Você está na página 1de 8

A morte e seus percalços: os rituais

funerários e suas relações com a


cremação do ponto de vista das práticas
funerárias.
Celyne R.B. dos Santos Davoglio
Universidade Federal de Pernambuco /

Centro de Filosofia e Ciências humanas


Pós-graduação em Arqueologia
Departamento de Arqueologia

Disciplina: Teoria 1 / Data: 15/02/ 2023

Resumo
Dentro de uma ampla subárea da Arqueologia como as práticas funerárias encontramos
diversos conceitos de suma importância para uma análise fidedigna dos contextos
arqueológicos. Este trabalho é um diálogo sobre os conceitos de morte, rituais funerários
e cremação buscando também trazer exemplos deles para que possamos examinar suas
características e suas correlações, a fim de se possa conjecturar sobre as relações de vida
e morte, rituais funerários e suas tecnologias aplicadas, ferramentas estas tanto
psicossociais como também mecânicas e físico-químicas como a cremação. Por fim
empenhar-se em uma ponderação sobre as potencialidades do tema incluindo a própria
aplicabilidade dos conceitos abordados.
Palavras Chaves: Morte, Ritual funerário, Cremação.

Morte ou Vida ?

Dentre os diversos acontecimentos na vida de um ser humano, a morte é um


destes que não pode ser ignorado ou evitado, ela acontece com todos os seres humanos
em todas as sociedades que por sua vez encontram cada uma suas próprias maneiras de
lidar com a mesma. Portanto para se entender a espécie humana é preciso ter em mente
que entender também a morte destes indivíduos que compões estas sociedades é crucial.
Olhando para esta perspectiva sobre o estudo da morte devemos fazer alguns
questionamentos que poderão contribuir para o entendimento do conceito da mesma,
como por exemplo: O que é a morte? Quais são seus principais aspectos do ponto de
vista biológico e social? Pensando no âmbito social, qual a relevância de seus aspectos
para o individuo e a sociedade? e não menos importante: qual o resultado material e
psicossocial da morte?
Em primeira instância, devemos nos atentar para a etimologia da palavra morte, é
preciso salientar que sua origem é oriunda do latim das formas mortis e mors ou
associada ao verbo mori que significar “morrer”, este tem a raiz no indo-europeu *mer
(2)- . Este núcleo está associado às formas em sânscrito (mrtih), lituano (mirtis), irlandês
antigo (marb), armênio (meranim), alemão (*murthran) ou no anglo-saxão (morb)
(WILLIAMSON, 1999). No âmbito biológico a morte está ligada a cessação da vida,
neste caso existem três tipos de morte a serem consideradas vistas no conselho de
medicina e ministério da saúde1, são estes:
a) Morte clínica e morte biológica irreversível

A morte clínica é definida quando ocorre inconsciência, ausência de movimentos


respiratórios e batimentos cardíacos eficientes, porém com viabilidade cerebral e
biológica; enquanto que a morte biológica irreversível ocorre quando há
deterioração irreversível dos órgãos, que se segue à morte clínica, uma vez que

1
Universidade aberta do SUS ( em parceria com FIOCRUZ e Ministério da Saúde) 2023.
https://moodle.unasus.gov.br/vitrine29/mod/page/view.php?id=2864

2
não se instituam as manobras de ressuscitação cardiorrespiratória (VIEIRA;
TIMERMAN, 1996 apud. SANTOS,1997).

b) Morte óbvia
Morte óbvia é aquela evidenciada pelo estado de decomposição corpórea,
decapitação, esfacelamento ou carbonização craniana, presença de sinais de
morte (livor mortis ou como no rigor mortis), ou seja, é o tipo de morte na qual
o diagnóstico é inequívoco (FRANÇA, 2015, apud. SANTOS,1997).

c) Morte psíquica
Na morte psíquica, existe uma percepção psicológica da morte antecedente, em
um tempo variável, à morte biológica. Nessa situação o enfermo toma
consciência do escoamento progressivo e inexorável de sua vida, habitualmente
após receber a notícia de ser portador de uma enfermidade incurável (exemplo:
câncer disseminado) (KASTENBAUM, 1981 apud. SANTOS,1997).

Dentro do conceito de vida existe a observação de um equilíbrio biológico e


físico-químico - químico; a morte biológica na verdade o resultado da quebra deste
equilíbrio. O corpo, sofre ações de ordem física, química e microbiana que determina os
chamados fenômenos cadavéricos A averiguação da morte é feita pelos hoje pelos
médicos e é necessária a observação cuidadosa desses fenômenos que metodicamente é
dividida em 5: a. Fenômenos Abióticos, Avitais, ou Vitais negativos e b. Fenômenos
Transformativos ou de positivação da morte, contendo em si inúmeras etapas de
transformação do corpo, desde esfriamento e enrijecimento muscular até mesmo a
esqueletização ou calcificação dos ossos .
Estes fenômenos podem ser imediatos, como a perda da consciência e perda da
sensibilidade2, cessação da mobilidade esquelética e muscular e a cessação da
respiração3. Como podem ser consecutivos de efeito não imediato como por exemplo:
2
Estão abolidas as sensações táteis, térmicas e dolorosas. Cessa a sensibilidade geral e especial.(SANTOS,1997)
3
. Pode ser evidenciada pela ausculta pulmonar com ausência de murmúrios vesiculares. Um a prática antiga consistia e m colocar u
m espelho diante da boca e do nariz e, e m caso de embaciamento, admitia-se o sinal Conceito Médico-Forense de Morte 353 de vida.
Era uso também a aproximação de um a vela acesa; são processos de pouco valor no diagnóstico de certeza da morte. (SANTOS
1997).

3
desidratação4, pergaminhamento da pele5, esfriamento do corpo6, rigidez cadavéricá
7
(rigor-mortis ) hipóstases8, espasmo cadavérico9, mumificação10, saponificação11 e a
calcificação12 assim como a autólise13 e a putrefação14 (SANTOS, 1997).
Então, parece-nos que a morte é a desintegração do dinamismo vital, psicológico;
sociológico e cultural do indivíduo humano, em Direito denominado Pessoa (do latim
persona, aé) de modo total que se torna irreversível. Ou como diz Daniel Callahan:
"There is nothing more that can be done'' [“ Não há mais nada que possa ser feito”].
Por tanto, Santos (1997) considera que a morte da pessoa e a morte médica precisam
ocorrer juntas, mas a dignidade da pessoa humana deve ser preservada. (SANTOS,
1997).

Em seu livro “ l'homme et la mort” de 1970, o sociólogo Edgar Morin conclui:


"Il est impossible de connaître l'homme sans étudier sa mort, car, peut-être plus que
dans la vie, c'est dans la mort que l'homme se révèle". [“É impossível conhecer o
homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o
homem se revela”]. O’Shea (1984) argumenta que “todas as sociedades possuem
algum procedimento ou conjunto deles para depositar os corpos dos falecidos”. A partir
deste ponto de vista, entende-se que a morte é um fato biológico que faz parte do
4
O cadáver sujeito às leis físicas sofre a evaporação tegumentar, que se traduz por: decréscimo de peso, (mais acentuado nos fetos e
recémnascidos, alcançando até 8g por quilograma de peso e m u m dia, somados nas primeiras horas). Deve-se levar e m conta que
este fenômeno varia de indivíduo para indivíduo, de acordo com o tipo de morte e variações ambientais.(SANTOS 1997).
5
por efeito da evaporação tegumentar, a pele se desseca, endurece e torna-se sonora à percussão.(SANTOS 1997).
6
). Co m a morte, a tendência do corpo é equilibrar sua temperatura com o meio ambiente. A renovação do ar e a temperatura
ambiente roubam calor, influenciando na marcha do esfriamento do cadáver. N a prática, esse esfriamento paulatino não segue um a
curva assintótica, se inicia com u m pequeno platô, durante o qual o declínio térmico é mínimo. .(SANTOS 1997).
7
. É o fenômeno que alcança as massas musculares, determinando modificações químicas (ATP e estado de hidratação das fibras
musculares). (SANTOS,1997).
8
É o fenômeno pós-mortal da deposição do sangue nas partes declivosas do cadáver por força da atuação da gravidade. Destarte, o
sangue acaba acumulando-se, por congestão passiva, naquelas regiões que, pelas eventuais circunstâncias do momento ocupam a
posição mais declive. Isto tanto é válido para a pele, quanto para os órgãos internos (SANTOS,1997).
9
Caracteriza-se pela rigidez abrupta, generalizada e violenta, sem o relaxamento muscular que precede a rigidez comum, também
chamada rigidez cadavéricá cataléptica, estuária ou plástica. Os cadáveres guardam a posição e m que foram surpreendidos pela
morte. (SANTOS,1997).
10
A mumificação pode ser produzida de forma natural ou artificial. Nas mumificações artificiais, os corpos são submetidos a
processos especiais de conservação e tais artifícios datam da mais remota época, através dos embalsamamentos. N a mumificação
natural são necessárias condições particulares que garantem a desidratação rápida, de mod o a impedir a ação microbiana responsável
pela putrefação. O cadáver mumificado apresenta reduzido e m peso, pele dura, seca, enrugada e de tonalidade enegrecida. Os dentes
e as unhas permanecem bem conservados. (SANTOS,1997).
11
É u m processo transformativo conservador que se caracteriza pela modificação do cadáver e m substância de consistência untuosa,
mole e quebradiça, de tonalidade amarela escura, dando um a aparência de cera ou sabão. Surge depois de u m estágio mais ou menos
avançado de putrefação. É raro encontrar u m cadáver totalmente transformado por esse fenômeno especial. (SANTOS,1997).
12
o. Caracteriza-se pela petrificação ou calcificação do corpo. Ocorre mais freqüentemente nos fetos mortos e retidos na cavidade
uterina. (SANTOS,1997).
13
Cessada a circulação, as células deixam de receber, pela corrente plasmática, novos elementos, prejudicando as trocas nutritivas e
sofrendo, pela ação dos fermentos, a acidificação, dando início à decomposição. O meio vivo é neutro. (SANTOS,1997).
14
Após a autólise, começa a putrefação por fenômenos biológicos e físico-químicos provocados por germens aeróbicos, anaeróbicos
e facultativos(SANTOS,1997).

4
cotidiano das sociedades e consequentemente do seu modo de vida, pois, além da morte
esta o seu resultado social que está ligada a um conjunto de ações que interagem
diretamente com seus valores e crenças. Assim, Barbosa (2013) conclui:

“A sociedade, com sua cultura, hábitos, crenças e valores, norteia


o posicionamento dos indivíduos perante o processo do morrer e a
morte, definindo como devem se comportar diante desse fato,
sendo multifatorial, e cada grupo social tem sua própria forma de
conduzir esses momentos”. (BARBOSA, 2013).

Dentro desta perspectiva, os seres humanos do passado não são apenas estudados
como agentes ativos de um ambiente físico (macro, mezzo e micro ambiente), mas
também se observa os mesmos em um ambiente social (ALARCÃO, 1996). Neste
ambiente social deve levar em consideração a fala de Morin (1970) e O,shea (1981) que
de maneiras diferentes falam de uma morte que não é só física, mas social, psicologica,
etnográfica demarcada histórico e culturalmente.

Ainda olhando para esta perspectiva colocada, tem-se a fala de Parker-Pearson


(2008), que ao tratar da possibilidade dos estudos dos remanescentes humanos, enfatiza
que tais vestígios arqueológicos relacionados a morte é o resultado das práticas sociais
que nos contam mais sobre a história destes indivíduos, sobretudo, aspectos de suas
vidas apesar de se estar estudando suas mortes.

Pois para estes autores falar de morte não é apenas sobre falar sobre falência dos
órgãos de um indivíduo, mas é falar mais de vida e de cotidiano e de sua interferência
no morrer. Assim, quando tratamos de vida (cotidiano), falamos também do entorno
social e ambiental e como estes interferem diretamente no falecido, assim como o
próprio morto interfere nas relações sociais e na própria paisagem.

Kearnes e Rickards (2017) falam sobre o morrer no âmbito das práticas


funerárias, onde consideram que os sepultamentos são um produto tanto da morte
quanto das práticas e tecnologias do cotidiano social, assim como também consideram a
mesma como um processo de transição onde os próprios projetos de sepultamento
mediado pela tecnologia são produtos de projeções inventivas em visões que preveem
tanto sua viabilidade técnica quanto os tipos de mundos sociais necessários para sua
realização.

5
Neste caso tem-se também a fala de Silva (2014) que mostra que no âmbito do
estudo social da morte há um investimento por parte das ciências humanas em olhar
para as práticas relacionadas a mesma como uma expressão social vistas tanto nas
sepulturas quanto dentro das práticas religiosas, considerando também a morte como
um processo de transição, trazendo esta para uma reflexão das posições
sociopsicológicas da morte, onde admite-se que assim como visto no conceito de morte
no âmbito biológico observando os três tipos de morte, a morte psíquica descrita pelo
ministério da saúde que está atrelada a consciência da previsão vindoura de morte por
parte do individuo afetado, também se interconecta com a visão destes autores, que tem
em seus trabalhos um grande esforço para mostrar as conexões entre esta morte psiquica
individual, e a morte psiquicosocial, onde o preludio da morte também significa a
efetividade da morte e da não existência de um papel social assim como o nascimento de
outros papeis.

Admite-se então que:

... temos que considerar que o conceito morte é sempre


relativo, excessivamente complexo e é multável. Isso refere-se ao
conhecimento psicológico da morte. As palavras e ações
concernentes á morte constituem, em conjunto, um determinado
sistema funerário (KASTENBAUM, ALSENBERG, 1983 apud
SILVA, 2014).

Um dos autores que irá tratar sobre

Ritual funerário uma passagem e uma performance.


Mas ao mesmo tempo ele deixa claro que os mortos não podem de maneira
nenhuma interferir em seu enterro. Assim, todas as ações estão voltadas aos vivos ou
seja; são dos vivos, para os vivos e relacionados à visão de mundo dos mesmos sobre os
mortos e o fenômeno da morte (TARLOW&STUTZ, 2014).

6
Referências

ALARCÃO, J. "A historicidade do encontro com o passado", Máthesis, 5. P 123-142


. 1996.

BARBOSA, C.G.M.A. Significados da morte e do morrer para a equipe


multiprofissional de uma unidade de terapia intensiva adulto / Alessandra Monteiro
Guimarães Carvalho Barbosa. – Dissertação (Mestrado Profissional em Enfermagem) –
Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Ciências da Saúde. 2013. 103 f.

FRANÇA, G. V. Medicina legal. 10.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015. (e-
book).

FREUD, S. Nossa atitude para com a morte. In: Obras psicológicas completas de
Sigmund Freud, volume XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

KASTEMBAUM R. J Death, society and human experience (2a ed). Mosby, St. Louis.
1981.

KEARNES,M; RICKARDS,L. Earthly graves for environmental futures: Techno-


burial practices. Ed. Elsevier. Journal Futures. n. 92. 2017.

MONTAIGNE, M. De como filosofar é aprender a morrer. Ensaios, volume 1. São


Paulo: Abril Cultural, 2000.

MORIN, E. O Homem e a Morte. Editions du Seuil. 1970.

O’SHEA, J.M. Mortuary Variability - Na Archaeological investigation . London:


Academi Press, 1984.

PEARSON. P.M .The archaeology of Death and burial. Texas A&M University
Antropology Series. 2008.

SANTOS, M. C. C. L. Conceito médico-forense de morte. Revista Da Faculdade De


Direito, Universidade De São Paulo, 92. 1997. P. 347-358.

7
SILVA, S.F.D.M. Arqueologia Funerária: corpo, cultura e sociedade. Ensaios sobre
a interdisciplinaridade arqueológica no estudo das práticas mortuárias. Recife:
Editora Universitária UFPE, 2014.

VIEIRA, S.R.R.; TIMERMAN, A. Consenso Nacional de Ressuscitação


Cardiorrespiratória. Arquivo Brasileiro de Cardiologia. v.66, n.6, p.375-402, 1996.

WILLIAMSON, M. Illuminata: pensamentos, preces, ritos de passagem. Rio de


Janeiro: Rocco, 1999.

Você também pode gostar