabalho. Estabeleceram-se inquéritos sobre as condições de vida
operária especialmente voltados para o trabalho de mulheres e
crianças que, na Inglaterra, como em outros países industrializados,
compunham grande parte da força de trabalho.
O problema que se colocava para as camadas dominantes da
época era a possibilidade de serem elas atingidas de três formas

190 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


diferentes: 1) não eram imunes a grande parte das doenças trans-
missíveis; 2) a produtividade industrial diminuía sensivelmente em
decorrência das más condições de vida, gerando prejuízos ou, no
mínimo, lucros reduzidos; 3) estas más condições podiam acarretar
revoltas populares. Sendo assim, constituía ponto básico para a pró-
pria sobrevivência da camada dominante a necessidade de atenuar a
espoliação da classe trabalhadora.
Dessa forma, a partir da segunda metade do século XIX, ins-
titucionalizaram-se os serviços de saúde pública sob controle do
Estado, e sua função passou a ser o estabelecimento de algumas
normas de conduta com vistas à defesa da saúde da população em
geral. Entretanto, é preciso considerar que vivia-se o auge do libera-
lismo, e algumas regras impostas pelos organismos de saúde pública
geraram inúmeros conflitos com proprietários de imóveis, comer-
ciantes e industriais, que não aceitavam o poder médico e a inter-
venção direta do Estado nesse campo.
Já em 1846, foi instituído na Inglaterra o Liverpool Sanitary Act,
que dava plenos poderes ao Conselho da cidade de Liverpool, um
dos maiores centros industriais ingleses, para designar um inspetor
médico de saúde, um engenheiro municipal e um inspetor de lim-
peza urbana. Logo a seguir, em 1848, foi elaborado o Public Health
Act, como resposta emergencial à epidemia de cólera daquele ano,
sendo criado o General Board of Health, com o objetivo de orientar
as ações sanitárias. Saliente-se que essas medidas geraram enorme
oposição, uma vez que as ações de caráter público com vistas ao
saneamento passaram a ser encaradas, pela sociedade inglesa da
época, como violenta ameaça aos sagrados direitos à propriedade e
à liberdade. Contudo, os protestos não foram suficientes para deter
a ação da saúde pública, e em 1875 foi aprovado o segundo Public
Health Act.
As medidas inglesas de intervenção pública nas questões sani-
tárias não tardaram a mostrar reflexos nos demais países da Europa
e na América. Começaram a se desenvolver pesquisas no sentido de
descobrir as causas imediatas das doenças e, na Inglaterra, levan-
tou-se primeiramente a hipótese de que as moléstias transmissíveis

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 191


estavam diretamente relacionadas às condições ambientais precá-
rias, à ausência de drenagem, de suprimentos de água e de meios de
remoção de detritos.
Entre fins do século XIX e começo do século XX, iniciaram-
-se pesquisas a respeito de doenças tropicais que proliferavam na
América e nas colônias europeias da Ásia e da África. As quarente-
nas impostas a navios e marinheiros não se mostravam mais sufi-
cientes para proteger as metrópoles das epidemias, sendo atingido
todo o pessoal que tivesse ligação com as colônias, desde a tripula-
ção de navios até o corpo diplomático.
Por outro lado, a emergência da bacteriologia veio trazer escla-
recimentos à questão da causa biológica das doenças, permitindo
que, a partir do final daquele século, os programas de saúde pudes-
sem ignorar a relação entre doença e condições sociais. O conheci-
mento de que os micro-organismos produzem enfermidades passou
a determinar os rumos das políticas de saúde pública adotadas a
partir de então. Por seu turno, a descoberta dos animais como veto-
res de doenças propiciou um grande avanço no estudo das moléstias
tropicais.
Embora a vacina antivariólica tivesse sido descoberta em 1798,
foi somente quase um século depois que Louis Pasteur chegou à ela-
boração da ideia de que seria possível a prevenção de doenças infec-
tocontagiosas por meio da inoculação nos indivíduos de micro-or-
ganismos de virulência atenuada. Desenvolveu-se, então, a noção
de imunologia, que passou a ter influência vital nos programas de
saúde pública, a partir do início do século XX. A descoberta repre-
sentava a possibilidade concreta de controle de moléstias epidêmi-
cas sem que houvesse necessidade de grandes alterações nas con-
dições de vida da classe trabalhadora. Instituições militarizadas de
combate às epidemias e brigadas de vacinação foram organizadas,
determinando-se ainda a obrigatoriedade de notificação em casos
de doenças infectocontagiosas, especialmente nos locais cuja insa-
lubridade representasse ameaça às cidades e à expansão colonial e
imperialista europeia e norte-americana (SINGER, 1978; COSTA,
1983, BERLINGUER, 1978).

192 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Todo esse aparato contra as doenças estava revestido da lin-
guagem universal e de caráter científico da medicina. Além disso,
não se pode esquecer o indiscutível benefício social que constituía o
combate às epidemias que, muitas vezes, dizimavam famílias intei-
ras, ou, no mínimo, provocavam a sua desagregação, com a morte
do chefe que lhes garantia o sustento. Por fim, é preciso considerar
que o projeto de combate às epidemias estava diretamente ligado
a uma tentativa de justificação da colonização e à necessidade de
abertura de novos mercados para a indústria farmacêutica.
Foi, portanto, nesse sentido que se desenvolveram as políticas
de saúde pública a partir da segunda metade do século XIX, carac-
terizando-se por ações estatais cujo objetivo era a preservação da
saúde de determinado segmentos da população, especialmente nos
grandes centros, por meio de programas de imunização, campanhas
sanitárias e controle do ambiente urbano. Além disso, esses progra-
mas permitiriam a expansão industrial e imperialista.

A política de saúde no Brasil: a intervenção estatal

O aparecimento da medicina como ramo específico do conhe-


cimento científico na Europa e, de outro lado, o crescimento eco-
nômico brasileiro, verificado com a expansão da produção cafeeira
a partir da segunda metade do século XIX, constituíram fatores
determinantes para a evolução da saúde pública no País e a interven-
ção do Estado passou a se dirigir ao combate de doenças específicas,
de caráter endemo-epidêmico, tais como febre amarela e varíola,
que incidiam sobre a população de maneira indiferenciada, espe-
cialmente nos centros urbanos.
Na verdade, a preocupação com a insalubridade das principais
cidades brasileiras, notadamente o Rio de Janeiro, não era nova, e
o projeto de transformação do Rio de Janeiro em vitrine do país
era um sonho acalentado desde o Império. Entretanto, este sonho
se tornara pesadelo na segunda metade do século XIX, pois, a partir
de 1850, especialmente durante o verão, a febre amarela passou a se

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 193


constituir num verdadeiro flagelo, impedindo a transformação da
cidade num polo atrativo para capitais e imigrantes.
O primeiro passo para a solução do problema foi a criação, em
1850, da Junta de Higiene Pública, cuja finalidade era a unificação,
sob um único órgão, dos serviços sanitários do governo imperial. A
segunda medida foi a elaboração do projeto de reforma urbana da
cidade na década de 1870, pela comissão criada por João Alfredo
Correia de Oliveira, Ministro e Secretário dos Negócios do Império,
em consequência direta de uma grande epidemia de febre amarela
na cidade. Assim, o aspecto mais importante levantado pelo plano
urbanístico era a necessidade de se combater o problema da insa-
lubridade, cuja principal causa, de acordo com as conclusões a que
chegaram os membros da comissão, estava na forma de construção
das habitações. E em 1880, um relatório do Ministro dos Negócios
do Império apontava para a necessidade de extinção dos cortiços
como uma das mais urgentes medidas para a melhoria do estado
sanitário da capital.
A influência do desenvolvimento da saúde pública na Europa
e a intervenção do Estado nas questões sanitárias passaram a ser
mais sensíveis a partir da última década do século XIX. Em 1890,
constituiu-se o Conselho de Saúde Pública e, em 1894, foi criado o
Instituto Sanitário Federal, cujas atribuições eram o estudo da natu-
reza, a etiologia, o tratamento e a profilaxia das moléstias transmis-
síveis. Posteriormente, em 1897, deu-se a unificação dos serviços de
saúde do governo federal, com a criação da Diretoria Geral de Saúde
Pública. E em maio de 1900, foi criado o Instituto de Manguinhos,
no qual Oswaldo Cruz assumiria, em fins de 1902, o cargo de Diretor
Técnico e Administrativo.
Nesse mesmo ano, e em função do problema crônico de insa-
lubridade, o médico Nuno Ferreira de Andrade, Diretor Geral de
Saúde Pública, passou a reivindicar para o governo central, em
1902, a responsabilidade dos serviços de higiene da cidade do Rio de
Janeiro. O pedido foi atendido por meio de lei votada pelo Congresso
Federal. A seguir, impôs-se a notificação obrigatória aos serviços de
saúde para o caso de diversas doenças.

194 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


Todas essas medidas faziam-se absolutamente indispensáveis,
principalmente no caso do Rio de Janeiro, onde as frequentes epide-
mias vinham causando uma série de graves problemas para as auto-
ridades, além de expor o país a grandes vexames. Vários governos
haviam passado a pagar uma indenização especial a seus diploma-
tas que serviam no Brasil. Além disso, durante o verão, era comum
a fuga do corpo diplomático credenciado no Rio de Janeiro para a
cidade serrana de Petrópolis, menos afetada pelas epidemias.
Nesse sentido, o projeto de saneamento do Rio de Janeiro,
implantado a partir de 1903, implicava especialmente o combate à
varíola e à febre amarela, e passaria a ser organizado pela Diretoria
Geral de Saúde Pública, subordinada ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores, tendo como médico sanitarista responsável
Oswaldo Cruz. Excluíam-se do projeto as moléstias cujas origens
estivessem diretamente vinculadas às condições de vida e de traba-
lho, como é o caso da tuberculose. Ao mesmo tempo, a intervenção
estatal passou a se orientar, quase exclusivamente, à zona central
do Rio de Janeiro, justamente a área cuja insalubridade provocava
os maiores transtornos aos projetos governamentais, tanto que os
habitantes dos subúrbios foram praticamente excluídos das grandes
preocupações dos organismos de saúde pública, o que revela, desde
logo, o sentido eminentemente elitista da modernização e do sanea-
mento da capital.
Apesar de não ser a primeira vez que ocorria a intervenção do
Estado nas questões sanitárias, o caráter de verdadeira operação
de guerra de que se revestiu a ação de Oswaldo Cruz gerou sérios
descontentamentos nos diversos segmentos da população do Rio de
Janeiro, inclusive na burguesia e na pequena burguesia, que passa-
ram a se opor às medidas impostas pela Saúde Pública por conside-
rarem-nas lesivas às prerrogativas constitucionais que garantiam a
propriedade privada e os direitos individuais, exatamente como já
ocorrera na Inglaterra, em meados do século XIX.
O primeiro passo da campanha foi o combate à febre ama-
rela, justamente por ser a moléstia de caráter endemo-epidêmico
que mais vítimas fazia no Rio de Janeiro, principalmente durante

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 195


os meses de verão. A doença parece ter surgido no Brasil durante o
período colonial, sendo que a primeira notícia sobre ela refere-se ao
Nordeste (Pernambuco), entre os anos de 1686 e 1694. Seria originá-
ria do continente africano, tendo sido introduzida na América em
consequência do tráfico de escravos. A partir de 1694, e até o final
da colonização, não há mais registros sobre epidemias de febre ama-
rela. Seu reaparecimento deu-se em Salvador, em 1849, quando mor-
reram cerca de 3.000 pessoas, alastrando-se, depois, pelas demais
cidades litorâneas. A imprensa da época atribuiu a propagação da
doença ao navio Brazil, que chegou a Salvador em 30 de setembro de
1849, depois de escalas em New Orleans e Havana. O Rio de Janeiro
foi atingido em 1850 e, a partir de então, a doença se tornou ende-
mo-epidêmica na capital do País. Todavia, nas primeiras vezes em
que se manifestou, a febre amarela teve uma trajetória peculiar no
Rio de Janeiro, pois limitava-se às proximidades do ancoradouro da
Saúde e ao litoral das imediações (FRANCO, 1969; COOPER, 1975).
O tratamento aplicado era tão incerto e controvertido quanto qual-
quer outro aspecto da doença, e os médicos costumavam usas as
teorias em que mais acreditassem, sem que houvesse uma uniformi-
dade em relação aos métodos de combate à moléstia.
A partir de 1873, com o propósito de proteger novos imigran-
tes, o governo brasileiro, em colaboração com companhias de colo-
nização, passou a internar os doentes em campos apropriados e, em
1874, quando foi nomeada por João Alfredo Correia de Oliveira,
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, a comis-
são para organizar o projeto de reurbanização do Rio de Janeiro,
o objetivo fundamental era elaborar um plano para o combate à
febre amarela. Contudo, o projeto não foi adiante, e a febre ama-
rela permaneceu um verdadeiro flagelo no Rio de Janeiro, sem que
os médicos conseguissem combatê-la com eficácia, tanto que em
várias ocasiões o governo italiano chegou a recomendar a seus cida-
dãos que não viessem ao Brasil e, pelo menos uma vez, o governo
alemão tomou a mesma iniciativa. Assim, o projeto brasileiro de
atração de imigrantes era duramente golpeado com o estrago que a

196 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


febre amarela fazia entre a população estrangeira (FRANCO, 1969;
COOPER, 1975).
Entretanto, os debates sobre as melhores medidas de combate
à febre amarela tomaram novo impulso a partir das experiências do
médico cubano Carlos Juan Finlay que, em fevereiro de 1881, durante
a Conferência Sanitária Internacional, realizada em Washington,
expôs pela primeira vez a hipótese de transmissão da doença por
intermédio do mosquito. O governo dos Estados Unidos desig-
nou, então, a Missão Reed, com o objetivo de comprovar a hipótese
levantada por Finlay, e em 4 de fevereiro de 1901, o major-médico
William Gorgas iniciou a campanha de combate ao mosquito em
Havana (FRANCO, 1969; COOPER, 1975).
No Brasil, as descobertas feitas pela Missão Reed não foram
imediatamente aceitas pelos médicos, que mantinham sérias des-
confianças em relação ao mosquito como único vetor da doença.
Todavia, as pesquisas progrediam no sentido de comprovar a hipó-
tese cubana e, quase ao mesmo tempo em que a campanha de exter-
mínio dos focos de mosquito se iniciava em Havana, Emílio Ribas,
Diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, publicava, em janeiro de
1901, um opúsculo intitulado O mosquito considerado como agente
de propagação da febre amarela, primeiro trabalho brasileiro sobre o
assunto. Concomitantemente, iniciava em Sorocaba a primeira cam-
panha feita no Brasil contra o mosquito (FRANCO, 1969; COOPER,
1975).
Emílio Ribas foi obrigado a repetir todas as experiências feitas
pela Missão Reed em Cuba, já que muitos médicos continuavam
a duvidar dos resultados. Em novembro do mesmo ano, a Missão
Francesa do Instituto Pasteur chegou ao Rio de Janeiro, com o obje-
tivo de estudar a febre amarela. E em 1902, Nuno de Andrade, então
Diretor Geral de Saúde Pública, tentou iniciar na capital do país a
campanha de combate à doença, mas não lhe foi concedida a verba
necessária (FRANCO, 1969; COOPER, 1975).
Foi somente com a posse de Rodrigues Alves na Presidência
da República, no final daquele ano, e com a escolha de Oswaldo
Cruz para o cargo de Diretor Geral de Saúde Pública que se pôde

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 197


dar início à aplicação das medidas já ensaiadas por Emílio Ribas e
William Gorgas. E em junho de 1903, finalmente Emílio Ribas apre-
sentou um trabalho sobre suas pesquisas no V Congresso Brasileiro
de Medicina e Cirurgia, onde foi aprovada, por unanimidade, a
tese de que o mosquito é o transmissor da doença (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 2/7/1903).
Apesar disso, muitos médicos continuaram a não aceitar a tese
e a defender a continuidade das práticas tradicionais de combate à
febre amarela (FRANCO, 1969; COOPER, 1975). Dessa forma, era
comum a publicação, nos órgãos de imprensa, de artigos escritos por
médicos conhecidos, em que atacavam a atitude de Oswaldo Cruz:

Tratando-se de assunto de tanta relevância para o país


inteiro e, sobretudo, de medidas que agora se afastam por
completo das normas até agora seguidas entre nós e em
outros países (...) parece-nos que deveriam ter larga discus-
são de forma a convencer a população de que não se trata
de uma experiência, cujos resultados podem não corres-
ponder ao fim almejado, iludir a expectativa do Governo e
talvez agravar a situação sanitária do país. Sem querermos
discutir a questão e reconhecendo bons desejos no ilustre
Diretor de Saúde Pública, não podemos também deixar de
fazer justiça à grande competência e aos elevados intuitos
dos que têm combatido o abandono completo das antigas
medidas de profilaxia aliadas às novas teorias de transmis-
são pelos mosquitos (...). (JORNAL DO COMMERCIO,
20/5/1903)

E em março de 1903, quando da aprovação do Regulamento


do Serviço de Profilaxia da Febre Amarela, que concedia a Oswaldo
Cruz amplos poderes para desenvolver os trabalhos, a imprensa e
setores da oposição passaram a designá-lo “Código de Torturas”,
e a ação da Saúde Pública foi chamada de “despotismo sanitário”,
títulos sob o quais eram publicados artigos quase diários nos jor-
nais, especialmente no Correio da Manhã. As acusações se agrava-
ram a partir da divulgação, pelos jornais, do caso de uma menina
de dois anos que teria morrido em consequência de queimaduras

198 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


provocadas após ter caído numa poça de ácido fênico, que os fun-
cionários da higiene pública deixaram quando desinfetaram sua
moradia. O caso foi debatido até mesmo no Congresso, com discur-
sos violentos por parte de deputados de oposição (CORREIO DA
MANHÃ, 12/7/1904).
Os trabalhos de combate à febre amarela, desde o seu início,
em abril de 1903, conjugaram ação repressiva e ação persuasória,
atuando por meio de brigadas mata-mosquitos e de publicações
de “Conselhos ao Povo” (CORREIO DA MANHÃ, 21/10/1903), na
imprensa e em folhetos distribuídos entre os habitantes da capital.
As brigadas foram organizadas com características nitidamente
paramilitares. O Rio de Janeiro foi dividido em distritos, contando
cada um deles com um delegado de saúde, médico demógrafo, seis a
sete médicos auxiliares, inspetores sanitários e estudantes de medi-
cina, que promoviam visitas periódicas aos domicílios, localizando
e combatendo os focos de mosquitos. Chegaram a ser concedidos
habeas corpus preventivos contra as investidas da Saúde Pública,
mas Oswaldo Cruz enfrentava o Poder Judiciário antecipando-se
aos mandados.
A eficácia da verdadeira guerra ao mosquito é indiscutível,
pois, se na epidemia de 1891 a mortalidade no Rio de Janeiro foi de
4.454 pessoas, em 1904 esse número foi reduzido para apenas 48.
Todavia, a população pagou um preço excessivamente alto por esses
resultados, uma vez que, durante a obra de saneamento, a Saúde
Pública fechou mais de 600 habitações coletivas, que abrigavam
cerca de 13.000 pessoas, e a prefeitura demoliu por volta de 20 casas,
desalojando mais de 1.000 moradores (BENCHIMOL, 1982, p. 594).
Ao mesmo tempo em que se empenhava na eliminação da febre
amarela, Oswaldo Cruz se viu obrigado a iniciar uma campanha de
combate à peste bubônica, transmitida pelos ratos que proliferavam
nas habitações coletivas, principalmente nas zonas central e portuá-
ria da cidade. Como os meios de combate à doença já estavam cien-
tificamente assentados, não houve a resistência que alguns médicos
vinham impondo aos métodos aplicados contra a febre amarela.
Com o recrudescimento da moléstia, o Estado passou a empreender

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 199


uma campanha de extermínio de ratos, especialmente na zona cen-
tral. Para isso, a Diretoria Geral de Saúde Pública obteve a libera-
ção, por parte do Estado, de um crédito especial, com o objetivo de
proceder à compra dos ratos que fossem capturados pela população.
Entretanto, a medida teve de ser suspensa, pois além de aparece-
rem criadores de ratos com o intuito de vendê-los aos organismos de
higiene, começaram a surgir também os falsificadores, que vendiam
animais de pano ou de cera (MENEZES, 1966, pp. 116-117).
Saliente-se que, desde o começo da administração Rodrigues
Alves, a imprensa vinha alertando, com artigos e editoriais frequen-
tes, para o problema crônico de falta d’água na capital, especial-
mente, nos meses de verão. Atacava-se o descaso com que o governo
encarava um problema que atingia toda a população, ao mesmo
tempo em que utilizava grande quantidade de recursos apenas para
o embelezamento da cidade e para o combate, por meios discutí-
veis, da febre amarela. O recrudescimento da peste bubônica forne-
ceu, portanto, o mote para o acirramento das críticas à negligência
da administração pública (CORREIO DA MANHÃ, 14/10/1903),
mesmo depois de a Saúde Pública ter logrado algum êxito em rela-
ção à doença, com a sensível diminuição do número de casos em
1904 (COSTA, 1983).
Enquanto se empenhava no combate à febre amarela e ao
surto de peste bubônica, Oswaldo Cruz se viu frente à necessidade
de tomar medidas drásticas em relação à varíola, que reapareceu
em 1904, com uma nova epidemia de grandes proporções. Diante
disso, o governo, que já vinha acenando com a possibilidade de exi-
gência de obrigatoriedade, iniciou a elaboração de um projeto de
lei que, além de tornar compulsória a vacinação, garantisse o seu
cumprimento.
Assinale-se que, contra a varíola já havia tratamento de cará-
ter profilático eficaz, pois a vacina de Jenner havia sido descoberta
em 1798, e introduzida no Brasil em 1811. Por outro lado, a ques-
tão da obrigatoriedade não era nova, tendo aparecido, pela primeira
vez, em 1822. Um conjunto de leis tinha sido implantado desde o
Império, mas as normas permaneceram letra morta, apesar de a

200 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


maioria das opiniões do corpo médico ser favorável a ela. Na reali-
dade, a imperfeição do serviço de vacinação no período imperial, a
falta de uma legislação coercitiva que, efetivamente, impusesse um
caráter de obrigatoriedade, levaram ao descaso em relação aos cons-
tantes apelos médicos (FRITSCH, 1984).
A varíola tornou-se epidêmica no Rio de Janeiro na década
de 1870 e, com isso, as autoridades sanitárias passaram a apontar,
como primeiro passo para combatê-la, a necessidade de reforma
radical no Regulamento de 17 de agosto de 1846, com o objetivo de
tornar a vacinação e a revacinação obrigatórias em todo o território
do Império. O presidente da Junta Central de Higiene Pública, José
Pereira do Rego, Barão de Lavradio, se manifestava favoravelmente
à vacina, por considerá-la um meio simples e eficaz de combate à
varíola, tanto que, ao assumir também o cargo de Inspetor Geral
do Instituto Vacínico do Rio de Janeiro, em 1875, passou a criticar a
indiferença e o desleixo da população face à vacinação, defendendo
sua obrigatoriedade após a epidemia de 1876 e contestando os argu-
mentos contrários à sua implantação, baseados na defesa da liber-
dade individual (FRITSCH, 1984). E durante toda a década de 1880,
os inspetores do Instituto Vacínico preconizaram um regulamento
para o órgão que lhe concedesse autonomia para tornar a vacina-
ção e a revacinação obrigatórias, dispensando, com isso, a Câmara
Municipal de legislar sobre o assunto. No entanto, nada foi obtido de
concreto até o final da década (FRITSCH, 1984).
Somente em 1888 tentou-se implantar a compulsoriedade com
um projeto de lei apresentado no Parlamento. Desde então, houve
graves manifestações contrárias dos positivistas, com um protesto
redigido por Raimundo Teixeira Mendes, líder do Apostolado
Positivista, cuja orientação era contrária a toda e qualquer interfe-
rência do Estado nas questões de saúde pública. Apesar disso, em
1889, a obrigatoriedade foi estabelecida a partir dos seis meses de
idade, com opção de revacinação a cada 10 anos. Porém, mais uma
vez a norma permaneceu letra morta (PORTO, 1984).
Nova tentativa de tornar obrigatória a vacinação foi feita durante
o Governo Provisório, por meio do Decreto nº 68, de 18/12/1889. E

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 201


mais uma vez o Apostolado Positivista protestou. Assim, e a des-
peito de constar das Instruções para o Serviço de Higiene de Defesa
na Capital da República, de setembro de 1902, o decreto de 1889
também não saiu do papel (PORTO, 1984). Entretanto, com o recru-
descimento da moléstia em 1904, e considerando-se o projeto gover-
namental de saneamento do Rio de Janeiro, às autoridades não res-
tava alternativa senão a implantação da vacina obrigatória, mas de
forma que a legislação fosse efetivamente cumprida.
Aliás, o governo já vinha acenando com a possibilidade de exi-
gência da obrigatoriedade, antes mesmo da epidemia de 1904, pois
a partir do segundo semestre de 1903 começaram a aparecer na
imprensa matérias contrárias à vacinação compulsória, como se vê
desse artigo divulgado no Correio da Manhã:

Não é nosso propósito agora discutirmos as vantagens da


vacina anti-variolosa, nem mesmo a legitimidade de a tor-
nar obrigatória por uma lei. Quanto a esta última medida,
reputamo-la um atentado revoltante contra a liberdade
espiritual e civil dos cidadãos e neste sentido o Apostolado
Positivista se tem por várias vezes manifestado (CORREIO
DA MANHÃ, 11/8/1903).

Ao mesmo tempo, o Instituto Vacínico Municipal publi-


cava artigos em defesa da vacina (JORNAL DO COMMERCIO,
23/9/1903), e o governo divulgava boletins sanitários mensais nos
jornais de grande circulação, mostrando preocupação com o recru-
descimento da varíola (CORREIO DA MANHÃ, 13/11/1903). E,
com o agravamento da epidemia, principalmente nos subúrbios,
começou a elaboração de um projeto de lei que, além de tornar a
vacinação obrigatória, garantisse o seu efetivo cumprimento.
O projeto entrou em discussão no Senado em 29 de junho de
1904, tendo sido aprovado em 20 de julho. Em 18 de agosto passou à
discussão na Câmara dos Deputados. Era draconiano, pois cercava
o cidadão de todas as formas, uma vez que o atestado de vacinação,
com firma reconhecida, seria exigido para o exercício de todas as

202 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


atividades, desde matrícula de crianças na escola até obtenção de
emprego.
Todavia, desde o início dos debates no Congresso, desenca-
deou-se violenta oposição por parte da imprensa, de líderes positi-
vistas, de liberais e parlamentares jacobinistas, inclusive com bole-
tins extremamente violentos afixados em ruas, muros e postes da
cidade:

Cidadãos! Um governo anti-republicano – mais que isso!


um governo anti-patriótico, levado pelos conselhos ego-
ísticos de charlatães sem clínica, pretende fazer a Pátria
retrogradar para além do regime colonial, para além do
tempo das feitorias, transformando o povo num viveiro de
cobaias. Para realizar esse plano diabólico ele recorreu ao
auxílio de advogados sem causas e jornalistas sem brio, a
quem paga, direta ou indiretamente, à custa do Tesouro,
essas indignas defesas e esses vergonhosos aplausos, com
que se pretende confundir a opinião nacional! Cidadãos!
O atual regulamento de higiene, cognominado Código de
Torturas, é uma agressão à dignidade humana, é um ata-
que à probidade médica, é um atentado aos nossos brios, é
uma violação insólita de vossas câmaras conjugais, é um
desacato grosseiro aos nobres melindres de vossas esposas,
é, finalmente, um bote selvagem aos santos aposentos de
vossas filhas púberes (MENEZES, 1966, p. 119).

A campanha parece ter obtido resultados imediatos, tendo-se


em vista a acentuada diminuição do número de vacinações volun-
tárias, apesar de o governo fazer publicar nos jornais “Conselhos
ao Povo”. Na verdade, não houve adequado esclarecimento da
população, com utilização da imprensa, de conferências populares
e sermões na Igreja (SANTOS, 1930, p. 412). Deve-se, além disso,
considerar que as publicações do governo dificilmente alcançariam
seu objetivo de esclarecer o público e conquistar sua colaboração,
tendo em vista que eram extremamente diminutas e não atingiam
todas as camadas a que se dirigiam, principalmente pela existência
de grande número de analfabetos.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 203


Os dois periódicos que tomaram posições rígidas contra o
projeto governamental foram o Correio da Manhã e o Comércio do
Brasil. O primeiro, dirigido por Edmundo Bittencourt e lançado em
1901, era um jornal liberal, de tendência antigovernista, sem ligações
com o positivismo, e que se posicionava contra a vacinação obri-
gatória com base na exigência de respeito às liberdades individuais
(SODRÉ, 1966, pp. 328-329). O Comércio do Brasil foi fundado pelo
deputado Alfredo Augusto Varella de Villares como veículo para
sua declarada guerra contra as oligarquias, tendo circulado de 1º
de maio a 8 de setembro de 1904. Recebia colaborações inclusive de
monarquistas (NACHMAN, 1977, p. 26).
Quanto ao Correio da Manhã, passou a publicar artigos e edi-
toriais quase diários contra a vacinação obrigatória. À medida que
o projeto avançava no Congresso Nacional, suas posições se torna-
vam mais radicais, atacando tanto a vacina obrigatória quanto toda
a obra de saneamento, principalmente a forma de combate a febre
amarela (CORREIO DA MANHÃ, 12/7/1904). Ao mesmo tempo,
não deixava de publicar, com grande destaque, notícias sensacio-
nalistas sobre as vítimas da Saúde Pública, muitas das quais sob o
título de “Homicídio Higiênico”:

Mais um caso fatal vem demonstrar o quanto irregular


e prejudicial está se tornando o serviço afeto à Diretoria
Geral de Saúde Pública. E tudo se faz sem que o público
tenha ao menos a certeza de que os seus autores serão devi-
damente punidos. Desta vez foi vítima Cypriana Maria
Leonarda, residente à rua da Alfândega nº 277, que faleceu
de septicemia consecutiva à vacina. O seu cadáver, com
guia da polícia da 5ª circunscrição urbana, foi removido
para o Necrotério, onde o examinou o dr. Cunha Cruz,
médico legista da polícia. A infeliz mulher apresentava os
seios completamente gangrenados. No estabelecimento
acima referido esteve pela manhã e também examinou o
cadáver o sr. Dr. Oswaldo Cruz, diretor da Saúde Pública.
Consta-nos que na praça do Mercado acha-se também
muito grave e em consequência à vacina, uma outra pessoa,
cujo nome é ainda ignorado. Tudo isso parece demonstrar a

204 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


falta de cuidado ou pelo menos imperícia que presidem aos
trabalhos da Higiene Pública (CORREIO DA MANHÃ,
17/7/1904)

Na verdade, o propósito governamental de implantar a vaci-


nação compulsória significava uma intervenção direta do poder
público levada para dentro das casas e, em última instância, uma
intervenção do Estado sobre o corpo do indivíduo. Nesse sentido,
provocou uma resistência generalizada, até mesmo por parte da
imprensa normalmente favorável ao governo.
No Congresso Nacional, a oposição era liderada pelo sena-
dor e tenente-coronel Lauro Nina Sodré e Silva e pelos deputados
Alexandre José Barbosa Lima e Alfredo Varella, os dois primeiros
notórios jacobinos. O próprio Rui Barbosa, parlamentar indiscuti-
velmente liberal, passou a questionar a legitimidade da vacinação
obrigatória, embora declarasse sempre haver se vacinado e à sua
família. Para ele, o Estado exorbitava de suas funções, ao assumir o
papel de árbitro no debate sobre a conveniência da vacinação contra
a varíola:

Duvidosa pende, ainda, a verdade científica. Mas por isso


mesmo, quanto à verdade jurídica não pode haver dúvida
alguma. Assim como o direito veda ao poder humano
invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a
epiderme. Uma envolve uma região moral do pensamento.
A outra, a região fisiológica do organismo. Dessas duas
regiões se forma o domínio impenetrável da nossa perso-
nalidade. Até aqui, até a pele que nos reveste, pode chegar
a ação do Estado. Sua polícia poderia lançar-me a mão à
gola do casaco, encadear-me os punhos, lançar-me ferro
aos pés. Mas introduzir-me nas veias, em nome da higiene
pública, as drogas da sua medicina, isso não pode, sem se
abalançar ao que os mais antigos despotismos não ousa-
ram. Não o poderia, ainda que elas fossem indubitavel-
mente inofensivas. A medicina do meu corpo, como a do
meu espírito, me pertence. Os que se temerem do contágio,
preservem-se com a inoculação recomendada. Eu tenho o
direito incontestável, renunciando à imunização, de correr

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 205


os riscos, ao abrigo de cujo alcance estão os imunizados.
A vacina, porém, não é inofensiva. Há, pelo menos, a este
respeito, as dúvidas mais graves. Logo, não têm nome, na
categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a
tirania, a que ele se aventura, contrapondo-se, voluntaria-
mente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdu-
ção, no meu sangue, de um vírus, em cuja influência exis-
tem os mais bem fundados receios de que seja condutora da
moléstia ou da morte (BARBOSA, 1955 a, p. 11).

Dessa forma, na visão de Rui Barbosa, o Estado não poderia,


em nome da Saúde Pública, impor o suicídio aos inocentes. Se a ciên-
cia se dividia com relação à inocuidade da vacina, a lei não poderia
torná-la obrigatória. Fora do Parlamento, destacava-se, na reação,
Vicente Ferreira de Souza, médico, professor e presidente do Centro
das Classes Operárias, conhecido por suas tendências socialistas.
Quanto aos positivistas, desencadearam verdadeira guerra
contra a vacinação obrigatória. Escreviam artigos, panfletos e pro-
curavam, na obra de Augusto Comte, os fundamentos para suas
posições. Entretanto, como o filósofo nunca se manifestara especifi-
camente sobre o assunto, a interpretação do Apostolado Positivista
se limitava a impressões esparsas, extraídas de seus escritos. Com
isso, a vacina se tornou objeto de litígio entre os próprios positi-
vistas, pois muitos passaram a discordar das interpretações dadas
pelos líderes do Apostolado à obra de Comte.
Segundo Raimundo Teixeira Mendes, líder da Igreja Positivista,
não caberia ao governo impor a vacinação obrigatória, uma vez que

O Congresso brasileiro não é uma corporação teórica


incumbida de elaborar ou julgar as doutrinas médicas. O
Congresso brasileiro é apenas um dos órgãos do poder tem-
poral encarregado de velar na guarda e defesa das liberda-
des públicas penosamente conquistadas pela Humanidade
(...) (MENDES, 1904, pp. XIV-XV).

Os líderes positivistas não aceitavam o monopólio do exercício


da profissão pelos médicos, bem como a imposição de uma higiene

206 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


oficial regulamentada pelo Estado, a exigência de notificação obri-
gatória das moléstias infecciosas, a inspeção sanitária, remoção e
isolamento de doentes, desinfecção, vacinação e soroterapia, todas
medidas adotadas na Europa, a partir da segunda metade do século
XIX. Tudo isso constituía, para eles, um verdadeiro “despotismo
sanitário”, expressão que passou a ser adotada para designar as
medidas implantadas pela Saúde Pública, inclusive por parte da
imprensa.
Além dos argumentos baseados na doutrina de Comte, os
positivistas passaram a denunciar também a existência de interesses
comerciais escusos, que supostamente estariam por trás da campa-
nha de vacinação, como se vê do panfleto publicado em julho de
1904, pelo médico Joaquim Bagueira do Carmo Leal, um dos líderes
do Apostolado:

Mas pode-se dizer que de todas essas extravagâncias


nenhuma teve tanto sucesso como a mais evidentemente
nociva e a mais asquerosa, - mais repugnante ainda que o
pus varioloso, porque este ao menos era colhido na espécie
humana. A ideia propagou-se, os institutos fundaram-se,
os governos impuseram-na, e o seu introdutor teve logo
duas remunerações: uma de 10.000, outra de 20.000 libras
esterlinas. E de então em diante, ela tem sido o que se cos-
tuma chamar um maná para um grande número de forne-
cedores; basta dizer que é um dos raros negócios em que o
capital pode ser quase dispensado, pois os próprios animais
que fornecem o vírus, depois de infeccionados com o pus do
cow-pox da vacina humana, ou da varíola, são vendidos
para os açougues para o consumo das populações (LEAL,
1904, pp. 30-31 – grifos do autor).

Questionavam também a própria validade das estatísticas


médicas, sob o argumento de que estas não poderiam fixar a por-
centagem de doentes que morriam por receberem tratamento inade-
quado em decorrência de erro de diagnóstico. Preconizavam, dessa
forma, a simples e boa administração dos serviços públicos, que
seria suficiente para a solução dos problemas sanitários.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 207


Toda a propaganda desencadeada pelo Apostolado tinha como
objetivo desacreditar a vacina perante a opinião pública, e tornar
impraticável a obrigatoriedade. Sua tática consistiu em inspirar
verdadeiro terror na população, por meio da descrição dos efeitos
adversos e de acidentes decorrentes de sua aplicação. Foi apoiado
pela imprensa, que passou a publicar os artigos dos membros do
Apostolado, bem como a dar notícias, com grande estardalhaço, de
supostas vítimas de acidentes provocados pela inoculação da vacina
(CORREIO DA MANHÃ, 17/7/1904). Não se poderia, contudo, res-
ponsabilizar os positivistas por quaisquer atos violentos praticados
durante a campanha, pois, apesar da virulência de seus ataques, eles
se limitavam a encontros, conferências, publicações na imprensa e
distribuição de panfletos (PORTO, 1984).
Verifica-se, portanto, que a vacinação obrigatória foi capaz de
juntar contra si as mais diversas correntes de opinião: imprensa libe-
ral, como é o caso do Correio da Manhã, parlamentares de grande
prestígio, como Rui Barbosa, remanescentes do jacobinismo, como
Lauro Sodré e Barbosa Lima, monarquistas, positivistas e todos os
setores descontentes com as grandes reformas implantadas pelo
governo. Na verdade, uma das questões que se colocam é a vali-
dade, a eficácia, e o benefício das campanhas sanitárias, pois, como
aponta Paul Singer, muitas vezes elas têm como consequência a
piora da situação socioeconômica da população pobre e, a despeito
de resultados específicos benéficos, para os grupos atingidos a ava-
liação global é desfavorável (SINGER, 1978, p. 67).
Assim, a radicalização do processo, que culminou com a
Revolta da Vacina e o Levante Militar da Escola da Praia Vermelha,
em novembro de 1904, foi decorrente, em grande medida, da atitude
do próprio governo e das autoridades sanitárias, que ignoraram os
protestos e insistiram na posição de tornar a vacinação obrigató-
ria, presumindo que o descontentamento não passasse de uma capa
para a sabotagem política da administração e de seu programa.
Os setores que controlavam a máquina estatal tentaram deter
esse processo, por meio de preparativos verdadeiramente béli-
cos para a imposição da medida. Esqueceram-se, no entanto, de

208 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


que a insatisfação com o governo já era generalizada, e decorrente
dos enormes prejuízos que vários segmentos da sociedade carioca
vinham sofrendo desde o início da grande obra de reurbanização e
saneamento da capital.

A compulsoriedade da vacina no Brasil


contemporâneo: a brasa à espera do sopro?

Como é de conhecimento público, o ano de 2020 foi mar-


cado pela disseminação de um novo coronavírus, responsável
pelo advento de uma situação de emergência sanitária global sem
paralelo na contemporaneidade. Reconhecida pela Organização
Mundial de Saúde (OMS), a pandemia da COVID 19 gerou efeitos
nas mais diversas dimensões da vida em sociedade, imputando uma
série de desafios à humanidade. Como não poderia deixar de ser,
as repercussões no campo jurídico foram intensas, com inúmeros
debates sobre, por exemplo, o impacto do “novo normal” nas con-
dições de cumprimento dos negócios jurídicos, o esfacelamento das
regras do comércio internacional, os requisitos regulatórios para a
autorização do uso de vacinas, as circunstâncias de execução penal
na vigência de uma pandemia, a legalidade das ações restritivas da
liberdade econômica, a ineficácia das normas de cooperação téc-
nica por conta do “vacinacionalismo” (BOGDANDY; VILLAREAL,
2021), o alcance das medidas de privação da livre-circulação, a pos-
sibilidade de se engendrar o licenciamento compulsório de medica-
mentos, entre tantos outros temas.
Desta pluralidade de assuntos, há um aspecto que merece
especial destaque, sobretudo considerando não apenas a realidade
hodierna, mas também diversos antecedentes históricos. O debate
público (e por vezes jurisprudencial) acerca da obrigatoriedade
da vacinação contra a COVID 19 é bastante emblemático sobre
características basilares e traços identitários de diversas sociedades
nacionais. Em 1960, um relatório da OMS já notava a recorrência e
o alcance do tema:

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 209


Periodicamente, há notícias na imprensa de controvérsias
raivosas entre os defensores da vacinação compulsória
e seus oponentes. Esses conflitos têm a sua influência na
opinião pública. Por essa razão, as autoridades sanitárias
e os legisladores são confrontados de tempos em tempos
com a questão de se manter ou não a vacinação obrigatória
em vigor ou se seria aconselhável introduzir novas imu-
nizações obrigatórias8. (ORGANIZAÇÂO MUNDIAL DA
SAÚDE, 1960, p.2, tradução nossa).

Como reconhecido no relatório da OMS e visto no episódio da


Revolta da Vacina, a antiga discussão acerca da obrigatoriedade da
vacinação expõe uma questão central para os gestores públicos, qual
seja, a do alcance da atuação do Estado frente aos custos generaliza-
dos advindos da preservação do primado da autonomia individual.
Se as circunstâncias eficazes para se debelar uma epidemia estão
condicionadas pela porcentagem da população imunizada, como
aceitar que um número alto de cidadãos se oponha a ser vacinado?
Na tradição jurídica dos Estados Unidos, o grande marco jurispru-
dencial a lidar com esta temática foi a decisão da Suprema Corte em
1905 no caso Jacobson versus Massachusetts, que abordou o tema da
vacinação obrigatória frente à recusa do pastor luterano Henning
Jacobson a ser imunizado contra a varíola. O tribunal reconheceu
a competência do poder público em sancionar cidadãos que rejei-
tassem a imunização, indicando que tal ação não consubstanciaria
uma afronta às liberdades individuais:

A liberdade assegurada pela Constituição dos Estados


Unidos não acarreta um direito absoluto de cada pessoa
de estar a qualquer tempo e em qualquer circunstância
totalmente livre de restrições, nem é um elemento de tal

8 “Periodically there are reports in the press of bitter controversies between the advocates of
compulsory vaccination and its opponents. These conflicts have their influence on public
opinion. For that reason the health authorities and the legislatures are faced from time to
time with the question of whether or not to keep compulsory vaccination in force or of whe-
ther it would be advisable to introduce new compulsory immunizations”. (ORGANIZAÇÂO
MUNDIAL DA SAÚDE, 1960, p.2).

210 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


liberdade que uma pessoa ou uma minoria de pessoas resi-
dentes em qualquer comunidade e desfrutando dos bene-
fícios de seu governo local tivessem poder para dominar a
maioria quando amparada em sua ação pela autoridade do
Estado. Cabe ao poder de polícia de um Estado promulgar
uma lei de vacinação compulsória e cabe ao legislativo, e
não aos tribunais, determinar em um primeiro momento se
a vacinação é ou não a melhor forma de prevenção da varí-
ola e de proteção da saúde pública9 (ESTADOS UNIDOS
DA AMÉRICA, 1904, p. 197, tradução nossa).

Sem que o cerne da decisão do caso Jacobson versus


Massachusetts sofresse repaginação hermenêutica ou fosse aban-
donado em mais de 100 anos, a argumentação da Suprema Corte
ganhou um longevo eco em vários casos semelhantes em tribunais
constitucionais ao redor do mundo. O mesmo ocorreu na jurispru-
dência da Corte Europeia de Direitos Humanos e na atuação da
antiga Comissão Europeia de Direitos Humanos, o que claramente
indica a compatibilidade de uma eventual exigência legal de um
Estado membro acerca da obrigatoriedade da vacinação contra a
COVID 19 frente ao regime jurídico da “Convenção Europeia de
Direitos Humanos” de 1950 (KATSONI, 2020).
Nota-se que a existência da obrigatoriedade de imunização,
sobretudo no tocante à vacinação infantil, não é necessariamente
incomum no continente europeu: no início da década passada, treze
Estados-membros da União Europeia tinham ao menos uma previ-
são de vacina obrigatória (HAVERKATE; D’ANCONA; GIAMBI;
JOHANSEN; LOPALCO; COZZA; APPELGREN, 2012). Neste sen-
tido, interessante destacar o caso italiano: até o advento do “Plano

9 “The liberty secured by the Constitution of the United States does not import an absolute
right in each person to be at all times, and in all circumstances, wholly freed from restraint,
nor is it an element in such liberty that one person, or a minority of persons residing in
any community and enjoying the benefits of its local government, should have power to
dominate the majority when supported in their action by the authority of the State. It is
within the police power of a State to enact a compulsory vaccination law, and it is for the
legislature, and not for the courts, to determine in the first instance whether vaccination is
or is not the best mode for the prevention of smallpox and the protection of the public health”.
(ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 1904, p. 197).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 211


de Prevenção e Imunização Nacional” (e da respectiva lei 119/2017),
apenas quatro vacinas eram mandatórias no país – número que
subiu para dez a partir de então. Tal alteração e o correspondente
aumento nos anos seguintes da cobertura vacinal de todos os tipos
de imunizantes fazem da Itália um interessante laboratório social
acerca dos efeitos da compulsoriedade (D’ANCONA, D’AMARIO;
MARAGLINO, REZZA; IANNAZZO, 2019), ainda que se deva
considerar que as especificidades de cada sociedade não necessaria-
mente tornam os resultados generalizáveis.
No Brasil atual, a questão da compulsoriedade da vacina é
extremamente paradigmática do tumultuoso cenário em que o país
está imerso. Vale destacar que, assim como já visto por ocasião dos
desdobramentos da Revolta da Vacina, o tema apresenta o condão
peculiar de evidenciar traços definidores da complexidade do país
nas suas mais diversas dimensões. Ainda que seja um estratagema
analítico pertinente a dois momentos históricos distintos, há de se
ressaltar os pontos de contato e de afastamento entre as duas situa-
ções. Os mencionados episódios de 1904 mostram a existência de
uma conjuntura de ampla crise econômica, agudizada por proble-
mas sanitários graves e circundada por ruídos no debate público
(com a generalização da prática de desinformação deliberada e o
aumento da crispação social). Ainda que em escala maior, a situação
contemporânea também apresenta um cenário de intensa fragili-
dade econômica, com colossais desafios para a saúde pública e o uso
irrestrito de mensagens apócrifas e incorretas pelas redes sociais,
gerando insegurança e frustração (vale a ressalva de que parte dos
prejuízos na qualidade da comunicação social contemporânea deve
ser tributada em alguns casos aos próprios agentes públicos).
Além desse rol de aspectos semelhantes, conectam as duas
conjunturas a premência da utilização da imunização como um
instrumento debelatório de parte da crise e os desafios correlatos
(como garantir que uma porcentagem suficiente da população seja
vacinada). E aqui se iniciam as distinções entre os dois momentos
históricos. A “Revolta da Vacina” foi caracterizada por uma atua-
ção incisiva do poder público na promoção da vacinação, enquanto

212 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


os governantes contemporâneos não conseguiram coordenar esfor-
ços entre si nos mais diversos temas adstritos à pandemia – em um
triste espetáculo que vai da inação à improbidade administrativa,
passando por uma infinidade de disputas comezinhas. Outro ele-
mento distintivo é o fato de que, enquanto a compulsoriedade da
vacina contra varíola em 1904 implicava a possibilidade de aplicação
com uso da força, há nos dias de hoje clara definição em sentido
diverso pelo Supremo Tribunal Federal (ainda que permaneça certa
imprecisão nas declarações a este respeito de algumas autoridades
públicas).
Nas últimas décadas, o Judiciário brasileiro passou a anali-
sar um número crescente de processos envolvendo as mais varia-
das repercussões de políticas públicas da área da saúde. De forma
mais ampla, é inclusive possível afirmar que as demandas judiciais
relativas à saúde tiveram um crescimento de 130% entre 2008 e
2017 enquanto o aumento total de processos judiciais foi de 50%
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2019). Este maior engaja-
mento da sociedade brasileira em resolver judicialmente as contro-
vérsias na área já permitiria intuir que questões relativas à vacina da
COVID 19 não deixariam de bater às portas dos tribunais.
Em 17 de dezembro de 2020, o STF analisou em conjunto três
casos de grande relevância envolvendo aspectos jurídicos da pan-
demia no Brasil (duas ações diretas de inconstitucionalidade e um
recurso extraordinário, relatados respectivamente pelos ministros
Ricardo Lewandowski e Luis Roberto Barroso). Naquilo que mais
se conecta ao escopo deste texto entre diversos outros aspectos, o
tribunal decidiu acerca da legalidade da obrigatoriedade da vacina.
Assim, o recurso mencionado tratava da possibilidade de pais des-
cumprirem o calendário de vacinação relativo a filhos menores de
idade por conta de questões existenciais, filosóficas ou religiosas. A
tese de repercussão geral cunhada pelo tribunal deixou patente que
a obrigação de imunização “não se caracteriza violação à liberdade
de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis,
nem tampouco ao poder familiar” (BRASIL, 2020).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 213


Já as duas ações diretas de inconstitucionalidade exploravam
o potencial conflito entre bens jurídicos de primeira relevância na
ordem jurídica brasileira. A suposta antinomia entre a manutenção
da autonomia individual e a promoção da saúde pública frente à
vacinação compulsória10 consubstanciou o grande pano de fundo
da decisão judicial. Assim, lançando mão do expediente infrequente
de fixar tese em Ação Direta de Inconstitucionalidade, a Corte esta-
beleceu que

(I) A vacinação compulsória não significa vacinação for-


çada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário,
podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas
indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restri-
ção ao exercício de certas atividades ou à frequência de
determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela
decorrentes, e
(i) tenham como base evidências científicas e análises
estratégicas pertinentes,
(ii) venham acompanhadas de ampla informação sobre a
eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes,
(iii) respeitem a dignidade humana e os direitos funda-
mentais das pessoas,
(iv) atendam aos critérios de razoabilidade e proporciona-
lidade e
(v) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente;
(II) tais medidas, com as limitações acima expostas, podem
ser implementadas tanto pela União como pelos Estados,
Distrito Federal e Municípios, respeitadas as respectivas
esferas de competência. (BRASIL, 2020)

Para além de aclarar o sentido, as condições e consequências


(como a implementação de medidas indiretas11) da compulsoriedade

10 Vide a previsão neste sentido constante no art. 3º, III, d da Lei 13.979/20.
11 Algo também presente (entre outros possíveis exemplos) na Austrália, em que várias pro-
víncias colocam a questão da imunização como requisito para a matrícula escolar, além

214 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


da vacina, interessante notar que a tese firmada definiu que Estados
e Municípios podem estabelecer a vacinação obrigatória sem a con-
cordância do Ministério da Saúde, singularizando as vacinas para
COVID 19 face ao regime geral previsto na “Política Nacional de
Imunizações” – que confere um protagonismo neste sentido ao
governo federal. A base legal para tal entendimento corresponde à
Lei 13.979/20 (que “dispõe sobre as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decor-
rente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”, também
conhecida como “Lei da Pandemia”), a qual atribui papel formu-
lador (e não apenas executivo) aos entes da federação para além da
União (WANG, 2021).
Ainda no tema do amparo normativo, o posicionamento do
STF na questão da legalidade da vacinação compulsória detém ampla
guarida na legislação brasileira – apesar dos rechaços do presidente
Jair Bolsonaro quanto à possibilidade da imunização obrigatória
(críticas anteriores e posteriores à decisão do Supremo). É o que se
depreende da observação do art. 3º da Lei nº 6259/1975 (que “dispõe
sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre
o Programa Nacional de Imunizações e estabelece normas relati-
vas à notificação compulsória de doenças”), os artigos 26 a 31 do
Decreto 78231/1976 (que regulamenta a Lei nº 6259/1975) e o art. 14
do Estatuto da Criança e do Adolescente. Assim, nota-se a recorrên-
cia de previsões legais sobre o tema, sendo esta a opção do legislador
nacional há várias décadas – algo presente inclusive no âmbito da
Revolta da Vacina, em que a Lei 1261/1904 estabeleceu a imunização
contra a varíola obrigatória em todo o território nacional.

Conclusão

O escopo do presente texto foi o de promover uma aproxi-


mação preliminar entre dois momentos históricos emblemáticos

de impedir o acesso a alguns benefícios estatais voltados à assistência infantil frente a


ausência de vacinação.

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 215


da experiência social brasileira (a “Revolta da Vacina” de 1904 e o
atual contexto pandêmico da COVID 19), tendo como fio condu-
tor a discussão sobre a obrigatoriedade da vacinação, seus efeitos e
repercussões. Evidente que tal paralelismo é ainda incompleto pelos
desdobramentos inconclusos da nova pandemia e deve ser conside-
rado como um esforço com resultados provisórios - algo reforçado
pelo fato de que o principal desafio pendente no combate à pan-
demia da COVID 19 no momento de confecção deste texto não é
o rol de consequências concretas da obrigatoriedade da vacinação,
mas a simples e traumática escassez de doses. De qualquer modo,
o exercício comparativo nos fornece pistas sobre traços perenes da
sociedade brasileira, o que permite uma melhor compreensão e des-
crição das nossas vicissitudes, além de qualificar a lente analítica
para ponderações prescritivas.
Ainda que haja décadas de resultados exitosos no tocante a
campanhas de vacinação e no controle de várias doenças endêmi-
cas, algo ancorado na prática e na capilaridade do sistema de saúde
nacional (que passou a ter maior organicidade com o advento do
Sistema Único de Saúde – SUS sob a égide da Constituição de 1988),
é possível notar que há uma resistência perene em setores da socie-
dade brasileira quanto à ministração de vacinas. Isto é perceptível
não só pelo testemunho prestado pelas mortes e prejuízos materiais
dos episódios de 1904, mas também pela atual alta porcentagem da
população brasileira que não pretende se vacinar contra o antígeno
causador da COVID 19. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto
Datafolha em dezembro de 2020, apenas 73% dos brasileiros estão
dispostos a tomarem a vacina para prevenir os efeitos do novo coro-
navírus (INSTITUTO DATAFOLHA, 2020, p.3).
Conectado a este primeiro aspecto, outro traço que merece
destaque é o potencial de instrumentalização política que o tema da
vacinação detém perante a grande parte da opinião pública nacio-
nal. O robustecimento verificado face aos estratos sociais de 1904
e o apelo do assunto frente à atual base de apoio do presidente Jair
Bolsonaro – a já mencionada recente pesquisa do Instituto DataFolha
indica que eleitores bolsonaristas consubstanciam o espectro do

216 A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA


eleitorado mais resistente à aplicação de vacinas contra a COVID
19 (INSTITUTO DATAFOLHA, 2020, p.3) – fortalece os laços de
pertencimento e mobiliza para a ação. Reforça tal impressão acerca
da porosidade do tema ao uso político, o fato de a mesma pesquisa
do DataFolha apontar que mais da metade dos brasileiros adultos
não quer ser imunizada contra o novo coronavírus por uma vacina
desenvolvida na China (INSTITUTO DATAFOLHA, 2020, p.4), um
dos grandes alvos do atual presidente nas suas manifestações públi-
cas. Segundo a pesquisa, rejeição de mesma monta não é verificada
perante ao público pesquisado se as opções de vacinas à disposição
forem de procedência britânica, estado-unidense ou russa.
Outra conclusão de nossa análise diz respeito ao tema da vaci-
nação compulsória. Ao contrário do ocorrido no começo do século
XX, a obrigatoriedade da imunização tal qual entendida na atualidade
pelo STF não acarreta a possibilidade de vacinação à força – e sim
o estabelecimento de consequências civis e/ou administrativas pelo
inadimplemento do dever jurídico. Contudo, o verdadeiro faroeste
burocrático (como o embate entre o ministério da Saúde e a presidên-
cia da República, por exemplo) e institucional intra (rivalidades entre
o Poder Executivo federal e parte dos governadores estaduais) e entre
(vide casos que antagonizaram a presidência da República e o STF) os
poderes da República dá a medida do quanto a maturidade institu-
cional da máquina estatal brasileira continua distante – algo também
evidente na desastrada atuação das forças governamentais nos episó-
dios anteriores à Revolta da Vacina. Seja nos primeiros anos do século
XX ou nas primeiras décadas do século XXI, a permanência de um
ambiente de grande inépcia administrativa e descrença na gover-
nança pública contribui para a irrigação do fértil campo dos boatos,
do medo, da ignorância e da descrença. A manutenção de longo prazo
da incerteza, a histórica incapacidade governamental de conexão
perante a respectiva base social e a ausência de previsibilidade quanto
ao comportamento do aparato estatal e da malha normativa ajudam a
explicar a razão de, mesmo na mais aguda situação sanitária em déca-
das, cerca de 43% dos brasileiros da sejam contrários à imunização
obrigatória (INSTITUTO DATAFOLHA, 2020, p.8).

A CONJUNTURA LATINO-AMERICANA INSTABILIDADE E RESISTÊNCIA 217


Se o judiciário nacional teve nos últimos meses grande des-
taque na deliberação dos destinos da sociedade brasileira frente à
pandemia da COVID 19, fato é que o afastamento temporal promo-
verá um juízo de outra natureza. Assim como no caso da Revolta
da Vacina, o julgamento histórico virá para as principais figuras
públicas do atual período, sobretudo para os patronos daquilo que
vem sendo chamado de “estratégia institucional de propagação do
vírus” (VENTURA; REIS, 2021, p.6). Ademais, é possível que tais
gestores tenham que se ver com a responsabilização judicial em
várias esferas antes de encarar o veredicto da História. Dialogando
com esta dimensão, há de se notar que residiria aí a quintessência
da obrigatoriedade da vacinação (para além dos potenciais efeitos
na queda das taxas de infecção ou no aumento da rejeição à imu-
nização): trata-se em última instância de uma forma de qualificar
as ações atomizadas e comportamento social, evidenciando para a
própria sociedade qual o conjunto de valores pelos quais ela deve (ou
quer) se guiar.

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C APÍTULO 1 C APÍTULO 5
A INSUS TENTÁV EL LE V EZ A A S LUTA S É TNICO - CL A SSIS TA S
DO C A PITA LISMO GLOBA L – N A A MÉRIC A L ATIN A DO
O C A PITA L DIA NTE DE SEUS SÉCULO X XI: A P ONTA MENTOS
LIMITES NO SÉCULO X XI SOBRE EQUA DOR E BOLÍVIA
Giovanni Alves Leandro Galastri

C APÍTULO 2 C APITULO 6
A S ELEIÇÕES DOS EUA 2020 PLEBISCITO EN CHILE: ¿QUEREMOS
E OS IMPAC TOS REGION AIS UN A NUE VA CONS TITUCIÓN?
N A A MÉRIC A L ATIN A José Luis Valenzuela
Cristina Soreanu Pecequilo
C APÍTULO 7
C APÍTULO 3 CRISES JUS TA P OS TA S: DO
JOE BIDEN TOMOU P OSSE: “P ÓS - NEOLIBER A LISMO” E
O QUE O ESPER A E O DO NEOLIBER A LISMO
QUE NOS ESPER A Agnaldo dos Santos
Luís Antonio Paulino
C APÍTULO 8
C APÍTULO 4 A ECONOMIA BR A SILEIR A EM
A INSERÇ ÃO DA A MÉRIC A TEMP OS DE PA NDEMIA
L ATIN A NO CONTE X TO Francisco Luiz Corsi
MUNDIA L EM 2021: INSERÇ ÃO
DOS TEMP OS OU TEMP OS C APÍTULO 9
DA INSERÇ ÃO? LIBER A LISMO E NEG ACIONISMO
Rodrigo Duarte Fernandes dos Passos CIENTÍFICO: DA RE VOLTA
DA VACIN A À COVID 19
Marina Gusmão de Mendonça
Daniel Campos de Carvalho

ISBN 978-65-995130-7-7

9 7 8 6 5 9 9 5 1 3 0 7 7

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