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A ÉTICA E A EUTANÁSIA

ARTIGOS

A morte e, na condição humana, o motor das filosofias, assim como a


preocupação de todas as religiões. Mas a sociedade tecnológica em que
vivemos é muito pobre, tanto do conhecimento filosófico quanto do religioso. A
filosofia parece relegada a sistematizar a pesquisa experimental ou a celebrar
a debilidade da linguagem. Enquanto que a religião ocupa apenas uma
pequena fração da sociedade.

E, contudo, o divino e o transcendente falam, quando falam, a uma


consciência isolada por uma muralha de racionalidade cética.

Os seguidores de Epicuro, que foram os ancestrais da moderna eliminação


pela morte, afirmavam que não havia sentido em falar da morte porque
“quando se vive, não existe a morte e quando se está morto não se existe
mais”. Parece uma bela frase de consolo, mas não tem suficiente base
racional, nem sequer do ponto de vista utilitário. No plano dos sentimentos
somos iguais a todos os demais, e toda a nossa existência é plena de eventos
que reclamam a total necessidade de perder, uma a uma, todas as pessoas
que nos são queridas. Este destino só é interrompido com a nossa própria
morte.

Não é aceitável que o grande medo da morte, evocado pelos lúgubres


pensamentos da anulação e do não existir. Se pensarmos em nosso não ser
antes de termos começado a ser, isto nos angustia menos do que pensar em
nossa não mais existência. De outro lado, experimentamos com prazer, ainda
que ansiosamente, o dissolver da nossa consciência num eterno sono sem
sonhos. O dado psicológico que torna intolerável para nós a idéia da morte é o
sentimento da perda e da separação. Desde o nosso nascimento que
sentimos o medo da morte. Relembrá-la, evocá-la, pregá-la ou maldizê-la já é
uma maneira de a exorcizar. Esta necessidade fez surgir a aberração da
morte em grupo: dos suicídios coletivos aos sacrifícios de escravos e de
famílias na forca dos poderosos; ou ainda as lágrimas das mulheres junto às
piras que consumiam os seus maridos pelo fogo, praticadas ainda na Índia
atualmente.

Os povos que mais tinham medo da morte, talvez porque pouco crentes numa
vida futura, como eram os egípcios e os etruscos, sempre se destacaram pela
sua belicosidade e pelo seu espírito guerreiro, que era a sua maneira de
procurar voluntariamente a sua morte. Eles uniam à prática a honra do
suicídio voluntário, pela luta e pela guerra. É o caso dos assírios e dos
romanos que, mesmo com seus freqüentes esconjuros em relação à morte,
não dispensavam uma bela batalha; ou ainda os suicídios dos japoneses
kamikases, para os quais a honra máxima era o suicídio em nome da sua
etnia e de seu país.
Até a prática do terrorismo suicida dos homens bomba se alimenta de uma
dinâmica na qual a angústia da auto eliminação é uma escolha baseada no
sentimento de fazer parte integrante de um todo coletivo e onipotente. Os
modernos psiquiatras, tendo estatísticas à mão, parecem se espantar com o
contínuo crescimento de uma patologia psíquica que definem como “síndrome
do pânico”. Esta síndrome se caracteriza por um terrível medo incontido,
psíquico e somático: tremores, suores, aceleração da pulsação, e, sobretudo
uma grande angústia pela morte eminente. Eles sentem todos estes sintomas
quando estão sozinhos e sem um porto seguro a que se apeguem: por
exemplo, a possibilidade de ligar para uma pessoa querida que, além ser um
refúgio psicológico, poderá aplacar a crise de imediato.

A idéia da morte é despida de toda a ritualidade e, por isso mesmo, do sentido


que a assimila, nos povos anteriores à tecnologia moderna e aos conhecidos
momentos de passagem: o nascimento, a maturidade, o casamento. A morte
continua sendo o único e impronunciável tabu social. Deste modo se perde a
dimensão do grupo, da comunidade e da identidade coletiva, e a angústia da
separação torna-se imprevisível e perturba um equilíbrio que é bastante
superficial para ser verdadeiro. Tudo isto é causado pela falta de afeto, tão
comum em nossa sociedade atual. Existem inúmeros casos de sobrevivência,
quase milagrosa, de pessoas com câncer, depois de considerados incuráveis
pela medicina e que, por isso mesmo, conviveram com o tabu impronunciável
– a morte.

Mergulhados em uma condição de afetividade autêntica, como a da terapia


em grupo, muitíssimos pacientes melhoraram bastante, graças aos
mecanismos que a nossa ciência chama de “sugestivos”, “psicossomáticos”,
ou ainda tomando “placebos”. Qual o sentido que existe, por outro lado, para
um doente grave, confiar a sua própria vida a um médico que o considera
irremediavelmente condenado, e que já o vê como já morto? Estes são os
paradoxos de uma medicina que coloca entre o médico e o sofrimento
humano uma muralha baseada nos exames laboratoriais ou nos diagnósticos
terapêuticos. Novos fantasmas como a AIDS aumentam e parecem, muitas
vezes, tornar inconciliável o relacionamento médico x paciente.

Para se restabelecer ou para morrer bem é preciso manter a dignidade e a


identidade do paciente, que são o produto de um relacionamento interpessoal
muito forte entre o paciente e o seu médico. É interessante ouvir dos
modernos educadores a antiga prática de deixar toda a família, crianças
inclusive, estar junto da pessoa que está à morte. É a percepção física do
grupo e da sua forte continuidade, que a nossa civilização parece haver
perdido. É desta perda e da insegurança do paciente que deriva o
aparecimento dos gurus, dos esotéricos, dos pais de santo, dos seguidores de
Krishna e dos padres, todos eles ligados à devoção e à religião.

Todas estas pessoas, com as suas soluções mágicas ou religiosas, em um


mundo cheio de gente e de suas soluções milagrosas, causam um verdadeiro
deserto comunicação com o paciente, que se ressente da falta do contato e
do afeto solidário da sua família. Um manifesto do V Congresso Internacional
da Federação das Associações para o direito de morrer com dignidade,
reunido em Nizza, em setembro de 1984, diz o seguinte:

Os abaixo assinados, doutores em medicina…. Convencidos de que a ética


médica implica, acima de tudo, no respeito ao ser humano e no respeito à
vida; convencidos de que a necessidade de um ser humano que sofre não
pode ser ignorada e que respeitar a sua vida significa também respeitar as
condições da sua morte; afirma ser chegado o momento de, além da
informação médica e da instituição dos meios terapêuticos adequados, de
modo a responder à necessidade de melhorar a qualidade do último período
da vida do paciente e de proporcionar uma morte com a prevenção máxima
do sofrimento e da salvaguarda da sua dignidade; afirma ainda ser contrário a
toda a prática sistemática e à continuidade da terapia que não leve em
consideração a necessidade do paciente; também enfatizamos a necessidade
de que o médico, ao longo de sua carreira, preste toda a ajuda aos seus
pacientes em fase terminal, de modo a que eles possam terminar a sua vida
em condições as menos dolorosas possíveis, tudo isto com a consciência de
ter cumprido a sua missão; o médico deve se declarar pronto a dialogar, com
os seus pacientes, a seu próprio pedido, o problema da sua própria morte, e
de aconselhá-lo sobre o melhor modo de morrer, com o mínimo de sofrimento
e de angústia.

Dez anos antes deste manifesto, em artigo publicado no Le Monde, três


Prêmios Nobel de Medicina, Monod, Pauling e Thompson, afirmaram:

“Nós acreditamos que a consciência moral esteja suficientemente


desenvolvida em nossa sociedade de modo a permitir a elaboração de uma
regra de conduta humanitária em relação à morte e aos que estão morrendo.
Deploramos a moral insensível e as restrições legais que criam obstáculos ao
exame ético da eutanásia. Fazemos um apelo à opinião pública, iluminada,
para que supere os tabus tradicionais e tenha compaixão dos pacientes
terminais… Todo o indivíduo tem o direito de morrer com dignidade”.

Tais considerações, de tão ilustres colegas, que nos parecem tão sábias
quanto racionais, mostram o propósito de não ferir, de nenhum modo, a
dignidade da pessoa humana, seu único e verdadeiro valor, um direito natural
e que deve orientar todo o pensamento médico. A eutanásia apareceu e se
transformou, a partir de um simples caso, em um problema coletivo e social,
em paralelo com o aumento numérico do fenômeno. Além disso, também
apareceram novas formas de eutanásia, que vão dos casos “clássicos”,
aplicados aos pacientes terminais e às vítimas de atrocidades dolorosas, até à
moderna eutanásia, relacionada a crianças nascidas disformes e a anciãos,
sem considerar também os casos de eutanásia pré-natal e os ligados ao
crescimento demográfico em certos países. Os argumentos para a aplicação
da eutanásia são variados e contraditórios, e levam os médicos a passar da
sua condenação à mera tolerância, da aceitação à sua promoção, e, no que
respeita à sua motivação, se passa da piedade humanitária à “vida sem valor”,
do estorvo social de alguns pacientes terminais ao slogan radical e libertário
que assim se expressa: “a vida é minha e eu posso fazer dela o que quiser”.
Deste modo nos vemos face a uma situação na qual a eutanásia parece
navegar com todas as velas desfraldadas, devido a uma atitude cultural, típica
dos nossos tempos, que prefere, pelo menos na aparência, a morte à vida. O
conceito de morte é, assim, de importância fundamental: na Idade Média, o
ato extremo de pôr fim à vida era reconhecido, quando a pessoa tinha sérios
problemas de consciência, e a passagem para a vida eterna era um direito
basilar no Corpus dos deveres humanos. Deste modo, o morto se reconciliava
com Deus e a sua morte era um acontecimento social que envolvia toda a
comunidade, religiosa e não religiosa.

A cultura moderna, principalmente o materialismo histórico, mudou bastante a


idéia da morte e a postura do homem em relação à mesma. Atualmente,
assistimos à censura da morte, verdadeiro tabu da era moderna, quer na área
lingüística (pelo uso de eufemismos do tipo: passou desta para melhor), quer
na área psicológica e na psicologia social (a morte é um evento para ser
esquecido). Atualmente, a ocorrência da morte deixou de ser um evento
coletivo-comunitário para se tornar um fato individual.

Daí, não existir ética antiga, alargada ou aprofundada, cujos conceitos


possam consentir na existência da eutanásia.

ANTÓNIO ROCHA FADISTA



/ GOB – Brasil
M.’.I.’., Loja Cayrú 762 GOERJ

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