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Capulanas Cia de Arte Negra

e Salloma Salomão Jovino da Silva


(Organizadores)

Negras
InsUrgências
Teatros e dramaturgias negras em São Paulo:
perspectivas históricas, teóricas e práticas

1ª Edição

São Paulo
Capulanas Cia de Arte Negra
2018
Ficha Técnica
Organizadoras: Salloma Salomão Jovino da Silva e
Capulanas Cia de Arte Negra: Adriana Paixão, Débora Marçal,
Flávia Rosa, Priscia Obaci.
Autores: Salloma Salomão Jovino da Silva, Adriana Paixão,
Carol Rocha Ewaci, Flávia Rosa, Débora Marçal, Dione Carlos.
Edição e preparação: Neide Almeida
Capa, projeto gráfico, diagramação
e colagens: Cassimano
Fotos: Sheila Signário e Naná Prudêncio
Revisão: Neide Almeida e Léia Guimarães

apoio:

realização:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Vera Lúcia Marques CRB-8/9263

N385
Negras insurgências: teatros e dramaturgias negras em São Paulo, perspectivas
históricas, teóricas e práticas / Organização Capulanas Cia de Arte Negra;

Salloma Salomão Jovino da Silva – São Paulo : Ciclo Contínuo, 2018.

232 p.; 16 x 23 cm.


ISBN 978-85-68660-49-2

1. Teatro 2. Teatro brasileiro 3. Dramaturgia 4. Resistência negra 5. Cultura Afro-


Brasileira 6. Teatro - São Paulo [Estado] 7. Negro

CDD 792.9
Sumário
Apresentação
por Salloma Salomão 9
1. A cena paulista contemporânea de teatro e
dramaturgia negra e o racismo antinegro
por Salloma Salomão & Dione Carlos 21
2. Ialodês e Capulanas - Um oceano de saberes Femininos
por Dione Carlos 49
3. Por uma sociologia do teatro negro femini-
no das Capulanas: indícios e percursos
por Adriana Paixão 57
4. Vozes e palavras bordadas de mulheres negras: a
construção poético-dramatúrgica Capulânica
por Flávia Rosa 65
5. Corporalidades Negras além da cena: em busca da
saúde física e mental das mulheres negras periféricas
por Carol Ewaci 79
6. Como olhar os corpos negros na cena paulista contemporânea?
por Débora Marçal 89
7. Teatro negro: seus valores filosóficos antigos,
modernos e contemporâneos
Por Salloma Salomão 97
8. Oroonoko: o teatro ocidental e as pessoas
africanas escravizadas e livres
por Salloma Salomão 129
9. Práticas dispersas, potentes e antigos jogos de
poder, o saber fazer cultura negra em São Paulo
por Salloma Salomão 157
10. Ainda sobre estéticas e éticas teatrais
negras a partir de negras experiências distintas
por Salloma Salomão 199
Agradecimentos 229
Dedicatória 230
Apresentação
por Salloma Salomão

Quanto à contribuição dos negros para o movimento da


história universal, basta-nos citar as invenções técnicas
africanas do Paleolítico, a importância do ouro e dos ne-
gociantes do Sudão no comércio europeu-asiático da Idade
Média, a participação do capital-trabalho negro no desen-
volvimento da Revolução Industrial e o papel planetário de-
sempenhado pelos afro-americanos na formação do sentido
artístico desde meio século para cá. Ao dizermos isto, não
somos movidos por nenhum complexo, nem de superioridade
nem de inferioridade, mas por um complexo de igualdade.
Não negamos de resto as influências recentes recebidas pe-
las Áfricas quando elas são cientificamente comprovadas,
como seja o caso da introdução do camelo, da mandioca e
do tabaco americano, etc. Dizemos porém que estamos far-
tos da história racista, sob qualquer forma que se apresente.

Joseph Ki-Zerbo

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Pois bem, a modernidade quebra com a linha de desenvolvi-
mento clássico, porque introduz na civilização ocidental o
gosto pela emoção, pelo movimento, pela revolução. Mais
que isto, significa a expansão mesma da noção de civiliza-
ção para além do (ocidente), incorporando elementos de
outros povos e, no limite, incluindo esses mesmos povos
enquanto criadores de civilização.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato ple-


no com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar,
a ninguém pediram convite; a mim pediram. Aborreci-me. É
triste não ser branco.

Lima Barreto

Dizemos reiteradamente que também “estamos fartos de


histórias racistas” no Brasil, mas elas não cansam de brotar de
mentes supostamente relativistas que insistem em resenhar ou
diminuir nossa importância na formação da humanidade, da so-
ciedade contemporânea, dos estados nações em suas províncias,
aldeias e cidades. Recentemente alguns líderes nos quiseram
eliminar física e psicologicamente. Hoje alguns doutos intelectu-
ais novamente tentam nos sumariar em estereótipos. Estamos
fartos de narrativas e memórias das cidades que nos negam de
forma material e simbólica; excedidos de discursos que nos fazem
parecer surgir por obra da natureza e não nos reconhecem como
sujeitos que se constituem em determinadas realidades social,
econômica e política.
Estamos enfastiados de pegar pelas mãos gente bruta e vio-
lenta que se faz passar por ignorante dos feitos, episódios, atos
civilizadores épicos já descritos e enfatizados pela erudição milenar
negra. Basta de recontar palavra por palavra, verbo por verbo, signo
por signo, os processos históricos de desumanização que nos
atingem como projéteis discursivos. Basta de desvelar seus meca-
nismos dinâmicos, em sua impressionante plasticidade e mutação.
Teses penetram em nossas peles e sensibilidades, se alojam na
alma dos mais frágeis entre nós. Símbolos se enraízam de forma

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doentia e quase irreversível, gerando sofrimento psíquico-físico,
quedas internas e autonegação.
Ainda hoje é necessário ouvir e difundir, como se fosse emplas-
tro terapêutico de ervas raras, as críticas sofisticadas do historiador
africano Joseph Ki-Zerbo, nascido na ainda colônia francesa de Alto-
-Volta e falecido no atual país livre Burkina Fasso, na África do oeste.
Com a publicação de História da África negra (1972), História geral da
África (1982) e Para quando a África (2009) ele nos ajudou a com-
preender e localizar a gênese do modelo hegeliano de história – na
régua cronológica ou linha do tempo –, que nossos professores de
ensino fundamental, médio e superior ainda hoje utilizam em sala de
aula para demonstrar e fixar, nas nossas membranas cognitivas, o
chamado “processo evolutivo do ocidente branco e cristão” e ainda
o “fardo do homem branco”.1
Então, nosso empenho coletivo como artistas-pesquisadores
das culturas e das linguagens social e politicamente reivindicadas
como negras tem sido erodir as bases dessa fortaleza que parecia
inexpugnável. Mostrar sempre e sempre o pensamento racista
construído pelo colonialismo geral e pelos arquitetos dos colo-
nialismos internos nas sociedades escravistas. Mas será apenas
essa nossa tarefa?
Foram intelectuais negros e negras que construíram as catego-
rias cultura negra, diáspora negra, modernidade negra. Não fosse isso
talvez continuássemos a recontar a história da civilização humana,
dos estados nações, da modernidade como se fosse um predestino
branco, masculino, divino. O tal “fardo do homem branco”.
Também é necessário entender as táticas de reversão semântica
e amplificação dialética. É importante compreender os processos ul-
tracomplexos de recriação cultural, pelos quais ativistas antirracistas
têm encontrado, por exemplo na linguagem teatral, um espaço abs-
trato para mobilizar imaginários proscritos pela mentalidade eurocên-
trica excludente e racista.
Nesse sentido, Teatro Negro autonomeado nas sociedades de
história colonial é, antes de tudo, teatro político, porque entende
bem das formas triplas de dominação de classe, raça e gênero.

1  Em palestra na USP recentemente, novembro de 2018, ouvi perplexo as recomendações de


um professor branco, de origem francesa, ao orientar os alunos que recorressem à linha do
tempo quando tivessem alguma dúvida a respeito de processos históricos globais. Sabemos
que a noção hegeliana de dividir o tempo da humanidade entre antes e depois do surgimento
da escrita guarda em si a essência do eurocentrismo histórico e cultural.

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Seus agentes são aqueles e aquelas que então definem o quão
necessário é recompor e atualizar as possiblidades de atribuir novo
sentido à noção de política nas sociedades pluriétnicas, tratadas
como se fossem monoculturais, como é o caso da sociedade bra-
sileira. Desconstruir o conceito de cultura nacional una, elaborada
por ideólogos da elite branca, é antes de tudo conduzir a audição
para as vozes historicamente silenciadas e cavar uma morada
digna para ossadas insepultas que secam ao sol.
Este livro é uma espécie de resumo e balanço de um conjunto
de experiências, leituras e interpretações, escritas e reescritas pro-
cessuais de pessoas negras, que refletem criativamente sob e sobre
sua condição na cidade de São Paulo. Uma província-estado que
perseguiu, de forma racional e doentia, o branqueamento racial,
num país-nação tido como democrático, belo e tolerante e que
busca esquecer uma vivência marcada por três séculos de escravi-
dão colonial, um século de escravidão sob uma monarquia tropical
e três ditaduras durante seu tempo republicano.
Redundaria dizer que a imagem de São Paulo branca, italiana,
imigrante e rica esconde uma realidade complexa, desigual, mul-
ticultural e multiétnica. E que, por trás dessa imagem de pujança
de “locomotiva econômica”, há muita violência, racismo e discrimi-
nação. Há também muita arte não catalogada, muito saber fazer
criativo e resiliente.
Nós, homens negros e mulheres negras moradoras da Zona Sul
de São Paulo, nos fizemos artistas; ou seja, encontramos plataformas
nas linguagens criativas e devidamente catalogadas pelo mundo oci-
dental em expansão, formas de expressão socialmente valorizadas.
Seria esta a nossa dialética original: nós, negros e negras brasileiras,
usarmos a língua e os sistemas comunicativos dos nossos antigos
e atuais dominadores para pensar rotas de fuga e formular hipóte-
ses sobre nossa própria humanidade do passado e do presente? E
quando emergimos do caos da existência, jogamos orikis no futuro.
Quando dizemos artes negras, exatamente do que estamos
falando? Em especial, o que se entende por Teatro Negro hoje?
Há um Teatro Negro no Brasil? O que o diferenciará das demais
expressões? Como lidar com textos teatrais escritos, geralmente
por “não negros (as)”, sobre os negros(as)?
Qual o lugar de Arena Conta Zumbi na experiência cultural do
Movimento Negro contemporâneo? Quantos e quais textos teatrais
escritos por autores negros podem ser identificados no século XX?

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As artes dramatúrgicas e teatrais, as quais aqui enunciamos e
carregamos em forma de estandartes poéticos, trazem segredos
guardados, criptografias aksunitas como enunciados negros do
mundo; projetam imagens nas nuvens e rotas entre vales e cidades
em escombros. Artes que se traduzem em sussurros quase subsu-
midos, meias falas esgrouvinhadas em três tempos, arremessan-
do feixes lunares libertários no pretérito próximo. São criações que
organizam um entendimento do mundo na medida em que ele é
apreendido. Sendo assim, evidente que não obtêm – e não poderia
ser de outro jeito – o mesmo reconhecimento público que aquelas
apresentadas por grupos oriundos de setores sociais médios ou
abastados brancos.
Isso não é um lamento, mas uma constatação da discrimina-
ção sociorracial no âmbito da cultura artística. O lugar social dos
praticantes de artes em suas múltiplas linguagens diz muito, não
apenas de suas visões estéticas, como também antecipa a maneira
como suas produções são apoiadas, percebidas e reconhecidas
pela sociedade mais abrangente e pelas instituições culturais públi-
cas e privadas. Mas diz também de como são silenciadas, despre-
zadas e rechaçadas pelas elites artísticas e culturais.
Na passagem do século XIX para o XX, no nascer da República,
Lima Barreto, escritor autodefinido como mulato, percebeu e de-
nunciou o engodo, por meio de uma contundente literatura enga-
jada. Mostrou as classes subalternas localizadas em hierarquias de
ferro, sob oligarquias de cafeicultores, com seus títulos de nobres
europeus no exílio tropicalmo e suas medalhas de ouro e dólares.
Ele também recebeu a chancela de naïf desprezível, ficou assim até
ser “redescoberto” por cândidos, nicolaus e moritzs.
De lá para cá muita coisa mudou; outras nem tanto. E, então, con-
tinua sendo necessário avançar sobre os escombros e tornar mais
visível esse contrassenso comum, se possível revelando os desvãos
e resistências ante a tendência de apagamento e sobreposição, que
agora sabemos ser regra a todo processo de construção e manuten-
ção de hegemonia política, racial e social. Tal como Lima e seu an-
tecessor Luiz Gama fizeram, precisamos falar sobre a continuidade
das discriminações culturais e relações raciais de poder, para colocar
foco simultaneamente em nossas próprias inovações e nos vícios das
elites brancas brasileiras, agora reconfigurados em novas eugenias.
Aprendemos a piscar os olhos, de quando em quando, para
também enxergar aquilo que a norma cotidiana esconde e vela.

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Nossos motes têm sido teatralidades, dramaturgias, musicalidades
e diferentes formas expressivas, em que criadores, realizadores e
espectadores negros e negras, principalmente de classe subalterna,
são protagonistas, ainda que marginalizadas, depreciadas ou invi-
sibilizadas pelas instituições oficiais de cultura e seus representan-
tes, geralmente tidos como bem-intencionados.
O fragmento citado no início deste texto, retirado da obra de
Antônio Sergio Alfredo Guimarães, um dos intelectuais brancos
mais engajados na luta antirracista no Brasil, não deixa dúvida.
Desde Artur Ramos, passando por Gilberto Freyre, Ulisses Pernam-
bucano, Antônio Olinto e René Ribeiro – e até mesmo os inatacá-
veis Florestan Fernandes e Lilia Schwarz –, parece necessário es-
tarmos sempre muito atentos aos hiatos, hífens, pausas e silêncios
curtos. Cifras de permanente negação, embora pareça o contrário.
As culturas negras seguiram seus próprios desígnios na forma-
ção do mundo ocidental; primeiro estigmatizadas pelas culturas
dominantes brancas, depois selecionadas em filipetas para cum-
prirem agendas previamente determinadas. Embora residuais e
fragmentárias, são portadoras de valores civilizatórios não previstos
na mentalidade e nas cosmovisões europeias e não totalmente
assimiláveis na construção eurocêntrica do pensamento contem-
porâneo. Guimarães, então, distorce a lente e erra o foco.
Falamos em culturas negras no Brasil e em São Paulo, capital
e arredores, nas fronteiras da real província. Temos em mente que
de fato há valores, conceitos, práticas, modos de ver ou visões de
mundo que as imposições da cultura dominante lusitana – que
formou a espinha dorsal da suposta cultura nacional unificadora
– não foram capazes de suprimir, ou mesmo domesticar. A noção
de identidade nacional legada por intelectuais e artistas das elites
brancas, quase sempre suscitaram vigorosas interrogações entre
a intelectualidade negro-mestiça. As obras de músicos e poetas
pretos como Luiz Gama e literatas como Maria Firmina dos Reis,
Auta de Souza e Virginia Bicudo formam longas redes de descon-
fiança criativa, interpretações dissidentes da brasilidade moderna e
desvelam a modernidade reacionária.
Ecoam em nós a noção de folk-negro construída simultanea-
mente por Manuel Querino no Brasil e Edward Du Bois nos EUA
em fins do século XIX. Mas há, também, negritudes e culturas
negras assumidas em todo o atlântico, ao longo do século XX, que

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nos atravessam e marcam. Nós as apreendemos por terem sido
reformuladas como campos teóricos da contemporaneidade afro-
-diaspórica no Brasil, por figuras como Edson Carneiro e Beatriz
Nascimento, Muniz Sodré, Abdias Nascimento e Elisa Larkin do
Nascimento nos tempos mais recentes.
Nosso interesse neste instante recai sobre o que o ocidente
chamou de teatro e seus escritos, a dramaturgia. Mas não estra-
nhe se textos orais, folguedos, teatros rituais ou danças dramáticas
entrarem nesse bailado negro des-ritmado, cacofônico e selvagem.
Qual o papel exercido pela expressão teatral no universo das
práticas artísticas, culturais e políticas negras na África, na diáspora
e no Brasil no século XX? Que textos de autores e autoras negras
podem ser pesquisados, lidos, apropriados, difundidos?
Um teatro é negro quando coloca a perspectiva diaspórica afri-
cana como ponto de partida e chegada. Quando tem consciência
que nem o negro nem o africano existem por si e para si mesmos.
Quando é dramático, sarcástico e cômico; quando sabe ser sincrô-
nico, dissonante e diacrônico; é simpático mas diacrítico. Um teatro
é negro quando é capaz de virar as costas e tapar os ouvidos a
tudo que se espera de um Teatro Negro.
Pode ser a vazão dos que vivem à margem do consumo do
teatro para entreter; eles é que podem inventar um teatro que não
dependa dos espaços convencionais de encenação. Pode ser um
teatro fugaz, calcado na intervenção da vida cotidiana da metrópole
ou de qualquer outro lugar.
Um teatro que abra mão da busca do inusitado, porque muita
coisa nesse sentido já foi experimentada. Efêmero, fundado em um
desejo insuportável de viver para além dos muros do conformismo
cultural, social, político e estético. Um teatro para revolver o lixo, os
cadáveres, os micróbios, os seres rejeitados da vida urbana.
Um teatro com ou sem espaço próprio, que não dependa dele,
mas pode tê-lo para vasculhar o entulho das relações interpessoais,
inter-sociais, internacionais e inter-raciais. Revolver o lixo não é re-
movê-lo, é colocá-lo ao sol para que feda, para que exale. Um teatro
capaz de dramatizar nossos conflitos, dando alguma dignidade para
as migalhas que caem da mesa no chão da política partidária e da
política formal onde se digladiam, na disputa por um alimento cujo
preço é a subserviência das “lideranças” negras cooptadas.
Um teatro negro capaz de teatralizar as expressões, gestos e

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textos da Ministra Matilde Ribeiro em cadeia nacional de TV, tentando
explicar aquilo que ninguém queria ouvir. Ela já fora julgada ao nascer.
Um teatro negro que não se importe em ser atacado, pois já é
em si uma reação.
Um teatro negro capaz de teatralizar a política social de Sergio
Cabral ou qualquer outro governante que tenha mandado caçar
com fuzil e câmera os negros mestiços em safáris urbanos. Um
negro drama que incluía helicópteros e armamento pesado sob
nossos olhares estarrecidos e aplausos da mídia ressentida com o
assassinato do jornalista negro mestiço, especializado em meter o
pé na lama. O próprio descalabro do ex-rei-governador, hoje metido
na cadeia, pode ser teatralizado.
Um proeminente grupo teatral da cidade fez uma brilhante e
honrosa carreira nos últimos 15 anos, mais ou menos, com textos
autorais incialmente baseados em depoimentos e na introdução
de elementos da cultura negra urbana, designada hip hop; aliás foi
pioneiro nesse casamento estético-político até então insondável no
fazer teatral da metrópole e do país. Por esse grupo passaram muitos
do criadores atuais de teatro negro paulistano, a saber, Estrela Dalva,
Eugênio Lima, Jé Oliveira, Ícaro Rodrigues, João Nascimento, etc.
Todos que tivemos a oportunidade de entrevistar foram unânimes
em reconhecer a importância do Núcleo Bartolomeu de Depoimen-
tos nos seus processos formativos e narram com afeição e carinho
a memória disso e destacam a figura da diretora Cláudia Schapira.
Entretanto foi justamente esse grupo que ao tentar construir uma
narrativa sobre a cultura nacional brasileira reproduziu, quase sem
alterações, a tese da mestiçagem harmoniosa de Gilberto Freyre,
desconsiderando quase por completo qualquer percepção crítica do
negócio e do racismo antinegro e antindígena.
O que se tem assistido e estimado é uma teatralidade negra
múltipla e carregada de conteúdos políticos sobre relações de classe,
raça e gênero e ao mesmo tempo atravessadas por valores civiliza-
tórios africanos ressignificados e atualizados, imaginários modernos
afrodiaspóricos reconfigurados para textos e corpos. São também
micro histórias e ficções fragmentárias e quase sempre imcompletas,
constructos abstratos inacabados, erguidos para solapar e interditar
as narrativas já rotas, mas ainda válidas e saturadas da centralidade,
superioridade e unicidade da visão ocidental, cristã, branca, hete-
ronormativa e masculina. São, sobretudo, elaborações diversas em
torno da autoconstrução de mulheres negras, o genocídio da juven-

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tude negra, as microfissuras do racismo interpessoal e estrutural, os
efeitos causados por subjetividades adoecidas pela desigualdade
racial e pela misoginia.
O que se pode ver, além da luta por existir em um espaço tra-
dicionalmente branco e privilegiado é a constante busca por sofis-
ticadas simbologias sonoras, visuais, gráficas, imagéticas, coreográ-
ficas, poéticas e corporais de origem negroafricanas. Elementos do
show musical negro combinados com conteúdos que se poderia
chamar de teatralidades pós-dramáticas decoloniais e aplicadas a
contextos étnico-raciais. Isso não é pouco, uma vez que a cena de
teatro e dramaturgia negra antes restrita às capitais do sudeste e
Salvador, agora transborda e pinta de preto e vermelho o país.
Enfim, trata-se de um Teatro Negro quando seus criadores e
criadoras evocam para si e suas perspectivas estéticas uma origem
negro-africana. Os protagonistas dessas artes se autodefinem
como negros e negras e é assim que também diferenciam suas
obras, artes negras. Porque se ser negro foi transformado em algo
totalmente negativo no processo de formação da sociedade con-
temporânea mundial, e especialmente no da brasileira, esta é então
uma história cultural de InsUrgência CriAtiva e ReVersão política.
Nossas reflexões estão configuradas aqui de maneira tal que o
leitor pode escolher a sequência que considerar mais agradável ao
seu interesse. No capítulo 1, “A cena paulista contemporânea de
teatro, dramaturgia negra e o racismo antinegro”, Salloma Salomão
Jovino da Silva se dedicou a apresentar um breve panorama sobre
grupos e pessoas negras fazedoras de teatro na cidade de São
Paulo, partindo de um olhar periférico e da cena criativa trans-
bordante capturada no ano de 2018. Também apresenta de forma
crítica, ao público não iniciado, aspectos da trajetória das Capula-
nas, suas relações e principais influências.
O capítulo 2, “Ialodês e Capulanas: um oceano de saberes femi-
ninos”, produzido pela dramaturga Dione Carlos, traz observações
sobre o mais recente trabalho de pesquisa das Capulanas como au-
toconstrução, temporalidade e geografia, pensares, escritas e falas de
mulheres negras no teatro paulista, refletido sobre a fotografia tirada
do processo atual que resultou no espetáculo “Ialodês”.
No capítulo 3, “Por uma sociologia do teatro negro feminino das
Capulanas: indícios e percursos”, Adriana Paixão reconstrói, por meio
de indícios, os trajetos silenciados de mulheres negras no saber fazer
do teatro negro brasileiro, a partir da experiência da Cia Capulanas.

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Flávia Rosa, no capítulo 4, intitulado “Vozes e palavras borda-
das de mulheres negras: a construção poético-dramatúrgica Capu-
lânica”, nos apresenta sua perspectiva interna das construções da
Cia Capulanas, numa escrita transbordada de poesia, por meio da
qual reconfigura a trajetória do grupo. Síntese unificada em um tipo
de escrita que transita pela narrativa pessoal focada na intersubje-
tividade sem perder os conteúdos históricos e estéticos que cons-
tituem o repertório do grupo.
O capítulo 5, “Corporalidades negras além da cena: em busca
da saúde física e mental das mulheres negras periféricas”, traz a
contribuição de Carol Ewaci, dançarina que emergiu da cena da
cultura hip hop, advinda da zona leste. O deslocamento geográfi-
co já seria em si um dado sobre as dificuldades de circulação de
pessoas pobres em uma cidade que nos impõe inúmeros limites.
Os corpos negros femininos, suas sensibilidades e histórias, são
evocados como suportes criativos e mantenedores da existência e
saúde de si e dos outros. A mulher genitora, doadora de vida e co-
nhecedora das várias mortes impostas pelo mundo social e pelas
determinações da biologia.
No capitulo 6, “Como olhar os corpos negros na cena pau-
lista contemporânea?”, a atriz e dançarina Debora Marçal fala
sobre danças negras como um ponto além da demonstração da
beleza como um dado de obviedade. Configura a historicidade
dos corpos dançantes de mulheres negras no Brasil e as possi-
blidades abertas pela cena teatral contemporânea em São Paulo,
assim como as dificuldades e limitações decorrentes.
O capítulo 7, “Teatro Negro: seus valores filosóficos antigos, mo-
dernos e contemporâneos”, é dedicado a refletir sobre os valores ci-
vilizatórios e cosmovisões africanas e afrodiaspóricas na construção
do mundo e do Brasil contemporâneos. Salloma Salomão Jovino
retoma a reflexão sobre os legados africanos presentes na diáspora e
busca pensá-los a partir das formas e signos da negritude brasileira.
No Capítulo 8, “Oroonoko: o teatro ocidental e as pessoas afri-
canas escravizadas e livres”, Salloma Salomão se dedica a localizar
de forma mais precisa os procedimentos pelos quais foram apre-
endidos os corpos negros na cena europeia e na expansão oci-
dental, ligações simbólicas e políticas entre africanos e europeus,
desde o século XVI. A partir de fragmentos de discursos recupera-
dos na literatura histórica e antropológica, sobre a paisagem teatral
europeia durante o tráfico negreiro.

Negras InsUrgências 18 Capulanas Cia de Arte Negra


No nono capítulo, “Entre práticas dispersas, potentes e antigos
jogos de poder: o saber fazer cultura negra em São Paulo”, Salloma
Salomão intenta trazer a lume as práticas e conceitos dos teatros
de grupos negros e seus impasses, tensões, cisões e superações.
Elucida provisoriamente as conexões entre temporalidades drama-
túrgicas e teatrais negras e concepções estético-políticas elabora-
das pela intelectualidade orgânica negra.
O capitulo 10 e derradeiro, é intitulado: “Ainda sobre estéticas
e éticas teatrais negras; a partir de quatro experiências distintas”.
Retoma as trajetórias dos grupos teatrais paulistanos: Capulanas,
Clariô, Os Crespos e Coletivo Negro para abordar especificamen-
te trabalhos encenados nos últimos 10 anos, levantando questões
sobre conteúdos, formas e procedimentos criativos no contexto de
expansão e visibilidade recente.

Negras InsUrgências 19 Capulanas Cia de Arte Negra


1. A cena paulista
contemporânea de
teatro, dramaturgia
negra e o racismo
antinegro
por Salloma Salomão
& Dione Carlos

Abu-Al-Dhudut não usurpou o trono de Al-Patak sem que


houvesse grande oposição por parte de espíritos eminentes
e mesmo de províncias inteiras do país. A todas estas, ele
subjugou e dominou, excetuando o Khanato de Al-Ban-
deirah, cuja riqueza e prosperidade eram muito admiradas
no país. Esse Khanato era governado por quatro ou cinco
famílias que, sob o pretexto de terem feito a independên-
cia de Al-Patak e proclamado o Sultanato, se sucediam
no governo da província e a exploravam em seu proveito,
tanto nos altos cargos, como no monopólio dos bancos,
indústrias e a exportação de tâmaras.

Lima Barreto

A criadagem da família do Miranda compunha-se de Isaura,


mulata ainda moça, moleirona e tola, que gastava todo o
vintenzinho que pilhava em comprar capilé na venda de
João Romão; uma negrinha virgem, chamada Leonor, muito
ligeira e viva, lisa e seca como um moleque, conhecendo
de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta tecnologia de
obscenidade, e dizendo sempre os caixeiros ou os fregue-
ses da taverna, só para mexer com ela lhe davam atrações:
“Óia, que eu me queixo ao juiz dos orfe!”; e finalmente o tal
Valentin, filho de uma escrava que foi de dona Estela e a
quem esta havia alforriado.

Aluísio de Azevedo

Negras InsUrgências 21 Capulanas Cia de Arte Negra


A Xica da Silva diegueana é um ser anormal, não é nem
a louca da literatura. É uma oligofrênica, destituída de
pensamento, incapaz de reivindicar ao nível pessoal, não
me refiro ao nível político em função de sua raça, mas ao
nível de sua reivindicação individual, como uma mulher
que poderia ter nas mãos os bens que o dinheiro do seu
explorador lhe proporciona.

Beatriz Nascimento

Que tipos de imagens projetaram as literaturas, dramatur-


gias e teatros convencionais sobre os negros em geral e especi-
ficamente sobre as mulheres negras, ao longo dos últimos dois
séculos no Brasil?
Que impactos têm tais projeções em nosso imaginário e nas
próprias mulheres descendentes de africanos no Brasil e no mundo?
Quando grandes nomes do cinema e da teledramaturgia bra-
sileira adaptaram romances abolicionistas ou recorreram a figuras
históricas negras femininas do passado, que aspectos raciais atua-
lizaram ou simplesmente reproduziram?
Questionamos ainda: de que maneiras artistas e intelectuais
negros e negras têm obtido sucesso em reinventar suas próprias
existências e projetarem a partir de si imagens históricas e fictícias
do passado, presente e futuro das coletividades negras?
Reconhecemos o duplo lugar da imagem e das identidades
como definidor das relações de poder na sociedade contempo-
rânea. As práticas discriminatórias são quase sempre antecedidas
por imagéticas depreciadoras e desumanizantes. De tal forma que,
quando a eliminação real de uma pessoa ou grupo estigmatizado
se estabelece, há algum tempo sua imagem já havia sido transfi-
gurada em inimiga e malfeitora; portanto, passível de ser deletada,
aparentemente sem culpa e sem dor.1
Distribuídos em quase todo o mundo, os jogos eletrônicos de
maior sucesso na atualidade são justamente aqueles em que os

1  Embora a questão da violência social e política esteja sempre presente, veja sobre a histo-
ricidade da violência na zona sul da cidade, como rescaldo do regime militar, a existência dos
esquadrões da morte oficializados pelo estado totalitário e também o surgimento de matado-
res privados contratados por pequenos comerciantes. A pesquisa de Ferreira mergulhou nesse
universo: FERREIRA, Maria Inês Caetano. Homicídios na periferia de Santo Amaro: um estudo
sobre sociabilidade e os arranjos de vida, num cenário de exclusão. Dissertação de Mestrado em
Sociologia. FFLCH-USP, 1998.

Negras InsUrgências 22 Capulanas Cia de Arte Negra


brincantes competem entre si para se eliminarem mutuamente, ou
eliminarem os oponentes. Não raro os treinamentos dos profis-
sionais da morte são realizados com esses mesmos jogos tidos
como inofensivos. Não raro, garotos desgovernados deslizam dos
jogos virtuais para as ruas, quando armados em cenas reais de
massacres. Menos de um mês depois do “incidente”, seus feitos
somem das telas, ou simplesmente se alojam num canto insensível
do nosso olhar. As telas nos habituam ao horror.
Em larga medida, a abordagem racista da mídia tem justificado
e dado suporte ideológico à permanência e sofisticação das discri-
minações contra uma parte substancial da população composta
por descendentes de africanos no Brasil. A hegemonia econômica
e cultural branca também impede tanto a unificação das pautas
antirracistas, como produz um sombrio conformismo social.
A classe média branca paulistana se recente das políticas afir-
mativas e o setor historicamente ocupado com exclusividade por
artistas brancos se encastela nas suas redes excludentes, busca
refúgio nos conceitos e nas suas exclusivas instituições públicas e
privadas de cultura. Apenas raramente põe a cabeça para fora das
torres de vidro, evitando fazer contato visual e físico com as inova-
doras produções realizadas além dos rios, que separam a cidade
em blocos geográficos e sociais distintos.
Ainda assim, afirmamos que a história cultural da cidade pode
ser contada com base em diferentes perspectivas, recortando
temporalidades, geografias, estéticas. Mas quase sempre é apre-
sentada como única, em bloco, como se as práticas engendradas
por diferentes grupos tivessem um único denominador, a própria
cidade. Como se ela unificasse, em vez de dividir, como se homoge-
neizasse classe, raça, gênero e culturas. Como se São Paulo fosse
um liquidificador social, racial, étnico. Por trás dessa imagem da
cidade-símbolo, que prima pelos monumentos de Lina Bo Bardi e
Victor Brecheret, resistem outras cidades, que os ideólogos atuais
do bandeirantismo sonham esconder.
Apresentamos aqui uma reflexão que começou a se configurar
a partir da 1ª edição dos Diálogos Teatrais, realizada em 11 de no-
vembro de 2013, no teatro da Galeria Olido, pela Secretaria Munici-
pal de Cultura da Cidade de São Paulo. Naquela ocasião, o evento,
até então inédito, contou com a participação de representantes dos
grupos Cia dos Inventivos (Aysha Nascimento e Marcos di Ferrei-
ra), Cia Os Crespos (Lucélia Sérgio e Sidney Santiago), Capulanas
Cia de Arte Negra (Adriana Paixão e Priscila Preta) e Coletivo Negro

Negras InsUrgências 23 Capulanas Cia de Arte Negra


(Jé Oliveira e Flávio Rodrigues).
Os arguidores mais competentes da classe teatral branca ainda
se ressentem de dois episódios ocorridos em 2015 e que deram
alguma evidência à dinâmica racial discriminatória e à invisibilida-
de ou inconsciência do racismo antinegro no meio teatral paulista
estabelecido. Nas palavras irônicas de Kil Abreu, dirigidas aos mais
claros ou mesmo iluminados, senão esclarecidos:

Ainda controversa inclusive para os mais esclarecidos, a


militância e as possibilidades de uma arte negra têm levan-
tado, especialmente em São Paulo, uma boa poeira. Lembra-
mos, só para ficar nos episódios mais recentes, a interdição
do espetáculo “A mulher do trem”, do grupo Os Fofos En-
cenam, em 2015, e o cancelamento de “Exhibit B”, encenado
por Brett Bailey, que seria apresentado na Mostra Inter-
nacional de Teatro de São Paulo – MIT neste ano de 2016.
Em ambos os casos as suspensões foram, segundo certa
versão, fruto de intervenção da militância negra. Quanto
à MIT os organizadores justificam alegando a necessidade
de cortes no orçamento, o que teria inviabilizado a vinda
do espetáculo. De todo modo, no contexto que aqui inte-
ressa, há ações articuladas em pelo menos duas frentes, a
de combate direto ao que é julgado como racismo e a da
criação artística.2

Apenas o estabelecimento intelectual pode julgar o que é ou


não racismo? O racismo como sistema de poder que mantém uma
elite branca no seu antigo status, em que prestígio social, concen-
tração econômica e controle das instituições que ordenam a hie-
rarquia pode, de fato, passar despercebido para alguns, ser uma
abstração para outros. Pode ser reduzido à esquizofrenia ou traço
psicológico individual, no qual impera a distorção na apreensão da
realidade. Restringir o racismo à impressão dos sujeitos individuais
e coletivos tem sido uma das estratégias recorrentes mais cruéis
usadas por artistas e intelectuais estabelecidos.
Os círculos exclusivos de artistas brancos paulistas, alienados
pelo próprio racismo do qual são mantenedores, também limitam
que vejam a si próprios como tal: brancos racistas. Apesar de produ-
zir e veicular seus trabalhos em espaços de absoluta exclusividade

2  ABREU, KIL. In: GOMES, Carlos Antonio Moreira & MELLO, Marisabel Lessi de (orgs). Diálo-
gos teatrais – o fomento compartilha (2013 – 2015). São Paulo: SMC, 2014. p. 19

Negras InsUrgências 24 Capulanas Cia de Arte Negra


e assepsia racial, até recentemente não haviam refletido a respeito
disso; e, quando puderam fazê-lo, tão somente reagiram em bloco
ao que o imaginário colonial havia sentido como Onda Negra.3 No
mundo teatral seus textos, seus modos, seus clássicos, seus referen-
ciais europeus habitam seus processos, currículos, imagens e pro-
jetos. Por vezes, a presença de um ator e uma atriz negra em uma
companhia totalmente branca parece garantir uma cota ou um cala-
-boca, chave do que entendem como diversidade. E, mesmo quando
os jovens artistas brancos medianos se deslocam para zonas peri-
féricas em projetos artísticos formativos, levam consigo uma missão
evangelizadora, salvar esteticamente os selvagens da periferia. E, por
vezes, alguns entre nós tornam-se cativos aprendizes.
Esses coletivos compostos por jovens negros e negras, com
idade média de 35 anos, fizeram diferentes percursos para construir
seus projetos artísticos. Mas têm em comum o fato de, na sua
maioria, serem os primeiros em suas famílias a obter formação su-
perior em artes e terem nascido em bairros pobres da grande São
Paulo, litoral e interior do estado. Seus pais e mães, via de regra, são
migrantes de diversos estados, despejados nesta província entre os
anos 1960-1980, em diferentes levas negromestiças sugadas pela
industrialização do Sudeste.
Cidades como Santos, Mauá, Piracicaba e bairros como
Grajaú, Mboy Mirim, Campo Limpo, Santo Amaro podem apare-
cer justapostos a regiões periféricas de Maputo, capital de Mo-
çambique, ou ainda Luanda, Capital de Angola. Lugares por onde
nossos protagonistas circulam com suas pesquisas e coletam
fragmentos de africanidades.
Existem outros tantos coletivos teatrais espalhados pela cidade
de São Paulo e suas cidades circunvizinhas, mas este trabalho cir-
cunscreve os grupos mencionados como pioneiros de uma nova
etapa do saber fazer teatral em São Paulo, na qual as temáticas de
identidade negra fornecem conteúdo e o sentido primeiro. Também
havemos de reconhecer que, no passado, outras experiências cria-
tivas constituídas por grupos e pessoas autonomeadas negras es-
tiveram focadas nas culturas e identidades negras como fontes de
pesquisa e criação.

3  Indico dois textos publicados por nós sobre o episódio blackface. Veja: SILVA, Salloma Sa-
lomão Jovino da. Que cidade te habita? Sampa negra: periferia, contracultura e antirracismo.
Revista Observatório Itaú Cultural. São Paulo: Itaú Cultural, n.21, nov. 2016 / maio 2017. pp.
130- 167. Veja também: SCHOR, Patrícia & SILVA, Salloma Salomão Jovino da. Representações
e estereotipias negras: cruzamentos (im)prováveis entre folclore holandês e o teatro paulista.
Projeto História. São Paulo, n. 56, p. 69-91, mai.-ago. 2016.

Negras InsUrgências 25 Capulanas Cia de Arte Negra


Não obstante, sabemos que quadros teatrais eram realizados por
abolicionistas negros como forma de sensibilizar a opinião pública.
Nos anos 1920 a Companhia Negra de Revistas, grupo teatral com-
posto de artistas-músicos negros e negras, em turnê pela cidade,
influenciou o surgimento de experiências similares. Há registros do-
cumentais ainda um tanto desprezados que atestam que nos anos
1930 a Frente Negra Brasileira mantinha entre suas iniciativas saraus
poéticos e dramatúrgicos. Que repertórios trabalhavam? Qual teria
sido sua assistência e impacto no meio negro e mesmo na cidade?
Nossa pesquisa consistiu em observação participante, entrevis-
tas e análise do material impresso, fílmico, fotográfico e videográfi-
co disponível em diferentes suportes físicos e ou digitais.4 Também
prospectamos bibliografia vasta sobre o tema das artes, teatros e
dramaturgias negras no Brasil e no mundo ocidental, embora nem
tudo deva ser repercutido nos textos aqui apresentados. Nossa prin-
cipal parceira nessas pesquisas de campo, prospecção bibliográfica,
coleta e análise documental tem sido a atriz e antropóloga Adriana
Paixão. Estamos totalmente implicados na construção dessa pai-
sagem cultural dinâmica, mas ao mesmo tempo não abrimos mão
de analisá-la de dentro, antes que venhamos a ser tomados como
objetos de observação e registro crítico de outros.
Dedicamos nossa atenção aqui à configuração da espacialida-
de, território inicial onde se elaboram, difundem e se constituem
os trabalhos de novos protagonistas culturais que nos interessam.
Nosso objetivo é apresentar grupos e pessoas negras fazedoras de
teatro na cidade de São Paulo, partindo de um olhar retrospectivo e
periférico da cena transbordante capturada no ano de 2018.
Ao apresentar como eixo a trajetória de Capulanas Cia de Arte
Negra, damos a ver um campo mais amplo de relações e influên-
cias, caminhos e descaminhos das formas teatrais negras contem-
porâneas por geografias que abrangem a grande São Paulo, Salva-
dor e ocasionalmente Maputo (Moçambique). Também podemos
perceber alianças, vínculos políticos e estéticos que suas produ-
ções afirmadas como negras apontam.
Os grupos mencionados acima fazem parte de um todo políti-
co-estético diverso na medida em que se apresentam em diferen-
tes espaços e enunciam um nós, como coletividade que colabora e
nutre ideários similares. Contudo, há efetiva singularidade em cada

4  http://capulanas.art.br; http://coletivonegro.com.br; http://www.facebook.com/cia.oscrespos/;


https://grupoclariodeteatro.com.br/

Negras InsUrgências 26 Capulanas Cia de Arte Negra


trabalho, em cada momento e deslocamento no interior da própria
cena teatral e nos contextos culturais cada vez mais amplos.
Enquanto um grupo é composto exclusivamente por mulhe-
res, outro é misto; um tem apenas duas pessoas, convida atores
e atrizes a depender da montagem; outro enfrenta todas as difi-
culdades inerentes às sociabilidades contemporâneas. De qualquer
maneira, tais grupos e indivíduos têm em comum, além da afirma-
tiva origem africana, todas as barreiras sociais convencionalmente
enfrentadas pelos descendentes de africanos no Brasil. Também
perceberam a força que pode advir de um senso coletivo quando
diante de barreiras sociopolíticas. E elas são muitas.
Então, essas teatralidades negras contemporâneas marcam um
tempo novo da história cultural brasileira. Sua longevidade e força
de duração não podemos prever. Mas podemos sim contabilizar
suas inovações técnicas, seus acúmulos filosóficos, seu desenvol-
vimento e ligações históricas.
A investigação em curso pode ser realizada, não somente para
distinguir um trabalho ou um grupo do outro, nem para criar tensão
em uma sociedade já profundamente tensionada, mas para enten-
der como têm sido construídos tais projetos, que conteúdos eles
evocam, que diálogos e perspectivas elaboram; menos para fazer
um juízo e julgar mérito de cada grupo, e, sim, para torná-los mais
visíveis e empoderados culturalmente do que já são.
O teatro como expressão e linguagem, do jeito que conhece-
mos, é uma invenção europeia e moderna, embora suas raízes
possam ser encontradas muito além da Europa. Outras socieda-
des, inclusive africanas, criaram e disseminaram formas artísticas
de representação que poderiam ser chamadas de teatro?
A politização da linguagem teatral burguesa, agora submetida,
e conceitos, formas, corpos e discursos negros encontram-se dis-
seminados em uma geografia mais ampla do Atlântico negro e têm
a ver com a dupla tentativa de desestabilizar a organização política,
econômica e cultural do mundo, feita a partir da Europa.
Nesse sentido, a emergência de um teatro negro no Brasil é
paradoxalmente continuidade e ruptura dessa mesma tradição oci-
dental de linguagem e criação estética. Desde os anos 1940, com
a introdução da técnica do psicodrama por Guerreiro Ramos no
TEN (Teatro Experimental do Negro), como pedagogia para forma-
ção de atores, escritores e público teatral, surgiram nesse mesmo
caminho formas inovadoras de educação e criação estética, cujo

Negras InsUrgências 27 Capulanas Cia de Arte Negra


objetivo último tem sido gestar uma terapêutica capaz de exorcizar
a introjeção dos racismos antinegro na população negra em geral
e na intelectualidade negra em específico. Que avanços podemos
notar nesse quesito? Somos os mesmos, com os mesmos dilemas
dos anos 1940? Avançamos ou retrocedemos, em que aspectos?
Temos algumas pistas sobre os descaminhos de teatros negros
engajados que percorrem o século XX e ainda se apresentam for-
temente na cena paulistana. Elisa Larkin Nascimento (2003), em
seu livro O sortilégio da cor, nos fala que é possível seguirmos sem
temor nessa senda e continuar vislumbrando dramaturgia e teatro
negros. Leda Maria Martins também nos convence disso, temos
segurança para desafiar o establishment cultural branco, enten-
dendo as formas culturais negras como sendo out-siders,5 embora
no interior da sociedade também construída por nós, negros. Os
negros são, então, os estrangeiros de porta adentro.
Também temos indícios de que tais projetos estéticos têm
buscado refletir sobre a condição geral das populações negras su-
balternizadas racialmente; e seus protagonistas têm sido homens
e mulheres autonomeadas descendentes de africanos. Nessas ex-
periências, a escrita e a montagem teatral têm sido concebidas,
na maioria dos casos, à margem dos mercados de produção e
consumo de bens culturais.
Ao que parece, o dramaturgo arremessa os conflitos raciais
para um nível simbólico absoluto, em que a violência das mortes
dos infantes, da clausura feminina e a da cegueira são apenas ale-
gorias de um drama humano não acessível ao nível da consciência.
O racismo, em termos gerais, vem sendo pesquisado pela so-
ciologia e pela psicologia social e crescentemente combatido desde
os anos 1940. Algumas dessas pesquisas desnudam vários aspec-
tos das relações interpessoais e macrossociais codificadas pela cor
da pele e pelas ideias fixadas em termos de origem racial. Os movi-
mentos sociais, nos últimos trinta anos, têm colocado as temáticas
análogas na pauta das pesquisas acadêmicas, das políticas públi-
cas e em todos os fóruns de democratização e cidadania.
O impacto dessas formas de discriminação no Brasil pode ser
localizado na literatura brasileira, produzida por descendentes de
africanos, desde a segunda metade do século XIX. O exemplo de
obras de um Cruz e Souza, passando por um Lima Barreto e um

5  ELIAS, Norbert & SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders. Tradução de Vera Ribei-
ro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

Negras InsUrgências 28 Capulanas Cia de Arte Negra


Lino Guedes, na primeira metade do século XX, alcançando até
um Oliveira Silveira na virada do século XXI, mostra os indícios não
apreendidos facilmente, que funcionam como mapas, ou registros
discursivos de variadas formas de opressão racial e a sua percep-
ção no social e nas sensibilidades.
Ao mesmo tempo em que fazemos essa gira geográfica, con-
ceituamos os termos mais gerais da reflexão, quais sejam: valores
civilizatórios africanos e afro-brasileiros, modernidade negra, cultura
afro-diaspórica, folk-negro, culturas negras no Brasil. A noção de
teatro e dramaturgia negra advém dessas premissas elaboradas e
reelaboradas, desde o século XIX, por setores do ativismo aboli-
cionista e antirracista e desdobradas nas criações artístico-cultu-
rais, geralmente por pessoas e grupos, em sua maioria situados à
margem do mercado de consumo industrial da cultura.
Dessa forma, o campo onde se propagam tais criações é tanto
aquele do improviso e da provisoriedade, como também da inter-
mitência e da descontinuidade. Quer dizer, se o vento que refrigera
as fricções com as instâncias de poder é democrático e de aber-
tura, se é fragilmente mercadológico e alternativo, há expansão e
variedade. Entretanto, se, ao contrário, for autoritário e elitista, há
inflexão para a aridez e debandada. Não por covardia, mas por fra-
queza reconhecida diante da violência costumeira dos poderosos e
também por inteligência estratégica daqueles marcados pelo signo
da sobrevivência e camuflagem.
É geralmente de forma bastante crítica que os criadores teatrais
negros buscam, encontram e educam seu próprio público, pessoas
não iniciadas na linguagem, em função do recorte social que
assumiu na modernização, qual seja: as classes médias brancas
e urbanas. Gente pouco escolarizada em consequência da políti-
ca educacional excludente, trabalhadores informais, estudantes de
ensino médio, jovens universitários que ascenderam a essa condi-
ção por via de políticas afirmativas e leis municipais, estaduais e
federais de fomento às artes e cultura, que então passaram a fre-
quentar teatros de bairro, anfiteatros de colégios públicos, residên-
cias comuns transformadas em casas-cênicas e galpões alugados
nas periferias da grande São Paulo. Então, trata-se de um teatro
dos sem-teatro ou daqueles que, no processo de modernização
excludente, foram destituídos dele.
Conquanto, já tenham havido expressões teatrais tradicionais
e populares com nítidas feições negras até a década de 1950 na

Negras InsUrgências 29 Capulanas Cia de Arte Negra


cidade de São Paulo, com a industrialização e urbanização nos ar-
redores da metrópole, assim como nas cidades maiores de quase
todo o país, tais práticas foram coibidas, suprimidas e silenciadas.
Por fim, foram rapidamente apagadas com a emergência do rádio
comercial, cinema industrial importado e consolidação da televi-
são privada. É possível dizer que muitas práticas artístico-culturais
negras de feições tradicionais apenas foram mantidas nas zonas
rurais e pequenas cidades de todo o país, até começar um proces-
so de reanimação e neofolclorismo nos anos 1990.
Por neofolclorismo identifico uma tendência de expropriação cul-
tural por grupos de empresários-artistas do Sudeste que incitaram
um processo de incorporação seletiva de grupos de cocos e mara-
catus, depois também batuques, candombes, congados e catopês,
selecionados para ministrar oficinas e espetáculos em redes Sescs
(Serviço Social do Comércio), teatros e casas de espetáculo. Me-
diadores hiperletrados, empresários culturais, empreendedores cria-
tivos, atravessadores de cachês, mangueadores bem nascidos.
Os chamados “mestres da cultura popular e griots” e suas “co-
munidades brincantes” passaram a circular por diferentes estados
da federação em função desses eventos, quase sempre recebendo
valores irrisórios. Via leis de incentivo os empresários realizaram
além de espetáculos, gravação de filmes, discos e publicação de
livros luxuosos e, em muitos casos, as comunidades de onde tais
conteúdos foram extraídos nem sequer receberam um único exem-
plar do produto final, não porque fossem ingênuas ou não reconhe-
cessem tais sistemas de grilagem cultural, mas porque reconheces-
sem seu grau de fragilidade política ante os novos predadores, e
entendessem sua condição materialmente pobre.
Em todo o país teatros-rituais afro-populares das coroações
de Rainhas Nzingas e de Reis Congos, cômicos negros dissimula-
dos nos Mateus e outros mascarados, palhaços de Folias de Reis
foram revistos; são justamente aqueles que haviam sido cons-
trangidos quase em definitivo pela massificação do futebol profis-
sional e pelo advento da televisão comercial.
Os aspectos que nos parecem mais salientes são justamente
aqueles advindos de culturas africanas, línguas, gestualidades, so-
noridades, conceitos filosófico-religiosos, cultura material expressa
em ferramentas, utensílios domésticos (cestarias, por exemplo),
noções de cuidado consigo e com o corpo, relações com o mundo
intangível do sagrado, escritas rituais e corporais permanentes ou

Negras InsUrgências 30 Capulanas Cia de Arte Negra


grafismos com barro branco (mpemba). Ritos religiosos, folguedos e
teatralidades populares parecem, efetivamente, não apenas ter res-
guardado do desaparecimento vários dos tópicos elencados acima,
como também serviram de base para o surgimento de novos imagi-
nários, outras práticas culturais e novas semânticas.
Por culturas negras contemporâneas podemos entender os
saberes e fazeres, legados e projetos artísticos, políticos e cultu-
rais dos modernistas negros6 e afro-diaspóricos desde finais do
século XIX até a atualidade. As experiências e memórias da traves-
sia da Kalunga grande (o Atlântico sul), fragmentos e indícios da
morte e renascimento, ou seja, narrativas recolhidas, criptografa-
das e resguardadas sobre o cativeiro nas grandes lavouras. E ainda
hoje podem ser flagradas, nos contos e gostos, canções e provér-
bios, evocações e corporalidades dançantes, fórmulas cognitivas e
células rítmicas, talvez as mais delicadas e duradouras estruturas
cenestésicas dos inconscientes coletivos africanos.
Um campo não desprezível de artistas e intelectuais negros e
negras contemporâneas pressupõe, com algum fundamento, que
algo das histórias e memórias negras mais remotas podem ser
parcialmente recuperadas nas tentativas, nem sempre exitosas ou
mesmo ambíguas e contraditórias, de elaborações de hibridismos
filosóficos, formas criativas e inovadoras de exegese, expressas em
recomposições técnicas e poéticas sobre a formação de socieda-
des estatais e civilizações africanas na longa duração. Os teatros
negros do agora experimentam tais cruzamentos.
Mesmo que ninguém leia Garvey, Mbembe, Apiah, Muniz Sodré,
Anta Diop, Chimamanda, Abdias, Beatriz Nascimento, Senghor, entre
outros, ao meu ver são várias tentativas valorosas, mais ou menos
frutíferas, de acessar cosmovisões africanas a partir de referenciais
filosóficos e tecnologias do ocidente.
Lembremos da Linha da Estrela Negra, preconizada por Garvey,
uma utopia racial de reversão que, em ações práticas, pretendeu
se converter em um refluxo demográfico de pessoas negras da
América para a África. Uma visão profética e ao mesmo tempo
estratégica de como compor um estado-nação jovem, denso e

6  Utilizo a categoria modernistas negros, por homologia à ideia desenvolvida por Paul Gilroy
sobre a modernidade dissidente construída pela intelectualidade negra. Conquanto aplicada
por ele ao mundo anglófono e circunscrito à geografia do atlântico norte, Gilroy nos incentiva
a absorver e observar as tentativas de adesão crítica e subversiva dos ativistas de origem
africana ao projeto ocidental de mudança paradigmática.

Negras InsUrgências 31 Capulanas Cia de Arte Negra


concentrado, inovador e altamente tecnológico, capaz de reverter o
colonialismo e unir todo o continente africano em um supraestado
pluriétnico e multinacional. Essa mensagem revelada pelo Mussa
Negro (Moisés), uma segunda vez será ainda lembrada nas tenta-
tivas de ajudas mútuas pós-coloniais.
Parece urgente demonstrar, de alguma forma, em que medida
uma espécie de consciência étnica racial negra tem tentado regis-
trar, perpetuar e conduzir para um local de segurança a memória
ativa, as histórias reais e fictícias, os objetos e invenções, signos e
outros materiais abstratos desses saberes e imaginários de origem
africana e afrodiaspóricos.
Se estiver pensando que essa mistura de línguas e jeitos de
pensar e escrever é estranha, melhor voltar a ler os clássicos da
literatura sociológica paulista, em que não há contaminação do
cânone, pois a origem social dos escritores não permitiria tal du-
biedade. Na verdade, como já dito antes, estamos saturados da
linguagem petulante e fria da escrita acadêmica, mas não sabemos
ainda como escapar totalmente dela. Confessemos. Nossas vidas
são feitas de colchas de retalhos, romances mal grafados de de-
sencontros afetivos, intra e inter-raciais e (im)possibilidades reais
de tradução cultural na sociedade contemporânea. Não ligue para
essa palavra-conceito (intradutibilidade).
Também creio que não é necessário perguntar se existe dra-
maturgia e teatro negros no Brasil, mas cabe perguntar: qual foi e
qual tem sido seu percurso? Quais foram no passado e quais são
no presente os seus agentes, empreendimentos políticos, estéti-
cos, sociais, culturais? Também cabe perguntar: quais conteúdos
têm sido trabalhados nessas dramaturgias e construções teatrais?
E ainda: que conceito de dramaturgia negra e de teatro negro está
sendo empregado? Em que contexto?
Portanto, falar em teatro negro é falar sobre ruptura e insurgência.
Lutas anticolonialistas e antirracistas que inspiram e exortam os des-
cendentes dos colonizados a reconstruir para si um lugar no mundo.
Essa reconstrução assume, em diferentes geografias e contextos, di-
versas formas. Mas as culturas artísticas têm sido estratégica e per-
manentemente ressignificadas.
Se desde o final século XVIII o teatro como forma de expres-
são moderna é reivindicado como tendo origem histórica na anti-
guidade europeia, os teóricos da dramaturgia e do teatro ainda hoje
se esforçam para manter uma explicação evolucionista da origem

Negras InsUrgências 32 Capulanas Cia de Arte Negra


grega, enquanto de outro lado emergem dados novos sobre formas
teatrais extraeuropeias.7 Teatralidade pode nesse momento, ainda de
hegemonia branca, ser concebida provisoriamente como predisposi-
ção cultivada, habilidades elaboradas e socialmente transmitidas, ou
ainda como capacidades criativas humanas para jogos e rituais de
representação, forma de repor experiências traumáticas e episódios
de alta intensidade telúrica grupal. Para Rufino dos Santos:

Teatralidade é a vontade que tem o humano de representar.


Nesse sentido, é universal, não há povo sem teatralidade,
embora nem todos tenham teatro. No caso do Brasil, se
veem desde o começo até hoje, duas pistas de acontecimen-
tos, como se fossem duas frequências da mesma emissão.

Uma frequência é erudita e culta. É a do teatro de palco,


esse teatro que a gente vai ver na casa de espetáculo, o te-
atro de tradição europeia, o teatro shakespeariano, teatro
propriamente dito, digamos assim. Mas há outra frequência
que vem de lá de trás também, chamado de teatro popular.
O nome não interessa, mas o fato que há, por exemplo,
folguedos populares que são teatralidade, embora possam
não ser teatro. Esses folguedos já impressionavam e inti-
midavam José de Anchieta.8

Contudo, podemos inicialmente conceituar dramaturgia como


textos de autoria individual ou coletiva, escritos especificamen-
te para ser encenados. Grosso modo. Posso pensar dramaturgia
negra como: textos produzidos por negros tratando, ou não, de
temas relacionados às culturas de matrizes africanas, relações inter
e intrarraciais em todas as suas dimensões: simbólicas, cognitivas,
históricas, políticas e socioculturais.
Entretanto, nos parece hoje que teatralidade negra se estabele-
ce quando seus criadores/agentes evocam consciente e intencio-
nalmente a instauração de imaginários afrodiaspóricos, e também

7  Veja, por exemplo, o esforço de abarcar outras formas de teatro ao redor do mundo e, ao
mesmo tempo, a grande dificuldade em abrir mão de conceitos que repõem a suposta cen-
tralidade cultural europeia. Veja: BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. 6 ed. São
Paulo: Perspectiva, 2014.
8  Idem

Negras InsUrgências 33 Capulanas Cia de Arte Negra


quando se colocam em diapasão dialógico com valores civilizató-
rios advindos das sociedades africanas. Quando atribuem novas
semânticas aos signos e sinais diacríticos que configuram as dife-
renças culturais, não como anormalidades ou exotismo, mas como
possibilidades de apreensão e interpretação do mundo.
E parece ser com um texto praticamente desconhecido e inaca-
bado de Lima Barreto, chamado “Os Negros”, que se inaugura uma
dramaturgia negra no Brasil. Esse texto circulou no meio cultural
negro, e foi publicado na revista Quilombo do Teatro Experimental
do Negro nos anos 1940. Entretanto, jamais havia recebido uma
montagem, até que, recentemente, José Fernando Azevedo, por
nossa indicação, o utilizou para uma performance breve ocorrida
no Museu do Ipiranga, nas comemorações da independência, via
programação da unidade Ipiranga do Sesc.
Resumidamente: no leito de morte de um velho negro, homens
e mulheres se veem em frente a um grande mar, enquanto esperam
a possível chegada dos capitães do mato para reconduzi-los ao ca-
tiveiro. Nos parece que Lima Barreto antevê o dilema dos negros:
o mar talvez representasse um retorno inviável e o penhasco, o
desafio que eles teriam que galgar para construir para si algum nível
de cidadania, nessa sociedade profundamente hierarquizada pela
cor, pelo status. Esse é o cerne da criação de Lima Barreto.
Ainda é cedo, mas podemos adiantar que, até aqui, é esse o
primeiro texto teatral produzido sobre essas temáticas de negritude
no Brasil por um escritor negro, Lima Barreto, no início do século
XX. Um texto belíssimo e complexo de tom simbolista e ambiente
etéreo. Apesar de inacabado, narra a fuga de um grupo de escra-
vizados e a sua chegada à praia, onde entram num dilema entre o
mar e o penhasco. Simbolicamente, é um texto da fase em que a
República brasileira buscou efetivamente construir um projeto de
sociedade no qual os negros não estivessem presentes.
Recorrentemente temos pensado sobre o nascedouro, ou em
termos de surgimento e difusão de formas especificamente negras
urbanas e públicas de representação, em que corporalidade, vocalida-
de, narrativa e musicalidade estejam presentes.
Nesse momento importa trazer à tona formas autonomeadas
negras e marginalizadas em suas inscrições na feitura da urbe. Um
método tem sido ir aos memorialistas, folcloristas, artistas, jornalis-
tas, ativistas de diferentes gerações, sobretudo aqueles e aquelas
que se embateram com os estabelecimentos e instituições. Ainda

Negras InsUrgências 34 Capulanas Cia de Arte Negra


hoje vamos atuando nas brechas e nos contrafluxos das norma-
lizações culturais-artísticas que visam estabelecer procedimentos
ou parâmetros de valorização, premiação e novas hierarquias.
Além disso, nesse instante enegrecemos um pouco o território
da cultura urbana paulista, com estéticas que também constituíram
simbolicamente essa cidade e província. Essas atividades criativas
e políticas revelam uma mudança de perspectiva, se não da gestão
pública, ao menos de alguns gestores públicos. Por algum momento
admitem que os negros e negras construíram essa sociedade, essa
cidade que, portanto, de alguma forma, tem que contemplá-los.
É em um panorama de redescobertas e invenções que emergem
Os Crespos, Coletivo Negro, Capulanas, Cia dos Inventivos e Grupo
Quizumba. São Paulo e a grande São Paulo têm nos dado possibili-
dades de dialogar com essas produções que já extrapolam os territó-
rios do estado, e talvez do país, e abrem diálogos em outros espaços
de negritude que nós podemos chamar de “diaspóricos”.
Redescobertas de textos publicados por dramaturgos negros e
negras, dramaturgias enevoadas pelo tempo, escrituras fragmen-
tárias, imagéticas de fantasmagorias da escravidão e da luta pela
liberdade. Não necessariamente narrativas épicas de Zumbis e
Dandaras como figuras modelares e repúblicas quilombolas como
quiseram Boal e Guarnieri. Ou projeções de reinos e rainhas negras.
Mulatas de bronze decaídas em quartas de cinza.
Autores e autoras negras ainda lutam por um lugar de visibili-
dade em meio às montagens da branquitude teatral paulista, tida
como universal e diversa em si mesma. Constroem a si próprios
como agentes de sua própria criatividade, com agendas estéticas
e públicas. Sujeitos coletivos negros, que evocam sua condição de
descendentes de africanos para colocar uma perspectiva (ou várias)
da sua origem, tendo como suporte essa linguagem, ou essas duas
linguagens que nós chamamos de “dramaturgia” e de “teatro”.
Por teatro estamos definindo a ação individual ou coletiva per-
formativa pública, de rua ou espaço fechado, privado ou público.
Local alugado e cedido, auditórios, arenas, quadras, campos de
futebol de várzea, logradouros e praças. Os repertórios advêm de
textos “clássicos” publicados, mas sobretudo de novíssimas es-
crituras e tramas textuais orais, nem sempre publicadas. São, em
geral, elaborações coletivas, surgidas a partir de exercícios e jogos
depois submetidos a uma dramaturgista. Ou pessoa com relativa
especialização (acadêmica, prática ou autodidata) na confecção

Negras InsUrgências 35 Capulanas Cia de Arte Negra


de textualidade teatral. Por vezes, a versão escrita somente surge,
quando, ao fim de algum processo, os artistas julgam necessário
configurar um registro impresso do trabalho. Nesse sentido, a partir
da ideia já bastante conhecida de culturas orais africanas devi-
damente trabalhadas em inúmeras teorias desse tema, podemos
mesmo falar em dramaturgias orais, não como contradição, mas
como tradição cultural negra, que nem por isso deixaram de legar,
por via da oralidade, contos, provérbios, recitações, poemas, filoso-
fias, cosmogonias.
A Cia Capulanas de Arte Negra é um grupo de mulheres afro-
descendentes jovens, com idade em torno de 34 anos que, em
sua maioria, frequentou escolas públicas na extensa zona sul da
cidade de São Paulo, capital do estado. De acordo com dados
sociais disponíveis:

Segundo levantamento realizado no ano de 2000, pela


Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – SEA-
DE, negros representavam 30,3% da população da cidade,
apresentavam pequena presença nos distritos centrais, es-
tando sua presença mais concentrada nas áreas periféri-
cas, particularmente na zona leste da capital. Neste ano,
os 15 distritos da capital com mais de 40% de população
negra eram: Cidade Tiradentes, Guaianases, Itaim Paulista,
Jardim Helena, Lajeado, Vila Curuçá e Vila Jacuí, todos
da zona leste; Capão Redondo, Cidade Ademar, Grajaú,
Jardim Ângela, Jardim São Luis, Marsilac, Parelheiros e
Pedreira, na zona sul. (SEADE, 2000) A zona leste conta
com 31 bairros e está distante cerca de 30 km do centro da
cidade, a zona sul possui 26 bairros e são as áreas mais po-
voadas da cidade, marcadas principalmente por carências.9

Por sua realidade social Capulanas estão inseridas num painel


que não deixa margem para sonhos duradouros. Nos permitimos
aqui considerar a importância não apenas estética como também
o contexto social do trabalho realizado pelas artistas dessa compa-
nhia que, muito cedo, tomaram consciência do que seria produzir
arte numa realidade social conflagrada e marcada pela profunda

9  SILVA, Rodnei Jericó da Silva e CARNEIRO, Suelaine. Violência racial: uma leitura sobre os
dados de homicídios no Brasil. São Paulo: Geledés Instituto da Mulher Negra e Global Rights
Partners for Justice, 2009, p. 93.

Negras InsUrgências 36 Capulanas Cia de Arte Negra


desigualdade e ausência de oportunidades. Então, sua trajetória ao
longo de uma década já se configura como feito único e épico; mas
o tempo não é de festa. Se as primeiras criações teatrais de Abdias
do Nascimento foram feitas no presídio do Carandiru na década
de 1930, agora em 2000 as criações das Capulanas são realizadas
e disseminadas nas regiões da cidade onde a justiça social é uma
espécie de ficção.
A narrativa em torno da vida e da obra da Cia Capulanas tem
todas essas camadas de geografias, temporalidades e poéticas en-
trecruzadas partindo do presente, quais sejam: presenças e dinâ-
micas culturais negras nas periferias da cidade de São Paulo e seu
entorno nos últimos vinte anos. Quando Capulanas introduziram
em seus espetáculos textos do poeta Solano, assim como memó-
rias e experiências do Teatro Popular Solano Trindade, instalado
em Embu da Artes, tocaram em alguns dos tópicos mais delicados
das culturas negras e afro-diaspóricas, assim como do saber fazer
artístico-cultural negro do século XX: a descontinuidade, o silen-
ciamento e a desmemória, além da resistência e da construção de
novas semânticas.
Essas jovens – nomeadamente Adriana Paixão, Debora Marçal,
Carol Ewaci, Flávia Rosa e Priscila Obaci – tiveram contato com as
artes teatrais em suas respectivas escolas ou nos projetos sociais
em que participavam. Especialmente Debora Marçal, moradora do
Jardim Iporanga, participou de um grupo teatral juvenil, criado por
dois poetas-cordelistas, professores muito conhecidos de escolas
públicas da região. Cláudio Ferreira (Jabiraca) e João Gomes, asso-
ciados ao também professor e músico Luís Rosa de Freitas, criaram
o Grupo Experimental de Teatro e depois o renomearam.
Eram, sobretudo, realizadores culturais de saraus e encontros
artísticos em escolas, igrejas, associações de moradores e residên-
cias. Uniram experiências comuns em torno de musicalidades re-
gionais mineiras e nordestinas, elementos de danças populares e
textualidades orais. Os valores culturais afro-mineiros da família de
Luis Rosa, cujos pais Raimundo e dona Ana Rosa, migrantes do sul
de Minas Gerais, dominavam cânticos, instrumentos e coreografias
de folias de reis e congadas, se uniram aos elementos nordestinos,
sobretudo maracatus, coco de roda, caboclinhos e cavalo marinho,
trazidos por Gomes e Ferreira.
De forma geral, culturas afro-populares do Norte e Nordeste
foram introduzidas em São Paulo de diversas formas e em diferen-

Negras InsUrgências 37 Capulanas Cia de Arte Negra


tes tempos.10 A maracatunização das festas paulistas, entretanto,
tem sido uma estratégia da juventude branca de classe média, con-
sumidora de turismo cultural.
Atualmente grupos de coco, jongo e maracatu situados nas
regiões mais nobres da cidade têm tentado atrair pessoas negras e
periféricas para seus projetos, em busca de uma forma de “legitimi-
dade”. E, ao mesmo tempo, indivíduos pertencentes a esse círculo
seleto de produtores culturais, altamente profissionalizados, capi-
talizados e inseridos, também funcionam como agenciadores de
grupos artísticos vindos especialmente de Alagoas e Pernambuco.
Mas essa é uma história político-cultural que não cabe neste texto.
As notícias mais remotas e práticas de maracatu em São
Paulo datam dos anos 1960. Remetem-se às primeiras tentativas
do poeta pernambucano Solano Trindade de fixar moradia inicial-
mente na região do Bixiga.
O primeiro espetáculo da Cia Capulanas, denominado “Solano
Trindade e Suas Negras Poesias”, incorporava técnica e afetiva-
mente ao grupo Manoel e Zinho. Dois artistas, bisnetos de Solano
e Margarida Trindade, casal que ainda em Recife, em plenos anos
1930, fundou o embrião do mítico grupo chamado Teatro Popular.
Solano e Margarida Trindade, ao lado de Abdias e Maria Nascimen-
to, hoje são interpretados como modernistas negros brasileiros, ou
aquelas pessoas que se especializaram em atualizar conteúdos
estéticos de origem africana, numa paisagem social e política em
acelerada mudança, a partir dos estados do Sudeste.
Os dois casais produziram formas teatrais de maneira bem di-
ferente dos modernistas das elites quase brancas, naquela socie-
dade que se urbanizava, industrializava e buscava cumprir o seu
destino manifesto, prenunciado desde José Bonifácio de Andrada
e Silva, de ser um grande estado-nação “europeu” nos trópicos.11
Este texto é fruto de um exercício situado numa reflexão de

10  Talvez as formas culturais afronordestinas já tenham chegado a São Paulo na segunda
metade do século XIX, com o tráfico interprovincial de escravizados. Como o tráfico legal ha-
via relativamente cessado em 1850, os fazendeiros decadentes do Norte (ainda não havia a
noção geográfica de Nordeste) haviam encontrado uma alternativa de boa renda vendendo
seus escravizados para os cafeicultores do Sul, especificamente São Paulo, Rio de Janeiro e
Minas Gerais. Foi, contudo, o êxodo rural dos anos 1930 em diante que fez de São Paulo a
cidade negra e nordestina que é atualmente, embora a ideologia cultural dominante continue
mostrando uma cidade imigrante e branca.
11  Um poeta branco muito benquisto ironizou numa canção: “Essa terra ainda vai cumprir
seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.

Negras InsUrgências 38 Capulanas Cia de Arte Negra


longo prazo, construído como parte de um projeto político coletivo,
que visa gerar tensão, questionamento e, sempre que possível, se
configurar como tática de sabotagem da hegemonia cultural, polí-
tica e econômica da minoria branca paulista e dos seus clientes
mais engajados.
Há, no estado de São Paulo, uma narrativa mítica em texto e
oralidade sobre o surgimento de novas teatralidades e dramatur-
gias paulistas e paulistanas, que se remete a uma mobilização po-
lítica e artística transcorrida no início dos anos 2000. Via de regra,
não há nenhuma percepção de que os grupos teatrais paulistas
eram compostos prioritariamente por gente branca e que estiveram
à frente da disputa feita junto ao poder público municipal; àquela
altura a governante era a ex-deputada federal pelo Partido dos Tra-
balhadores Marta Suplicy.
Por algumas ocasiões tivemos a oportunidade de participar de
eventos junto com profissionais proeminentes da atividade teatral,
e raramente a questão da racialidade ou do racismo antinegro no
meio artístico vinha à tona. Como se arte fosse uma instância sus-
pensa, pairando imaculada sobre a realidade da sociedade brasi-
leira. A naturalização da hegemonia branca em todos os níveis da
vida social também se apresenta de forma acrítica no meio intelec-
tual e artístico paulista.
De fato, muitos dos grupos que atuavam na cidade amargan-
do montagens com parcos patrocínios privados e ralas bilheterias,
apoios governamentais esporádicos, após a aprovação de uma lei
municipal, lograram aproveitar de uma forma inovadora de finan-
ciamento público a criação, produção e circulação artístico-cultural.
Voltado a uma linguagem específica, o teatro, a Lei de Fomento
quebrou um sistema antigo de favorecimentos interpessoais, criti-
camente chamado de “política de balcão”. Na qual, com base em
relações de apadrinhamentos, produtores e grupos recorriam ao
balcão do setor público com um pires raso e contavam com o be-
neplácito do secretário de cultura, ou algum dos seus assessores.
Não obstante, esse movimento contou também com certo am-
biente pré-eleitoral, e apoio logístico e político de um ator secretário
de cultura, Celso Frateschi, advindo de uma das mais importantes
famílias à frente do Partido dos Trabalhadores no estado. Frateschi,
que emergiu dos quadros do ABC, havia assumido posição proemi-
nente no governo municipal, por ser ele o efetivo secretário, quando
o absenteísta Marco Aurélio Garcia respondia pela pasta.

Negras InsUrgências 39 Capulanas Cia de Arte Negra


O renomado ator-gestor já havia sido secretário de cultura na
cidade de Santo André, no governo do prefeito Celso Daniel, onde
criara a Escola Livre de Teatro. Elaborou, a partir dessa experiên-
cia, para todo o município de São Paulo um vigoroso e extensivo
projeto de formação na linguagem teatral. Denominado Teatro Vo-
cacional, o programa obteve aprovação da prefeita para contratar,
sem concurso público, diferentes artistas educadores.
Frateschi alimentou por três anos, com recursos da secretaria
de cultura, um denso projeto de disseminação dessa linguagem ar-
tística nas periferias, geralmente em detrimento de todas as outras.
De certa maneira, essa forma de direcionar a maior parte dos inves-
timentos para uma linguagem e não para os equipamentos gerais
de toda administração selou a falência de um projeto anterior. Des-
centralização cultural era o lema da primeira administração petista
da cidade; um projeto conhecido como Casas de Cultura preten-
deu deselitizar o sistema cultural público criando unidades cultu-
rais e programas de formação em diferentes linguagens artísticas
nas periferias da cidade. Iniciado em 1990, quando a prefeita era
Luiza Erundina e a Secretária de Cultura, a filósofa Marilena Chauí.
Dialeticamente, alguns dos jovens que hoje reivindicam tea-
tralidades negras e simultaneamente lutam por uma divisão mais
equânime dos recursos públicos da cultura são justamente egres-
sos da Escola Livre de Teatro de Santo André, das oficinas do Teatro
Vocacional, onde atuaram muitos dos artistas que estavam à frente
do movimento “Arte Contra a Barbárie”. Mas não apenas dessas
“Escolas” formuladas por setores e sujeitos ligados a esse mítico
movimento advêm as atrizes e atores negramente afirmados. Seus
caminhos são vários desde o teatro escolar, de bairro ou comuni-
tário, até chegarem ao incipiente e eurocêntrico curso de Artes do
Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Outros e
outras fizeram percursos solitários e árduos para ingressar na eli-
tista e branca Escola de Artes Dramáticas (EAD) da Universidade
de São Paulo. Kil Abreu, ao comentar o evento citado, colocou o
debate nos seguintes termos:

Neste momento em que escrevemos (são muitos os que


aqui escrevem), o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos já
perdeu a sua batalha na Pompeia (mas, oxalá, não a guerra).
Zé Celso e o Oficina estão aí, tocaiados e na resistência
(im)possível à boca dentada da especulação imobiliária que
toma o Bixiga (“mais Brecht, menos Odebrecht!”, gritam

Negras InsUrgências 40 Capulanas Cia de Arte Negra


eles). E, em outra frente que talvez compense esta, uma ge-
ração incrível de meninos e meninas ergue obras e alianças
belas, planeja e invade a cidade sem pedir licença, fazendo
valer por vezes loucamente aquela trajetória de Quixotes,
de santos guerreiros e heróis desajustados sobre a qual
falou a Patrícia Gifford se referindo ao espetáculo da Cia
São Jorge. E assim foi, e assim, como veremos a seguir,
está sendo. Em boa medida os depoimentos que seguem dão
conta, então, da cifra de vida e de uma fatia do teatro
vivo que inventa formas não só para continuar como para
demarcar o espaço de um fenômeno cultural sem igual na
história do teatro brasileiro.12

De fato os grupos teatrais negros emergem na mesma paisa-


gem aberta no início dos anos 2000, mas nos parece que seguem
outro roteiro. Alguns percursos se entrecruzam nas práticas cria-
tivas da cidade que se adensou numérica e qualitativamente nos
últimos vinte anos. A cidade de São Paulo possui uma quantida-
de e diversidade impressionante de produções teatrais em vários
níveis. Desde empresas profissionais, voltadas ao estilo dos mu-
sicais estadunidenses, com seus teatros altamente elitistas dirigi-
dos às classes A e B, até teatros comunitários, estudantis, teatros
de improvisos e de tradição religiosa católica, como Corpus Christi
e Paixão de Cristo, por vezes intercambiando atrizes e técnicas,
muitas vezes se entrecruzando.
Em São Paulo há também aqueles espaços teatrais modestos,
mas muito bem estruturados e destinados ao público jovem uni-
versitário, na maioria dos casos distribuídos na mesma região onde
se concentram os teatros voltados para as elites, qual seja, o centro
da cidade, entre os bairros do Bixiga, Barra Funda, Consolação,
Praça Roosevelt, Bom Retiro, Santa Cecília. Há ainda bibliotecas
públicas municipais, em sua maioria nas áreas mais centrais, que
dispõem de auditórios, quase sempre semiabandonados ou muito
malcuidados pela administração. As unidades do SESC também
dispõem de auditórios onde recebem espetáculos para seus pró-
prios sócios e consumidores em geral.
Percebendo as dificuldades de inserção no mercado cultu-

12  ABREU, KIL. In: GOMES, Carlos Antonio Morieira Gomes & MELLO, Marisabel Lessi de
(orgs). Diálogos teatrais – o fomento compartilha (2013 – 2015). São Paulo: SMC, 2014, p. 13.

Negras InsUrgências 41 Capulanas Cia de Arte Negra


ral, seja pelo teor crítico das obras, seja pela relativa precariedade
material das montagens, os grupos teatrais negros também pas-
saram a manter seus espaços de criação e circulação. Por vezes,
são apenas locais de ensaio ou de guarda dos materiais cênicos,
noutras convergem para verdadeiros centros criativos, de organi-
zação e formação do trabalho teatral. Evidente que a manuten-
ção desses locais depende da capacidade do grupo em acessar
os recursos públicos das leis estaduais e municipais de incentivo
e fomento cultural. Ainda Abreu (2014), a propósito de um evento
realizado pela secretaria municipal de cultural no qual se discutiu a
produção teatral da cidade:

Ali o mais marcante foi a constatação de que o teatro pe-


riférico, o “teatro das franjas” passou nestes anos de uma
condição “acidental” a uma escolha essencial. Escolha por-
que no momento em que se torna consciente começa a agir
tomando para si a assunção existencial, a atitude filosófi-
ca, o ponto de vista político e uma práxis necessária diante
do mundo. Nesse sentido os grupos de teatro da periferia
de São Paulo são elementos fundamentais em quadro mais
amplo do qual (nos) surge nas últimas décadas, agora
com grande visibilidade para a cidade inteira, uma produ-
ção cultural que tem par nos saraus poéticos, nas várias
vertentes da cultura hip hop, nas organizações em torno
dos temas de gênero e raça, nos bailes populares de rua.13

Então, podemos observar de um lado o surgimento de um


campo criativo novo, senão inédito em termos temáticos, inaudito
na forma e conteúdo, na definição do espaço social e geográfico,
tão determinante quanto à origem social étnica dos criadores e
criadoras. Estamos falando de uma tensão sociocultural também
inédita. A evidente surpresa dos grupos culturais hegemônicos e
estabelecidos, que buscam de forma sutil deslegitimar as produ-
ções artísticas culturais dos grupos “forasteiros”, tidos como pouco
técnicos, malformados, não adequadamente estéticos, porque não
observam as regras escolares do “bom teatro” e incomodamen-
te políticos, pois abrem dissidências em um mundo que se tinha
como harmonioso e organizado.
De outro lado, fica evidente uma certa impermanência ou in-

13  Idem

Negras InsUrgências 42 Capulanas Cia de Arte Negra


termitência e fragilidade nas formas de institucionalização dos tra-
balhos, justamente porque em condições sociais e geográficas dife-
rentes dos grupos que se institucionalizaram nas áreas centrais da
cidade. Trata-se daqueles grupos teatrais reconhecidos e também
publicamente financiados, cujos principais membros aproveitaram
as condições políticas “satisfatórias”, para adquirir prédios próprios
ou acionaram seus contatos privilegiados para obter sessão e co-
modatos, patrimônios públicos transformados em suas sedes no
“centro velho”.
A impermanência, fragmentação e provisoriedade das culturas
negras da diáspora parece ter se convertido também no seu princi-
pal signo. Mas essa percepção é, na maioria das vezes, enganosa.
As culturas ocidentais impostas ao mundo, por meio da expansão
e formação do capitalismo, de fato oprimiu, soterrou e até mesmo
destruiu culturas inteiras, na medida em que produziu e produz
inúmeros genocídios.14
Hoje é justamente das bordas do sistema capitalista mundial
que vêm boas notícias. É também no interior dos grupos sociais
marginalizados e das beiras das metrópoles, dos bairros mais lon-
gínquos ou nas áreas centrais mais empobrecidas que emerge um
tipo novo de protagonismo civilizador. No caso de São Paulo, muitos
deles são jovens negros e negras que estão cultivando uma revolta
estético-cultural jamais assistida no Brasil. E essa mudança de
sensibilidade vem sendo estimulada há pelo menos dois séculos.
Tal potência acumulada diz respeito a vários campos da vida social,
às relações de poder e imaginários quase sempre desprezados na
construção da sociedade brasileira contemporânea.

14  “A análise por pertencimento racial revela que na população total, no ano de 2002, o
estado de São Paulo apresentou 8.220 homicídios para brancos (30.3%) e 5.988 para ne-
gros (56.0%). Na faixa etária de 15-24 anos, os números foram 3.178 homicídios para brancos
(64.4%) e 2.732 para negros (127.9%) (WAISELFISZ, 2004). No ano de 2004, segundo o Mapa
da Violência 2006 (Idem, 2006), São Paulo apresentou 6.394 homicídios entre os brancos
(taxa de 22,7) e 4.652 entre os negros (taxa de 41,2). Na faixa de 15-24 anos, 2.251 para brancos
(taxa de 45,1) e 2.004 para negros (taxa 90,7)”. Idem, p. 94.

Negras InsUrgências 43 Capulanas Cia de Arte Negra


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Negras InsUrgências 45 Capulanas Cia de Arte Negra


Negras InsUrgências 46 Capulanas Cia de Arte Negra
2. Ialodês e Capulanas:
um oceano de
saberes femininos
por Dione Carlos

“Uma conjuração mágica de


forças passadas e presentes.
Ancestralidade nos ossos, no
sangue e no ritual.”

Niama Safia Sandy, Antropóloga

Ìyàlodóòde é um título Yorubá para mulheres que atuam nas


suas comunidades em postos de liderança. Ialodê é a forma brasi-
leira, com outra grafia e sonoridade, porém, com o mesmo intuito
de reconhecer as mulheres que exercem liderança onde vivem.
Esse é o elemento deflagrador do processo artístico no qual fui
responsável pela dramaturgia, a convite da Cia Capulanas.
No Brasil, são muitos os exemplos de mulheres Ialodês. As
“ganhadeiras-escravas, forras anônimas, negras de tabuleiros”, por
exemplo, que, atuando em seus pequenos comércios móveis, es-
palhados pelas ruas do país, conseguiram articular planos de fuga
e garantir a alforria de escravizados e escravizadas, por meio da
venda de seus produtos materiais, além de portarem e resguarda-
rem bens simbólicos culturais. O candomblé, que nasce no Brasil
(não existe na África), fundado e liderado por mulheres, fruto de
um oceano de saberes femininos nos quais fomos e somos ba-
nhados. Outro exemplo disso é a formação de uma Cia de Arte
Negra, criada por artistas negras, como é o caso das Capulanas.
Pensando nessas mulheres, na força de criação, na inspiração
gerada por elas, surge a escrita do texto, que dá origem à peça
Ialodês: Um manifesto da cura ao gozo.

Negras InsUrgências 49 Capulanas Cia de Arte Negra


A Cia de Arte Negra Capulanas é representante de uma herança
simbólica e material de nossas ancestrais artísticas conhecidas
(como Dona Raquel Trindade) e desconhecidas (nossas tatatara-
vós). A Cia desempenha um papel fundamental no cenário teatral e
na comunidade, visto que sua sede fica na periferia de onde vieram
as integrantes do grupo e onde permanecem vivendo. É lá também
que acontece grande parte das apresentações de seus trabalhos.
São, portanto, artistas multiplicadoras do saber, Ialodês da Arte.
O projeto das Capulanas tem como base o movimento Afrofutu-
rista, como uma resposta à proposta de criar uma nova possibilida-
de de futuro. O termo Afrofuturismo foi usado pelo crítico america-
no Mark Dery, em 1994, no ensaio “Black to the future”, que refletia
sobre o fato de termos poucos escritores e escritoras de origem negra
criando ficção científica. O movimento, porém, tem na música alguns
de seus principais representantes, como o músico, pianista, poeta e
filósofo Sun Ra, que na década de 1950 criou uma narrativa cósmica
para si e reinventou o jazz. Além dele, grupos como Parliament, Earth,
Wind and Fire ou Funkadelic, orquestras como a Afro-brasileira, a
Rumpilezz, a dupla franco-cubana Ibeyi, artistas como George Clinton
(Mothership-Funk), Lee Perry (Black Ark-Reggae), Herbie Hancock,
Afrika Bambaataa, Alice Coltrane, Miles Davis, Ornette Coleman, Fela
Kuti, Janelle Monáe, Naná Vasconcelos, Itamar Assumpção, Xênia
França, Ma Boo (a quem tenho a honra de conhecer pessoalmente),
entre muitos outros nomes, foram inspiração para a construção me-
lódica da dramaturgia.1 Parti também do conceito de SANKOFA, um
dos símbolos de um conjunto ideográfico conhecido como ADINKRA
(que significa despedida), do povo AKAN – da Antiga Costa do Ouro,
atual Gana –, que se espalhou pela Costa do Marfim, Togo e outros
países da África Ocidental. Estabeleci que a tradução do princípio
SANKOFA – “Voltar e apanhar, de novo, aquilo que ficou para trás”;
ou SE WO WERE FI NA WO SANKOFA A YENKYI (“Não é tabu voltar
para trás e recuperar o que você perdeu”) – seria a base filosófica
para a criação do texto. O SANKOFA é representado por um pássaro
africano com duas cabeças: uma voltada para o passado e a outra
para o futuro. Considerando que ele resgata a memória para seguir
fazendo história no tempo presente, decidi que essa figura seria uma
das personagens da narrativa.
Pensando nessa ave mítica, comecei a pesquisar sobre a

1  Há um catálogo, intitulado “Afrofuturismo - cinema e música em uma viagem intergalácti-


ca”, cuja curadoria é da comunicadora Kênia Freitas. O material, que faz parte de um projeto
da Caixa Cultural e traz muitas dessas referências, está disponível na internet.

Negras InsUrgências 50 Capulanas Cia de Arte Negra


relação dos pássaros com a humanidade, passando pelas Iyamis-
-Ajés ou Iyamis-Oxorongás (“Minha mãe feiticeira“), até o relato
de uma cooperação entre espécies, existente em Moçambique,
que envolve um pássaro conhecido como Indicador-Indicador e o
povo AJAUA. Por meio de cantos especiais, homens e aves con-
seguem trocar informações para encontrar colmeias carregadas de
mel. O primeiro grupo fica com o mel e o segundo com a cera
das colmeias. Pesquisadores tentaram reproduzir os cantos, mas
os pássaros não responderam; apenas a vocalização produzida
por integrantes do povo AJAUA são atendidas pelos animais. Em
alguns casos, as aves procuram os humanos e entoam a canção;
em outros, os homens chamam os pássaros. As Capulanas trouxe-
ram, também, o livro O pássaro do mel: estudos de História Africana,
de Isabel Castro Henriques, que concentra trinta anos de estudos
consagrados à África e fala sobre a ambiguidade criadora, pois
“quando se encontra o mel, coloca-se as abelhas em risco”.
Durante a pesquisa, me deparei ainda com a comunidade das
mulheres Macuas, do norte de Moçambique, baseada na matrili-
nearidade: para elas a ascendência materna é mais importante (o
filho pertence à mãe); as mulheres detêm o controle dos meios de
produção, além de promoverem o autoconhecimento corporal e a
liberdade sexual. Esse modelo me forneceu a chave de criação para
uma narrativa sobre uma sociedade liderada por mulheres que, a
partir da relação com a natureza, descobrem modos de produção
que lhes permitem construir um estrutura autônoma, baseada no
mel, no ouro e na Arte (Música).
Alguns diálogos travados com o pesquisador etno-musicólo-
go brasileiro Rafael Galante me ajudaram a descobrir a existência
de sinos mágicos, tocados pelas Iyamis- Oxorongás. Esses sinos
possuem a função de encantar quem os ouve. Descobri também
algumas tradições que proíbem as mulheres de tocarem certos ins-
trumentos. Pensando nisso, imaginei uma Arkestra, uma orquestra
feminina composta por mulheres, que seriam herdeiras das primei-
ras Ialodês. Assim, criei as seguintes personagens, todas primas-ir-
mãs, e dediquei um instrumento a cada uma delas:
ASALI (Mel Doce): Agogô
AYOBAMI (Que a riqueza me encontre): Gã ou Hongã
FEMI (Me ame): Adjá
BISI (A primeira filha): Chekere
ONI (Nascida em um lugar sagrado)- Voz

Negras InsUrgências 51 Capulanas Cia de Arte Negra


ASALI representa o autoconhecimento do corpo. O corpo como
território político, o corpo festa, que escreve, produz conhecimento,
é fonte de prazer, fronteira criada por cada um de nós. Possui uma
relação de amor com Oni, seu oposto complementar. Ligada dire-
tamente ao mel.
AYOBAMI é a guardiã dos bens simbólicos, do conhecimento
sagrado, da relação das mulheres com a lua, a natureza. Represen-
ta as Ialorixás brasileiras que, há séculos, cumprem a tarefa de res-
guardar as tradições trazidas da África, além de, muitas vezes, mes-
clarem-nas com o conhecimento ameríndio produzido no Brasil.
Ligada ao ouro.
FEMI é a mãe ancestral, que defende suas filhas e seus filhos,
muito ligada aos rituais de sangue. Arquétipo da mãe que embala,
mas sabe guerrear. As Mães da Praça da Sé, da Praça de Maio,
Zuzu Angel, as mães que não desistem de seus filhos estão todas
personificadas nesta figura. Ligada ao útero ancestral.
BISI representa a primeira mulher a exigir respeito e igualdade,
as mestras que nos inspiram a criar, a continuar. É a mestra do
grupo, a regente da Arkestra, responsável pela partilha de conheci-
mento. Está ligada à música, como uma riqueza imaterial de grande
importância.
ONI é a Ialodê que se afasta do grupo, sofre uma violência
fora da sociedade e retorna machucada. Parte da narrativa acom-
panha o seu processo de dor e cura. Representa o afastamento das
origens, processo pelo qual muitas de nós passamos em algum
momento. Possui uma relação de amor com ASALI. Ligada ao ouro
e ao mel, na mesma medida.
Todas as Ialodês da narrativa são descendentes das mulheres
que deram início à cultura da produção do mel, do ouro e, por fim,
da música. Suas ancestrais chamavam umas às outras de irmãs,
independentemente de laços sanguíneos.
É importante frisar que todo o material produzido no decor-
rer da criação do projeto Afrofuturista, proposto pelo grupo, me foi
confiado, desenvolvido e é um dos pilares da escrita da dramatur-
gia. Relatos pessoais e outras referências artísticas trazidas pela
equipe foram de extrema importância para a construção da nar-
rativa. O projeto anterior do grupo Capulanas foi sobre a saúde da
mulher negra e envolvia uma pesquisa sobre memórias interdita-
das. Ialodês aborda a cura e o gozo. “Da cura ao gozo: estética,
saúde e prazer”, nas palavras delas.

Negras InsUrgências 52 Capulanas Cia de Arte Negra


A antropóloga Niama Safia Sandy, citada na epígrafe deste
texto e responsável pela exposição Black Magic: Afro Pasts/Afro-
futures, define o Afrofuturismo como “Uma estética cultural que
combina elementos de ficção científica, realismo mágico e história
africana”. Ou seja, “O agora é agora, o agora é passado, o agora é
futuro. Reinventar conceitos históricos do passado, criar um novo
futuro, vencer o trauma histórico e projetar um futuro brilhante”.
Esses são alguns dos conceitos desse movimento, que não ignora
as questões geradas pelo preconceito racial e social.
Na narrativa de Ialodês há um risco iminente. Os que estão
fora da comunidade, fora da ética de convívio desse lugar criado
pelas mulheres, decidem persegui-las por causa dos recursos na-
turais dos quais elas são guardiãs. Tais figuras não estão definidas
(decidi, como dramaturga, jamais dar foco às forças opressoras) e
representam uma ameaça à comunidade. As Ialodês, autônomas,
passam a dedicar seus talentos à música, produzindo estados de
êxtase em quem as ouve. Sofrem, a partir disso, acusações de feiti-
çaria, bruxaria. Em lugar de negarem, recuarem, assumem que são
feiticeiras, bruxas, e realizam apresentações cada vez mais repletas
de rituais, assustando os seus inimigos e convocando todas as
pessoas a aderirem a um outro estilo de vida, totalmente comuni-
tário e libertário. Suas canções tornam-se, então, cantigas, mantras,
orações, invocações e manifestos políticos dos corpos. A maior
parte do texto dramatúrgico é performativo.
Em O espírito da intimidade, de Sobonfu Somé, a importância
de alimentarmos os vínculos com o nosso espírito surge como um
dos pilares do resgate da ligação entre nós e nossos ancestrais, de
nossas vidas individuais com as aldeias que nos deram origem.
Acredito que isso precisa ser feito com proposições efetivas de
outros imaginários, com a naturalização das presenças que ainda
são consideradas alteridades ou “o outro”, respeitando a singula-
ridade de cada ser. Essa crença é a base de todos os textos que
escrevo. Se a disputa da narrativa negra é pelo tempo, em conse-
quência de todo o apagamento e invisibilidade impostos, precisa-
mos mesmo reformular a noção de tempo e trazer um pouco de
futuro para o nosso presente; ou seremos prisioneiros do pior de
nossos passados. É preciso exercitar a imaginação com o melhor
que há em nós, para que possamos criar outras narrativas para o
mundo em que vivemos. É urgente que cada qual possa contar a
própria história, sem intermediários. “Somos o sonho de nossos
ancestrais”, ou seja, alguém sonhou com você, alguém sonhou

Negras InsUrgências 53 Capulanas Cia de Arte Negra


comigo. É inspirador pensar assim. É isso que o Afrofuturismo
propõe, que possamos sonhar com os nossos descendentes, que
possamos nos colocar dentro da ancestralidade unindo morte e
vida, numa pulsão, numa convocação de vida. Nós, que estamos
vivas, vivos, somos os pássaros migratórios do Sankofa. Está em
nossas mãos, mentes e em nossos corações a tarefa de criar e
realizar novas propostas de humanidade.
Quando leio, por exemplo, esta descrição do pesquisador
Renato da Silveira: “Na organização dos reinos Fons e Nagôs-Ioru-
bás, as mulheres desempenharam papel ativo, eram elas que ad-
ministravam o palácio real, assumindo os postos de comando mais
importantes, além de fiscalizarem o funcionamento do Estado”2, fica
evidente, para mim, que necessitamos resgatar o que foi perdido,
pois em nossa memória celular, há, sim, a lembrança de um tempo
em que nós, mulheres, ocupávamos cargos de liderança e poder.

2  Em “Jeje-nagô, Iorubá-tapa, Aon-efon, Ijexá: processo de constituição do candomblé da


Barroquinha”

Negras InsUrgências 54 Capulanas Cia de Arte Negra


De minha parte, registro a gratidão pelo encontro com
cada uma das Capulanas: Adriana Paixão, Carol Ewaci,

Débora Marçal, Flávia Rosa, Priscila Obaci; o encena-


dor Kleber Lourenço, com quem estabeleci uma parceria

igualitária e frutífera; cada membro da equipe técnica do

espetáculo; além da alegria de conhecer o pesquisador,

africanista, doutor em Ciência Social e músico Salloma

Salomão, um dos pensadores do nosso teatro, da nossa


comunidade e com quem partilho este capítulo tão especial

do livro e da nossa história. Agradeço também ao pesqui-


sador, historiador, etnomusicólogo Rafael Galante e,

especialmente, à Vandira Pereira da Mata, nossa Ialodê,

engenheira agrônoma especializada em apicultura, filha

de Oxum, que nos forneceu material sobre a sociedade

das abelhas, a produção do mel e a tradição do cargo de

Ialodê dentro das casas de candomblé. Obrigada também


aos meus filhos: Dannilo, Malcolm e Dionne, por me

inspirarem e me nutrirem e ao meu companheiro de vida,

Carlos Lima. Minha mãe: Maria- Oyá Delê, pela vida. Que
bons ventos nos guiem. Vida longa às Capulanas - Cia

de Arte Negra. SANKOFEMOS.

Dione Carlos

Negras InsUrgências 55 Capulanas Cia de Arte Negra


3. Por uma sociologia
do teatro negro
feminino das Capulanas:
indícios e percursos
por Adriana Paixão

É preciso imagem para recuperar a identidade, tem que tor-


nar-se visível, porque o rosto de um é o reflexo do outro,
o corpo de um é o reflexo do outro e em cada um o re-
flexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da
perda da identidade,

Beatriz Nascimento

Capulanas Cia de Arte Negra tem se pautado em uma investi-


gação social e criação estética em que as mulheres negras sejam
tema e protagonistas, instigadas a buscar compreensão de tal per-
cepção do racismo e da dominação de gênero.
A aparente ausência feminina negra no meio artístico brasilei-
ro nos leva a fatos já constatados por outras gerações. A busca,
localização e recomposição da história sociocultural do teatro
negro brasileiro, em sua expressão feminina, tem nos colocado
diante da produção do silêncio e da invisibilidade de figuras de
impressionante ação, mas que, no decorrer dos anos, pouco a
pouco, tiveram suas memórias apagadas, no processo de cons-
trução das narrativas, inclusive daquelas que se pretendem con-
traponto ao racismo institucional.
Ao identificar as narrativas femininas negras e localizar outras
referências históricas e artísticas para nossa criação e poética
compreendemos que houve, e há, muitas mulheres negras na pro-
dução teatral, mas suas produções são invisibilizadas. É possível

Negras InsUrgências 57 Capulanas Cia de Arte Negra


perceber, tendo como referência o que Michael Pollack chamou
de “memórias subterrâneas”, que há uma memória oficial hege-
mônica que pode ser confrontada com memórias não reconheci-
das e subterrâneas.
São Paulo é uma cidade cuja produção cultural é variada e rica.
Grupos, escolas públicas e privadas de teatro encontram-se enrai-
zados na cidade e contam com representação de vários setores
profissionais da atividade teatral. A Secretaria Municipal de Cultura
possui a maior rede de casas de espetáculos teatrais da América
Latina. Além disso, há também instituições que fomentam e incenti-
vam a produção teatral e, nos últimos dez anos, surgiram inúmeras
casas privadas de espetáculos na área central da cidade. No entanto,
o acesso a esses espaços é profundamente demarcado por raça
e classe, e esses equipamentos culturais estão situados em áreas
centrais e bairros nobres. Negros e pobres são, em sua maioria, artís-
tica e culturalmente excluídos das políticas públicas de cultura.
Mulheres negras estão presentes no seio da constituição his-
tórica, social e econômica do Brasil, mas submetidas à dominação
gênero/etnia; seus esforços são soterrados a fim de inviabilizar a
continuidade de suas práticas autônomas e aguerridas.
A sociedade brasileira sofreu inúmeras mudanças políticas,
sociais, culturais; a própria linguagem teatral passou por muitas
inovações. Nos anos 1940, o engajamento de intelectuais e artistas
negros estava bastante restrito a pequenos grupos situados em
São Paulo e Rio de Janeiro. A produção teatral profissionalizada,
quase que exclusivamente voltava-se para o consumo cultural de
setores das elites urbanas, brancas em sua maioria.
Nesse contexto, entende-se por Teatro Negro um conjunto
de produções culturais que usam a linguagem da escrita e ora-
lidade, dramatúrgica e teatral, combinando corporeidade, gestu-
alidade, visualidade, musicalidade e representação para compor
quadros fictícios da vida social, enredados com personagens pre-
dominantemente negros – cujos traços étnicos e culturais podem
ser remetidos às Áfricas tanto ancestral, quanto histórica – e ou
os africanos e seus descendentes nas Américas. Uma arte que
comunica conteúdos simbólicos e recompõe imaginários dos
descendentes de africanos e suas culturas residuais no “novo
mundo” ou mesmo na Europa
Segundo o historiador e orientador das Capulanas, Salloma
Salomão Jovino da Silva (2015, p. 95), o teatro enquanto linguagem

Negras InsUrgências 58 Capulanas Cia de Arte Negra


artística, tal como conhecemos, é uma criação ocidental. Operada
por negros – a partir de referências específicas das civilizações afri-
canas, dos contatos da diáspora, da experiência da escravidão e do
racismo antinegro –, converte-se não em um subteatro com corpos
negros e conceitos ocidentais, mas em um antiteatro, instaurando
um deslocamento da hegemonia cultural e artística do poder racial.
A dramaturgia e o teatro negro podem ser considerados étnotea-
tros, na medida em que seus agentes reivindicam uma linguagem,
com conteúdo e formas específicas.
A presença de africanos nas Américas, de forma geral, foi condi-
cionada pelo tráfico de pessoas. Ainda assim, as culturas negras na
diáspora comprovam uma diversidade de experiências, soluções prá-
ticas, resoluções filosóficas e estéticas que atestam algo que autores
como Joseph Ki-Zerbo, Carlos Serrano, Elikia M’Bokolo, e outros tantos,
já haviam ressaltado: a unidade e diversidade das culturas africanas.
A localização das situações em que houve efetiva quebra dos
processos sociais de dominação e adoecimento encontra respos-
tas na ancestralidade. A emergência de uma leitura sobre a origem
africana atemporal e mítica, contraposta às memórias de luta e
resistência, por algum momento pareceu ser capaz de nos ajudar a
refazer nossos caminhos de liberdade, autonomia e protagonismo.
Trilhas de emancipação e superação de dor, antes transformadas
apenas em silêncio.
Capulanas se ancora na estética negra, que ressignifica elemen-
tos religiosos dos jongos, candomblés e umbandas para o mundo
do espetáculo urbano. As memórias da ancestralidade africana e
do corpo negro da diáspora são elementos preponderantes na cena
teatral do grupo e determinam, juntamente com os outros elemen-
tos simbólicos, suas dimensões culturais e filosóficas específicas.
O teatro convencional e hegemônico esconde os personagens
negros em estereótipos, em que a forma negra é apresentada, mas
ao mesmo tempo quase sempre destituída de positividade e com-
plexidade. Além disso, com raras exceções, tende a capturar a pre-
sença negra em cena na chave da comicidade, não como forma de
espontaneidade, contentamento ou alegria, mas como depreciação
e jocosidade, deslocamento e incompreensão.
É possível compreender o esforço de intelectuais negras que
vieram antes de nós e já partiram, como Lélia Gonzales e Beatriz

Negras InsUrgências 59 Capulanas Cia de Arte Negra


Nascimento, e produziram uma economia moral1 que podemos
chamar de feminismo negro brasileiro. Esses estudos nos permi-
tem olhar para a sociedade brasileira de outro jeito, sem fatalismo.
Devemos honrar suas lutas e lembrar seus nomes, recuperando
suas produções e projetos de emancipação.
Não foi a universidade que nos apresentou nomes, histórias de
vida e experiências estéticas e criativas de figuras como Maria Nas-
cimento, Beatriz Nascimento, Margarida Trindade e Thereza Santos.
Essas histórias circulam no meio social, conhecido como “Movi-
mento Negro”. Mas mesmo nesse meio aparecem jogadas em um
quadro referencial predominantemente masculino, reiterando a sin-
gularidade da condição específica das mulheres negras já enfatiza-
da por teóricas negras como Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez.
Ambas teciam críticas e se posicionavam diante dos processos
de castração política pelos quais as mulheres negras passavam,
inclusive dentro dos movimentos negros dos anos de 1970/1980.
As reivindicações das mulheres brancas não contemplavam a re-
alidade das mulheres negras, ou seja, o movimento feminista não
considerava as diferenças raciais e peculiaridades que identifica-
vam a luta das mulheres negras.
No entanto, tampouco dentro das reivindicações do próprio
Movimento Negro eram consideradas as questões de gênero e os
processos de tripla discriminação na sociedade de classes. Lélia
Gonzalez (2008, p. 38) apontou para o seguinte fato: homens
negros e parceiros políticos dentro do movimento negro apresen-
tam posturas sexistas, com pouca aceitação de mulheres negras
em posições de lideranças e articulações; apontou ainda que,
embora as mulheres negras não tenham se distanciado dos mo-
vimentos negros, travavam essa batalha interna contra as práticas
dominantes masculinas.
O protagonismo teatral negro e feminino é, de certa maneira,
uma inovação, embora tenham existido experiências de dramatur-
gias realizadas por mulheres negras em São Paulo em décadas an-
teriores, a exemplo de projetos feitos por atrizes, dramaturgas e di-

1 A noção de economia moral elaborada por Thompson (1998) foi cunhada dos ingleses
pobres no século XVIII, cujo comportamento era orientado por pressupostos éticos e morais,
referendados nos costumes, na tradição, e em um consenso popular, que, ao serem desrespei-
tados pelos sujeitos da ascendente economia do “livre mercado”, aqueles ficavam indignados
e agiam no intuito de controlar os preços dos alimentos. Ver em SCHENATO, Vilson Cesar.
Economia moral e resistências cotidianas no campesinato: uma leitura a partir de E.P. Thomp-
son e James Scott Vilson Cesar Schenato. Trabalho apresentado no GT02, Natal, nov. 2010.

Negras InsUrgências 60 Capulanas Cia de Arte Negra


retoras negras como Carmen Luz, Zenaide Jadile e Thereza Santos.
A cena atual traz uma dimensão coletiva de pesquisa e reali-
zação, que somente pode existir nesse contexto porque, primeira-
mente, há um acúmulo que pode ser visitado, discutido e supera-
do. Além disso, o maior índice de escolarização e ativismo social
e político dessas mulheres, muitas vezes as primeiras com curso
superior em suas famílias, possibilitou que adquirissem habilida-
des, técnicas e saberes que as capacitaram para compreender de
forma crítica sua condição, assim como o contexto de produção de
sua linguagem artística.
Os discursos corporais, imagéticos, poéticos, textuais e gráficos
trazem as dimensões presentes nas estéticas negras anteriormen-
te apresentadas. Corporalidade é um conceito a partir do qual as
representações são reconfiguradas como experiências históricas,
princípios filosóficos, saberes ancestrais.
A oralidade tem sido um elemento centralizador do processo
criativo. Para Hampaté Bâ, na tradição africana, a oralidade assume
valor imensurável, é vínculo com o ancestral, permite a transmis-
são do conhecimento, da arte e da espiritualidade, adquirindo valor
sagrado e ritualístico; “a tradição africana, portanto, concebe a fala
como um dom de Deus. Ela é ao mesmo tempo divina no sentido
descendente e sagrado no sentido ascendente”2. Na sociedade con-
temporânea urbana e brasileira, a palavra é vista como algo arcaico
e ultrapassado. Aqui, qual é o lugar da oralidade de matriz africana?
A cultura escolar é, de modo geral, responsável pela introdução da
escrita na vida da população e tem sido, ao mesmo tempo, um fator
importante de manutenção das desigualdades históricas e estruturais,
alimentadas pelo racismo antinegro e anti-indígena no Brasil. Rejeita-
-se a cultura oral, alimentando-se por ela o desprezo, e perpetua-se a
exclusividade da escolarização. As formas orais negras são recupera-
das justamente em função dessa tensão entre a normalização cultural
escrita e a marginalização escolar da população negra.
A Cia Capulanas constrói seus repertórios bebendo simulta-
neamente nas fontes orais presentes nos espaços negros de so-
ciabilidade, e acessando as tecnologias de combate ao racismo,
construídas pelos movimentos negros, como escrituras, peças te-
atrais, estudos e monografias disponíveis em várias plataformas.

2  Hampaté Bâ. A tradição viva. In: KI-ZERBO, Joseph (org.) História Geral da África I: metodo-
logia e pré-história da África. São Paulo, Ed. Ática/Unesco, 1980, p. 181-218.

Negras InsUrgências 61 Capulanas Cia de Arte Negra


Rompem também o silenciamento imposto às mulheres negras
nesses espaços, instaurando outras perspectivas.
Um dos primeiros elementos de autoafirmação da negritude
passa pela valorização e reconhecimento da imagem, processo
que na maioria da população negra é deteriorado e forjado como
aspecto negativo. A exclusão social das mulheres negras nos
coloca em condição de subalternização, com vidas marcadas por
referenciais definidos por uma sociedade racista e machista.
Historicamente, a partir de ideologias complementares e cru-
zadas, a representação negativa da imagem da mulher é um fato
incontestável. Quando se considera as mulheres negras, a situação
é muito mais grave: elas ocupam o último lugar nas hierarquias
sociais. Essa condição de dupla dominação de sexo e raça, já nos
anos 1970, era denunciada e conceitualmente elaborada por in-
telectuais como Beatriz Nascimento e Lélia Gonzales. A imagem
social depreciada da mulher negra foi sedimentada na expressão
literária, teatral e principalmente na mídia televisiva. A construção
do lugar social da trabalhadora doméstica, apesar de coincidir com
a realidade de muitas mulheres negras, fixava para elas um lugar
abaixo do rés de chão.
Capulanas em suas criações artísticas propõem a articulação
de um discurso visual imagético constituído a partir dos imaginá-
rios africanos e afro-brasileiros, reconhecidos culturalmente pela
população negra, figurados em objetos e materiais que se desta-
cam no mundo doméstico das famílias negras, por meio das folhas
e raízes, cabaças e alimentos, cumbucas e adereços de tradição
dos espaços religiosos, cores associadas às entidades e divindades
africanas. Trata-se de uma teatralidade referenciada na abertura de
caminhos, para uma nova percepção, ao fazer emergir do silen-
ciamento as trajetórias de vidas marcadas pela violência física e
simbólica perpetrada pelas formas de dominação de gênero e raça
presentes na formação sócio-histórica do Brasil. As peças e suas
montagens envolvem questões relativas a vários níveis da saúde,
imagem e subjetividades da mulher, em especial das mulheres
negras, frisando as suas especificidades históricas e culturais, o
que só é possível com a recuperação dos saberes e memórias es-
pecíficas do mundo feminino e da noção de ancestralidade afri-
cana. Pretendemos, assim, alcançar a reinscrição das experiências
afro-diaspóricas especificamente femininas.

Negras InsUrgências 62 Capulanas Cia de Arte Negra


4. Vozes e palavras bordadas
de mulheres negras:
A construção poético-
dramatúrgica Capulânica
por Flávia Rosa

“Como disse Fernanda Carneiro,


nossos passos vêm de longe! Então,

talvez seja interessante voltar sobre

esses passos e buscar, neles, os ele-

mentos que nos ajudem a enxergar

um pouco melhor o que somos”

Jurema Werneck1

Para pincelar um quadro que revele onde nasce o sopro de


nossas vozes, é preciso relembrar rapidamente o caminho que nos
traz até o agora. O teatro que fazemos é de identidade negra, o que
nos permite assumir personagens em primeira pessoa fazendo de
nossa arte um desdobramento das experiências que vivemos.
As pesquisas das Capulanas mergulham nas subjetividades,
semelhanças e diferenças históricas que marcam o que é ser negra.
Somos todas mulheres negras, com nossas múltiplas diferenças e
singulares trajetórias. Em onze anos de caminhada fizemos muitas

1  * CARNEIRO, Fernanda. Nossos passos vêm de longe. In: WERNECK, Jurema; MENDONÇA,
Maísa; WHITE, Evelyn. C. O livro da saúde das mulheres: nossos passos vêm de longe. Rio de
Janeiro: Pallas/Crioula, 2002.

Negras InsUrgências 65 Capulanas Cia de Arte Negra


descobertas coletivas e individuais. Levar aos espaços cênicos per-
sonagens que se fundem em ficção e realidade é lidar com senti-
mentos vividos em alguma circunstância, direta ou indiretamente.
É dar espaço para refletir sobre o que passou e repensar o que está
por vir. É atualizar a história da forma que acreditamos. Contribuir
para um imaginário diferente daquele ao que fomos condicionadas.
O espaço cênico sempre foi e continua sendo sagrado por ter
o poder de recriação. É uma arma muito poderosa no que diz res-
peito a dar visibilidade e escuta ao povo preto e periférico. Como
nos diz Davis, “as abordagens feministas negras das lutas pela
igualdade global, de tal sorte, sempre enfatizaram as interseccio-
nalidades das lutas.”2
A nossa arte é amplificador dos nossos ruídos, mostrando ao
mundo quem somos e o que temos para dizer. Por isso, todos os
símbolos e signos escolhidos para dramaturgia cênica perpassam
por esses aspectos de nossas histórias. Raça, gênero e território
são demarcadores importantes da nossa pesquisa.
Para o primeiro trabalho, Solano Trindade e suas negras poesias,
estivemos em vários quintais das “quebradas” de São Paulo. Terrei-
ros, espaços coletivos de convivência por onde passamos e onde
escolhemos plantar nossa semente, no Jardim São Luís, Zona Sul
de São Paulo, para ressignificar as memórias das festas em família,
lugar de comunhão, de religião no sentido de religar às origens,
espaços de afetos e berço de partilha.
Bebemos nas festas populares negras e nas religiões de matriz
africana alimentando o canto orgânico e o pé de dança. Fizemos a
releitura de personagens criadas a partir do arquétipo das “pombas
giras” em forma de rainhas. Denunciamos o pente quente usado
num passado recente para alisar os cabelos crespos em contra-
ponto a assumirmos nossos cabelos. Passamos muito pela poética
da sobrevivência de jovens negras periféricas que decidem prota-
gonizar a cena com tudo que as constrói. Uma espiral de passado,
presente e futuro em corpos poético-políticos.
Parte do caminho construído nesses estudos, e a forma como
adentramos ao nosso teatro negro, foi registrado em duas publi-
cações. O livro Em goma dos pés à cabeça, os quintais que sou foi
produzido e organizado em parceria com o mestre doutor Salloma
Salomão Jovino da Silva; compondo o livro realizamos também o

2  DAVIS, Angela, Grios da diáspora. Brasilia: Griô Produções, 2017, p. 178.

Negras InsUrgências 66 Capulanas Cia de Arte Negra


documentário Pé no chão, em parceria com o NCA (Núcleo de Co-
municação Alternativa). Como aprendemos com Solano Trindade,
assumimos o compromisso de “pesquisar na fonte de origem e
devolver ao povo em forma de arte!”
A imagem foi o primeiro mote para a pesquisa. A urgência de
autoafirmação de nossos corpos e seus traços negroides como
algo positivo. Éramos e somos fortes e corajosas. O medo não as-
sombrava a determinação.  Era sabido onde, para quem e o que
queríamos de nossa arte.  Em dado momento percebemos que
essa era uma fatia bem pequena do que queríamos dizer sobre
mulheres negras, e que antes de olhar para fora era importante
olhar para dentro. Nos vimos adoecidas e silenciadas por esse
mundo machista, racista, xenofóbico, misógino, em que vivemos.
Foi necessário investigar como adoecemos e o que nos adoece
no campo físico, mental, espiritual e emocional. Lembrando Audrey
Lorde, “Eu ia morrer cedo, tivesse falado ou não. Meus silêncios
não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês.”3
Ou, dizendo de outra forma:

Ruptura*
Estou no meu ninho
Me relendo
Me assistindo
Me remexendo

Chega de soco no peito


Chega de friagem na barriga
Chega de enchentes de angústia

Estou partindo com o vento


Feito folha seca
Para logo ser absorvida por outra terra

Vou ao som dos pássaros que me guiam


Sem ter tempo ou lugar certo do pouso
Partindo

3 https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/
* Os poemas que compõem esse texto são todos da autoria de Flávia Rosa

Negras InsUrgências 67 Capulanas Cia de Arte Negra


Partida
Parte indo
Par de mim
Pra ti
Para outros oceanos, desertos ou planetas
Desaguar lá
Lá será que tem amor?
Porque em essepê tá foda

Em Sangoma saúde às mulheres negras, nosso segundo espe-


táculo, aprofundamos a reflexão a respeito dos motivos que nos
fazem adoecer. Um deles é o atendimento realizado pelo SUS
(Sistema Único de Saúde), que trata as mulheres negras com
descaso. Importante lembrar que à maioria das mulheres negras,
por questões socioeconômicas óbvias, só resta recorrer ao sistema
público de saúde. Outro grave fator que provoca o adoecimento é
o abandono institucional do governo desde a infância, o racismo
estrutural de nossa cultura higienista de supremacia branca, que
nos coloca como base estrutural da pirâmide social, obrigadas a
carregar tudo e todos. Além desses, há vários outros motivos, de
diferentes naturezas:

Extrema
Minha dor verte poesia
Meu talho abre minha alma
A secreção é lágrima doce
Vermelho fica o branco nos olhos
O soluço sopra palavras guardadas
Um buraco rasga o peito
Floresce espinhoso sentir
Amarga o doce fel saliva
Desamarra os braços afago
Desapega pensamentos duros
Gozo meus fluidos
Grito o dilúvio
Danço como aço
Elucido na escuridão
Transpareço a vulnerabilidade
Tropeço erguida
Vomito com elegância

Negras InsUrgências 68 Capulanas Cia de Arte Negra


Todos os tijolos entalados
Espiro na força
Pétalas envelhecidas com o tempo
Tempo que roda gigante invadindo a madrugada
Emplasto de céu choroso
Vulva maremoto
Ventre bálsamo
Acalma Negra Rosa

Partimos em busca de métodos “alternativos” de cura e au-


tocuidado com o objetivo de preservar nossa saúde e diminuir o
impacto dos fatores mencionados acima nesse processo. Fazemos
nossas as palavras de Davis:

Eu tomo isso como um desafio para as feministas negras in-


ternacionalistas hoje: incorporar o autocuidado em nossa
prática política, o autocuidado como uma prática coletiva,
e não individualista. Assim, quando nós conscientemente
cuidamos do nosso corpo, comemos conscientemente sa-
bendo do papel que a produção capitalista de alimentos
tem sobre a terra, os animais e sobre os nossos corpos.
Nós conscientemente incorporamos a espiritualidade em
nossa prática, reconhecendo que a saúde é sobre o corpo,
mente e espírito.4

Para isso foi necessário olhar para os saberes ancestrais. Quais


eram as formas de resistir de nossas antepassadas? Uma Sangoma
é uma praticante da medicina das ervas, adivinhação e aconselha-
mento na tradição Nguni (Zulu, Xhosa, Ndebele e Swazi), socie-
dades da África do Sul. A filosofia é baseada na crença dos espíri-
tos ancestrais.5 No Brasil podemos nos espelhar nas benzedeiras,
mães de santo, parteiras, na sua maioria mulheres que cuidam de
muitas pessoas e compartilham seus saberes milenares na prática
vivida com as ervas, o canto, a dança e a ligação com o espiritual,
sempre tendo como referência a relação do divino com o humano
e do humano com o divino. Missões passadas entre gerações fami-
liares. Nossa arte é instrumento de intersecção de lutas. 
Somos mulheres negras, artistas, mães, estudantes, ativistas

4  DAVIS, Angela, cit., p. 179.


5  https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Sangoma

Negras InsUrgências 69 Capulanas Cia de Arte Negra


intelectuais, macumbeiras, arte-educadoras. Como a arte imita a
vida e vice-versa, entendemos que tudo é um canal retroalimen-
tador. Participamos de rodas de mulheres negras na zona sul de
São Paulo aprendendo e praticando o autocuidado pessoal e co-
letivo. Nesses momentos abordamos mais uma linha da pesquisa
de Sangoma: os nossos “líquidos sagrados”. “Para o povo Zulu, o
corpo possui cinco líquidos sagrados: a lágrima, a saliva, o suor, o
sêmen e o fluxo menstrual. Como são sagrados só podemos ofere-
cê-los para quem amamos. De acordo com Marcos Ferreira:

A lágrima é o transbordamento; quando não cabe mais,


vaza. Lamber a lágrima de alguém é como trazer para si
aquela emoção. Em todas as comunidades o beijo é algo
sagrado, pois compartilha a saliva. O suor umedece as al-
mas. Na menarca (primeira menstruação) a menina não pode
pisar o chão até que ela se regenere, e o fluxo menstrual no
decorrer da vida adulta não será impeditivo para o amor.6

Esses líquidos sagrados transbordados em momento de co-


munhão circular entre mulheres são manifestação de amor e
cumplicidade. O espetáculo Sangoma nos proporcionou trocas de
saberes em rodas com grupo de mulheres negras jovens, da ter-
ceira idade, que trabalham na cooperativa de catadoras, lésbicas,
bis, atrizes... Isso tudo nos delimitou um caminho que desdobrou
também na publicação Mulheres líquidos – os encontros fluentes
do sagrado com as memórias do corpo terra, que foi organizada em
parceria com a escritora Carmen Faustino. Em seu conteúdo há
imagens e depoimentos sobre o processo e elaboração da peça e
sobre a pesquisa que compõe a dramaturgia cênica desse trabalho.
Ficou evidente que existe prazer nessas práticas dos saberes
ancestrais e que elas nos unem, somos povo preto. É uma herança
ancestral e matriarcal no sentido de acolher, de cuidar e que nos
ensina a nos parir todos os dias.

6  http://ciacapulanas.blogspot.com/2011/05/espirito-sangoma-prof-marcos-ferreira.html?m=1

Negras InsUrgências 70 Capulanas Cia de Arte Negra


Marco zero
Meu útero cabaça se cria
Cresce, racha, quebra e traz um novo ciclo
Enxurrada de líquidos sagrados que me banham
Sopro profundo
Espiro o que já foi e respiro o que ainda vai ser
Preparada com força e amor para coroar a cabeça das
grandes beiras pretas
O sangue escorre de vagar meu entre
Rompe o breu e o clarão renova a nossa estória e meus
votos com a vida
No limite é o recomeço
Um choque de imersão
A terra é mãe
Acolhe, protege
É quilombo para onde sempre voltamos
Não somos tronco sem raízes
Ecoa grito nascido de rio negro
Rio sêmen
Rio que semeia
Nossos seios cheios
Amantes
Amadas
Amamentando em colo sagrado
Profundamente profano.

Sangoma nos deu uma chave para des-silenciar nosso grito,


nosso choro, nosso gozo, nosso suor. E transbordar nosso sangue
em forma de palavra/ritual.
Nossos corpos templos cantam alto e em bom tom “Derrama
água de mulher!” Juntas, as personagens se cuidam e se curam
numa Goma/Casa Sã, e é algo de muito prazer para elas.
No projeto Da cura ao gozo, o prazer é uma vertente. No ví-
deoarte A cama, o carma e o querer, também em parceria com
NCA (Núcleo de Comunicação Alternativa), concebido em quatro
partes, em formato de curta metragem, falamos do prazer de uma
forma mais ampla em nossas vivências. O prazer físico das mu-
lheres negras, o prazer das memórias de infância, o prazer de se
refazer dos apelidos pejorativos, o prazer de reler a beleza dos
nossos corpos.

Negras InsUrgências 71 Capulanas Cia de Arte Negra


Toque
Olho no olho
Fico hipnotizada
Me vejo refletida
Despida de alma
Como a lua nua
Sinto uma brisa suave
Sopro quente
E minha respiração acelera na largada
Meus pelos em estado de alerta
A boca seca
Num movimento sinuoso
Percorro pele ardente
Corpo nascente
Fluem líquidos sagrados nessa intensa dança
Sinto minha seiva escorrer o botão da rosa
E eu me delicio com o néctar
Pétala por pétala desbravada
Feito passarinho espalhando pólen
No pulsar do meu desejo
Meu coração agora no baixo ventre abriga borboletas
Toco uma a uma delicadamente
Num fluxo contínuo que se intensifica no ritmo dos meus
espasmos
Vulcão derrama o mel doce
Meu gemido anuncia que a hora cheia está por perto
Nessa hora a reza sempre se faz de boca bem aberta
Canto gemido
Gritos libertos de gozo
De gozo não
De prazer
Dos pés à cabeça
A cobra orgástica
Momento pororoca
Posições, mãos, pernas, cheiro, sabores, gemido...
Tudo se mistura
Me entrego
Me rendo ao bel prazer orgástico
Sou lua cheia

Negras InsUrgências 72 Capulanas Cia de Arte Negra


Na busca por uma autonomia para nossos corpos chegamos
em Ialodês. Nossos caminhos nunca foram designados por um
único tema ou recorte de pesquisa. Estamos sempre imersas em um
existir de complexidade de ser negra, em que tudo se mistura. Envol-
vidas no prazer e autocuidado na jornada para o terceiro espetáculo,
Ialodês: um manifesto da cura ao gozo, traçamos novos aspectos.
Ialodês!
Senhoras dos espaços!
Mulheres em destaque em seus campos de atuação e liderança!
A voz que traz o grito de várias vozes!
Yabá Oxum referência nas religiões de matriz africana!
Em nosso mosaico político e artístico nos espelhamos em
várias Ialodês contemporâneas. E nos enxergamos assim também.
Uma das formas de utilizar o Teatro Negro como arma de
empoderamento é a arte-educação. Espaço em que podemos
apresentar a outras pessoas um mundo diferente, que pode estar
dentro delas despercebido.
Uma fonte inesgotável de saberes para construção do espetá-
culo foram as oficinas que aconteceram na sede Goma Capulanas.
A oficina que facilitei, “Teatralidade das danças femininas”, foi
aberta somente para mulheres. Teatralidade como exercício de ob-
servação e permissão para ser observada, por meio da encenação/
ficção de suas histórias reais. Oportunidade para as mulheres parti-
cipantes se enxergarem como únicas e múltiplas. Experimentamos
danças femininas, porque nasciam das singularidades que cada
corpo oferecia. Um encontro que abordou a consciência corporal e
a consciência de existência. Se deu num processo de investigação
de dança pessoal.  A formação foi norteada pelo caminho do auto-
conhecimento e corporeidade.

Quais danças nos despertam prazer?

Como acessar o sagrado?

Quais são os tipos de feminino?

Como encontrar a ritualidade das danças?

Negras InsUrgências 73 Capulanas Cia de Arte Negra


Cada momento buscou despertar sensações, emoções conti-
das e reprimidas por padrões. Buscamos a liberdade.
As danças populares afro-brasileiras, danças circulares, entre
outras, simbolizam rituais de cura, de conquista e festejos. Nos apro-
priamos dessas leituras e nos conectamos com nosso próprio eu.
Trabalhamos autoestima, amor próprio e saúde emocional.
Os encontros buscaram proporcionar autorreconhecimen-
to, aproximação de cada uma com o seu próprio corpo e o de
outras mulheres. Aprofundamos o ganho de confiança e intimidade
para a busca da deusa interior de cada mulher. Nos guiamos pela
escrita de Audrey Lorde em Os usos do erótico: o erótico como poder.
Tomamos o despertar do erótico como potência de vida em todos
os aspectos. Nos debruçamos sobre o poder, os mistérios e segre-
dos da nossa vagina.
A dança foi colocada a serviço daquelas deusas que precisa-
vam expressar o ser mulher.
Conduzi a oficina com exercícios de várias vertentes de pes-
quisas corporais: teatro, dança, meditação, yoga, pilates, tantra,
dança do ventre, canto e outras. Levei vídeos, textos, nos quais
estivessem em evidência diversidades e singularidades de corpos.
Abordei os temas do prazer, erótico, sensual, sexual, vulva, mens-
truação, sexo, gozo, orgasmo, ejaculação, tendo sempre como foco
a discussão do que habita nossos imaginários. No último dia de
encontro fizemos um banquete. Acreditamos na sacralização de
nossos corpos deusas; e o alimento é parte fundamental para cura
e cultivo de amor próprio e comunhão. O alimento do corpo e da
alma simbolizados em banquete das Deusas.
Acreditamos   na   ideia  de  que  o  empoderamento   das   mu-
lheres negras se constroi no autoconhecimento!
Essa escrevivência pode parecer distanciada e não revelar a
emoção vivida nos encontros. Entendo que toda emoção e trans-
formação estão tatuadas na vida das mulheres que estiveram lá.
Todo meu esforço para explicar não daria conta de imprimir o
prazer real que está arquivado em nossos imaginários. Eu prefiro a
escritura corporal. Cantos fluidos vividos. Presentificação de nossas
histórias cíclicas. Palavra sopro quente.
Assim se constroi nossa dramaturgia Capulânica.
Minha memória é dançada por esse corpo poesia que é minha
espinha dorsal, emprestada às personagens do nosso panteão.

Negras InsUrgências 74 Capulanas Cia de Arte Negra


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PINTO, Ana Flávia Magalhães; DECHEN, Chaia; FERNANDES, Jaqueline. Griôs da diás-
pora negra. Brasília: Griô Produções, 2017.
ROSA, Allan & PRETA, Priscila. A calimba e a flauta - versos úmidos e tesos. São
Paulo: Edições Toró e Capulanas, 2012.
CAPULANAS. Em Goma: dos pés à cabeça, os quintais que sou. São Paulo: Capu-
lanas, 2011.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica - sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Instituto Kuanza, 2006.

Negras InsUrgências 75 Capulanas Cia de Arte Negra


5. Corporalidades Negras
além da cena: em busca da
saúde física e mental das
mulheres negras periféricas
por Carol Ewaci

“Quando uma mulher está grávida, faz-se um


ritual de audiência.
Nesse ritual, os anciãos per-
guntam à criança ‘quem é você? Por que está
vindo? Este mundo está muito complicado, por

que resolveu vir?’...”

Sobonfu Somé, O espírito da intimidade

O saber corporal negro está intimamente ligado a formas de


viver, de cuidar, de saudar o corpo vivo e o corpo ancestral: os mais
velhos, os que vieram antes e os que virão depois.
Compartilho nessa escrita as transformações que percebo em
meu corpo vindo da experiência da dança negra, em suas mais
variadas vertentes, como a técnica da dança afro, a capoeira, o hip
hop, chegando ao teatro negro das Capulanas.
Ao partilhar minhas vivências com o grupo pude contribuir,
como intérprete nos processos artísticos, com o processo de
criação das performances: Quando as palavras sopram os olhos,
respiro, Tênue até as montagens Sangoma saúde às mulheres negras
e Ialodês – um manifesto da cura ao gozo.

Negras InsUrgências 79 Capulanas Cia de Arte Negra


Corporalidades negras no teatro
O teatro das Capulanas transformou minha arte e minha vida.
Nascida e criada na zona leste de São Paulo, meu fazer artístico
passou por importantes grupos desse extremo da cidade como:
Afro II, na Cohab José Bonifácio, e Batakere, em São Miguel Paulis-
ta, entre outros. Porém, a cena negra na zona leste é bem fervorosa
e eu já identificava lugares de conforto e/ou refúgio no universo da
dança, especificamente a dança negra. Trabalhar com as Capula-
nas em Sangoma foi o estopim para eu me deslocar da zona leste
para a sul, entrando em contato com outras referências artísticas:
Umoja, Clariô, Salloma, dona Raquel Trindade.1
A experiência corporal na dança negra me levou ao teatro
negro. O TEN (Teatro Experimental do Negro) já trabalhava com
bailarinos como Mercedes Baptista, pioneira, grande referência da
dança afro no palco. Recebi o convite para ser criadora intérprete
do grupo com grande alegria. Eu já conhecia as integrantes da Cia
Capulanas de outros grupos de dança negra, já as admirava; além
disso, temos uma amizade-irmã na vida e no terreiro. Ao mesmo
tempo, era uma grande responsabilidade participar de um grupo
liderado por mulheres que falam sobre negritude, com recorte de
gênero e geográfico... Mas aceitei o desafio, acreditei que podia
contribuir com minha experiência. Hoje já somamos oito anos de
muitas risadas, choros de angústias, medos, transformação e arte.
O fazer teatral das Capulanas passa sempre pelo corpo, o que
vem de dentro dele e do diálogo com pesquisas. Portanto, toda
experiência de criação do grupo parte da pergunta do que o corpo-
-mulher-negra-periférica tem urgência em dizer.
Essa corporalidade é vivenciada como processo de pesquisa
para a produção dos espetáculos. Passamos pela preparação cor-
poral com Mestre Pitanga, em Sangoma; com Tom Campos, em
Deuses que dançam, e com o Coletivo 22 em Ialodês. Utilizamos a
linguagem das danças negras, partindo de matrizes de movimento:
Danças de orixás ou de terreiro; as nuances de movimentações da
linguagem da Dança Afro, como ondulações na coluna, as ações
corporais de girar, tremer, gicar (tremer de ombros), expandir e re-
colher. O enraizamento dos pés na terra nos serve de base para o

1  Dona Raquel me deu de presente o espaço do Teatro Popular Solano Trindade para a ceri-
mônia de meu casamento. Que honra! Estavam todas lá, junto com muitos familiares, amigos,
fazendo do casório uma verdadeira Ópera Negra. Inesquecível...

Negras InsUrgências 80 Capulanas Cia de Arte Negra


desenvolvimento das personagens: como andam, sentam, tomam
banho, entre outras ações. Os arqueamentos da coluna, a movi-
mentação dos braços vinda da reverberação das escápulas ficou
bem forte em Ialodês, desde a pesquisa que resultava das prepara-
ções corporais pensando em Deuses que dançam, principalmente
nas movimentações de Nanà, Osun e Oià. Em Sangoma, a corpora-
lidade dos arquétipos femininos dos Orixás foi base para a criação
do corpo e pensamento das personagens.
Nos trabalhos criados, meu maior desafio foi a voz. Como pro-
duzir os cantos com minha voz rouca, grave e forte, na qual eu
não via beleza? O trabalho de Naruna Costa, preparadora vocal de
cantos, foi fundamental para que eu compreendesse esse canto
que vem de dentro. Passamos juntas por esse processo, cada uma
no seu tempo. O método utilizado por Naruna nos levava a testar
todos os espaços por onde a voz poderia brotar. Cada uma de
nós tinha sua facilidade e sua dificuldade; porém fomos sempre
incitadas a procurar uma voz em coro, que fosse a voz do grupo.
Muitas vezes nos perdemos. Mas principalmente nos achamos, a
nós mesmas: quem somos e o porquê de termos as vozes que
temos. Descobrimos muito de nossa individualidade na construção
desse canto coletivo.
Na interpretação também me angustiava a questão: como fazer
do corpo voz? Como fazer caber as palavras dentro da boca? E
Kleber Lourenço, diretor-encenador, propunha, nos processos de
criação, procedimentos que pudessem fazer com que meu corpo
bailarino tivesse a vontade de agir, de trazer para o gesto a verdade
do que precisava ser dito. Ainda um desafio, pois pra quem é da
dança, falar em cena é outro trabalho, uma técnica que eu não do-
minava. Então, precisava acessar meu conhecimento sobre corpo,
com muita atenção, observando o grupo, a diversidade de corpos
que estavam ali criando e aprender com eles.
A meu ver, a diversidade de repertório corporal de cada uma
das integrantes é que proporciona a riqueza e diferenciação do tra-
balho das Capulanas. E meu repertório – que passa pelas inter-
pretações diversas das religiosidades negras, do jazz, balé, danças
afro-brasileiras e recentemente o pilates – foi importante para o
grupo ao longo desses anos. Assim, da dança negra, como minha
maior escola, passo a transitar pelo teatro negro, cantando, dan-
çando e interpretando com política, fé e imagem. Eu, protagonista.

Negras InsUrgências 81 Capulanas Cia de Arte Negra


A maternidade, o que se vê e sente além da cena
Partindo da filosofia africana dos Adinkras2 me inspiro no prin-
cípio do Sankofa: “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que
você perdeu”, para falar de corpo ancestral. Volto ao meu passado,
à minha essência da dança pra descobrir para onde vou. Para saber
o que fazer no presente, tive que voltar ao meu útero… chego no
momento da gravidez! O corpo se modificando, mãe... meu corpo
ancestral que carrega passado, presente e futuro na água; ressigni-
fiquei toda minha vida, minha arte.
Quando estamos gestantes, ouvimos muitos clichês de outras
mulheres, tais como: nasce um filho, nasce uma mãe; realmente,
óbvio que cada maternidade trará um significado de mãe para cada
mulher; pra mim trouxe a chance de descobrir minha individualida-
de. Em Ialodês, no texto de Dione Carlos, uma frase diz muito sobre
essa experiência “Toda mãe é uma arca negra”.
Amon-Rá Ike, meu filho, para que veio ao mundo? ... Me deu
a oportunidade de ver o quanto precisava me transformar. Para
criar alguém feliz, eu precisava me sentir realizada, sentir ple-
nitude no que vivia. Ser mãe me trouxe a busca incessante de
ser intensa em minha arte; entretanto, precisei melhorar minha
autoestima e buscar o autocuidado, passando por diversos pro-
cessos muitas vezes dolorosos.
Ser mãe negra, periférica e continuar sendo artista é bem difícil.
Um desafio não abrir mão de um companheiro negro, também pe-
riférico, morador da zona leste, criado por uma mulher nordestina
sozinha, sem a presença de um pai. E esse companheiro, Rafael,
também pai de dois meninos. Estar com ele é ser parceira na pater-
nidade. É assumir posturas destinadas a desconstruir machismos
e superar juntos muitos traumas. Ser a única mulher em uma casa
com quatro meninos me coloca no exercício, junto com Rafael,
de ensiná-los a autonomia e o respeito à mulher, pois precisam
aprender desde sempre que as mulheres não estão a serviço deles,
e que em uma casa todos precisam cooperar.

Não abrir mão da maternidade sendo artista é uma escolha


que talvez não fosse possível se não tivesse a companhia de um

2  Formas de escrita que significam modos de ser e existir africanos, dos povos Akan, da
África Central.

Negras InsUrgências 82 Capulanas Cia de Arte Negra


esposo e de minha mãe. Rafael me apoiou em todas as mudanças
profissionais, nos ensaios, nas aulas... Uma sociedade racista está
sempre contra um casal preto, periférico, mas seguimos com amor,
nossa maior arma. Só ele pode fazer a revolução preta!
A maternidade não é feita só de flores, muitas são dores e
uma experiência de parto dura e fria no SUS só piora tudo. Mas
eu replantei minha dor, deixando dela brotar mu-danças. Nessa
floração, enraizei meus pés com toda a energia na terra e busquei
troncos para me fortalecer. Chorei muito para regar meu jardim...
Nessa semeadura, regando com leite meu rebento, busquei minha
primeira forma de crescer, a dança. Voltei a dar aulas regulares e,
quando Amon estava com 4 meses, iniciei, na comunidade de Pa-
raisópolis, um projeto de ança afro para crianças e adolescentes e
outra turma só de mulheres, que começaram a me ensinar o que
é prazer e saúde.
O momento de as mulheres irem para a dança é o espaço de
descontração, de falar dos seus corpos, rirem, chorarem e se aco-
lherem. Quando nos reconhecemos como iguais a tantas mulheres
com vidas diferentes, corpos que se unem para dançar, a saúde
física e mental começa a ganhar espaço e a sororidade vira um
hábito; sem obrigação ou pensamento, ela acontece.
Eu pensava muito nessas mulheres quando estávamos es-
tudando o prazer no processo de Ialodês. Depois veio a dança
materna, com o intuito de proporcionar a outras mulheres, princi-
palmente as que tiveram experiências traumáticas de parto, como a
minha ou em graus piores de violência obstétrica, o empoderamen-
to e a dissipação da dor por meio da dança. Tentei muito implantar
essa proposta em Paraisópolis, visando proporcionar àquelas mu-
lheres momentos de carinho, autocuidado e cuidados com o bebê,
da mesma maneira que acontece com uma mãe que pode pagar
por uma aula, em espaços lindos e caros, que as mães de Paraisó-
polis obviamente não podem frequentar... Entretanto, não consegui
patrocínio e me senti bem frustrada, indignada e triste.

O pilates: saúde física e mental das mulheres negras


Em minha busca individual por uma nova força encontrei o
pilates. Estava abatida pelas dores provocadas pelo racismo institu-
cional exercido pelo SUS. Procurava também estratégias para garantir

Negras InsUrgências 83 Capulanas Cia de Arte Negra


a sobrevivência em minha área de atuação; fiz, então, o curso de
formação e me apaixonei a partir do resultado que percebi em mim.
O pilates tem, em seu método, alguns princípios – respiração,
concentração, centralização, controle, precisão e fluidez – trabalha-
dos em exercícios conduzidos por uma voz de comando que auxilia
a buscar dentro de si, sem espelho, uma consciência corporal, que
torne cada um responsável por seu corpo. Por tudo isso, é um método
que tem adeptos que fazem dele uma filosofia de vida, um modo de
se conectar consigo, principalmente, no meu entender, pela centrali-
zação, cujo movimento, o power house (centro de força), se localiza
no abdômen, conectando-nos com nossa energia vital, na ativação
dos músculos profundos e da respiração atenta, atrelada ao ato de
inspirar e expirar na execução das sequências.
“Não importa o que você faz e sim como faz”. Essa frase, de
Joseph Pilates, é referência em minha busca no método. Parto
disso para pensar a preparação corporal das Capulanas.
Quando percebi os efeitos que, em mim, resultaram em harmo-
nia física e mental, propus às meninas realizarmos essas práticas
antes de cada ensaio; queria que elas sentissem o mesmo bem-
-estar que me transformou. Elas aceitaram e, durante cinco meses,
obtivemos muito resultado; fazíamos uma, às vezes, duas práticas
por semana, e elas queriam mais. A empolgação do grupo me mo-
tivava a propor sempre novas sequências e desafios, até porque
trata-se de corpos com muitas práticas; por isso, a desenvoltura
delas foi incrível: dores na coluna que melhoraram foi o principal
retorno que me davam.
Vale destacar o relato de Adriana Paixão:

Mesmo sendo uma artista que pesquisa as técnicas de co-


nhecimento do corpo e sabendo da necessidade constante
de aprimoramento, é preciso considerar que uma atividade
como pilates não é acessível financeiramente a mim, o que
gerou por muito tempo distanciamento; mas poder fazer
semanalmente, e com uma abordagem que considerava meu
corpo com suas especificidades, foi muito importante para
o meu emocional, para o meu desenvolvimento corporal.
Garantiu além de tudo um estado de bem-estar, me impul-
sionou a procurar outras atividades físicas, minha mente
ficou descansada e cheguei a lugares de prazer nunca an-
tes alcançados com um trabalho de consciência corporal.

Negras InsUrgências 84 Capulanas Cia de Arte Negra


Não foi apenas a técnica, mas o fato de o trabalho ter sido
voltado a perceber corpos negros, que vêm de realidades sociais
distintas e que isso altera o estado na sala de aula. Semanal-
mente me sentia em terapia, era meu momento comigo mesma,
um tempo para superar limites e alcançar resultados esperados
apenas por mim.
O pilates em um estúdio, por exemplo, ainda não é acessível,
então eu o levo para todas as minhas aulas, no Paraisópolis, na
Casinha, espaço criado pela artista Miriam Selma para mulheres
periféricas, onde dou aulas regulares. Tenho muita gratidão por
Capulanas ter sido meu primeiro trabalho de preparação corporal
usando pilates. Essa experiência me abriu portas para perceber a
potência dessa prática para cuidar do meu corpo e do corpo de
outras mulheres negras periféricas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FALCÃO, Inaicyra. Corpo e ancestralidade. Salvador: Edufba, 2002.
ISACOWITZ, Rael & CLIPPINGER, Karen. Anatomia do pilates. São Paulo: Manole, 2013.
PILATES, Joseph Hubertus. Sua saúde - o retorno à vida pela contrologia. São Paulo:
Editora Phorte, 2010.
SOMÉ, Sobonfu. O espírito da intimidade. São Paulo: Editora Odysseus, 2007.

Negras InsUrgências 85 Capulanas Cia de Arte Negra


6. Como olhar os corpos
negros na cena paulista
contemporânea?
por Débora Marçal

Podemos começar evitando a reprodução de estereótipos criados


por quem não nos enxerga como produtoras de arte, conhecimento,
beleza, estética, ciência, filosofia e principalmente de sentidos.
Como pensar as artes cênicas sem o corpo negro? Sem o
corpo, o cabelo, a pele ditados pela moda dos últimos tempos? É
possível pensar as artes em São Paulo sem refletir sobre o corpo
negro? Sem levar em conta um conjunto de símbolos e costumes,
sem considerar o campo simbólico no qual esse corpo está inseri-
do? Podemos pensar o movimento da cena paulista, sem as gestu-
alidades e as questões que permeiam esse corpo desde antes de
seu nascimento?
Sabemos que todas as sociedades africanas desenvolveram
diferentes formas de dança; tais expressões apresentavam-se na
vida religiosa, no cotidiano, na mudança de status de uma fase da
vida para outra, nos ritos de passagem e de iniciação.
Carregadas à força para o Brasil, as culturas africanas trou-
xeram códigos corporais que penetraram na formação da cultura
brasileira em forma de religiosidade, de música urbana e de outras
expressões que foram designadas folclóricas.
No século XX, elementos dessas práticas culturais foram res-
significados e introduzidos nas expressões artísticas negras. Entre
muitos outros exemplos, mencionamos o Teatro de Revista, o
Teatro Experimental do Negro, (TEN), o Teatro Popular Solano Trin-
dade, entre 1920 e 1950. No caso da dança, merecem destaque a
criação do balé folclórico da Bahia, o grupo de dança Mercedes
Baptista, no Rio de Janeiro, ambos na década de 1960. Nessas
experiências, elementos estéticos de umbanda e candomblé co-
meçaram a ser inter-relacionados com diferentes escolas de dança
de origem ocidental.

Negras InsUrgências 89 Capulanas Cia de Arte Negra


Como herdeiras dessa história, produzir artes cênicas negras
está para além de mostrar a óbvia beleza negra e constatar a imen-
sidão de contribuições que os africanos escravizados trouxeram
para este país, para este continente, para todo e qualquer parte do
mundo onde a presença negra chegou e chega ainda hoje.
Produzir arte negra – seja cênica, visual, virtual, musical, cinema
– é fundamental para suprir, confirmar e contemplar nossa existên-
cia. É nos reconstruir e nos conectar com nossas imagens reais,
possíveis e verdadeiras. Um aporte à retomada da identidade.
Parto da minha experiência como artista para desenvolver uma
reflexão a respeito de uma possível reconstrução de identidade negra
positiva a partir do contato com a cultura, o teatro e dança negra.
Meu aprendizado em dança afro ocorreu, inicialmente de forma
não sistemática ou escolar, mas de certa maneira me tornei herdei-
ra de repertórios de conteúdos expressivos religiosos e corporais
advindos dessa estética. Em outras palavras, meu corpo dançante
é, como diria Beatriz Nascimento, um corpo-documento desse pro-
cesso (RATTS, 2007).
Olhar para os processos criativos, nesse contexto, envolve re-
visitar minha trajetória como mulher negra e intérprete criadora da
cultura da dança e registrar minha experiência como dançarina
nessa construção coletiva e milenar que, às vezes, chamamos sim-
plesmente de dança afro.1
A construção da identidade negra é um exercício contínuo e
doloroso. E os processos de vivências coletivas são muito presen-
tes nas práticas afro-brasileiras.
O negro no Brasil tem, ainda hoje, para boa parte da popula-
ção brasileira, uma história única. Para muitos, os negros e afrodes-
cendentes nasceram em um navio negreiro; para tantos outros a
África é um país de crianças morrendo de fome, descalças e sujas.
Quinze anos após o surgimento da lei 10.639/034, percebemos
muito pouco ou quase nada de mudança dessa construção social.

1  Mas o que se entende por dança afro? Em sentido genérico, é uma denominação que diz
respeito a uma diversidade enorme de fenômenos e de práticas de dança. Pode ser um termo
de referência para toda e qualquer prática de dança relacionada ao fenômeno da diáspora
africana ao longo dos últimos cinco séculos. Por isso, quando se pretende analisar um deter-
minado fenômeno artístico a partir da ideia de que é uma manifestação afro, o que acontece
é que, necessariamente, operamos uma determinada seleção, um determinado recorte na
realidade tão vasta e complexa dos intercâmbios que a cultura africana estabeleceu fora da
África. (MONTEIRO, 2011:2)

Negras InsUrgências 90 Capulanas Cia de Arte Negra


Considerando a necessidade de desconstruir essas visões equi-
vocadas e preconceituosas, proponho que olhemos para a reformu-
lação do corpo a partir do pensamento de Beatriz Nascimento: a
inter-relação entre o corpo e identidade para quem busca se tornar
pessoa (e não coisa), no quilombo, na casa, no culto afro-brasileiro,
diante do espelho ou de uma fotografia (RATTS, 2007:66).
É preciso que passemos a praticar a própria imagem positi-
vamente, pensada por nós mesmas, a partir de referências es-
téticas, ancestrais, científicas, históricas e filosóficas africanas
e da diáspora negra. Praticar novas formas de representar no
campo das artes cênicas é, sem dúvida, a maior ferramenta de
renascimento simbólico e revolução subjetiva a ser realizada por
artistas, por pessoas negras.
Os corpos negros possuem uma movimentação característica,
que ultrapassa o teatro, a dança, a arte, e se expande compreen-
dendo todo o conjunto de gestos. Um corpo negro, por mais que
tenha passeado por caminhos e construções corporais ocidentais,
europeias, hegemônicas, como o balé clássico, dança teatro alemã,
dança moderna, dança contemporânea, ou até mesmo tenha se
iniciado nas artes por essas danças não diaspóricas, tem em si,
inevitável e indiscutivelmente, inscritos códigos referentes à sua
pertença étnica. Códigos criados pela tensão que corpos negros
carregam, vivendo em um país racista, e que podem extrapolar as
expressões artísticas do gesto, estando presente no olhar, na saúde
física, mental, espiritual e cultural.
Nos propomos aqui a olhar para além da noção de corporali-
dade negra presente na dança dos Orixás, na capoeira, nas danças
urbanas, enfim, nas manifestações reconhecidamente negras.
Essas já são mais aceitas, assimiladas, notadamente porque utili-
zadas por grupos como Odin Teatret, a Cia de Eugenio Barba, que
recorre à dança dos Orixás para preparar atores e subsidiá-los na
montagem de personagens, tal como proposto por Augusto Omolu,
bailarino e ator que integrou a companhia. Essas práticas são muito
utilizadas por coletivos para preparação do corpo cênico, tamanha
a potência semiótica, física e poética que carregam.
Sugerimos olhar e entender o corpo negro pela movimentação
que se desenha na cotidianidade. Podemos ousar pensar em mo-
vimentos de entrelinhas, pelo fazer e refazer caminhos de ações
diárias, na tentativa de sobreviver e viver, driblar e dialogar com o
sistema racista imposto diariamente a um corpo negro, feminino,
masculino, infantil, idoso, fazedor ou não de arte.

Negras InsUrgências 91 Capulanas Cia de Arte Negra


Movimentação, na qual, nós, pessoas negras, nos reconhe-
cemos, nos pareamos, nos fortalecemos e nos identificamos. O
gesto, quando se arma o cabelo crespo para cima com um pente-
-garfo na intenção de mostrá-lo cada vez mais alto; quando com
um pente de ferro quente em brasa se tenta deixar os cabelos
crespos mais lisos; a forma como um corpo se tensiona ou paralisa
quando passa por um carro de polícia, ou quando vemos um corpo
feminino negro sendo arrastado no asfalto por um camburão.
Dessa forma, o corpo negro por ser, também em parte, aquele
que foge, mas que conquista temporadas de tranquilidade, aquele
que se recolhe no terreiro e sai da camarinha2 refazendo, em mo-
vimento, narrativas de divindades africanas, pode ser o jovem que
dança sozinho ou em grupo ao som do funk3; pode ser a mulher ou
o homem que delineia suas tranças ou seu penteado black; pode
ser igualmente aquele que se “fantasia” de africano num desfile de
escola de samba. (RATTS, 2007:66)
Corpos vistos como precários ou até mesmo incompletos.
Assim nos veem porque nascemos todos os dias sob um olhar
perpetuado. Desenvolvemos nossa identidade e nos criamos na
precariedade ao travar relações com a subjetividade violada e
subjugada por um ideal de branquitude forjada e forçada, no qual
este país está desgraçada e desastrosamente empenhado e inse-
rido desde sempre.
A identidade negra no Brasil não é somente construída em
contato com o outro, o branco, ela nos é atribuída por quem nos
dominou (NASCIMENTO apud RATTS 2007:50) e essa construção
está presente em nós, na nossa forma de fazer tudo, principalmen-
te nos representar.
É assim, e por isso, que essas manifestações fazem parte de
nossas construções cênico-poéticas, formas de repensar e repre-
sentar a nós mesmas. A fé, a arte e a política sempre terão um
espaço garantido, lá é um lugar seguro para forjar e relembrar, reco-
brar uma nova identidade, entre o ontem e o agora; nossa subjeti-
vidade depende disso.
Os não negros que nos assistem, nos observam e insistem em
não nos ver, que não exercitam a escuta, a inteligência e não reali-

2 Quartinho localizado dentro do terreiro de candomblé, onde ficam acomodados os yawô


(filhos de santo recém-iniciados).
3 Gênero musical que se originou nos Estados Unidos na segunda metade da década de
1960. Foi criado por músicos afro-americanos que misturavam soul, jazz e rhythm and blues.

Negras InsUrgências 92 Capulanas Cia de Arte Negra


zam um verdadeiro exercício de empatia, vão analisar nossa produ-
ção artística a partir de uma perspectiva eurocêntrica. Esses caem,
consequentemente, na desvalorização de tudo que construímos e
refinamos há séculos; ora por preguiça de sair da zona de conforto,
ora por preconceito com o que não se enquadra em um pensamen-
to, construção e organização cênica hegemônica branca.
Nenhum corpo preso dança, canta e flui em uma arte. Vivemos
transitando entre liberdade e prisão. Experimentamos, ao longo de
nossas vidas, momentos de liberdade, e é isso o que nos mantém
vivos. Dançar, cantar e crer nos ancestrais foi e é o que nos
manteve vivos no processo de desumanização ao qual fomos e
ainda estamos submetidos, desde a chegada dos nossos antepas-
sados até os dias de hoje.
A arte nesse caso – ao contrário da escravização do homem
negro, ao contrário do racismo, da impossibilidade de identidade –,
é, sem dúvida, apropriação do próprio corpo. Quando nos expres-
samos artisticamente habitamos nosso próprio corpo, povoando-o
de nossas memórias coletivas, ao mesmo tempo em que encon-
tramos nossas subjetividades e singularidades.

R eferências bibliográficas
MONTEIRO, Mariana F. Martins. Dança afro: uma dança moderna brasileira. In
Húmus 4. NORA, Sigrid (org). Caxias do Sul: Lorigraf, 2011.
NASCIMENTO, Beatriz Maria. Roteiro, textos e narração; GERBER, Raquel -
Direção. Filme Documentário ORÍ, 1989.
RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Kuanza, 2007.

Negras InsUrgências 93 Capulanas Cia de Arte Negra


Negras InsUrgências 94 Capulanas Cia de Arte Negra
Negras InsUrgências 96 Capulanas Cia de Arte Negra
7. Teatro negro: seus
valores filosóficos antigos,
modernos e contemporâneos
por Salloma Salomão

As evidências são claras: o escravo africano soube dan-


çar, cantar, criar novas instituições e relações religiosas
e seculares, enganar seu senhor, às vezes envenená-lo, de-
fender sua família, sabotar a produção, fingir-se doente,
fugir do engenho, lutar quando possível e acomodar-se
quando conveniente. Esse verdadeiro malabarismo histó-
rico resultou na construção de uma cultura da diáspora
negra que se caracteriza pelo otimismo, coragem, musicali-
dade e ousadia estética e política incomparáveis no contex-
to da chamada civilização ocidental. Claro, não foi fácil.

João José Reis

As nações, sugere Benedict Anderson, não são apenas en-


tidades políticas soberanas, mas “comunidades imaginadas”.
Trinta anos após a independência, como são imaginadas as
nações caribenhas? Esta questão é central, não apenas para
seus povos, mas para as artes e culturas que produzem onde
um certo “sujeito imaginado” está sempre em jogo. Onde co-
meçam e onde terminam suas fronteiras, quando regional-
mente cada uma é cultural e historicamente tão próxima de
seus vizinhos e tantos vivem a milhares de quilômetros de
“casa”? Como imaginar sua relação com a terra de origem,
a natureza de seu “pertencimento”? E de que forma devemos
pensar sobre a identidade nacional e o “pertencimento” no
Caribe à luz dessa experiência de diáspora?

Stuart Hall

Negras InsUrgências 97 Capulanas Cia de Arte Negra


La identidade cultural de un pueblo depende de tres facto-
res principales: el histórico, el lingüístico y el psicológico
(este último, entendido en su acepción más amplia, puede
abarcar las particularidades religiosas). La importancia de
esos factores varía según las circunstancias históricas y
sociales de cada sociedad. Sin la concurrencia de los tres
no puede haber identidad cultural plena, ya se trate de un
pueblo o de un individuo. Pero la presencia armoniosa de
esos tres elementos es puramente ideal. En la realidad se
producen multitud de combinaciones según que predomine
uno u otro sobre los demás. Actuar sobre ellos equivale
puesa modificar la personalidad cultural, colectiva o indi-
vidual en un sentido o en otro, y tales modificaciones pue-
den llegar a provocar incluso una crisis de la identidad.

Cheik Anta Diop

Os pesquisadores das antigas formas de teatralidades são unâ-


nimes quanto às fontes religiosas e místicas do ato de representar.
Nas antigas sociedades humanas parece ter sido recorrente a pre-
sença de elementos místicos como base de expressões que que-
bravam o ritmo do cotidiano de luta pela sobrevivência e que os
historiadores modernos quiseram catalogar de forma abrangente,
e um tanto vaga, como teatro. Essa amplitude conceitual pode ser
utilizada estratégica e criticamente para questionar o eurocentrismo
teatral vigente no Brasil.
Relativamente ainda repousa envolto em sombras o fato de
que, nas sociedades contemporâneas e industrializadas, os jogos
de representação em toda sua multiplicidade continuem provocan-
do tanto interesse e importância social. Eles se expandem ou con-
traem ativamente em função das economias locais e globais da
cultura, geografia e contexto.
Nesse mundo agora não apenas os jogos de representação
ficam/estão circunscritos ao que se convencionou chamar de es-
petáculo teatral, definido pelo espaço arquitetônico, como também
aqueles de outras naturezas, como teatralidades especificamente
religiosas, cívicas, esportivas, militares, políticas, étnicas e midiá-
ticas. Em maior ou menor grau a sedução pela representação se
renova, medra, migra e persiste, e mesmo se tornam mais e mais
complexas diante das novas tecnologias de comunicação e inova-

Negras InsUrgências 98 Capulanas Cia de Arte Negra


dores sistemas de entretenimentos presenciais e eletrônicos-digi-
tais.1 Alguém importante na cultura ocidental já teria se referido
aos humanos como animais teatrais. Berthold esforçou-se para
pensar teatro um pouco além de sua fonte romântica sempre re-
metida a Grécia Clássica:

O teatro é tão velho quanto a humanidade. Existem formas


primitivas desde os primórdios do homem. A transforma-
ção numa outra pessoa é uma das formas arquetípicas da
expressão humana. O raio de expressão do teatro portanto
inclui a pantomima de caça dos povos da idade do gelo e as
categorias dramáticas dos tempos modernos”2

Seja por má vontade, racismo verso-reverso-verso, ou preguiça


intelectual, vamos macaqueando textos e micagens teóricas e inte-
lectuais do ocidente ainda em expansão, quase sempre de forma
violenta. Têm sido raros os pesquisadores, com reflexividade ou cri-
ticidade pós-colonial, a desafiar os cânones da “história mundial do
teatro”, a ponto de projetar espectros alienígenas, que perturbem
a narrativa tão bonita e organizada, tão alva e límpida, elaborada
desde a Renascença na Europa ocidental e central. Mesmo recen-
temente, quando alguma tentativa foi feita no sentido de abarcar
expressões teatrais extraeuropeias, um fundo mental evolucionista
reconduziu o pensamento para o seu leito tradicional e quase ani-
quilou o ímpeto. Raros são os manuais de história do teatro con-
sultados, daqueles escritos ou traduzidos para língua portuguesa,
que não repitam essa lógica, reproduzindo o velho e bom discurso
universalista e os impondo às mentes sãs nas nossas escolas de
formação artística.
Ao mesmo tempo que a ciência moderna adotou o conceito de
que só existe uma raça humana e que todos os humanos se encon-
tram no mesmo estágio de desenvolvimento cognitivo e intelectual,
quando conveniente algumas sociedades contemporâneas podem
ser apresentadas como não evoluídas ou arcaicas. Para o descen-
dente de africanos, modernidade poderia apenas ter representado
a sofisticação do racismo, que de fato foi apreendido nessa chave,
mas não apenas isso:

1 Cosplay é um desses fenômenos nos quais pessoas adultas saem à rua e vão a eventos tra-
jando roupas e adereços de personagens de histórias em quadrinhos ou desenhos animados.
2 BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Tradução de Maria Paula Zurawski, J. Guins-
burg, Sergio Coelho e Clóvis Garcia. 6a ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 1.

Negras InsUrgências 99 Capulanas Cia de Arte Negra


A questão do terror racial sempre permanece em pauta
quando esses modernismos são discutidos, pois a proximi-
dade imaginativa do terror é experiência inaugural desses
modernismos. Seu foco é um tanto refinado na passagem
da sociedade escrava para a era do imperialismo. Embora
fossem indizíveis, esses terrores não eram inexprimíveis, e
meu principal objetivo aqui é explorar como os trajetos
residuais de sua expressão necessariamente dolorosa ainda
contribuem para memórias históricas inscritas e incorpo-
radas no cerne volátil da criação cultural afro-atlântica.
Experiência da vida cotidiana.3

Esse viciado jogo interpretativo é aplicado às culturas de ci-


vilizações tradicionais contemporâneas no interior de estados-na-
ções. Também no âmbito das culturas artísticas é possível utilizar
essa mesma lógica. É o que faz, por exemplo, a instigante, mas
limitada, historiadora do teatro Margot Berthold:

O teatro dos povos primitivos assenta-se no amplo ali-


cerce dos impulsos vitais, primários, retirando deles seus
misteriosos poderes de magia, conjuração, metamorfose,
dos encantamentos da caça dos nômades da Idade da Pe-
dra, das danças de fertilidade e colheita dos primeiros la-
vradores dos campos, dos ritos de iniciação, totemismo, e
xamanismo e dos vários cultos divinos.4

Em larga medida os historiadores da arte recorrem a essa con-


traditória categorização para catalogar sociedades africanas, aus-
tralianas e americanas não urbanas. Parte da antropologia euro-
cêntrica, estadunidense e europeia causou grandes confusões nas
mentes acriticamente influenciadas pela cultura ocidental e ainda
causam danos às sociedades aldeãs contemporâneas, cujas po-
pulações ainda são entendidas como folclóricas ou mesmo como
sociedades pré-lógicas como quis Lévy-Bruhl, pai teórico de Artur
Ramos e sua abordagem francamente racista. Berthold insiste:

Para o historiador de teatro, um estudo das formas pré-


-históricas revela paralelos sinóticos que o seduzem a

3 GILROY, Paul. O Atlântico negro - modernidade e dupla consciência. Tradução de Heloisa


Toller. São Paulo: Editora 34: Candido Mendes, 2001. p. 125.
4 Idem, p. 2.

Negras InsUrgências 100 Capulanas Cia de Arte Negra


traçar o desenvolvimento da humanidade mediante o fe-
nômeno do “teatro”. Conquanto nenhuma outra forma de
arte possa fazer essa reivindicação com mais propriedade, é
também verdade que nenhuma outra arte é tão vulnerável
à contestação dessa reivindicação.5

Em muitos casos entender populações atuais como primitivas


justifica seu tratamento desigual no interior dos estados nacionais
coloniais e dos impérios. Berthold ainda traz dados sobre expressões
religiosas teatrais e teatro de sombra no Egito faraônico, a partir de
documentos extraídos das estelas e catacumbas, mas é incapaz de
estabelecer qualquer relação entre esses aspectos com formas de
representação da África negra. Por fim, informa como elementos de
tradição religiosa de povos não europeus, máscaras por exemplo,
foram incorporados ao teatro ocidental do início do século XX.
No início do século XX as pilhagens neocoloniais vão derivar em
um mercado de arte de povos primitivos, que deram novo ímpeto
aos “colecionadores” privados e acervos museológicos europeus e
estadunidense. Mas parece que, além disso, os conteúdos culturais
dos povos exóticos permitiram uma espécie de movimento de re-
novação da arte ocidental em um período de confessa estagnação
criativa.6 Hoje sabe-se bem de que forma artistas como Picasso,
Matisse, Vlaminck e Derain reinterpretaram códigos e valores esté-
ticos vindos do estudos de objetos africanos musealizados durante
a colonização e de que maneiras tais procedimentos efetivamente
reconfiguraram a percepção estética do próprio ocidente.
Digamos que uma “descoberta estética do outro” seja uma ino-
fensiva perturbação da ordem discursiva evolucionista das cultu-
ras artísticas, engendrada desde o Iluminismo. Contudo, será que
a mudança no interior das artes modernistas realmente significou
para o mundo ocidental aceitar a ideia das artes africanas como
valor em si mesmas? Parece que não.
O fato é que, se houvesse efetivo investimento em pesquisa,
saberíamos mais sobre os conjuntos de mulheres musicistas, bai-
larinas e declamadoras pintadas nos papiros ou incrustadas nas
tubas egípcias, aksunitas e núbias. Berthold insiste:

5 Idem, p. 2.
6 MUNANGA, Kabenguele & AJZEMBERG, Elza. Revista USP, São Paulo, n. 82, p. 189-192,
junho/agosto 2009.

Negras InsUrgências 101 Capulanas Cia de Arte Negra


Somos agora capazes de reconstruir a origem do diálogo
na dança egípcia de Hator e a organização da paixão de
Osíris Abidos. Sabemos que o mimo e farsa, também,
em
tinham seu lugar reservado. Havia o anão do faraó, que
lançava seus trocadilhos diante do trono e também repre-
sentava o deus-gnomo Bes nas cerimônias religiosas. (...)
Achados como esse e inscrições de cantos funerais e re-
citações não nos dão chaves para artes teatrais no antigo
Egito, mas, ao contrário, levam a alguma confusão.7

Acreditamos realmente que algo mudou, mas somente mais


tarde, ou seja, apenas quando as sociedades africanas livres do
jugo colonial, ou melhor, quando sábios africanos e afrodiásporos
entenderam e denunciaram o engodo da superioridade cultural do
mundo branco expandido. Du Bois foi um dramaturgo e intelectual
negro estadunidense, nascido e criado no período imediatamente
posterior à abolição da escravidão e surgimento do racismo funda-
mentado na segregação institucional. Tornou-se versado e com-
batente das práticas violentas de uma instituição que ainda hoje
prega abertamente a superioridade racial. Em sua obra da juven-
tude, a única integralmente publicada no Brasil, colocou o desafio
dos artistas negros e dos negros em geral nos seguintes termos:

O amor inato pela harmonia e pela beleza que levou almas


rudes do seu povo a dançar e a cantar não trouxe senão
confusão e dúvida à alma do artista negro; pois a beleza que
lhe foi revelada era a beleza da alma de uma raça que o pú-
blico mais amplo desprezava (...) Trabalho, cultura, liberda-
de, precisamos de todos, não separadamente mas todos jun-
tos, não sucessivamente mas em conjunto, todos crescendo
e ajudando-se mutuamente, todos empenhados em prol desse
ideal mais amplo que paira diante do povo negro (...)8

Contudo, Berthold seguiu um padrão cronológico e uma narra-


tiva evolucionista, aliás comum às publicações desse tipo (sua pri-
meira publicação data de 1968), para mostrar o vigor da linguagem
teatral e suas possibilidades políticas, estéticas e sociais na contem-

7 BERTHOLD, cit., p. 11.


8 DU BOIS, Edward B. Almas da gente negra. Tradução de Heloisa Toller Gomes. São Paulo:
Lacerda, 1999, p. 60.

Negras InsUrgências 102 Capulanas Cia de Arte Negra


poraneidade. Ainda assim, a autora nos atualiza sobre um fenômeno
grotesco com influência ainda hoje no imaginário teatral mundial, os
“caras-pretas”, que não são uma exclusividade estadunidense, mas
parece haver aqui uma fonte historicamente localizável:

Em Louisville, Kentucky, em 1828, o ator Thomas D. Rice,


indicado para interpretar um trabalhador negro do cam-
po num melodrama local, observou um velho negro can-
tando e dançando do lado de fora do teatro. Ficou tão
tomado pela atuação, que a incorporou a seu papel, e
de sua bem-sucedida interpretação da canção Jump Jim
Crow, com o rosto pintado de preto, nasceu o minstrel
show. A moda pegou como fogo na palha, e em 1843 um
novo competidor no show business, o Virginia Minstrel
Show, fez sua estreia no Bowery Amphitheater de Nova
York. O programa consistia em uma mistura sentimental
de baladas, números musicais e diálogos curtos: a música
era fornecida por banjos, violinos, castanholas e pandei-
ros. Logo, apresentava-se minstrel shows em todo país.
Atores brancos com o rosto pintado de preto divertiam
plateias com uma paródia da vida dos negros, que se tor-
nou uma tradição difícil de destruir.9

Apesar de toda uma tradição cultural africana e afro-america-


na desenvolvida ao longo do século XX e nos anos em que se
desenrolaram as lutas anticoloniais, Berthold não resenhou uma
única linha sobre isso, ignorou completamente as várias compa-
nhias negras da primeira metade do século XX e as dramaturgias,
por exemplo Edward Du Bois e Langston Hughes. Gerson Camelo,
hoje um grande especialista em teatro negro estadunidense, nos
dá alguma pista:

Langston Hughes criou três teatros objetivando a ence-


nação da dramaturgia desenvolvida por negros: o Harlem
Suitcase Theater (1938-1939), no bairro do Harlem, em
Nova Iorque, junto com membros do Partido Comunista,
o Negro Theatre (1939), em Los Angeles, e o Skyloft The-
atre (1942), em Chicago. Esta não foi uma ação isolada,

9 Idem, p. 514.

Negras InsUrgências 103 Capulanas Cia de Arte Negra


uma vez que havia outros artistas que criaram suas pró-
prias companhias ao longo do século XX como a The Anita
Bush All Colored Dramatick Stock Company (1915-1916),
fundada pela atriz e dramaturga Anita Bush (1883-1974),
a Kriwa Players Little Theatre Network (1926-1946), por
W. E. B. Du Bois, e o Negro Playwrights Company (1940-
1942), pelo dramaturgo Theodore Ward, entre outras
instituições. O poeta e dramaturgo Amiri Baraka, com os
artistas Charles e William Patterson, Askia Touré (1938-)
e Clarence Reed, entre outros, fundou o Black Arts Re-
volutionary Theater/School (BARTS – 1965), no Harlem,
que inspirou o surgimento de diversos espaços teatrais ao
longo do país, e, então, o Spirit House Players (1966), em
Newark, Nova Jérsei.10

Seria tolice esperar que narradores da tradicional história vi-


toriosa do ocidente cristão incorporassem conteúdos dissidentes,
de contraponto ou alternativos? Ouçamos Senghor, Cheik Anta
Diop, Djbril Tansir, Joseph Ki-Zerbo. No Brasil, Munanga e Ajazem-
berg apontaram:

A força proporcionada pela arte africana, junto a ques-


tões estéticas modernas ou mesmo vanguardistas, só pode
ser entendida pelo conjunto que a animou. Com efeito,
máscaras e outros artefatos adquiridos pelos artistas no
início do século XX eram de certo modo extensão das co-
munidades que os criaram. Algumas das esculturas foram
feitas para serem contempladas pelo mundo dos espíritos,
outras nunca tinham sido vistas por olhos de mulher, e
muitas não estavam em uso, permaneciam escondidas entre
vigas do telhado, à espera das ocasiões cerimoniais, ou
eram guardadas em relicários a que os não iniciados e os
estrangeiros não tinham acesso .11

Esse exercício de desconstrução e reconsideração, tanto do


saber fazer como da conceituação artística nas sociedades extra-

10 CAMELO, Gerson. Um estudo da relação estética entre a obra teatral de Langston Hughes
e de Amiri Baraka. Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Doutorado em Estudos Linguís-
ticos e Literários em Inglês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a coordenação da profa. dra.
Maria Sílvia Betti. São Paulo, 2015, p. 14.
11 MUNANGA & AJZEMBERG, cit., p. 190.

Negras InsUrgências 104 Capulanas Cia de Arte Negra


europeias, ainda é um campo controverso. Mas as falácias sobre
anterioridade, primazia ou mesmo superioridade cultural do oci-
dente definitivamente têm encontrado algumas dificuldades de se
manterem intactas. De outro lado, ainda é necessário desgastar
as várias arestas de um constante processo de desencontros cul-
turais desencadeados pelo colonialismo e seus desdobramentos
contemporâneos. Dentre os conteúdos estético-plásticos e visuais
africanos assimilados de forma enviesada às representações oci-
dentais, as máscaras cerimoniais africanas foram proeminentes:

Muitas das máscaras para as danças eram feitas para serem


vistas em movimento, iluminadas de maneira intermitente
pela luz oscilante de uma fogueira. Iluminadas com a luz
plana dos museus e em posição estática, arrancadas do
meio para o qual foram concebidas, perderam grande parte
de seu fascínio. Mesmo desse modo, fora de seu contexto
original, os artistas modernos e vanguardistas souberam
captar as possibilidades plásticas da arte africana em suas
criações, o que reforça o alto teor expressivo dessa arte.12

O exotismo foi um dos procedimentos básicos adotados em


vários campos da arte ocidental para selecionar e incorporar objetos
e símbolos de “povos primitivos atuais”. O efeito imediato desses
procedimentos foi a descontextualização dos objetos, tidos como
anônimos e raramente atribuídos a um criador, mas a uma tribo.
Na cultura visual, espiritual e nos sistemas musicais de pen-
samento, as Áfricas informaram os conteúdos novos da diáspora,
mas houve um tempo longo para que essas conexões pudessem
ser examinadas sem os intérpretes difamadores. Falando sobre
populações centroafricanas, genericamente Congo-Angola, Robert
Farris Thompson tem nos animado a seguir adiante com brio,
assim dizendo:

Quando se encontraram nas plantações, fazendas e cida-


des do hemisfério ocidental, estes fomentaram sua herança
comum. A civilização e a arte Kongo não foram oblitera-
das no novo mundo: elas reviveram na união, aqui e ali,
com numerosos escravos do Kongo e Angola. A presença
dos Kongo emerge inesperadamente nas Américas em mui-

12 Idem.

Negras InsUrgências 105 Capulanas Cia de Arte Negra


tos lugares e de muitas maneiras. (...) No sul dos Esta-
dos Unidos, importantes palavras e conceitos Ki-kongo
influenciaram o inglês falado pelos negros, especialmente
os léxicos do Jazz e do Blues, e também o do amor e do
uso das ervas.13

No Brasil muitos foram os aspectos das culturas centroafrica-


nas que permearam a consolidação de sistemas novos. Conquanto
tenha havido peso demasiado nas pesquisas sobre os Iorubanos
e Daomeanos ao longo do século XX, não foram poucos os traba-
lhos que leram geografias ao norte e sudeste a partir de elementos
linguísticos centroafricanos.

Muitas palavras derivadas do Ki-Kongo têm sido descritas


por etimologistas como de origem desconhecida. A palavra
jazz é provavelmente uma forma crioula Ki-kongo: ela é
similar em som e em significado original a palavra jizz,
o vernáculo americano para sêmen. E jizz, sugestivo de
vitalidade, parece derivar do verbo Ki-kongo Dinza, que
significa ‘descarregar sêmen’ ‘gozar’. O verbo Dinza foi
assimilado pelo linguajar crioulo de Nova Orleans e de
outros lugares, entre os negros dos Estados Unidos.
Como jizz e jism.14

Entretanto, parece surpreendente um pesquisador ir tão longe nas


interpretações sobre continuidades africanas na cultura musical negra
estadunidense. Por muito menos um pesquisador negro brasileiro seria
considerado desvairado e seus estudos rotulados como incipientes.
Conquanto estejamos excessivamente sensibilizados pela
noção de máscaras e representação vindos da tradição europeia,
parece ter havido pouca atenção às passagens da utilização de más-
caras de cunho religioso para o universo das brincadeiras e jogos
populares nas Américas. Mas vale fazer perguntas sobre alguns
aspectos da utilização de máscaras nas tradições religiosas nas
Américas e Áfricas e sua manutenção alterada nas novas formas
religiosas e lúdicas nas Américas negras. A título de exemplo, vale
citar John Iliffe:

Os Mossi afirmavam que os sonhos eram selvas a trepar. A

13 THOMPSON, cit., p. 108.


14 Idem, p. 109.

Negras InsUrgências 106 Capulanas Cia de Arte Negra


arte exprimia essa dicotomia com frequência. Para os Se-
nufos do norte da Costa do Marfim, por exemplo, as duas
maiores tradições da xilogravura da sociedade iniciática
Poro contrapunham o casal ancestral, que personificava
a civilização, às máscaras que representavam hienas, nas
quais a ameaça das mandíbulas abertas e dos dentes faia-
dos e a força explosiva dos molhos penas, espinhos, cama-
das de peles e outros materiais, são imagens apropriadas
do mundo da selva, símbolos do poder. Os perigosos eram
também os poderosos uma força cuja coragem e perícia
poderia gerar o bem.15

Mas agora podemos ligar vários fios dessa trama histórica cul-
tural que parecia esgarçada antes mesmo do tear ser devidamente
instalado nas duas margens do Atlântico. Jan Vansina, na grandio-
sa publicação História geral da África, nos avisava:

Os desfiles, as pantomimas e mesmo os diálogos, produ-


zidos no palco em meio a dançarinos mascarados, eram
muito frequentes na África pré-colonial, muito amiúde en-
quadrados em contextos sagrados ou cerimoniais. Muitas
destas tradições sobreviveram. Há, por vezes, uma surpre-
endente continuidade entre as procissões cerimoniais dos
akan, descritas por Bowdich em 1817, e o que fazem os
modernos akan, conquanto a maior parte destes eventos
tenha sido atualizada, buscando inspiração em novas si-
tuações, assim como em práticas europeias, tais como os
desfiles militares ou as cerimônias oficiais. Vê-se, todavia
e frequentemente, complexos desfiles de máscaras, particu-
larmente na costa oeste do continente, quer se trate das
tradições do Festival
Lanterna de Serra Leoa ou da
da
Gâmbia, Fanti, do brilho das cortes
dos desfiles asafo de
dos akan, dos numerosos desfiles de máscaras da Nigéria
ou do carnaval de Luanda. As festas em celebração ao
aniversário do Profeta, na África do Norte, e as festivi-
dades públicas das cidades litorâneas do leste africano
conservaram e, inclusive, desenvolveram as suas atividades
de entretenimento.16

15 ILIFFE, John. Os africanos: história dum continente. Tradução de Maria Filomena Duarte.
Lisboa: terramar, 1999, p. 151.
16 VANSINA, Jan. In: História geral da África, VIII: África desde 1935, In: MAZRUI, Ali A. &

Negras InsUrgências 107 Capulanas Cia de Arte Negra


No capítulo 20 do livro VIII do pioneiro História geral da África, des-
tinado a cobrir o período que precedeu a Segunda Guerra Mundial
até os anos 1960, Jan Vansina, um dos grandes pesquisadores sobre
África negra, se dedica a formular hipóteses sobre cultura artística
africana e suas múltiplas manifestações. As categorias utilizadas por
ele talvez sejam questionáveis atualmente, em função das críticas
que se estabeleceram no universo específico dos estudos culturais
africanos e afro-diásporicos, mas, ainda assim vale entender o con-
texto político mundial no qual o autor utilizou as noções de artes:
tradicionais, turísticas, populares e acadêmicas. Vansina considerou
aspectos como: tipo de obra, finalidade, clientela, meio rural e urbano,
papel dos artistas, etc. Tratou de apontar os lugares e funções des-
tinados às artes visuais, corporais, música, rural e sacra, e dança,
espetáculos públicos e teatro. A saber:

Nas regiões interioranas e mesmo em certas cidades, cer-


tos ritos não se perpetuaram até os dias atuais. No con-
junto de numerosas produções antigas, as mais espetacu-
lares correspondiam àquelas dos tsogho (Gabão), para
as quais o espetáculo e os transes, por elas suscitados,
eram meios capitais de comunicação com o sobrenatural. O
seu rito bwiti declinou desde os anos 1930, contudo e ao
mesmo tempo, os ritos não foram difundidos ao norte do
Gabão onde, doravante, eles constituem parte de novos ri-
tuais dramáticos. O sentido do drama permanece, por toda
parte, muito vivaz.17

Se as autoridades coloniais buscaram coibir as práticas cul-


turais e sociabilidades tradicionais para obter um melhor aprovei-
tamento do controle social e direcionamento para produção do
trabalho expropriado, segundo Vansina, os colonizadores tentaram
impor seus próprios ritos públicos, seus Te Deum e seus procedi-
mentos evangelizadores:

O teatro tradicional, stricto sensu, cuja manifestação


consiste em encenar uma história, perante um público, era
pouco divulgado. Apesar disso, doMali à Cross River ou
em diversas regiões da bacia do Congo/Zaire, certos po-

WONDJI, Christophe. Brasília: Unesco, 2010, p. 739.


17 Idem, p. 740.

Negras InsUrgências 108 Capulanas Cia de Arte Negra


vos organizaram tais espetáculos. As autoridades coloniais
não viam com bons olhos estas representações e preferiam
os seus próprios desfiles, Te Deum e outras cerimônias
de festas nacionais, ao menos até o momento do desco-
brimento de um valor turístico nestas atrações artísticas,
após a Segunda Guerra Mundial. Sob estas circunstâncias,
alguns elementos africanos imiscuíam-se quando das ce-
rimônias religiosas europeias, tais como as peças satíricas
encenadas durante os desfiles da Força Pública do Congo
belga.Estas sátiras derivavam de cenas mímicas, executadas
nas danças na zona equatorial. Elas expunham as más con-
dutas no trato dos escravos em Zanzibar. Após a indepen-
dência, estes indivíduos tornaram-se, muito naturalmente,
os malfeitores do colonialismo.18

Entretanto, no período pós-colonial os novos dirigentes também


não viram com bons olhos as religiosidades e divertimentos tradi-
cionais ou tentaram converter os criadores artísticos em propagan-
distas do estado. Ouçamos Vansina:

Posteriormente à independência, certos dirigentes começa-


ram a utilizar espetáculos de outrora, visando estimular o
público das assembleias políticas. As animações apresenta-
vam-se como espetáculos montados por ocasião de reuni-
ões públicas, para suscitarem o entusiasmo dos espectado-
res em respeito às propostas políticas, cuja apresentação
aos indivíduos era imperativa, no decorrer das reuniões
ou, mais amplamente, em apoio ao regime. Slogans políticos
eram, frequentemente, lançados desta forma.19

Uma confusão tem sido comum aos estudos sobre cultura ar-
tística, no que tange à passagem aparentemente natural do papel
social da arte e dos saberes especializados dos artistas do con-
texto tradicional ao contexto capitalista, no qual o prestígio social
e desempenho financeiro exercem funções modeladoras. Essa
mudança de posição e condição nem sempre é refletida, assim
como não atentamos aos aspectos da posição relativamente an-
tagônica entre público espectador e artistas criadores em diferen-

18 Idem, p. 740.
19 Idem, p. 440.

Negras InsUrgências 109 Capulanas Cia de Arte Negra


tes organizações sociais. Nas sociedades ocidentais burguesas e
naquelas sob sua hegemônica influência, o distanciamento entre
quem produz e quem consome foi justamente o que permitiu a
capitalização das artes e sua projeção como um saber fazer distan-
ciado da pessoa comum, mas nas sociedades tradicionais não há
um distanciamento tão estabelecido, que permita destacar o artista
do todo social.
A contar por fontes de viajantes estrangeiros, no Brasil até
início século XIX, embora com restrições, pessoas negras, sobre-
tudo homens, estavam imiscuídas em várias áreas da atividade
teatral, eram músicos, atores, arranjadores, cenógrafos, dançarinos.
Mas na medida em que a atividade ganhou prestígio social e foi
se tornando comercialmente viável, com a urbanização e moder-
nização conservadora, a partir da independência, a presença negra
ficou cada vez mais rala.
Entre finais do século XIX e início do século XX, pessoas negras
serão encontradas nas formas experimentais e nas várias dinâmi-
cas do folk-negro, campos não capitalizáveis do fazer artístico, ou
mesmo nas práticas circenses cujo prestígio social era quase nulo,
embora bastante popular. Naquilo que pensamos em termos de
imposição de modelos europeus de criação e representação teatral
no “resto do mundo”, no continente africano a coisa se passou
mais ou menos com ritmo similar, embora em temporalidades co-
loniais diferentes:

O teatro, propriamente dito, cuja essência consiste em


encenar uma intriga no palco, frequentemente conforme
às convenções da arte dramática italiana e utilizando um
texto decorado, geralmente em língua europeia, este even-
to artístico é incontestavelmente uma inovação urbana.
Inicialmente, a disciplina tomou forma nas missões e nas
escolas; trata-se comumente de peças em um ato, encenadas
com objetivos didáticos ou para suscitarem a conversão
religiosa. Os temas são, correntemente, extraídos da Bí-
blia ou fábulas morais, normalmente com mordazes por-
ções satíricas. Pois, não se permite esquecer que o teatro
deva tanto divertir quanto ensinar. O desenvolvimento do
teatro seguiu direções muito diferentes nas regiões sob
a autoridade francesa, belga ou portuguesa, nas quais o
modelo era a tragédia francesa, e nas regiões sob a au-
toridade britânica, ao menos na África Ocidental, onde a

Negras InsUrgências 110 Capulanas Cia de Arte Negra


escola não representava a única via de acesso ao teatro.
Por outra parte, na África do Norte, a situação era sensi-
velmente diferente.20

Cômicos negros como o Baiano, Benjamin de Oliveira e De


Chocolat foram pioneiros nas práticas circenses, assim como nas
gravações fonográficas e teatros populares para transeuntes e tra-
balhadores urbanos. Tiago de Melo Gomes colocou nos seguintes
termos essa inovação:

No segundo semestre de 1926 formou-se a Companhia Ne-


gra de Revistas, reunindo músicos e artistas de renome no
Rio de Janeiro e em São Paulo. A trajetória da companhia
surge como sendo de grande utilidade para historiadores
interessados na consolidação de uma autoimagem do Bra-
sil que privilegia os aspectos “mestiços” da nação. Primei-
ramente, a trajetória da companhia mostra a participação
de negros como agentes de sua presença como símbolos
nacionais, pois as peças da companhia valorizavam a cultura
negra como cultura nacional, operação que tem sido apon-
tada como atividade meramente de intelectuais brancos.21

Mas nenhum artista negro atingiu a primazia e capacidade


técnica e adaptabilidade, para transitar de um a outro sistema
de entretenimento, quanto aquele afro-mineiro de baixa estatura,
como os baiakas, que foi registrado Sebastião Prata e reconhecido
mundialmente como Grande Otelo. A chamada Companhia Negra
de Revistas foi criada e difundida por um cenógrafo português co-
nhecido por Jaime Silva e o compositor, ator e dramaturgo eterni-
zado como De Chocolat.
De Chocolat provavelmente teve oportunidade de ver em
atuação o ator circense Chocolat, um negro martinicano que fez
relativo sucesso no circo e no teatro, na França entre fins do século
XIX e início do século XX. De Chocolat parece ter obtido grande
aceitação para sua primeira companhia teatral, atraindo nomes de
projeção no meio musical da capital do império e também em São
Paulo, entre os quais Pixinguinha e alguns outros membros dos

20 Idem, p. 741.
21 GOMES, Tiago de Melo. Negros contando (e fazendo) sua história: alguns significados da
trajetória da Companhia Negra de Revistas (1926). Estudos Afro-Asiáticos, Ano 23, Número
1, 2001, p. 53-83.

Negras InsUrgências 111 Capulanas Cia de Arte Negra


Oito Batutas, também recém-chegados de Paris apenas um ano
antes. Teriam trabalhado juntos em Paris? Gomes indica que:

O próprio De Chocolat certamente sabia o que estava fa-


zendo ao montar a Companhia Negra de Revistas. Afinal,
era um cançonetista com duas décadas de experiência no
entretenimento de massas, tendo tido, inclusive, a opor-
tunidade de ver, com seus próprios olhos, o sucesso, na
Paris do pós-guerra, de elementos da cultura negra. Pro-
vavelmente, tenha pensado em explorar, na capital Federal
de 1926, uma demanda que havia percebido, na Paris, de
1919, por cultura negra, e em especial por espetáculos com
muita música e dança.22

Em São Paulo a companhia foi entusiasmadamente noticiada


pela imprensa negra que parece ter feito parte do público especta-
dor. Mas vez por outra parece também ter atraído a fúria discursiva
de críticos e defensores dos bons costumes raciais paulistas. De
vida breve, o empreendimento deixou nos espíritos a sugestão de
que outros grupos de artistas negros poderiam, de fato, ter entendi-
do e se projetado nas brechas de uma sociedade altamente hierar-
quizada. Uma oportunidade social e econômica nova que se abria
no processo de urbanização de uma sociedade cuja cultura agrária
e escravista havia feito os potentados e definido o lugar dos negros
entre os despossuídos.
Que experiências criativas seriam essas feitas por mulatos e
negros no Brasil dos anos 1920? Que tipo de conteúdo comunica-
ram e qual a longevidade dessa experiência enquanto fazer artísti-
co com acento de etnicidade?
Gomes nos informa que a Companhia Negra de Revistas se
subdividiu em duas, surgindo então a Ba Ta Clan Negra, na qual
teriam se mantido De Chocolat e Pixinguinha. Em São Paulo ainda
teria surgido, no mesmo período, a Companhia Mulata de Revista;
os seus elencos agregaram mulheres negras brasileiras vedetes e
bailarinas; uma delas, ao menos, é descrita como barbadiana. Há
também menções a pequenas orquestras chamadas jazz-bands,
com músicos que tocavam piano, trompete, trombone, saxofone
e bateria. Referências vagas a batuque, cateretê e maxixe pode-
riam ser melhor compreendidas, mas figuras negras da história do

22 Idem, p. 63-83.

Negras InsUrgências 112 Capulanas Cia de Arte Negra


Brasil, também enfatizadas por jornais da imprensa negra, recebe-
ram trato como personagens. Então, parece possível deduzir que
havia efetiva intencionalidade em criar contraste entre a cena negra
e uma produção teatral convencional e de referências brancas.
Esse movimento cultural negro, de dimensões atlânticas e cos-
mopolita, tem sido pouco sublinhado nas pesquisas sobre culturas
negras, ao passo que as formas tradicionais parecem surgir como
repositório de autenticidade. De alguma maneira, um teatro negro
da diáspora e um teatro africano nacionalista buscaram simultane-
amente se redefinir em relação às tradições ocidentais e à cultura
tradicional, o que parece ter oferecido um caminho e inspiração.
Ainda sob orientação de Vansina:

Nos anos 1950, as regiões francófonas da África Oci-


dental assistiram ao desenvolvimento de um teatro aca-
dêmico. Os autores dramáticos tinham assiduamente fre-
quentado a escola de William Ponty; no período de 1933
a 1960, na qualidade de mestre emDakar, ele solicitava
aos seus alunos a redação de peças teatrais, inspiradas em
suas pesquisas sobre o “folclore”. Excetuando-se alguns
temas históricos, estas produções ganharam notoriedade
em virtude da sua crítica ao regime colonial, do seu trata-
mento no tocante às tensões entre a velha geração, com
as suas concepções de mundo, e as ideias da nova geração,
bem como pelo seu pronunciado gosto pela sátira. A maior
parte das peças rendia-se às regras em uso no teatro eu-
ropeu, com tamanha fidelidade que os alunos de Willian
Ponty não produziam senão esboços de texto, deixando
larga margem à improvisação nos diálogos.23

Embora Vansina não faça tal correspondência, é possível


pensar que elementos da ideologia anticolonialista conhecida
como pan-africanismo e conteúdos formulados no âmbito do mo-
vimento de negritude simultaneamente nos EUA, Europa, Caribe
e Brasil tenham estimulado e animado criações culturais no con-
tinente africano, antes mesmo de estar totalmente consolidado o
movimento de independência em todo continente. Seria necessá-
rio ir além dessas conjecturas iniciais, mas levando a cabo uma

23 Idem, p. 742.

Negras InsUrgências 113 Capulanas Cia de Arte Negra


ética intelectual negra. Ainda não podemos fazê-lo aqui sem risco.
Vansina nos anima com esses dados:

Todavia, junto aos autores dramáticos, os quais dedicaram


posteriormente à criação de peças mais extensas, este tra-
ço desapareceu. Alguns poucos, tais como Cheick N’Dao,
em L’exil d’Albouri (1969), em busca de um teatro total,
integraram às suas obras a poesia, o canto e a dança. A
maioria permaneceu à margem destas inovações. O caso de
B. Dadié, na Costa do Marfim, é característico, a este res-
peito. Ele continuou a escrever, ao longo dos anos 1970,
segundo o perfil criativo adotado em Assemien Débylé, a
peça dos seus primeiros ensaios, encenada em Paris, no
ano de 1937. Os dramaturgos congoleses seguiram esta
tradição, conquanto o desenvolvimento do seu teatro,
inspirado nas trupes itinerantes e no teatro escolar, seja
posterior a 1955.24

Se as artes visuais europeias se alimentaram de estéticas afri-


canas quando o labirinto do desenvolvimento constante e rápido,
chamado progresso, chegou a seu limite na passagem do século
XX, por que africanos e afro-americanos não poderiam encontrar
no “lixo ocidental” alguma inspiração para movimentos de nossa
emancipação cultural? Para isso a noção de estética e pureza cul-
tural precisam ser ultrapassadas, para entendermos concomitante-
mente os descaminhos e fluxos culturais paralelos, antagônicos e
complementares. Vansina nos apresenta dados desse processo na
África ocidental ao longo do século XX, referindo-se a Fodeba Keita:

A dança e o canto corálico acompanhavam a ação e in-


terpretavam-na à medida que o ator principal a articula-
va oralmente, em Mande (Malinke), do mesmo modo que
na Grécia clássica.
Mas, sem desdobramentos, esta forma
não se transformou em um teatro mais carnal. Ela obteve,
contudo, certo sucesso como quadro de referência para
numerosas companhias de balé, as quais seguiram o modelo
dos seus Balés Africanos. A dança e o espetáculo atingi-
ram o auge, em detrimento da riqueza e da complexidade da
intriga. Em suma, estes balés eram mais prestigiados pelo

24  Idem p. 742.

Negras InsUrgências 114 Capulanas Cia de Arte Negra


público de países estrangeiros que pelo público local, as-
sim sendo, eles poderiam apresentar-se, enquanto tal, como
uma arte de vocação turística. Portanto, o teatro e o balé
romperam laços com a cultura do seu público, tornando
ainda mais contundente a preocupação com a negritude,
recorrente, de forma invariável, em seu repertório.25

Os balés nacionais africanos tiveram dimensão global no con-


tinente durante os processos de descolonização, poucos foram os
estados-nações que não implantaram seus grupos de artistas finan-
ciados pelo estado. No Brasil a iniciativa mais próxima desse modelo
foi criada em Salvador na Universidade Federal da Bahia. De pas-
sagem pelo Brasil em inícios dos anos 1980, o Balé Folclórico do
Senegal estimulou o aparecimento de vários grupos de dança inspi-
rados nas danças dos orixás. Nos tempos mais recentes a chegada
de músicos e bailarinos oriundos da Guiné Conakri renovou repertó-
rios e gestou novos empreendimentos estéticos e culturais.
Contudo, nesse sentido, nenhum elemento foi mais longe que
o pesquisador em dança-teatro Cleyde Morgan, dançarino estadu-
nidense que se instalou em Salvador e Ilê Ifé, como se fosse num
ponto equidistante entre Brasil, EUA e Nigéria ainda em princípios
dos anos 1970 e formou inúmeras gerações de dançarinos e atores
negros, sobretudo os mais proeminentes Firmino Pitanga, Inaicyra
Falcão e Mario Gusmão.26
Um teatro negro e popular no Brasil parece ter raízes mais
antigas do que as performances abolicionistas e os Blacks Mins-
trels oitocentistas estadunidenses, mas as pesquisas têm sido
raras nesse sentido, talvez impedidas por um academicismo euro-
cêntrico e redundante.
Sowinka, nobel de literatura, foi um dos poucos autores e dra-
maturgos africanos traduzidos no Brasil. Academicamente formado
em Londres, o dramaturgo nigeriano retornou à colônia inglesa em
1955 e participou ativamente do movimento de libertação nacional,
citado por Vansina:

25 VANSINA, cit., p. 743.


26 BACELAR, Jeferson. Mário Gusmão: um príncipe negro na terra dos dragões da maldade.
Rio de Janeiro: Pallas, 2006. Uma biografia bastante incomum sobre vida e obra do ator e
diretor Gusmão, parceiro de Morgan na comitiva brasileira a participar do Festac (Festival
de Artes e Culturas Negras) em lagos, Nigéria, em 1977, na qual também estiveram presentes
Abdias do Nascimento, Paulo Moura e Gilberto Gil.

Negras InsUrgências 115 Capulanas Cia de Arte Negra


Após os anos 1960, a forma e o conteúdo em nada se
modificaram. A inspiração provém, em sua essência, das
tradições orais, aplicadas, entretanto, em situações con-
temporâneas, com frequência para expressar um desconten-
tamento e eventualmente com finalidade satírica. Alguns
dos principais autores dramáticos, à imagem de Soyinka,
passaram da sátira ao desespero. Por sua vez, Femi Osofi-
san, o mais célebre autor da nova geração nigeriana, pas-
sou a escrever peças, preconizando fórmulas políticas ra-
dicais. Embora admoestem Soyinka, ele e outros apresentam
uma linguagem, uma estruturação dramática e, inclusive,
uma temática muito semelhante às do autor. Estas evolu-
ções desdobraram-se na consolidação do teatro, nas suas
formas popular e acadêmica, sobre o solo fértil de Gana e,
sobretudo, na Nigéria. Este teatro distingue-se, totalmente
e a este respeito, da alienada tradição francófona. Porém,
ele diferencia-se igualmente da arte dramática produzida
em outros pontos da África anglófona.27

Tendo em vista esses processos de afirmação cultural de ex-


-colônias europeias no território africano, e o surgimento de novas
expressões na própria Europa, pareceu ser pertinente aventar pos-
síveis paralelos, ou processos de retroalimentação, naturalmente
desiguais entre culturas de colonizadores e colonizados. Roger
Bastide28 tem essa premissa em vista, ao perceber a crise de estag-
nação criativa que atingiu o teatro e a dramaturgia ocidental branca
no pós-Segunda Guerra Mundial.
O sociólogo francês, Bastide, viveu no Brasil e o pesquisou, por
quase quarenta anos, dedicando singular atenção às populações
de origem africana e suas culturas. Em 1973 deve ter causado des-
conforto e apreensão aos espíritos doutos tradicionais presentes
numa conferência da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência), ao propor uma reflexão em torno do Teatro Negro no
Brasil, Europa e EUA.
No texto Sociologia do teatro negro brasileiro (1974) Bastide fez
uma breve digressão sobre os anos 1960, quando os franceses en-

27 VANSINA, cit., p. 745.


28 BASTIDE, Roger. Sociologia do teatro negro brasileiro. Conferência pronunciada na XXV
Reunião Anual da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência, 1973. QUEIROS, Maria
Isaura Pereira de. São Paulo: Ática, 1988, p. 139.

Negras InsUrgências 116 Capulanas Cia de Arte Negra


contram um novo tipo de dramaturgia e teatralidade advinda so-
bretudo das ex-colônias na África e Caribe, e eventualmente de
países da América do Sul. Citando eventos do Théâtre des Nations
de Paris e o Festival Internacional de Teatro de Nancy, onde se
apresentavam grupos teatrais europeus e também de Mali, Burkina
Fasso (antiga Alto Volta), Benin (Daomé) e Cuba, apurou que após
as apresentações reuniam-se em colóquios os participantes, dra-
maturgos e críticos, para discutir sobre as experiências e rumos das
artes cênicas no mundo.
Segundo Bastide, o teatro europeu havia perdido seu caráter
litúrgico e participativo, transformando-se em espetáculo hiper-ra-
cionalista e distanciado. Divórcio entre os artistas e o público es-
pectador. Então, com alguma dose de exotismo, parecia natural que
aquele público-artístico local se sentisse “extasiado, exaltado pelos
ritmos dos tambores e pelo ardor dos corpos que dançavam, numa
festa coletiva da qual participava, e na qual passava da ‘comunica-
ção’ a uma coisa mais intensa e quase religiosa: a comunhão”.29
Bastide visualizou reciprocidade nas influências africanas em
algumas dramaturgias de Antonin Artaud, Eugene O’Neill e Jean
Genet, estabelecendo ainda uma relação pouco usual entre eles e
a teatralidade africana dos anos imediatamente posteriores às lutas
de descolonização. Segue ainda argumentando no sentido de terem
aqueles estimulado inovações nas obras do Living Theater, naquilo
que ele ironiza como “tentativas ainda desajeitadas” de reencontrar
algo perdido em tempo remoto. Busca de um Teatro Essencial.
Assim nos surpreende por seu estímulo ao interpretar possíveis
laços diversos, “mas incipientes”, entre o teatro negro na África,
Brasil e Estados Unidos. E um nascente teatro europeu de vanguar-
da, que se rebela contra convenções endurecidas da dramaturgia
burguesa da Europa central. Uma história eurocêntrica “universal”
do teatro publicada aqui jamais fez tais ligações. Então, como que
por acaso nos revela a existência de um novo campo de tensão
cultural, ou dito de outra maneira, os prenúncios de uma mudança
radical em termos de uma alteridade europeia, diante do “outro”.
Para o eminente sociólogo, é nesse contexto que nasceu um
“teatro negro escrito por brancos” com ressonâncias pouco per-
cebidas, mas associadas à psicanálise. Sua menção recai sobre
dramaturgias que assimilaram os estudos de Freud e Jung, e suas

29 Idem, p. 140.

Negras InsUrgências 117 Capulanas Cia de Arte Negra


buscas pelas profundezas do inconsciente. Entretanto, não grafa
Frantz Fanon e suas pesquisas sobre a psique do colonialismo. E
não parece improvável que o conhecesse, considerando suas re-
ferências nominais a outros intelectuais negros fundamentais na-
queles tempos, quais sejam, James Baldwin e Richard Wrigth.
Crítico mordaz do Movimento de Negritude e criador do termo
“democracia racial”, Roger Bastide via na integração dos negros à
sociedade de classe e a incorporação de suas culturas à cultura
nacional homogênea uma alternativa para a resolução dos con-
flitos sociais latentes e supostamente derivados da escravidão.30
Paradoxalmente percebeu e tentou apreender a dimensão atlântica
das culturas negras em Les Amerique Noires, bem antes da pioneira
Beatriz Nascimento,31 e posteriormente Paul Gilroy.
Paul Gilroy (2000), em Atlântico negro, nos causa certo espanto
ao trazer informações contundentes sobre as preferências cultu-
rais germânicas de um dos mais influentes intelectuais negros dos
últimos duzentos anos: Edward Bughardt Du Bois. Ele teria cum-
prido um ano de estudos doutorais em Berlim, onde teria aprofun-
dado suas pesquisas sobre Hegel, feito observações de campo e
colhido dados empíricos sobre a rápida industrialização prussiana.
Assistiu no ato a modernização da nova Alemanha, recém-unifica-
da vertical e vertiginosamente por Bismark.
Du Bois encontrou na escrita dramatúrgica e num teatro negro
moderno nascente um suporte para a difusão de suas ideias sobre
unificação política dos africanos e seus descendentes nas Améri-
cas, que mais tarde viria a ser apelidada de Pan-Africanismo. De
certa maneira, as formas políticas negras modernas e seus desafios
culturais têm tido uma rica intersecção com as linguagens criativas.
Du Bois em 1926, exatamente no mesmo ano em que surge no
Brasil a Companhia Negra de Revista, fundou a Krigwa Players, seu
próprio grupo teatral no bairro do Harlem, em Nova York, dedicado
à cultura negra.32 Estudioso de línguas germânicas e especialista
em Hegel, Du Bois partiu para a Alemanha para ser aluno de dou-

30 Hoje se compreende que, embora os fundamentos do racismo antinegro tenham origem


na escravidão, foi a luta pela manutenção do poder, prestígio e mando por eurodescendentes
que cunhou novíssimas formas de discriminação racial nos países derivados de colônias nas
Américas e no mundo. Veja vídeo: Racismo: uma história, BBC de Londres, 2007. Veja Também:
DJIK, Teun A. Van (org). Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008.
31 NASCIMENTO, Beatriz e GLEBER, Raquel. Ori. Filme documentário. São Paulo, 1998.
32 DU BOIS, Edward B. As almas da gente negra. Tradução de Heloisa Toller Gomes. Rio de
Janeiro: Lacerda, p. 37.

Negras InsUrgências 118 Capulanas Cia de Arte Negra


torado na Friedrich Wilhem Universität, em Berlim. Embora tenha
tido o título de doutor negado pela universidade alemã, parece ter
sido a primeira pessoa negra a obter o grau de Ph.D. em Harvard.
No Brasil, os germanistas cristãos do passado eram aqueles in-
telectuais de elite que acreditavam serem capazes de usar em favor
da nação a racionalidade germânica combinada com visões raciais
correntes, para se atingir a promessa de uma grande nação capi-
talista branca eugênica no extremo ocidente, embora no hemisfé-
rio sul. Os germanistas eram também adeptos da eugenia como
ciência de ordenação e melhoria da raça branca. O holocausto
negro, provocado no nascimento do capitalismo, ainda espera re-
paração e uma leitura digna. Segundo Gilroy: “Está na hora de re-
construir a história primordial da modernidade a partir dos pontos
de vista dos escravos.”33
Nossos estudantes e estudiosos de teatro estão familiarizados
com Friedrich Nietzsche, mas pouco sabem sobre as noções filo-
sóficas de liberdade nascidas das reflexões de Frederik Douglass
e de seus debates com Du Bois. Paul Gilroy sugere que ambos
detectaram, ao mesmo tempo, a natureza dura da modernidade
e experimentaram um mesmo sentimento de abandono por parte
das divindades do cristianismo, em suas perspectivas dissonantes.
Mas a interpretação de Nietzsche tornou-se supostamente uni-
versal. “Frederick, Deus está morto?”, teria perguntado a Douglass,
após uma palestra, uma grande dama negra que dignificou a luta
pelo abolicionismo estadunidense. Segundo Gilroy:

A pergunta que Sojourner Truth detectou na oratória fe-


roz e na conclusão política pessimista de Douglass ocupa
um lugar importante nos debates filosóficos sobre o valor
da modernidade e a transvalorização dos valores pós-sa-
grados, modernos. Na Alemanha, aproximadamente na mes-
ma época, outro Friedrich (Nietzsche) estava ponderando
as implicações filosóficas e éticas da mesma pergunta.34

Hoje já não parece tão estranho o fato de o ativismo negro


ainda no século XIX ter extraído concomitantemente conteúdos da
tradição filosófica cristã, do racionalismo filosófico alemão. Mas foi

33 GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de de São


Paulo: Editora 34: Candido Mendes, 2001, p. 125.
34 Idem p. 140.

Negras InsUrgências 119 Capulanas Cia de Arte Negra


da analogia com a história judaica que surgiu um dos conteúdos
mais longevos e ricos da negritude; relacionada ao fenômeno do
tráfico negreiro é que foi redefinida a noção de dispersão e ou diás-
pora negra. Esse fenômeno Gilroy definiu como sendo:

O dinâmico trabalho de memória que é estabelecido e mo-


ralizado na edificação da intercultura da diáspora cons-
truiu a coletividade e legou tanto uma política como uma
hermenêutica aos seus membros contemporâneos. Aqui
também as fronteiras oficiais do que conta como cultu-
ra foram alargadas e renegociadas. A ideia de diáspora
se tornou agora integral a este empeendimento político;
histórico e filosófico descentrado, ou, mais precisamente,
multicentrado.35

A estética abordada como se fosse área exclusiva da filosofia


tornou-se um campo da defesa e afirmação dos conceitos chaves
na construção da hegemonia ocidental. Vez por outra os parâme-
tros de beleza do ocidente expandido figuraram como elementos
de comprovação supostamente científica da superioridade cultu-
ral da Europa colonizadora em relação aos povos por ela consi-
derados incivilizados, selvagens e primitivos. Quando não, foram
simplesmente assumidos sem ressalvas pelas elites das nações
independentes. Elites brancas das Américas desenvolveram um
complexo cultural ainda pouco estudado de “europeus no exílio”.
Raymond Willians, no entanto, nos diz que a utilização da
noção de estética no sentido do entendimento do belo, ou mesmo
de suas regras, apenas surge no ocidente em meados do século
XVIII por Alexander Baumgarten, segundo o qual:

Baungarten definia a beleza como perfeição fenomênica, e


a importância disso, na reflexão sobre arte, residia no fato
de se dar ênfase predominante à apreensão por meio dos
sentidos. Isso explica por que Baumgarten usou uma pala-
vra essencialmente nova, derivada da palavra grega aisthe-
sis (percepção sensorial). No grego, a referência principal
era às coisas materiais, isto é, às coisas perceptíveis aos
sentidos, distintas das coisas imateriais ou que somente
podiam ser pensadas. O novo uso adotado por Baumgarten

35  Idem p.143

Negras InsUrgências 120 Capulanas Cia de Arte Negra


fazia parte de uma ênfase na atividade sensorial subjetiva e
na criatividade humana especializada da arte.36

Que caminho tomaram a filosofia e a estética ocidental quando


enfocaram as artes teatrais? Friedrich Nietzsche contido no O nasci-
mento da tragédia37 embora perdido em delongas de críticas ao seu
desafeto Richard Wagner e envolvido na suposta memória da longa
noite de perguntas fechadas na estética da europeidade – não vai
muito além disso quando enuncia hipóteses sobre a tragédia como
forma estética contemporânea por excelência. Aquela mesma Europa
expandida ecoa aqui, agora nos nossos teatros convencionais.
Evocou ainda Bach, Beethoven e Wagner para apontar o gradual
espírito dionisíaco do nosso tempo, ou ainda que a “música alemã,
e justamente ela é, em meio a toda nossa cultura, o único espírito
de fogo limpo, puro e purificador (...)”38 Durante certo tempo nossos
pesquisadores de artes ainda tomaram a distinção do filósofo pré-
-alemão das posições antitéticas em Dionísio e Apolo para aplicá-
-las ao contexto cultural brasileiro. Seriam os tais milagres de fé do
extremo ocidente? Viu nos sintomas de um “renascimento cultural
germânico” analogias sem mediação com um tempo grego áureo:

Nisso vive em nós a sensação de que o nascimento de uma


era trágica tivesse significado para o espírito alemão ape-
nas retorno a ele mesmo, um bem-aventurado reencon-
trar-se a si próprio, depois que, por longo tempo, enormes
poderes conquistadores, vindos de fora, haviam reduzido
à escravidão de sua forma o que vivia em desamparada bar-
bárie de forma. (...) Que ninguém tente enfraquecer a nos-
sa fé em um eminente renascimento da Antiguidade grega;
pois só nela encontramos nossa esperança de uma reno-
vação e purificação do espírito através do fogo mágico da
música.39

Mas a filosofia germânica parece ter sua história própria no


interior do pensamento europeu. A reinvenção do passado oci-

36 WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução de


Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007.
37 NIETZSCHIE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Tradução, notas e posfácio de J. Guis-
nburg. 5 impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
38 Idem, p. 117.
39 Idem p. 120-121.

Negras InsUrgências 121 Capulanas Cia de Arte Negra


dental pelo conceito de história e de arte, é disso que o filósofo
tornado mítico trata:

Agora o escravo é homem livre, agora se rompem todas as


rígidas e hostis delimitações que a necessidade, a arbitra-
riedade ou a moda impudente estabeleceram entre os ho-
mens. Agora, graças ao evangelho da harmonia universal,
cada qual se sente não só unificado, conciliado, fundido
com seu próximo (...). Cantando e dançando, manifesta-se
o homem como membro de uma comunidade superior: ele
desaprendeu a andar e a falar, e está a ponto de, dançando,
sair voando pelos ares. De seus gestos fala o encantamen-
to. Assim agora os animais falam e a terra dá leite e mel,
do interior do homem também soa algo de sobrenatural:
ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão
extasiado e elevado, como vira em sonhos deuses caminha-
rem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte.40

Que ser humano seria esse tão livre, o de Nietzsche? As per-


guntas do Friedrich deles é sobre o ser alemão, ou uma identidade
essencial germânica e seu destino no mundo moderno. Algo que
parece ter desaguado no caos pós-Weimar, ou em algo que pode-
ríamos designar como misticismo etnocêntrico e belicismo-tecno-
lógico. Mas não parece ser plausível, como querem alguns, atribuir
a ele a matriz filosófica de toda devastação e caos gerado pelo
Terceiro Reich. A suposta superioridade cultural e biológica nos
termos de uma colônia escravista era percebida de outra forma,
não menos nociva. Um poeta negro escreveu:

Civilização branca

Lincharam um homem
Entre os arranha-céus
(Li no jornal)
procurei o crime do homem
O crime não estava no homem
Estava na cor da sua epiderme.41

40 Idem, p. 28.
41 TRINDADE, Solano. Poemas antológicos. São Paulo: Secretaria da Educação: Nova Ale-
xandria. Sd, p. 144.

Negras InsUrgências 122 Capulanas Cia de Arte Negra


O holocausto moderno europeu nada teve de loucura, mas
de racionalidade levada às suas últimas consequências, com tec-
nologias de morticínio e perversidade. Cultura da guerra e da sua
aplicação livre de qualquer dor na consciência. Sua condenação
veemente do cristianismo como padrão moral da decadência e a
exaltação da arte grega: “O cristianismo foi desde o início, essen-
cial e basicamente, asco, fastio da vida, que apenas se disfarçava,
apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença em outra ou
melhor vida. O ódio ao mundo, a maldição dos afetos, o medo à
beleza e à sensualidade (...).”42
De qualquer forma se pode encontrar ali o autoelogio, uma
certa narrativa sobre a obra monumental do espírito dos humanos
europeus, em sua epopeia na busca do governo do mundo.
Contudo, fez também questões interessantíssimas sobre a estética
da loucura contida na tragédia helênica.
Aqui temos a busca de compreensão e de desmonte desse
local sacro assumido pela cultura e arte europeias no mundo. Ao
lado de De Chocolat, Abdias Nascimento, Margarida Trindade e
Maria Nascimento encontra-se o poeta e dramaturgo afro-pernam-
bucano Solano Trindade, do qual não temos registro escrito de uma
peça. Embora saibamos que ele escreveu algumas, senão várias.
Ele foi exatamente um dramaturgo a introduzir temas do folknegro
(cultura popular negra brasileira) no teatro urbano.
De qualquer maneira, as fontes abundam nas pesquisas de
folcloristas dos séculos XIX e XX, no que diz respeito a um teatro
popular realizado nas ruas de cidades de diferentes regiões do país.
Ao que sondamos, as ruas deixaram de ser o lugar do lazer popular,
na medida em que foram se tornando ameaçadoras, na mesma
proporção que a violência discursiva capturou o imaginário social e
as desigualdades real e sistêmica naturalizaram os olhares. Nossa
hipótese é que as artes podem submeter tais sensos comuns a pro-
blematizações e extrair daí novas possibilidades criativas, ajudando a
construir uma nova realidade social e ambiência imaginativa.
Parece realmente muito difícil distinguir nos pândegos, folgue-
dos e cortejos espetaculares negros, descritos por viajantes sete-
centistas e oitocentistas, elementos africanos específicos daqueles
de matriz indígena ou europeia. No entanto, ao cruzarmos dados

42 Idem, p. 17.

Negras InsUrgências 123 Capulanas Cia de Arte Negra


de algumas manifestações de cunho religioso no interior de co-
munidades negras escravizadas, com dados obtidos na literatura
antropológica que alvejou as sociedades africanas tradicionais, lo-
calizamos narrativas religiosas e ritualísticas, que podem nos for-
necer pistas consistentes da manutenção de elementos textuais,
coreográficos e musicais que serviram de base para o surgimento
de dramaturgias e teatralidades negras modernas.
Antes de meados do século XX, tanto Câmara Cascudo, quanto
Mario de Andrade, confirmaram as intuições de memorialistas como
Manuel Querino e Mello Morais sobre formas de teatralidades popu-
lares constituídas de cadinhos e fragmentos de culturas dramáticas
e comicidades africanas, indígenas e europeias. O boi, bumba-boi,
bumba-meu-boi, boi-bumbá, os caboclinhos, quilombos, catopês,
ticumbis, cacumbis, congados e congos são hoje pouco conhecidas
em vasta região, mas até finais do século XIX, ainda estavam se for-
mando como complexos sistemas de sociabilidade e processos de
homogeneização cultural no espaço do estado-nação.
Talvez seja um caminho a não ser seguido por todos, como
uma forma de manter a multiplicidade de olhares e experiências,
já postas quando da introdução de pessoas africanas e advindas
de diferentes culturas. Mas quando o grupo Coletivo Negro mergu-
lha em conteúdos dos congos e estabelece vínculos criativos em
Angola, tido ainda hoje como uma fonte do pensamento ances-
tral bantu, ou quando Capulanas combinam conteúdos moçam-
bicanos com referências afro-pernambucanas já trabalhados pelo
grupo teatral de Margarida e Solano Trindade, elementos do Xangô
do Recife ou do maracatu rural, há neste caso o desencadear de
um processo de retroalimentação criativa, em que memórias, iden-
tidade e negritudes modernas são pontos em comum. A origem
africana não é uma essência, mas ponto na geografia e tempo des-
tinada a iluminar novos percursos.

Negras InsUrgências 124 Capulanas Cia de Arte Negra


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Negras InsUrgências 126 Capulanas Cia de Arte Negra


Negras InsUrgências 127 Capulanas Cia de Arte Negra
8. Oroonoko: o
teatro ocidental e
as pessoas africanas
escravizadas e livres
por Salloma Salomão

Foi M’Bokolo quem primeiramente nos falou sobre um texto


dramatúrgico escrito por uma mulher inglesa conhecida remota-
mente como Aphra Behn e remontado por cem anos em palcos
de França, traduzida e montada bem além daquele império escra-
vagista, mas uma história subsumida, jamais citada nas histórias
“universais” ou mundiais do teatro. Vejamos:

Na Inglaterra, o herói negro por excelência, bom, corajo-


so e virtuoso, foi Oroonoko, trazido para cena nos fins
do século XVII por uma peça de Aphra Behn (Oroonoko,
or the royal slave, 1688). Admiravelmente construída com
base numa intriga misturando uma história de amor entre
negros, cenas de violência, episódios horríveis sobre es-
cravatura, esta peça pretendia contar a história verdadeira
de um príncipe africano kromanti, traído e vendido como
escravo, tronado quilombola no Suriname, preso e tortu-
rado por caçadores de escravo. 1


Pode ser que o racismo antinegro não estivesse plenamente
desenvolvido na cultura ocidental quando Aphra Behn criou a nar-
rativa do príncipe negro-africano. Ou pode ser ainda que os estere-
ótipos mais radicalmente desumanizadores estivessem esperando
a legitimação ideológica do sistema mundial de tráfico e escravidão

1 M’BOKOLO, Elikia. África negra. História e civilizações. Tomo I. Tradução de Alfredo Margari-
do. São Paulo: Salvador: Edufba; Casa das Áfricas, 2009, p. 381.

Negras InsUrgências 129 Capulanas Cia de Arte Negra


global. Poderiam ainda ser, quem sabe, lampejos de consciência
dissidente, antecipadora do abolicionista de um século depois?
Mas fato é que a aventura de Oroonoko há de encontrar ressonân-
cia em um texto conhecido na dramaturgia europeia do mesmo
século, mas de período imediatamente anterior: Othelo, de William
Shakespeare, datada de 1601. Ambos os textos e montagens se
encontram nos marcos do surgimento do entretenimento popular
urbano na Europa ocidental. M’Bokolo prossegue:

Encenada durante mais de cem anos, traduzidas e imita-


das na própria Inglaterra e em toda Europa, particular-
mente na Franca, Les avantures curieuses e interessantes
d’Oroonoko prince afriquain, em uma das suas traduções
organizada por Pierre Antoine de La Place de 1745 a 1788,
se tornou uma das narrativas mais populares e mais co-
nhecidas no plano internacional no século XVIII. (...) Foi
também ela primeira a descrever um africano como indi-
víduo dotado de sensibilidade e de inteligência, amando
apaixonadamente a liberdade; as revoltas e insurreições de
escravos, obsessão dos colonos e tema tabu, estiveram a
partir daí, investidas de uma verdadeira legitimidade.2

Por que será que a história do teatro ocidental omite, silencia ou


despreza uma criação dramatúrgica feminina e montagens teatrais
que fizeram longas e desenvoltas trajetórias geográficas e tempo-
rais, no mundo ocidental nos séculos XVII e XVIII, de onde se pode
extrair ou presumir identidades étnicas negras dos protagonistas?
Povo não é uma categoria estável e de fácil definição. Popular
menos ainda. Contudo, é importante observar como figuras da in-
telectualidade negra de diferentes países configuraram e atribuí-
ram significados próprios à ideia de “povo negro”. Esse foi, sem
dúvida, um desafio comum a muitos intelectuais afro-diaspóricos
dos séculos XIX e XX.
Esses artistas e políticos negros nascidos e formados ainda na
vigência agonizante do escravismo nos EUA e Brasil, mas numa
conjuntura abolicionista, primeiramente atentando para sua própria
condição, buscavam situar a singularidade conjuntural onde negras
e negros livres, alforriados e libertos, em contexto de absoluta inse-
gurança, tentavam sobreviver e avançar. Cuba, Brasil e EUA ocupam

2 Idem

Negras InsUrgências 130 Capulanas Cia de Arte Negra


ao mesmo tempo lugares específicos na configuração geral das
populações no interior dos estados-nações da plantation de cana,
café e algodão, ainda na segunda metade do século XIX. O escra-
vismo agoniza, mas não morre, e ainda quando abolido se mantém
na forma de cultura, prestígio social, mando político exclusivo e
hierarquias raciais, preservadas nessa geografia e ainda em outras
para além das Américas.
Esse foi o caso de figuras eruditas negras como Edward Du
Bois, Luiz Gama, Machado de Assis, Manuel Querino, Frederick
Douglass, Souza Carneiro, etc. A segunda tarefa comum à trajetó-
ria e atividade de todos eles consistiu em observar com acuidade
os limites sociais impostos à população negra como um todo e
tentar constituir estratégias para enfrentá-las, suportá-las ou trans-
pô-las individual e coletivamente. Sim, individualismo e individua-
lidade negra são temas complexos, mas precisaremos falar sobre
eles agora e no futuro.
Somos levados a crer que a percepção das culturas populares
negras que legamos hoje no Brasil, no Caribe e nos EUA, fez parte
do empreendimento coletivo dessas e outras figuras ainda pouco
conhecidas e resenhadas, que viveram entre a segunda metade do
século XIX e primeira metade do século XX. Todos e cada um a seu
modo inventariaram, examinaram e produziram diferentes registros
de cânticos, religiosidades, saberes, fórmulas de pensamento lógico
matemático, técnicas construtivas, provérbios sapientais e visões de
mundo. Todos lamentaram a existência das formas de discriminação
racial e elaboraram estratégias de enfrentamento do racismo e domi-
nação racial do seu tempo e lamentaram o desprezo da sociedade
dominante para aquilo que atentavam ser o folk-negro.
Em busca do Brasil apresentado por Gilberto Freyre aos letrados
de todo mundo, Henry Louis Gates Jr., ao passar em viagem de pes-
quisa pela Bahia, fez as seguintes relações entre Querino e Du Bois:

Dele pouco se fala nas universidades, e menos ainda nos


colégios. Mas, mesmo assim, foi figura importante: um his-
toriador, artista plástico, sindicalista e ativista negro que
merece ser mais conhecido.Pode-se considerar Querino
como uma mistura brasileira deBooker T. Washington e
W.E.B DU Bois: procurou promover a educação técni-
ca para negros e ensinou numa escola profissionalizan-
te como Washington; ao mesmo tempo, porém foi membro

Negras InsUrgências 131 Capulanas Cia de Arte Negra


do Instituto Histórico eGeográfico, como teria sido Du
Bois. Porém diferentemente de Washington e Du Bois,
também se envolveu com sindicalismo e com política lo-
cal (foi vereador) e com frequência se aliava a políticos
da oligarquia. Querino, em outras palavras, foi um homem
complexo. (...) Os escravos eram tidos como essenciais em
muitos setores. Mas Querino afirmara que os africanos
eram parte integral da identidade cultural do Brasil (...).3

Segure a ideia sobre cultura popular negra expressa na obra


de Querino um pouco mais. Antes vamos ainda trazer um pouco
mais de entulho do pensamento europeu. Entretanto no caso de
Williams parece valer a pena. Vejamos:

Uma revista norte-americana do final do século XIX ob-


servava: “Passaram a considerar popular de modo bastan-
te sério e sincero como sinônimo de bom”. A mudança de
perspectiva é evidente, portanto. Popular era considerado
do ponto de vista do povo e não daqueles que buscavam
favor poder sobre ele. Contudo, o sentido anterior não
morreu. A cultura popular não era identificada pelo povo,
mas por outros. Ainda contém o sentido anterior de um
tipo inferior de obra. O sentido de cultura popular como
cultura feita pelo povo para si próprio é diferente de todos
esses.Está relacionado, evidentemente, com o sentido de
de Kultur des Volkes, de Herder, do final do século XVIII,
mas pode-se distinguir o que passou para o inglês como
cultura folk, dos sentidos recentes de Cultura Popular
como contemporânea e também histórica (...).4

Para os intelectuais negros havia uma força cultural e política


no amálgama de pessoas livres que compunha a estrutura social
de base escravista, que apontava para o surgimento de uma cultura
de classe, cuja base seriam as fontes africanas remotas e residuais,
se devidamente preservadas, mas também havia algo novo sendo
desenhado para o futuro; seria a consciência da diferenciação
advinda da própria experiência sob o escravismo sistêmico.

3 Idem.
4 WILLIAMS, Raymond. Palavras–chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução de
Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial. 2007, p. 318.

Negras InsUrgências 132 Capulanas Cia de Arte Negra


Nesse ponto, reafirmo a valorização das culturas vernaculares
negras, das artes negras como campos de sensibilidade político-
-estético não plenamente acessíveis pela teorização acadêmica,
como parte da tradição ocidental escolar nos ensina e fomenta.
Estou formulando vagamente que as teatralidades negras que
estamos buscando e construindo são, sobretudo, estéticas e polí-
ticas de revivência. Estabeleço um corte seco e crítico em relação
à hipótese de Paul Gilroy. Especificamente sobre o que identifica
como fonte cultural do Atlântico Negro, o sofrimento. Por sofrimen-
to, nesse caso específico, um aspecto central na obra do renoma-
do sociólogo inglês de origem jamaicana, podemos identificar uma
gama de procedimentos impostos aos africanos desde a captura
no continente mãe, passando pelas privações nos navios tumbei-
ros e todas as pedagogias empregadas para garantir a produção e
aceitação da nova condição. Mas também pode ser a consciência
da condição escrava, tida como inevitável e certamente agravada
pelas dificuldades de fuga e pelas pressões psicológicas impostas
pelo sistema global do escravismo.
É bem provável que vários elementos da cultura dos escraviza-
dos tenham sido originadas de tentativas e erros de fuga, rebelião,
solidariedades, depressões e adequação.
É fato que, quando falamos em artes e culturas negras,
sabemos que nem tudo se perdeu e muita coisa sofreu mutação
estratégica, dissimulação, criptografia, hermetismo e segredo. Di-
ferentes etnólogos, antropólogos, historiadores e sociólogos da
cultura já haviam observado, nem sempre com pleno entendi-
mento, esse fenômeno que, grosso modo, podemos designar re-
sistência, mas parece ser bem mais complexo. Nos termos colo-
cados pelo historiador de Burkina:

A África ofereceu, desde há séculos, muitos elementos


que a civilização ocidental captou e integrou. Mas são
pouco conhecidos ou desconhecidos, e por isso se deduz
que não existem. A música, a dança e as artes africanas
foram reconhecidas como dignas fontes de inspiração. A
arte ocidental foi profundamente influenciada. Há uma
arte de viver africana, uma arte da solidariedade, uma arte
da alteridade, da abertura aos outros, que os europeus
não encontram em seus países. (...) Na África temos sorte
de possuir culturas muito fragmentadas e diversificadas.
Tínhamos sociedades fechadas sobre si mesmas, o bastante

Negras InsUrgências 133 Capulanas Cia de Arte Negra


para não serem erradicadas no quadro de grandes conjun-
tos simplificadores.5

Inspirados em Roger Bastide, Muniz Sodré, Fábio Leite, Elikia


M`Bokolo, Beatriz Nascimento e Thompson Farris, aprendemos sobre
estéticas negras. Sabemos, desde então, que os africanos e seus des-
cendentes produziram conceitos, valores, visões de mundo que não
se coadunam com aquelas advindas da Europa. Em parte, essas esté-
ticas negras não renegam a importância das culturas europeias, mas
também não se reduzem a elas, nem se limitam simplesmente a re-
produzir os seus valores, seus padrões, suas normas e seus conceitos.
Robert Farris Thompson assegura que:

Essas civilizações não eram impressionantes por sua densi-


dade urbana, seu refinamento e complexidade, mas também
por um ímpeto interno de convicção e de postura que as
deslanchou no mundo, dominando e vencendo acidentes
de classe, de status e de opressão política. A ascensão, o
desenvolvimento e as realizações da arte e da filosofia Io-
ruba, Kongo, Fon, Mande, Ejagham se fundiram com novos
elementos ultramarinos, modelando e formando tradição
visual negra atlântica.6

Ao saber que também os povos europeus eram e são diversos


em suas culturas e visões de mundo, ainda assim somos instados
a formular interpretações sobre a expansão do ocidente, que este
esteve diretamente associado à construção de uma supraidentida-
de, algo que podemos chamar de europeidade.
As elites coloniais, imperiais e da república insistiram e insis-
tem ainda hoje em ver no Brasil um espelho dessa ocidentalidade
cultural e se frustram recorrentemente; por isso certo desprezo e
autonegação. Até mesmo um intelectual reconhecido e engabelado
das elites brancas, como Sergio Buarque de Hollanda, percebeu
e denunciou a tendência de mascarar o racismo antinegro e nos
tomar exóticos, apreendidos na chave da espetacularização, como
estrangeiros em nossa própria terra.7

5 Ki-ZERBO, Joseph. Para quando África? Tradução de Carlos Aboim de Brito. Rio de janeiro:
Pallas, 2009, p. 137.
6 THOMPSON, Rober Farris. Flash of spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. Tradução
de Tuca Magalhães. São Paulo: Museu Afro-Brasil, p. 17.
7 HOLANDA, Sergio Buarque de. Brancos e negros. In: Cobra de vidro. 2a ed. São Paulo: Pers-

Negras InsUrgências 134 Capulanas Cia de Arte Negra


Hoje, passados quase oitenta anos do debate entre Sergio
Buarque e Artur Ramos, como principal herdeiro da Escola Nina
Rodrigues, podemos apontar os aspectos culturais como elemen-
tos diferenciadores das identidades negras e, ao mesmo tempo,
perceber as dinâmicas do racismo antinegro, como sugeria o pri-
meiro. Sem essencialismos nem exotismos, podemos mergulhar
nas tramas do trabalho vitorioso da intelectualidade negra que,
ao se desvencilhar do paternalismo intelectual branco, nos legou
métodos de pesquisa e reflexão crítica sobre os patrimônios cultu-
rais mais distantes e as experiências políticas de luta pela liberdade
e pela cidadania. Nesse sentido, as culturas negras contemporâ-
neas muito têm para desvelar e atualizar. Thompson mapeia os
fundamentos das civilizações negras da seguinte maneira:

Desde o tráfico de escravos no Atlântico, os princípios


fundamentais da canção e da dança da antiga África cru-
zaram os mares, do velho para o novo mundo, onde ad-
quiriram novo impulso, mesclando-se uns com os outros e
com estilos de cantar e dançar dos nativos do novo mun-
do e dos europeus. Entre esses princípios estão: o domínio
de um estilo de performance percussiva (investida de viva-
cidade vital no som e movimento); propensão para regis-
tros múltiplos (registros competitivos que soam ao mesmo
tempo); sobreposição de canto com contracanto (solo/
coros, voz/instrumento, sistemas de engate da performan-
ce); o controle do pulso interno (um senso metronômico
que mantém a marcação do compasso na mente, como um
denominador rítmico comum, numa profusão de registros
diferentes); a padronização de acentuação suspensa (fra-
seado em tempos fracos de acentos melódicos e coreo-
gráficos) e, num nível levemente diferente, mas igualmente
recorrente na exposição, as canções e danças de alusão
social (ainda que próprias para cantar e dançar, músicas
que contrastam, sem remorso, as imperfeições sociais com
os critérios subentendidos para vida perfeita).8

É provável que as formas religiosas, quase secretamente pre-


servadas, que as ritualísticas multidimensionais em que texto,

pectiva. 1978.
8 Idem, p. 16.

Negras InsUrgências 135 Capulanas Cia de Arte Negra


movimento, senso de espacialidade, indumentária, objetos divina-
tórios, adivinhas, signos gráficos, herbalismos, coreografias e musi-
calidades tenham, por algum momento, formado blocos compac-
tos de conhecimentos, por vezes não plenamente penetráveis até
aos próprios portadores.
O fluxo de mutações culturais derivou das condições dos sis-
temas culturais preexistentes e também do nível de opressão dos
sistemas de cativeiros específicos em cada geografia da planta-
tion. Mintz e Price chegaram a designar de orientações cognitivas;
tratam das dificuldades de historicizar os processos de adaptações
e mudanças culturais das comunidades afro-diaspóricas:

Os africanos que chegaram ao novo mundo não compuse-


ram grupos logo de saída. Sem diminuir a importância pro-
vável de um núcleo de valores comuns e da ocorrência de
situações em que alguns escravos de origem comum podem,
efetivamente, haver-se agregado, a verdade é que estes não
formam, a princípio. comunidades de pessoas, e só pude-
ram transformar-se em comunidades através de processo
de mudança cultural. Para que comunidades de escravos
ganhassem forma, tiveram que ser criados padrões norma-
tivos de conduta, e tais padrões só podiam ser criados com
base em determinadas formas de interação social.9

As culturas negras no Brasil se mantiveram abertas, dinâmicas


e ativas, apesar desses contextos de exclusão e exclusividade. Ao
longo do século XX foram abordadas por agentes do estado e pela
intelectualidade hegemônica de diferentes maneiras. Uma vez os
negros eram o mal necessário, noutra os motivos da inferioridade
da nação, em uma feita suas culturas eram consideradas primitivas
e inferiores, noutra fase eram consideradas a base da idade nacio-
nal, mesmo que inferior.
Os estudos sobre colonialismo, racismo antinegro e culturas
negras vêm sendo elaborados como parte de um programa polí-
tico de emancipação coletiva por africanos, africanas e seus des-
cendentes nas Américas, como também na Europa. Nesse sentido,
os próprios conceitos de culturas africanas e negras, assim como

9 MINTS, Sidney W. & PRICE, Richrad. O nascimento da cultura afroamericana: uma pers-
pectiva antropológica. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Palas Athena: Universidade
Cândido Mendes, 2003, p. 37-38.

Negras InsUrgências 136 Capulanas Cia de Arte Negra


culturas afro-diaspóricas, não existiriam não fosse o empenho re-
novado, geração após geração, desde o século XIX.
Por si só, não haveria reconhecimento dos negros e negras do
mundo como portadores de racionalidade, de sensibilidade, menos
ainda de cultura. Isso não somente em função da existência do
racismo histórico e persistente, mas da manutenção das relações
de poder no interior das sociedades, onde os negros e negras, nem
sempre são minorias demográficas, mas quase sempre minorias
econômicas e políticas.
Conquanto, retoricamente refutando a ideia de existência de
uma essencialidade europeia, Philippe Nemo (2005) argumenta
que a identidade europeia pode ser deduzida de cinco fatores his-
tóricos específicos: a urbanidade grega, o direito romano, a ética
cristã, a ciência moderna e a democracia liberal.
De fato, a universalização econômica da Europa produziu vio-
lento apagamento das civilizações, dos povos conquistados e co-
lonizados. Por mais que se queira minimizar os abalos desse fato,
falando, por exemplo, de “encontros entre diferentes culturas”, ou
sobre a descoberta da alteridade e do “outro”, trata-se do mesmo
processo, colonização e seus derivados, ainda como permanên-
cia, colonialismos. Nesse aspecto, Nemo, para frisar a primazia da
cultura ocidental, relativiza de maneira quase ridícula as influências
árabe-muçulmanas na formação da racionalidade europeia:

É portanto falso e superficial dizer que a renovação inte-


lectual da Europa nos séculos XI e XIII seria resultante
unicamente da influência árabe, do fato de que as Cruza-
das e a reconquista teriam posto os selvagens europeus
sem contato com os centros de cultura requintada como
Damasco, Bagdá ou Córdoba, onde, desde muito tempo,
a ciência grega havia sido recolhida e traduzida. É exato
que numerosos manuscritos foram revelados aos euro-
peus por intermédio do mundo muçulmano, por exemplo
uma boa parte do corpus aristotélico e hipocrático.10

Não obstante o esforço contemporâneo da intelectualidade eu-


ropeia e eurocêntrica em limpar os resquícios de impurezas não
ocidentais do surgimento do pensamento filosófico moderno, mais

10 NEMO, Philippe. O que é ocidente? Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p 77.

Negras InsUrgências 137 Capulanas Cia de Arte Negra


difícil ainda seria admitir que boa parte desse pensamento intro-
duzido na Europa pelos mouros teve um percurso norte-africano.
Nesse caso devemos estar atentos aos processos de construção
da hegemonia do ocidente, aos feitos intelectuais humanistas
não ocidentais, em sua crítica criteriosa, tal como fez Edward Said
(2007) ao pensar sobre a invenção do orientalismo:

Ideia de Europa, uma noção coletiva que identifica a “nós”


contra todos “aqueles” não europeus, e pode-se argumen-
tar que o principal componente da cultura europeia é pre-
cisamente o que tornou hegemônica essa cultura, dentro e
fora da Europa a ideia de uma identidade europeia superior
a todos os povos e culturas não europeias.11

Quais culturas não europeias foram irreversivelmente atingi-


das pela expansão ocidental e pela formação do capitalismo, cujo
centro foi a Europa ocidental? Todas aquelas existentes, indepen-
dentemente do quadrante geográfico; mas o impacto da coloni-
zação parece ter sido mais violento onde suas raízes penetraram
mais fundo. Isso pode ser medido de forma objetiva em termos de
desdobramentos econômicos, políticos e culturais nas sociedades
em que os efeitos se mostram mais duradouros, seja no Oriente
Médio e em toda Ásia, seja Oceania, África e Américas.
Nosso foco tem sido pensar o colonialismo simultâneo nas
Áfricas e Américas e nas conexões atlânticas em termos da sangria
demográfica daquele primeiro continente, transposição involuntária
de aproximadamente 20 milhões de africanos, no sistema comer-
cial de âmbito mundial, que disseminou pessoas africanas também
em outros lugares do planeta.
Mas não estamos mais dispostos a fazer a contabilidade dos
cadáveres e sobreviventes da travessia do Atlântico e mares outros
tingidos de melanina africana, nem a tentar fincar túmulos marítimos
físicos e simbólicos sobre aquelas águas. Nossos empreendimen-
tos já vêm sendo colocados em termos muito mais desafiadores
e complexos, por intelectuais afro-diásporos como Fanon (2008),
que mergulhou fundo na constituição da mentalidade colonizada
em ambas as faces da moeda. Ou Stuart Hall, que nos legou um
tipo de reflexão e metodologia de desconstrução das identidades

11 SAID, Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução de Rosaura


Eichenberg. São Paulo: Companhia das letras, 2007, p. 34.

Negras InsUrgências 138 Capulanas Cia de Arte Negra


concebidas como essências nacionais, raciais e étnicas.
Intelectuais negros e negras, quando puderam, ergueram a voz
ou brandiram suas canetas pretas em riste, para denunciar o jogo,
as dubiedades, os arbítrios dos ideólogos do Estado e os veículos
monopolizados de comunicação, as instituições de branco saber,
que, via de regra, são deliberadamente eurocêntricas.12
Durante todo o século XIX, embora as elites brasileiras com-
postas por uma minoria branca de grandes proprietários de terras
discutissem a formação de uma nação baseada em estados eu-
ropeus, portanto branca, elas adiaram o máximo possível o fim do
tráfico negreiro, negociaram longamente a gradual extinção da es-
cravidão e foram até o limite. Um projeto de branqueamento nacio-
nal começou a ser gestado ainda em 1822 por mentes brilhantes
como José Bonifácio de Andrada e Silva, e rapidamente as primei-
ras levas de camponeses germânicos desembarcaram no Rio de
Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul (São Pedro) em 1824.13
Tipo, mazela do mundo, ou queda que nunca cessa. Aguenta o
racismo antigo. Bonifácio preconizou um certo projeto de naciona-
lidade que primeiramente cessasse o tráfico para impedir ingresso
de mais africanos e buscou apoio na opinião pública nacional para
implementar medidas para que a escravidão fosse gradualmen-
te abolida. Talvez por isso tenha sido interpretado elogiosamente
como o primeiro abolicionista do império. Será? Mas desde lá suas
orientações seguiam uma percepção traçada pela visão iluminista
de superioridade racial e civilizacional branca. Por quê?
Entretanto, a epopeia germânica, transformada em textos his-
tóricos e romances, filmes e dramaturgia de imaculada brancura,
apagou o fato de que a inaugural viagem do navio Germânia de
Hamburgo até o Brasil foi palco de um motim que levou ao fuzila-
mento de praticamente um quarto das pessoas a bordo.14
Após a abolição, sobretudo entre 1890 e 1930, a política de
imigração de pessoas europeias assumiu cunho de desespero ra-

12 MOURA, Clovis. Dialética radical do negro. 2a ed. São paulo: Fundação Maurício Grabois;
Anita Garibaldi, 2014, p. 248. Moura tece precisos comentários sobre suas tentativas frustradas
de realizar seminário sobre literatura negra com o jornal Folha de S.Paulo, concluindo que
a mídia de massa tornou-se um eficaz sistema de controle cultural no Brasil, com nefasta
incidência sobre as formas culturais negras contemporâneas.
13 HUNSCHE, Carlos H. O biênio 1824/25 da imigração alemã no Rio Grande do sul (de São
Pedro). 2 ed. Porto Alegre: A Nação, 1975.
14 Idem, p. 30.

Negras InsUrgências 139 Capulanas Cia de Arte Negra


cionalizado. George Reid Andrews, que fez um dos estudos mais
completos sobre população negra em São Paulo no transcurso do
século XX, comenta:

Desse modo, somente em 1887, quando fugas em massa de


escravos das fazendas prognosticaram o fim iminente da
escravidão, a imigração europeia anual para a província
superou pela primeira vez a marca de 10 mil.
Quando isso
aconteceu, ela saltou imediatamente para 32
mil, mais que
os últimos cinco anos juntos. A abolição formal, em 1888,
quase triplicou esse número, para 92 mil, coincidentemen-
te, apenas pouco menor que o número de escravos liberta-
dos naquele ano pela alforria. Entre 1890 e 1914, mais de
1,5 milhão de europeus cruzaram o Atlântico rumo a São
Paulo, com a maioria (63,6 por cento) das passagens pagas
pelo governo do estado.15

Como mostrou Andrews, sobretudo, em São Paulo, século XX,


não foi menos terrível para os descendentes de africanos no Brasil,
tanto quanto aqueles em que a escravidão era vigente. A política de
branqueamento perseguida pelo estado de São Paulo adiantou-se
até a década de 1960 como política pública, como investimento do
Estado para transformar, se não o Brasil, ao menos São Paulo, em
um estado de brancos. Mas o embranquecimento biológico-racial
poderia esperar, enquanto aquele cultural poderia estar ao alcance
das mãos. Antonio Sergio Guimarães, nas suas ambiguidades, nos
ofereceu a seguinte chave interpretativa:

“Embranquecimento” passou, portanto, a significar a capa-


cidade da nação brasileira (definida como uma extensão
da civilização europeia, onde uma nova raça emergia) para
absorver e integrar mestiços e pretos. Tal capacidade re-
quer implicitamente a concordância das pessoas de cor
em renegar sua ancestralidade africana ou indígena. “Em-
branquecimento” e “democracia racial” são pois conceitos
de um novo discurso racialista. O núcleo racista desses
conceitos reside na idéia, às vezes totalmente implícita, de
que foram três as “raças” fundadoras da nacionalidade, as

15 ANDREWS, George Rei. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Tradução de Magda
Lopes. São Paulo: Edusc, 1988, p. 98.

Negras InsUrgências 140 Capulanas Cia de Arte Negra


quais aportaram diferentes contribuições, segundo os seus
potenciais culturais qualitativamente diferentes. A cor das
pessoas assim como seus costumes são portanto índices do
valor positivo ou negativo dessas “raças”.16

Por tudo isso, certas entrelinhas dos estudos feitos por Antônio
Sergio Guimarães sobre as motivações xenofóbicas na origem da
Frente Negra Brasileira e sua noção subliminar de autodiscrimina-
ção,17 causam espanto e soam historicamente descabidas e inter-
pretativamente desonestas. O que o ativismo negro moderno das
décadas de 1890-1930 percebeu com aguda criticidade foi como se
ergueram, em tempo real na sua frente, sobretudo em São Paulo,
as barreiras sociopolíticas combinadas, as evidentes melhorias das
condições de vida da população branca, a imigração acelerada de
europeus e o vertiginoso processo de industrialização/urbanização,
gerando novos privilégios instituídos para os eurodescendentes.
Os pertencentes às elites advindas do escravismo e do tráfico
empreenderam efetivo esforço para encarar de forma realista a pre-
sença negra na formação social brasileira como fato consumado.
Isso depois que seus antecessores haviam formulado inúmeras
hipóteses inconclusas e sem sucesso sobre o desaparecimento
gradual e coordenado da população negra.
O racismo como ideologia e prática política efetiva somente
começou a ser implementado na medida em que o escravismo
caminhava para um ponto de agonia irreversível. O comando fi-
nanceiro e técnico esteve diretamente nas mãos e ideias dos fazen-
deiros paulistas, mineiros e fluminenses, que haviam feito fortuna
combinando tráfico clandestino e interno com produção em larga
escala de cafeicultura de exportação. Eles que também eram o
estado imperial, agora reformadores republicanos, imediatamen-
te após a abolição e proclamação constituíram o mais ambicioso
projeto de nacionalização da população. Como nacionalizar uma
população etnicamente tão diversa, se perguntaram. Como fazer
um estado-nação com tantos negros e índios remanescentes?
Mas era necessário não apenas importar brancos, como
também impedir a formação de “quistos étnicos”, gritou Silvio
Romero. Alberto Schneider,18 um gênio de sua raça, repercu-

16 GUIMARÃES, Antonio Sergio. Racismo e antirracismo. Novos Estudos CEBAP, n. 43, novem-
bro de 1995, p. 26-44.
17 GUIMARÃES, Antonio Sergio. Racismo e antirracismo no Brasil. São Paulo: Editora 34, p. 226.
18 SCHNEIDER, Alberto Luiz. Silvio Romero, hermeneuta do Império. São Paulo: Annablume,

Negras InsUrgências 141 Capulanas Cia de Arte Negra


tiu, festiva e ingenuamente, aquele germanismo inicial cem anos
depois, num livro com capa verde e amarela. Os recém-chega-
dos, portanto, deveriam ser coagidos a se integrarem num grande
projeto de homogeneização biológico-racial e cultural.
Contudo, é bom avisar que foi Schneider a ler e nos avisar
sobre aquilo que os leitores anteriores de Romero, inclusive Antonio
Candido, haviam passado um pano ou mesmo corroborado com
exercícios de retórica acadêmica e eufemismos. Como, por exemplo,
dizer que “o racismo antropológico” de Romero, que pregava uma
mestiçagem “regeneradora” da raça, seria uma forma de preconizar
uma “universalização de direitos”. O quê? Romero sem dúvida rein-
terpretava Gobineau,19 mas mantinha intacta a ideia de superiorida-
de racial branca. É justamente aqui que eu e meu amigo sulista de
origem alemã nos separamos.
No Congresso Mundial das Raças, realizado em Londres em
1910, João Batista de Lacerda, um médico racialista brasileiro, repre-
sentante da elite científica nacional, garantiu aos possíveis investi-
dores e à comunidade científica internacional séria e engajada na
busca do equilíbrio do mundo que, num período de cem anos, o
Brasil seria uma nação de gente branca e civilizada. Edward Du Bois
estava entre os ouvintes de sua palestra. O que deve ter pensado
sobre os negros no Brasil? Como deve ter reagido?
Segundo Henry Louis Gates Jr., a impressão de Du Bois seria
a seguinte: “De modo geral, a emancipação no Brasil foi pacífica,
e os brancos, negros e índios estão hoje se amalgamando numa
nova raça.”20
Talvez essa imagem já estivesse devidamente consolidada, com
nuances diferentes, antes do trabalho prestado por Gilberto Freyre.
Isso explicaria a tentativa frustrada de um grupo de afro-estaduni-
denses que, ao saber do projeto de colonização na área do Cerrado
no Brasil central solicitou, em vão, visto de imigração e assenta-
mento em terras destinadas a esse fim no estado de Goiás, talvez
próximo das terras Kalungas.21

2005, p. 77.
19 Veja por exemplo: GÓES, Weber Lopes. Racismo e eugenia no pensamento conservador
brasileiro. A proposta de povo em Renato Kehl. São Paulo: Liber Ars, 2018.
20 GATES JR., Henry Louis. Os negros na América Latina. Tradução de Donasldson M. Gars-
chagem. 1a ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 29.
21 RAMOS, Jair de Souza. Dos males que vêm com o sangue: representações raciais e a
categoria de imigrante indesejável nas concepções sobre imigração na década de 1920. In:

Negras InsUrgências 142 Capulanas Cia de Arte Negra


O racialismo, ou racismo sistematizado como “ciência das
raças”, em finais do século XIX, assumia diferentes nomes, o prin-
cipal deles era eugenia. Grandes empresas europeias e americanas
forneceram subsídios para o desenvolvimento de pesquisas nessa
área, mas também governos da Inglaterra, França e Alemanha, jun-
tamente com os EUA, forneceram recursos humanos e técnicos
para o desenvolvimento teórico e prático de eugenistas renoma-
dos.22 No Brasil não se sabe quanto foi gasto em projetos desse
tipo, assim como, quais e quantos foram os responsáveis por essas
ações. Mas a participação de Lacerda e remotas referências nos
dão a entender que também aqui essa nova “ciência” mereceu
atenção e investimentos.
A aparente afabilidade e otimismo de Lilia Moritz Schwarcz
(1993)23 parece ter contaminado bastante suas primeiras escrituras
sobre racismo antinegro no Brasil. Talvez por isso tenha encontrado
no Iluminismo uma visão unitária de humanidade, que entendia
os “diversos grupos como povos, nações e jamais como raças di-
ferentes em sua origem e conformação”. Ao contrário, inúmeros
pesquisadores apontam que foi exatamente no Iluminismo que a
noção de hierarquia entre as raças foi devidamente equacionada e
rapidamente aplicada às práticas de controle de populações euro-
peias subalternas, assim como em seus domínios coloniais.
Então, agora sabemos que a noção básica do pensamento
racial-colonialista interno sustenta a ideia de que determinados
traços físicos e biológicos são intrínseca e devidamente associa-
dos a atitudes comportamentais consideradas negativas. Então,
não nos resta outra alternativa que seja penetrar mais fundo nas
fibras finas das tramas da branquitude. Raymond Williams (2007)
historiciza a palavra razza do Italiano, race do francês, como tendo
ingressado na língua inglesa no século XVI, relacionada a cepa,
tronco, raiz ou talo.

MAIO, Marcos Chor & SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1996.
22 Veja: BLACK, Edwin. A guerra contra os fracos: A eugenia e a campanha norte-americana
para criar uma raça superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa. 2003. Veja
também: Racismo uma história: a cor do dinheiro. BBC Londres, 2007.
23 Leia: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil, 1870-1930. Assista: Racismo, uma história da BBC, 1997. Leia: BLACK, Edwin.
A guerra contra os fracos. A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça
superior. Tradução de Tuca Magalhães. São Paulo: A Girafa, 2003.

Negras InsUrgências 143 Capulanas Cia de Arte Negra


Tanto para M’Bokolo como para Raymond Williams foi o filó-
sofo e erudito germânico Blumenbach quem na segunda metade
do século XVIII rastreou de forma séria e interessada e protocolou
os diferentes grandes grupos humanos, com base num sistema
experimental de medição de crânios. Do alto posto do domínio
europeu, sem juízo de valor? Naquele contexto chegou a seguinte
classificação: caucasianos, mongóis, malaios, etíopes e america-
nos. As heranças desse sistema classificatório ainda hoje vigoram
em vários níveis da vida social e em todo o mundo, seguindo um
padrão craniométrico e cromático, definido também pelas cores de
peles: branca, marrom, amarela, vermelha e negra.
Williams, citando um capitalista familiar para nós, diplomata e
pseudo-cientista francês, Jean de Gobineau, afirma: “Esse trabalho
sério confundiu-se radicalmente no século XIX, com outras ideias
derivadas do pensamento e do preconceito social e político. Um
marco é o Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853-
1855), de Gobineau, que propôs a ideia de uma raça ariana”.24
Efetivamente o pensamento racial foi elaborado concomi-
tante ao processo de formação colonial e construção da Europa
moderna. A “descoberta” de que as pessoas brancas europeias
eram “brancos europeus” se deu no mesmo instante em que as
bases do sistema colonial estavam sendo constituídas nas Améri-
cas, na África, no Oriente Médio e extremo oriente e na Ásia. Isso
por si só não explicaria toda a complexidade das noções raciais
dinâmicas e mutantes ao longo dos séculos XVI ao XXI.
Elikia M’Bokolo (ao lado de Kabenguele Munanga e Linda
Heywood) talvez seja uma das maiores autoridades mundiais con-
temporâneas em história da África negra e da diáspora africana.
Pertencente a uma terceira geração de pesquisadores e pesqui-
sadoras africanas, não apenas situa o aparecimento e desenvol-
vimento dos racismos antinegros na formação da modernidade,
como também aponta as conexões entre as vivências europeias
diante das características físico-biológicas dos africanos e africa-
nas e aqueles aspectos comportamentais mais refinados.
Depois de uma revolta, primeira rebelião de escravos ladinos
(aqueles e aquelas nascidas em cativeiro nas Américas) no
Caribe espanhol, essa categoria tomou corpo e passou a ser ca-

24 WILLIAMS, Raymond. Palavras–chave: um vocabulário de cultura e sociedade. Tradução


de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo Editorial. 2007, p. 335.

Negras InsUrgências 144 Capulanas Cia de Arte Negra


racterizada como “povo de pessoas más, insolentes e inclinadas
para o mal” e, em 1526, surgiu um decreto da corte real proibindo
importação de ladinos.
Segundo a elaboração do pesquisador, parecem ter sido as re-
voltas e o repúdio violento dos capturados e escravizados um dos
motivos que levaram os europeus a empreender esforço na elabora-
ção de estigmas especialmente racializantes. M’Bokolo (2009) refe-
re-se a formas de segregação e distinção humanitárias entre nativos
(índios), que supostamente deveriam ser protegidos do iminente ge-
nocídio, em desfavor dos segundos, africanos; aponta que:

Uma outra fase estava em vias de ver o dia, na sequência da


revolta de 1522, a primeira revolta conhecida dos negros
no novo mundo e atribuída a escravos jolofos (Wolof)
originários do Senegal. Após uma repressão exemplar, os
jolofos foram associados a um certo número de caracterís-
ticas julgadas negativas e reputadas específicas: começaram
a ser designados como “orgulhosos, desobedientes, rebel-
des e incorrigíveis, e tendo maus costumes”. Finalmente à
medida que aumentava o número de escravos, das mais diver-
sas origens, e as revoltas contra senhores, foi ao conjunto
dos negros que se aplicaram estes preconceitos mesmo se,
paralelamente, os senhores adotassem um sistema de clas-
sificações dos seus escravos em função de qualidades que
julgavam específicas das diferentes “etnias”.25

A dimensão mundial da captura e o tráfico de pessoas africa-


nas, em fins do século XVI, já estavam consolidados. Os pilares
do “novo mundo” econômico que se desenhava estavam finca-
dos, justamente nessa atividade que se tornou tão mais lucrativa
quanto ampliada e desenvolta, atraindo capitais e desenvolvendo
técnicas, tornando-se mais complexa e ampla. Na mesma medida
do domínio europeu nas Américas eram arroladas sociedades es-
tatais africanas, por sua fragilidade militar ou mesmo por interesses
de soberanos e chefes locais, em obter apoio estratégico estrangei-
ro para resolução de conflitos locais.
O tráfico e a grande propriedade (plantation) eram duas insti-

25 M’BOKOLO, Elikia. África negra. História e civilizações. Tomo I. Tradução de Alfredo Marga-
rido. São paulo: Salvador: Edufba Casa das Áfricas, 2009, p. 381.

Negras InsUrgências 145 Capulanas Cia de Arte Negra


tuições mundiais interconectas. A partir de centros financeiros e
administrativos localizados na Europa, homens brancos burgueses
e aristocratas e seus agentes dispersos em diferentes pontos do
mundo coordenavam esforços e táticas para produzir e drenar ri-
quezas, concentrá-las em nome da fé ou do lucro, da civilização e
da razão iluminada. A filosofia e a mecânica, a estética e a tática de
guerra, a teologia e a botânica, tudo em nome da expansão de um
mundo que já não podia caber em si mesmo.
Escravismo e revoltas negras, tudo isso sempre foi e é bastante
complexo. Esses dois sistemas complementares e interdependen-
tes se alimentaram de corpos masculinos e femininos negros, téc-
nicas de produção agrícola, pastoril extrativista e mineradora, que
os europeus não conheciam e com os quais não tinham nenhuma
experiência. Esse sistema mundi de produção e drenagem tor-
nou-se mais plástico, dinâmico e autoajustável, e funcionou sem
grandes traumas até o final do século XVIII.
Hoje parece certo entender que, na formação das sociedades
escravistas, os negros importados aos milhões formaram base de
produção em larga escala; na medida em que obtiveram de dife-
rentes formas a “liberdade”, possível naquelas condições, acaba-
vam por formar uma base social estratificada do que viria a ser o
setor mais pobre. Mas também aquele que não se confundia com
os brancos despossuídos. Além disso, a violência sexual contra as
mulheres, não obstante, gerava uma população mestiça, que foi se
tornando numerosa, frequentemente reportada como específica, e
com o passar dos séculos utilizada, cada vez mais, pelo mundo
senhorial e branco como anteparo dos conflitos latentes.
Revoltas de pessoas escravizadas foram notificadas esparsa-
mente desde o século XVI. Motins em fortalezas nos litorais afri-
canos, revoltas em navios ancorados em alto mar para receber e
transportar pessoas capturadas no interior do continente. Greves,
motins, cimarrones, quilombolas, palenques, marrons, comuni-
dades de rebelados que começaram a se formar nas Américas.
Embora a ênfase da história se baseie na saga descobridora e co-
lonizadora dos europeus, negros e índios resistiram, lutaram muito,
com as armas e técnicas militares que tinham. E também é verdade
que vários chefes africanos e dos povos originários capitularam e
colaboraram com os invasores brancos.
Ao final do século XIX, os europeus estavam tão intrigados com
as atitudes e comportamentos dos seres humanos e daqueles quase

Negras InsUrgências 146 Capulanas Cia de Arte Negra


humanos, que eram os “outros”, que tiveram que fazer emergir uma
ciência experimental nova e que fez grande sucesso, a psicanálise.
De um lado, foram médicos psiquiatras os principais instru-
mentadores de políticas discriminatórias com base em interpre-
tações raciais. Raimundo Nina Rodrigues, Renato Khel e Ulisses
Pernambucano fazem parte de uma longa lista de pesquisadores
experimentais, cujos métodos culminaram em encarceramentos
maciços de gente considerada degenerada. Artur Ramos e Renné
Ribeiro ainda trazem ecos eugênicos em suas pesquisas, conceitos
e abordagens teóricas.
De outro está configurado um campo de luta por dignidade e
contra os efeitos nocivos do racismo nas psiques de pessoas negras
de ambos os sexos e em diferentes setores da população. O esforço
dos psiquiatras e intelectuais negros e negras no Brasil poderia fazer
parte da agenda histórica do antirracismo. Machado de Assis e Juliano
Moreira, Sonia Santos, Virginia Bicudo e Lélia Gonzáles são apenas
exemplos esparsos da zumbílica tarefa de elucidação do impacto
do racismo sistêmico e sua possível reversão sobre a subjetividade e
sobre os comportamentos individuais e de coletividades negras.
Digamos que atualmente o pensamento e as práticas raciais
discriminatórias são mais desveladas. Mas vamos admitir que o
racismo antinegro começa a ganhar novos e dramáticos contor-
nos.26 Toda aquela condenação moral advinda da queda do projeto
expansionista germânico e dos seus colaboradores mais ativos ou
ainda daqueles silenciosos, recentemente parece ter cedido lugar
a novos credenciamentos racialistas, aparentemente apoiados
pela pretensa falência dos preceitos humanistas reformulados no
século XX (igualdade de raça, classe, etnia, etária e gênero, tolerân-
cia e respeito à diferença).
De qualquer maneira, podemos dizer que a Segunda Guerra
Mundial foi o ápice do pensamento racial aplicado, na medida em
que já estava sendo colocada em ação e em larga escala geográfica
e tecnológica uma série de pressupostos sobre a noção de supe-
rioridade, supremacia e hegemonia ariana e branca em diferentes
partes do mundo.
Porém, jamais foi completamente assimilado pela cultura oci-
dental o dramático e épico episódio que se sucedeu em uma po-

26 Refiro-me à emergência de grupos neonazistas e neofacistas em todo o mundo e as


conquistas de espaço políticas entre vários setores da juventude mundial, por meio de redes
sociais, especialmente entre setores da juventude mais pobre da população.

Negras InsUrgências 147 Capulanas Cia de Arte Negra


pulosa ilha do Caribe sob domínio francês, num teatro do real em
que os protagonistas tinham diferentes gradações de tons, mas
para insistir no contraste policromático, podemos dizer que eram
peles predominantemente negras. Sobre a revolta de São Domin-
gos (Haiti) o historiador ex-presidente de Trinidad teria escrito: “A
revolta escrava em São Domingos, com sua vitória, foi um marco
na história da história da escravidão no novo mundo, e depois de
1804, quando foi criada a República do Haiti, todo branco dono de
escravos, na Jamaica, em Cuba ou no Texas, vivia no pavor de um
novo Toussaint L’Ouverture”.27
A modernidade negra nasce na revolução haitiana, mesmo que
a figura de Toussaint tenha sido transformada em caricatura similar
a Jim Crown ao longo do século XIX. Podemos tomar a República
do Haiti e a sua cultura marcadamente africana como síntese afro-
-diaspórica, como combinação livre de valores culturais do ociden-
te pretensamente humanista, mas racista.
Tal como Cuba, Brasil, Colômbia, podemos nos ater ao Haiti
como uma sociedade nascida do escravismo moderno e de lutas
encarniçadas pela liberdade individual e coletiva de pessoas de
origem africana no “novo mundo”. Contudo, nasce também dos
elementos culturais africanos presentes na cultura religiosa e das
sociabilidades dos escravizados-rebelados, e que em larga medida
decidiu os rumos das futuras revoltas sociais e simbólicas poste-
riores. São os valores culturais recodificados, aqueles antes vistos
como desprovidos de civilização que serão lapidados pelos intelec-
tuais afro-diaspóricos como folk-negro em fins do século XIX.
Esses vários aspectos estão interligados às questões funda-
mentais das culturas negras contemporâneas: o trauma da captura
e travessia do Atlântico, introdução numa sociedade estranha e
violenta e o consequente parcial desenraizamento civilizatório das
pessoas traficadas-escravizadas e racialmente dominadas. Por fim,
a dominação econômica, política e cultural resultante do proces-
so de colonização e colonialismo interno, desdobrada em exclu-
são social negra e exclusivismo político dos eurodescendentes. O
racismo antinegro, não como comportamento subjetivo e individual
dos brancos, mas como manutenção do prestígio, poder e mando
de uma minoria eurodescendente.
Por indicação de um texto do sociólogo francês especialista em

27 WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. Tradução de Denise Bottman. 1a ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.

Negras InsUrgências 148 Capulanas Cia de Arte Negra


Brasil, Roger Bastide, publicado nos anos 1970, somos levados a
crer que tais práticas de representação negra no Brasil têm sua
origem ainda no século XVII, no Nordeste brasileiro. Mas também
há registros nem um pouco desprezíveis sobre representações es-
petaculares negras nas Minas Gerais do século XVIII, na forma de
um drama de uma monarquia africana, que seria a monarquia do
Congo. Essas representações nos alcançam ainda hoje nas formas
de congadas, ticumbis, catopês, maracatus e moçambiques.
Também é possível, pela sugestão de Roger Bastide, pensar
no boi-bumbá, na burrinha, e em outras práticas populares negras
do século XIX pra cá, como formas teatrais ou teatralidades como
bem conceituou Joel Rufino dos Santos.28
O Haiti. Nosso símbolo libertário radical, no entanto, foi assimi-
lado do outro lado como aparição infernal, acontecimento fantas-
magórico para o ocidente escravagista, de tal forma monstruoso
para o mundo racialmente codificado. Mesmo assim, de vez em
quando, seus fragmentos, versões ou interpretações são parcial-
mente recuperados nas extensões das ocidentalidades ou mesmo
em objetos que boiam no Atlântico, no Mediterrâneo e, às vezes,
também no mar do Norte.
Até mesmo Antonio Sergio Guimarães, nas suas ambiguidades
já conhecidas, reconhece naquele episódio um nascedouro da Mo-
dernidade Negra, mas ao mesmo tempo a subordina à moderni-
dade ocidental. Mesmo para aqueles intelectuais tidos como mais
favoráveis parece difícil assimilar que o pensamento ocidental por
si mesmo seria incapaz de conceber tal inovação, na medida em
que relutou ao máximo em reconhecer a humanidade dos outros e
mantê-la apenas para si e seus europeus no exílio. Nesse sentido,
sem citar Paul Gilroy (2002) como aquele que conceituou esse
termo, o eminente professor brasileiro pratica a velha e boa expro-
priação intelectual. Nas palavras e termos do próprio Guimarães:

A modernidade negra faz parte desse processo de uma ma-


neira muito específica, caudatária da história dos contatos
entre brancos e negros. Apesar da integração dos povos
negros africanos ao universo dominado pelos europeus
anteceder de muito o sistema escravista implantado nas
Américas, tal inclusão dava-se até então de modo não ape-

28 SANTOS, Joel Rufino dos. Reflexões sobre teatro e teatralidade. In: PARDO, Ana Lúcia. Tea-
tralidade do humano. São Paulo: Sesc, 2011, p. 81-89.

Negras InsUrgências 149 Capulanas Cia de Arte Negra


nas subordinado, mas altamente unilateral; a representação
dos negros sendo construída e reproduzida pela mente,
pelas palavras e pelas imagens dos brancos. Ao contrário,
o processo modernizador que me interessa aqui é marcado
pelos contatos, pelas trocas e conflitos intensos.29

Cada tempo em que a hermenêutica negra é aplicada aos


conteúdos materiais e simbólicos das Áfricas mais remotas, ou
ainda aos fragmentos textuais, imagéticos e sonoros das diásporas
negras – ainda que não possam produzir o efetivo retraimento do
brancocentrismo, nem interditar por completo a recorrência cog-
nitiva da branquitude –, traz deslocamentos inéditos que podem
iluminar novas descobertas.
Vamos retomar a ideia colocada por Joel Rufino dos Santos e
que, de certa forma, repercute um apontamento já feito por Roger
Bastide sobre teatro ou teatralidade popular negra no Brasil desde
o período colonial. Mas antes quero apresentar um dado sobre a
apreensão de pessoas negras ou africanas na Europa moderna e
em que medida a condição de escravizados pode ser desenvolvi-
da na forma de dramaturgia e exposta em casas de espetáculos.
Sabemos ainda bem pouco se os atores e atrizes eventualmente
eram ou não negros, mas ainda assim parece possível refletir sobre
a construção do teatro moderno europeu e seus descaminhos em
relação aos africanos.
Para nós, a modernidade negra tem sido tudo que emerge como
processos terapêuticos, reconfigurando práticas e pensamentos
negros, filosofias e estratégias políticas. São também panfletos e
romances abolicionistas, peças teatrais e exposições museológi-
cas, pesquisas históricas, objetos de culto, fotografias e filmes que
trazem à tona as formas estéticas e memórias de origem africanas
na longa duração. Por vezes são apenas perguntas lançadas ao
vento e ao atlântico antigo, meio, via, caminho para morte, re-exis-
tência e renascimento.
Um Haiti aqui? O Haiti é aqui?30 Perguntaram dois mulatos ar-

29 GUIMARÃES, Antonio Sergio. A modernidade negra. Revista Teoria e Pesquisa 42 e 43,


jan.-jul. 2003, p. 41-62.
30 HAITI. CAETANO, Veloso e GIL, Gilberto. Tropicália II. O rótulo ou termo MPB, forjado pela
indústria do entretenimento cultural e por jornalistas cariocas não quer dizer nada especifi-
camente, mas serviu bem nas prateleiras de lojas de discos, quando existiam, e ainda serve
bem, ao menos para um setor acadêmico em extinção, que atua num nicho específico de
temática da cultura nacional.

Negras InsUrgências 150 Capulanas Cia de Arte Negra


tistas baianos, um mais francamente mestiço do que outro. Solenes
e integrados perguntaram em 1992, tentando incorporar algum ele-
mento musical do ainda estranho e fugidio gênero REP (Ritmo e
Poesia) à sua batida de violão dissonante, bem “típico” da MPB
(Música Popular Brasileira). Brando apoiava abertamente e com re-
cursos financeiros a organização dos Panteras Negras. Talvez nunca
tenham lido Ceryl L. R. James, paciência; mas certamente assistiram
a Marlon Brando em Queimadas, em alguma sessão da tarde.
Aparentemente no Brasil foi também um homem negro vindo
do Caribe, com um domínio simultâneo do inglês e português,
quem traduziu os textos publicados nos EUA sobre uma inovadora
modalidade de ativismo negro de âmbito global. Seria necessário
escanear diferentes artigos publicados pela Frente Negra Brasilei-
ra (FNB)31 para processar cuidadosamente tópicos das memórias
de José Correia Leite e outros ativistas negros e negras paulistas
dos anos 1910-1930. Mas parece não haver mais dúvidas sobre o
caráter da integração política e estética afro-brasileira aos debates e
criações culturais e em torno das ideias e ações de Marcus Garvey,
Edward Du Bois, Booker T. Washington e Frederik Douglass.
Então, se meus leitores e leitoras me permitirem, vou fazer um
corte seco nessa parte da reflexão para introduzir um dado que diz
respeito ao tema que me propus: apontar elementos de construção
de culturas populares negras em São Paulo nos séculos XIX, XX,
XXI e repousar atenção mais detida à cidade negra contemporânea
e trazer alguns apontamentos sobre o que poderíamos chamar de
Teatralidade Negra nessa geografia.
Naquela época, nem se falava do líder branco francamente
racista, mas se percebia um silêncio sorridente de São Paulo diante
da chacina dos presos (negros em sua maioria) do Carandiru. Jus-
tamente onde Abdias do Nascimento montou sua primeira experi-
ência teatral, chamada o Teatro do Encarcerado. No futuro sabere-

31 José Correia Leite, em passagens rápidas, fala sobre a presença de um empresário-gerente


tradutor negro nomeado apenas Mister Gids. Talvez originário de Trinidad e Tobago, funcionário
de uma empresa inglesa, importadora instalada no centro da cidade de São Paulo. Esses vín-
culos entre ativistas negros e negras brasileiros e seus pares no Caribe, EUA, África, têm sido
pouco explorados pelos pesquisadores. Veja: LEITE, José Correia e CUTI. E disse o velho mili-
tante. São Paulo: Coordenadoria Especial do Negro: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. FNB
foi uma organização política criada inicialmente pela comunidade negra paulista. Tornou-se
partido político e foi cassada durante a primeira fase do Estado Novo, na década de 1930. Há
extensa bibliografia histórica e sociológica sobre esse tema das lutas negras no Brasil.

Negras InsUrgências 151 Capulanas Cia de Arte Negra


mos não haver apenas coincidências entre as trajetórias de Abdias
e Eric Williams, entre Angela Davis e Lélia Gonzales. Muitas mais
que as leituras comuns de ambos sobre Habermas. Meu N’Zambi,
Julio Moracen Najano, tinha razão: vivemos em um grande Caribe.

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Negras InsUrgências 154 Capulanas Cia de Arte Negra


Negras InsUrgências 155 Capulanas Cia de Arte Negra
9. Entre Práticas dispersas,
potentes e antigos jogos de
poder, o saber fazer cultura
negra em São Paulo
por Salloma Salomão

Acontece, porém, que a mulher negra está abrindo os olhos.


Durante a escravidão e mesmo agora na República, ela existiu
passiva, amamentando “sinhosinhos’e aos filhos do “seu dotô”.
Subjugada, diminuída, refugia-se na sua doçura e mansidão
natural, sem armas para lutar e resistir aos mais vis assaltos
à sua honra e dignidade pessoal. Empregada doméstica, fun-
cionária pública, comerciária, industriária , médica, advogada
ou mães de família, a mulher negra está aprendendo a andar
de cabeça erguida e a impor sua personalidade.

Maria Nascimento

Quem pensa o novo são os homens do povo e seus filó-


sofos, que são os músicos, cantores, poetas, os grandes
artistas e alguns intelectuais. Um pequeno exemplo: não
há nenhum milagre maior do que a forma como a cultura
popular está tomando revanche sobre a cultura de massa.
Há 20, 30 anos, a gente se preocupava com a ideia de que
a cultura de massa iria esmagar a cultura popular. Nada
disso, estamos vendo.

Milton Santos

Negras InsUrgências 157 Capulanas Cia de Arte Negra


No Brasil, a tradição de partejar assim como a de benzer é
resultado dos diálogos culturais entre africanas, indíge-
nas e europeias. Na Antiguidade, já há indícios de mulheres
que punham em prática os saberes passados de geração
a geração trabalhando como benzedeiras, curandeiras e
parteiras. Naquela época, eram elas que viajavam de casa
em casa, aldeia em aldeia atuando como médicas locais.
Todas essas práticas femininas que requeriam o conheci-
mento dos segredos da natureza e fé foram requisitadas
por pessoas de diferentes classes. Contraditoriamente, sé-
culos mais tarde, elas serão consideradas como bruxas
pela Igreja Católica.

Schuma Schumaher e Erico Brazil

No Brasil a classe média não quer direitos, quer privilé-


gios. (...) A cidade atrai e guarda pessoas com os mais di-
ferentes níveis de renda, e a modernidade não é extensível
a todas. Os pobres são guardiões da cultura exatamente
porque não têm a modernidade, as modas. Eles são muito
ligados ao que há de profundo, o que surge da relação
íntima com o território.

Milton Santos

Ainda, mas agora por sugestão de Allan da Rosa e Raquel Al-


meida,1 tenho andado pelas beiras da cidade acompanhando o
curso dos córregos soterrados e os resquícios da minas d’água.
Estou à procura de canções e poesias negras abandonadas nas
bordas da cidade concreta. Também procuro por cidades submer-
sas, suas gentes, gente morta e viva, justamente porque ficaram à
margem das instituições e puderam reter algo de inédito na retina
com suas próprias lentes e, de vez em quando, mapear os vícios
da sociedade outra. Figuras desaparecidas e não catalogadas ou
simplesmente desprezadas por museus, institutos culturais e uni-
versidades. Corpos e hálitos quentes de gente viva nos extremos da

1 Allan da Rosa é poeta, historiador, ficcionista e dramaturgo afro-indígena nascido e criado


em São Paulo, figura do cosmopolitismo periférico contemporâneo, doutorando em Educação
pelade Universidade de São Paulo. Raquel Almeida é poetisa e da região norte da cidade,
ligada à cena de Saraus da Brasa e Elo da Corrente, à cena musical do Samba do Congo na
zona norte da cidade de São Paulo. Pesquisadora independente da vida e obra da escritora
negra Miriam Alves.

Negras InsUrgências 158 Capulanas Cia de Arte Negra


cidade, eles que me falam delas e me fornecem sementes de suas
memórias. Uma atriz e diretora negra que bem subiu a serra e se
instalou na ilha verde, cidade universitária, nos avisa sobre as artes
negras nas trincheiras da cidade murada:

Quando pensamos no que seria uma estética dentro do Te-


atro Negro, há uma tentativa, que não é muito africana, de
rotulação e de encaixar as coisas dentro de determinadas
fôrmas. Porque nós estamos acostumados com estereóti-
pos que diminuem o ser negro no palco e a ideia é exata-
mente criar essa multiplicidade, uma outra imagem possível.
Não se trata de colocar a tradição no palco para ela ser
apreciada, mas se trata de reelaborar a tradição popular,
as várias manifestações corporais de negros e negras e
também reelaborar a nossa fala, a nossa musicalidade. Pas-
sar pelo nosso corpo, corpo contemporâneo de homem de
hoje, que vive o hoje, que é brasileiro e não africano, por-
tanto, carrega em si uma mistura de várias coisas, de várias
culturas, e passar por esse filtro. Nós, Crespos, trabalha-
mos muito com símbolos do pop, fazemos esse teatro dito
contemporâneo, de mistura de várias linguagens.2

Lucélia Sergio, fundadora do grupo teatral Os Crespos, fala


sobre as armadilhas criadas pelas estereotipias que reduzem as
pessoas negras a determinados conceitos, imagens, lugares, sobre
certas formas de enquadramento redutores. Mas se as artes são
geralmente formas emancipadoras de conhecimento e reflexão
como pregam alguns, por que não reconfigurar as formas estéticas
negras em diálogo com elementos outros? Uma das caraterísticas
dos teatros contemporâneos negros em São Paulo tem sido justa-
mente a diversidade de formas, conteúdos e discursividade, con-
quanto do ponto de vista social e formação técnica seus agentes
não sejam tão dessemelhantes como pensam.
Cazuá, Humbala, Bloco do Beco, cinemas em vielas, estão todos
acapoeirados na beira da represa, na zona sul. Lá pras bandas da
Vila Brasilândia, em uma voz rouca que me toca sempre, eu a ouço
escrevendo como quem bem fala:

2 SERGIO, Lucélia. In: GOMES, Carlos Antonio Moreira & MELLO, Marisabel Lessi de (orgs).
Diálogos teatrais. O fomento compartilha (2013 – 2015). São Paulo: SMC, 2014, p. 28.

Negras InsUrgências 159 Capulanas Cia de Arte Negra


Uma figura que me chamou muito atenção durante a cami-
nhada nos saraus, principalmente o da Brasa, foi de dona
Maria Helena, embaixatriz do samba de São Paulo. Na épo-
ca era componente da velha guarda da escola Rosas de
Ouro e foi uma das pessoas que viu essa escola despontar.
Dona Maria Helena sempre falou com muito fervor do
papel da mulher no samba, da mulher sambista que, como
em toda nossa trajetória, são vários. Ela encorajava mui-
tas mulheres a compor, cantar, dançar e fazer tudo que
nos é de direito. O mundo do samba , assim como todos
os outros campos artísticos, é um campo muito machista.
Ainda hoje observamos muitos homens que não respeitam a
mulher dentro de uma roda de samba, seja tocando, falan-
do, cantando e, principalmente versando um partido-alto.3

Barulho de louça. Ouça. Essas mulheres-meninas negras Capu-


lanas, estão preparando uma festa, há muita comida, também
querem ouvir vozes, vozes ancestrais. Essas vocalidades que nos
chegam distorcidas. Dia desses parei na beira de M’Boy Mirim, o rio
morto, e gritei por um ancestre recente. Ouvi uma voz rouca e fati-
gada quase sumida. Georgete Fadel foi convidada e está pronta es-
perando a chamada. É uma tarde de sol na velha e rebelde zona sul.
Adriana Paixão, uma das atrizes da Cia Capulanas, nos recebe bem
e nos atualiza sobre as linhas perseguidas por ela e suas parceiras:

Nossa história se dá em 2007, depois de uma experiência


muito hostil dentro do espaço acadêmico, quando decidi-
mos protagonizar nossas próprias peças, sair dos lugares
estereotipados, que sempre colocam o negro e a negra no
teatro. Muitas de nós já se conheciam dos movimentos
culturais, mas foi no curso “Comunicação das Artes do
Corpo”, na PUC-SP, que começamos a discutir onde es-
tavam as questões negras dentro da academia, onde estava
a nossa estética. Em um dos questionamentos com um dos
professores ouvimos: “Bom, se vocês querem discutir a
questão negra, vocês têm que trazê-la, porque a academia
não está aberta para isso. Estamos em uma tradição euro-
peia, então, se vocês estão questionando, vocês que têm
que propor.4

3  ALMEIDA, Raquel. In: FAUSTINO, Carmen; FREITAS, Maitê; VAZ, Patricia (orgs). Samba em
primeira pessoa. São Paulo: Pólen, 2018, p. 39.
4  PAIXÃO, Adriana. Idem, p. 30.

Negras InsUrgências 160 Capulanas Cia de Arte Negra


Intencionalidade tem sido uma das formas negras de autoinscri-
ção na paisagem humana global. Podemos chamar de consciência
negra como quis Steve Biko e também avançar para outras defini-
ções contemporâneas. Racionalidade que não prescinde das vivên-
cias, experiências, sensações, emoções e cosmovisões. Valores civi-
lizatórios africanos, refeitos na diáspora e aplicados a um campo de
sensibilidade contemporânea que podemos chamar de teatralidades
negras, denominar dramaturgias negras, categorizar teatros negros.

Decidimos montar um grupo que pudesse ter as nossas


questões e escolhas com a nossa perspectiva. Um grupo que
pensa em dar continuidade ao teatro negro e ao fazer artís-
tico negro. Na faculdade, começamos a discutir o teatro a
partir do Teatro Brasileiro de Comédia e aí o Teatro Expe-
rimental do Negro, que é anterior, e não é sequer mencio-
nado. Temos como estética o tripé – arte, política e religião
– que são elementos simbólicos para a construção da nossa
cena. Quando pensamos em dramaturgia e estética, pensamos
no que constrói a identidade negra diaspórica. Um dos ele-
mentos que utilizamos é o conceito de memória subterrânea,
que diz que existe uma memória que está à margem do siste-
ma dominante e é essa memória que serve como referencial
para a nossa estética. Signos, como os quintais, propostos
no trabalho em que circulávamos por vários quintais de
todas as regiões de São Paulo.5

Essas mulheres negras escolarizadas, em um nível pouco


comum à maioria absoluta das outras de origem pobre e negra,
adotaram essa linguagem como expressão e modo de vida. Circu-
lam pela cidade, pelo país com seus estandartes sonoros, corpóre-
os, textuais e visuais que sintetizam sonhos, quedas e esperanças
de outras tantas anomias. Que caminhos fizeram até chegarem à
universidade? Ao chegar nas instituições educacionais e culturais
de elites, locais pensados como máquinas de fazer brancos, o que
encontraram? Lucélia Sergio abre uma janela para olharmos:

Entramos na escola com o intuito de sermos artistas, cada


um descobre a sua negritude na hora que lhe aperta, ou
nasce com a benção de isso não ser um problema. Mas
a questão é que, quando você não é visto, você não tem

5 Idem.

Negras InsUrgências 161 Capulanas Cia de Arte Negra


condições de se formar. Na EAD, vários alunos negros
não conseguem terminar a escola, simplesmente porque
eles não são vistos ou a formação não é pensada para nós.
Ou você abandona, ou forja a própria educação. Eu, por
exemplo, descobri que eu só poderia fazer a Blanche Du
Bois (personagem da peça Um Bonde Chamado Desejo, de
Tennessee Williams), se eu alisasse meu cabelo. E o cabelo
não era uma questão para nenhuma das minhas colegas
brancas da escola, só era uma questão para o diretor no
meu corpo, então comecei a entender que se eu não forjar
a minha educação, se eu não utilizar aquilo como instru-
mento para a minha criação artística, não vou me formar
artista. Acho que a formação como artista desses grupos
passa pelo entendimento do que é ser artista e do que é a
educação de arte no país.6

Aqui não se trata de reduzir os artistas negros e negras a uma


mera função política, como se devessem suportar o ônus de re-
denção de toda população negra, das profundas desigualdades
às quais tem suportado, ou mesmo de reconfigurar subjetividades
massacradas pelo racismo estrutural e interpessoal. Bem ao con-
trário, trata-se de compreender em que circunstâncias sociopolíti-
cas, pessoas negras evocam suas origens étnicas como referências
para elaborações estéticas e em que medida tais estéticas podem
fazer emergir culturas negras subsumidas pela hegemonia branca.
“Aqui São Paulo, pra mim tá sempre bom”. Há um portal no
parque do Ibirapuera, monumento lindo e bem posto que mostra
anônimos de Brecheret empurrando canoas. São homens-sím-
bolos da identidade paulista, sem-nomes que caminham em fila,
olham para o nada-futuro e sonham o mármore do mausoléu.
Pela quantidade de mamelucos, representam o povo ausente ali.
Estão há muito tempo em pedra; enquanto alguns anônimos reais
parecem fugir assombrados do parque, outros marcham defronte a
mais alta casa de Legislação da província. Estou agora parado na
encosta do morro do Jabaquara, vejo as marcas de homens e mu-
lheres que fugiram das fazendas entre Campinas e Ribeirão Preto,
vieram na linha da Mogiana. Ouço o barulho das nascentes e olhos
d’água que nasciam ali e corriam para o rio Pinheiros. Outra voz me
alerta e tento aproximar o ouvido do chão.

6  Idem, p. 36.

Negras InsUrgências 162 Capulanas Cia de Arte Negra


Talvez um tipo delicado de esperança ativa, uma crença radical
no futuro cunhada em aço e diamante movesse uma pequena
parcela de homens e mulheres negras que, vencendo todas as
novas barreiras erguidas pelo racismo antinegro no Brasil, se esta-
beleceram como professores, pesquisadores acadêmicos e artistas.
E por meio de estratégias ainda pouco compreendidas, se notabili-
zaram em um meio em que operava, e ainda impera, o exclusivismo
racial e o elitismo doentio e suicida, tal como já fora constatado por
Guerreiro Ramos e reafirmado por Lélia Gonzales, aprofundado por
Cida Bento e Lia Vianer Schucman, outras que se ocuparam dos
estudos da psicologia social do racismo.
São pessoas-emblemas, hoje estão ou estariam na faixa
entre 70 e 90 anos; portanto, nascidas da segunda geração pós-
-abolição e quarta geração após o fim oficial do tráfico de seres
humanos de pele escura.
Pessoas de existência épica, mulheres negras como Helena
Teodoro, Josildeth Consorte, Luiza Bairros e homens como Wilson
Barbosa, Milton Santos e Joel Rufino, por exemplo, que, olhados
em conjunto, se constata que fazem parte de um grupo seleto de
pessoas que conseguiram ultrapassar as barreiras sociopolíticas le-
vantadas contra a parcela negra da sociedade e se inscrever, não
sem restrições e conflitos, em espaços de exclusividade dos euro-
descendentes. Mas as criadoras negras estão conectadas com um
universo feminino quase invisível, Lucélia Sergio fala dessa dimen-
são, uma aprendizagem a partir do deslocamento, da atenção aos
lugares quase nunca ocupados, uma reinvenção do espaço social e
criativo totalmente negativo destinado às mulheres negras, mas essa
perspectiva reformada é forjada a partir de dentro da linguagem:

Quando posso me ver no teatro, eu vou: “ah, está falando de


mim, vou ver!”. Isso foi acontecendo, eu vi, eu volto e trago
a minha mãe, eu volto e trago a minha tia, eu volto e trago a
minha vizinha. Eu vou lá e digo: “você tem que ver aquilo!”.
Porque a maioria dessas pessoas nunca viu teatro, porque
o teatro sempre foi algo fora da vida delas, sempre foi algo
que não é ensinado na escola, é tido como uma arquitetura
na qual eu não posso entrar, que eu acho bonito e tal, mas
nem sei direito o que se faz lá dentro. Todo mundo tem
uma ideia do que é teatro, mas ter vivido essa experiência,
nem todas as pessoas tiveram. O que acontece é que essas
pessoas que não têm o teatro como algo que faz parte da

Negras InsUrgências 163 Capulanas Cia de Arte Negra


sua experiência, do seu dia a dia, essas pessoas passaram a
ir ao teatro, porque elas se viram no teatro. E, de repente,
nós tínhamos um público muito diferente do público inicial,
espontâneo, que é um público que sabe que existimos, viu na
internet e vai! Eles vão, porque eles precisam. O teatro exis-
te porque o ser humano precisa ser representado, precisa
discutir essas questões, representamos para tudo na vida. É
uma necessidade do ser humano. É uma necessidade ver-se
também e as pessoas passaram a se contemplar na imagem do
outro, isso é muito bonito de ver e de sentir, que estamos
construindo isso. O grupo tem uma política de formação de
público, é claro que é feito para todos, mas acreditamos que
é preciso insistir na formação de público com as pessoas que
estão apartadas do teatro.7

Ainda pesa certo mistério sobre as minúcias dos caminhos


que utilizaram para alcançarem esse lugar, essa nova posição, nem
sempre confortável e de visibilidade. Mas, de modo geral, ontem e
hoje sabemos que pesou bastante um sistema consolidado de vín-
culos intrafamiliares de gentes negras semiurbanas; em sua maioria
eram descendentes de trabalhadores e trabalhadoras pretas e livres.
Também, parece ter tido peso variado uma escolarização humanis-
ta (ainda que em ambientes hostis) e os estudos de diferentes
áreas das ciências humanas, de onde extraíram ferramentas ana-
líticas e ideias práticas para sua inserção nesses espaços, como já
afirmei, de “natural” exclusividade branca.
Trata-se de um teatro dos sem teatro, como um modelo que
abandona a sala, a caixa preta nobre ou experimental para ir ao
encontro das pessoas não iniciadas. Capulanas foram às margens
das represas da cidade de São Paulo e às margens do mar índico,
Maputo, Moçambique, buscando os rastros de suas africanidades
dispersas além do Atlântico. A dialética estaria no atlântico, elas
atingiram o Pacífico e aportaram na ilha de Moçambique, indo além
do mar que nos liga para fazer pontes, como indicou Beatriz Nasci-
mento, em Ori. Adriana Paixão resume:

No trabalho “Pé no quintal”, percorremos 30 quintais das


periferias e nos deparamos com meninas negras que, no
bate papo após o espetáculo, falavam: “Ah, então eu pos-

7  SERGIO, Lucélia. Idem, p. 37.

Negras InsUrgências 164 Capulanas Cia de Arte Negra


so ser atriz também né, tia?” Em um dos quintais tivemos
a presença da Ana Paula, que até virou uma personagem
do novo espetáculo – “Sangoma”. Uma mulher negra que
estava alcoolizada naquele momento e era visível que ela
era vítima do alcoolismo. A Ana Paula ficou a tarde in-
teira conosco, durante a montagem, cantando os meninos
da equipe, quando começou a peça, ela foi a pessoa mais
sensível até hoje que nos assistiu.Ela ia narrando as cenas
e se colocando em cena. Em uma cena daAdriana, em que
ela fala da questão da arquitetura do corpo, dos filhos
que ela tem que criar, do quadril largo para aguentar
mais crianças, a Ana Paula falava: “não fica triste, ele te
abandonou, mas ele vai voltar”. Quando a Débora fazia o
depoimento dela de infância em que ela tomou um banho
de cândida e colocou sabão em pó no olho pra ficar azul,
a Ana Paula falava assim: “não chora Ana Paula, não fica
triste”.E quando a Débora levantava com um vestido azul
muito bonito e fazia menção de que estava se olhando no
espelho, ela dizia: “nossa, a Ana Paula ficou bonita”. É até
emocionante lembrar, e a trazemos em nosso próximo espe-
táculo, não a Ana Paula como mimese, mas esse imaginário
dessa mulher alcoolizada.8

Muitas das experiências pessoais e coletivas diante do racismo


antinegro são comuns a homens e mulheres. A ojeriza e o distrato
interpessoais são as formas mais recorrentes. Também a introjeção
do recalque e do sentimento de inferioridade cultivado pedagogica-
mente desde a infância. A psicologia social do racismo, um ramo
da pesquisa engajada desenvolvida por pesquisadoras negras já no
trabalho de Virginia Bicudo Veras, nos anos 1940, ajudou a desnu-
dar os mecanismos desse tipo de prejuízo à intersubjetividade; mais
tarde, Cida Bento e outras pesquisadoras negras paulistas desenvol-
veram práticas terapêuticas de reversão e reconstrução internas.
Uma teatralidade negra que subisse à verticalidade do racismo
estrutural e que também descesse às minúcias da intersubjetivi-
dade e conhecesse os processos de adoecimento começou a ser
formulada por Guerreiro Ramos ainda nos anos 1940. Reportado
no jornal Quilombo nos seguintes termos:

8  PAIXÃO, Adriana. Idem, p. 38.

Negras InsUrgências 165 Capulanas Cia de Arte Negra


A técnica social do TEN Grupote-
pode ser chamada de
rapia. Ela Psicodrama, do
encontra similar na técnica do
Sociodrama de J. L. Moreno que dirige dois teatros psi-
coterapêuticos em New York. O TEN não é orientado tru-
culento e agressivamente contra o preconceito de cor. Ao
contrário, proclama, pela palavra de seu criador, não ser
esta tática acertada a ser usada em “nossa” questão racial,
tão diferente da norte-americana. Ele é um campo de pola-
rização psicológica onde o homem encontra oportunidade
de eliminar as suas tensões e recalques.9

É possível perceber a reiteração do modelo social vigente, a


democracia racial. A posição mais radical foi sendo construída ao
longo do século XX. Mas sabemos que os grupos culturais negros,
no correr do século XX em diferentes cidades do país, elaboraram
estratégias diversas de mobilização e desenvolveram inúmeras pe-
dagogias para a aquisição técnica de leitura e escrita, aprendiza-
gens à margem do sistema escolar vigente. Sabemos também que
pessoas como Maria Nascimento e Margarida Trindade, com boa
formação escolar, se colocaram em uma função de educadoras
pesquisadoras, recolhendo repertórios de danças, cantos, poéticas
negras populares e as sistematizando como pedagogias negras, ge-
ralmente aplicadas a adultos, homens e mulheres negras acolhidas
em seus projetos socioartísticos. Há implícita, nesse fazer político,
a ideia de que arte e cultura negras são conteúdos emancipatórios,
se devidamente trabalhados.
Essas pedagogias negras aventadas por Guerreiro Ramos,
Margarida Trindade e Maria Nascimento, parecem ter reverberado
muito além da primeira metade do século XX. Efetivamente não
sabemos mais sobre a prática de grupoterapia de Guerreiro Ramos,
porque seu nome foi colocado como inimigo do Brasil com a de-
cretação do AI- 5,10em fins da década de 1960. Ele se exilou nos
Estados Unidos e nunca mais retornou ao país. Até onde conse-
guimos ir, não foi possível rastrear o destino do seu arquivo intelec-

9 RAMOS, Guerreiro. Uma experiência de grupoterapia. Quilombo. N. 4, p. 7, julho de 1949.


Quilombo: Vida, problemas e aspirações do negro. Edição Fac-similar do jornal dirigido por
Abdias do Nascimento. Rio de Janeiro, números 1 a 10, dezembro de 1948 a julho de 1950. São
Paulo: Fundação de Apoio a Universidade de São Paulo: Editora 34, 2003.
10  AI-5, Ato institucional número 5. Promulgado pelo regime civil militar brasileiro, cassando
à revelia direitos políticos de toda e qualquer pessoa. Decretado em 1968, é considerado o
marco da repressão mais dura daquele período histórico.

Negras InsUrgências 166 Capulanas Cia de Arte Negra


tual constituído no Brasil entre os anos 1940 e 1960. Efetivamen-
te seu nome praticamente desapareceu dos relatos sobre o TEN
pós-ditadura. Ainda assim, temos algumas imagens e dois textos
que fornecem pistas muitos densas sobre os conceitos emprega-
dos e procedimentos práticos estabelecidos por Maria Nascimento,
esposa de Abdias, e Clélia Guerreiro, esposa de Guerreiro Ramos.11
Maria Nascimento, mencionada na epígrafe deste texto, escrevia
regularmente no jornal Quilombo e seus textos são de uma atua-
lidade e coesão textual impressionantes, em uma conjuntura em
que maioria absoluta das mulheres negras eram analfabetas e sem
oportunidades de escolarização.
Os textos de Maria Nascimento, no jornal Quilombo, dirigidos
especificamente às leitoras, tratando de temáticas sensíveis s mu-
lheres negras, às trabalhadoras urbanas, às domésticas, abordam
também cultura e artes negras, de modo que poderiam ser alvo de
uma pesquisa específica sobre a construção de uma mentalidade
feminista negra em fins dos anos 1940. Em sua coluna “Fala a
mulher”, na edição número 4, de julho de 1949, conclamava:

Se nós mulheres negras do Brasil, estamos mesmo preparadas


para usufruir os benefícios da civilização e da cultura, se
quisermos de fato alcançar um padrão de vida compatível com
a dignidade da nossa condição de seres humanos, precisamos
sem mais tardança ingressar na política. Isto é, ingressarmos
nos partidos políticos, influir na elaboração de seus progra-
mas e na escolha dos futuros candidatos a senadores, depu-
tados, vereadores, governadores e Presidente da República.
Precisamos constituir um exército de eleitoras pesando na
balança das urnas, usar ao máximo as franquias democráticas
que nos asseguram votar e ser votadas para qualquer posto
eletivo nas próximas eleições de 3 de outubro.12

Embora sem a visibilidade merecida, desde os anos 1950 até


agora, as mulheres negras ingressaram em espaços nunca pre-
vistos pelos racistas mais moderados. Contudo, são minorias no
congresso, são prejudicadas em condições salariais e em posto de
comando no setor privado e público. Benedita da Silva e Matilde
Ribeiro, as duas primeiras mulheres negras no país a ocuparem

11  NASCIMENTO, Maria, In: RAMOS, Guerreiro. Idem, N. 6, p. 7.


12  Idem, p. 11, fevereiro de 1950.

Negras InsUrgências 167 Capulanas Cia de Arte Negra


cargos em condição de ministras, mais de meio século depois, nos
governos recentes, foram simplesmente abandonadas por seus
partidos e apoiadores quando a mídia as apontou como tendo
condutas inadequadas. Porquanto, ainda que recorra à noção de
democracia racial, a textualidade contundente de Maria Nascimen-
to ainda hoje soa inédita:

A longa luta pela valorização da gente negra em nosso


país não pode dispensar a colaboração entusiasmada da
mulher, a fim de que em breve a igualdade dos níveis mo-
ral, cultural e social entre negros e brancos reflita uma
esplêndida realidade da nossa democracia racial.13

Os rastros da produção intelectual de Maria Nascimento, Mar-


garida Trindade e Clélia Guerreiro Ramos desaparecem junto com
a supressão do jornal Quilombo, após a década de 1950. Que terá
acontecido? Especificamente sobre Maria Nascimento, Shuma
Schumaher e Erico Brasil, num dos poucos trabalhos sobre o tema
publicados recentemente no país, traz a seguinte nota:

No Rio de Janeiro de 1944, entre outros grupos é cria-


do, por Abdias e Maria de Lurdes Vale do Nascimento, o
Teatro Experimental do Negro. Maria Nascimento, além
de fundadora do TEN, foi responsável por diferentes ati-
vidades, no interior da organização. Coordenou o depar-
tamento feminino e gerenciou o jornal Quilombo, onde
possuía sua própria coluna: Fala a Mulher. Além desses
feitos, em 1950, a assistente social funda o Conselho Na-
cional das Mulheres Negras.14

Há uma história pouco enfatizada sobre uma vigorosa intelec-


tualidade negra no Brasil ao longo do século XX, em que as mulhe-
res não são poucas, nem menos importantes, no interior das mirra-
das e aguerridas instituições negras modernas surgidas no Brasil a
partir dos anos 1930. Todas essas instituições foram frontalmente
atingidas pelas ditaduras civis e militares. Daí a intermitência das
experiências e fragmentação das memórias. Mais algumas pistas:

13 Ibdem.
14  SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Erico Vital. Mulheres negras no Brasil. Rio de Janeiro:
Senac Nacional/Rede de Desenvolvimento Humano, 2006, p. 299.

Negras InsUrgências 168 Capulanas Cia de Arte Negra


Configurando-se como um dos braços do TEN, este orga-
nismo focalizava as questões relacionadas ao feminino e à
infância. Sua estrutura contava com um departamento jurí-
dico voltado para o preenchimento dos requisitos básicos
de cidadania para a população negra tais como a obtenção
da certidão de nascimento e carteiras de trabalho além da
prestação de serviços jurídicos. Nas diversas peças encena-
das pelo grupo, a presença feminina era engrandecida pelas
impecáveis atuações de Arinda Serafim, Marina Gonçalves e
Ruth de Souza, que também sobressaíam como expressivas
lideranças políticas da organização. Em 1946, as três par-
ticipam da criação da Associação das Empregadas Domésti-
cas e, em 1950, Elza de Souza e Arinda Serafim estiveram à
frente da nova diretoria desta associação. Mais tarde, Léa
Garcia, Ilena Teixeira, Marietta Campos Damas deram conti-
nuidade ao protagonismo feminino do Teatro Experimental.15

A constante luta pela memória e, ao mesmo tempo, o fenôme-


no da desmemória imposta, uma história-mosaico de vestígios e
fragmentos. Imposição também das desigualdades renitentes, que
impedem a construção de instituições capazes de acondicionar e
perpetuar práticas, lutas e construções técnicas e abstratas reali-
zadas por pessoas negras. Daí a sensação constante daquilo que
apagamento e desprezo refluem, aparente anomia, inexistência ou
ausência. Ainda sobre as mulheres negras, Sueli Carneiro aponta:
Somos testemunhas, sobreviventes dessa história em que
uma raça e um sexo condenados compõem uma unidade que
aprisiona o corpo feminino negro deslocando-o para o do-
mínio do não ser. Antítese do ser hegemônico, os homens
brancos; antítese do ideal feminino, as mulheres brancas.
(...) Livres, as suas saias rodadas, as cores vistosas, os pa-
nos da costa, os torsos coloridos começam a esmaecer. Os
tons vão se acinzentando como a existência diante da evi-
dência de que a conquista da liberdade e da igualdade pode
ser sempre frustrada pela ação implacável do racismo e da
discriminação. Mas lá como cá, hoje como ontem, a subor-
dinação imposta como destino é subvertida e lá vêm elas:
são professoras, escritoras, deputadas, pintoras, doutoras,
atletas, maestrinas, compositoras, ativistas, militantes desa-
fiando os persistentes processos de exclusão.16

15 Idem.
16  CARNEIRO, Sueli. Apresentação. In: SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Erico Vital. Idem, p. 12.

Negras InsUrgências 169 Capulanas Cia de Arte Negra


O racismo é um estado permanente de tensão para afro-brasi-
leiros e indígenas, independemente da sua condição social. A re-
pressão policial é apenas um dado de uma realidade mais dura que
circunscreve diferentes formas de discriminação. Contudo, quanto
mais autoritário é um governo, mais a violência e o racismo combi-
nados atingem homens e mulheres, crianças, mas principalmente
os jovens adultos do sexo masculino. Não é do meu conhecimento
que tenhamos uma pesquisa específica e abrangente sobre negritu-
de e ditadura, para tratar e saber quantos ativistas negros e negras
foram atingidas pela repressão do período 1964-1985, mas no meio
politizado, vez por outra, ouvimos notícias de artistas presos, inte-
lectuais cujas carreiras promissoras foram interrompidas com envio
arbitrário ao exílio, eventos tratando mesmo de sequestro e morte.
Muitos daqueles e daquelas viveram longamente no exílio;
outros morreram, mas aqueles remanescentes que retornaram
com a “abertura” puderam fomentar o surgimento de um novo
contorno da questão racial no Brasil, a partir de meados dos anos
1980, após o fim do terceiro regime ditatorial assumido. É impor-
tante notar, no entanto, que não foram poucos os jovens pesqui-
sadores e pesquisadoras negras de carreiras promissoras, surgidas
nos anos 1970, que desapareceram de forma trágica, impactante
e violenta, a saber: Eduardo de Oliveira e Oliveira, Lélia Gonzales,
Hamilton Pereira, entre outros.
Agora parece que o racismo antinegro já não nos pode impedir
de visualizar práticas políticas e criações artístico-culturais que
estiveram imiscuídas no processo de inserção negra nas bordas
da modernidade. Publicações recentes nos chamam atenção para
pontos pouco explorados na nossa trajetória coletiva no século XX:
Mercedes Batista, Araci de Almeida, Elizete Cardoso, podem figurar
ao lado de Sonia Terra, Sara Rute Barbosa, Sonia Leite, ou ainda
Creuza Maria de Oliveira, ex-presidente da Confederação Nacional
das Trabalhadoras Domésticas, “uma das 52 brasileiras indicadas
ao Prêmio Nobel da Paz.17
O teatro e dramaturgia negra contemporânea realizados por
tais grupos, especialmente aqueles já citados, fazem da pesquisa
histórica e antropológica um dos principais aportes da criação es-
tética. Ainda é cedo para dizer se o impacto dessa postura ajuda
ou não a incorporar novas e mais complexas texturas em termos
de imagéticas e imaginários e em que medida alteram a cena mais

17  SCHUMAHER, Schuma & BRAZIL, Erico Vital. Idem, p. 359.

Negras InsUrgências 170 Capulanas Cia de Arte Negra


global da linguagem. Contudo, há uma identificável consciência e
consistência nos trabalhos apresentados que, em certa medida,
revelam um grau de relativa acomodação e monotonia criativa das
instituições culturais ligadas a essa linguagem. Podemos mesmo
falar de atitudes reativas e até mesmo hostis por parte de grupos e
representantes institucionais. Ancestralidade, seja como memória,
história e valores civilizatórios, seja como referências filosófico-re-
ligiosas, demarca alguns dos princípios que regem determinados
trabalhos. Adriana Paixão aponta que:

Quando pensamos em dramaturgia e estética, pensamos no


que constrói a identidade negra diaspórica. Um dos ele-
mentos que utilizamos é o conceito de memória subterrâ-
nea, que diz que existe uma memória que está à margem do
sistema dominante e é essa memória que serve como refe-
rencial para a nossa estética. Signos, como os quintais,
propostos no trabalho em que circulávamos por vários
quintais de todas as regiões de São Paulo. O quintal faz
parte de uma tradição negra diaspórica, é o lugar de en-
contro e troca de cultura. Os elementos religiosos apare-
cem não dentro de sua noção sagrada, mas na construção
de identidade. A parte política está presente, como Augusto
Boal dizia, “perguntar se o Teatro é político é perguntar se
o homem é humano”. A forma de lidar com esse tripé é que
constitui nossa poética.18

Não parece haver aqui apenas um recurso retórico. A descon-


tinuidade das elaborações criativas negras e provisoriedade têm
sido uma imposição das próprias condições mais gerais de vida
daqueles e daquelas que num primeiro momento deviam acatar
a provisoriedade de suas próprias existências, que na condição de
pessoas sequestradas e enviadas para um mundo novo e hostil
tinham por contingência defender primeiramente sua integridade
física e depois sua sensibilidade e capacidade de sobreviver. Efrain
Tomas Bó, um dos membros do Teatro Experimental do Negro, re-
fletia a partir de ideias de Abdias do Nascimento sobre a condição
criativa dos atores e atrizes negras e aventava uma conceituação
do teatro negro nos seguintes termos:

O Teatro do Negro é um teatro de atores que conjuga em


seu movimento todo o complexo mecanismo do espetáculo

18  PAIXÃO, Adriana. Idem, p. 34.

Negras InsUrgências 171 Capulanas Cia de Arte Negra


dramático, da transformação emocional e misteriosa que
sofre o verbo em cena, quando é acentuado pela mímica
do gesticulador. (...) Convém um rigoroso deslinde do
sentido do negro em cena, do uso de uma profunda subje-
tividade, do desenvolvimento de sua singular possibilidade
histriônica e da apresentação de valores íntimos de arte
dramática.19

Os colaboradores do jornal Quilombo foram muitos, Ironides


Rodrigues, por exemplo, traduziu textos da revista Presence Afri-
caine, textos de Sartre e Albert Camus e apresentou análises de
poetas negros oitocentistas como Cruz e Souza e Castro Alves.
Nesses casos, homens e mulheres negras partiram de posições
muito distintas no interior do mundo escravista e essas condições
se perpetuaram no tempo após a abolição. Interpretar essas condi-
ções distintas à luz da inventividade dramatúrgica e teatral é, então,
um desafio dessas criadoras. Adriana Paixão localiza a experiência
da Cia Capulanas:

Quando resolvemos montar a Cia., uma das escolhas fun-


dantes era a questão da mulher, a mulher negra coisificada
como objeto sexual, não que o homem negro também não
esteja nesse lugar, mas era uma Cia. inicialmente formada
por mulheres.Fizemos uma escolha também pelas periferias,
como lugar de residir, de construir e de trocar. Queremos
desconstruir a ideia de que o teatro só é possível nos
centros urbanos, só é possível nos teatros instituciona-
lizados. Escolhemos falar de uma arte negra, escolhemos
atualizar esse teatro negro, partindo dos referenciais que
temos – Abdias, Solano – e das construções que foram
diárias.
Da memória subterrânea utilizamos todos os ele-
mentos que podemos pensar, na circularidade, na relação
do contato com o público, na quebra do distanciamento,
na possibilidade de enxergar que o quintal pode ser um
espaço teatral, porque ele já é real e permite essa troca,
comungando de um pensamento que já existe dentro da
cultura negra.20

19  BÓ, Efrain Tomas. O ator negro. In. Quilombo. P 7, n. 2, maio de 1949. Quilombo: Vida, proble-
mas e aspirações do negro. Edição Fac-similar do Jornal dirigido por Abdias do Nascimento.
Rio de Janeiro, números 1 a 10, dezembro de 1948 a julho de 1950. São Paulo: Fundação de
Apoio à Universidade de São Paulo: Editora 34, 2003, p 33.
20  PAIXÃO, Adriana. Idem, p. 30.

Negras InsUrgências 172 Capulanas Cia de Arte Negra


Não há nenhuma sugestão de que tenha existido alguma con-
tradição ou tensão no fato de o ponto de saída ter sido hipóteses
formuladas a partir das obras e caminhos apontados por Solano
Trindade e Abdias do Nascimento. Contudo, tais referências olhadas
do presente, no qual uma perspectiva feminina mais engajada tor-
nou-se radicalmente crítica em relação ao que se pode designar
como cultura masculina, uma pergunta se instalou no ambiente
reflexivo. Por que as figuras femininas parceiras de Solano e Abdias
não receberam o mesmo tratamento em termos de perpetuação de
suas memórias? No caso de Maria Nascimento, primeira esposa de
Abdias, ela que e foi a impulsionadora das primeiras ações de poli-
tização das trabalhadoras domésticas no país e também responsá-
vel por projetos de alfabetização e organização da parte educativa
do Teatro Experimental.
O grupo organizado por Abdias e Maria Nascimento, Guerrei-
ro Ramos e sua companheira Cléia Guerreiro, se tomarmos como
fonte as matérias publicadas nas páginas do jornal Quilombo, re-
alizou importante mobilização sociocultural e artística no Rio de
Janeiro e, de certa maneira, em todo o país no decorrer da década
de 1940. Praticamente todos os temas referentes à população de
origem africana no Brasil e na diáspora foram tratados de forma
direta ou indireta nos textos e ações reportadas nas pouco mais de
cem páginas publicadas em São Paulo, em fac-símile, nas edições
de 2003 e 2011. A desenvoltura do grupo foi acrescida de ativistas
como Haroldo Costa, Ironides Rodrigues, colaboradores pontuais
como D’Almeida Vitor, Edison Carneiro, Péricles Leal, João Concei-
ção, Raquel de Queiroz e Solano Trindade.
A cultura é também zona de luta e conflito dependendo de
onde se olha. Nessa luta, como temos construído alianças? Diante
do racismo antinegro, que alianças são possíveis? Um criativo dra-
maturgo negro, atônito ao descobrir o próprio inverno, tem feito
essas perguntas muito pertinentes. É possível que, na busca para
dar visibilidade às práticas culturais negras, outras tantas criativas
expressões de origem africana no Brasil e na diáspora tenham sido
apagadas; que figuras femininas negras tenham sido colocadas na
sombra ou em estado de opacidade, ou até voluntariamente apa-
gadas mesmo, para se poder visualizar um tipo de heroísmo mas-
culino e masculinizante típico e histórico.
Essas microfissuras, tensões internas, dissensões e especifi-
cidades muitas vezes são vistas equivocamente como fragmenta-

Negras InsUrgências 173 Capulanas Cia de Arte Negra


ção da agenda de luta dos oprimidos em geral. Mas talvez nunca
tenha havido esse “oprimido em geral”. Eric Hobsbawm, num ca-
pítulo do importante livro de história geral ocidental chamado A
era dos impérios, tece considerações muito pertinentes à busca
de unidade internacional entre setores do ativismo proletário
europeu da segunda metade do século XIX, e os impeditivos ad-
vindos das singularidades das identidades nos interiores dessa
mesma classe, por gênero, religião, língua, tipo de atividade e prin-
cipalmente nação. “Trabalhadores do mundo, uni-vos.” Era uma
espécie de grito bem intencionado emitido na Europa Ocidental,
num deserto habitado, enquanto muitos dos tais “trabalhadores
do mundo” eram, sobretudo, negros e negras escravizadas em
Cuba, Jamaica, EUA, Brasil, ou semiescravizados em todas as co-
lônias europeias na África, Ásia e Oceania.
De outra forma, pode ser aquele lugar de encontro entre os
“diferentes” que nunca tenha efetivamente existido. A cultura é,
muitas vezes, concebida como local do cortejo monótono dos
nomes e lugares, ideias e valores. Esse é um tempo estranho, como
se fosse um compasso de espera em que não vale mais aquilo que
foi; também não sabemos o que será. Um tempo de suspensão,
de esvaziamento das utopias e das boas e más orientações ideo-
lógicas. Um tempo de aguardar pelo nada, quando “o futuro não é
mais como era antigamente”.
Já há alguns anos venho utilizando o conceito de modernidade
reacionária de Jefrey Herf21 para caracterizar o pensamento e com-
portamento social e político de setores específicos da sociedade
paulista, sobretudo, lideranças intelectuais insuladas nas institui-
ções acadêmicas e culturais, públicas e privadas. A voz de Milton
Santos foi e há de ficar tão mais forte, na medida em que ecoe em
nós, nessa percepção cada dia mais bem contornada dos compor-
tamentos da alta classe média e da elite branca paulista e brasi-
leira. No futuro, para manter o ambiente relativamente fechado no
qual se reproduziu até agora, deverão ser capazes de criar outros e
novos mecanismos de silenciamento.
Então, nos dias correntes estamos tratando de cuidar e dar
brilho de atualidade à memória desses precursores Dandáricos
e Zumbílicos. Entendemos o quanto isso é imprescindível para a
formação de uma nova consciência social, numa sociedade total-

21 HERF, Jefrey. O modernismo reacionário. Tecnologia, cultura e política da república de


Weimar e no III Reich. São Paulo: Ensaio, 1993.

Negras InsUrgências 174 Capulanas Cia de Arte Negra


mente fracionada por experiências misóginas e racistas, violentas e
autoritárias de longa duração e profundidade. Milton Santos citado
na epígrafe deste texto tem essa finalidade.
Milton Santos (1926-2001) ingressou na Universidade de São
Paulo, em 1984, depois de ter ocupado importantes cargos na ad-
ministração pública e construído sólida carreira internacional como
pesquisador e professor universitário. Figura singular do cosmopo-
litismo afroperiférico esteve à frente da introdução de cursos uni-
versitários de geografia no continente africano, durante o processo
de emancipação das sociedades africanas ante o domínio colonial
europeu. Contudo, ao retornar ao Brasil teve grande dificuldade de
se reinserir no meio universitário.
Entretanto, uma leitura superficial de sua produção poderia nos
levar a supor enganosamente que a questão racial e cultural negra
não fizesse parte do seu projeto intelectual e nem constasse como
tema importante na sua experiência pessoal. Ao que parece aos
olhos das gerações anteriores, havia a nítida consciência de que a
denúncia do racismo ou cairia no vazio, ou poderia tornar o denun-
ciante-litigante alvo constante de retaliações. Os depoimentos em
off dessa prática não são incomuns. Quero aproveitar essa ocasião
justamente para trazer à tona a criticidade de Milton Santos em
relação à elite cultural e intelectual paulista.
Hoje e ontem vidas de descarte, almas jogadas no lixo. Milton
Santos nos alertou sobre a exclusão da modernidade reacionária
brasileira, sem dizê-lo nos mesmos termos que nós:

A pobreza não pode aceitar a modernidade. Ela não tem


meio para ser moderna, não tem o mínimo de alfabetiza-
ção para ser totalmente moderna, não tem regularidade
no emprego que cria conforto, que facilita a acomoda-
ção. As regiões pobres da cidade são lentas. Como classe
média nós somos proibidos de imaginar e pensamos em
reproduzir o presente para ter sempre mais conforto, en-
quanto os pobres já descobriram que não vão ter nada. A
partir disso eles têm uma nova relação com a cidade, que
não só a da violência, há outros aspectos do cotidiano,
na direção da solidariedade, que não são suficientemente
estudados, mas existem.22

22  SANTOS, Milton. Encontros. São Paulo: Azougue, 2007, p. 97.

Negras InsUrgências 175 Capulanas Cia de Arte Negra


No bojo do movimento cultural atual da cidade de São Paulo
e nas cidades dos arredores emergiram nos últimos quinze anos
vários protagonistas: saraus, coletivos, projetos e grupos fomenta-
dos ou não por recursos públicos. São editais estaduais, federais
e municipais de cultura. Esse fenômeno vem sendo abordado por
vários vieses, histórico, sociológico, antropológico, linguístico e até
mercadológico. Descobriu-se que os pobres e periféricos produzem
e consomem, inclusive, cultura e artes. Desde a década de 1940 o
ativismo negro na cidade de São Paulo tem entrado no radar dos
pesquisadores acadêmicos.
Um intelectual de origem pobre, Florestan Fernandes, lamentou
em vida a incapacidade da nossa burguesia bugre tida e havida
como branca de fazer a revolução daquela classe aqui, no Brasil.
Parece ter acreditado em demasia na autoproclamada capacida-
de revolucionária de tal classe, ou talvez lhe tenha faltado ajustar
o foco da lente sociológica para ver melhor as peculiaridades do
Brasil. A parte nobre da cidade alimenta doses homeopáticas de
desprezo e medo daquela gente negra, pobre e bege. Porque teme
espíritos esquálidos, leva os incautos a confundir os noias com
outros sem-teto. Ontem e hoje a decadência e opulência da topo-
grafia, discurso arquitetônico do apóstolo Sancto Paolo de Pirati-
ninga, não me engana, opressão e catequese milenar dos nativos.
Hoje é nas artes e vidas do limbo, onde pousa pouca lu-
minosidade, que medram utopias em corpos, vozes, textos,
imagens, sons e modos de vida. Num olhar desatento, os que
criam e alimentam tais artes livres podem parecer jovens mães,
belas meninas brancas médias, garotos mestiços atônitos ante
aos conceitos identitários estilhaçados. Suas famílias operárias
podem ter perdido status em função do desemprego estrutural
dos anos 1990. Greves e política operária, automação e (des)in-
dústria em uma sociedade que nem chegou a conhecer o pleno
emprego e o bônus do capitalismo industrial.
As fontes documentais desses processos e dinâmicas cultu-
rais têm seus suportes nos acervos institucionais: fanzines, anais,
fotos, cartazes, folderes, estudos e relatórios. Há também coleções
particulares de discos de vinil e CDs, revistas, fotografias impres-
sas e digitais, fitas de áudio k7 e filmes em 8”mm, Vhs, Mini-Dv,
etc. Acredito que a produção coletiva da memória desses agentes
há de ser recuperada, por meio de entrevistas e depoimentos em
áudio e vídeo por fotógrafos, memorialistas, videomakers, músicos,

Negras InsUrgências 176 Capulanas Cia de Arte Negra


professores, literatos, educadores sociais, atores, gestores de insti-
tuições e projetos culturais, etc.
Grosso modo, há duas projeções imagéticas sobre a cidade de
São Paulo. Uma narra a vitória do capital, a pujança econômica, a
vida política e as atividades de cultura, arte e entretenimento de-
vidamente catalogadas. Seus marcos geográficos e arquitetônicos
são: na Avenida Paulista, o prédio do MASP (Museu de Arte de São
Paulo) e, por vezes, o centenário Teatro Municipal. Outro discurso
apreende e veicula o caos e a violência das “periferias”, lugares sem
nome, com massas esquálidas, gente bravia, sem rosto e inculta.
Mas é preciso refinar a lente. A região sul da capital paulista foi
considerada uma das mais industrializadas do estado e também
o palco tanto de lutas sindicais, como dos movimentos sociais,
alguns dos quais ligados às Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs). O bairro de Santo Amaro, onde se concentrava um amplo
parque industrial até a década de 1990, era o centro comercial e
político de um vasto território, que se estendia até os limites das
cidades de Itapecerica da Serra, Taboão da Serra, Embu das Artes e
os bairros de Pinheiros e Butantã a Oeste.
Durante as décadas de 1970/1980 sua área administrativa com-
preendia também os bairros de Parelheiros, Colônia, Cipó e parte
da atual cidade de Embu-Guaçu, todos circunscritos no perímetro
atingido pela legislação de proteção de mananciais. Também na
zona sul, a região de Interlagos é uma estreita, mas vasta faixa
de terra entre dois lagos artificiais. A represa Billings é localizada
desde o bairro do Grajaú até o limiar de São Bernardo do Campo e
a Serra do Mar. A represa de Guarapiranga, por sua vez, é menor e
abastece de água a cidade. Suas margens são total e densamente
ocupadas, gerando todo tipo de problema ecológico e habitacional.
A percepção dos lugares pobres tidos como espaços vazios ou
de ausência vem sendo gradualmente modificada. A ideia tradicio-
nal de centro e periferia, por sua vez, não é capaz de elucidar este
complexo texto topográfico. Mas o termo periferia aparece recor-
rentemente na linguagem dos produtores culturais, como forma de
denúncia e demarcação de um território singular; manifesta uma
visão de mundo e define um pertencimento, podemos usar o termo
alteridade. Essa percepção tem ressonâncias na sensibilidade do
pesquisador contemporâneo. A construção da periferia como lugar
de experiência e alteridade social e cultural. Isso devemos à cultura
hip hop e a música rap, principalmente ao grupo musical paulista-
no Racionais Mc’s.

Negras InsUrgências 177 Capulanas Cia de Arte Negra


Os monumentos públicos que celebram esta história/memória
santamarense são a estátua do Borba Gato, na avenida Santo
Amaro, e o totem construído defronte ao Mercado Velho, prédio
do século XIX, onde acontece o Samba da Vela. Por sua posição
na entrada de Santo Amaro, a estátua do bandeirante Borba Gato,
construída nos anos 1960, funciona simbolicamente como um
aviso de limite aos bárbaros e silvícolas. Parece ser a guardiã dos
antigos sertões de Santo Amaro, mas no fundo vela o burgo dos
estudantes do largo São Francisco.
A roça na verdade começava numa favela que ocupava toda
várzea do Itaim Bibi. No futuro, todos justos hão de saber que ali,
onde passou uma grande avenida, era em geral moradia de frágil
gente pobre, preta ou nordestina. Centenas de milhares de corpos-
-vida-corpos arrastados pela correnteza do capitalismo escravagis-
ta. Foram morar bem mais longe, nas beiras das represas.
Não obstante, os conflitos sociais e lutas políticas deixaram na
cidade, aqui e acolá seus fragmentos e suas marcas: um parque
chamado Santo Dias, um bairro de ocupação denominado Palma-
res, outro bairro de mutirão conhecido por Chica da Silva, nome de
uma líder comunitária morta em meados de 1980. Recentemente
um grupo de jovens de um experimento teatral sediados na Fábrica
de Cultura de Capão Redondo exortou a memória daquele líder
sindical morto pela polícia política da ditadura. Frágil e fragmentária
lembrança da luta, mas de vez em quando emerge, sobe e se torna
estandarte-tangível.
A urbanização acelerada e não terminada parece que fraturou
essa experiência semirural de nordestinos e beiradeiros sertanejos.
Mas o drama agora é o da desindustrialização, que sabemos inseri-
da em um processo mais amplo do novo capitalismo global.
A violência e estigmas derivados desse contexto convivem com
uma intensa produção cultural e envolvem diferentes segmentos
sociais e paisagens nessa geografia humana e urbana complexa.
A produção cultural urbana, nomeada e autonomeada periférica,
apenas raramente figura nas prioridades e preocupações de ges-
tores públicos. Na década de 1990 passou a constar nos temas
abordados por pesquisadores acadêmicos.
Saraus e coletivos são nomes genéricos para um conjunto
variado de práticas culturais recentes, que eclodiram e se consoli-
daram na região. No seu bojo há produção literária, teatral, musical
e cinematográfica, assim como artes visuais, performances, danças

Negras InsUrgências 178 Capulanas Cia de Arte Negra


e várias outras linguagens híbridas. Diferenciam-se das experiên-
cias anteriores tanto por um apelo à produção coletiva, como pela
elaboração e apropriação de novas tecnologias culturais para em-
preendê-las.
O sarau mais conhecido na região é o Cooperifa, Cooperativa
dos Artistas da Periferia, coordenado pelo poeta Sergio Vaz e uma
equipe de escritores, atores e rappers. Tem uma ação constante
desde 2001, traduzida em publicações e eventos realizados em di-
versas regiões, mas sua principal atividade acontece nas noites de
quarta-feira no Bar do Zé-Batidão. Este bar situa-se no bairro de
Piraporinha, próximo ao parque Guarapiranga, na região de M’Boy
Mirim. Os encontros pautados no cotidiano da cidade são regados
por poesia e prosa, em meio à projeção de filmes e performances
de rap e teatro.
Além do Sarau da Cooperifa, há também o Sarau da Vila
Fundão, na região de Capão Redondo; Sarau do Binho, na região do
Taboão da Serra; Sarau do Ademar, na região de Cidade Ademar, e
outros coletivos culturais que atribuem esse mesmo nome às suas
ações, práticas e iniciativas.
A partir desses exemplos, é possível pensar produção, circula-
ção e acesso aos bens culturais como um aspecto sociopolítico,
enquanto capital não tradicional, mas imprescindível na qualidade
de vida da população de um certo território?
Já é possível apontar sumariamente algumas mudanças ad-
vindas da maior democratização dos recursos financeiros advin-
dos dos fundos de Cultura Estadual e Municipal. Alguns grupos
recebem aportes financeiros esporádicos e outros mais constantes
advindos de leis de fomento cultural. Por meio de recursos finan-
ceiros públicos, oriundos de editais estaduais, federais e munici-
pais, produtores culturais experimentam pela primeira vez as pos-
sibilidades da profissionalização, a segurança da continuidade e o
desafio da sustentabilidade de seus projetos.
Da mesma forma, movimento designado hip hop e a “cultura
de rua”, identificada assim por seus protagonistas, como também a
trajetória e longevidade do grupo Racionais MCs nos permitem en-
trever uma série de práticas culturais e realidades sociais, que vêm
sendo analisadas por pesquisadores de diversas áreas do conheci-
mento. Entretenimento e lazer, sociabilidade e negritude, consumo e
exclusão social, identidade étnica e marginalização urbana, estes são
apenas alguns repertórios entre tantos suscitados, pela entrada em
cena de “novíssimos personagens”, lembrando Emir Sader (1988).

Negras InsUrgências 179 Capulanas Cia de Arte Negra


Outros coletivos se fazem presentes nessa cena, a saber: Ci-
nebecos, Bloco do Beco, grupo Umoja, Companhia de Teatro A
Brava, Coletivo Aruanda Mundi, Associação Cultural de Capoeira
Corrente Libertadora, Balé Afro Koteban, Editora Toró, Companhia
Max Design, Z’África Brasil, Círculo Palmarino, etc.
Um dos principais fenômenos que afligem esses grupos cultu-
rais é intermitência da produção, que pode ser motivada por vários
fatores, mas o principal é a carência de recursos financeiros. Justa-
mente por esse motivo nosso olhar recai aqui principalmente sobre
grupos que recebem fomento de editais de cultura. A longevidade,
por exemplo, da Capulanas Cia de Arte Negras demonstra uma
primorosa otimização dos recursos, que refletem tanto na melhoria
do padrão de vida e formação dos produtores, como na qualidade
e duração do trabalho cultural.
Os protagonistas pertencem ao território em que atuam e nor-
malmente frisam isso no conteúdo dos seus trabalhos e interven-
ções. Vários deles aparecem muito além dessa circunscrição e geo-
grafia, revelando outros espaços de circulação e trocas. Embora no
mesmo espaço administrativo urbano, muitos pertencem a diferen-
tes gerações e na maioria dos casos não têm contato entre si, daí
a realização dos eventos para reuni-los juntamente com pesquisa-
dores ligados às temáticas a serem discutidas.
É possível pensar a economia da cultura como um campo de
pesquisa das ciências sociais, um espaço de interpretação aberto
à história, sociologia, antropologia, semiologia, economia, relações
internacionais, geografia, comunicação, etc?
Trabalhos pioneiros sobre a cultura hip hop e a musicalidade
do rap elaborados em diferentes centros de pesquisa e prismas
diferenciados surgiram ainda, na década de 1990, são: ensaios, mo-
nografias, dissertações e teses. Àquelas pesquisas de Elaine Nunes
Andrade (1996, 1999), Amailton Magno Azevedo (1998, 1999), José
Carlos Gomes da Silva (1998, 1999), “Salloma” Salomão Jovino
Silva (1997, 1999) e Ione da Silva Jovino (1999), se seguiram várias
outras abordagens, que trouxeram a cultura hip hop para o centro
da cena acadêmica.
Estamos reafirmando que há em São Paulo uma descontí-
nua Cultura Popular Negra de caráter cosmopolita, que tem sido
constantemente negligenciada por pesquisadores intérpretes da
cultura. Essas culturas negras populares ressoam efetivamente nos
quadros das identidades periféricas contemporâneas, expressas

Negras InsUrgências 180 Capulanas Cia de Arte Negra


em vários suportes estéticos, que podemos denominar música, li-
teratura, dança, cinema, teatro e outras linguagens híbridas.
Essas culturas negras populares urbanas paulistanas estão
conectadas em vários níveis e por diversificados canais com as
dinâmicas que Paul Gilroy designou Atlântico Negro. Porém, seu
veículo principal não é prioritariamente a cultura letrada e anglofô-
nica, com as quais lidou o grande pesquisador anglo-caribenho. No
desenvolvimento dessas práticas há muitos aspectos surgidos da
escravidão racial, das desigualdades sociais e do racismo antine-
gro, mas há também leituras e interpretações de materiais, valores
e ideias dos movimentos culturais e políticos negros no Caribe,
EUA, África, Europa e outros pontos do próprio país.
Um giro de olhar sobre práticas culturais afro-brasileiras na pe-
riferia da grande São Paulo: quintais, praças, ruas, becos, botecos,
vielas, moradas são os locais onde as pessoas se reúnem para
cantar, ver e recriar cinema e teatro, dançar e celebrar a vida. Des-
construir percepções cristalizadas é ofício de alguém que, por
vezes, se vê também relegado à invisibilidade.
Há “outras” cidades, submersas sob discursos imagéticos e tex-
tuais oficiais da “São Paulo dos Mil Povos”, que podem ser flagra-
das em fragmentos periféricos produzidos nos últimos trinta anos.
Essas imagens têm um sentido de urgência e, ao mesmo tempo, de
emergência, primeiro porque propõem uma contracultura urbano-
periférica, segundo porque surgem das regiões mais empobrecidas
da metrópole e desestabilizam suas instituições culturais, ou ao
menos seus conceitos basilares mais elitistas.
Hoje, quase entrando na terceira década dos anos 2000,
poetas que frequentam as sessões de reconstrução de vínculos
e autoestima realizadas pela Cooperifa, Sarau do Binho, Sarau do
Grajaú, Sarau da Ponte Pra Cá, e tantos outros, também evocam
uma memória quilombola. Erguem novos signos identitários, como
aqueles do nego Jansem em seu inaugural Quilombo Imaginário de
Santo Amaro, nos anos iniciais da década de 1980.
Outras memórias e histórias negras vão se configurando, na
medida em que prospectamos novos e velhos materiais, ideias,
canções, poemas, imagens e textos. Montamos cenários de pos-
sibilidades interpretativas, como quebra-cabeças de tempos, geo-
grafias e figuras humanas. Vai se confirmando que, para o ativismo
negro brasileiro e paulistano, as artes engajadas têm sido funda-
mentais, na construção de jogos de contraste e alteridades. Sim,

Negras InsUrgências 181 Capulanas Cia de Arte Negra


transportando o contexto por analogia, estamos próximos de fazer
algo que, na terminologia de Stuart Hall (2006), é designado “des-
locamento das disposições do poder” para instauração de outras
relações, mas nem por isso, mais equilibrada. Ainda.
Conflagrar possibilidades de uso e inovação das linguagens ar-
tísticas ocidentais, combinadas com códigos e signos de origem
africana ou afrodiaspóricas, criteriosamente escolhidas tem sido
um método recorrente e eficaz como estratégias, tecnologias ou
veículos. São Barcos Negros na Kalunga Infinda. Isso nos coloca
em compasso com uma espécie de cosmopolitismo negro, que
possibilita elaboração de versões, contranarrativas, ou “narrativas
dissidentes da modernidade” brasileira, que tem combinado tanto
mudança social e tecnológica constante com manutenção e tradi-
cionalismo político e cultural.
Stuart Hall,23 historiador jamaicano fixado em Londres, caracte-
rizava a modernidade como sociedade da mudança, enquanto nos
passava a impressão de que não haveria mudança nas sociedades
tradicionais. Em uma sociedade que foi predominantemente rural
como a brasileira, onde termina a experiência tradicional e começa
a modernidade? Nesse caso, a analogia da modernidade como
mudança rápida e constante, pode ser considerada uma forma
de autoelogio do ocidente a si mesmo. Aliás, como já apontamos
antes na obra de dois ou mais filósofos alemães do século XIX.
Como poderíamos pensar em mudança rápida, se temos consci-
ência de 400 anos de duração do tráfico negreiro e ao menos 250
anos de racismo científico antinegro?
Em contrapartida à história estarrecedora da acumulação primi-
tiva no Brasil e talvez na diáspora negra, proponho interpretar como
nascente o desenvolvimento das modernidades negras, os resídu-
os e fragmentos de culturas africanas originárias, combinadas com
elementos, saberes, tecnologias e símbolos advindos de escolhas
éticas, estéticas e políticas disponibilizadas na expansão do oci-
dente, chamando criticamente de modernidade tal alargamento do
mundo sob determinações coloniais e imperialistas. São protago-
nismos e empreendimentos culturais de sujeitos e coletividades
negras no fazer-se da sociedade contemporânea tornados opacos
ou nulos pelo eurocentrismo teoricamente inofensivo. Talvez vários
sociólogos contemporâneos tenham confundido subalternidade

23  HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tadeu Tomas da Silva,
Guaracira Lopes Louro. 10 ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

Negras InsUrgências 182 Capulanas Cia de Arte Negra


com passividade, quase anulando todo protagonismo negro que
eles próprios prospectaram e deram lume.
Nesse contexto, pouco sabemos sobre certa história do teatro
operário brasileiro, mas há notas esparsas sobre isso desde finais
do século XIX em escritos abolicionistas e anarquistas. As escri-
tas acadêmicas da história do teatro brasileiro são, de tal forma
aristocráticas, que somente falado do, por e para o público alta-
mente escolarizado do sudeste branco, cafeicultor e industrial-mo-
dernista. Menos ainda sabemos sobre as inúmeras experiências
criativas dos grupos negros organizados desde os finais do século
XIX, mas temos vários resquícios textuais e fotográficos de práticas
teatrais em sociabilidades negras. A saber, performances de blocos
de afoxé em Salvador, batalhões de Ticumbis no Rio de Janeiro,
Guardas de Congo em Uberaba. E os registros de uma teatralidade
Kongo em Ilhabela, litoral de São Paulo. Que efetivamente encena-
vam tais formas de drama oral afropopular?
Uma tese aqui sobre Solano trindade e Haroldo Costa, outra
tese acolá sobre Abdias do Nascimento e De Chocolat. Silêncio
quase sepulcral sobre Margarida Trindade e Maria Nascimento.
Quem seriam? Os registros disponíveis mostram imagens de mu-
lheres negras. Onde foram parar sua memórias, seus projetos, seus
textos, suas práticas e criações?
O grupo teatral Capulanas Cia de Arte Negra figura nessa pai-
sagem e já recebeu dois fomentos para produção teatral. Trata-se
nominalmente das protagonistas de seu próprio enredo: Débora
Marçal, Priscila Obaci, Adriana Paixäo, Flávia Rosa e Carol Ewaci.
Todas oriundas de grupos culturais e artísticos que surgiram e
atuam na região sul, nos últimos dez anos. Movidas pelo desejo
de aprendizagem e revisão estética, atravessaram as fronteiras do
teatro e da cultura popular, da dança-afro e das musicalidades
negras para instaurar uma dramaturgia autoral inspirada inicialmen-
te em Solano Trindade.
Os grupos teatrais negros paulistanos recentemente prestaram
um efetivo trabalho social e cultural à sociedade brasileira, se in-
seriram em um universo cultural nunca antes tão diverso e rico.
As leis de fomento cultural, e uma rara politização do mercado do
entretenimento no estado mais rico da união revelaram as práticas
racistas e artimanhas de manutenção do prestígio, poder e mando
de uma pequena elite cultural branca paulistana.
O racismo parcialmente desvelado por essa juventude criati-

Negras InsUrgências 183 Capulanas Cia de Arte Negra


va e engajada gerou espaços imprescindíveis para debates sobre
criação e fruição cultural na metrópole e no estado de São Paulo
como um todo. Mas é necessário, e sugerimos que seja possível,
avançar nesse caminho. Parece urgente pesquisar mais sobre a
historicidade dos saberes e fazeres culturais negros no Brasil, co-
nhecer e sistematizar suas formas, conteúdos e procedimentos.
Também parece urgente uma reflexão em torno das memórias de
longa duração das artes negras em suas conexões diaspóricas. E,
sobretudo, parece urgente frequentar melhor os limites de reco-
nhecimento ou relevância dos valores civilizatórios africanos nas
artes contemporâneas.
Como supunha Stuart Hall, deslocar os dispositivos de poder
tem sido uma estratégia eficaz da luta antirracista. O Brasil como
estado nação tem sido gerido sistematicamente por elites brancas
e brancocêntricas que, em todos os campos do pensamento e das
práticas políticas, sociais e culturais, vislumbram e projetam uma
promessa auto-colocada por grupos sociais que se veem como
europeus no exílio.
De quando em quando uma fagulha mal apagada vem reavivar
a fogueira do medo ancestral e projetar as malditas sombras, na
parede ao fundo da nossa caverna-nação. A questão crucial é: até
quando poderemos ostentar a imagem, ou utopia imaculada da
sociedade mestiça, cujo povo alegre aguarda a redenção do seu
pecado original, a escravidão? A turba enfurecida, às vezes, rompe
a barreira, alcançando a praça principal. Então, sempre aparece
o arauto-mor e grita alto em um equipamento de som obsoleto
qualquer: “fiquem tranqüilos, porque sabemos que tudo é culpa
do nosso passado escravista”. Todos retornam às suas casas,
tudo fica e nada muda. Embora em nossa percepção acelerada do
tempo presente tudo esteja mudando lento demais “de uns tempos
para cá”. Por vezes o passado escravista parece explicar tudo. Mas
qual é o limite de uso dessa retórica?
Experiências históricas negras podem ser localizadas na lite-
ratura brasileira, produzida por descendentes de africanos, desde
a segunda metade do século XIX. O exemplo de obras de Cruz
e Souza, passando por Lima Barreto e Lino Guedes, na primei-
ra metade do século XX, e alcançando Oliveira Silveira na virada
do século XXI, mostram os indícios não apreendidos facilmente,
que funcionam como mapas ou registros discursivos de variadas
formas de opressão racial e a sua percepção social.

Negras InsUrgências 184 Capulanas Cia de Arte Negra


Bastide propôs a reinterpretação de literatos negros, e sua
respectiva incorporação a uma negligente História da Literatura
Brasileira, apontando com ênfase o papel simbólico da negritude
em suas obras, ainda que não lhes estivessem explícitas. Há um
acorde perfeito maior harmonizado nos anos 1970 pelos  intelec-
tuais negros como Candeia, Muniz Sodré, Beatriz Nascimento e
outros tantos anteriores como  Guerreiro Ramos e Edison Carneiro.
Isso criou um campo de tensão com as interpretações naciona-
listas e nacionalizantes de matriz modernista.  A brasilidade  e a
negritude estão disputando interpretações. Os herdeiros do moder-
nismo de linha freyriana não param de brotar. Mas, agora sem dizer
que seguem esse mesmo raciocínio das elites nacionalizantes. Pre-
cisamos ouvir mais o que Hall fala sobre o nacionalismo e também
sobre deslocamento dos dispositivos de poder.
Trata-se antes de entender o processo em curso do que de
construir novos paradigmas. Ficar mais um tempo tentando en-
tender porque persiste entre alguns nossos um apego ao folclo-
rismo imobilista ou projeção de uma África mítica, atemporal e
desterritorializada.
Os anos vindouros deverão mostrar outros rumos e abrir
tempos de renovação em termos de estética negra no Brasil e no
mundo. Em outras palavras, a negritude aqui pode ser entendida
como uma construção de alteridade cultural contemporânea e
somente torna-se válida, quando acata uma posição dialógica com
outras visões de mundo e outras experiências históricas e culturais.
Capulanas é afirmativamente um grupo feminino e negro. Sin-
gularidade fixada politicamente e “fundamentada nas experiências
socioculturais das mulheres negras do passado e do presente”. O
grupo tem uma base técnica masculina, assim como atores convi-
dados. São homens negros jovens que perseguem objetivos simi-
lares. Acompanhamos parte de suas andanças criativas pela zona
sul e destacamos de sua apresentação:

Capulanas é composta por jovens negras(os) de movimen-


tos artístico-políticos de São Paulo. A Cia nasce da von-
tade de dialogar com a sociedade sobre as descobertas,
anseios e percepções da mulher negra. A proposta é forti-
ficar a imagem da mulher negra, para isso nos apropriamos
do pensamento da cultura popular, onde todas as artes se
fundem: a música, a dança, poesia, artes plásticas, teatro e

Negras InsUrgências 185 Capulanas Cia de Arte Negra


outros. A herança da cultura da oralidade para a Diáspo-
ra africana, que no Brasil é presente na cultura popular,
em evidência do norte e nordeste do país, é de grande im-
portância na integração do mundo natural, a presença do
sagrado e a valorização da memória. Mulheres africanas e
afrodescendentes, mantêm em comum o laço de soberania
espiritual sobre seus povos, estabelecendo um elo imaginá-
rio de ascendência e descendência.24

Embora outros grupos da região tenham enunciado o perten-


cimento à origem africana como uma particularidade, os registros
sobre o discurso estético e político das Capulanas nos sugere uma
ruptura com os demais. Ao colocar seu projeto dentro de uma con-
tinuidade que se remete ao literato negro Solano Trindade e fixar
uma perspectiva negra e feminina, reelaboram o texto do feminismo
negro, cuja fonte é Lélia Gonzales e o faz entrecruzar com a con-
cepção socialista de Cultura Popular de Solano Trindade. O resul-
tado dramatúrgico e textual é algo totalmente inédito e estimulante.
Quem foram Solano e Margarida Trindade? Deixaram descendência
consanguínea ou patrimônio simbólico, deixaram herança cultural?

Sou Negro
Sou negro.
Meus avós foram queimados
pelo sol da África.
Minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongôs e agogôs.
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda,
como mercadoria de baixo preço.
Plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi.
Era valente como quê.
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu.

24  PAIXÃO, Adriana, idem, p,

Negras InsUrgências 186 Capulanas Cia de Arte Negra


Não foi um pai João
humilde e manso.

Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou.

Na minh’alma ficou
o samba,
o batuque,
o bamboleio
e o desejo de libertação.25

Trata-se de uma das obras de Solano Trindade, publicada nos


anos 1940. Solano nasceu em Recife (PE) em 24 de julho de 1908.
Filho de operários negros, aprendeu desde cedo as práticas cultu-
rais dos descendentes de africanos de Pernambuco e mais tarde
utilizou esse repertório para a construção de uma dramaturgia e
uma inusitada poética negra e engajada contra a opressão racial.
Depois de migrar para o Sudeste constituiu uma companhia de
teatro, nos anos 1940 no Rio de Janeiro, quando se aproximou de
Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos e Edison Carneiro. Por
suas ligações no Partido Comunista do Brasil ao Leste Europeu fez
uma turnê. Mais tarde viajou para a América do Norte participan-
do de papéis pouco expressivos, Hollywood. Ainda nos anos 1960
fixou-se na cidade de São Paulo. Passou pelo Bixiga e pela zona
oeste até se fixar em Embu das Artes, ajudando a gerar a famosa
Feira de Artes da cidade, nos arrabaldes da metrópole.
As artes negras têm sido, sobretudo, repositórios e platafor-
mas dos processos mais amplos e embates entre uma hegemo-
nia social, econômica e política das elites brancas e as formas de
autoconstrução social dos descendentes de africanos no Brasil e
na diáspora negra. Muito do que a juventude periférica feminis-
ta, trans-negra reivindica e modula na semântica atualmente, já
tinha se pronunciado bem antes: sexualidade antinormativa, afetos
como prática regenerativa, artes e cultura dissidentes como peda-
gogias emancipatórias.

25 TRINDADE, Solano. O poeta do povo. São Paulo: Cantos e Prantos Editora, 1999, p. 48.

Negras InsUrgências 187 Capulanas Cia de Arte Negra


Solano Trindade intelectual orgânico participou ativamente na
construção da negritude brasileira, reformulando e elaborando con-
ceitos sobre estética negro-africana ou especificamente afro-diaspó-
rica no Brasil processando criticamente as mudanças, recriações e
expropriações culturais, tal como podemos ler no seguinte poema:

Plástica Negra
Negra no sonho insultada
Negra no sonho oprimida

O amor de negra sempre plástica


A sua primeira libertação
Foi com cantares de Salomão
A segunda foi a escultura de Picasso.
A terceira ela conquistou sozinha26

Nós, negro-mestiços, pretos, afro-brasileiros ou descendentes


de africanos, seja qual for nossa classificação ou autoclassifica-
ção, também nos sentimos temerosos e por vezes até felizes pelo
fato de o racismo brasileiro não estar expresso na constituição.
Entretanto, isso não muda um centímetro o enfoque e o tamanho
do problema das desigualdades sociais de cunho racial, no país
da feijoada, do carnaval do Zé Pereira e da Pequena África, do
“poetinha” que se autonomeava o “verdadeiro capitão do mato”,
especialista em “mulatas”; dizia isso com a cara mais lavada e um
“sorrisinho” no canto da boca.
Ao espantar a imagem de cinismo racista, reconstruímos a his-
tória da percepção do racismo ao olhar dos afro-brasileiros, ima-
ginamos a dor de um autodenominado “mulato” Lima Barreto, ao
constatar o lugar reservado aos descendentes de africanos, na nas-
cente ordem republicana. Lembramos também a autoclassificação
do abolicionista negro Luiz Gama como “bode”, pardo, mulato, cuja
identidade e compromisso já transpiravam negritude, antes que
este termo tivesse sido inventado.
A questão da memória atravessou o limite dos círculos acadêmi-
cos e foi apropriada pelos movimentos sociais, pelos grupos étnicos
como uma problemática fundamental. Uma visão contemporânea

26  Idem, p. 63.

Negras InsUrgências 188 Capulanas Cia de Arte Negra


de memória/história de descendentes de africanos no Brasil é como
um bem simbólico que alarga a noção de democracia.
Vislumbramos assim os meandros de construção das identi-
dades negras, em processos de inserção social e, como autoima-
gem, está ligada à origem do indivíduo e, de maneiras por vezes
paradoxais, se traduz em dinâmicas pelas quais os sujeitos his-
tóricos criam seus laços de pertencimento, seus sinais de identi-
ficação, representam e atribuem significados a si e ao mundo. Na
construção da subjetividade há elementos para a reconstrução
da trajetória do grupo. Há muito nisso da história da família, do
bairro, do país, da nação etc.
Podemos encontrar na velha e boa São Paulo a teimosa
Sampa Negra,27 nos poemas, textos jornalísticos e memórias de
Luiz Gama, nas pinturas e falas de José Correia Leite transcritas
por Luiz Silva (Cuti), na poética de Lino Guedes, e nas polifonias
prefiguradas pelas várias edições do Grupo Quilombhoje de Lite-
ratura Negra ou nas Edições Toró, concebidas pelo poeta, ensaís-
ta e pesquisador Allan da Rosa.
Já disse antes, quase que com as mesmas palavras, que
podemos observar gradações das leituras do ativismo anti-racista
desde os negros dramas ou tragédias de Hamilton Cardoso, Beatriz
Nascimento e Eduardo de Oliveira e Oliveira. Podemos ressignificar
esses símbolos do Negro Drama.
O antropólogo Peter Fry,28 trabalha reacendendo um imaginário
já identificado como “onda negra”, para apontar o perigo que a so-
ciedade brasileira corre diante da mobilização dos grupos negros or-
ganizados. O efeito de coação ensejado por Fry é buscado em ana-
logias do Brasil com os regimes de apartação imposta no contexto
africano. Evoca, portanto, as imagens dos regimes conhecidos como
apartheid, que vigoraram durante a ocupação colonial no Zimbábue
e perduraram como sistema político na África do Sul até 1995.

No auge do imperialismo no século XIX a crença em raças


justificava a subjugação e a escravidão dos povos con-

27  Venho trabalhando esse conceito a partir de uma referência poética de Daniel Fagundes,
“lado Sul da Sampa Mundi”. Efetivamente trata-se de vivências e experiências, memórias e
registros fragmentários das populações e sociabilidades de pessoas de origem africana e
autonomeadas negras, na cidade de São Paulo e na sua área metropolitana.
28  FRY, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e África austral.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

Negras InsUrgências 189 Capulanas Cia de Arte Negra


quistados e colonizados. Hoje em dia esta crença possibi-
lita o preconceito e a discriminação. Ao mesmo tempo, o
mito das raças é tão forte que se impõe sobre os métodos
adotados para combater o racismo e seus efeitos. Inver-
tendo os sinais, as “raças”, antes subjugadas, são exaltadas
na sua contribuição cultural, política e econômica às so-
ciedades coloniais e neocoloniais. A celebração da “diver-
sidade” tão em moda nos dias atuais redunda, muitas vezes,
na prática, na celebração de “raças” ou em seu eufemismo
politicamente correto, “etnias”. Políticas públicas denomi-
nadas “ações afirmativas” são implementadas para reduzir
as desigualdades “raciais”. Mas como estas políticas exigem
dos seus beneficiários uma identidade racial, a crença em
raças sai fortalecida. Por mais bem-intencionada que seja
a ação afirmativa, ela tem por conseqüência lógica o for-
talecimento do mito racial.29

Fry antevê com sua lente de antecipar o futuro a “conseqüência


lógica” das ações afirmativas conquistadas pelos grupos negros,
que estão desencadeando o mito da raça negra. Vê um perigo
racista negro nos movimentos sociais de cunho étnico-racial.
Contudo, não captou, ao menos não mencionou, nem combateu
o racismo essencialista branco nos ambientes acadêmicos brasilei-
ros pelos quais transitou desde que se fixou no país nos anos 1970.
Nesse ambiente, os negros nunca passaram de 1%.
Embora não tenha procedido a uma pesquisa capaz de desve-
lar a constituição das pautas e agendas sobre as quais emite juízo,
atua na superfície das percepções desses mesmos movimentos e
escala alguns grupos negros, sem dizer quais são, não na condi-
ção de interlocutores e protagonistas, mas de ingênuos e desinfor-
mados, cabendo a ele, do alto de sua ciência, ensinar-lhes quais
procedimentos são mais adequados, quais reivindicações são mais
legítimas e quais conceitos (raça ou etnia) e concepções sobre
racismo são mais afinadas com os estudos antropológicos.
Coloca em perspectiva aquilo que viu “acontecer nos Estados
Unidos, na África do Sul e no Zimbábue”, para destacar as “pe-
culiaridades” do caso brasileiro: na medida em que são aquelas
“sociedades que foram construídas formalmente sobre o mito das

29  FRY, Peter & VOGT, Carlos. Cafundó: a África no Brasil - linguagem e sociedade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, p. 16.

Negras InsUrgências 190 Capulanas Cia de Arte Negra


raças”.30 Vê, por antecipação, o perigo do movimento anti-racista
transformar-se em racismo-negro no Brasil, efeito do fortalecimen-
to da ideia de “raça”. Insiste em ser elegante e polido, esmiuçando
a semântica dos termos raça e etnia, tratando com arrogância e
desdém os grupos negros que fixam suas críticas nos efeitos dos
racismos cotidianos e pressionam os órgãos governamentais em
busca de maior participação socioeconômica.
Nosso racismo é muito mais tosco e mais orgânico, estas coisas
aqui no nosso inferno cotidiano não têm o mínimo sentido. Repor-
tando-se a José Murilo de Carvalho, Peter Fry evidencia que sabe
que quase todo brasileiro que se vê como branco, quando tocado
sobre este tema vai logo lembrando de algum parente negro, ou
quantas vezes usou uma camiseta do Olodum, que adora samba e
feijoada. Inclusive, para as elites intelectuais, os negros são agradá-
veis, sobretudo, quando não falam de racismo, quando não batem
tambor fora de certos dias do ano, quando reconhecem os seus
lugares sem que tenham que ser chamados à atenção.
Sobre a questão do terror racial, seria muito interessante fazer
estudos que deem conta dos processos de constituição das subje-
tividades e intersubjetividades tendo como recorte a temática étni-
co-racial. Seria interessante trazer cada vez mais à tona, como já se
tem feito, as formas pelas quais os brancos e os “outros” são ensi-
nados a desqualificar tudo o que é relacionado à África e aos negros.
Rebaixar a importância cultural, social e política daquilo que se
chama “movimento negro” não é algo exatamente inédito na obra
de Peter Fry, posto que já o fez na obra Cafundó, escrita com Carlos
Vogt e Robert Slenes, embora o nome do último tenha sido omitido
na publicação, conforme relata o próprio Slenes na introdução de
Na senzala uma flor (Slenes:1999). Também em artigos esparsos,
este “não diálogo” se processou, tal como em “O que a Cinderela
Negra tem a dizer sobre ‘política racial’ no Brasil”, publicado em 1995
na revista da USP, por comemoração do tricentenário da morte de
Zumbi. Por estas e outras, considero que o eminente pesquisa-
dor seja um interlocutor demasiado assoberbado para penetrar nos
desvãos das lutas cotidianas por cidadania de uma parte tão signi-
ficativa da população.
Mesmo que ancorado nas análises das dimensões “semântico-
-referenciais” (termo usado por ele) das categorias e terminologias

30 Ibidem.

Negras InsUrgências 191 Capulanas Cia de Arte Negra


usadas pelos grupos negros e suas estratégias, Peter Fry trouxe
a contribuição de enxergar antinomias na capilaridade da “identi-
dade nacional”, se é que tal entidade exista. Recortou problemas
brasileiros fundamentais, mas escolheu sobrevoar as tensões e
recolher símbolos identitários na culinária (feijoada), na paisagem
geográfica humanizada por descendentes de africanos (Cafundó),
nos impedimentos de acesso a elevadores (Cinderela Negra), ou
na difusão do temor da onda negra (A persistência da raça). Agora
escreve mais um capítulo de parte da pedagogia social do medo.
Sabe da sua eficácia como recurso longevo do terror racial subli-
minar, muito presente nas práticas racistas, institucionais ou não.
Este também pode ser o ápice de um diálogo de surdo-mudo, que
começou com os militantes do MNU de Sorocaba nos idos da
segunda metade da década de 1970, quando elegeu a comunidade
do Cafundó como ícone de identidade negra e esperava que os
grupos negros seguissem sua orientação; mas frustrou-se.31
O renomado antropólogo, que tem espaço garantido nas
mídias, no mercado editorial e na produção acadêmica, constrói
uma mensagem que ressoa longe e em consonância com as con-
cepções mais aceitas e pretensamente adequadas sobre o Brasil.
Assim, acaba prestando mais um desserviço acadêmico e social.
Para ele, “o processo de racialização em curso também faz ressaltar
a suposta raça de quem fala e quem escreve”, como se a escrita
não traduzisse pensamento e como se ambos fossem sempre im-
parciais, desprovidos de marcas culturais e ideologias. Negligencia
o fato de que também o poder da escrita, da interpretação, tem fi-
gurado nas mãos privilegiadas dos brancos, como maioria absoluta
dos que têm formação acadêmica.
Sua reflexão deságua no argumento do hibridismo e da mesti-
çagem como marca nacional e, assim, retorna à democracia racial,
agora como projeção e projeto, ou seja, “um ideal a ser alcançado,
um mito no sentido antropológico do termo: uma maneira espe-
cífica de pensar um arranjo social em que a ancestralidade ou a
aparência do indivíduo deveriam ser irrelevantes para a distribuição
dos direitos civis e dos bens públicos”. – Sua retórica alarmista re-
vela-se uma verdadeira contradição, quando, concomitantemente
à ausência de projetos mais abrangentes de inclusão social, verifi-
camos o grau de iniquidade que pesa sobre as coletividades com-
postas pelas pessoas de origens africanas.

31  FRY, Peter. A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e África austral.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 16.

Negras InsUrgências 192 Capulanas Cia de Arte Negra


As abissais desigualdades sociais entre as populações negro-
-mestiças e brancas continuam a ser tabus inclusive no meio aca-
dêmico. Por conseguinte, até certos intelectuais renomados apare-
cem em redes de televisão sustentando soluções simplistas para
um problema de tamanha profundidade e extensão e de tal grau
de complexidade. Os mais temerosos veem a crescente politiza-
ção das populações negras como um perigo de polarização racial,
como se nas práticas sociais, ou seja, na distribuição de prestígio,
poder e renda, ela não existisse.

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Negras InsUrgências 198 Capulanas Cia de Arte Negra
10. Ainda sobre estéticas
e éticas teatrais negras,
a partir de quatro
experiências distintas
por Salloma Salomão

Nossa questão inicial dispõe-se então na pergunta sobre a


possibilidade de existência de uma potência emancipatória na
dimensão do sensível, do afetivo ou da desmedida, para além,
portanto, dos cânones limitativos da razão instrumental.

Muniz Sodré

5 de maio de 1911. Ontem, fui ao teatro. Há muito tempo


que não ia. Quase há três anos. Fui com o Marques Pinhei-
ro, irmão do Rafael Pinheiro. Rafael é o tipo do arrivista,
é do que fura, de qualquer modo. Estudou medicina e não
se formou. Foi tido como rapaz de muito talento, orador,
etc., mas coisa alguma de valor fez, em coisa alguma. Ele
não me estima, mas talvez me tema. O irmão é medroso. É
redator da Gazeta da Tarde, de que me fiz colaborador
ultimamente. Levou-me ao teatro e fui à caixa. Nunca tinha
ido aí. É interessante. Há uma desordem que agrada. Batem,
sacodem, arrastam panos. O contra-regra grita com uma
atriz que está ao colo de um cavalheiro: aqui não é bordel,
é uma casa de trabalho.

Afonso Henriques de Lima Barreto

Negras InsUrgências 199 Capulanas Cia de Arte Negra


Já dito antes, mas nunca é demais repetir, tanto no campo da
literatura quanto no da dramaturgia há emergências negras desde
o século XVIII, mas principalmente o Teatro Negro tem sido uma
das tantas tentativas de retirar dos brancos, hegemônicos, o poder
da linguagem. Desligar ao menos uma parte das tecnologias que
produzem males incomensuráveis na forma de representação das
pessoas negras e todos os não brancos em geral. É uma revolta
programada e criativa contra o mundo intangível da representação.
A representação do outro seria dessa maneira uma prisão simbó-
lica, ideologia formada por imagens depreciativas que definem à
revelia. São armas signos que, se não matam, acionam aqueles
que podem apertar o gatilho. Os alvos são ícones colocados nas
costas dos impotentes ou ingênuos. Uma intelectual negra con-
temporânea disse que o problema da estereotipagem não é o fato
de apresentar negativamente uma pessoa ou um grupo, mas de
ser, geralmente, uma projeção incompleta.
Foi uma grande descoberta o fato de que a língua escrita pelos
europeus também era forma de poder e de dominação. Os reis
africanos bem cedo passaram a treinar seus diplomatas para que
eles se tornassem bilíngues. Há muita escrita africana em língua
europeia, pouco estudada. No entanto, a dramaturgia é escrita
artística, invenção de um uso criativo da linguagem não prescri-
to nas atividades ordinárias e funcionais. Uso militar, econômico,
diplomático, religioso. Dramaturgia é escrita oral ou gráfica que
precisa de corpo, voz, imagem e espaço para se tornar mais sig-
nificativa, embora já se tenha como algo pronto em si mesma.
Quando a dramaturgia encontra vozes e corpos, segundo os teó-
ricos dessa língua, ela se torna teatro.
Escrever para quem, encenar para quem? Para negros ou para
brancos? Que tipos de diversão, entretenimento ou lazer culturais têm
tido as populações negras no Brasil no correr do tempo e da história?
Em Pernambuco, Minas Gerais e Bahia durante a era colonial
havia músicos e artistas negros respeitáveis, mesmo em São Paulo
em início do século XIX viajantes europeus os reportaram como
cantores e atuantes nos bastidores de um teatro quase branco.
O teatro nesse formato de caixa-salão socialmente controlado
é uma invenção europeia e renascentista, como já dito e mostrado
antes. Suas regras, suas formas, seus princípios, seus espaços, suas
condutas e seu público ideal mudam, mas não necessariamente
mudam seus fundamentos. Os “europeus nos exílios” e imigrados
vão acatar os padrões metropolitanos dessa linguagem e incorporar

Negras InsUrgências 200 Capulanas Cia de Arte Negra


todos os “grandes clássicos” dessa arte e, no limite, desenvolver, não
raro, algo como imitação fiel, adequando a cena nacional.
Nesse contexto, os negros são sinônimos de escravizados e,
logo, irrelevantes, exceto em Demônio familiar, de José de Alencar,
de 1857.1 Miriam Garcia foi precursora em várias das modalidades
da reflexão que intentamos. Para ela: “A pessoa do negro aparecia
ainda em algumas peças como figurante, ou exercendo qualquer
função subalterna, irrelevante, não podendo ser considerada uma
personagem, posição que exige uma distensão no tempo e na ação
dramática para caracterizar-se como tal”.2
Lima Barreto, na passagem do século XIX para o XX, pensou
romances, escreveu muitos ensaios e os tornou públicos nos pe-
riódicos possíveis ao seu alcance. Cruz e Souza e Luiz Gama, até
então, haviam sido os primeiros a colocar ênfase na origem afri-
cana como um desafio intelectualmente criativo, ou seja, como
algo fundamental, um ponto nodal na orientação do processo de
criatividade. Lima elevou personagens populares e negromestiços
à posição nunca antes experimentada na escrita brasileira. Refletiu
sobre a cultura urbana capenga, sobre a fragilidade da cidadania e
os vícios das elites. Teve uma preocupação especial para com os
efeitos da escravidão no longo prazo. Uma passagem ilustra em
que medida a proximidade com a cultura escravagista condicionou
essa perspectiva. Lima escreveu em seu diário:

Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me


da minha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lem-
brei-me de algumas frases ouvidas no meu âmbito familiar,
que me davam vagas notícias das origens da minha avó ma-
terna, Geraldina. Era de São Gonçalo, de Cubandê, onde
eram lavradores os Pereiras de Carvalho, de quem era ela
cria. (...) O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos
morros da Saúde alguma coisa de cubata africana, e a tris-
teza do cais dos Mineiros é saudade das ricas faluas que
não chegam mais de Inhomirim e da Estrela, pejadas de mer-
cadorias. (...) A rua a que chegara começava a se animar.
Vacas de leite arrastavam bezerros, plangendo campainhas.
As tavernas se abriam, e os sacolejos dos jacás de uma tro-

1 FLORES, Moacyr. O negro na dramaturgia brasileira-1838-1888. Porto Alegre: EDIPUCRG, 1995.


2 GARCIA, Miriam. O negro e o teatro brasileiro. São Paulo: Hucitec; Brasília: Fundação Pal-
mares, 1993, p. 29.

Negras InsUrgências 201 Capulanas Cia de Arte Negra


pa, voltando do mercado, dava um tom de roça à paisagem
urbana. Pretos do ganho, quitandeiros, ainda pretos, passa-
vam. De repente, de uma esquina adiante, veio ter à rua uma
leva de escravos, em marcha para a casa de comissão.3

A utilização sutil de termos bantus pode parecer um belo con-


traste com as formas incisivas pelas quais Luiz Gama introduziu
elementos linguísticos africanos na sua obra. Em seu diário escre-
veu algumas vezes sobre o desejo de legar-nos uma perspectiva
épica sobre os escravizados, seus, nossos ancestres:

Veio-me à ideia, ou antes, registro aqui uma ideia que me


está perseguindo. Pretendo fazer um romance em que se
descrevam a vida e o trabalho dos negros numa fazenda.
Será uma espécie de Germinal negro, com mais psicologia
especial e maior sopro de epopeia. Animará um drama som-
brio, trágico e misterioso, como os do tempo da escravi-
dão. Como exija pesquisa variada de impressões e eu queira
que esse livro seja, se eu puder ter uma, a minha obra-pri-
ma, adiá-lo-ei para mais tarde. Temo muito pôr em papel im-
presso a minha literatura. Essas ideias que me perseguem de
pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos
do romance, e o grande amor que me inspira — pudera! — a
gente negra, virá, eu prevejo, trazer-me amargos dissabo-
res, descomposturas, que não sei se poderei me pôr acima
delas. Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo,
e a proximidade simplesmente aparente das coisas turbará
todos os espíritos em meu desfavor; e eu, pobre, sem fortes
auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perse-
guido, amargurado, debicado?4

Não efetivou um romance, mas um texto teatral inacabado de


1906 e primeiramente publicado em fins de 1920, após sua morte,
republicado no jornal negro Quilombo, em 1949, especificamente um
órgão de imprensa do grupo Teatro Experimental do Negro, coman-
dado pelo casal Abdias e Maria Nascimento e Guerreiro Ramos, os
quais já mencionamos antes. Não sabemos se o Teatro Experimen-
tal utilizou o texto de Barreto, além da publicação, mas apenas esse
fato já nos parece bastante significativo, como se fosse uma pista,

3 BARRETO, Lima. Diários íntimos. Cópia digital rede Web, s./d, p. 105.
4 Idem.

Negras InsUrgências 202 Capulanas Cia de Arte Negra


de que o texto já havia sido apreendido e sondado, como passível
de releitura ou montagem.
O termo negrismo teria sido neologia criada por ele, antes mesmo
que negritude houvesse sido conceituado no além-mar e fosse colo-
cado em voga pelos intelectuais afro-americanos e africanos?
Há formas de performances africanas e afro-brasileiras que
também têm textos, personagens, organização discursiva, narrati-
va, temporalidade, musicalidade que não se negam a dialogar em
nível de equidade com essas europeidades culturais. Como já dito,
podemos ver teatros negros e populares nos bumba-meu-boi e
congadas, também presentes nos desfiles de carnavais, maracatus
e blocos afros, por exemplo. Eles têm estruturas narrativas e cons-
tituem formas públicas de representação que poderiam ser enten-
didas como teatros. Mas por que não são?
Nas escolas de teatro (sobretudo no Brasil), ainda hoje essa
linha de raciocínio é aplicada como lobotomia em alunos brancos
e negros, na esperança de que se tornem papagaios da estética
colonial de dramaturgia.
Não que as sociedades estatais africanas desconhecessem
tecnologias de pensamento e comunicação gráfica, mas culturas
negras letradas contemporâneas nascem primeiramente de tenta-
tivas e erros de ex-escravizados — como Olaudah Equiano, Frede-
rik Douglass, Mary Prince, Luiz Gama, Mohamma Baqaqa e Hariet
Jacobs,5 apenas entre aqueles mais conhecidos — de combinar
formas escritas e publicação de texto narrando suas experiências
da captura na África e escravidão no novo mundo. Uma escrita
dirigida a um público branco e leitor, uma estratégia apolítica de
despertar a opinião pública para as condições existenciais dos
escravizados. Alguns textos serviram de inspiração para poéticas,
romances, novelas e dramaturgia branca ainda no século XIX,
mas também imprimiram marcas profundas na imagem melodra-
mática da escravidão global.
Africanos que estudaram em escolas impostas pelo sistema
colonial eram obrigados a ler textos em que personagens históri-
cos ou fictícios tomados como seus antepassados transitaram em
paisagens antitéticas e nórdicas. Segundo um grande intelectual

5 Veja: GATES, Henry Louis. The Classic Slave Narratives. Signet Classic: New York, 2002. Tam-
bém: AZEVEDO, Elciene. Orfeu de carapinha. A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de
São Paulo. Campinas: Ed. Unicamp, 1999.

Negras InsUrgências 203 Capulanas Cia de Arte Negra


educado em uma dessas escolas francesas, os professores colo-
niais, sem nenhum tipo de adaptação, forjavam a ideia de que os
ancestrais de africanos eram também gauleses.
Um corpo de uma pessoa negra é sempre negro. Enquanto o
corpo de um ser humano branco tem sido modelar e universal. Após
a descolonização nas urbes africanas, professores universitários
continuaram a encenar peças europeias com atores-alunos negros.
Colocando corpos negros sobre textos repletos de imaginários da
Europa central. Isso revela um tanto de alienação num primeiro
momento, mas pode se transformar em roubo, quando a consciên-
cia da racialidade da cultura se instala. O lixo burguês, iluminista e
romântico, que chamamos Humanismo, e todos os seus derivados
culturais e artísticos, agora são nossos refúgios. O racialismo, que foi
imposto como ideologia de superioridade e dominação dos povos
extraeuropeus, pela expansão colonial, agora se reveste de atitude
anti-ideológica, revelando a dominação pelo seu avesso.
Nesse sentido, só pode haver dramaturgia negra, como insur-
gência, como revolta, como ruptura e quebra de um padrão hege-
mônico de cultura, civilidade, beleza e estética. É uma revolta da
imagem do negativo, tentativa de anteceder a revelação. O teatro e
a dramaturgia, tal como conhecemos, para ser operados por não
brancos, só se forem sequestrados, domesticados, destruídos ou
quase mortos. Então, Teatro Negro tem sido um ato de violência
simbólica pequena, que tenta repor uma outra grande violência cul-
tural-global, que quase nunca cessa.
O que se chama de negro-imagem é estereótipo, negro-síntese,
basta vê-lo para saber todos os negros; uma negra-resumo, basta
entendê-la para entender todas as negras. A síntese prescinde da
existência concreta, ela é arbitrária e vai logo habitar um campo da
nossa psique que os especialistas chamam de inconsciente, indivi-
dual ou coletivo. Dramaturgia é um gênero literário, com intenções
teatrais. Já teatro, a realização dramatúrgica, advinda de um texto
escrito ou não.
Não é possível traçar uma linha progressiva, sem forjar interpreta-
ção de embuste, entre as formas negras de dramaturgias orais entre
séculos XVI e XIX e a escrita dramatúrgica de Lima Barreto. Menos
ainda seria possível observar processos comuns entre as compa-
nhias negras de revista dos anos 1920 e o Teatro Experimental do

Negras InsUrgências 204 Capulanas Cia de Arte Negra


Negro ou o Teatro Popular dos Trindade dos anos 1940, no Rio de
Janeiro, e 1970 em São Paulo. Contudo, é possível falar em termos
de individualidades criativas e experiências coletivas dramatúrgicas e
teatrais negras que se comunicam no tempo e espaço e configuram
certos padrões reflexivos, estéticos e políticos.
Há um dado de conexão entre a realidade social próxima e a
construção de enredos nas escritas e nas montagens. Do ponto
de vista estético, é certo realismo que podemos observar desde
a década de 1930. Uma forma recorrente com que dramaturgos e
dramaturgistas negros e negras exercem sua criatividade premidos
por realidades imediatas. Um tempo presente que tenta vislumbrar
passado e processar utopias.
Por exemplo, é a forma que encontramos em Lino Guedes e
Lima Barreto, embora o segundo nos tenha premiado com apenas
dois textos de sua lavra dramatúrgica. Mas há uma diferença es-
sencial entre os dois, ainda que o tema seja escravidão. Enquanto
Barreto cria um clima enevoado e prenhe de simbolismo, em uma
trama nem tanto realista, Guedes transforma escravidão em um fan-
tasma atemporal. Para aqueles que viveram bem de perto a escra-
vidão sistêmica, e puderam experimentar com os seus a abolição, o
cativeiro certamente não era apenas um temor sem fundamento. Era
um fantasma dormindo ao lado, pronto para acordar e voltar.
Os temas candomblé, vodun, umbanda, religiosidades negras,
foram constantes e conscientemente tratados como referenciais
estéticos. O vodun — como resquício dos valores filosóficos religio-
sos daomeanos, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos — surge
constantemente. Trata-se, sobretudo, da incorporação integral ou
seletiva das danças de vodus e orixás, pela cultura coreográfica das
quais Margarida Trindade, Mercedes Batista, Katharine Dunham e
Josephine Baker extraíram fragmentos para recompor procedimen-
tos, métodos e inserções nos espetáculos que produziram.
A bailarina e pesquisadora Deise Santos de Brito6 tem refeito
roteiros de viagem de Dunham e Baker entre Brasil, Caribe e EUA,

6 BRITO, Deise Santos de. Casamento de preto? Correlações entre as corporeidades de Jo-
sephine Baker e Grande Otelo. Orientadora: Profa. Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro.
Relatório de qualificação, referente às atividades realizadas pela doutoranda em artes no
período de março de 2015 a julho de 2016. Veja também: SILVA, Luciane Ramos. Corpo em
diáspora: colonialidade, pedagogia de dança e técnica Germaine Acogny. Tese de doutorado
sob orientação da Dra Inacyra Falcão. Antropologia da Dança. Unicamp, 2017.

Negras InsUrgências 205 Capulanas Cia de Arte Negra


revelado uma intensa troca entre aquela bailarina estadunidense
e artistas brasileiros, desde a década de 1940. E nesses trânsitos
criativos a busca de matrizes africanas comuns tem sido uma das
abordagens. O lugar de artistas negras na construção dessas geo-
grafias e trocas entre similares parece não ter imperado nas hierar-
quias convencionais entre norte e sul. Mas não se trata apenas da
construção fragmentária e aleatória de conteúdos teatrais e dan-
çantes de origem africana, extraídos de onde eles podem parecer
congelados e imutáveis aos olhos folcloristas ou racistas.
Corporeidade foi um conceito que emergiu para dar conta dessa
presença física e seu repertório coreográfico. Deise Brito coloca a
questão de forma bastante elucidativa:

É indiscutível que corpos são diversos uns dos outros


e que abordar aspectos subjetivos deles é adentrar um
campo infindável de suposições, proposições e afirmações.
Quando decidi estudar as correlações entre corporei-
dades dos artistas Josephine Baker e Grande Otelo, não
entendia, ainda, a acepção do termo corporeidade; compre-
endia, apenas, que ele seria relacionado aos estudos refe-
rentes ao corpo. No período em que cursava a disciplina
com o professor Juliano, inquietei-me com uma série de
indagações sobre esse conceito, a primeira delas: o que
é corporeidade? Toda essa dinâmica foi possível a partir
da abordagem feita em relação ao teórico Merleau-Ponty
(2013), segundo o qual corporeidade é a ideia de como o
corpo age no mundo e como esse mundo age no corpo. O
exercício da corporeidade está atrelado ao exercício da
percepção a qual está diretamente ligada ao movimento.7

Desde aquele fenômeno brutal do sequestro, aqui é nascer ou


renascer, autoconstruir que brota da consciência étnica e corpo-
ral-artística, uma vez que somente os incriados (deuses e orisás)
podem fazer nascer a si mesmos. Renascer, recriar, fazer-se não
como existência, mas como consciência de si no mundo. Essa
ideia está presente em Beatriz Nascimento, mas por conta de
sermos nós e nossas protagonistas de outras gerações, podemos
beber na sua fonte poética e cheia de filosofia negra. Mas, também
podemos nos distanciar historicamente dela.

7 Idem, p. 7.

Negras InsUrgências 206 Capulanas Cia de Arte Negra


Aventamos a hipótese de que renascer pode ser um dos prin-
cipais signos da diáspora, mas aceitamos até mesmo suas se-
mânticas viciosamente conectadas ao cristianismo. Vida após a
morte não é necessariamente uma invenção específica e única da
metafísica europeia.
Aqueles que foram sequestrados, apartados da terra mãe,
tiveram de renascer em outro lugar, outro tempo, outro contexto
que não mais o original. Uma consciência que brota do fato de
que não é mais possível voltar à origem, mas utilizar as experiên-
cias da viagem para seguir adiante. Quero dizer que em nossos
corpos negros está presente uma certa gama de memória desse
ato e de outros cometidos por uma certa parcela da humanidade,
europeus e eurodescendentes, sobre outra parcela, africanos e
negros nascidos na dispersão.
Essa tensão está presente em nós e não foi dissipada, porque
ela resiste ao tempo, e o racismo antinegro nos faz cotidianamen-
te recordar tais fatos. Temos que nos deparar com as lembranças
ou memórias não apenas do sequestro, como também da longa
exploração dos corpos negros como mercadorias e força de tra-
balho. O racismo antinegro é uma espécie de ameaça velada de
retorno àquela condição.
Contudo e apesar disso, agora sabemos algumas coisas básicas
sobre esse campo ultracomplexo do corpo e movimento, alguns
temas já discutidos em duas ou mais oportunidades em contextos
acadêmicos afetivos com Luciane Ramos Silva e Deise Brito, a saber:

A. Precisamos do nosso corpo para vermos e sermos vistos


no mundo habitado. Projetar o corpo no tempo (passado,
presente e futuro) e espaço na geografia pan-africana e
espaço fluido do Atlântico negro faz com que o corpo seja
percebido exatamente como suporte da existência concreta
dos seres humanos.
B. Sobre os corpos (biológicos) coexistem heranças genéticas
e culturais (ações e visões). Através do seu corpo (concre-
tude, tangibilidade e finitude) você está no mundo e a partir
dele pode explorá-lo, conhecê-lo modificá-lo, ou seja, viver
e morrer nele.
C. Também podemos projetar uma existência que transcende o
corpo e se perpetua como onossande, egun, vodum, orishá,
(éter, espírito, alma, energia no ocidente). Nas culturas oci-

Negras InsUrgências 207 Capulanas Cia de Arte Negra


dentais os corpos são tradicionalmente divididos entre mas-
culinos e femininos. Perfeitos e imperfeitos. Os corpos ambi-
valentes até bem pouco tempo eram tidos como aberrações
(hermafroditas, transexuais, etc.).
D. Os corpos que professam afetos que escapam à norma são
taxados moralmente, condenados e proscritos do meio social
(sodomitas, pederastas, mulher-macho, macho- fêmea, etc.).

Os corpos dos africanos são descobertos como negros por


contraste cromático, definição relativa (brancos têm vários tons,
mas em geral são róseos, e negros de vários tons podem ter um
tom predominantemente marrom), antes mesmo do início do
tráfico; entretanto a cor ganhou relevância após o início da expan-
são ocidental no século XV. O viajante português Gomes de Zurara,
na bacia do Rio Senegal em meados do século XV, não expressou
espanto nem ojeriza pelos Wolofes, ao contrário, reconheceu as
mulheres como belas.
No passado remoto, quando do encontro entre núbios, egíp-
cios e etíopes, por meio de suas sociedades estatais com pales-
tinos, persas e gregos, a tonalidade da pele era notada mas não
causava maior interesse ou espanto, embora se levantassem hi-
póteses sobre a origem das diferenças (Heródoto, por exemplo,
falando sobre o cabelo dos etíopes).
Tal como outros povos, os africanos percebiam e criavam di-
ferenças entre si, em termos de culturas corporais: adornos, vesti-
mentas, atitudes e gestos, modificações intencionais – escarifica-
ções e gilvazes, pinturas, modelação (mulheres girafas), etc.; em
termos de traços morfológicos – biológicos: altura, tonalidade, de-
formidades, cabelos, formato de corpo e rosto.8
O tráfico e a escravidão colocaram frente a frente corpos afri-
canos de diversas origens, que jamais haviam entrado em contato
entre si. Corpos pretensamente homogêneos em função do dester-
ro e da condição escrava. Os contatos diaspóricos forjaram o sur-
gimento de novas identidades grupais (nações africanas, irmanda-
des, terreiros, ruas e principalmente práticas religiosas). Resultados
de afinidades culturais, parentescos, origens regionais, solidarieda-
de mas também organização para defesa de interesses grupais.

8 SABINO, Jorge & LODY, Raul. Danças de matriz africana. Antropologia do movimento. Rio
de Janeiro: Pallas, 2011.

Negras InsUrgências 208 Capulanas Cia de Arte Negra


A cultura visual do ocidente mudou no século XVIII e XIX,
quando pesquisas (de naturalistas e viajante em geral) fizeram cir-
cular imagens de africanos e seus descendentes em uma escala
sem precedentes, difundindo visões estereotipadas em gravuras,
pinturas, livros, postais e fotografias. As coletividades negras pro-
jetam perigos iminentes e também existências performáticas no
imaginário das elites. Ao perceber o desconhecimento e temor
dos brancos, a partir de experiências de subalternidade, os negros
não hesitaram em afugentar, ameaçar ou impor medo à socieda-
de branca. Em algumas circunstâncias muitos especiais no Brasil,
em Cuba, no sul dos Estados Unidos, o medo se transformou em
pânico, e o perigo iminente se tornou real.
Na primeira metade do século XX dramaturgos, poetas negros
em todo mundo (Caribe, Eua, Brasil e África) lançam mão da per-
formance como ação política e social. O Teatro Experimental do
Negro e o Teatro Popular Solano Trindade são exemplos de contes-
tação. Dramaturgias de Aimeé Cesarie, Abdias, Senghor e Sowinka
dialogam entre si, mas precisamos apontar, de forma mais vincada,
essas conversas secretas.
Há no meio teatral paulista um discurso recorrente sobre o teatro
como o lócus da presença. No entanto há grupos inteiros de teatro
na cidade nos quais não se pode observar a presença de pessoas
negras; há também outros nos quais a presença de uma única
pessoa negra funciona como modo especial de concessão para que
o racismo antinegro não possa ser frontalmente apontado ali.
A escravidão foi justamente a expropriação do corpo.
Humanos da pele escura que tiveram de viver em corpos que não
lhes pertenciam. Talvez por isso a religiosidade tornou-se tão vital,
sendo o último refúgio para corpos alienados e almas fustigadas
pelo medo e desesperança.
No fundo há uma profunda ligação entre canto, dança e religio-
sidade porque já existiam no continente africano. As gestualidades
dos ritos, atos simbólicos de passagem da puberdade para jovens
masculinos e femininos estão presentes em várias civilizações afri-
canas, especialmente entre os povos da África do oeste — iorubas,
fons, ewes, como também entre etnias da África Central, bacongos,
balubas, kubas e nganguelas.
Tais ritos de passagem, assim como os fúnebres e de entro-
nização dos soberanos, eram e em algumas localidades menos
urbanas ainda são profundamente marcados pelas danças rituais.

Negras InsUrgências 209 Capulanas Cia de Arte Negra


Se conservam, ou não, seu sentido original não sabemos. Mas as
referências advindas de documentários recentemente produzidos
por equipes europeias sobre os povos “exóticos” nos indicam exa-
tamente isso. Séculos de colonialismo e imposição cultural não
foram o bastante para retirar das sociedades tradicionais africanas
seus patrimônios de valores civilizatórios.
Podemos dizer que as memórias coletivas africanas foram pre-
servadas, sobretudo em formas de gestualidade, oralidade, musi-
calidade e performance. E o local privilegiado dessa manutenção
foram as religiosidades. Isso até que fossem descobertas como
valores estéticos negros por artistas e intelectuais descendentes de
africanos nas décadas de 1930, quando estes repertórios começa-
ram a entrar na literatura e na música popular e erudita. Somente
mais tarde é que passaram a ser assimilados no teatro e na dança.
Nos anos 1960/1970 os balés folclóricos das novas nações
africanas, assim como da Bahia, são exemplos de politização per-
formática que solapa a hegemonia cultural do ocidente. E assim
propõe não apenas uma nova estética, mas também uma nova
geografia política com base nessas experiências anteriores, mesmo
que não haja comunicação entre seus agentes.
O surgimento de grupos teatrais dedicados a temáticas artís-
tico-culturais negras, a emergência de textos, autores, produtores
e atores negros relativamente bem-sucedidos no mundo do en-
tretenimento e da cultura literária e dramatúrgica, pouco a pouco,
fazem com que africanidades, entendidas como visões de mundo
reconfiguradas a partir das relações étnico-raciais, caminhem rumo
a um espaço de visibilidade e melhor compreensão. Mas do ponto
de vista estético, que códigos carregam e que inovações propõem
ou trazem consigo tais trabalhos?
Creio que a ninguém cabe o papel de dizer aos criadores o que
devem e como devem ou não construir suas obras, óbvio, dentro
de uma percepção política de relativa liberdade e de democracia
possível. Quando os artistas criadores têm interesse em estabele-
cer um diálogo com a sociedade sobre suas produções e quando
tais obras têm natureza pública, estão sujeitas a julgamento, crítica,
registro, avaliação, análise, etc. Essas abordagens podem ser de
várias naturezas e intencionalidades: competitivas, seletivas, valo-
rativas, morais, políticas, de mercado, científicas, estéticas, etc.
Tenho acompanhado a produção cultural de grupos negros,
com dois interesses fundamentais: um de natureza política, como

Negras InsUrgências 210 Capulanas Cia de Arte Negra


ativista, e outro de natureza estética e acadêmica. Meu objetivo é
fortalecer a produção negra que se constituiu na cidade, em linhas
mais gerais visando contribuir para instaurar um parâmetro de ci-
dadania cultural e não apenas a sabotagem da hegemonia branca.
No horizonte consta uma sociedade efetivamente plural e social-
mente igualitária e uma democracia efetivamente participativa.
Nesse sentido, tem sido um prazer acompanhar de dentro
como espectador crítico os trabalhos de grupos como Os Crespos,
Cia Capulanas de Arte Negra, Coletivo Negro e Clariô. É ainda difícil
chegar a uma leitura síntese sobre as produções desses grupos em
termos mais gerais. Mas suas criações teatrais e dramaturgias, ou
seja, suas literaturas e oralidades expressas nas montagens, já nos
dão algumas indicações de conteúdos, temas e formas. É possível
também apreender um tanto das estratégias de pesquisa social e
de elaboração das estéticas textuais e cênicas, das criações de
personagens e processos de montagem e captação de público.
Além de recolher os artefatos de divulgação, publicações e
outros materiais impressos, busco também conteúdos disponí-
veis na rede web, onde se pode apreender discursos e silêncios,
concepções e atividades. Sempre que possível, fotografo os am-
bientes e abordo os membros desses grupos para conversas in-
formais sobre seus modos criativos.
Em linhas abertas observo aqui, nos conteúdos mais gerais, a
emergência de personagens que se pautam por uma pesquisa feita
na realidade social contemporânea, com ênfase em algo que poderia
ser designado por história sociocultural dos negros do Brasil. Nesse
sentido cabe memória da escravidão e lutas pela liberdade, religiosi-
dades, costumes, folk-negro, imaginário, psicologia social do racismo
antinegro, cultura material, literatura negra, etc. Grosso modo, observo
que os personagens que emergem dessa dramaturgia podem ser
caracterizados, em sua maioria, como homens e mulheres negros
e negras, mergulhados nos dramas cotidianos da população negra
urbana brasileira. Os temas subjacentes são: trabalho, moradia, reli-
giosidade, memória, subjetividades e afetos.
O Coletivo é negro, e é um grupo de teatro composto por
jovens que se autodefinem como tal. São pardos e pretos para o
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Sabem que
são negros para as forças de segurança pública privada; não se
escondem, mas buscam abrigo ante as saraivadas de “balas perdi-
das”, e elas são muitas na grande São Paulo.

Negras InsUrgências 211 Capulanas Cia de Arte Negra


Certamente são descendentes de africanos, se entendem como
pertencentes a um ramo específico da diversidade humana que
habita a província de São Paulo, Brasil, América do Sul e mundo.
Seguem vivendo como podem na metrópole paulista e fazem
coisas inesperadas. São criadores e criativos. Inventam outras vidas
além das suas. Criam artes. Isso enquanto tornam-se reconhecida-
mente negros. Aqui a negritude é construção constante, processo
de autoconhecimento e desvelamento do mundo.
Não. Por um momento vamos pensar que as artes podem pres-
cindir da história em nome da liberdade criativa. Portanto, se eu divagar
um bocado, me perdoem, mas me parece que o convite gera margem
a isso, devaneio, criação, fruição livre do pensamento. E, quem sabe,
em meio ao delírio criativo haja as condições necessárias ao redimen-
sionamento dos nossos paradigmas cognitivos e culturais.
A publicação dos textos dedicados ao teatro e dramaturgia
negras, como já fizeram as Capulanas em três ocasiões, o Coleti-
vo Negro, em circunstâncias similares, fomenta o aparecimento de
novos parâmetros para a criação teatral negra na cidade de São
Paulo, quiçá no Brasil e na diáspora. Isso se as relações desiguais do
trânsito forem alteradas com profundidade nas próximas décadas.
Uma das lutas históricas dos grupos negros tem sido contra
a invisibilidade; a outra é contra o esquecimento. Criar, produzir,
pesquisar e difundir têm sido as chaves de interpretação e ação
dos grupos artísticos culturais negros, desde a primeira metade do
século XX. Mas é preciso ampliar o raio de preocupações e atitudes
e revisar nossas habilidades cognitivas, se quisermos nos qualificar
para empreender a transformação política, social e cultural que a
sociedade brasileira nos solicita.
Via de regra nos espetáculos os personagens se dirigem di-
retamente ao público e, na maioria das vezes, falam em primeira
pessoa. Essa busca de empatia poderia ser traduzida como uma
relação entre depoente e pesquisador, entre paciente e médico,
entre terapeuta e portador de trauma. Por vezes, parece haver a
busca de uma veracidade-síntese das principais problemáticas e
vivências da banda negra da sociedade brasileira contemporânea.
Não tenho ainda uma inferência ou interpretação consolidada
sobre essa característica geral dos textos e montagens, mas pre-
tendo chegar lá.
Para entender uma mudança pronunciada no meio social peri-
férico, onde a juventude negra é a maioria demográfica, temos que

Negras InsUrgências 212 Capulanas Cia de Arte Negra


afinar a lente e trocar o filtro. Essas mudanças têm duas origens
recentes e outra mais antiga. Uma mudança recente foi anunciada
pela retração do mercado tradicional de consumo cultural privado
(falência da indústria tradicional da música, por exemplo), fazendo
com que os produtores privados recorram cada vez mais a recursos
públicos (o recente “Caso Maria Bethânia” pareceu emblemático).
Esses financiamentos públicos passaram a ser regrados por meca-
nismo, com o mínimo de transparência, também pelo surgimento
de novos agentes artísticos culturais que demandam mais acesso
aos serviços e recursos do Estado.
Uma conexão se dá no campo da pesquisa histórica. Os jovens
artistas e pesquisadores ligados aos coletivos de artes e culturas
objetivamente transformam seus processos criativos em uma luta
constante pela memória.9 Reviram textos, filmes, imagens, fontes
orais e documentais em busca de conhecimento sobre figuras,
eventos, cenas e acontecimentos protagonizados por ativistas, artis-
tas e criadores negros e negras do passado. O resultado dessa busca
pode ser verificado em vários trabalhos tais como {Em} goma- dos
pés à cabeça, os quintais que sou eu (2011), da Cia Capulanas de Arte
Negra, baseado em pesquisa sobre a vida e obra Solano Trindade, ou
ainda Pedagoginga — autonomia e mocambagem, de Allan da Rosa
(2013), por exemplo. Mas tem muito mais. No campo específico das
artes teatrais também pode ser apreendido em quadros da Cia Os
Crespos e nesse caso, destaco o Coletivo Negro.
Esse movimento pode ser entendido como a busca por res-
postas relacionadas às especificidades das culturas negras na for-
mação na humanidade, do mundo contemporâneo e da socieda-
de brasileira. O que distingue as culturas negras da dispersão do
tráfico e da colonização e aquilo que geram no interior das socie-
dades nacionais têm a ver com aquilo que na compreensão de
Stuart Hall (2006) foi designado: “tradição filosófico-cognitiva da
diáspora”. Diante da sociedade e da cultura dominante e da he-
gemonia política dos eurodescendentes, as culturas negras estão
quase sempre presentes e à margem.
Nessa perspectiva podemos abordar tais produções culturais
negras na cidade de São Paulo e as criações do Coletivo Negro e
seus interlocutores mais ativos, como formas novas de contracul-
tura. Embora estejam inseridas em um universo das práticas cultu-

9 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos tribunais,
1990.

Negras InsUrgências 213 Capulanas Cia de Arte Negra


rais relativamente reconhecidas em função dos tipos de linguagens
que utilizam, produzem conteúdos, formatos e características que
negam e confrontam a cultura artística dominante e oficial. São
criações insurgentes que deslocam as estruturas de dominação
cultural e instauram novos paradigmas.
A atual cena paulistana de Teatro Negro tem muito a ver com
as contradições próprias da sociedade brasileira. Sociedade que se
manteve escravista mesmo tendo incorporado ao longo do século
XIX, vários princípios do humanismo e do liberalismo. Uma socie-
dade atual que resiste como pode à emergência das demandas por
políticas de equidade, acesso e reparação. As políticas estatais e o
senso comum tentam forjar um novo discurso de igualdade univer-
salista, mesmo diante do desvelamento cotidiano das iniquidades e
suas incidências específicas sobre fatores de raça, classe, gênero e
cultura. Esses novos agentes políticos, calcados nas estratégias de
constante diferenciação, não cabem nos repertórios interpretativos
sociológicos convencionais. Os técnicos mostram-se aturdidos.
O Coletivo Negro pode ser situado na grande São Paulo.10
Criado em torno de um projeto teatral elaborado por jovens negros
e negras. Trata-se de um grupo de pessoas na casa dos 30 anos
de idade, atuando com artes há pelos menos dez e em sua maioria
oriunda de famílias negras urbanas de classe média baixa. Eram
frequentadores de escolas públicas no ensino básico e cursavam o
nível médio, quando despertaram para a carreira artística profissio-
nal, a partir da linguagem específica do teatro. Em sua maioria têm
formação universitária ou formação em escolas técnicas de artes.
O teatro negro do Coletivo desarranja a voz unitária das artes
paulistanas. Instaura um deslocamento, no que Stuart Hall (2006)
define como “disposições do poder”, ajudando a descentrar a “nar-
rativa ocidental”. Nesse caso, do poder cultural. O Teatro Negro bra-
sileiro, nesse sentido, pode também ser entendido como Teatro de
Identidades, ou ainda Círculos Teatrais da Diferença.
A politização da linguagem teatral burguesa, submetida a concei-
tos, formas, corpos e discursos negros, encontra-se disseminada em
uma geografia mais ampla do Atlântico negro e tem a ver com uma
dupla tentativa de desestabilizar a organização política, econômica e
cultural do mundo, feita a partir da Europa. Nesse sentido, a emer-
gência de um Teatro Negro no Brasil é paradoxal e, dialeticamente,
continuidade e ruptura dessa mesma tradição ocidental.

10 COLETIVO NEGRO. Negras dramaturgias. São Paulo: Coletivo Negro, 2015.

Negras InsUrgências 214 Capulanas Cia de Arte Negra


Já dissemos antes que, desde os anos 1940, com a introdução
da técnica do psicodrama, por Guerreiro Ramos no TEN, como pe-
dagogia para formação de atores, escritores e público teatral, sur-
giram nesse mesmo caminho formas inovadoras de educação e
criação estética, cujo objetivo último tem sido gestar uma terapêuti-
ca capaz de exorcizar ou impedir a introjeção dos efeitos negativos
psicossociais do racismo antinegro na população negra em geral.
Temos algumas pistas sobre o caminho de um teatro negro en-
gajado que percorre o século XX e ainda se apresenta fortemente
na cena paulistana. Elisa Larkin Nascimento (2003), em seu livro
Sortilégio da cor, nos oferece conteúdos reflexivos sobre o que cha-
mamos de dramaturgia e teatro negros.11
Impressiona nos seus trabalhos a qualidade dos textos, as in-
venções técnicas para driblar os orçamentos raros e, sobretudo, o
nível de criatividade desenrolado para criar novas linhas de reflexão
sobre as memórias, histórias e estéticas negras, a partir da lingua-
gem teatral. Dito de outra maneira, o Coletivo Negro expande a
noção que tínhamos até então sobre teatro negro e se insere de
uma maneira muito própria e especial na história da cultura artísti-
ca de origem africana no Brasil.
O texto de “Movimento número 1- o silêncio de depois”12 nem
sempre desliza, mas também não confunde nem cai. Se sustenta,
segue, vai e no fim nos emociona mesmo. Imagino o quão difícil
tenha sido articular poeticamente cinco vozes dissonantes e com-
plementares, vozes negras arquetípicas. Voz-África mãe e terra/
memória; Voz-mulher negra/ventre livre; Voz-homem negro-traidor
pai João; Voz-homem negro-herói Zumbi=rebeldia; Voz-instrumen-
tos contrabaixo/tambores e canto.
Uma polifonia que começou a ser destrinchada ainda na porta
do teatro do Sesi, durante a entrada do público. Nos quatro pontos
do espaço cênico, quatro vozes coesas, uma bem forte, feminina,
grave, majestosa e máscula. Quem suportava essa voz? Sua dona
era uma mulher, quase recém-menina,  com cara de lua nova, en-
velhecida pela personagem A Antiga, ou África Mãe.
Tratar a história não contada como corpos insepultos nos
remete a Walter Benjamim na tradição ocidental e tem eco em cos-

11  NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São
Paulo: Summus, 2003.
12  Idem, p. 40-60.

Negras InsUrgências 215 Capulanas Cia de Arte Negra


movisões bantus. Os defuntos sempre perturbam, mas também
auxiliam os vivos com sua experiência e perspectiva atempo-
ral.  São os mortos que destilam as várias faces do racismo anti-
-negro, tirando esse peso das costas dos vivos.
Contudo, tem ali um olhar externo e moralista que ainda faz
vítimas entre nós. A aguardente na nossa boca, prenúncio da over-
dose etílica, quando pode virar vômito na cara da sociedade. Quem
está disposto a isso? Sentar e ouvir tim-tim por tim-tim o “Negro
Drama”? Mas o texto não é sobre a dor da inconsciência negra, e sim
sobre o papel exercido pelos que se foram dessa concreta existência,
“cemitério dos vivos”, para a kalunga eterna, a água dos mortos.

Não há linearidade no discurso, apenas previsibilidade no des-


fecho, embora sem fato histórico específico. O pano de fundo é a
linha de trem que, para ser instalada, precisa desalojar as precárias
moradias e seus habitantes. Feliz alusão a tantos e infelizes desa-
lojamentos de negros e pobres para “passagem do progresso”, fato
constante no Brasil desde o século XIX nas capitais brasileiras.
O desterro símbolo África, desterro sina Brasil contemporâneo,
nós somos os estranhos de porta adentro, uma recorrência do
processo de desenvolvimento econômico, exploração imobiliária
e expansão urbana combinado com racismo ambiental (brancos
no centro), fenômeno estudado por várias perspectivas. Raquel
Rolnik (1997), entre outros, foi pioneira no mapeamento e desve-
lamento desses processos.
A voz-África mãe, corporificada na atriz Thais Dias, traz uma
gestualidade que insinua afrodança, mas ela apenas indica come-
didamente, é mimese e não coreografia. Esteticamente seria muito
óbvio; lugar comum nos grupos iniciantes, essa foi uma ótima
solução. Uma voz cumpre duplo papel: de narradora e personagem
chave, sua construção é encantadora e compensa com sua perfor-
mance, a luz e figurinos ultraeconômicos ou quase precários.
As vozes-homens negros-traidores e heróis têm pauta rela-
tivamente curta e cumprem o exercício no jogo da bipolaridade,
símbolo de consciência X alienação, recriando os arquétipos mais
rasos do enredo. Conquanto os atores sejam excelentes e façam
uma exploração bem limpa do texto, projetam, performam, trans-
piram, se desdobram, mas comparativamente o conteúdo é pouco
denso, têm pouco espaço de manobra, porque o texto não permite.                 
Está também lá o arquétipo mulher negra, corpo-samba, libi-

Negras InsUrgências 216 Capulanas Cia de Arte Negra


do-sexualidade. Ao mesmo tempo é ela a portadora da transgres-
são social do contato interétnico. Mas há também a interdição
e a queda inexorável. A bipolaridade negra-branco se mantém
também nos níveis mais elementares, nos enredos e desfechos
construídos durante a década de 1970, que eu também não sei se
superamos na vida real, muito menos na dramaturgia. Será que
Teatro Negro é simples transposição das questões pertinentes à
história e realidade dos negros e negras para a forma textual dra-
matúrgica e depois para a forma teatro-perfomance-palco, casa-
-cenário, arena ou rua?
No primeiro trabalho a que assisti, me impressionou muito o
conteúdo e forma das personagens resumidas, quase esquemá-
ticas ou pós-modernas, no limite da estereotipia. As personagens
femininas me chamaram mais a atenção. Suscitam um olhar mais
atento porque a dominação masculina é um assunto transversal
e delicadamente trabalhado de maneira um tanto similar nas três
companhias, Capulanas, Crespos e Coletivo. Nesse universo em
que a solidão da personagem mulher negra e sambista encarnada
por Aysha Nascimento convive com a idealização do homem negro
e com a experiência afetiva negativa com outro homem, um branco.
Mas essa perspectiva inicial sofreu uma mudança radical com
a efetivação de Ida, texto de Renata Martins, dramaturgia coletiva e
direção de Flavio Rodrigues, em 2016. Com criação de Aysha Nas-
cimento e atuações dela e Veronica Martins, cenografia de Nina
Rodrigues, figurinos de Débora Marçal, direção musical de Dani
Nega e Dramaturgia coletiva. Segundo Aysha:

A partir dos recortes estéticos, poéticos, políticos e sim-


bólicos dos movimentos negros feministas passados e dos
movimentos afrofeministas atuais, fui encontrando mulhe-
res contemporâneas desses corpos e dessas vozes negras
que atualmente vivenciaram um processo intenso de empo-
deramento jamais visto: a Marcha das mulheres negras e
tantas outras iniciativas, produções culturais e coletivas.
A pesquisa sobre o feminino negro almejava tornar essa
voz-negra e feminina cada vez mais visível, audível, con-
creta e corporificada.13

13 NASCIMENTO, Aysha; Flávio GOMES; GARCIA, Raphael. Negras dramaturgias 2. 2 ed. São
Paulo: R. S. Garcia, 2018.

Negras InsUrgências 217 Capulanas Cia de Arte Negra


Lélia Gonzales foi uma das mais importantes intelectuais e ati-
vistas negras, uma teórica das questões de gênero e raça no Brasil;
fora casada com um homem branco, mas isso não impediu que
se construísse como ideóloga do feminismo negro em nosso país.
Aqui tais fantasmas arrastam correntes na porta dos apartamentos
de pessoas negras de classe média em especial, mas não apenas
delas. Vejo criticamente certa tendência de setores de uma juven-
tude hiper-negra, hiper-consciente, hiper-tudo, que se comportam
como impiedosos juízes das causas, dos protagonistas negros,
agendas e ações dos grupos negros organizados. Sentem como
se nada tivesse acontecido antes de sua vida adulta. Aí inauguram
o movimento negro revolucionário. Alguns alimentam um profun-
do desprezo pelo passado imediato, mantêm os olhos perdidos na
imensidão dos tempos míticos e, por isso, encontram respostas
prontas em tábuas sagradas que prospectam em sites da internet.
Há uma belíssima e potente história do feminismo negro no
Brasil, que muitas vezes se torna inacessível para mulheres negras,
mesmo para aquelas do setor mais escolarizado. Isso porque as
instituições negras continuam sofrendo com a precariedade ma-
terial e financeira, embora existam hoje organizações não gover-
namentais negras com relativa proeminência social e midiática. Ao
mesmo tempo o mundo acadêmico continua desprezando a pro-
dução acadêmica negra, como uma forma de negação que resulta
da desigualdade de visibilidade também no campo científico e aca-
dêmico. Ainda assim, sobre Gonzales podemos recolher que:

É nesse sentido que Lélia Gonzalez, grande feminista ne-


gra, propôs, na década de 1980, uma releitura da “mãe
preta”. Para ela, ao invés de sua figura representar a acei-
tação da condição escrava, ela canonizava uma resistên-
cia à ideologia senhorial construída no cotidiano entre
senhores e escravos através das canções de ninar repletas
de palavras africanas e fundamentalmente pela linguagem
ensinada às crianças. Nesse sentido, Lélia destaca a singu-
laridade da língua brasileira que ao invés de português de-
veria se chamar “pretuguês” tamanha a influência da África
e das mulheres de cor preta na sua formação. (...) Esse
refinado pensamento histórico de Lélia Gonzalez eviden-
cia um tópico pouco abordado na nossa história: o papel
social da mulher negra na sociedade brasileira. Aprisiona-
das pelo estereótipo da negra trabalhadora braçal ou da

Negras InsUrgências 218 Capulanas Cia de Arte Negra


mulata dona de uma sexualidade exacerbada, suas imagens
foram historicamente construídas distantes e antagônicas
a qualquer referencial de positividade.14

Há, entretanto, uma criticidade bem desenvolvida sobre a domi-


nação de gênero e raça, ao mesmo tempo que ainda se pode obser-
var na produção teatral de afirmação negra e feminista a persistên-
cia de um certo imaginário masculino, ainda fissurado pelo feminino
nórdico. Imagem velha e vazia, contudo ainda constantemente reite-
rada nas propagandas de cerveja, de moda, de carro, fixada nas divas
da música, televisão e cinema. Será que corresponde à experiência
de intercurso sexual, embora no sentido contrário ao enunciado por
Gilberto Freyre? Agora se vê sadismo, mas projetado sobre a sexu-
alidade dos homens negros? Nesse caso, as relações inter-raciais
seriam a continuidade da própria perversão freyreana?
As intelectuais negras tanto na África quanto na diáspora recor-
rentemente tiveram e têm que lidar com aspectos da dominação
que os ativistas do sexo masculino poderiam passar ao largo sem
se dar conta. Paul Gilroy faz uma digressão muito elucidativa a esse
respeito, tendo como referência a romancista negra Toni Morrison:

(...) a vida moderna começa com a escravidão... Do ponto


de vista das mulheres, em termos de enfrentar os problemas
que o mundo enfrenta agora, as mulheres negras tiveram
de lidar com problemas pós-modernos no século XIX e an-
tes. Essas coisas tiveram de ser abordadas pelo povo negro
muito tempo antes: certos tipos de dissolução, a perda e a
necessidade de construir certos tipos de estabilidade. Cer-
tos tipos de loucura, enlouquecer deliberadamente, como
diz um dos personagens no livro, “para não perder a cabe-
ça”. Essas estratégias de sobrevivência constituíam a pessoa
verdadeiramente moderna. São uma resposta a fenômenos
ocidentais predatórios. Você pode chamar isto de ideologia
e de economia, mas trata-se de uma patologia. A escravidão
dividiu o mundo ao meio, ela o dividiu em todos os sentidos.
Ela dividiu a Europa. Ela fez deles alguma outra coisa, ela
fez deles senhores de escravos, ela os enlouqueceu. Não
se pode fazer isso durante centenas de anos sem que isto

14 SCHUMAHER & BRAZIL, Erico Vital. Mulheres negras no Brasil. Rio de Janeiro: REDEH,
Rede de Desenvolimento Humano, 2007, p.198.

Negras InsUrgências 219 Capulanas Cia de Arte Negra


cobre algum tributo. Eles tiveram de desumanizar, não só
os escravos, mas a si mesmos. Eles tiveram de reconstruir
tudo a fim de fazer este sistema parecer verdadeiro.
Isto
Segunda Guerra Mundial. Tornou
tornou tudo possível na
necessária a Primeira Guerra Mundial. Racismo é a palavra
que empregamos para abarcar tudo isto.15
Morrison se aproxima bastante das descobertas do sociólogo
negro brasileiro Guerreiro Ramos nos anos 1940, sobre o racismo
como patologia desenvolvida pela busca constante de manuten-
ção do contrato ou, da ordem racial ou da hegemonia branca,
condição própria vigente nas sociedades hierarquizadas a partir
de critérios racistas.
Podemos chamar de negritudes os processos de autoconsci-
ência dos descendentes de africanos, caóticas e coletivas gesta-
das além das fronteiras nacionais, mediante às variáveis históricas
comuns às sociedades colonizadas, ante as pressões das políticas
de dominação das elites eurodescendentes e as respostas coleti-
vas possíveis em cada contexto.
A ritualização da negritude foi um imperativo concebido de
dentro do mundo negro para fora, não apenas um contrafeito à
sociedade escravagista, racista ou hegemonicamente eurocêntrica
criada na ex-colônia portuguesa, mas em todo o mundo colonial. A
performatividade identitária foi elaborada como um dado analítico
da antropologia cultural. Aquilo que Manuela Carneiro da Cunha
(1986) definiu como “cultura de contraste”, como agenciamento de
signos dinâmicos que permitam a um certo grupo social projetar
de si uma imagem coletiva, geralmente positiva, externa e interna-
mente reconhecível.
Embora os abolicionistas (brancos), de maneira geral, não
encarassem seriamente a possibilidade de os negros serem assi-
milados como seres humanos e cidadãos plenos nas sociedades
nacionais, nas colônias ou nos centros imperiais, foi justamente
essa prerrogativa que animou ativistas da abolição em todo mundo.
É, por exemplo, o que podemos inferir mediante os escritos que
nos foram legados pela tradição intelectual afrodiaspórica, desde
Olaudah Equiano na Inglaterra, Frederick Douglass, Edward Du Bois

15 MORRISON, Toni, In: GILROY, Paul. O atlântico negro: modernidade e dupla consciência.
Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de janeiro: Universidade Cândido Men-
des, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001, p. 412.

Negras InsUrgências 220 Capulanas Cia de Arte Negra


e Harriet Jacobs nos EUA e principalmente André Rebouças, Luiz
Gama e Manuel Querino no Brasil. Em todos parece haver uma
frustração brutal ao perceber que a promessa humanista estaria
longe de ser cumprida, ou que tal premissa não alcançaria a si e
seus irmãos e irmãs.
O darwinismo social e o evolucionismo permitiram um rear-
ranjo da ideologia escravista no seu estertor. Lendo a crítica de
Thomas Skidmore ao sistema social racista brasileiro, é ainda
Cunha que assegura:

O evolucionismo permitiu resultados análogos na medida


em que a desigualdade era agora reificada sob uma es-
pécie de uma diferença temporal: os dominantes, irmãos
mais velhos, dominavam mais novos. Como isto operou, por
exemplo, na intelligentsia brasileira foi bem comentado por
Skdimore, em seu livro Preto no branco.16

A sociedade hegemônica construiu uma percepção totalmente


negativa sobre os diversos grupos étnicos africanos escravizados
no Brasil, os estereotipando e os estigmatizando num bolo étnico
apartado e socialmente inferior. Por que será que determinados
grupos compostos de pessoas negras têm evocado justamente a
mesma condição para checar os limites do poder vigente? Dizer-
-se negros e negras numa sociedade racista não seria, assim, uma
espécie de contrassenso?
Inferimos que há ao menos três referências básicas para olhar-
mos para as dinâmicas de constituição de identidade negras no
Brasil. A primeira diz respeito aos fragmentos culturais de longa
duração que criptograficamente se disseminarão em alguns
âmbitos específicos da vida social e guardam vetores culturais co-
nectados a experiências sócio-culturais-históricas mais remotas,
que podemos chamar grosso modo de cosmovisões, valores ci-
vilizatórios africanos ou africanidades. A segunda referência está
especificamente ligada às experiências diaspóricas e às trocas no
interior do mundo escravista; na sociedade de plantation, são no-
meadamente formas de resistência cultural, transmissão e simboli-
zação de tais experiências da dispersão e cativeiro.

16 Idem, p. 104.

Negras InsUrgências 221 Capulanas Cia de Arte Negra


A noção de liberdade parcial conquistada que o escravismo
tardio cunhou, assim como a racionalização da produtividade dos
escravizados conviveu a par e passo com a radicalização do abolicio-
nismo da segunda metade do século XIX no Brasil. Esta última fase
também foi aquela da escravidão industrial adotada, por exemplo,
em fazendas da Carolina do Sul, nos EUA, nas minas inglesas de
Ouro Velho, em Minas Gerais, ou algumas fazendas de café no sul
fluminense e no Vale do Paraíba em São Paulo. O escravismo assim
como racismo antinegro são formas dinâmicas de dominação.
Dito de outra forma, enquanto os intelectuais negros formu-
lavam hipóteses sobre o surgimento de culturas populares negras
nas Américas, na segunda metade do século XIX, o capitalismo
industrial nascente no Brasil e experientes investidores britânicos
mundializados prorrogavam a utilização do trabalho compulsório
com inovadores sistemas de premiação e recompensa aos escravi-
zados de bom comportamento.17
Ser negro e negra no Brasil, como a literatura da psicologia
social já tão bem demonstrou, não está ligado a uma perspectiva
biológica ou racial, embora o racismo enquanto sistema de domi-
nação tenha tido grande papel na construção da percepção dos
negros genericamente colocados como um grupo social aparta-
do do todo, por meio de mecanismos discriminatórios diversos.
Segundo Cunha:

O racismo do século XIX permitia operar a equivalên-


cia entre diferenças dadas na biologia, na raça, e nas
desigualdades dadas na sociedade. Nesse processo, as
desigualdades acabavam inseridas na natureza. A tradi-
ção remonta a Aristóteles, que afirmava que os bárbaros
tinham nascido para serem escravos, que essa função es-
tava inscrita em sua natureza.18

O escravismo como sistema produtivo e econômico de âmbito

17 Impressionante artigo de Matt D. Childs sobre os empreendimentos ingleses na Mina de


Ouro em Morro Velho, em Minas Gerais, cujas atividades atravessaram incólumes desde me-
ados da década de 1840 até 1930. Esse é um exemplo da dimensão efetivamente moderna da
exploração da escravidão negra, combinada ao trabalho livre da sociedade de classes, não
como contradição, mas complementaridade. Veja: CHILDS, Matt D. Rituais de poder: escravos
e senhores de uma mina de ouro no Brasil do século XIX. Afro-Ásia, 29/30, 2003, p. 133-173.

18 CUNHA, Manuela Carneiro da, Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 104.

Negras InsUrgências 222 Capulanas Cia de Arte Negra


mundial legou um quadro de desumanização das populações viti-
madas, mas também constituiu a base de onde extraiu a ideologia
de superioridade dos eurodescendentes e consequentemente da
dedutível inferioridade dos demais povos arrebatados pelo turbi-
lhão da expansão ocidental. A longa marcha para a construção do
racismo antinegro foi acelerada quando o escravismo e sua ideo-
logia decaíram vertiginosamente ao longo século XIX. O racismo
científico, ou “ciência das raças”, parece ter sido a resposta mais
eficientemente racionalista à vitória moral do abolicionismo.
Quando o antropólogo pernambucano nacionalista René
Ribeiro considerou Abdias do Nascimento um interlocutor à altura,
resolveu atacá-lo da forma mais torpe. Não em função de sua obra
intelectual, mas de sua ação política. Com peçonha própria, a in-
telectualidade branca brasileira e racista deslizou sua crítica para
um campo delicado e moral. Focou na sua intimidade e tentou psi-
cologizar a subjetividade de Nascimento, comentando longamen-
te sobre a relação entre aquele e sua companheira, a socióloga
estadunidense, Elisa Larkin. Sob o argumento de ser ela, além de
branca, estrangeira, reprovava-o socialmente. Justamente Ribeiro
que fez prestígio no estrangeiro completando o elogio à mestiça-
gem institucional, projeto sofisticadamente reelaborado por Freyre.
Efetivamente Ribeiro intentava desqualificar a atuação antirracista
de Nascimento, acusando-o de, além de importar uma branca, im-
portar também para o Brasil uma causa ilegítima e alienígena dos
negros estadunidenses.
Contudo, tenho mesmo medo quando o texto e ação reitera o
absolutismo biotípico-fenotípico negro. Absolutismo construído sob
ideia binária de pureza e impureza raciais. Sua fonte pseudocientífica
é oitocentista, mas ela continua jorrando e isso nos aproxima do
passado recente quando a busca pela pureza racial nos levou a um
beco sem saída. No limite podem se apaixonar por ideias de limpeza
racial como as de Renato Kel, que, nos anos 1930, ansiava por uma
política racial oficial eugenista e estatal no Brasil. Temo que, se parte
da extrema direita emergente ouvir o clamor dessa parte da juventu-
de hipernegra, se candidate para solucionar o problema surgido com
os possíveis “arranjos afetivos desviantes” ou inter-raciais.
Nunca é demais lembrar que a luta antirracista empreendida
no século XX contou com europeus brancos e eurodescendentes
no Brasil e no mundo; isso não pode ser esquecido. Foram figuras
altamente comprometidas, Jean Paul Sartre, Octavio Ianni, Flores-

Negras InsUrgências 223 Capulanas Cia de Arte Negra


tan Fernandes, Carlos Hasenbalg, apenas para citar alguns nomes.
Mas também teve que enfrentar constantemente os estabeleci-
mentos intelectuais das elites brancas, em qualquer terreno onde
tenham sido empreendidas. Os resquícios dessa constante tensão
poderiam ser mais bem historicizados, mas, por agora, posso dizer
que os vi espelhados simultaneamente em textos de Luis Antonio
da Costa Pinto, Nelson Verneck em seus investimentos violentos
contra Guerreiro Ramos, por exemplo.
Em um nível interpessoal, as trocas e alianças temporárias ou de
longa duração podem ser feitas com base na reciprocidade e equida-
de como provaram Juana Elbein e Mestre Didi, Cida Bento e Fúlvia
Rosemberg, Lia Vainer Schucman e Eliana Souza, Linda Hewyood e
John Thornton, Ione Silva Jovino e Anete Abramowicz, Flávio Gomes
e João Reis. Mas também se quisermos podemos ouvir os ecos das
botas dos camisas-verdes em marcha pela cidade, quando foram
se acomodar entre os ativistas da Frente Negra Brasileira nos anos
1930 e lá conseguiram alguns adeptos. O nazifascismo racialista,
como todas as explicações e ideologias autoritárias e masculinizan-
tes, agora com a utilização da rede web, parece hoje muito mais fácil
e acessível. E são perigosamente sedutores.
Também podemos evocar a tradição diaspórica de resiliência e
solidariedade étnica e interétnica. Atentar para o árduo percurso de
construção ou restauração da humanidade dos descendentes de
africanos e os muros que lhes são erguidos cotidianamente, com
o intuito de manutenção da ordem real e simbólica. E assim seguir
prospectando o passado e construindo um futuro sem racismo,
sem violência e dominação de qualquer tipo. As artes são verda-
deiras irmãs das liberdades e das utopias.

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Negras InsUrgências 226 Capulanas Cia de Arte Negra


Agradecimentos
Ora yê yê ô mamãe Oxum, Laroiê seu Marabô,
saravá Baiano e todas as nossas forças ancestrais.
A todas as nossas Sangomas e Ialodês que
construíram o caminho para chegarmos aqui.
Os nossos ventres anunciam novas histórias,
somos a espiral de um porvir que nunca finda.
Que as crianças estejam sempre em nossa roda,
girando a vida e gerando caminhos.
Gratidão ao mestre Salloma Salomão, que, ao ver
nossa queda, se lançou como um pai a nos acolher.
Suas palavras, seu conhecimento nos permitiram
continuar.
Gratidão, Neide Almeida, pela dedicação e
acolhida, mais uma Ialodê com que o universo nos
presenteou.
Gratidão Léia Guimarães, que mesmo sem
nos conhecer acreditou nessa missão,
Gratidão, Cassimano Nanau, por somar
esforços para este livro acontecer.
Gratidão à nossa família sanguínea e espiritual
por garantir o amor, o colo, o calor no momento
certo, sem nos poupar dos dissabores.
Falar de prazer ainda é um desafio.
Os tempos passam e continuam nos prendendo sem
provas, e as fardas não se cansam de desenhar os
asfaltos com nosso sangue e nossa carne preta.
Agradecemos ao Programa Municipal de Fomento ao
Teatro da Cidade de São Paulo, 29a. edição

Kaô Kabecilê.
“Levante! A ancestral diz!”

Seguimos sorrindo como forma de protesto.

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Dedicatória
À Dona Raquel Trindade, nossa Ialodê.
“Morre hoje, nasce ancestral amanhã!”
Somos fruto do seu Baobá e honramos o
chão no qual a senhora nos enraizou.

A todas e todos que constroem o Teatro Negro.

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