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E D I T O R I A L

RECOMEÇAR
É PRECISO!*

“Recria tua vida, sempre, sempre. Remo-


ve pedras e planta roseiras e faz doces.
Recomeça”. (Cora Coralina)

E m perspectiva da área de Ciências da Religião e Teologia, com epistemes


e paradigmas que consideram o desenvolvimento humano também e tal-
vez fortemente a partir de situações de crise, voltamos a construir mais
um Editorial da Caminhos, em seu terceiro número de 2020, envoltos(as) pelas
trágicas realidades da pandemia do COVID-19. Simultaneamente percebemos
reações diferentes e até antagônicas nesse contexto: pessoas que conseguem per-
ceber o momento histórico de exceção e se mantêm em isolamento necessário,
refazendo parte da rotina de sua vida, e uma maioria que não o faz, por diversos
motivos. Entre eles podemos contar insensibilidade, ignorância, banalização da
vida e suas fragilidades, incompetências político-governamentais, exigências do
emprego, omissão e conivência por grande número de pessoas, sobreposição da
economia do mercado, falta de respeito ao próximo etc.
Diante dessas realidades, há a renovada percepção de que recomeçar é preciso e fazer
pausa é necessário. Talvez se observássemos as tradições religiosas judaico-cris-
tãs do descanso e do jubileu (REIMER; RICHTER REIMER, 1999), poderíamos
ter uma imunidade mais forte no conjunto da natureza, incluídos os humanos.
Talvez se cuidássemos melhor da saúde global da vida (pessoal, social e am-
biental), observando uma alimentação saudável para todos os seres, cuidando
da terra, do ar e da água, preservando todas as formas de vida, especialmente
as mais vulnerabilizadas, poderíamos estar fortalecidos como pessoas, socie-
dade e mundo, numa expressão viva de espiritualidade transformadora1. Con-
tudo assim não é, e os sinais de mudança/esperança são poucos, mas neces-

589 , Goiânia, v. 18, p. 589-594, 2020. DOI 10.18224/cam.v18i3.8614


sários. O que continua, então, talvez seja a oportunidade de (re)aprender estas
questões básicas neste momento excepcional, em que a “cruel pedagogia da
pandemia” (SANTOS, 2020) insiste em se fazer presente, convocando-nos a
rever prioridades, percursos e arquiteturas dos nossos fazeres e saberes. O
que é de fato necessário para bem-viver? O que significa recomeçar?
Recomeçar talvez seja a sabedoria, a prudência e a capacidade de recriar a existência
a partir das suas fragilidades e dos seus sofrimentos. Recomeçar não é fazer
igual, de forma que tudo continue como era antes da crise, pois talvez este
‘tudo’ seja exatamente o que alavancou ou causou a crise com suas consequên-
cias ainda incomensuráveis. Recomeçar é rever, reavaliar e admitir profunda-
mente erros e equívocos de decisões e ações anteriores, que causaram crises e
pandemias ou as aprofundaram, e se mostram incapazes de fazê-las retroceder.
Fazer pausa profunda é estar disposta(o) a silenciar e adentrar processos de
recomeço, de recriação, de fazer diferente aquilo que se evidenciou como erro
ou engano. Se de fato fizéssemos pausas e recomeços talvez também honrarí-
amos as promessas e acordos feitos, em nível pessoal, social e político, como
o Acordo de Paris2, assinado também pelo Brasil, em 2015, como uma forma
de parceria, pressão e fiscalização, a fim de minimizar as alterações climáticas
e aumentar a (auto)sustentabilidade ecologicamente responsável. Se o fizésse-
mos, cada qual no ambiente que habita, trabalha e vive, de forma cidadã plena
e politicamente responsável também na fiscalização de governos eleitos, não
precisaríamos ter ouvido, hoje, dia 25 de setembro de 2020, o Papa Francisco
afirmar, em seu pronunciamento na 75ª Assembléia-Geral das Nações Unidas,
que é preciso “admitir honestamente que, ainda que alguns progressos tenham
sido alcançados, a pouca capacidade da comunidade internacional para cum-
prir suas promessas de cinco anos atrás” (PAPA, 2020).
Remover pedras é possível; plantar roseiras também. Esta talvez seja uma das grandes
vocações e o imprescindível compromisso ético e humanizador da religião em
suas várias e distintas expressões literárias. Cada texto é uma ou mais vidas;
tecidos são histórias, experiências, imaginários, testemunhos de fé, amor e
ódio... Quando tocados pela leitora e pelo leitor, cruzam-se fios e tessituras que
se amalgamam hermeneuticamente em novas possibilidades; o texto fica texto,
a leitura continua sendo interpretação, e ambos por isto mesmo são históricos.
O Espírito vivifica; a letra continua letra. Ambos são importantes, interagem.
A vida e a morte os tocam e desafiam, assim como os ingredientes na mão
da doceira que ainda não sabe como ficará o resultado do seu trabalho, mas
ele já está presente. Talvez por isto mesmo, a palavra profética do Papa Fran-
cisco (2020) que, antevendo crises maiores do que as que vivemos, também
em termos de saúde pública, alerta: “Não devemos deixar para as próximas
gerações os problemas das anteriores. Devemos nos perguntar seriamente se

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existe entre nós a vontade política para mitigar os efeitos negativos da mudan-
ça climática, assim como para ajudar as populações mais pobres e vulneráveis,
que são as mais afetadas”. O Papa talvez não sabia, mas ele, buscando motivar
recomeços, estava a fazer doce, como incentivava Cora Coralina.
Em meio às pandêmicas crises históricas do ano 2020, manifestamos nossa gratidão
a Deus e a todas as pessoas que contribuíram para fecharmos o número 3
da Caminhos (2020). Foi trabalhoso como fazer doce e, esperamos, saboroso
e nutritivo! Chegamos a constituir um número volumoso, com oito Seções,
como segue:
O Dossiê Temático “Religião, Literatura e Arte” tem sua própria Apresentação, elabo-
rada pela equipe que organizou o mesmo, e contém alguns referenciais teóri-
cos básicos e o resumo dos dezoito artigos aprovados. Com alegria destacamos
a novidade criada neste número: uma Seção específica dentro do Dossiê Te-
mático, com um artigo base que recebeu dois Responses, duas reações a partir
de outro lugar histórico e hermenêutico, também em forma de artigos. Além
disto, mais uma vez fizemos uma Entrevista Temática, com destaque para a
poetisa e contista goiana Cora Coralina!
Na Seção de ARTIGOS, temos nove contribuições. Começando com três artigos rela-
cionados com o Judaísmo, o prof. Dr. Renato Somberg Pfeffer (Fundação João
Pinheiro de Minas Gerais) escreve sobre “Equidade e Justiça na Perspectiva
Judaico-Talmúdica”, em que aborda a tradição da libertação do Egito como
matriz para construção de sistema regulatório e ético de proteção às pessoas
mais vulnerabilizadas, o que contribui para relações mais conscientes de cui-
dado e seguridade social. As profas. Dras. Magna Celi Mendes da Rocha e
Mitsuko Aparecida Makino Antunes (PUC-SP) e Clélia Peretti (PUC-PR), no
artigo “Memórias de uma Judia: Contradições, Verdade e Fé em Edith Stein”,
oferecem subsídios para estudos em perspectiva histórico-autobiográfica e fe-
nomenológica em relação à religião e política no contexto da Primeira e Se-
gunda Guerras Mundiais, tendo esta judia como protagonista que se contrapôs
ao sistema nazista. O prof. Dr. Thiago Antonio Avellar de Aquino e a Dranda.
Josilene Silva da Cruz (UFPB), em “Semelhanças e Aproximações da Mística
Judaica na Obra de Viktor Frankl”, buscam identificar como a mística judai-
ca influenciou a vida e a obra de Viktor Frankl no desenvolvimento teórico e
prático da logoterapia, para a qual o existencialismo e a cultura judaica são
centrais.
O prof. Dr. Eduardo Sales de Lima (Cesumar), apresenta “Jesus ‘não’ morreu pelos
Pecados: Epistemologia e Intolerância”, adentrando o Cristianismo a partir
da interpretação sacrificial da morte de Jesus, em perspectiva pós-decolonial,
busca compreender como este conceito pode contribuir para atenuar a vio-
lência oculta no fenômeno da (in)tolerância, para desconstruir epistemolo-

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gias sacrificiais que sustentam intolerâncias não apenas religiosas. O prof.
Dr. Hiran Pinel e o Drando. Herberth Gomes Ferreira (UFES), adentram an-
tigas tradições religiosas e culturais, em “A Busca pela Verdade como uma
Proposta Educativa via o Ideal da Paideia de Platão”, destacando as con-
tribuições pedagógicas da formação oficial ateniense. De lá para cá, outras
epistemes e metodologias foram desenvolvidas e estão presentes no artigo do
prof. Dr. Luigi Schiavo e da profa. Dra. María Cristina Ventura Campusano
(Universidad De La Salle, San José/Costa Rica), que questionam modelos
educacionais tradicionais e apresentam experiências docentes que prezam a
interculturalidade e as memórias ancestrais de diferentes povos originários e
migrantes em Costa Rica, no artigo “Educación en Clave Intercultural: una
Opción Ética”.
O prof. Dr. Stephan Malta Oliveira, a profa. Dra. Mônica Monteiro Peixoto e o prof.
Dr. Octavio Domont de Serpa Jr. (IPUB/UFRJ), em “Da Aflição à Salvação:
Percursos Existenciais de Usuários da Saúde Mental”, com base em sua ex-
periência psiquiátrica, desenvolveram pesquisa de campo e bibliográfica para
compreender a relação entre religiosidade e experiências de sofrimento mental,
destacando três categorias analíticas: experiências de sofrimento, estratégias de
enfrentamento e experiências de superação do sofrimento. O artigo “Represen-
tações Sociais de Deus para Participantes de Festividades Católicas na cidade
do Rio de Janeiro” é resultado de Grupo de Pesquisa interinstitucional e em
perspectiva interdisciplinar com referenciais sociológicos e teológicos, apresen-
tado por: Drando. Luiz Carlos Moraes França (UFRJ), prof. Dr. Antônio Mar-
cos Tosoli Gomes (UFRJ), prof. Dr. Rafael Moura Pecly Wolter (UFES), prof.
Dr. Julio Cesar Cruz Collares-da-Rocha (Universidade Católica de Petrópolis),
prof. Me. Pablo Luiz Santos Couto (Centro Universitario FG), Drando. Álvaro
Rafael Santana Peixoto (UFES), prof. Dr. Gerson Lourenço Pereira (Seminário
Metodista César Dacorso Filho), profa. Dra. Virginia Paiva Figueiredo Nogueira
(UERJ) e prof. Dr. Charles Souza Santos (UESB). No artigo “A Autonomia da
Vida na Amazônia e suas Vulnerabilidades”, os profs. Drando. André Gustavo Di
Fiore, Drando. Fernando Gross, Dranda. Francisca Cirlena Cunha Oliveira Su-
zuki e Dr. Tiago Gurgel do Vale (PUC-SP) apresentam, em perspectiva teológica
e bioética do cuidado, estudo elaborado a partir das ameaças aos biossistemas
amazônicos, conclamando para mudança de mentalidade e de ações.
A Seção ENSAIOS conta com a contribuição da profa. Dra. Márden Cardoso Miranda
Hott (UFMG), que apresenta parte de sua pesquisa em “Pomada ‘Vovô Pedro’:
o Ritual de Fé em Busca da Cura”, constatando que o medicamento fitoterá-
pico produzido e distribuído por espíritas envolve rituais de fé e cooperação
voluntária, numa relação filosófica e antropológica da religiosidade em pro-
cessos terapêuticos e de cura.

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Na Seção ARTIGO REVISÃO DE PESQUISA, o prof. Me. Joilson de Souza Toledo
(PUC Goiás) apresenta “’Um Olhar sobre vários Olhares’”: Estado da Arte
da Pesquisa sobre a Pastoral da Juventude na Área Ciências da Religião e
Teologia” com base na pesquisa realizada sobre a produção de dissertações e
teses na área. No artigo, o autor constata o aumento do interesse de pesquisa
que tematiza juventudes e religião.
Ineditismo no Brasil é apresentado na Seção ENTREVISTAS por meio da participação
do prof. em Liturgia Pastoral, Dr. Giorgio Bonaccorso, do Instituto Padovano
de Liturgia (Pádova/Itália). A entrevista foi feita pelo prof. Dr. José Reinaldo
Felipe Martins Filho (PUC Goiás; IFITEG) e tematiza principalmente as con-
tribuições do prof. Bonaccorso ao campo da Teologia Pastoral e ao Fenômeno
Religioso, especificamente no que se refere aos ritos. A entrevista está publi-
cada no original italiano e na tradução para o português, a fim de facilitar o
acesso (inter)nacional.
Por fim, na Seção RESENHAS, temos três contribuições. O Me. Vitor Rafael (Univer-
sidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa), apresenta o livro
póstumo do prof. Dr. em Sociologia e Teologia José Maria Mardones, do In-
stituto de Filosofia de Madrid, “Matar a nuestros dioses: un Dios para un
creyente adulto”. A profa. Dra. Annabela de Carvalho Vicente Rita (Univer-
sidade de Lisboa, Faculdade de Letras) apresenta o livro “Pro Litteris”, de
Isabel Ponce de Leão, como expressão de um ‘ofício religioso’ de diálogo
interdisciplinar e com memórias culturais e existenciais. O prof. Dr. Carlos
Eduardo Pinto Procópio (IFSP) apresenta, com base no livro “Fé e Política:
uma trajetória” do prof. Dr. Pedro Ribeiro de Oliveira, a própria trajetória
de fé e política, portanto, de vida desse professor e militante de movimentos
sociais e pastorais de libertação.
Com isto, concluímos a apresentação dos textos que foram submetidos a Caminhos
e avaliados por nós e por pareceristas ad hoc. Agradecemos a cada qual que
participou desse processo. Se recomeçar é preciso, façamos e sejamos a dife-
rença, no sentido das palavras do Papa Francisco, que encoraja a termos von-
tade política para mitigar - e quiçás interromper! - os efeitos negativos que
ganância e violência causam a toda a natureza. A você, leitora e leitor, con-
fiamos o trabalho de nossos saberes e fazeres. Desejamos um bom, frutífero e
prazeroso proveito!

Ivoni Richter Reimer


Editora-gerente

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Notas
1 Ver série de artigos que tratam da temática em Caminhos (2019).
2 Ver matéria básica em Acordo de Paris (2020).

Referências
ACORDO DE PARIS (2015). Wikipédia, 01 de maio de 2020. Disponível em: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_de_Paris_(2015). Acesso em: 25 set. 2020.
CAMINHOS: Religião e Transformações Socioambientais, Goiânia, v. 17, n. 2, 2019. Disponí-
vel em: http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/issue/view/337.
PAPA CITA ‘PERIGOSA SITUAÇÃO DA AMAZÔNIA’ EM DISCURSO NA ONU.
Notícias UOL 25/09/2020 11:05h. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/
ansa/2020/09/25/papa-cita-perigosa-situacao-da-amazonia-em-discurso-na-onu.htm. Acesso
em: 25 set. 2020.

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