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O preconceito diante das diferenças

No tema anterior buscou-se entender os processos migratórios que de modo geral acentuam-
se com o processo de globalização. Dessa forma, tentamos entender como tais processos
constituem uma sociedade mundialmente diversa, pois como sabemos, os comportamentos,
hábitos e atitudes tecidos, a principio, em ambientes sociais, como a família, a igreja e as
escolas, determinam aquilo que somos, tornando-nos assim seres singulares e diferentes.

Somos, portanto, seres sociais capazes de produzir, por meio de formas de linguagens,
significados e sentidos, nossa própria cultura. Se sociedade diz respeito ao modo como
organizamos a vida coletiva e ao modo como essa coletividade se estrutura como totalidade
ordenada, a cultura por outro lado fala do modo como atribuímos significado a nossa
existência em sociedade.

A grande questão é que esta realização, tanto social como cultural, acontece delimitada por
territórios que demarcam, ganham sentido cultural e constroem a nossa identidade social e
cultural, ou seja, aquilo que somos. Mas nesse movimento social e cultural construímos
sociedades totalmente diferentes e singulares, que nos distinguem de outras coletividades
humanas.

No momento em que migramos de um território para outro em busca das realizações pessoais,
levamos em nossa bagagem tudo aquilo que nos constitui e nos torna diferentes. Portanto,
quando essas diferentes culturas se encontram em um mesmo lugar, aquilo que deveria nos
aproximar, muitas vezes nos separa.

Como diz Michel de Certeau (2002), nomear foi uma das primeiras formas que o homem
desenvolveu para demarcar e tomar posse de um território e dominá-lo. Nomear é dar
sentido, mas também estabelecer as diferenças e estabelecer fronteiras.

Portanto, tratar das diferenças é tratar das relações de poder de domínio, de mando e
soberania. É olhar as lutas, guerras que se deram historicamente e ainda hoje são movidas por
alguns grupos humanos sobre outros, alguns que se consideram superiores a outros. Tais
atitudes, para além das guerras e exclusões políticas e sociais, estabelecem preconceitos.

Contra preconceitos e discriminações que se constituem pelas diferenças é que temos lutado
todos estes anos. Chegamos ao ponto de ter de declarar quais eram os direitos humanos, ou
seja, como parte da humanidade, todos tínhamos direito.

Crimes bárbaros e hediondos foram cometidos em plena Segunda Guerra mundial em nome
de uma superioridade racial. Judeus e homossexuais foram colocados em condições
subumanas, isso quando não eram assassinados de modo cruel. Como sabemos, o Holocausto
foi a maior tirania que a humanidade já presenciou. Dessa maneira, qualquer prática que
caracterize atos de exclusão, desrespeito aos direitos e às liberdades ou ainda atentado à
dignidade humana deveria ser extirpado da face da terra.

Para entendermos melhor esta história, discutiremos a seguir alguns artigos extraídos da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada pela ONU em 1949, logo após a Segunda
Guerra Mundial, em que morreram aproximadamente 60 milhões de pessoas, grande parte
delas vítimas da intolerância, discriminação e racismo. Nos primeiros artigos da Declaração dos
Direitos Humanos nós encontramos:

Artigo 1:
Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 2:

I) Todo o homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer
outra condição.

II) Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou
internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território
independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de
soberania.

De maneira geral, tais artigos não se cumprem, pelo contrário, os casos de discriminação são
evidentes e comuns em praticamente todos os continentes. Conforme documentos da
UNESCO pessoas são vetadas na busca por um novo emprego devido à cor de sua pele; as
mulheres têm salários inferiores aos dos homens, mesmo quando exercem funções
semelhantes; árabes encontram dificuldades para entrar no ocidente por serem vistos como
potenciais terroristas, mesmo que não houvesse qualquer ligação política com grupos radicais;
idosos sofrem exclusões no mercado de trabalho; hispânicos são menosprezados e
destratados ao tentarem entrar em países ricos.

Retratamos nesses exemplos apenas situações do cotidiano para percebermos que a


intolerância está muito mais perto do que pensamos. Está, por exemplo, na atitude pedante
de pessoas que teimam em indicar o elevador de serviço para pessoas negras, apenas pelo
fato de imaginarem que esses cidadãos são sempre serviçais ou subalternos. Acontece em
situações nas quais as pessoas do interior são tratadas com menosprezo por suas origens mais
humildes, como se a relação metrópole e cidade de pequeno porte já não estivesse superada
em virtude do avanço das tecnologias. Ocorre também quando autoridades ultrapassam os
limites de suas prerrogativas funcionais e violam os direitos constituídos de pobres cidadãos.

O filme Crash — No Limite, grande vencedor do Oscar de 2006, é um riquíssimo relato destes
encontros e desencontros que acontecem cotidianamente em nossas vidas e que retratam o
descaso, o preconceito, a mesquinharia e a premente intolerância contida na cabeça e no
coração das pessoas. E não se digam imunes a estas situações, afinal, estamos sujeitos a
momentos em que podemos discriminar alguém.

O que me parece bem interessante no filme do diretor e roteirista Paul Haggis é que não há
protagonistas, nem mocinhos nem heróis, muito menos vitimas. Todos são discriminados,
todos são discriminadores. Árabes olham com desconfiança os negros, orientais ofendem
hispânicos, brancos atentam violentamente contra os direitos civis de qualquer grupo étnico.
Ao assistir a esse filme, temos a possibilidade de pensar e repensar e, principalmente, rever
muitos de nossos conceitos, preconceitos e práticas.

Desigualdade social, desrespeito, fanatismo étnico e religioso, preconceito racial e corrupção


são apenas alguns dos importantes temas que o filme consegue abordar durante quase duas
horas de projeção. Levanta de forma inteligente, sem cair em clichês ou chavões
desnecessários.
Os personagens do filme são bem variados: desde uma família de descendência árabe até um
casal da burguesia da cidade; dois marginais negros dos guetos; um astro de cinema; policiais
corruptos e um casal de classe média baixa com uma filha. Nenhum dos personagens, no
entanto, é estereotipado. Existe profundidade psicológica em cada um deles, o que os faz ter
vida própria e personalidade.

Este é um filme que grosso modo consegue entrelaçar o cotidiano de todas essas pessoas
tocando em temas étnicos e raciais, como a xenofobia e o racismo. Versa também o quão
maléficos podem ser estas atitudes para a sociedade como um todo.

O filme, de certo modo, define o nosso tempo como incerto, ou ainda, como afirma Giddens
(1996), a era das incertezas artificiais, em quea imprevisibilidade de um "mundo
descontrolado" concorre para a fragmentação da vida. Mas a própria noção de incerteza serve
para que percebamos que não existe um roteiro preestabelecido, por mais "provável" que ele
possa parecer.

Nesse sentido, toda tensão diante do estranho e do incerto, até aqui retratada como parte de
uma sociedade global ou mundial, oferece outros caminhos que ocorrerão por meio de novos
sujeitos políticos, dentre eles os movimentos sociais que, com ações consistentes (dialógicas e
multiculturais) e amparadas em um "acordo" com sentido emancipatório, possam ser o
"outro" da globalização e levem à superação do desrespeito, fanatismo étnico e religioso, toda
forma de preconceito, corrupção e desigualdade social. Mesmo ainda sendo uma utopia, um
bom exemplo é apresentado por Boaventura, em sua conferência no 2º Fórum Social Mundial,
em 2002, quando nos diz que "todas as grandes ideias, antes de se realizarem, foram
consideradas utópicas".

Enfim, nós seres humanos, como um todo, precisamos perceber que nossa cultura nem é pior
nem melhor do que as outras existentes. Somos apenas diferentes e para viver em um mundo
melhor, precisamos aprender a conviver com nossas diferenças.

Dessa forma, talvez seja interessante tratarmos destas questões em nossa sociedade. Será que
no Brasil existem diferenças? Se existem, já somos capazes de respeitá-las? Afinal, como
agimos diante do diferente?

Referências

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

GIDDENS. A. Para Além da Esquerda e da Direita. São Paulo: Edunesp, 1996.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia das Nações Unidas, 1948.

SANTOS, B. S. Por Uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos. Disponível em:


www.dhnet.org.br/direitos/militantes/boaventura/boaventura_dh.htm

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