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O GENOCÍDIO COMO ESPETÁCULO.

NÃO BASTA MATAR, É PRECISO


ESPETACULARIZAR A MORTE
https://www.unicamp.br/iel/site/alunos/
publicacoes/textos/r00007.htm

Práticas de extermínio de corpos que são considerados sem


importância pelo Estado marcaram, e ainda marcam, a história da
humanidade. Povos indígenas, negros, judeus, homossexuais,
pessoas trans, mulheres, dentre outros, são as principais vítimas
de projetos de poder genocidas motivados, geralmente, por
razões políticas, religiosas, étnicas, raciais, valendo-se de
diferentes discursos para isso. Esses discursos, engendrados em
práticas genocidas, são manifestados com um teor salvacionista,
higienista, como um suposto exercício moralista que alega buscar
o melhor para a sociedade. Exemplo disso foi o processo de
domínio e colonização das Américas no final do século XV,
especificamente a partir de 1492, sob práticas de exploração e
extermínio dos povos indígenas, com o etnicídio das suas
culturas – processo que ainda persiste, haja vista a ausência da
ação estatal na preservação da vida dos povos indígenas
brasileiros neste período de pandemia.

Mas, o que está subjacente a essas práticas genocidas? Para


pensar essa indagação seguiremos, brevemente, a questão de
animalidade em Jacques Derrida, baseado no texto “O Animal
que logo sou”. Tal questão possibilita pensar a essência e o
futuro da humanidade, a ética, a política, o direito, os direitos do
homem, o crime contra a humanidade, genocídio etc. Em síntese,
longe de simplificar a ideia do filósofo franco-argelino, para além
de uma crítica da relação da sociedade ocidental com os animais
– de uma ética animal –, é abordada a ideia de humano como
uma primeira identidade que subordina o outro, que legitima o ato
de se sobrepor ao que é estabelecido como diferente. Com isso,
sair da categoria de animal e adquirir uma identidade de “ser
humano”, o faz esquecer que pertence a uma natureza comum e,
para além disso, nas relações sociais qualquer um que ao seu
olhar seja diferente pode acionar a sua soberania, a necessidade
de aniquilar e exterminar o outro – o inumano –, determinar quais
corpos importam e aqueles que não. E isso é corriqueiramente
uma política estatal, é preciso dizer! Esse processo de identidade
e subordinação do outro é um exercício de poder do homem,
colocando-o sob o controle político do corpo, uma vez que exerce
politicamente sobre o outro uma relação de dominação, de
disciplinarização, de controle da vida, da morte, dos desejos, dos
afetos, dentre outros processos de subjetivação. Isso se
complexifica quando o associamos aos princípios neoliberais e
princípios judaico-cristãos hegemônicos.

Saindo de um ponto de vista micro e seguindo para um macro de


Estado, vimos esse exercício de poder nas políticas de mortes,
necropolítica: conceito que se mostra como uma lente fecunda
para pensar esse modelo político homicida que possui bases
legitimadas para atuar sob seus alvos, propositalmente colocados
em condições vulneráveis. Necropolítica foi um termo cunhado
pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para tratar do uso do
poder, sobretudo pelas vias políticas, para o controle da vida e da
morte. Mbembe parte do pressuposto de que a expressão
máxima da soberania reside em grande medida no poder e na
capacidade de ditar quem pode viver e quem pode morrer, ou
seja, usam-se algumas formas de soberania não para exercer a
autonomia, mas para o controle da existência humana e,
sobretudo, ter o direito de matar ou deixar morrer.

Um exemplo da materialização dessa política de morte é o


extermínio dos povos negros, um verdadeiro sangue nosso de
cada dia derramado. De acordo com o Atlas da Violência de
2017, publicado pelo IPEA, 75% dos indivíduos assassinados no
Brasil eram negros (no Rio o percentual é de 78,4%), sobretudo a
juventude negra. Apesar de 56% da população ser negra. Em
2019, 61% das vítimas de feminicídio foram mulheres negras,
segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Na mesma situação de vidas que não merecem ser vividas está a


comunidade LGBTQI+, notadamente a população de pessoas
transgênero, esses “corpos que não importam”. Segundo
pesquisa desenvolvida, em 2019, pela Associação Nacional de
Travesti e Transexuais (Antra), das 124 pessoas trans
assassinadas, 82% eram negras e 59,2% tinham entre 15 a 29
anos. De todas as mortes, 97,7%, era de mulheres transexuais e
67% sobreviviam da prostituição. Essa situação só agrava. Em
monitoramento dos casos, a Associação, em seu Boletim n.
02/2020, aponta nos dois primeiros meses deste ano, entre 1º de
janeiro e 28/02/2020, que o Brasil apresentou aumento de 90%
no número de casos de assassinatos em relação ao mesmo
período de 2019. Somos, na verdade, um dos países que mais
mata a população LGBTQI+, possuindo um aumento do
seu ranking de 55º lugar de 2018 para o 68º em 2019.

É preciso ressaltar que a necropolítica não somente se


estabelece nas mortes objetivas, mas simbólicas também, sob
estratégias muitas vezes veladas, como a recusa de
representatividade, na religião, no esporte, na estética, os
epistemicídios, bem como na suspensão de políticas de
reparação histórica, na negligência dos direitos trabalhistas. É a
arte de deixar morrer paulatinamente quando encarcera o povo
pobre e preto, na ausência de acesso aos direitos sociais, como à
saúde, lazer, cultura, educação, dentre outras estratégias da
política de morte.

Tudo isso em nome de quê? De um modo de vida de classe


média hipócrita com complexo de milionário? De garantir aquela
viagem à Disney com a família e empregada pobre e preta para
cuidar ou dar conta, ou algo que dê a noção de se livrar dos
filhos? De garantir o posto do “tiozão humorista” que regurgita
piadas que são verdadeiras manifestações homofóbicas no
churrasco em família? De legitimação de branquitude? Sabemos
que as indagações são infinitas, e a construção e manutenção
dessa subjetividade (branco, heterossexual, de família tradicional,
cristão, boa pinta, humorado…) em supremacia aos nascidos
para morrer, que dia a dia estão no tiro ao alvo, estão em
consonância com os interesses estabelecidos pelo necropoder.

Como se não bastasse matar os corpos que são determinados


como inúteis, ainda estão submetidos à espetacularização. A
morte entra em cena desde a grande mídia nacional até as redes
sociais da população. Com repasses, likes, compartilhamentos,
as imagens vão se propagando e entram no cotidiano da
sociedade, estabelecendo, assim, uma relação de horror,
curiosidade, fascínio, denúncia ou mesmo pelo simples fato de
mostrar-se e manter-se informado. Essa relação, somada ao
excesso demasiado de consumo de imagens, pode também
demonstrar uma necessidade de exposição, refletindo, assim, em
experiências visuais desumanas e até mesmo antiéticas. Nesse
sentido, vale a pena questionar qual o sentido de fazer da morte
um espetáculo? O que essa espetacularização diz sobre a nossa
existência?

À primeira questão, como um primeiro ensaio para resposta, nos


valeremos da crítica apresentada por Guy Debord em seu livro A
sociedade do espetáculo. Embora seja um texto referente ao
século XX, ressaltamos ainda a sua contemporaneidade,
sobretudo no que tange ao espetáculo social que vivenciamos
permeado por um excesso de imagens e nossa reação mediante
esse contato.

Ainda que o registro de imagens possibilite conservar e eternizar


um momento, um fato, um fenômeno, no caso específico – no
contexto do necropoder – dos corpos que são determinados
como inúteis, esse objetivo pouco se concretiza, no mínimo, por
duas razões. A primeira corresponde ao fato da nossa relação
com a morte, pela qual o fascínio com a imagem de um
assassinato pouco será visto repetidamente pela mesma pessoa
e, mesmo que uma única visualização seja suficiente para
eternizar e gravar o ato em nossa memória, há uma probabilidade
de esquecimento devido ao excesso de outras imagens com
diversas temáticas que serão produzidas concomitantemente. Há
uma relatividade nisso, não podemos desconsiderar. Mas, esse
excesso de exposição, principalmente de um estado vulnerável –
o da morte –, é uma conduta de vilipêndio, ou seja, um
desrespeito com quem já perdeu a vida e seus familiares; e isso é
uma conduta social e juridicamente inaceitável, podendo assim
se configurar em uma responsabilização criminal a ser
enquadrada no artigo 212 do Código Penal.

A segunda razão diz respeito a outro efeito que o espetáculo


dessa realidade vai ocasionar. Não há limites, não há crítica para
esse excesso de veiculação de imagens, seja para identificar a
veracidade do fato, seja para reflexão e contestação das
condições em que houve a negligência com a vida; e tratando-se
dos corpos que não importam, há uma intencional naturalização,
banalização e irracionalização, certamente uma estratégia de
captura do necropoder, por meio de controle de imagens. Um
caos rentável na medida em que sem a crítica, não há
contestação do direito à vida e punição pela negligência do
Estado. Assim, há na naturalização, banalização e
irracionalização uma ‘coisificação’ da nossa existência, isto é, um
desprezo visível da vida pelo excesso de visualização. Diante
disso, o pouco que vai restando é aparvalhar-se, subitamente
indignar-se e lamentar a morte depois que a tragédia aconteceu.

Manuela Garcia de Oliveira é doutoranda em Educação na


Unesp, campus de Marília (SP).

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