Você está na página 1de 120

Território, corpo e

sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos
Erika Flavia Soares Costa
Maria Ester Ferreira da Silva Viegas
(Org.)
Cirlene Jeane Santos e Santos
Erika Flavia Soares Costa
Maria Ester Ferreira da Silva Viegas
(Org.)

Território, corpo e sociedade

Arapiraca/AL
2023
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE ALAGOAS COORDENAÇÃO GERAL DO XI ENCCULT
Reitor: Odilon Máximo de Morais Dr. José Crisólogo de Sales Silva
Vice-Reitor: Anderson de Almeida Barros COMITÊ CIENTIFICO
Diretor da Eduneal: Renildo Ribeiro-de-Siqueira Coordenadores do grupo de Trabalho
Cirlene Jeane Santos e Santos
CONSELHO EDITORIAL DA EDUNEAL Erika Flavia Soares Costa
Maria Ester Ferreira da Silva Viegas
Presidente: Renildo Ribeiro-de-Siqueira
Titulares
Professores: Revisores Científicos
José Lidemberg de Sousa Lopes Cirlene Jeane Santos e Santos
Erika Flavia Soares Costa
João Ferreira da Silva Neto Maria Ester Ferreira da Silva Viegas
Luciano Henrique Gonçalves da Silva
Natan Messias de Almeida Revisoras
Maria Francisca Oliveira Santos Cirlene Jeane Santos e Santos
Márcia Janaína Lima de Souza - Sistema de Bibliotecas (SIBI) Maria Ester Ferreira da Silva Viegas

Suplentes Revisão ortográfica


José Adelson Lopes Peixoto Anne Dayse Barbosa Sousa Magalhães
Edel Guilherme Silva Pontes
Maryny Dyellen Barbosa Alves Brandão Capa
Ariane Loudemila Silva de Albuquerque Mariana Lessa
Ahiranie Sales dos Santos Manzoni Imagem da Capa
Elisângela Dias de Carvalho Marques - Sistema de Bibliotecas (SIBI) Freepik
Imagem da Contracapa
Cirlene Jeane Santos e Santos
Local da Imagem da Contracapa
Mural da Fundação Pierre Verger, Vila Colombina, Engenho Velho de Brotas -
Salvador/Bahia.

Acompanhamento técnico e Diagramação


Mídia Brazil

Catalogação na Fonte
T327 Território, corpo e sociedade / Cirlene Jeane Santos e Santos, Erika Flavia Soares
Costa, Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.). – Arapiraca : Eduneal, 2023.
120 p. : il. : color (e-book).

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-6061-005-7.

1. Território. 2. Corpo. 3. Sociedade. 4. Estado. I. Santos e Santos, Cirlene Jeane,


org. II. Costa, Erika Flavia Soares, org. III. Viegas, Maria Ester Ferreira da Silva, org.
IV. Encontro Científico Cultural.

CDU: 911.3

Elaborada por Fernanda Lins de Lima – CRB – 4/1717

Editora filiada à
Direitos desta edição reservados à
Eduneal- Editora da Universidade Estadual de Alagoas
Sumário

APRESENTAÇÃO................................................................................... 5

1. Alberto Guerreiro Ramos: um intelectual negro e suas contribuições


para o campo de Administração Pública brasileira............................... 7
Iverson Medeiros Pereira
Paulo Everton Mota Simões

2. O Aprisionamento de Corpos e o Punitivismo Estatal...................... 29


Lucas Lima da Silva Ferreira
Elson dos Santos Gomes Júnior

3. Mudanças de paradigmas e programas federais de segurança pública


no Brasil............................................................................................ 39
João Braz Amorim Neto

4. Lesbianidades: discussões presentes nas produções científicas do


período de 2018 a 2021.................................................................... 60
Else Freire de Castro Amorim

5. Quebrando Paradigmas: LGBT’s e a Representatividade Política no


Brasil................................................................................................. 76
Vanessa Andriani Maria

6. Uma perspectiva filosófica sobre o corpo e seus paradigmas......... 86


Cleandre Barbosa
Fábia Monaly Vieira Campos

7. Uso de Benzodiazepínicos durante a pandemia da COVID-19........ 94


Beatriz Bomfim Durier de Lima
Julyana Thiago de Moura
Laís Macedo Vilas Boas

8. O uso medicinal da Maconha no Brasil e sua representação social....107


Weslley Melo Santana
Lívia Lara Almeida de Souza
Pedro Dantas Lima
Apresentação

Com muito prazer apresentamos Território, Corpo e Sociedade, este é fruto do


grupo de trabalho constituído no XI Encontro Cultural e Científico (ENCCULT), 2021. O
GT visou contribuir para (re)pensarmos o tripé: corpo, sociedade e estado. A discussão se
estende a todos aqueles que têm em seus escopos de pesquisas o interesse pelas questões
relacionadas às estruturas da sociedade e como essas se perpetuaram historicamente, e
continuam a manter as relações sociais desiguais, sejam nas esferas individuais e/ou coletivas,
especialmente no tocante ao acesso aos direitos sociais, bem como, a postura adotada pelo
Estado frente às demandas interétnicas, de gênero – mulheres e comunidades LGBTQIA+ –
cujas praticas estatais acabam por perenizar tais situações.
Visando aprofundar os elementos que nos permitem considerar a relação teórica
entre o estudo das relações que envolvem as mulheres, LGBTQIA+, as questões raciais e as
relações interétnicas, apresentamos os capítulos que constituem o E-book, buscando no
corpus os conceitos que eles têm em comum que testemunham às ações da sociedade e
do Estado.
Iniciamos com o manuscrito Alberto Guerreiro Ramos: um intelectual negro e suas
contribuições para o campo de Administração Pública brasileira, que trata da potente obra e
contribuição de Guerreiros Ramos e sua invisibilidade na Administração Pública no Brasil.
No capítulo O Aprisionamento de Corpos e o Punitivismo Estatal, destaca a
marginalização institucionalizada implementada pelo Estado brasileiro sobre parcela
significativa da sociedade, que convivem com a violência, punição e invisibilização dos
seus corpos.
No terceiro capitulo Mudanças de paradigmas e programas federais de segurança
pública no Brasil, é discutida as políticas de segurança pública de prevenção criminal,
sustentando que não existe no Brasil uma política eficaz de segurança pública.
O capítulo Lesbianidades: discussões presentes nas produções científicas do período de
2018 a 2021, é apresentado o Estado da Arte sobre o tema lesbianidades, destacando as
principais pesquisadoras e pesquisadores que tem se debruçado sobre essa temática.
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Quebrando Paradigmas: LGBT’s e a Representatividade Política no Brasil, traz uma


interessante discussão no que se refere as lutas políticas no Brasil, tendo como palco o
espaço político institucional e as dificuldades que os representantes LGBT’s encontram para
se inserirem a política institucional.
Em Uma perspectiva filosófica sobre o corpo e seus paradigmas, é esboçado os principais
paradigmas filosóficos sobre o corpo, em um estudo panorâmico com base na história das
ideias filosóficas mais relevantes de cada época: antiga, medieval e contemporânea
Uma questão instigante é colocada em Uso de Benzodiazepínicos durante a pandemia
da COVID-19, colocando em evidencia o uso dos BZP’s e suas consequências, com o aumento
do consumo dos benzodiazepínicos e opioides no período da pandemia em decorrência do
aumento do adoecimento mental da população.
Encerramos com o capítulo O uso medicinal da maconha no Brasil e sua representação
social, aborda polemica do uso medicinal da maconha, envolto ao cenário de preconceitos
que circunda o mesmo, para além disso, o assunto é cada vez mais atual e necessário, tendo
em vista as propriedades medicinais desse vegetal.
Todos os capítulos aqui expostos trazem em si aspectos que são colocados no espaço
obscuro da invisibilidade pela sociedade brasileira, a qual na maioria das vezes se nega a
discutir tais temática. O Enccult abre a possibilidade de reunimos pesquisadores para juntos
e juntas debatermos esses conteúdos dissidentes, espaço imprescindível para a construção
do saber e troca de conhecimento.
Desejamos boa leitura e nos colocamos ao debate!

Cirlene Jeane Santos e Santos


Maria Ester Ferreira da Silva Viegas

6
1
Alberto Guerreiro Ramos: Um intelectual
negro e suas contribuições para o campo de
Administração Pública brasileira1
Iverson Medeiros Pereira(1)
Paulo Everton Mota Simões(2)

(1)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8982-8271; Universidade Federal de Alagoas/Graduado em
Administração Pública, pesquisador, BRAZIL, E-mail: iverson.mpereira@gmail.com@gmail.com;
(2)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2031-8660; Universidade Federal de Alagoas/Professor Doutor,
docente, BRAZIL, E-mail: pauloeverton@gmail.com;

INTRODUÇÃO

O colonialismo pode ser entendido como a busca pela conquista de territórios e suas
riquezas, a fim de estabelecer impérios e tornar estável o poder do colonizador. O impacto
que a colonização traz para uma nação vai além de riquezas. Segundo Gonçalves e Feitosa
(2019), as populações colonizadas, além de terem seus territórios invadidos, perderam
o direito à sua posse, ao seu patrimônio cultural e à própria perspectiva de produção do
conhecimento, que passou a ser subalternizada.
De acordo com Césaire (2020), o empreendimento colonial se fundou no desprezo
justificado pelo nativo, transformando-o em um animal. Para o autor, o ser humano
colonizador se fez açoite ao tempo em que fez do nativo seu instrumento de produção,
caracterizando a sua coisificação. Trouxe, ainda, a perspectiva de que a ciência é invenção
do Ocidente, pois este sabe pensar. Dessa forma, acontece a dominação na construção do
conhecimento, por parte do colonizador, que se faz legítimo autor da perspectiva normativa
de produção do saber único e válido.

1 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap1
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Consoante a Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), o conceito de colonialidade


pode ser entendido como a ideia de que a raça e o racismo são os princípios norteadores
para acúmulo do capital em escala mundial. Nesse sentindo, a colonialidade do poder
não se restringe apenas ao controle do trabalho, mas ao controle do Estado e também à
produção do conhecimento. Dentro dessa perspectiva, no século XVI ocorreu a formulação
do eurocentrismo, ou seja, a dominação da produção do conhecimento estava na Europa e
qualquer outra forma era considerada inválida e/ou atrasada em relação ao conhecimento
europeu. Por isso, o colonialismo traz consigo até os dias de hoje uma visão de que o branco
europeu é dominante na produção do conhecimento acima de qualquer outra nação.
Nas palavras de Gonçalves e Feitosa (2019), quando um determinado conhecimento é
considerado legítimo acima de outros, surge a “colonialidade do saber”.
Assim, a colonialidade do saber subalterniza qualquer cultura ou conhecimento
produzido fora do território europeu e essa imposição de inferioridade atinge populações
indígenas, povos africanos, mulçumanos e judeus. Esse processo enganoso de dominação
do conhecimento europeu trouxe, nas palavras de Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016), um
processo de dissimulação, esquecimento e silenciamento de outras formas de conhecimento
que impulsionavam outros povos e sociedades.
O domínio inquestionável do colonialismo pode ser observado, principalmente,
sobre os corpos negros. No livro Memórias da Plantação, Grada Kilomba (2019) analisa a
normalidade do racismo, evidenciando o trauma coletivo por ele provocado. A autora
elabora a metáfora da máscara, antigo instrumento punitivo que ela define como “composto
por um pedaço de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a
língua e o maxilar e fixado por detrás da cabeça por duas cordas, uma em torno do queixo
e outra em torno do nariz e testa” (KILOMBA, 2019, p. 33). Essa máscara continua sendo
utilizada metaforicamente para silenciar a intelectualidade negra. O racismo é algo presente
na estrutura do Brasil, quase sempre disfarçado, dando a entender que o sujeito branco é
superior ao negro e que esse posto de superioridade jamais pode ser perdido. Nesse sentido,
a máscara pode ser considerada como a tentativa de silenciar os pensadores negros, a fim de
manter a dominação intelectual branca europeia acadêmica.
Nesse contexto, o capítulo busca responder à seguinte questão: quais as contribuições
de Guerreiro Ramos, intelectual negro, nascido em Santo Amaro da Bahia, para o campo do
conhecimento em Administração Pública no Brasil? Para isso, utilizou-se como ferramenta
metodológica uma revisão de literatura a partir de artigos, teses, livros e matérias relacionadas
ao objeto de estudo.

8
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

A partir das contribuições de Guerreiro Ramos, será analisado o perigo do apagamento


dos conhecimentos produzidos pelo autor devido a sua condição de homem preto, bem como
por viver em um país que se ergue sob a colonialidade do saber, que parte do pressuposto de
que o conhecimento válido é apenas o produzido na Europa, e outros conhecimentos não-
europeus são ignorados por conta de sua cultura. Gonçalves e Feitosa (2019) denominam
esse fato como “epistemicídio”, que se traduz na “morte do conhecimento” de outras nações,
através da dominação epistemológica europeia.
Neste contexto, o apagamento dos conhecimentos pode ser definido por Figueiredo
e Grosfoguel (2007), como “política do esquecimento”, que faz com que autores negros sejam
vítimas de um isolamento intelectual quando este for comprometido com mudanças sociais,
com combate às desigualdades raciais e, consequentemente, ao racismo. O Resultado disso
é ver a rara presença de autores negros nas bibliografias dos cursos de graduação no Brasil,
fazendo com que as contribuições desses autores sejam, muitas vezes, desconhecidas no
mundo acadêmico (FIGUEIREDO; GROSFOGUEL, 2007).
Este capítulo está dividido em cinco seções: a primeira é constituída pela introdução.
Na segunda seção, será analisada a trajetória de Guerreiro desde o seu nascimento, o início
dos seus estudos, seus primeiros trabalhos científicos escritos, o início da sua carreira
profissional, a sua presença em instituições públicas brasileiras e suas dificuldades, em
consequência de viver em uma sociedade racista, bem como as opressões enfrentadas
pelo pensador, pelo fato de não se calar diante das imposições da sociedade. Na terceira
seção, será resgatado o pensamento de Guerreiro Ramos sobre as questões raciais no Brasil,
abordando suas primeiras obras e suas contribuições para a causa no Teatro Experimental do
Negro (TEN) - órgão norteador da militância negra de Guerreiro. Serão abordadas também
suas críticas sobre a produção do conhecimento europeu e o impacto que causam sobre
os trabalhos acadêmicos brasileiros. Na quarta seção, serão apresentadas as contribuições
de Guerreiro Ramos para o campo científico da administração pública e, por fim, serão
apresentadas as considerações finais.

A TRAJETÓRIA DO GUERREIRO: DE SANTO AMARO À UNIVERSITY OF SOUTHERN


CALIFORNIA, NOS ESTADOS UNIDOS

Alberto Guerreiro Ramos foi um poeta, filósofo, sociólogo, administrador e bacharel


em Direito. Sempre se interessou em propor a busca incansável pela constituição de um ser
humano pensante, ciente de seus valores e idealizador de melhorias, a fim de alcançar uma
sociedade mais justa (SCHMITZ; PAIXÃO, MELLER; MORETTO, 2015).

9
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Guerreiro Ramos nasceu em Santo Amaro da Purificação, em 13 de setembro de


1915, e era filho de Vítor Juvenal Ramos e de Romana Guerreiro Ramos. Ainda muito jovem
foi morar em Salvador com sua família e, em função das poucas condições financeiras que
possuía, começou a trabalhar em uma farmácia com apenas 11 anos, na função de lavador
de frascos (AZEVEDO, 2016; BRITO; LEITE; FERREIRA, 2016). Conforme Maio (1996), as
dificuldades financeiras de Guerreiro se acentuaram após a morte de seu pai, isso fez com
que sua mãe começasse a trabalhar como lavadeira para famílias da elite baiana.
Segundo explica Soares (1994), mesmo sendo pobre, ainda em Salvador, Guerreiro
Ramos construiu uma pequena biblioteca particular e iniciou sua produção literária antes
mesmo de se formar. Além disso, assinou alguns periódicos, dentre eles destacam-se as
revistas francesas Esprit e Ordre Nouveau. Residiu ali até os 24 anos de idade, quando partiu
definitivamente para o Rio de Janeiro, em 1939. Esse fato se deu por ter sido auxiliado por
meio de uma bolsa de estudos cedida pelo governo da Bahia, e assim, foi em busca de
concretizar seu sonho de ser poeta.
Segundo as palavras de Azevêdo (2006), Guerreiro Ramos desde a infância levou
muito a sério a sua formação, por isso, junto a sua educação formal no ginásio da Bahia,
recebeu orientação de um Padre chamado Dom Béda Keckeisen, que foi, durante sua
juventude, uma espécie de mentor. Com 14 anos de idade, Guerreiro lecionava matemática
para seus colegas mais abastados e, com o dinheiro que ganhava, comprava livros (BRITO;
LEITE; FERREIRA, 2016).
No Rio de Janeiro, Guerreiro se formou em Ciências Sociais pela Faculdade Nacional
de Filosofia (FNFi), que foi fundada pelo presidente Getúlio Vargas em 4 de abril de 1939.
Um ano depois, se graduou em Direito pela mesma universidade, graduação que havia
sido iniciada ainda em Salvador (SCHMITZ; PAIXÃO; MELLER; MORETTO, 2015). Durante
seu período como acadêmico na FNFi, por meio de seus escritos literários, já podia ser
observada a grande preocupação de Guerreiro acerca da abordagem apropriada ao estudo
da realidade brasileira. Nesse período, publicou um conjunto de sete textos sobre a literatura
latino-americana na revista mineira Cultura Política, que era dirigida por Almir de Andrade
(AZEVÊDO, 2006).
Assim que se graduou, Ramos foi indicado para substituir professores de Ciência
Política e Sociologia. Porém, o diretor San Tiago Dantas não quis admiti-lo, pois o acusou
de colaborar com o movimento integralista, mesmo não fazendo mais parte dele. Passou
um ano desempregado, sendo auxiliado financeiramente por terceiros, até que San Tiago

10
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Dantas o indicou para lecionar em um curso do Departamento Nacional da Criança (DNC).


Diante de vários elogios recebidos no curso, em 1943 foi nomeado servidor temporário do
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), onde permaneceu por seis anos
dedicando-se a estudos sociológicos sobre a puericultura, mortalidade infantil, medicina
popular e administração (SOARES, 2006; MAIO, 2015).
Segundo Brito; Leite e Ferreira (2016), o economista, político e professor Rômulo
Almeida sempre teve admiração pelos escritos de Guerreiro Ramos, principalmente
os produzidos quando era jovem e que tinham forte orientação cristã. Por esse e outros
motivos, no início dos anos 1950, Guerreiro Ramos passou a se envolver com a questão
política e administrativa, indo trabalhar junto a Rômulo Almeida na Casa Civil da Presidência
da República, quando passou a trazer uma perspectiva sociológica para suas pesquisas
(AZEVÊDO, 2006). Soares (2006) afirma que Guerreiro possuía conhecimentos filosóficos
consistentes, visto que era um leitor influenciado pelo conhecimento filosófico a partir de
autores como: Platão, Aristóteles, Heidegger e Jaspers.
A presença de Guerreiro Ramos nas Instituições Públicas começou desde muito
jovem. Nos anos 1930, com apenas 18 anos, passou a atuar como auxiliar técnico no
Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP) do Estado da Bahia. Na diretoria,
servia a Landulpho Alves, que era interventor do estado no período que compreende os
anos de 1938 a 1942 (AZEVÊDO, 2006). Segundo Costa (2015), nos anos 1940, Guerreiro
distanciou-se da sua intenção de ser poeta para, assim, dar continuidade às suas reflexões
nas Ciências Sociais. Atuou em alguns órgãos do governo, como o Departamento Nacional
da Criança (DNC) e o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), também
atuou em algumas instituições não estatais e teve destacada atuação no TEN.
A partir da sua atuação no DASP, na função de Técnico Administrativo, Guerreiro
começou a lançar propostas para ação no que diz respeito à Administração Pública nacional,
dando origem a um dos seus escritos principais: “Administração e teoria das organizações”
(COSTA, 2015). Outro marco importante, que contribuiu para o entendimento do pensador
sobre o governo e o Brasil, foi o de seus discursos redigidos na Casa Civil da Presidência
da República, em 1951. Sua função consistia em elaborar projetos, redigir discursos e
mensagens presidenciais (BRITO; LEITE; FERREIRA, 2016). Em 1952, atuou como professor
na Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, onde lecionava para o curso de graduação
em Administração Pública. Na mesma época, foi criada a Escola Brasileira de Administração
Pública (EBAP), onde Guerreiro passou a ser professor de sociologia, ele mesmo que

11
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

ministrou a primeira aula da Instituição. Participou também da criação do Instituto Brasileiro


de Economia, Sociologia e Política (IBESP) (SOARES, 2006).
De acordo com as palavras de Azevêdo (2006), o IBESP, constituído em 1953, passou
a ser o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), em 1955, órgão que surgiu durante
o Governo de Café Filho e era vinculado ao Ministério da Educação. Era nesse espaço
intelectual que o sociólogo compartilhava do convívio com intelectuais como Álvaro Vieira
Pinto, Ignácio Rangel, Hélio Jaguaribe, entre outros.
Conforme Brito, Leite e Ferreira (2016), Guerreiro filiou-se ao Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB) em 1961 e, em 1962, candidatou-se ao cargo de deputado federal. A
campanha de Guerreiro para se tornar deputado federal não contou com muitos recursos.
O candidato foi auxiliado principalmente por seus alunos e, com eles, saía às ruas do Rio de
Janeiro em busca de votos. Porém, com problemas enfrentados durante sua campanha,
como contrapropagandas e sabotagens, só conseguiu votos suficientes para ser eleito
suplente de Leonel Brizola e, em função da licença concedida a este deputado, Ramos
assumiu o cargo entre agosto de 1963 e abril de 1964 (FREIRE, 2015).
Algumas das propostas de Guerreiro, que eram pautadas em sua campanha eleitoral,
estavam ligadas às demandas que já eram de sua preocupação, dentre elas: a luta pela
maior participação dos trabalhadores na programação e nos resultados do desenvolvimento
econômico; a necessidade de uma reforma agrária, emancipação econômica, social e política
dos camponeses e contra a prepotência e a usura dos latifundiários; a nacionalização imediata
das concessionárias estrangeiras de serviço público; a luta por moradia digna ao alcance de
todos; pelo ensino gratuito em todos os níveis; contra a corrupção e a incompetência, entre
outras (AZEVÊDO, 2006).
Nas palavras de Pizza Júnior (1997) apud Freire (2015), Guerreiro Ramos subiu 71
vezes à tribuna e apresentou cinco projetos de lei, que tratavam: do licenciamento de
patentes; do exercício da profissão de técnico em administração; das questões relativas às
carreiras de funcionários do Poder Executivo. Outros dois projetos, sendo um deles o projeto
de emenda constitucional para tornar obrigatória a apresentação de um plano quinquenal
pelo Presidente da República e o outro, um projeto a respeito de questões relativas aos juros
de instituições bancárias oficiais.
Apesar de toda pujança demonstrada, a trajetória de Guerreiro Ramos como deputado
federal foi interrompida em 1964, exatamente no dia 09 de abril, quando o Comando
Supremo da Revolução, por meio do Ato Institucional n. 4, resolveu suspender, pelo prazo

12
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

de dez anos, os direitos políticos de dezenas de cidadãos brasileiros. Ramos foi abrigado
na Fundação Getúlio Vargas (FGV) por um tempo para depois deixar o país rumo aos EUA
(FREIRE, 2015). Segundo Brito; Leite e Ferreira (2016), em 1966, Guerreiro buscou exílio nos
Estados Unidos da América (EUA) e continuou desenvolvendo atividades intelectuais e
acadêmicas, atuando como professor na Universidade do Sul da Califórnia, se tornando full
professor do programa de doutorado em administração pública.
As sucessivas opressões que Guerreiro Ramos sofreu no Brasil não estavam ligadas
apenas a sua personalidade marcante e seu alto poder crítico, mas também ao fato de ele
ser um homem preto. Em sua ficha no Conselho de Segurança Nacional (CSN), foi grafado o
seguinte insulto: “Mulato, metido a sociólogo”. Além disso, foi acusado de contribuir com o
movimento integralista na juventude, por isso não foi nomeado professor da Faculdade de
Filosofia. Em declaração, Guerreiro disse que se sentia feliz nos Estados Unidos e que o Brasil
não lhe deu o que merecia, mas julgava-se um homem de sorte (SOARES, 2006).
Depois de seu exílio, Guerreiro Ramos não voltou a morar no Brasil, porém, após a
anistia, voltou a ensinar como professor visitante nos cursos da Universidade Federal de
Santa Catarina. Infelizmente, Guerreiro Ramos morreu em 6 abril de 1982, vítima de câncer,
deixando em aberto algumas das ideias que foram escritas no seu último livro (COSTA, 2015;
AZEVÊDO, 2006).

PENSADOR CRÍTICO DECOLONIAL

Em 1930, a questão do negro tornou-se perceptível em vários pensamentos distintos,


o fato de Guerreiro ter vivido nessa época fez com que isso contribuísse significativamente
nos seus escritos sobre relações raciais no Brasil (AZEVÊDO, 2006; SCHMITZ; PAIXÃO; MELLER;
MORETTO, 2015). Segundo Soares (2006), os trabalhos produzidos pelo autor entre 1948 e
1955, a respeito das relações de raça, tiveram forte influência da sua condição de homem
preto, pois tinha sensibilidade pelo tema e era desejoso por uma mudança a respeito do
preconceito de cor no país. De acordo com Maio (2014), Guerreiro Ramos, desde sua atuação
no DNC e DASP, dedicou-se sociologicamente a estudar o negro como forma de trazer uma
mudança para o seu tratamento, que até então era apenas objeto de estudo acadêmico. O
TEN, há mais de 70 anos, se ocupava do movimento necessário, apontado por Kilomba (2019),
por elevar o negro da condição de Outro(a)/para Eu, de objeto a sujeito do conhecimento.
Guerreiro Ramos, na sua perspectiva da redução sociológica, tinha como fundamento
questionar criticamente a perspectiva ocidental de produção do conhecimento, imposta

13
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

como mediadora universal da vida humana generalizada de acordo com o modelo europeu de
pensar e produzir conhecimento sobre o mundo. A violência da imposição de tal perspectiva
era apontada por Guerreiro Ramos em linha com outros pensadores: Abdias Nascimento,
Aimé Césaire, Albert Memmi, Frantz Fanon, W. E. B. Du Bois, dentre outros. O autor partiu
da compreensão na qual o sujeito deve admitir-se negro e isso se deu em consequência do
seu trabalho junto ao TEN, cujo cerne se dava em fazer do negro protagonista da necessária
transformação social rumo a um Brasil democrático e desenvolvido econômica, social e
culturalmente. Nessa perspectiva, Guerreiro Ramos antecipou em décadas o paradigma da
afrocentricidade, a teoria crítica racial, os estudos sobre a branquitude e a decolonialidade
do conhecimento (NASCIMENTO, 2016).
O TEN foi criado em 1944 por Abdias do Nascimento, um de seus objetivos era mudar
a forma como a sociedade enxergava o negro no Brasil. Além de ter formado os primeiros
atores dramáticos negros, e os ter levado ao teatro brasileiro, o TEN tinha o objetivo de expor
as formas de racismo arraigadas na estrutura social, contribuindo de maneira significativa
para o desenvolvimento da cultura brasileira e propondo um novo caminho para o futuro
do negro no país (NASCIMENTO, 2016). Em um dos encontros com Abdias, o sociólogo tema
deste trabalho não demonstrou interesse em contribuir com teatro no início de sua criação,
mas deixou claro que a partir daquele momento surgiu uma curiosidade pelo movimento
e começou a acompanhá-lo (RAMOS, 1950). Em 1949, com o TEN, foi criado o Instituto
Nacional do Negro (INN) e o Museu do Negro, foi quando se deu a participação de Guerreiro
Ramos no teatro (SOARES, 2006). A experiência com o TEN contribuiu para fundamentar o
desenvolvimento da abordagem sociológica de Ramos (NASCIMENTO, 2016).
Para Guerreiro, o TEN era a única instituição brasileira empenhada em trazer uma
nova visão ao negro a respeito do seu papel na sociedade, isso através da reeducação
econômica, social e também da criação de mecanismos capazes de integrar os membros
das classes sociais inferiores, passando eles a almejar um status social mais elevado, como as
classes dominantes do país (RAMOS, 1950). Guerreiro considerava o teatro uma importante
ferramenta de estudo sobre as relações raciais no Brasil, isso à medida que trazia o negro
como personagem principal para uma transformação social, contribuindo para a criação
de um país mais democrático (NASCIMENTO, 2016). Nas palavras de Azevêdo (2006), essa
atuação fez com que Guerreiro refletisse sobre a importância de haver um pensamento
negro no Brasil.
O intelectual Guerreiro Ramos sempre levantou críticas a respeito da forma como o
negro era estudado no Brasil e como os estudos sociológicos acadêmicos tinham indícios de

14
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

alienação, sempre desenvolvidos a partir do contexto europeu e norte-americano, deixando


de lado as peculiaridades brasileiras, por isso ele defendia o estudo do negro de forma
regional (MAIO, 2015). A intelectualidade frutífera de Guerreiro o fez publicar diversas obras,
conforme se nota no Quadro 1:

Quadro 1 - Obras de Guerreiro Ramos


Título da Obra Ano
O Drama de ser dois 1937
Introdução à cultura 1939
Orpheu negro 1948
Notícias sobre as pesquisas e os estudos sociológicos no Brasil 1949
Introdução ao histórico da organização racional do trabalho 1949
Sociologia do orçamento familiar 1950
Um herói da negritude 1952
A sociologia industrial 1952
O processo da sociologia no Brasil 1953
O negro desde dentro 1954
O problema do negro na sociologia brasileira 1954
Patologia social do “branco” brasileiro 1955
Sociologia de la mortalidad infantil 1955
Introdução crítica à sociologia brasileira 1957
A redução sociológica 1958
O problema nacional do Brasil 1960
A crise do poder no Brasil 1961
Mito e verdade da revolução brasileira 1963
Administração e estratégia do desenvolvimento 1966
A nova ciência das organizações 1981
Administração e contexto Brasileiro 1983
Sociologia e a teoria das organizações 1983
Fonte: O autor (2020).

A criticidade de Guerreiro Ramos, voltada aos estudos da Administração, é anterior


à emergência dos chamados Estudos Críticos em Administração (ECA), que se consolidam
na década de 1990. O objetivo desse movimento era elevar o potencial do pensamento
humano ao ponto de refletir acerca das práticas autoritárias utilizadas nas organizações que,
ao longo dos anos, passaram a ser consideradas naturais. Nessa perspectiva, os ECA visavam
nutrir os estudos organizacionais de um senso de autonomia e responsabilidade, para que

15
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

os olhares pudessem ser analisados de forma crítica sobre as decisões tomadas dentro do
ambiente organizacional (DAVEL; ALCADIPANI, 2003).
Consoante a Rodrigues e Carrieri (2001), os ECA no Brasil seguiram sob influência
do pensamento anglo-saxão e também de estudiosos norte-americanos, porém, ao longo
dos anos, essas influências têm perdido espaço, principalmente por críticas levantadas a
respeito da qualidade desses estudos, uma vez que o contexto norte-americano é diferente
do brasileiro. Davel e Alcadipani (2003) destacam que os estudos críticos no Brasil já existiam
muito antes do advento dos ECA, em contexto estadunidense e anglo-saxão, pois já havia
aqui produção intelectual crítica de autores como Guerreiro Ramos, Fernando Prestes Mota
e Maurício Tragtenberg. Guerreiro Ramos lutava pela criação de uma redução sociológica e,
dentro desse eixo, publicou duas obras: “Administração e estratégia de desenvolvimento”
(1966) e “A nova ciência das organizações” (1981). O período de 15 anos ocorrido entre uma
obra e outra foi considerado por Guerreiro um processo de amadurecimento intelectual
sobre suas concepções a respeito da administração (SOUZA; ORNELAS, 2015).
Ainda sobre a influência de autores brasileiros nos estudos críticos, Davel e Alcadipani
(2003) destacam o uso de referências brasileiras para a produção acadêmica, indicando que
existe um pensamento crítico fundamentado por autores brasileiros desde os anos de 1960.
Porém, a utilização destas referências está longe do ideal, uma vez que ainda são pouco
aproveitadas nos estudos acadêmicos brasileiros e, normalmente, são usadas de maneira
idealizadora, na tentativa de definir a administração como uma área de estudo exato. No
entanto, trata-se de uma esfera que deve ser analisada de maneira sistemática, envolvendo
conceitos de diferentes ciências.
É notável o interesse de Guerreiro pelos estudos críticos e suas contribuições para
os campos da administração e da administração pública. Porém, segundo Santos, Souza e
Braga (2014), durante muito tempo essa contribuição intelectual de Guerreiro Ramos foi
esquecida no Brasil. Para Silva (2015), a presença do pensamento do intelectual nos Projetos
Pedagógicos dos Cursos (PPC) voltados à gestão pública é bastante tímida. Desta forma, quais
seriam os motivos pelos quais Guerreiro é tão pouco conhecido nos cursos de Administração
e Administração Pública no Brasil? Conforme Paes (2007), o sociólogo costuma ser apontado
como um autor temporal, ou seja, os seus pensamentos não são capazes de tornar claro
questões contemporâneas pelo fato de suas análises estarem ligadas a momentos históricos.
Por outro lado, Oliveira (1995) afirma que suas concepções continuam atuais, principalmente
as que têm relação com críticas sobre a influência da sociologia europeia e norte-americana
nos estudos brasileiros.

16
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Outras possibilidades acerca da ausência de Guerreiro e de outros intelectuais negros


nas universidades são levantadas por Figueiredo e Grosfoguel (2007). Esses autores apontam
três possíveis motivos, sendo eles: a geopolítica do conhecimento que estaria ligada às
relações de poder baseadas na localização, com destaque para as políticas eurocêntricas de
produção do conhecimento; o funcionamento da cultura acadêmica e um terceiro ponto
que eles chamam de isolamento do intelectual negro, que fica evidente através do racismo
presente na sociedade.
Almeida (2020) defende que resgatar as ideias de Guerreiro Ramos permite
enxergar de forma explícita os desafios nacionais enfrentados até hoje, na mesma
oportunidade destaca três pontos importantes que também serão abordados no decorrer
deste trabalho: o primeiro é o conceito de redução sociológica, que deve ser tratado
como condição epistemológica do desenvolvimento brasileiro, deixando de lado a prática
de teorias sociológicas importadas e focando no desenvolvimento de um pensamento
baseado nos desafios do país; o segundo refere-se à abordagem que Guerreiro deu à
questão racial, destacando o racismo como uma “patologia social do branco brasileiro”; o
terceiro é uma exaltação à relevância e atualidade das contribuições de Guerreiro Ramos
para a administração pública brasileira.

CONTRIBUIÇÕES DO GUERREIRO PARA O CAMPO DO CONHECIMENTO EM


ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL

A dedicação de Guerreiro Ramos ao campo das públicas se deu a partir da sua


atuação no DASP, em 1943, quando foi nomeado servidor. O DASP foi um laboratório
que abriu o pensamento de Guerreiro acerca dos problemas sociais no Brasil, por isso ele
começou a se preocupar com questões como:

[...] a efetivação da administração, a transplantação de ideias, a função


pública e a do intelectual, a relação entre Estado e sociedade, o público e o
privado, o patrimonialismo, a relação entre racionalidade e irracionalidade,
modernização e tradicionalismo, o caráter do Estado, as formas e os arranjos
entre as forças políticas, a conformação e dinâmica das classes sociais,
a cultura política e suas implicações, os entraves ao desenvolvimento,
o desenvolvimento como racionalização, modernização como tarefa
nacional e o papel do Estado nessa empreitada – entre outras colaterais.
(SILVA, 2015, p. 5).

Dentro dessa perspectiva, Guerreiro começou a pensar em uma maneira de incorporar


a Sociologia como forma de resolver os problemas sociais existentes. Para ele, à medida que

17
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

há um desenvolvimento econômico e social no país, há a necessidade de deixar de utilizar


técnicas sociológicas importadas no acompanhamento de tais mudanças, passando a ter
um olhar mais regional e crítico. Por esse motivo, Guerreiro Ramos criou a teoria de redução
sociológica (PAES, 2007). A redução sociológica de Guerreiro Ramos visa restringir de forma
crítica a importação de teorias sociológicas, que eram inseridas no contexto brasileiro, como
se não existissem peculiaridades e anseios próprios.
Guerreiro Ramos lamentava o fato de poucos sociólogos escolherem a área
administrativa como campo de estudo, pois considerava a Administração um campo que
abrangia a sociologia espacial e a sociologia administrativa, devendo ser analisada no âmbito
histórico e social e ainda a considerava um “[...] complexo de elementos que mantêm relações
entre si, resultante e condicionante da ação ou omissão de diferentes pessoas, escalonadas
em diferentes níveis de decisão, no desempenho de funções que limitam e orientam
atividades humanas associadas” (SANTOS; SOUZA E BRAGA, 2014, p. 465). Esse conjunto de
elementos visa a alcançar um objetivo estabelecido que jamais poderia ser atingido de forma
individual. Segundo Silva (2015), a relação entre sociedade e desenvolvimento proposta por
Guerreiro iria além do desenvolvimento do país, estava diretamente ligada à evolução do
indivíduo, para que ele pudesse agir de forma autônoma e crítica. Desta forma, o indivíduo
passaria a enxergar a realidade em que vive sob uma perspectiva da coletividade.
De acordo com Capelari, Afonso e Gonçalves (2014), essa consciência autônoma
resultou no surgimento de um pensamento fundamentado nacionalmente, pois traz
consigo a compreensão local do ser humano. Desta forma, a sociedade contribui de
maneira significativa para a construção de uma transformação social, ao passo que começa
a enxergar de forma crítica os condicionamentos que a própria sociedade impõe. A visão
crítica de se posicionar em relação aos condicionamentos Guerreiro definiu como a atitude
parentética que proporcionaria a criação de grupos sociais mais próximos da realização das
necessidades humanas. O homem parentético proposto por Guerreiro era enraizado na
prática da racionalidade substantiva, esta, por sua vez, estava embasada em duas visões: a
individual, baseada na autorrealização e a de grupo, que se relaciona com o entendimento a
respeito da contribuição que o ser humano pode trazer para a realização dos anseios sociais.
Deste modo, o homem com atitude parentética contribui para a melhoria do padrão de vida
pessoal e da sociedade em que vive, assumindo, assim, posição política e social, enxergando
a realidade em que vive sob uma perspectiva de coletividade (CORRÊA; PASSADOR, 2019).
Soares (2006) argumenta que a atitude parentética é libertadora para o conformismo do ser
humano acerca dos padrões impostos pelas organizações sociais.

18
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Para Ramos (1984), o homem com atitude parentética não pode deixar de ser
participante da organização, mas também não pode ser psicologicamente comparado a
outros indivíduos reativos ou operacionais, uma vez que possui capacidade crítica elevada
em comparação aos outros, pois está sempre em busca de autonomia. Para o intelectual, a
crítica levantada pelo homem parentético “[...]suspende ou coloca entre parênteses a crença
no mundo comum, permitindo ao indivíduo alcançar um nível de pensamento conceitual e,
portanto, de liberdade” (RAMOS, 1984, p. 7). Tendo esse pensamento, a visão crítica abordada
pelo homem parentético possibilitaria que ele enxergasse a realidade social de forma
a excluir-se tanto do ambiente interno, quanto do externo, a fim de colocar a sociedade
entre parênteses e avaliá-la apenas como espectador sem que houvesse interferências dos
parâmetros preestabelecidos.
Guerreiro Ramos incentivava a prática da racionalidade substantiva nas organizações,
por meio da atitude parentética, pois acreditava que as teorias administrativas não
conseguiam mais legitimar a prática da racionalidade funcional nas organizações que
consistem em superar a escassez dos bens materiais e serviços tidos como básicos, uma vez
que o homem contemporâneo necessita de muito além de simples serviços de sobrevivência,
buscando também autorrealização. Nas palavras de Ramos (1989, p. 28), “pelo exercício da
razão e vivendo de acordo com os imperativos éticos desta razão, o homem transcende a
condição de um ser puramente natural e socialmente determinado e se transforma num
ator político”.
Por meio da abordagem substantiva, Guerreiro Ramos buscava combater às opressões
impostas nas organizações, a fim de que o homem buscasse a satisfação pessoal, além das
suas necessidades básicas. Segundo o autor:

Uma abordagem substantiva da teoria organizacional preocupa-


se sistematicamente, com os meios de eliminação de compulsões
desnecessárias agindo sobre as atividades humanas nas organizações
econômicas e nos sistemas sociais em geral. Em outras palavras, tal
abordagem reconhece que, por sua própria natureza, o comportamento
administrativo constitui atividade humana submetida a compulsões
operacionais. Todavia, essa abordagem, está interessada em meios viáveis e
redução, e mesmo de eliminação, de descontentamentos e com o aumento
da satisfação pessoal dos membros das organizações econômicas (RAMOS,
1989, p. 135)

Conforme Santos, Souza e Braga (2014), Guerreiro critica os modelos de administração


desenvolvidos por Taylor e Herbert Simon, sendo estes baseados nos anseios de mercado

19
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

e na racionalidade instrumental. Para o pensador, essa abordagem tem causado, na


sociedade moderna, problemas que interferem diretamente na qualidade de vida, gerando
insegurança nos indivíduos e fragilidade organizacional, pois ela é produto do egocentrismo
do mercado. Por outro lado, a racionalidade substantiva reforça que o homem tem diferentes
necessidades e, para supri-las, são necessários diferentes tipos de cenários sociais, pois o
sistema de mercado não atende a todas as necessidades humanas.
Ao propor uma racionalidade substantiva nas organizações, Guerreiro deseja inserir
dentro do contexto da administração pública uma democracia participativa, criando um
sistema paraeconômico, empenhado em desenvolver as atividades econômicas baseadas
na criatividade do próprio indivíduo, consideradas atividades substantivas, que são
resultado de pequenas atividades não remuneradas. São exemplos: unidades domésticas;
atividades artísticas, culturais e sociais não remuneradas; pequenas unidades rurais de
produção e consumo próprio; atividades socioeconômicas, do terceiro setor, entre outras.
Nessa perspectiva, a administração pública entraria em processo de modernização social,
voltando-se aos anseios locais dos indivíduos (CAPELARI; AFONSO; GONÇALVES, 2014).
Na visão de Corrêa e Passador (2019, p. 71), sob o pensamento de Guerreiro Ramos, a
administração pública brasileira ainda necessita da “[...] percepção de suas próprias
realidades, contextos e necessidades, para que se busque compreender por lentes
teóricas suas diversas perspectivas e, assim, as incremente com a finalidade de torná-las
mais ajustadas ao mundo observado”.
Reforçando esta ideia, Oliveira e Ferreira (2007) demonstram que, no início da
década de 1960, Guerreiro Ramos já trazia importantes contribuições para a administração
pública tanto no ensino, quanto na prática, objetivando fazer com que sua prática se
tornasse mais do que a simples importação e aplicação de conceitos e ainda destacava
os questionamentos a respeito do caráter passivo-assimilativo, característico da produção
acadêmica brasileira. Portanto, Guerreiro contribuiu substantivamente para que a
administração pública brasileira correspondesse às demandas públicas nacionais.
Outra proposta de Guerreiro na esfera da administração pública foi a gestão racional
dos recursos e a organização administrativo-estatal. Segundo ele, o resultado desse
gerenciamento racional seria uma ascensão histórico-social, e este, por sua vez:

[...] assume algumas peculiaridades na esfera da administração pública. Aí


ela é uma questão eminentemente sociológica, antes de ser de qualquer
natureza. A racionalização na esfera da administração pública não se
converte em mera aplicação do saber técnico na organização de atividades.

20
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

É, principalmente, um processo de transformação do aparato estatal, que


se opera a custa da diminuição (e até anulação) da eficácia da tradição, ou
melhor, que implica a substituição de “folkways” por “technicways. (RAMOS,
1950, p. 86-87).

Guerreiro Ramos apontava alguns obstáculos, hoje ainda enfrentados pela


Administração Pública brasileira, acerca da implantação da racionalização na esfera pública.
Para ele, o país se confronta com sua formação histórica baseada no patrimonialismo e
aponta que, mesmo o Brasil possuindo um moderno sistema burocrático, fica impedido de
evoluir devido à pressão exercida pelo privatismo e familiarismo, operantes no modelo de
administração patrimonialista. (RAMOS, 1950).
Para Guerreiro Ramos, a burocracia é entendida como resultado do contexto social
geral e seu desaparecimento é impensável, pois a sociedade em si precisa do controle
da prestação de serviços exercida pela burocracia, assim como os resquícios da presença
da impessoalidade nas relações humanas, exigida dentro das organizações públicas
burocráticas. Guerreiro entende que a burocracia, se usada de maneira correta, pode se
tornar uma ferramenta poderosa, podendo andar junto ao desenvolvimento econômico-
social (SOARES, 2006).
Guerreiro Ramos destaca a importância do DASP para a implementação da
racionalização na administração federal, que posteriormente se estendeu aos estados
e municípios. O sociólogo acreditava que a racionalização na administração pública é
uma estrutura social adaptativa, pois a administração não possui objetivos e finalidades
estabelecidas definitivamente, podendo mudar a partir de fatores externos, porém destaca
que esses fatores devem estar sujeitos a limites, que devem ser impostos dentro das
organizações (SOARES, 2006).
É importante destacar as teorias N e P criadas por Guerreiro Ramos. Segundo Zwick
et al. (2012), a teoria N fundamenta-se no domínio da estrutura sobre o indivíduo e a teoria
P baseia-se na ação do indivíduo sobre a estrutura, buscando a sua emancipação. Com
base nisso observa-se que as teorias N e P se relacionam com as visões de racionalidade
instrumental e substantiva, respectivamente. Tais teorias “[...]podem ser utilizadas como
uma poderosa ferramenta analítica dos caminhos seguidos pelos autores que nortearam os
rumos da administração pública contemporânea” (ZWICK et al. 2012, p. 290). Isso se reafirma
a partir das informações apresentadas no Quadro 2:

21
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Quadro 2 – Comparação entre racionalidade instrumental e substantiva


Instrumental Substantiva
I. Os critérios para ordenação das ações humanas
I. Os critérios para ordenação das ações humanas são são racionais, isto é, evidentes por si mesmos ao
dados socialmente. senso comum individual, independentemente de
qualquer processo particular de socialização.

II. Uma condição fundamental da ordem social é que a II. Uma condição fundamental da ordem social é a
economia se transforme num sistema autorregulado. regulamentação política da economia.

III. O estudo científico das associações humanas


III. O estudo científico das associações humanas é
é normativo: a dicotomia entre valores e fatos é
livre do conceito de valor: há uma dicotomia entre
falsa, na prática, e, em teoria, tende a produzir uma
valores e fatos.
análise defectiva.
IV. A história torna-se significante para o
IV. O sentido da história pode ser captado pelo homem através do método paradigmático de
conhecimento, que se revela através de uma série de autointerpretação da comunidade organizada.
determinados estados empírico-temporais. Seu sentido não pode ser captado por categorias
serialistas de pensamento.
V. O estudo científico adequado das associações
V. A ciência natural fornece o paradigma teórico para
humanas é um tipo de investigação em si mesmo,
a correta focalização de todos os assuntos e questões
distinto da ciência dos fenômenos naturais, e mais
suscitados pela realidade.
abrangente que esta.
Fonte: Ramos (1984).

Segundo Capelari; Afonso e Gonçalves (2014), quando Guerreiro trata da teoria P,


exemplifica que sociedades em desenvolvimento buscam seus próprios mecanismos de
modernização, uma vez que cada nação tem suas próprias necessidades, isso significa dizer
que não existe um processo de modernização padrão aplicável a todos os países, mas que
cada um tem suas próprias possibilidades de evoluir e se modernizar. Nessa perspectiva, uma
sociedade em modernização com a presença de indivíduos parentéticos estaria embasada
na prática da participação social, desta forma, todo conhecimento teórico produzido estaria
ligado às necessidades locais, fazendo com que os desequilíbrios entre anseios do povo e
estrutura produtiva fossem diminuídos.
Guerreiro pretendia, através das suas análises acerca da administração pública,
mostrar que esta é mais bem aplicada quando inserida no contexto social local e,
para reforçar essa ideia, utiliza-se dos conceitos de Marx Weber acerca dos tipos de
racionalidade. O sociólogo entende que, por meio da racionalidade substantiva, os países
em desenvolvimento deixariam de praticar teorias atrasadas, à medida que se orientariam
no contexto histórico-social em que estão integrados. Assim, “[...] a perspectiva parentética
do cidadão o torna um ‘ser do mundo’ capaz de interpretar, de modo crítico, a realidade
nacional e ajudar na construção do processo de desenvolvimento do país”. (CAPELARI;
AFONSO; GONÇALVES, 2014, p. 116).

22
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise sobre as contribuições


de Alberto Guerreiro Ramos- intelectual preto, nascido na Bahia- acerca do campo do
conhecimento da Administração Pública no Brasil. O pensador enfrentou diversas barreiras
durante sua vida acadêmica e profissional em consequência do racismo, como o perpetrado
pelo CSN, quando foi grafado em um de seus documentos uma frase extremamente racista
sobre Guerreiro, conforme destacado na segunda seção deste artigo.
Guerreiro Ramos construiu uma carreira sólida nos órgãos públicos brasileiros, sempre
com presença marcante e contribuições significativas. No DASP, o pensador permaneceu
durante cinco anos como técnico administrativo e desenvolveu trabalhos extremamente
relevantes sobre puericultura, mortalidade infantil, medicina popular e administração.
Atuou também nos órgãos: Departamento Nacional da Criança, Departamento Estadual de
Imprensa e Propaganda, Escola Brasileira de Administração Pública, Casa Civil da Presidência
da República, participou da criação do Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política,
entre outros. Mesmo com sua participação assídua nos órgãos do governo, observou-se
durante a pesquisa que as referências consultadas apontavam para uma presença ainda
bastante tímida das obras de Guerreiro Ramos nos cursos de administração e administração
pública nas universidades brasileiras.
Os estudos críticos de Guerreiro Ramos no campo do conhecimento em administração
pública começaram desde os anos de 1960. Nesse período, o pensador criticou a forma como
os estudos acadêmicos brasileiros eram desenvolvidos, por conter resquícios de alienação
e vícios da produção do conhecimento eurocêntrico. Guerreiro lutava pela decolonialidade
da produção do conhecimento e propôs a criação de uma teoria sociológica baseada na
observação da realidade regional, denominada pelo autor de redução sociológica. Nessa
perspectiva, todo conhecimento produzido no contexto local seria levado em consideração
para tomada de decisões futuras na área da administração pública.
Tendo esse pensamento, a prática da racionalidade substantiva proposta por
Guerreiro se faz necessária não só no ambiente organizacional, mas também na sociedade
como um todo, pois a busca por uma mudança estrutural deve ser embasada na constância
e em conjunto com toda a sociedade. Por meio da racionalidade substantiva, o sujeito passa
a enxergar de forma crítica as dificuldades que a sociedade enfrenta para se desenvolver,
criando, assim, um pensamento crítico fundamentado a partir das observações acerca da
realidade em que está inserido, sem que haja interferências dos padrões preestabelecidos
pela sociedade.

23
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Este estudo possibilitou uma análise a respeito dos impactos causados pelo
colonialismo e pelo racismo brasileiro na vida do intelectual negro Guerreiro Ramos, cuja
produção científica, extremamente relevante para o campo acadêmico, é pouco lembrada.
Ficando evidente durante a revisão bibliográfica que isso se deu por Guerreiro ser um
homem preto, que não se calava diante da sociedade racista e que ainda operava sob a
colonização do conhecimento.
Nesse sentido, as informações apresentadas neste artigo se tornam relevantes para
toda a sociedade e para a administração pública que, muitas vezes, desconsidera o racismo
em sua teorização e na prática profissional. Além disso, o estudo possibilitou adquirir
conhecimentos sobre racismo estrutural e institucional que antes eram desconhecidos pelo
autor enquanto sujeito, homem branco e cujos conteúdos tampouco foram abordados
durante a graduação. Trazendo, assim, a consciência dos impactos que o racismo e a
colonialidade causam na produção do aprendizado por parte de autores negros, fazendo
com que conhecimentos científicos importantes para a transformação da administração
pública sejam desconsiderados.
Resumidamente, as contribuições de Guerreiro Ramos para a administração pública
identificadas neste artigo foram: o intelectual propôs a incorporação da sociologia na
administração pública, a fim de que ela se voltasse para os anseios do povo; indicou um
novo pensamento para a administração pública, fundamentado a partir das particularidades
nacionais; convocou o administrador público a ser capaz de interpretar, de modo crítico,
a realidade nacional; produziu o conceito de homem parentético embasado na prática da
racionalidade substantiva; denunciou o caráter passivo-assimilativo da produção acadêmica,
que muitas vezes era alienada pela produção acadêmica europeia e estadunidense; propôs
a implantação da racionalização dos recursos na administração pública e reafirmou a
importância da burocracia nas organizações públicas.
Através da análise da importância e contribuições de Guerreiro Ramos para a
administração pública, torna-se preocupante o fato da ausência do autor nos cursos de
graduação em administração pública, pois isso evidencia as consequências do racismo em
forma de epistemicídio nas universidades. O apagamento dos conhecimentos produzidos
por autores negros dentro do ambiente acadêmico é ainda mais preocupante quando estes
dizem respeito ao posicionamento crítico que os administradores públicos terão que ter
dentro das organizações nas quais futuramente irão atuar.

24
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Durante a graduação no curso de administração pública, o autor deste trabalho


somente soube da existência de Guerreiro Ramos em uma disciplina: Teorias da Administração
Pública, ministrada pelo professor que agora é também o coautor deste capítulo. Desta
forma, se destaca a importância de uma maior utilização dos conhecimentos de Guerreiro
no curso, tendo em vista seu esforço em inserir na mentalidade do administrador público
um pensamento voltado para o desenvolvimento nacional. Faz-se necessária, por parte de
toda comunidade acadêmica, a criação de projetos, congressos e eventos a fim de trazer
à memória os conhecimentos produzidos por intelectuais negros e negras e que são de
extrema relevância para a universidade.
Este trabalho limitou-se a apresentar as contribuições de Guerreiro Ramos para a
administração pública em seu contexto de vida, como homem negro militante, deixando,
assim, sugestões para futuras pesquisas referentes ao papel do administrador público,
e dos graduandos nos cursos de administração pública, no enfrentamento ao racismo
e a colonialidade do saber nas universidades públicas brasileiras. Cabe frisar também a
necessidade de uma reação por parte da comunidade acadêmica a respeito das ações a
serem criadas para uma inserção e maior engajamento dos conhecimentos produzidos por
autores negros brasileiros.

REFERÊNCIAS

1. ALMEIDA, S. Guerreiro Ramos ensinou que o nome correto de reformas que só criam
privilégios é entreguismo. Folha de São Paulo. São Paulo, 19 set. 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/silvio-almeida/2020/09/guerreiro-ramos-
ensinou-que-nome-correto-de-reformas-que-so-criam-privilegios-e-entreguismo.
shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwa . Acesso
em: 30 setembro. 2020.

2. AZEVÊDO, A. M. A sociologia antropocêntrica de Alberto Guerreiro Ramos. Tese (Doutorado


em Sociologia Política) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Faculdade Federal
de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.

3. BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e perspectiva negra. Revista


Sociedade e Estado, Belém, v. 31, n. 1, p.15-24, jan./abr. 2016.

4. BRITO, E. O.; LEITE, I. B.; FERREIRA, L. B. A. Uma Trajetória Transdisciplinar: nota


biobibliográfica. Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 18, n. 1, p. 279-310, jun. 2016.

25
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

5. CAPELARI, M. G. M.; AFONSO, Y. B. G. A. D. C. S. S.; GONÇALVES. A. de O. Alberto Guerreiro


Ramos: contribuições da redução sociológica para o campo científico da administração
pública no Brasil. Revista de Administração Mackenzie, São Paulo, v. 15, n. 6, p.98-121,
nov./dez. 2014.

6. CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

7. CORRÊA, V.; PASSADOR, C. S. Um histórico periodizado da administração pública no


Brasil: contexto, teoria, técnica e prática. In: CORRÊA, Victor; PASSADOR, Claudia Souza.
O campo do conhecimento em administração pública no Brasil: uma análise a partir do
olha de Guerreiro Ramos. Brasília: ENAP, 2019.

8. CORRÊA, V.; PASSADOR, C. S. Uma narrativa meta-teórica da administração pública. In:


CORRÊA, V.; PASSADOR, C. S. O campo do conhecimento em administração pública no
Brasil: uma análise a partir do olha de Guerreiro Ramos. Brasília: ENAP, 2019.
9.
10. DAVEL, E.; ALCADIPANI, R. Estudos críticos em administração: a produção científica brasileira
nos anos 1990. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 43, n. 4, p.72-85, out./dez.
2003.

11. FIGUEIREDO, A.; GROSFOGUEL, R. Por que não Guerreiro Ramos? novos desafios a
serem enfrentados pelas universidades públicas brasileiras. Cienc. Cult. São Paulo, v.
59, n. 2, p.438-461, abr./jun. 2007. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252007000200016. Acesso em: 15 set. 2020.

12. FREIRE, A. O social-trabalhismo do deputado federal Guerreiro Ramos. Cadernos Escola


Brasileira de Administração Pública e Empresas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 6, p. 631-638, set,
2015.

13. GONÇALVES, J. S.; FEITOSA, M. A. P. Descolonizar já: pontos em debates sobre o


epistemicídio. Rev. Fil. Tem. Belém, v. 4, n. 2, p.40-47, jul. 2019.

14. KILOMBA, G. A máscara. In: KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios do


racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

15. MAIO, M. C. A questão racial no pensamento de Guerreiro Ramos. In: MAIO, M. C.; SANTOS,
R. V. (org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; CCBB, 1996.

26
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

16. MAIO, M. C. Cor, intelectuais e nação na sociologia de Guerreiro Ramos. Cadernos Escola
Brasileira de Administração Pública e Empresas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 5, p. 605-630, set. 2015.

17. MAIO, M. C. Guerreiro Ramos interpela a UNESCO: ciências sociais, militância e


antirracismo. Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, p. 77-89, jan./abr. 2014.

18. NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3


ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

19. NASCIMENTO, A.; RAMOS, A. G.; RIBEIRO, J.; FISHLOWITS, E. Relações de Raça no Brasil. Rio
de Janeiro: Quilombo, 1950.

20. NASCIMENTO, E. L. Cristo epistêmico. Revista de Antropologia, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1,


p. 81-105, jun. 2016.

21. OLIVEIRA, L. L. A sociologia do Guerreiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.

22. OLIVERA, S. R.; FERREIRA, C. S. Voltando para casa: (re)encontrando Guerreiro Ramos,
Tragtenberg e Prestes Mota. Cadernos Escola Brasileira de Administração Pública e
Empresas. v. 5, n. 1, p.1-9, mar. 2007.

23. PAES, A. P. de P. Guerreiro Ramos: resgatando o pensamento de um sociólogo crítico das


organizações. Revista Organização e Sociedade v. 14, n. 40, p.169-188, janeiro/março,
2007.
24. RAMOS, A. G. Mito e verdade da revolução brasileira. Florianópolis: Insular, 2016.

25. RAMOS, A. G. Modelos de homem e teoria administrativa. Revista de Administração


Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 2, p. 3-12, abr./jun. 1984.

26. RAMOS, A. G. No rumo de uma teoria substantiva da vida humana associada. In: RAMOS,
A. G. A nova ciências das organizações. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1989. cap. 2, p. 25-46.

27. RAMOS, A. G. Uma abordagem substantiva da organização. In: RAMOS, A. G. A nova ciências
das organizações. 2. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1989. cap. 6, p. 118-138.

28. RAMOS, A. G. Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho: ensaio


de sociologia do conhecimento. Tese (técnico de administração) – Departamento

27
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

administrativo do serviço público, Rio de Janeiro (tese apresentada em 1949 ao


concurso para provimento em cargo de carreira de Técnico em Administração do quadro
permanente do Departamento Administrativo do Serviço Público, 1950.

29. RODRIGUES, S. B.; CARRIERI, A. de P. A Tradição Anglo-Saxônica nos Estudos


Organizacionais Brasileiros. Revista de Administração Contemporânea. Curitiba. v. 5,
p.81-102, 2001. Edição especial.

30. SANTOS, E. L.; SOUZA, R. S.; BRAGA, V. Administração do Desenvolvimento na perspectiva


Guerreirista: conceitos, contribuições e implicações. Cadernos Escola Brasileira de
Administração Pública e Empresas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.462-477, jul./set. 2015.

31. JUNIOR SCHMITZ, S.; PAIXÃO, G. de J.; MELLER, A. J.; NETO MORRETO, L. O legado do
pensamento de Alberto Guerreiro Ramos para a gestão social. Revista de Gestão
Organizacional, Florianópolis, v. 07, n. 3, p. 47-60, nov./dez. 2014.

32. SILVA, A. J. C. Guerreiro Ramos e a administração pública no brasil. In: Encontro Nacional
de Ensino e Pesquisa do Campo de Públicas, 1., 2015, Rio de Janeiro. Anaes (...). Rio de
Janeiro: ANEPCP, 2015.

33. SOARES, L. A. A. A sociologia crítica de Guerreiro Ramos: um estudo sobre um sociólogo


polêmico. Rio de Janeiro: CRA-RJ, 2006.

34. SOARES, L. A. A. Guerreiro Ramos: a trajetória de um pensamento. Revista de Administração


Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 33-50, abr./jun. 1995.

35. SOUZA, G. C.; ORNELAS, A. L. Alberto Guerreiro Ramos e a autonomia dos estudos
organizacionais críticos brasileiros: escorços de uma trajetória intelectual. Cadernos
Escola Brasileira de Administração Pública e Empresas, Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p.438-
461, jul./set. 2015.

36. ZWICK, E.; TEIXEIRA, M. P. R; PEREIRA, J. R.; VILAS BOAS, A. A. Administração pública
tupiniquim: reflexões a partir da Teoria N e da Teoria P de Guerreiro Ramos. Cadernos
Escola Brasileira de Administração Pública e Empresas. v. 10, n. 2, p.284-301, jun. 2012.

28
2
O Aprisionamento de Corpos e o Punitivismo
Estatal2
Lucas Lima da Silva Ferreira(1)
Elson dos Santos Gomes Júnior(2)

(1)
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7013-2381; Graduando no curso de Bacharelado em Direito; Faculdade
Santo Antônio de Pádua – FASAP, Santo Antônio de Pádua, Rio de Janeiro, Brasil; E-mail: lucas.limassf@gmail.
com;
(2)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7222-8288; Professor da Educação Básica, Técnica e Tecnológica;
Instituto Federal Fluminense – IFF; Santo Antônio de Pádua, Rio de Janeiro, Brasil; E-mail: elsonuenf@yahoo.
com.br;

INTRODUÇÃO

É sabido que a vida em sociedade é regulada por inúmeras normas ditadas pelo
ordenamento jurídico, entretanto essas regulamentações, para aqueles de olhar atento,
expressam os condicionantes de formas veladas de violência. Estas, no dizer de Adorno
(1995), não precisam estar expressas em regimes totalitários e/ou grande ações de cunho
nocivo à condição humana, mas sim, simplesmente, diluídas em formas de sociabilidade
que, na maior parte das vezes silenciosa, cumpre o seu papel corrosivo.
Assim, em uma perspectiva adorniana, a civilização é responsável pela produção
da própria “anti-civilização” e, claro, os indivíduos que a compõem são os produtores do
flagelo social. A “barbárie” sempre existirá se as condições que a construíram permanecerem
ativas e produtivas (ADORNO, 1995). Neste sentido, ao tratarmos da superlotação carcerária,
percebemos que a não reinserção do preso e a necropolítica (MBEMBE, 2016) adotada sobre
corpos subalternizados são exímios exemplos de motores que produzem e legitimam em
larga escala o processo anti-civilizatório; onde o teor colonialista reside em meio à sociedade
e nas estruturas que a constituem.

2 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap2
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

A formação social brasileira desenvolveu-se tendo como base a superexploração


de recursos naturais e a massiva utilização da mão de obra escrava advinda do continente
africano como uma espécie de mercadoria de corpos (BORGES, 2018). Esse processo
bárbaro é refletido, atualmente, no sistema prisional brasileiro que, além de apresentar
cerca de 755.274 (setecentos e cinquenta e cinco mil duzentos e setenta e quatro)
indivíduos privados de liberdade no ano de 2019, segundo dados do Anuário Brasileiro
Segurança Pública; exprime, ainda, o seletivismo de sua composição carcerária, uma
vez que 66,7% dos presos são negros, segundo dados delimitados pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública (FBSP) – através do Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
apresentando também um déficit de vagas de 305.606 (trezentos e cinco mil seiscentos e
seis) no sistema prisional. Contudo, ao contrário de uma cultura carcerária generalizada, o
que temos no Brasil é uma superlotação seletiva.
Esse processo excludente, racista e desigual se debruça em parte sobre a baixa
efetividade de implementação e aplicabilidade de determinadas leis e princípios, como é
o caso da ineficácia do processo de integração social do preso, o seu direito a assistência
e trabalho como medida educativa e produtiva, expressos pela Lei de Execução Penal (n°
7.210/94). Isso acaba por acarretar uma deturpação da dignidade humana e ferir princípios
basilares dos Direitos Humanos, uma vez que legitima o teor de desumanidade e mantém
um sistema enraizado na barbárie, demonstrando que o sistema punitivo vem causando
efeitos contrários ao avanço de uma sociedade inclusiva.
Assim sendo, o presente capítulo visa salientar a marginalização adotada pelo Estado
e expressa primariamente por meio de seus agentes, uma vez que o Estado portador do
summa potestas (poder supremo/ soberania), por meio de suas manifestações políticas em
meio à sociedade, diretamente ou indiretamente (BOBBIO, 2019), se alinha à estruturação
institucionalizada; desta forma, enraizada e legitimada socialmente, culturalmente
e economicamente, atinge apenas determinada parcela social em um evidente
desmantelamento e perseguição de corpos invisibilizados.
Dito isto, o percurso explicativo deste trabalho seguirá basicamente dois pontos em
sua exposição, onde (I) apresentaremos uma problematização a respeito da punição como
via única e, em seguida, (II) um horizonte cultural-educacional pautado na perspectiva
freireana de autonomia e liberdade como alternativa humanista contra a cultura da barbárie.

30
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

PUNIR É O CAMINHO?

Punir é castigar, aplicar correção, reprimir, infligir pena ou castigo a si próprio;


controlar é exercer controle, submeter a controle, dominar e manter. Na coligação e no eixo
central dessas terminologias, o Estado se encontra representado e responsabilizado no que
concerne ao seu poder, pelo controle do ato de punir.
O Estado, por meio de seu Sistema de Justiça Criminal e de seus aparatos“militarizantes”,
consolidou, em meio à sociedade, um mecanismo alinhado a uma única visão, como se
fosse um “cavalo” vendado e encelado. Afinal, para que este processo punitivista contínuo
de “pagar na mesma moeda” se firmasse socialmente e culturalmente, faz-se necessário um
“cavalo” que siga apenas uma direção, um único meio de resolução: a punição. Este caminho
instaurado vem possibilitando o passe livre para atos de extrema crueldade por meio de
práticas violentas que levam o indivíduo à situação de animal; como uma espécie de “estado
de natureza” hobbesiano inverso a concepção primária, em que a violência natural continua
posta mesmo diante o contrato social.
Os indivíduos que possuem seus corpos sob controle do aparato estatal e de seus
meios operacionais não mais abrem mão de sua liberdade apenas em favor do contrato
social ou de um Estado Civil, a sua liberdade se torna refém não somente por se submeterem
a um Governo, mas sim por se tornarem condicionados a um sistema em que corpos
invisibilizados podem ser “tocados” e “controlados” por qualquer corpo não-invisibilizado,
através da violência, da crueldade e do ódio.
A punição se tornou meramente uma retribuição ao ato praticado, onde o
processo restaurativo e ressocializador são inócuos, resultando em um descaso ao
processo (re) educativo e viabilizando, como assinala Pastana (2012), “a punição como
simples instrumento de encerramento de uma população considerada tanto desviante e
perigosa como supérflua, no plano econômico”. Assim, observa-se, portanto, em quesitos
conceituais, um modelo de Justiça não-consensual, em que a retribuição para o ato
criminoso praticado é unicamente e intencionalmente punitiva. Não há uma reparação do
dano causado, há apenas uma relação (des) humana centrada na violência com o outro
enquanto outro ou por um outro (CHAUÍ, 2017).
Todo esse processo punitivista se atrela ao teor dominante em que o Estado, por
intermédio de seus mecanismos institucionais e organizacionais, exerce sob àqueles que
não possuem poderio suficiente para se voltar contra as consecutivas e massivas injustiças
praticadas por quem deveria defendê-los, e não apenas condicioná-los à privação da

31
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

liberdade; instrumentalizando o exercício do poder estatal em que o aprisionamento,


culturalmente, se materializou nas mãos daqueles que possuem dominação (CASARA, 2017).
Deste modo, essa construção cultural possibilitou que pessoas possam enjaular outras
pessoas, legitimando a utilização de uma política restritiva de liberdade de um pessoa ou
de um determinado grupo (CASARA, 2017), multiplicando a violência com os instrumentos
existentes e legitimados pelo Sistema Criminal e das Instituições repressivas, favorecendo
um exponencial controle estatal (ARENDT, 1994), tornando o poder de punir precipuamente
um dos maiores mecanismos de controle social de pessoas indesejáveis aos olhos dos
governantes (CASARA, 2017); sendo estas subalternizadas e excluídas da representação
política e legal, bem como da possibilidade de se tornarem, de maneira plena, membros do
estrato social dominante (SPIVAK, 2010).
Nesta perspectiva, o acometimento de políticas sociais e a legitimação de uma
deturpação social oferece um caminho límpido para que a pressão civilizatória fortifique
os enraizamentos estruturais responsáveis pela produção da barbárie anti-civilizatória
(ADORNO, 1995). Desta maneira, com a imposição estatal sobre os dizeres expressos em
sociedade, as políticas criminais se assemelham a práticas adotadas a partir do Código de
Hamurabi (séc. XVIII, a.C.), como uma retaliação cruel pautada no “olho por olho, dente por
dente” e, também, pelo Código de Drácon (620 a.C.), norteado pela morte, à medida que
centralizam o punitivismo como única alternativa aos males sociais.
Essas manifestações advindas do poder penal são resultado, direto e indireto, da força
do Estado, uma vez que este é o detentor do monopólio da violência legítima e ilegítima, que
viabiliza o comportamento dos Três Poderes (CASARA, 2017). Assim, esse modelo político
punitivo, que se aproveita de um sentimentalismo da sociedade, exerce uma sedução ainda
mais abrangente quando aplicado deliberadamente em países com grande desigualdade
social e carente de preceitos democráticos (PASTANA, 2012).
É visível a produção da repressão, a filósofa Marilena Chauí não errou em explicitar
que vivemos em uma sociedade autoritária cuja peculiaridade é produzir a lei sob o aspecto
da repressão mais do que sob o aspecto dos direitos. A população se torna marginalizada
politicamente quando a lei tende mais a determinar o que não pode ser feito ou o que se
deve fazer, e muito menos o que se tem o direito de fazer ou de exprimir (CHAUÍ, 2017).
Neste sentido, esse processo consistente em uma reprodução da violência por meio
de um sistema que se passa como civilizatório, mas apenas controla e explora o seus, acaba
por tornar a violência um pilar das relações sociais (BORGES, 2020). A instrumentalização do

32
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

aparato violento do Estado assinala, consequentemente, segundo a citada autora, a violência


como um fenômeno multidimensional, fundacional do país, que perpassa as dimensões
físicas, morais, psíquicas e simbólicas em práticas discriminatórias variadas, além de estar
enraizada como meio e como linguagem.
Portanto o aprisionamento de corpos seletos e a retribuição punitiva representam
o teor marginalizador e invisibilizador daqueles que se encontram à deriva dos interesses
individuais dos governantes e do sistema instaurado. De forma precípua, o encarceramento
se tornou a maneira pelo qual o Estado se afincou à ascensão do capitalismo e ao surgimento
de um novo conjunto de condições ideológicas (DAVIS, 2018). Apesar dos ditames
estabelecidos estruturalmente contra a liberdade, a maneira com a qual a opressão deve
ser combatida é com a própria liberdade, utilizando-a como pilar na luta contra a prática
do ódio. As expressões autoritárias devem ser repelidas antes que a dignidade da pessoa
humana (art. 1°, III, CRFB/88) seja subjugada – se já não está.

EDUCAÇÃO CONTRA O APRISIONAMENTO

Em um dos textos mais célebres a respeito da educação, Adorno (1995), em “A


educação após Auschwitz”, afirmou os motivos de se continuar educando contra o fascismo
mesmo com o fim dos regimes fascista após a segunda guerra. Para Adorno, a materialidade
histórica do fascismo não se encontrava somente nos regimes, mas sim na cultura que
os criou. Seu alerta direcionou-se para um estado de vigilância dos elementos culturais e
dinâmicos menos visíveis, pois são eles que guardam as raízes da barbárie como forma de
pensar, agir, humanizar, organizar, politizar, comercializar, entre outras formas de ação.
Neste quadro, temos no Brasil a obra de Florestan Fernandes que nos trouxe o
nosso equivalente a Auschwitz, ou seja, o passado escravocrata que ainda mantém suas
raízes através de dinâmicas impeditivas da integração do negro ao status de cidadão pleno
(FERNANDES, 2008; BASTIDE; FERNANDES, 2008). Assim, podemos perceber que, apesar da
escravidão ter sido oficialmente findada em 1888, a cultura escravocrata ainda se mantém
através de um cotidiano excludente que pode ser visto na paisagem urbana, nos postos
deliberativos e executivos (tanto públicos quanto privados), no acesso às universidades,
nos tipos de trabalho e nos níveis de remuneração, entre tantas outras formas visíveis – ou
invisíveis, dependendo da perspectiva.
Esta perspectiva importa, pois ela nos remete a uma questão que não cessa de inquietar,
ou seja, se o encarceramento é a solução, por que a violência – e suas mais variadas formas

33
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

de manifestação – continua latente e ascendente? No mínimo, esta constatação deveria


conduzir a sociedade brasileira a repensar sua política de aprisionamento e que, segundo
Florestan Fernandes (1979), só faz evidenciar a face autoritária da sociedade brasileira.
Neste sentido, como alternativa a uma cultura de simples encarceramento como
forma de combate à violência, podemos apontar a necessidade de uma educação
humanizadora. Nos termos de Adorno (2005), Florestan Fernandes (1979; 2008) e de Paulo
Freire (2018; 2019), o que a sociedade brasileira necessita atualmente é de educar-se
contra a barbárie, ressignificando os conceitos de educação e de barbárie.
Na teoria crítica, que consiste na reflexão-ação-reflexão (ANDERSON, 1985), educação
não se limita apenas ao ensino sistematizado e/ou, como querem os conservadores
(FERNANDES, 1966; 1989), à reprodução de costumes e hábitos considerados moralmente
aceitáveis. Educação, para a teoria crítica, encontra-se, assim, para além mesmo do próprio
capital (MÉZSÁROS, 2018), uma vez que traz uma perspectiva de coletividade, de futuro,
ou seja, da socialização de uma “condição humana” (ARENDT, 2016) que contemple o maior
número de pessoas possíveis. Assim, quanto mais as necessidades humanas forem atendidas,
mais estaremos nos distanciando da barbárie.
Como “educação para além do capital” (MÉZSÁROS, 2018), entendemos que as
necessidades humanas não se limitam ao consumo e/ou ao acesso a riquezas e à satisfação de
necessidades criadas pela “indústria cultural” (ADORNO, 1995). Antes, no dizer de Max Scheler
(2008), trazemos para o debate uma nova perspectiva de humanidade onde esta é percebida
como uma ontologia de “dimensões”. Assim, o existir se faz através do religioso, cultural,
econômico, psicológico, linguístico, artístico, trabalho, natural, entre outras dimensões
constitutivas do ser. Tomar o encarceramento como única via de resolução para o problema
da violência significa, sem dúvida, rotular uma fração da sociedade como causadora dos
males sociais e, o que é pior, eliminá-la de desenvolver suas potencialidades ontológicas.
Neste quadro, reproduzimos a educação de características fascistas (ADORNO, 1995)
– uma vez que escolhemos um grupo populacional com características sociais e fenotípicas
claras como responsável pela violência e o desiquilíbrio social – e, por outro lado, fechamos
as portas para a discussão das necessidades humanas que estão além do consumo e do
atendimento de necessidades vitais básicas. A sociedade, através de seus dirigentes e
instituições, fecha assim duas portas de compreensão de suas próprias necessidades de
resolução de conflitos. A primeira fecha-se na delimitação da condição humana a uma
simples “natureza” biológica e espiritual (defendida pelos setores conservadores); a outra,

34
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

como consequência da primeira, fecha-se com o não reconhecimento de uma humanidade


que necessita muito mais do que religião e consumo.
Com estas considerações, podemos também defender uma reformulação do conceito
de “barbárie” que, para uma análise crítica, passa longe de simples ações criminosas e que
ferem o status jurídico e suas instâncias. Isso não significa que alguns crimes não tenham
status de “bárbaro”, mas sim que este termo, usado como conceito da sociologia crítica,
remete não a ações, mas a uma cultura que torna tais ações cotidianamente possíveis
(ADORNO, 2005).
Assim, podemos compreender que a “barbárie” não é um atributo específico
de grupos sociais, mas sim uma cultura que perpassa a sociedade de formas vertical e
horizontal. Com isso, ao tratarmos do punitivismo jurídico, percebemos que ele é também
cultural e faz parte de uma base historicamente construída que corrobora sua existência e
suas estratégias de ação (ADORNO, 2005). Enquanto sociedade, em busca de alternativas a
este quadro, podemos salientar que, ao invés de simplesmente punir, deveríamos incorporar
as pessoas ao processo histórico (FREIRE, 2019).
Para Freire (2018), temos, no Brasil, uma estrutura social excludente onde as instâncias
deliberativas e as instituições são caudatárias de um sistema representativo excludente que,
na verdade, reproduz as desigualdades de classe e de exercício pleno da cidadania. Logo, ao
tratarmos de uma sociedade que só pune, somos remetidos à compreensão de que, além de
punir, a estrutura social se faz legítima por práticas excludentes que deixam a maior parte da
população em estado a-histórico.
Nesta perspectiva, o que temos é uma organização social que educa certas frações
da sociedade para “estar no mundo” e “para o mundo”, enquanto a maioria apenas encontra-
se nele (FREIRE, 2018; 2019). Existe, assim, na própria dinâmica da reprodução social, uma
gramática política (NUNES, 2004) que extirpa as possibilidades dos indivíduos se tornarem
sujeitos e, logo, de fazerem a própria história.
As imposições institucionais e universalizantes, baseadas em uma premissa falsa de
natureza humana, impõem condições que desconsideram totalmente o que Freire chamou
de “círculo cultural” (2019), ou seja, desde que nascemos, a maioria esmagadora da população
encontra-se fazendo parte de uma cultura bárbara que aguarda apenas um deslize para
realizar o seu ato finalizador mais comum: encarcerar.
Esta via de tratamento do crime, sem considerar os elementos culturais, simplesmente
torna a cultura da barbárie ilesa, absoluta e forte no cotidiano inquestionável das mentalidades

35
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

que acreditam mais na punição do que na educação (ADORNO, 1995; FREIRE, 2018; 2019).
Assim, o que diferencia os dois é que o crime é identificado como uma justificativa para a
punição e o encarceramento, ou seja, entende-se, e de forma justa, que é prejudicial para o
coletivo social. Por outro lado, a produção de valores que compõem as fontes de muitos dos
crimes, ou seja, a cultura da barbárie, permanece ilesa e sem questionamentos. Temos assim
uma perspectiva do complexo círculo vicioso que compõe a cultura punitivista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendemos, com este trabalho, trazer para o debate dois aspectos que, comumente,
são pouco veiculados fora do âmbito acadêmico e de especialistas, ou seja, a compreensão
da “barbárie” como um produto cultural; e a cultura do encarceramento como um paliativo
orientado por marcas sociais (cor, gênero, classe social). Assim, pensar a respeito da política
de encarceramento hegemônica no Brasil significa, mais do que evidenciar a população
carcerária, salientar que suas raízes são sociais.
Desta forma, deslocamos as lentes de uma falsa evidência – a de que a população
negra e pobre é culpada e deve ser simplesmente encarcerada – para o reconhecimento
de uma necessidade de mudanças na dinâmica social, de sua estrutura e da forma com que
socializamos os bens e oportunidades de existência cidadã no Brasil. Este reconhecimento,
antes de se enquadrar em uma simplória comparação entre“bons”e“maus”, busca, justamente,
nos livrar dos efeitos nocivos disto que Freire chamou de “mentalidade contrária”.
Saímos, assim, de simples maniqueísmos para nos colocarmos diante de uma
“questão social” que necessita ser analisada processualmente de forma histórica e
que merece considerar inúmeras variáveis. Por isso, mesmo que o punitivismo fosse
absolutamente a alternativa correta – o que pelo visto de nada tem adiantado na luta
contra a criminalidade – teria de ser uma solução encontrada mediante profunda análise.
Nestes termos, consideramos urgente que a criminalidade não seja pensada
como uma parte estanque do social onde a simples punição parece resolver o problema.
Não. Além de ser ineficiente, esta perspectiva coloca a sociedade à mercê de inúmeras
ideologias autoritárias e de significação “bárbara” (ADORNO, 1995). Por isso, considerando
estes fatores, necessitamos, enquanto princípio para nortear políticas públicas no âmbito
penal, compreender que um dos pilares contra a violência se encontra em uma educação
contra a barbárie. Além disso, que não existem soluções para esta questão que, desejando
realmente solucioná-la, não considere a melhoria da “condição humana” (ARENDT, 2016)
para toda a população.

36
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

REFERÊNCIAS

1. ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

2. ARENDT, H. A condição humana. São Paulo: Forense Universitária, 2016.

3. ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

4. BASTIDE, R.; FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008.

5. BORGES, J. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte: Letramento:


Justificando, 2018.

6. BORGES, J. Prisões: Espelhos de nós. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2020.

7. BRASIL. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança


Pública, 2020.

8. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

9. CASARA, R. R. R. O estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos


indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

10. CHAUÍ, M. Sobre a Violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

11. DAVIS, A. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 1. ed., 2018.

12. FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Globo, 2


volumes, 2008.

13. FERNANDES, F. Apontamentos sobre a “teoria do autoritarismo”. São Paulo, Hucitec,


1979.

14. FERNANDES, F. Educação e sociedade no Brasil. São Paulo: Dominus, 1966.

15. FERNANDES, F. O desafio educacional. São Paulo: Cortez, 1989.

16. FREIRE, P. A pedagogia da autonomia – saberes necessários à prática educativa. Rio


de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2018.

37
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

17. FREIRE, P. A pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2019.

18. MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

19. MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2018.

20. NUNES, E. Gramática Política do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático.


Zahar. Rio de Janeiro, 2004.

21. PASTANA, D. R. Estado punitivo e pós modernidade: Um estudo metateórico da


contemporaneidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, 98, p. 25-44, set, 2012.

22. SCHELER, M. A situação do homem no cosmo. Lisboa: Texto e Grafia, 2008.

23. SPIVAK, G.ar C. Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

38
3
Mudanças de paradigmas e programas federais de
segurança pública no Brasil3
João Braz Amorim Neto(1)

(1)
Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Cientista Social e Advogado
Criminalista. Pesquisador na área de Segurança Pública. Brazil. E-mail: jbanadv@gmail.com

INTRODUÇÃO

O processo de constituição dos centros metropolitanos do Brasil, ocorrido após


a retomada democrática, foi seguido pela expansão da violência urbana e pela elevação
significativa das taxas de criminalidade do país. No que pese a Constituição Federal de 1988
ter organizado parte das demandas sociais do período, a segurança pública não acompanhou
o desenvolvimento das demais instituições
A ampliação das políticas públicas (educação, saúde, assistência social, entre outras),
alcançando novos contingentes populacionais historicamente segregados, não se estendeu
ao modelo de segurança pública herdado da Ditadura Militar, baseado no controle social
pelas instituições policiais e nas ações de repressão ao crime que, a partir dos conceitos
de defesa interna e defesa nacional, elegiam (e continuam elegendo) um inimigo a ser
combatido. Interpretando questões de segurança pública como “coisa de polícia”, a partir de
uma perspectiva militarizada, não rompeu com muitos dos legados institucionais da cultura
prévia através de reformas substantivas (ADORNO, 1995; SOARES, 2003; SOUZA, 2015).
Em síntese, a nova Constituição não alterou significativamente os dispositivos legais
impostos pelos governos militares para organizar as polícias. Houve a manutenção dos
dispositivos presentes na Constituição de 1967 e Emenda de 1969, persistiram violações
de direitos humanos, calcadas em uma cultura do uso de práticas violentas ficando restrita

3 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap3
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

a modernização da segurança pública quase que exclusivamente à expansão física através


da construção de novas instalações e de aumento do contingente policial, de renovação da
frota de veículos e do sistema de comunicações. O que se verificou foi o fortalecimento de
um Estado Penal repressivo voltado ao controle penal daqueles que continuavam sem ter
acesso a direitos sociais (ADORNO, 1996; GONÇALVES, 2009).
Estas políticas tradicionais de segurança, repressivas e reativas, que se baseiam
em geral no aumento do número de prisões, ampliação do efetivo policial e aquisição
de equipamentos (veículos e armamentos), expuseram não apenas as deficiências do
modelo de segurança pública, que manteve a militarização e a estrutura de funcionamento
proveniente do regime militar, como também mostraram sua insuficiência para conter
a curva ascendente das estatísticas criminais, colocando em xeque o sistema de justiça
criminal brasileiro (MADEIRA e RODRIGUES, 2015).
Sendo interpretada a segurança pública como “coisa de polícia” e relegada à
responsabilidade dos estados, por serem estes os gestores das polícias civis e militares, ao
contrário do que ocorrera nas áreas de saúde, assistência e educação, a União deixou de
exercer o papel de coordenador. Sendo tolhida, dessa forma, boa parte da autonomia e
liderança do Governo Federal. Esse arranjo, que preservara a militarização da segurança
pública, dotou os estados de autonomia relativa na condução da política de segurança, mas,
ao mesmo tempo, a falta de papéis definidos para cada ente federado e a falta de uma política
de financiamento para distribuição de recursos dificultou a implementação de diretrizes
mínimas de uma política de segurança (GONÇALVES, 2009; MADEIRA e RODRIGUES, 2015;
PIRES, 2017; VARGAS, 2020).
Utilizamos, nesse estudo, um conceito de paradigma entendido como visões de
mundo compartilhadas, que influenciam a forma de pensar de determinado grupo, em
determinada época, permitindo assim não só a descrição do mundo, mas a sua multiplicação
a partir de determinada perspectiva. Programas que unificam uma parcela significativa da
comunidade em torno de um modelo e um conjunto de crenças, teses, maneiras de resolver
os problemas. Essas visões de mundo, ou paradigmas, quando entram em crise, seja pela
incompatibilidade com as novas tendências ou pelo desgaste ocasionado decorrente de
fatores diversos, incluindo a competição com um modelo rival, favorecem a interposição de
um paradigma por outro (KUHN, 2018; LAKATOS, 1979).
Considerando que as iniciativas na área de segurança têm sofrido variações
significativas quanto aos seus objetivos e estratégias ao longo das últimas décadas; essas

40
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

variações estão diretamente associadas ao paradigma conceitual que alimenta cada


uma dessas iniciativas, pois os paradigmas não são estanques, não surgem com um
conjunto de características que permanecem inalteradas durante toda a sua vigência.
Pelo contrário, algumas dessas características sofrem transformações ao longo do tempo,
que inclusive podem indicar a transição para um novo paradigma. No entanto, alguns
traços mais marcantes – que podem ser aqui denominados de núcleo paradigmático –
permitem identificá-los e diferenciá-los de outros com características distintas. (FREIRE,
2009; POPPER, 1982).
Convém ressaltar também que os paradigmas não são excludentes. O advento
de um novo paradigma não significa que todos os anteriores deixaram de existir. Na
verdade, dois ou mais paradigmas podem coexistir em determinado período. Assim, não
se pode identificar claramente as datas de início e término de determinado paradigma.
É interessante observar essa coexistência especialmente em períodos de transição
paradigmática. Nesse sentido, as transições entre paradigmas se aproximam mais de um
processo do que de uma brusca ruptura. Essa coexistência pode ocorrer não só quando
se considera a escala temporal, mas também a distribuição geográfica. Por exemplo,
diferentes regiões do país podem adotar políticas de segurança com base em diretrizes
distintas, em um mesmo período (FREIRE, 2009).
O histórico dos paradigmas no país influencia as características das políticas públicas de
Segurança subsequentes. Em outras palavras, determinadas características paradigmáticas
ganham tanta força que acabam influenciando a direção na qual se dá o desenvolvimento
do novo paradigma. Um paradigma não é uma política pública. Os paradigmas são crenças,
valores e conceitos que predominam no governo e na sociedade em determinada localidade
e em determinado período. Mas isso não quer dizer que essas mesmas crenças, valores e
conceitos sejam automaticamente traduzidos em políticas públicas. Estes podem, sim,
influenciar a sua formulação ou indicar possíveis tendências, mas vários outros fatores –
como variáveis políticas, orçamentárias, técnicas, etc – também incidem na conformação
final das políticas.
Sob essa ótica, observamos que o texto constitucional de 1988 inova em relação ao
paradigma de Segurança Nacional, inaugurando a perspectiva do paradigma da Segurança
Pública; no entanto, na lista de responsáveis pela Segurança Pública em seu artigo 144, destaca
somente as instituições policiais, não citando o papel de outras instituições governamentais
na prevenção à violência, como por exemplo o papel do Governo Federal, dos municípios
e da comunidade. Prevaleceu, dessa forma, a visão de mundo arraigada nas instituições

41
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

policiais, centrada na preponderância dessas instituições na implementação das políticas


de segurança em uma perspectiva operacional repressiva que identifica as políticas sociais
como elementos alheios à esfera da segurança. Os déficits dessa política, explicitados pelos
elevados índices de crimes e pela baixa eficiência das agências encarregadas pela execução
das ações de segurança, denunciaram a precariedade do sistema público de segurança.
Quando então o aumento da criminalidade e a necessidade de estratégias mais eficazes fez
surgir a tendência paradigmática da Segurança Cidadã. (FREIRE, 2009; SENTO-SÉ, 2011)
O desenho abaixo, embora simples, pode explanar visualmente o externado.

Figura 1. Transposição de Paradigmas

Ditadura Militar - Década de 1990 - Início do ano 2000

Segurança Segurança Segurança


Nacional Pública Cidadã

Fonte: Produzida pelo autor.

Os paradigmas são a fonte dos métodos, da esfera de problemas e dos padrões de


soluções aceitos por qualquer comunidade em um período de tempo dado. Constitutivos da
atividade de investigação por meio das teorias que neles estão implícitas, ou seja, quando
um novo paradigma é adquirido, com ele adquire-se também teoria, métodos e padrões
juntos, geralmente em uma mistura inextricável (KUHN, 2018).
No entanto, além das questões de ordem ideológica, que podem ser explicitadas pela
sobreposição dos paradigmas: Do Paradigma da Segurança Nacional para o da Segurança
Pública e desse para o da Segurança Cidadã, existem questões de ordem estrutural, para além
disso, que devem ser levadas em consideração e interpretadas para se melhor compreender
os motivos que dificultam as transformações necessárias da segurança pública no Brasil.
Como o problema das polícias e do Estado, por exemplo.

42
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Como mudar a filosofia de segurança nacional sem uma transformação em relação


às polícias? As polícias como foram organizadas no Brasil, a partir de duas polícias, dividindo
o ciclo policial em duas partes incompletas, a polícia civil (investigativa) e a polícia militar
(ostensiva e repressiva), e a característica profundamente militarizada dessa última, são
fatores que dificultam bastante a implementação de um programa nacional de segurança
pública e a inovação no campo ideológico da segurança pública. A manutenção da
estrutura atual das polícias dificulta o processo de implementação do plano nacional de
segurança pública e de uma nova filosofia de segurança pública. Para além da questão da
ideologia, de quem concorda e de quem não concorda, de quem simpatiza ou de quem não
simpatiza com uma determinada política ou filosofia de segurança, as polícias refletem um
problema de ordem estrutural e institucional. Outra questão que é um problema seríssimo
é o Federalismo.
A forma como a Constituição de 1988 distribuiu a competência sobre a segurança
pública não deixou definido os papéis de cada um dos entes federados, tornando-os
confusos. O artigo 144 não define e deixa claro quais sãos as competências do Governo
Federal, do estado, do município no que se refere à segurança pública. Quem é responsável
pela segurança pública? O Prefeito, o Governador ou o Presidente? Quem financia? Quem
executa? E Como executa? Existe um hiato do tamanho de um continente que, desde a
promulgação da Carta Magna, ainda não foi suprido.
Nós temos um país de proporções continentais, o fenômeno criminal tem
características específicas a depender do local onde ocorra. Então temos a União, que deveria
capitanear a direção e o suporte através de uma política de segurança que simplesmente
não existe; embora tenham ocorrido tentativas não tão bem sucedidas de uma possível
implementação. Tem os estados que, por serem os responsáveis pelas Polícias, tem arcado
com o peso maior de responsabilidade, em decorrência disso e de uma visão militarizada
que apregoa de maneira fracassada que segurança pública é “coisa de polícia”. E temos
os municípios, que, dado o contexto, tem uma aproximação maior com aquela realidade,
mas que foi absolutamente ignorado e deixado de fora no que se refere a planejamento e
implementação das políticas de segurança.
Na nossa análise, tentaremos identificar todos os fenômenos relevantes ao assunto
estudado, com base no conhecimento existente, inter-relacionando estes fenômenos
numa rede de relações causais – quais elementos causam ou influenciam outros elementos,
desenvolvendo dessa forma uma teoria, em um conjunto de preposições lógicas e inter-
relacionadas, que explicam a natureza do fenômeno estudado. Utilizado na construção

43
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

do capítulo, dessa forma, tanto o raciocínio indutivo quanto o dedutivo, na medida em


que vão e vêm incessantemente entre teoria e observações. Utilizaremos, sobretudo, a
pesquisa bibliográfica e a análise documental, realizada a partir do registro disponível
decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses
etc (BABBIE, 2003).
Foram utilizados dados ou categorias teóricas já trabalhados por outros
pesquisadores e devidamente registrados. Tendo estes textos como fontes, trabalharemos a
partir das contribuições dos autores dos estudos analíticos constantes no nosso referencial
bibliográfico. Com a revisão da literatura disponível sobre o assunto, selecionaremos
os trabalhos essenciais que, a partir do critério da qualidade da análise e do nível crítico,
alimentaremos nosso conhecimento afinando nossa perspectiva teórica, precisando e
objetivando nosso aparelho conceitual e nossa análise. As pesquisas com dados existentes
prendem-se mais ao esclarecimento de diferentes aspectos ou fatores que podem contribuir
para a sua compreensão do que a explicações de situações e dos fenômenos sob o ângulo
da causalidade linear (LAVILLE E DIONNE, 1999; SEVERINO, 200).
Sendo assim, como a ciência não busca a verdade definitiva, mas a utilidade, teorias
científicas não devem ser julgadas por sua verdade relativa, mas pela medida de sua utilidade
em melhorar nosso conhecimento do mundo ao redor. Examinando os objetivos, as crenças,
ideias e percepções dos atores envolvidos e identificando os seus respectivos paradigmas
no processo de mudanças de uma dada política pública, observamos que esses atores
perseguem vários objetivos, que podem ser mensurados, e tais crenças e valores devem ser
considerados no contexto do arcabouço institucional onde se dá a decisão sobre a política
pública (BABBIE, 2003; SABATIER; WEIBLE, 2007 apud SOUZA, 2015).
Os resultados esperados são o levantamento de dados empíricos e teorias sociológicas
que ajudem na compreensão da dinâmica da correlação existente entre os paradigmas
competitivos na área de segurança pública brasileira. Esperamos demonstrar que a
academia e a comunidade científica majoritariamente abraçam o paradigma reformador em
detrimento do conservador. Que a repressão e o autoritarismo tendem a ceder espaço para
formas mais diversas, amplas e eficazes para solução de conflitos e lidar com a questão de
segurança pública. Tendo dessa forma por necessário a busca da superação do paradigma
onde a visão de mundo oblíqua que tradicionalmente apregoa a persistente lógica de
reprodução de valores sociais e jurídicos que trata o crime e o criminoso com abordagens
e estratégias que deslocam o fenômeno criminal de sua gênese e o coloca na pauta reativa
dos embates formais entre o Estado e os potenciais eventuais infratores da lei, reduz

44
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

dramaticamente a possibilidade de mobilização e prevenção social do delito, haja vista que


desconsidera outros atores sociais, objetos e referências de análise quantitativa e qualitativa
que constituem os elementos para a ocorrência do fenômeno criminal.
Nos limites propostos, tentaremos identificar os paradigmas e suas respectivas
coalizões com a correlação e interconexões pela disputa hegemônica da área de prevalência
do campo de segurança pública nacional entre os governos FHC, Lula e Dilma, bem como
as tentativas, os avanços e retrocessos na implantação de um Plano Nacional de Segurança
Pública, esperamos compreender os motivos que levaram diferentes governos a falharem
sucessivamente na implantação e coordenação de um Plano Federal para a Segurança
Pública brasileira.

DESENVOLVIMENTO

O período Fernando Henrique Cardoso marcou uma virada positiva na área


da Segurança Pública, com uma pauta virtuosa (prevenção; integração intersetorial e
intergovernamental; valorização da experiência local; qualificação policial; estímulo ao
policiamento comunitário) e também começamos a partir de FHC a estabelecer, de forma
gradual, a transformação da perspectiva do paradigma de Segurança Pública para o
paradigma da Segurança Cidadã.
No primeiro governo de FHC (1995-1998), o paradigma de “lei e ordem” numa
perspectiva democrática foi preponderante; mas, no segundo (1999-2002), foi gradualmente
sendo substituído pelo Paradigma da Segurança Cidadã, a partir da promoção e garantia dos
direitos humanos. Reconhecendo e aplicando, assim, as deliberações ocorridas em Viena, na
Conferência Mundial dos Direitos Humanos, a qual o Brasil foi um dos participantes, onde foi
recomendado que os países presentes pensassem programas nacionais de promoção dos
direitos humanos. Dessa forma, em 1996, o Brasil implementou o seu Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDHI), representando este um marco para a consolidação do debate
acerca dos Direitos Humanos dentro da perspectiva de Segurança Pública. No que pese
as inúmeras pressões de setores conservadores dificultando as reformas na política de
segurança pública, em 1997 ainda foram criadas a Secretaria Nacional de Segurança Pública
(SENASP) e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, ambas vinculadas ao Ministério da
Justiça, além do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), no ano 2000 (ADORNO, 2000;
BRASIL, 1996; FREIRE, 2009; PIRES, 2017; SOARES, 2007; SOUZA, 2015).

45
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Foi a partir de FHC também que iniciaram os primeiros esforços na articulação


dos estados pelo Governo Federal no intuito de estabelecer uma política nacional com
a definição de preceitos para a atuação dos entes federados. No segundo governo FHC
(1999-2002), sucessivos ministros da Justiça, com a colaboração de secretários nacionais de
segurança, vinham gestando lentamente um plano nacional de segurança pública que, em
2000, a partir de um evento trágico com repercussão nacional (o sequestro ao ônibus 174)4,
foi determinado pelo presidente da República que fosse decidida de forma imediata qual
seria a agenda nacional para segurança a partir da perspectiva da União. Em uma semana,
a nação conheceu o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP). De forma prematura e
sem o planejamento devido, o plano veio sob a forma de uma listagem assistemática de
intenções heterogêneas (SOARES, 2007).
Houve, pela primeira vez, inserção de ações de integração, cogestão e ações
comunitárias. No intuito de aperfeiçoar o sistema de segurança pública brasileiro, o plano
de ações visava reprimir e prevenir o crime, reconhecendo a necessidade do envolvimento
de diferentes órgãos governamentais em todos os níveis, no estabelecimento de
medidas integradas sob um enfoque de mútua cooperação para atuação dos órgãos de
segurança pública de maneira mais eficaz. Destacaram-se alguns pontos positivos, como
o reconhecimento da importância da prevenção da violência, derivando daí o Plano de
Integração e Acompanhamento dos Programas Sociais de Prevenção da Violência (PIAPS),
além de importantes esforços feitos pela SENASP na direção do estabelecimento de
condições de cooperação entre as instituições da segurança pública, apoiando iniciativas
visando a qualificação policial, o investimento (ainda que tímido) na expansão das penas
alternativas à privação da liberdade, o desenvolvimento de perspectivas mais racionais de
gestão, nas polícias estaduais e nas secretarias de segurança (PIRES, 2013; BRASIL, 2000;
SOARES, 2007).
Apesar de serem boas iniciativas, grande parte das ações ficou nas intenções. Faltou
a vertebração de uma política que exigisse a identificação de prioridades em uma escala
de relevâncias e a identificação de um conjunto de pontos nevrálgicos condicionantes
dos processos mais significativos, de forma que as mudanças necessárias pudessem de
maneira articulada alterar os aspectos chaves promovendo condições adequadas às
transformações estratégicas, orientadas para metas claramente descritas. Isso não se
alcança sem uma concepção sistêmica dos problemas em suas múltiplas dimensões, sociais
4 Um jovem sobrevivente da chacina da Candelária, Sandro, sequestrou no coração da Zona Sul carioca, o
ônibus 174 ante a perplexidade de todo o país, que as TV transformaram em testemunha inerte da tragédia,
em tempo real (SOARES, 2007).

46
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

e institucionais; tampouco se obtém sem um diagnóstico, na ausência do qual também não


se viabiliza o estabelecimento de metas e de critérios, métodos e mecanismos de avaliação
e monitoramento. Ante a ausência de uma política nacional sistêmica, com prioridades
claramente postuladas, os investimentos acabaram limitados a reiterar velhos procedimentos.
Os recursos federais aos Estados, ao invés de servirem de ferramenta política voltada para
a indução de reformas estruturais, se destinaram mais à aquisição de equipamentos para
as polícias do que à indução de políticas inovadoras no setor. Alimentaram-se estruturas
esgotadas, beneficiando políticas equivocadas e tolerando o convívio com organizações
policiais refratárias à gestão racional, à avaliação, ao monitoramento, ao controle externo
e até mesmo a um controle interno minimamente efetivo e não corporativista (MARIANO,
2019; SOARES, 2007)
De todo modo, destaque-se que o período Fernando Henrique Cardoso marcou
uma virada positiva na área da Segurança Pública, com uma pauta virtuosa (prevenção;
integração intersetorial e intergovernamental; valorização da experiência local; qualificação
policial; estímulo ao policiamento comunitário). Infelizmente, a riqueza da pauta não se fez
acompanhar dos meios necessários e suficientes para sua execução. Observe-se que, antes
das movimentações tímidas, porém inaugurais, do governo FHC, o campo da segurança
pública, no âmbito da União, marcara-se por indiferença e imobilismo, resignando-se os
gestores federais a dar continuidade a práticas tradicionais, adaptando-as ao novo contexto
democrático, consagrado pela Constituição de 1988. Pelo menos no discurso oficial, as
polícias e suas práticas deixaram de ser, ostensivamente, voltadas com exclusividade para a
segurança do Estado, redirecionando-se suas ações para a defesa dos cidadãos e a proteção
de seus direitos (SOARES, 2007).
A partir do primeiro mandato do Governo Lula (2003), houve importantes
modificações na área de segurança pública. Foi a partir da abertura oferecida pelo Governo
FHC que a Academia passou a ser um ator relevante no processo de indução, formulação
e implementação de novas experiências de políticas públicas de segurança, mas foi no
Governo Lula que essa participação se consolidou de maneira definitiva. Uma ampla
coalização multipartidária com auxílio de parte da equipe que já atuava na SENASP, a partir
de diagnósticos que já haviam sendo feitos há 15 meses sobre os dilemas da segurança
pública brasileira e fizeram parte da candidatura do Governo Lula, propuseram, em 2002,
no seu Plano de Governo, um compromisso com seriedade técnica repelindo jargões
ideológicos e assumindo uma posição eminentemente não-partidária que visava contribuir
para a construção de um consenso nacional ao partir do pressuposto de que a segurança

47
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

pública é matéria de Estado e não de governo, situando-se acima das querelas político-
partidárias. (SOARES, 2007; SOUZA, 2015)
O objetivo inicial era construir um consenso com os governadores em torno do plano,
suas virtudes e sua viabilidade, demonstrando os benefícios que proporcionaria para o
conjunto do país e para cada estado, em particular, se fossem feitos os esforços necessários,
em moldes cooperativos, suprapartidários e republicanos, para que se superassem as
resistências corporativas, as limitações materiais, as dificuldades operacionais e de gestão,
e se implementassem as medidas propostas. A proposta era articular as ações federais,
estaduais e municipais na área da Segurança Pública e da Justiça Criminal, associando
integração federativa com autonomia dos órgãos de Segurança Pública, na criação do
Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), nos moldes do Sistema Único de Saúde (SUS)
(FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, S.D.; MADEIRA e RODRIGUES, 2015).
Luiz Eduardo Soares, um dos líderes do projeto e um dos maiores especialistas
em segurança pública no Brasil, acabou sendo confirmado como Secretário Nacional de
Segurança Pública em 2003 logo que Lula assumiu a Presidência. O grupo liderado por
Soares logo propôs uma série de reformas estruturais para a segurança pública, dentre
as quais: (I) A desconstitucionalização das polícias, transferindo aos estados o poder de
decidir o formato de polícias que desejam ter; (II) Um currículo mínimo obrigatório para
todo profissional de segurança pública; (III) Uniformização da linguagem e das plataformas
operacionais de todo o sistema de segurança pública no país; (IV) Sistemática de Gestão
aberta ao Controle Externo; (V) Cotas orçamentárias fixas, destinadas à perícia. O conjunto
de reformas estruturais sofreu muita resistência e não vingou, mas possibilitou reformas
residuais como os ajustes do FNSP e da SENASP, passando estes a financiar pesquisas. Tendo
como foco a implantação do SUSP, a SENASP também se consolidou como órgão central no
planejamento e na execução das ações de segurança pública em todo o Brasil. E não tendo
como avançar nas reformas estruturais, investiu na implementação, no âmbito dos estados,
dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGI). Com sua origem em 2003, estes fóruns executivos
e deliberativos tinham como missão integrar sistematicamente os órgãos e instituições
federais, estaduais e municipais, priorizando o planejamento e a execução de ações
integradas de prevenção e enfrentamento da violência e criminalidade. Com a perspectiva
de reforma estrutural obstaculizada, estas reformas residuais impactaram positivamente a
política de segurança pública (MADEIRA e RODRIGUES, 2015; SOUZA, 2015).
Na condição de Secretário Nacional de Segurança Pública, Luiz Eduardo Soares
percorreu todos os estados e o Distrito Federal, acertando com os governadores suas adesões

48
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

a um “Pacto Pela Paz”. O documento alterando o artigo 144 da Constituição Federal seria
entregue aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, aproveitando-
se do prestígio e popularidade do presidente Lula no intuito de implementar as reformas
estruturais necessárias no contexto de segurança pública. De fato, estivemos muito próximos
de alcançar o entendimento nacional em torno das reformas, uma vez que os governadores
se dispuseram a colaborar, endossando a carta de adesão que foi submetida à apreciação
de cada um, entretanto, o presidente Lula, para surpresa dos que construíam o consenso
por meio de delicadas negociações, reviu sua adesão no Pacto Nacional. O Núcleo duro do
Governo Lula aconselhou e convenceu o presidente que esta ação traria altíssimos custos
políticos, fazê-lo implicaria assumir o protagonismo maior da reforma institucional da
segurança pública no país, deixando assim o governo federal de dividir a responsabilidade
pelos fracassos na segurança pública com os governadores (SOARES, 2017; SOUZA, 2015).
A articulação sistêmica do SUSP, proposto no primeiro mandato do governo Lula,
visava: reforma das polícias, do sistema penitenciário, implantação integrada de polícias
preventivas, intersetoriais, dando importância ao diagnóstico, avaliações regulares e
monitoramento sistemático, identificando erros e evitando que estes se repetissem. A
normatização do SUSP seria a definição legal das regras de funcionamento no contexto de
segurança pública nacional, significaria ordenamento do caos e a geração de condições
para efetiva cooperação, horizontal e vertical. No entanto, apesar dos avanços, não se
alterou o cenário da Segurança Pública nacional, visto que não houve a real assunção da
coordenação desse processo pela União. A armadilha política presumida e a contradição
das disputas eleitorais cíclicas diante do tempo necessário para a maturação de políticas
públicas reformistas terminaram levando o governo federal a aposentar precocemente seus
compromissos ambiciosos na segurança pública. A prevalência na tomada das decisões
continuou sendo dos estados, a criação e implementação das GGIs em muitos estados não
foi efetivada e quando foi ocorreu de modo burocrático e sem a sua incorporação no modus
operandi das ações das instituições que os compõem e a maior parte dos recursos do FNSP
continuou sendo utilizada com despesas de capital para aquisição de equipamentos e
material permanente para as polícias, guardas e bombeiros (SOARES, 2017; SOUZA, 2015;
MADEIRA e RODRIGUES, 2015).
Em 2007, já no segundo mandato do governo Lula, o novo Ministro da Justiça, Tarso
Genro, para marcar e inovar em sua gestão, veio com a ideia de criação do Plano Nacional
de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI). O fundamento dessa nova gestão já
estava presente nas concepções e políticas que vinham sendo implementadas pela SENASP,

49
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

que era a ideia de articular e implantar uma política nacional de segurança pública que
tivesse como referência a garantia e ampliação dos direitos da cidadania superando o velho
paradigma segundo o qual segurança pública é “coisa de polícia”. O grande diferencial do
programa era o grande aporte financeiro previsto, com investimentos de R$6,707 bilhões
até o fim de 2012, elaborou-se um conjunto de 94 ações que envolveriam 10 ministérios, em
intervenções articuladas com estados e municípios (SOARES, 2017; SOUZA, 2015).
O PRONASCI reitera vários princípios já esculpidos do Plano Nacional proposto no
primeiro mandato do governo Lula que, por sua vez, sistematizava e explicitava o que já
estava presente de maneira embrionária no Plano Nacional do governo FHC. Endossando
e enfatizando os direitos humanos e eficiência policial como valores não excludentes,
mas complementares, valorizando também a participação do município, rompendo
de certa forma com preceitos restritivos de uma interpretação limitada do artigo 144
da Constituição Federal. Mas, mesmo assim, ainda não houve uma vertebração de uma
política nacional sistemática com metas claras e avaliações permanentes, sendo assim,
apesar das transformações que gerou como política social e inclusiva, deixou intocado
um aspecto crucial para a adoção de um novo modelo de segurança pública: as reformas
institucionais. Diante disso, o quadro fragmentário das instituições de segurança pública
acabou sendo assimilado fazendo com que, mais uma vez, se naturalizasse o legado da
ditadura e fosse chancelando a transição incompleta resignando-se, assim, o PRONASCI
a ser apenas um bom Plano destinado a prover contribuições tópicas (MADEIRA e
RODRIGUES, 2015; SOARES, 2017)
A ascensão de Dilma Rousseff à presidência da República, empossada em 1º de janeiro
de 2011, significou que, pela primeira vez, uma mulher assumia o mais alto posto da República,
e uma mulher que fora presa e torturada pelo regime burocrático-autoritário que encerrara
seu ciclo há 21 anos. As expectativas quanto ao seu governo eram de continuidade e não
de inovação ante o governo que findava, de Lula da Silva – além de pertencerem ao mesmo
partido, o PT, foi sob estrito apadrinhamento do presidente que a candidatura e eleição
de Rousseff aconteceu. Na gestão do Governo Dilma Rousseff (2011-2014; 2015-2016), o
PRONASCI passa a ocupar posição de referência conceitual, no entanto, observamos uma
perda da centralidade da proposta nacional para uma segurança pública. A SENASP perdeu
espaço dentro do Ministério da Justiça e temos uma gestão altamente burocrática e avessa
a ampliação dos debates sobre a segurança pública. Ponto nodal que reflete as insulações
é o retorno às práticas de intervenções militares no contexto de segurança pública urbana,
anunciada desde a sua campanha e executada em conglomerados periféricos do Rio de

50
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Janeiro e na mobilização contra os protestos da Copa do Mundo no Brasil em 2014. Nesse


período, temos o retorno da velha política de segurança pública ancorada no binômio “lei
e ordem”, propiciando um avanço no discurso da repressão como lenitivo da violência e
fortalecendo o corporativismo policial (FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, S.D;
SOUZA, 2015).
A operacionalização das Forças Armadas com vistas a cumprir as missões
constitucionais do Governo Rousseff e a ação política adotada pelo governo federal em
auxílio à segurança pública na cidade do Rio de Janeiro contrasta com o posicionamento
historicamente adotado pelo Brasil na Conferência de Ministros da Defesa das Américas
(CMDA), de que as Forças Armadas não podem ter como destinação primária o combate
ao narcotráfico. Tendo em vista que na medida que os soldados são treinados para matar
quase que por reflexo, portanto, reagindo o mais rapidamente a situações de confronto,
matando para não morrer, o agente de segurança pública é adestrado e armado não para
matar, mas para garantir a liberdade dos cidadãos e preservar sua integridade e, inclusive, a
do criminoso. Assim, o treinamento do policial não deve ser para matar ou morrer e sim para
prender o criminoso. Nesse sentido, a vitória do policial, diferente da do soldado, jamais será
apresentar o cadáver do oponente, mas sim o criminoso são e salvo. É desse modo que o
Estado mantém a legitimidade de sua ação, assegurando a vida de seus nacionais (MATHIAS,
ZAGUE e SANTOS, 2019).
O Governo Dilma é marcado pelo aprimoramento dos militares para operarem dentro
do território brasileiro, principalmente nas favelas do Rio de Janeiro para instalação das
Unidades de Política Pacificadoras (UPP’s) e para cumprimento das operações de Garantia de
Lei e Ordem (GLO). Essa diferença entre discurso externo e ação interna, cada um buscando
atingir um alvo diferente: primeiro, as Forças Armadas, no intuito de garanti-lhes sua função
primordial de defesa do país e mantê-las afastadas do centro de decisão política; o segundo,
a classe média, com sua demanda crescente por maior segurança. No entanto, a política
militar do Governo Dilma redundou, ao contrário do planejado, em maior politização das
Forças Armadas, com crescente militarização da segurança pública.
Desde o início do Governo Dilma (2011) até o golpe parlamentar que a depôs (2016),
podemos notar certa inflexão e menor continuidade com o discurso que vinha sendo
adotado no que se refere a políticas de segurança pública dos governos anteriores. Escolheu-
se como exemplo de operação de Garantia da Lei e da Ordem, aqui entendida como política
militar prioritária do governo Dilma, a utilização das Forças Armadas na segurança pública
da cidade do Rio de Janeiro consubstanciada nas Unidades de Polícia Pacificadora, por sua

51
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

duração e publicidade. Foram realizadas 27 operações no âmbito das UPPs na cidade do Rio
de Janeiro e outras 11 nas áreas de fronteiras. Essas últimas respondem ao Plano Estratégico
de Fronteiras (PEF). Perceber que a nomenclatura utilizada em nada lembra ações de
segurança pública; ao contrário, são próprias dos planos bélicos, apropriados para a guerra.
Apesar da criação de duas leis que merecem ser destacadas: (I) o Estatuto Geral das
Guardas Municipais, ampliando o papel da municipalidade na segurança ao estabelecer
normas gerais e regulamentar o §8º do artigo 144 da CF/88; e (II) a chamada Lei Antiterrorismo,
regulamentando o conceito de terrorismo, posicionando o Brasil no movimento mundial de
maneira mais centralizado no euro-ocidente. O marco principal do seu governo foi o processo
de aprofundamento da militarização no âmbito da segurança pública. O desenvolvimento
de uma agenda interna, com a multiplicação das ações nas UPPs, foi contraditório com a
posição do país nos foros multilaterais regionais. Para o público externo, o Itamaraty e o
Ministério da Defesa, a posição brasileira pela atuação das Forças Armadas é como atores
subsidiários em ações de segurança interna (desconsiderando aquelas falas não oficiais e
mesmo secretas). No âmbito interno, contudo, o país utilizou normalmente as Forças Armadas
em ações de segurança pública em um processo disfuncional, com perda da referência sobre
a sua função constitucional e pelo que vinha sendo construído em termos de Segurança
Pública. Tais operações se revelaram um equívoco ao procurar respostas conjunturais para
problemas estruturais, sempre adotando medidas emergenciais que agravaram ainda mais
os problemas na área de segurança pública (MATHIAS, ZAGUE e SANTOS, 2019; PIRES, 2017),
Desde o início da transição democrática, que teve como marco a Constituição Federal
de 1988, não há uma política nacional de segurança pública democrática e cidadã, o que
coloca iniciativas elementares, como integrar as agências de segurança pública da União,
dos Estados e dos Municípios e criar um sistema de informações e de gestão de segurança
pública, como tarefas complexas. Nenhuma reforma estrutural na segurança pública obteve
êxito no Brasil pós-redemocratização pela ausência de uma ampla coalizão em torno de uma
agenda mínima e pelo padrão de dependência da trajetória dessa política. Ocorreram de fato
deslocamentos em algumas características históricas do sistema de segurança pública, as
quais promoveram pequenas alterações na sua dinâmica federativa, as reformas, no entanto
não atingiram a política de segurança pública que manteve no novo texto constitucional
suas principais características históricas. Se observarmos os diversos programas, ações e
políticas públicas que foram adotadas por estados e pela União nos últimos vinte anos na
tentativa de contribuir para a redução dos homicídios, vamos constatar que quase todos
foram formulados com o objetivo de incrementar a eficácia e a eficiência do que já existe.

52
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Reformas legais mais substantivas permanecem ausentes, são projetos de inovação da


gestão, que não visaram novas práticas ou remodelagem institucional (GONÇALVES, 2009;
LIMA 2019; MARIANO, 2019).
Atente-se para a contradição, no Brasil, entre o ciclo eleitoral (bienal, posto que
os detentores de cargos executivos engajam-se, necessariamente, nas disputas para as
outras esferas federativas) e o tempo de maturação de políticas públicas de maior porte e
vulto (aquelas mais ambiciosas, que exigem reformas e ferem interesses, provocando, em
um primeiro momento, reações negativas e feitos desestabilizadores), torna-se oneroso,
politicamente, arcar com o risco das mudanças, e, portanto, do ponto de vista do cálculo
utilitário do ator individual, torna-se irracional fazê-lo. As várias iniciativas de redução da
violência acabam, mesmo que bem-sucedidas em um primeiro momento, por se diluir na
alternância de lideranças e de mudanças de prioridades políticas e institucionais. Nossas
opções institucionais mostraram-se frágeis e sem lastro de realidade, já que reformas
estruturais necessárias à estabilidade da nação não foram conduzidas e, pior, foram
interditadas por disputas de poder e de interesses privados ou corporativistas (LIMA, 2019;
SOARES, 2017)
Além disso, outro ponto importante que merece destaque, referente ao Sistema de
Justiça Criminal, é quais são as políticas de segurança pública e justiça criminal aprovadas
pela União por meio da legislação pelo Congresso Nacional e Executivo e como estas são
aprovadas. Sem considerar as desigualdades de direitos e de exclusão cultural e institucional,
em quais “tipos sociais” são os objetos preferenciais das agências estatais de administração
de justiça criminal que encontram diferentes (e desiguais) modalidades de aplicação da lei,
em casos específicos. Observamos uma dualidade discursiva que, no nível teórico, apregoa
mais cidadania, mas que na lógica operacional prevalece a de maior penalização e de lei e
ordem. Basta observarmos que além do crescimento vertiginoso da população carcerária
nas últimas décadas, das 646 propostas de alterações dos dispositivos penais apresentados
na Legislatura entre 2003-2007 no Congresso Nacional, apenas 20 propostas tiveram por
objeto relaxar algum tipo penal (WAQUANT, 2012; CAMPOS, 2014).
Dessa forma, podemos dizer que a história recente da segurança pública no Brasil tem
sido marcada por demandas acumuladas e mudanças incompletas. Falta-nos um projeto
de governança das polícias brasileiras e de alinhamento das políticas de segurança pública
aos requisitos da democracia e à garantia de direitos humanos. As instituições policiais e
de justiça criminal não experimentaram reformas significativas nas suas estruturas. Avanços
eventuais na gestão policial e reformas na legislação penal têm se revelado insuficientes

53
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

para reduzir a incidência da violência urbana, numa forte evidência da falta de coordenação
e controle. Temos a necessidade de reformas estruturais no modelo de segurança pública
e justiça criminal brasileiro, cujas respostas aos fenômenos do crime e da violência nos
últimos 27 anos têm se mostrado insuficientes para a promoção de uma sociedade segura e
garantidora de direitos. (LIMA, BUENO, MIGUARDI, 2016)
Ponto que merece uma atenção diferenciada é a questão dos dois tipos de polícias
previstos constitucionalmente. A separação das forças policiais e de suas funções torna o
ciclo policial incompleto, gerando uma disfunção que consome os recursos disponíveis
para esse tipo de atividade e não produz os resultados esperados tornando a sociedade
mais segura. A Polícia Militar, na maior parte do tempo, está mais ocupada em perseguir os
usuários de drogas do que na ação preventiva eficaz, feita com patrulhamento inteligente e
atendimento de qualidade à população. Não cumprindo, também, a Polícia Civil o seu papel
de investigação para elucidação de crimes e levantamento de provas, perpetuando assim
o senso comum de que a solução para o problema da criminalidade é aumentar as penas
de forma aleatória e generalizada. Embora tenha sido proposta e aprovada, em 2009, na 1ª
Conferência Nacional de Segurança Pública (1ª CONSEG), a unificação das polícias esbarra
em ampla resistência de setores favorecidos do contingente policial, delegados civis e altos
oficiais da Polícia Militar. Além disso, a falta de regulamentação do art. 144 da CF/88 faz com
que as forças policiais sigam normas anteriores a Constituição, gerando uma falta de coesão
entre princípios e práticas, gerando uma crise na relação entre a polícia e certos setores da
sociedade (PIRES, 2017; SOUZA, 2015; SZABÓ e RISSO, 2018).
Outro ponto nodal que merece ser inserido no conjunto de reformas estruturais
necessárias do Sistema de Justiça Criminal é a diminuição dos custos para a sociedade
da atual Política de Drogas a qual o Brasil adere, a chamada “Guerra às Drogas”. As atuais
políticas de guerra às drogas causam mais malefícios à sociedade do que as substâncias
em si, sendo estas políticas interpretadas necessariamente como guerra a determinadas
pessoas. Experiências recentes das cidades, estados e países que desenvolveram caminhos
mais humanos e mais eficientes para lidar com a questão das drogas demonstram que o
caminho da maioria das soluções está no âmbito da saúde, educação e do desenvolvimento
de políticas sociais e econômicas, e não na criminalização das condutas, gerando esta opção
um alto custo social e pouquíssimos ou nenhum benefício, embora representem elevados
custos (SZABÓ e RISSO, 2018. VARGAS, 2020).
Além da reforma estrutural e institucional do Sistema de Justiça Criminal, é necessário
também definir uma Política Nacional de Segurança Pública como sistema com regras claras

54
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

do papel da União, dos estados e municípios, do papel das forças de segurança pública,
com visão de cidadania, baseada na integração, intersetorialidade e cogestão, envolvendo
a sociedade, através de gestores e especialistas que possam atuar na área. A falta de
foco da União e suas descontinuidades acarretam em sucessivas falhas na implantação
e consolidação de um Plano Nacional de Segurança Pública, impossibilitando a gestão
integrada dos entes federativos e soluções ancoradas em preceitos, intergovernamentais,
de gestão compartilhada e cogestão, entre outros, induzindo assim ao isolacionismo
institucional e a muitas ações com poucos resultados práticos eficientes.
A nova gramática institucional que tentou romper com os insulamentos regionais e
caminhou no sentido de sair de uma política de Estado que utiliza o aparato da segurança
pública num viés essencialmente policial e repressivo para a construção de um novo
modelo não foi bem sucedida do ponto de vista de redução de homicídios. Dentre todos os
indicadores, de violência e criminalidade, entendemos que este deva ser o que precisa ser
mais levado em consideração. Podemos dizer que ainda não houve uma política federal de
segurança pública sistemática e sistêmica, que tenha logrado êxito em coordenar esforços
na redução dos índices de homicídios Apesar das tentativas de mudanças na política
nacional de segurança pública a partir das iniciativas do governo federal em reposicionar a
segurança pública como fundamento para realização dos direitos de cidadania, assumindo
um papel de indução e centralidade dessa política. Estas tentativas têm sido marcadas pelas
descontinuidades e intermitências, apesar dos esforços de variados governos, ainda não
alcançamos um norte claro com o estabelecimento de um plano integrador com metas e
objetivos claros.

CONCLUSÃO

Observamos, ao longo do estudo, 3 paradigmas distintos no contexto da área de


segurança pública no Brasil: até meados da década de 1990, o paradigma da segurança
nacional, vigente no período da ditadura militar, foi preponderante, sendo substituído
gradativamente no processo de redemocratização pelo paradigma da segurança pública;
que, diante da baixa eficácia para conter o crescimento dos índices de criminalidade, a
partir da segunda metade da década de 90, ainda no governo de FHC, cedeu espaço para
o paradigma da segurança cidadã, ganhando este preponderância por volta do ano 2000 e
continuidade no governo Lula.
As políticas públicas implementadas guardam estreita relação e são diretamente

55
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

influenciadas pelos conceitos e paradigmas que são a base de sua formulação, são a
configuração exata escolhida em determinado local e período
A partir do núcleo paradigmático dessas três perspectivas conceituais, observamos
que o conceito de política de segurança nacional norteou todo o período do regime de
ditadura militar no Brasil e ficou sobremodo relacionado às ações repressivas do Estado.
Ondes as ações contra o inimigo interno permutaram-se dos comunistas para os acadêmicos,
pobres, negros e favelados. A partir do marco do advento da Constituição de 1988, deu-se
a mudança para o paradigma da segurança pública, onde as polícias permaneceram como
personagens do passado sombrio e obscuro, espectros da ditadura. Uma parte do sistema
político-institucional indispensável na conformação de uma sociedade democrática que
ainda manteve os vícios de um Estado-autoritário, excludente e patrimonialista (FREIRE,
2009; SOARES, 2006)
Foi o caso do desgaste ocasionado por anos de ditadura militar com repressão e
acentuada limitação dos direitos civis, favorecendo a imposição do paradigma da Segurança
Pública sobre o da Segurança Nacional, da mesma forma, o crescimento dos índices de
criminalidade e violência demandaram por novos instrumentos mais eficazes para contenção
e controle trazendo, assim, o novo paradigma da Segurança Cidadã ao cenário nacional. A
assimilação destes novos paradigmas se dá de forma destrutiva, mas também construtiva,
onde, depois da assimilação de um novo paradigma, torna-se possível a explicação de um
espectro mais amplo de fenômenos, ou então a explicação com mais precisão de alguns
dos fenômenos já conhecidos. Trabalhando com esta concepção de paradigma, temos por
certo que percepções e práticas, de lei, teoria, aplicação e instrumentação, juntos, fornecem
modelos a partir dos quais se desenvolvem certas tradições coerentes (KUHN, 2018).
O arranjo institucional do modelo tradicional da política, com o aumento crescente dos
índices de violência no Brasil no período pós-transição democrática, expôs do esgotamento
capitaneado pela via repressiva. Fazendo com que os governos federal e municipal fossem
chamados a oferecer respostas. A partir daí, criaram-se centros de pesquisa para estudar
o assunto e formular propostas e a sociedade civil junto com a academia começou a se
reorganizar em torno do tema. Novos atores ampliaram a comunidade política que começou
a pautar diferentes soluções e a defender diferentes paradigmas para a segurança pública
brasileira (GONÇALVES, 2009).
Parte dos atores da comunidade da política de segurança pública passou a demandar
o reforço do poder do aparato repressivo do Estado, com o incremento dos recursos materiais

56
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

e humanos, e com modernização gerencial; alguns atores enfatizaram a importância


de políticas públicas preventivas para um adequado provimento de segurança; outros
propõem reformas radicais para a política, especialmente para as instituições. E mesmo
tendo decorridos mais de 30 anos do início do processo de retomada democrática, o sistema
de justiça criminal foi o setor que menos progressos fez em relação à modernização e à
democratização de suas instituições policiais. As mudanças na área de segurança pública
têm sido vagarosas, localizadas e incrementais, não conformando um quadro de reformas
estruturais da política, que se mostra persistente ao longo da história. No entanto, novos
atores ampliaram a comunidade da política que começou a pautar diferentes soluções e
a defender diferentes paradigmas para a segurança pública brasileira. Apesar de avanços
significativos nos governos FHC e Lula, mesmo com retrocessos no governo Dilma, a
segurança pública permanece na pauta principal dos governos, permanecemos sem uma
política federal que direcione a atuação dos entes federados, sem uma definição clara de
papéis, com uma necessidade urgente de reformas institucionais substantivas, mas sem
perspectivas para a realização das mesmas.

REFERÊNCIAS

1. ADORNO, S. A violência na sociedade brasileira: um papel inconcluso em uma democracia


não consolidada. Sociedade e Estado, vol. X. n. 2. Brasília: Ed. UnB, jul-dez, 1995)

2. ADORNO, S. A gestão urbana do medo e da insegurança: violência, crime e justiça


penal na sociedade brasileira contemporânea. Tese (livre-docência) — Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1996.

3. ADORNO, S. Insegurança versus direitos humanos entre a lei e a ordem. Tempo Social.
São Paulo, V. II, n. 02, p. 129 – 153, out. 2000.

4. BABBIE, E. Métodos de pesquisas de Survey. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

5. BRASIL, Presidência. Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília: Presidência da


República, Secretaria de Comunicação Social, Ministério da Justiça, 1996.

6. BRASIL, Presidência. Plano Nacional de Segurança Pública. Brasília: Presidência da


República, Secretaria de Comunicação Social, Ministério da Justiça, 2000.

57
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

7. CAMPOS, M. da S. Crime e Congresso Nacional: uma análise política criminal aprovada


1989 a 2006. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 15. Brasília, set-dez, 2014.

8. FREIRE, M. D. Paradigmas da segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. Revista


Aurora, v. 3, n. 5, p. 49-58, dez. 2009

9. FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Nota Técnica: pacto federativo e


financiamento da segurança pública. Gestão de dados na Política Nacional de Segurança
Pública. Secretaria Nacional de Segurança Pública e Ministério da Justiça. [s.d]

10. GONÇALVES, L. M. D. Política de Segurança pública no Brasil na pós-transição


democrática: Deslocamentos em um modelo resistente. Dissertação (Mestrado) –
Universidade de São Paulo, Programa de Pós-graduação em Ciência Política apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, 2009.

11. KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. Paulo Aukar (trad). Traduzido a partir
do texto original publicado em KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions.
3 ed. Chicago and London: The University of Chicago Press, 1996.

12. LAKATOS, I. O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica. In:


LAKATOS, Imre.; MUSGRAVE, A. (Org.). A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento.
São Paulo: Cultrix, 1979

13. LAVILLE, C.; DIONNE, J. A construção do saber: manual de metodologia da pesquisa


em ciências humanas. Tradução: Heloísa Monteiro e Francisco Settineri. Porto Alegre:
Artmed; Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

14. LIMA, R. S. de. Segurança Pública como simulacro de democracia no Brasil. Estudos
Avançados. 33 (96) 2019.

15. LIMA, R. S. de. BUENO, S.; MINGARDI, G. Estado Polícias e segurança pública no Brasil.
Revista Direito GV. V. 12, n.1. jan-abr, 2016

16. MADEIRA, L. M.; RODRIGUES, A. B. Novas bases para as políticas públicas de segurança
no Brasil a partir das práticas do governo federal no período 2003-2011. Revista Adm.
Pública. Rio de Janeiro, 49, p. 3 – 21, jan./fev., 2015.

58
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

17. MARIANO, B. D. Segurança Pública e Contexto Federativo no Brasil. In: NASCIMENTO, E.


O.; MARQUES, V. T. (Org.) Segurança Pública: perspectivas, práticas e discursos. Santa
Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2019.

18. MATHIAS, S. K.; ZAGUE, J. A.; SANTOS, L. F. S. A Política milita brasileira no governo Dilma
Rousseff: o discurso e a ação. Opinião Pública, Campinas, vol. 25 n. 1 jan-abr, 2019,

19. PIRES, J. C. Segurança Pública: uma inovação na gestão. Jundiai/SP: Paco 2017.

20. POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Cultrix, 2013.

21. SENTO-SÉ, J. T. A Construção de um discurso sobre segurança pública no âmbito nacional:


apontamentos para um programa de pesquisa. Dilemas: Revista de Estudo de Conflito
e Controle Social. v. 4, n. 3, jul./ago./set., p. 501-521, 2011.

22. SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 23 ed. São Paulo: Cortez, 2007.

23. SOARES, L. E. A Política Nacional de Segurança Pública: histórico, dilemas e perspectivas.


Estudos Avançados. [online], v. 21, n. 61, p. 77-97, 2007

24. SOUZA, R. S. R. Quem comanda a segurança pública no Brasil?: atores, crenças e


coalizões que dominam a política nacional de segurança pública. Belo Horizonte, MG:
Letramento, 2015.

25. SZABÓ, I. RISSO, M. Segurança Pública para virar o jogo. Rio de Janeiro, Zahar, 2018.

26. VARGAS, D. B. Segurança Pública: um projeto para o Brasil. ContraCorrente, São Paulo,
2020.

27. WAQUANT, L. A tempestade global da lei e ordem: sobre punição e neoliberalismo.


Revista de Sociologia Política, Vol. 20, nº 41. Curitiba, fev, 2012.

59
4
Lesbianidades: discussões presentes nas
produções científicas do período de 2018 a 20215
Else Freire de Castro Amorim (1)

ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-5155-1529; Mestranda de Sociologia do Programa de Pós-Graduação


(1)

em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal de Alagoas – ICS/UFAL BRAZIL, E-mail: else.amorim@ics.ufal.


br.

INTRODUÇÃO

É sabido que, socialmente, os indivíduos que não se identificam com a lógica


heteronormativa são discriminados e excluídos em todo território nacional. E essa
discriminação e exclusão, muitas vezes, se excede, chegando à violência física contra essas
pessoas, inclusive à morte delas, executada com premeditação e crueldade, na grande
maioria dos casos.
Quando se fala de mulheres lésbicas, essa realidade se torna ainda mais grave, pois
sofrem com a discriminação social, fruto da herança patriarcal, machista, sexista, misógina e
cis heteronormativa, que impõe padrões limitadores.
Nessa trajetória, a população lésbica, marcada por rótulos discriminatórios, sofre
reiteradas violações de direitos e, com certa frequência, é forçada a desenvolver vidas
duplas, uma vez que é oprimida pela angústia de omitir sua sexualidade, para não arcar com
eventuais prejuízos para suas relações sociais (WELZER-LANG, 2001).
Com a emergência de movimentos sociais reivindicando a aceitação de práticas e
relações divorciadas dos modelos hegemônicos, levou-se à arena política e ao debate
jurídico a ideia dos direitos sexuais (RIOS, 2011). Quanto a isso, ainda há resistência arraigada
na construção heteronormativa.

5 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap4
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Nesse contexto, o presente capítulo tem como objetivo identificar como pesquisadores
e pesquisadoras têm estudado o tema lesbianidades. Inicialmente será explanado o Estado
da Arte sobre as pesquisas brasileiras que se voltam para a temática. Em seguida, desenvolve-
se discussões com os textos escolhidos para compreendermos aspectos e dimensões que
são notórios em vivências das mulheres lésbicas. Buscou-se organizar os resultados dos
trabalhos selecionados com a pretensão de produzir fonte para novas pesquisas.
Os diálogos interdisciplinares com os estudiosos possibilitaram notar que, dentre as
percepções acerca da mulher lésbica, um ponto em comum nas pesquisas analisadas é a
exclusão do sujeito que não se encaixa em normas padrões de gênero.
Nesse mesmo ensejo, é importante perceber como este processo de identificação
e rotulação anula a diversidade, pois atinge a subjetividade, a essência do indivíduo. Uma
seletividade que torna alguns sujeitos marginalizados e distantes da vida social. O indivíduo
estigmatizado pode descobrir que se sente inseguro em relação à maneira como os “normais”
o identificarão e o receberão (GOFFMAN, 2004. p. 15), sendo esta violência e discriminação
silenciada ou negada.
Procuram, em primeiro lugar, desconstruir a hierarquia estabelecida entre hétero
e homossexualidade, independente do gênero; e, em segundo, romper com a fixidez
dos conceitos e superar a lógica binária que cinde e rotula as pessoas como héteros ou
homossexuais (CARVALHO, 2012a, p. 155).
Como será apresentado a seguir, verificou-se o aumento de interesse em áreas de
conhecimento onde o tema era pouco explorado, inclusive no campo tecnológico e econômico.

PERCURSO METODOLÓGICO

Metodologicamente, fez-se um levantamento bibliográfico do que a academia


tem produzido a respeito do tema no intervalo de 2018 e 2021, utilizando os descritores
“lesbianidades” “pesquisa empírica”, nos sites da Coordenação de Aperfeiçoamento
Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Scientific Electronic Library Online (SciELO), do
Google Acadêmico, assim como em repositórios das universidades públicas federais. Este
procedimento resultou na identificação de 209 pesquisas independentemente da área em
que os pesquisadores estavam inscritos.
Dentre essas 209 pesquisas encontradas, foi realizada uma filtragem daquelas que
buscavam estudar o tema a partir do viés empírico e que se encaixavam nos critérios
cruciais para o enquadramento, ou seja, a abrangência e a importância do tema no

61
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

conteúdo de cada obra. Em outras palavras, o quanto o assunto estava presente na obra:
apenas em uma seção? Em um capítulo? E, fundamentalmente, a centralidade, isto é, se
havia o objetivo de abordar o tema. Nesse caso, quando o tema era marginal ou superficial,
a pesquisa foi desprezada.
Foram descartadas ainda produções contendo o mesmo título e autoria, por se
tratar de uma repetição, por exemplo, um artigo publicado nos anais de um congresso e
posteriormente em um periódico. A análise desse corpus levou à exclusão de 179 pesquisas
por não se encaixarem nos critérios estabelecidos.
O passo seguinte foi identificar o ano de publicação, tipo de pesquisa, áreas de
pesquisa, os autores e obras mais recorrentes, principais conceitos teóricos apresentados
e quais eram os que apareciam mais constantemente e, em seguida, consultaram-se as
referências bibliográficas de cada um dos 39 trabalhos, levantou-se a partir disto, o panorama,
conforme será exibido adiante.

APRESENTAÇÃO DA PRODUÇÃO TOTAL DO LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO

O objetivo desta seção é a apresentação da produção total do levantamento


bibliográfico, em uma perspectiva tanto quantitativa quanto qualitativa, relacionando
evolução temporal, tipos de obras e áreas de conhecimento.
A Tabela 1, abaixo, oferece uma ideia do quadro geral de toda produção coletada no
período determinado, por meio de um cruzamento de possibilidades.

Tabela 1: Produção total e relativa no período


Ano Artigos Periódicos Artigos Anais Teses Dissertações Total %
2018 - - 1 2 3 8%
2019 1 - - 8 9 23%
2020 12 1 - 3 16 41%
2021 7 - 1 3 11 28%
Total 20 1 2 16 39 100%
% 51% 3% 5% 41% 100%
Fonte: Elaboração da autora, 2021.

Pela vertical, tem-se uma ideia da evolução ao longo do tempo, nota-se que a produção
de pesquisas empíricas com o objeto lesbianidades apresentou uma evolução gradativa
com o passar dos anos, em 2018 encontrou-se três trabalhos acadêmicos, sendo uma tese
e duas dissertações. Em 2019, o número total triplica passando para nove trabalhos, sendo

62
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

oito dissertações e uma publicação em periódicos, indicativo de abertura de editoriais para


pesquisas empíricas, tratando de identidade de gênero e orientação sexual com enfoque em
mulheres lésbicas. Já em 2020, o destaque são artigos publicados em periódicos perfazendo
12 trabalhos, uma publicação em anais de eventos acadêmicos e ainda três dissertações,
fechando a produção acadêmica com 16 pesquisas.
Observa-se que, em 2021, as pesquisas já se aproximam à totalidade do ano
anterior, com 11 trabalhos até o momento da conclusão do presente estudo, o que leva
à perspectiva de que o número de pesquisas pode superar o total da produção de 2020,
mantendo o crescimento aritmético, conforme período analisado. Na horizontal, observa-se
a subdivisão por tipo de obra a cada ano. Com esta análise, depreende-se que as pesquisas
se concentram em dissertações e publicações em periódicos, o que pode indicar não apenas
comprometimento pessoal do pesquisador com o tema, no caso dos mestrados, como
também empenho do mercado editorial em publicar artigos, o que revela significativo
interesse pela temática.
No que diz respeito à produção total por tipos de obras, predominam artigos
publicados em periódicos, correspondendo a 51% do total, logo após dissertações em
repositórios com 41%. As últimas e penúltimas linhas e colunas representam totais e
participações percentuais, interpenetrando-se.
Já a Tabela 2 exibe essa mesma produção pelo ângulo das respectivas áreas do
conhecimento. Observa-se a mesma proporção em três áreas distintas: sociologia, psicologia
e educação. Logo em seguida, destaca-se a antropologia e o direito.

Tabela 2: Pesquisas por áreas específicas da Capes


Área de Capes Quantidade
Sociologia 7
Psicologia 7
Educação 7
Antropologia 5
Direito 4
Filosofia 2
Jornalismo 2
Letras 1
Medicina 1
Enfermagem 1
Ciência da Informação 1
Economia 1
Total 39
Fonte: Elaboração da autora, 2021.

63
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Na sociologia, pesquisas envolvendo os fenômenos sociais relacionados à violência


simbólica, humanidades, a expansão de grupos e núcleos de pesquisa, assim como
engajamentos dos movimentos e organizações LGBTQIA+ (Abreviação de Lésbica, Gay,
Bissexual, Transexual, Travesti, Transgênero, Queer, Intersexual e Assexual e o símbolo “+”
representa outras sexualidades ou identidades de gênero que não estão incluídas nas
restantes letras) e políticas públicas são produzidas. Outros temas também permearam as
produções sociológicas, como a construção identitária das lésbicas; construção cultural,
moral heteronormativa; processo de elaboração de identidades, marcações sociais,
nomeadamente raça, gênero e classe.
A psicologia é a área de atuação com mais pesquisa abordando a sexualidade como
discursos, comportamentos, relacionamentos, no âmbito coletivo e íntimo. Análises das
implicações na saúde mental, aspectos concernentes à saúde física, sexual e reprodutiva; a
percepção da identidade de gênero, estresse e adoecimento psicossocial, e ainda sofrimento
psíquico, autopercepção de mulheres lésbicas sobre sua feminilidade.
No campo da educação, as pesquisas estão disseminadas tanto na perspectiva dos
discentes, quanto dos docentes, às questões de gênero e sexualidade que permeiam a
escola, os discursos sobre gênero e sexualidade que estão sendo produzidos e refutados
nas práticas dos gestores e no cotidiano escolar.
Logo em seguida, destaca-se a antropologia, o que já se esperava, uma vez que a
temática é bastante propícia para elaboração de etnografias. Os processos de construção
de significados e experiências vividas por mulheres, que se relacionam afetivo e
sexualmente com outras mulheres, é o foco analítico. Dentre os antropólogos, a inclinação
em compreender como a (homo) sexualidade feminina passa por um jogo entre ocultar e
revelar suas identidades, de acordo com a dinâmica que estão envolvidas, de que modo
são tecidas e gerenciadas as negociações empreendidas por estas mulheres, seja no âmbito
do trabalho, da família, dos estudos, dos movimentos sociais ou através da manutenção
de suas agências e intencionalidades. No campo etnográfico, o que se observou com mais
frequência foi o modo como mulheres que se identificam com uma sexualidade dissidente
conferem manutenção as suas relações familiares.
No direito, o debate gira em torno do sistema de justiça criminal, segurança pública,
criminologia e o tratamento dos Direitos Humanos na perspectiva da população LGBTQIA+;
o alcance da Lei Maria da Penha especificamente para mulheres lésbicas é abordado, como
ainda a possibilidade da criminalização da homofobia e a preocupação com as questões

64
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

legais no que diz respeito às questões de parental, casamento homoafetivo e violências


sofridas pelas lésbicas.
Via de regra, o tema da violência aparece nas suas mais variadas formas, as quais
abrangem, principalmente, aspectos físicos, psicológicos e sociais, assim como violações de
direitos, vindas de diversas direções e atores sociais, inclusive daqueles que, em tese, menos
se esperaria: escola, família e trabalho, são presença constante nas pesquisas.
Os dados sobre a violência letal aparecem em alguns estudos e levam a ponderar o
instrumento penal como meio de proteção desta população, sobretudo com debates sobre
lesbocídio. Isso se dá em reflexo de outros movimentos sociais já amparados pela tutela
penal (negros e mulheres).
De fato, como analisou Masiero (2014), à primeira vista, o que pode parecer paradoxal,
um movimento social que luta por transformações culturais, busca a igualdade e liberdade
sexual mantendo a crença no Direito positivo e punitivo. Entretanto, justificado no real
problema empírico vivenciado pelos homossexuais, é inegável pensar no instrumento penal.
No âmbito jurídico, os estudos versam ainda sobre o entendimento do STF (Supremo
Tribunal Federal) que adequou o conceito de racismo, para que fosse compreendido em
sua dimensão social, projetando-se para além de aspectos estritamente biológicos ou
fenotípicos (KESKE; MARCHINI, 2019)
Diante disso, o PLC 122/2006, que continua a gerar polêmica no Legislativo e na
sociedade, sofre constante pressão popular e oposição interna de bancada religiosa, que
se posiciona contrária à sua adoção, por entenderem que o mesmo violaria as liberdades
religiosas e de expressão (MASIERO, 2014).
É importante pensar ainda que as mulheres lésbicas muitas vezes são atravessadas
interseccionalmente, podendo ser atingidas ainda pela violência sexual, pela violência
de gênero e de violência LGBT, percebe-se, assim, que está inserida num cruzamento de
múltiplas violências. Cabe também a ressalva importante de que existe grande dificuldade
em obter dados públicos e sistemáticos, tanto no âmbito nacional, quanto entre os estados
da federação sobre a violência lesbofóbica.
Como o Brasil, ainda é marcado por altos índices de violência6 e de violação dos
direitos sociais por motivo de orientação sexual não heterossexual e identidade de gênero

6 De acordo com o Relatório Anual de Assassinato de Homossexuais relativo ao ano de 2018, produzido pelo
Grupo Gay da Bahia, foram documentadas 420 mortes violentas de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais
no Brasil, perfazendo um assassinato a cada 20 horas, deixando o Brasil na posição de primeiro lugar no
ranking mundial de assassinatos homofóbicos.

65
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

discordante do sexo biológico7, a homossexualidade, a orientação sexual e a identidade de


gênero permanecem como um obstáculo à plena realização dos direitos, pelas complexas
formas de hierarquização sexual.
Apesar da constante luta pelos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+, a violação
dos direitos fundamentais é facilmente percebida na sociedade brasileira. A homofobia
persiste tanto de forma velada, como através dos crimes de ódio, que apresentam números
alarmantes. Essa realidade decorre, em parte, do enraizamento de uma visão normativa
estigmatizante e discriminatória, que aflige milhares de pessoas que vivem uma sexualidade
diversa do viés heteronormativo (RIOS, 2011).
Vem na esteira dos debates em torno das questões de gênero, primordialmente das
relações de poder, levadas a cabo por autores/as como: Kimberle Crenshaw, Stuart Hall,
Audre Lorde, Avtar Brah, Adrienne Cecile Rich, Simone de Beauvoir, Howard Becker, entre
outros, ver gráfico 1.

No gráfico 1, as autoras e autores mais utilizados nos trabalhos analisados.

Fonte: Elaboração da autora, 2021

No Brasil, despontam pensadoras como Guacira Lopes Louro, Richard Miskolci, Regina
Facchini, Jaqueline Gomes de Jesus, João Silvério Trevisan, Heleieth Saffioti, Tania Navarro-
Swain, Djamila Ribeiro e Lélia Gonzalez.

7 Sobre a temática existe uma série de debates por parte de especialistas e movimentos sexuais, Cf. LAQUEUR,
Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1840778/mod_resource/content/0/Thomas-
Laqueur-Inventando-o-Sexo%281%29.pdf; WOLFF, Cristina Scheibe; SALDANHA, Rafael Araújo. Gênero,
sexo e sexualidade: Categorias do debate contemporâneo. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/
pluginfile.php/1840778/mod_resource/content/0/Thomas-Laqueur-Inventando-o-Sexo%281%29.pdf.

66
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Ao consolidar as referências mais citadas nos artigos, encontraram-se algumas dessas


autoras e obras com maior frequência de citação. Outras autoras e obras serviram de apoio
conceitual em alguns dos artigos encontrados, como é o caso de Bell Hooks e Patrícia Collins.
A abordagem interdisciplinar entre as teorias Feministas, Pós-estruturalistas, a perspectiva
da sexualidade Foucaultiana, a teoria Queer e do gênero em Judith Butler, relacionando-os
ao pensamento interseccional e feminista decolonial.
As pesquisas que flertam com Foucault tomam a temática de gênero e sexualidade
a partir da correlação com os “sistemas de poder que regulam sua prática”, com a “formação
dos saberes que a ela se referem” e a produção das subjetividades, que são “as formas pelas
quais os indivíduos e experiências acontecem diferem em cada pessoa, situada histórica e
culturalmente, e se constitui em se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade” (FOUCAULT,
1984, p. 10).
Ao abordarem a teoria Queer, propõem que os sujeitos e sua sexualidade são
formados posteriormente à sua existência, a partir de sua contextualização na sociedade,
com isso, buscam romper os modelos binários fixados na heteronormatividade, partindo do
entendimento de que o intuito de privilegiar certa parcela da sociedade não é natural.
Conforme se revela na Teoria Queer, propõe-se uma abordagem a se desconstruir a
ideia de que existe sexualidade normal, como também definições de gênero e identidade de
gênero fixas ou estáveis. Não obstante, a Teoria Queer rompe com a lógica binária homem/
mulher, uma vez que recusa o fechamento identitário no plano da orientação sexual e do
gênero. Sua perspectiva apoia uma desconstrução crítica, que desafia o próprio regime da
sexualidade, ou seja, os conhecimentos que constroem os sujeitos como sexuados, marcados
pelo gênero, e que assumem a heterossexualidade ou a homossexualidade como categorias
que definiriam a verdade sobre eles (CARVALHO, 2012a, p.155).
A Teoria Queer aponta para uma nova forma de crítica política. “Em uma perspectiva
queer, é possível querer algo diverso do que nos é oferecido como meio único de adquirir a
igualdade” (MISKOLCI, 2011, p. 67).
Judith Butler (2006, p.16) comenta que as sociedades constroem normas que
regulam e materializam o sexo dos sujeitos e que essas “normas regulatórias” precisam ser
constantemente reiteradas para que tal materialização se concretize. A teórica considera
que seria um erro sucumbir a uma noção progressiva da história pela qual se entende que
diferentes marcos vão se sucedendo e suplantando-se uns aos outros.
Para ela, não se pode narrar esta história, simplesmente porque nenhuma dessas
histórias pertence ao passado: essas histórias continuam ocorrendo de formas simultâneas

67
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

e solapadas no instante mesmo em que as contamos. Em parte, se dão mediante as formas


complexas em que são assumidas por cada um desses movimentos e práticas teóricas
(BUTLER, 2006, p.17)
Assim, a teoria Queer busca ir de encontro às relações sociais que enquadram cada
um em uma identidade (normalização identitária), ou adequam os corpos em determinado
gênero, dentro de uma normalidade construída pela sociedade, que moldam os sujeitos
para que sejam aceitos. Pelo contrário, a perspectiva Queer percebe que as identidades
socialmente prescritas são uma forma de disciplinamento, de controle, de normalização,
portanto, questiona e propõe algo distinto, não normalizador ou compulsório, uma
ressignificação da realidade.
Guacira Lopes Louro foi destaque dentre os referenciais teóricos, sendo utilizada quase
que na totalidade das pesquisas analisadas. A teórica brasileira, que tem várias publicações
na área de gênero, sexualidade, educação em revistas e livros nacionais e estrangeiros, foi
identificada em 33 trabalhos, deixando de ser citada em apenas seis estudos.
As obras mais utilizadas como aporte teórico foram “Um corpo estranho: ensaio sobre
sexualidade e teoria queer” no ensaio “Marcas do corpo, marcas de poder”, Guacira Lopes
Louro (2016b) escreveu “marcas” deixadas pela experiência discursivamente no processo
de construção dos corpos, onde algumas questões sobre o corpo e a sexualidade são
repensadas à luz de um novo questionamento.
Para a autora, pensar ‘queer’ é uma forma de incluir a pluralidade de vivências de
gênero e das sexualidades, realidade constatada pela própria autora na sua vivência pessoal
e profissional. Ao atribuir-lhes um sentido dentro das possibilidades do conhecimento,
permite-se que estas vivências adquiram um significado não só hermenêutico, mas também
político, designadamente se pensarmos nas potenciais implicações para o campo educativo
(LOURO, 2016b, p.10).
Outra vertente presente nas pesquisas é o prisma interseccional e o feminismo
negro, que levam em consideração que as violências contra os corpos lésbicos são
naturalizadas pela sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista. Compreende-
se que, neste caso (mulheres negras, lésbicas, pobres), as opressões se acumulam de
diversas formas, seja pelo androcentrismo, sexismo, racismo e machismo, pois processos
normalizadores justificam o uso das diferenças como marcadores de hierarquia e opressão.
Assim, descortina o debate da invisibilidade da mulher negra dentro da pauta feminista,
que perpetra a essa mulher não ter seus problemas sequer nomeados. Situação que é
agravada se a mulher for lésbica.

68
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

A interseccionalidade leva em consideração, na verdade, que “nem sempre se lida


com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos” (CRESHWAN, 2012, p. 10). É
imprescindível olhar para a realidade do preconceito de gênero e de raça para compreender
como os dois podem se unir para causar ainda mais danos. Esse fenômeno descreve que se
a mulher estiver na interseção onde múltiplas formas de exclusão se cruzam, ela é atingida
por todas elas ao mesmo tempo.
Dessa maneira, Ribeiro (2016) assevera que mulheres negras vêm historicamente
pensando a categoria mulher de forma não universal e crítica, apontando sempre para a
necessidade de se perceber outras possibilidades de ser mulher. “Pensar como as opressões
se combinam e entrecruzam, gerando outras formas de opressão, é fundamental para se
pensar outras possibilidades de existência” (RIBEIRO, 2016, p. 99).
Nesse ensejo, Ribeiro (2016) coloca que o movimento feminista negro levanta
a discussão de que a ausência de um olhar étnico-racial sobre esse movimento tem
invisibilizado as mulheres negras e suas lutas como, por exemplo, a falta de um olhar étnico-
racial para políticas de enfrentamento à violência contra a mulher.
A autora afirma que, para pensar a interseccionalidade, é necessário perceber que
“não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras, pois raça, classe e gênero não
podem ser categorias pensadas de forma isolada, mas sim de modo indissociável” (RIBEIRO,
2016, p. 101), porquanto, a combinação de opressões coloca a mulher negra num lugar
no qual somente a interseccionalidade permite uma verdadeira prática, que não negue
identidades em detrimentos de outras.
Presente a perspectiva interseccional, torna-se possível lidar com os desafios da
desigualdade e da discriminação, sem desconsiderar as subjetividades e as identidades
concretas dos sujeitos envolvidos. A intersecção de diversos critérios (tais como raça,
classe, gênero, religião, idade e orientação sexual) é “reveladora de maneiras particulares de
opressão e privilégio” (OLIVEIRA, 2006, p. 66).
Ainda conforme o estudo analítico realizado nas 39 pesquisas selecionadas, outros
conceitos aparecem como demonstrado no gráfico 2 abaixo.

69
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Gráfico 2: Conceitos mais utilizados

Fonte: Elaboração da autora, 2021.

Como já demonstrado anteriormente, os conceitos interseccionalidade e feminismos


são recorrentes e primordiais para trabalhos científicos sobre lesbianidades. As lutas dos
coletivos LGBTQIA+ pautam tanto no mundo acadêmico como nas redes sociais e tensionam
a grande mídia quanto à questão da invisibilidade ou a “visibilidade cuidadosamente
regulada” (HALL, 2013).
Este tema foi trazido também por Chamberland (2002), que afirmou que o problema
não foi o acesso das lésbicas ao movimento feminista, mas a visibilidade dada à sua
participação, tanto no interior dos movimentos quanto em suas intervenções públicas. O
reconhecimento da contribuição dessas mulheres, a discussão de suas especificidades, a
cobrança de seus direitos e o interesse na sua história estão entre as razões que levam as
lésbicas a questionar o feminismo. As demandas específicas das lésbicas foram ocultadas e
evitadas. De acordo com a autora, essas mulheres foram aceitas no movimento, desde que
se mostrassem discretas.
O movimento lésbico no Brasil surgiu atrelado ao movimento feminista e ao
movimento gay, contudo, as mulheres lésbicas foram invisibilizadas dentro dos dois
movimentos, devido ao caráter heteronormativo das demandas no movimento feminista e
ao machismo presente nas pautas gays (CARVALHO, 2017).
Heteronormatividade, segundo Richard Miskolci (2009; 2012), é a ordem sexual
do presente fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo, expressando as
demandas e as obrigações que derivam do pressuposto da heterossexualidade como

70
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

fundamento basilar da sociedade. O autor aponta também algumas diferenças entre


heteronormatividade e os conceitos de heterossexismo e heterossexualidade compulsória.
Para Miskolci (2012), heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou deveriam
ser, heterossexuais; enquanto heterossexualidade compulsória é a imposição sistemática
de relações afetivo-sexuais entre pessoas do sexo oposto, por meios educativos, culturais
e institucionais. Num sistema heteronormativo, traçam-se os limites entre o aceitável e o
condenável; o permitido e o criminalizado; e, em última instância, o normal e o desviante.
Sendo assim, a desconstrução da lógica binária imposta pela heteronormatividade,
com o objetivo de problematizar questões sobre a relação de mulheres lésbicas com os
mecanismos de controle social, marcados pela patologização e estigmatização sob o ponto
de vista das condutas desviantes. Dentro dessa temática, o sociólogo americano Howard S.
Becker (2008) discutiu a problemática sob o ponto de vista das condutas desviantes, que
identificam pessoas não aceitas como membro de uma sociedade, por se portarem em
desacordo com o padrão instituído pelo grupo social em que estão inseridos. “Para todo
o tipo de atividade, observando que em toda parte pessoas envolvidas em ação coletiva
definem certas coisas como ‘erradas’, que não devem ser feitas, e, geralmente tomam
medidas para impedir que se faça o que foi assim definido” (BECKER, 2008. p. 13).

CONCLUSÃO

O conteúdo da grande maioria das obras deste levantamento expressa a crítica


contra o discurso heteronormativo e homofóbico radicados na sociedade brasileira, o que
afeta profundamente as vivências. Os trabalhos denunciam opressões, violências e violações
de direitos. Sob esse ponto de vista, essa produção é um bloco relativamente homogêneo
e pode ser vista como matriz discursiva que se junta àquela que vem dos movimentos,
organizações, núcleos e grupos de pesquisa relacionados à pauta LGBT+. Com os resultados
das pesquisas, confirma-se que o tema em questão ainda é muito cercado por preconceitos,
rótulos e estigma social em razão da sexualidade fora da matriz heteronormativa e que há
distintos modos de subjetivação singular diante da sexualidade e do gênero.
Ao observar a evolução temporal dessa produção, percebe-se o crescimento
expresso na preocupação acadêmica com a temática interrelacionada com outros temas
que já ocupam espaço de forma significativa, tais como: saúde, educação e até econômico,
demonstrando que o mercado sinaliza com interesse em criar estratégias específicas para
atingir esses possíveis consumidores.

71
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Importante frisar que inúmeros foram os debates sobre as temáticas expostas,


que buscam não somente discutir, mas também aprovar propostas de políticas públicas
para o enfrentamento da discriminação e ainda promover a cidadania. Os pesquisadores
questionam e tensionam ainda sobre a efetivação das demandas de Direitos Humanos da
população LGBTQIA+. Entende-se que, para que esta não seja tão somente simbólica, deve
ser acompanhada de um aparato, um cuidadoso planejamento pedagógico, que demonstre
que a heterossexualidade pode ser confrontada, não compartilhada por todos e nem
soberana sobre as diversas sexualidades.
Por fim, também, a intervenção no controle social informal (escola, família, mídia)
pode ser eficaz se buscar desconstruir as estruturas sociais que fortalecem o preconceito e
a discriminação. O prisma interseccional, vertente sempre presente, leva em consideração
que as violências contra os corpos lésbicos são naturalizadas pela sociedade de herança
escravocrata, patriarcal e classista.
Conclui-se que uniformizar corpos, sentimentos e comportamentos reforça o
sexismo, o racismo, a lesbofobia. É, portanto, primordial realizar práticas inclusivas baseada
na desconstrução e reconfiguração dos paradigmas atuais para além dos discursos, das
representações unívocas, que colocam todas no grupo de pessoas estigmatizadas e as
conduzem para invisibilidade interseccional. É necessário questionar os pressupostos que
reafirmam a superioridade dos homens e do masculino, uma vez que relações patriarcais são
apenas uma das formas específicas de relação de gênero em que as mulheres são colocadas
numa posição subordinada.
Precisamos mostrar cada vez mais em nossos trabalhos acadêmicos sobre gênero
e sexualidade que, mesmo sendo atravessados por ações discursivas de poder e saber,
que nos marcam e que causam preconceitos, discriminações, violências, somos, a partir
das (re)significações e (des)construções desses discursos, potências de resistência e de
poder, a formação sócio-histórica da sociedade, erigida por um conjunto de valores morais
acerca dos corpos, dos gêneros, das sexualidades e dos comportamentos de indivíduos
determinados ao padrão unívoco do que é ser homem e ser mulher. De qualquer forma,
sob diferentes pontos de vista e interesses, a temática das lesbianidades está muito
presente na sociedade, o que deverá impulsionar ainda mais a produção acadêmica. Nesse
contexto, entende-se que tal produção pode e deve facilitar uma mudança na percepção
da sociedade frente aos homossexuais.

72
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

REFERÊNCIAS

1. BECKER, H. S. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

2. BRAH, A. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu (26). Jan-jun, 2006.


Disponível em <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf>. Acesso em: 25 jul.
2021.

3. BUTLER, J. Deshacer el género. Barcelona: Paidós, 2006.

4. CARVALHO, A. B. de. Experiências formativas e a constituição de subjetividades


de militantes lésbicas em Pernambuco. Dissertação (Mestrado em educação) –
Universidade Federal do Pernambuco, Recife, 2017.

5. CARVALHO, S. Sistema Penal & Violência. Sobre as possibilidades de uma criminologia


queer. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito. v.4, n.2, Porto Alegre:
EDIPUCS, 2012a. Disponível em< http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/
sistemapenaleviolencia/article/view/122 10/8809>. Acesso em: 28 jul. 2021.

6. CARVALHO, S. Salo. Sistema Penal & Violência. Sobre as possibilidades de uma


criminologia queer. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito. v.4, n.2, Porto Alegre:
EDIPUCS, 2012a. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/
sistemapenaleviolencia/article/view/122 10/8809. Acesso em: 04 dez. 2021

7. CHAMBERLAND, L. O lugar das lesbianas no movimento das mulheres. Labrys, Estudos


Feministas. Disponível em <http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2>. Acesso em:
24 jul. 2021.

8. CRENSHAW, K. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Disponível em


< ttp://www.acaoeducativa.org.br/fdh/wpcontent/uploads/2012/09/Kimberle-
Crenshaw.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2021.

9. FOUCAULT, M. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. 13. ed. Rio de Janeiro:
Graal, v. 2, 1984.

10. GOFFMAN, E. Estigma – notas sobre a manipulação da identidade


deteriorada. 1891. Disponível em< http://www.aberta.senad.gov.br/medias/
original/201702/20170214-114707-001.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2021.

73
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

11. HALL, S. Quem precisa da identidade? In: Tomaz Tadeu da Silva (Org.) Identidade e
Diferença. Petrópolis: Vozes, 2000.

12. KESKE, H. A. G.; MARCHINI, V. C. A Criminalização da Homofobia no Brasil: análise


jurisprudencial e doutrinária. Revista Prâksis, Novo Hamburgo, A. 16, N. 2, Mai./Ago.
2019. Disponível em: https://periodicos.feevale.br/seer/index.php/revistapraksis/article/
view/1761. Acesso em: 04 jan. 2020.

13. LOURO, G. L. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 2 ed. 3. Reimp.
Belo Horizonte: Autêntica, 2016b.

14. LOURO, G. L. Teoria queer – uma política pós-identitária para a educação. 2001. Disponível
em <http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8639>. Acesso em: 23 jul. 2021.

15. MASIERO, C. M. O Movimento LGBT e a Homofobia. Novas perspectivas de políticas


sociais e criminais. Porto Alegre: Criação Humana, 2014.

16. MISKOLCI, R.; SIMÕES, J. A. Apresentação. Cadernos Pagu. Campinas: Núcleo de Estudos
de Gênero Pagu-UNICAMP, n. 28 p. 9-19, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/
pdf/cpa/n28/02.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2021.

17. MISKOLCI, R. Não ao sexo rei: da estética da existência foucultiana à política queer.
MAGALHÃES, B. R. de; SABATINE, T. T.; SOUZA, L. A. F. de (Orgs.). Michel Foucault: sexualidade,
corpo e direito. Marília: Oficina Universitária; São Paulo/Cultura Acadêmica, 2011.

18. MISKOLCI, R. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da normalização.


In: Revista Sociologias, Número 21, p. 150-182, 2009.

19. MISKOLCI, R. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica,
2012.

20. OLIVEIRA, V. M. Um olhar interseccional sobre feminismos, negritudes e lesbianidades


em Goiás. Disponível em: https://portais.ufg.br/up/109/o/Vanilda.pdf. Acesso em: 22 jul.
2021.

21. RIOS, R. R. Direitos humanos, direitos sexuais e homossexualidade. Centro


Universitário Ritter dos Reis, Brasil, 2011. Disponível em: https://periodicos.ufpa.br/
index.php/amazonica/article/view/781/1086. Acesso em: 03 mar. 2021

74
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

22. RIBEIRO, D. Feminismo negro para um novo marco civilizatório. 2016. Disponível em:
https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2017/02/9-sur-24-pordjamila-ribeiro.pdf.
Acesso em: 23 jul. 2021.

23. WELZER-LANG, D. A. Construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia.


Estudos Feministas. Florianópolis: 2001

75
5
Quebrando Paradigmas: LGBT’s e a
Representatividade Política no Brasil8
Vanessa Andriani Maria (1)

(1)
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3492-8512; Advogada, Graduada em Direito pela ULBRA – Universidade
Luterana do Brasil, atuando em todos os graus de jurisdição Federal e Estadual; possui escritório próprio
em Santa Maria – RS, Especialização em Advocacia Trabalhista e Advocacia Cível pelo Centro Universitário
UNA. Graduada em Agronomia pela UFSM desde 1997 e Mestre em Ciência e Tecnologia Agroindustrial
pela UFpel – Universidade Federal de Pelotas. Graduanda em Formação Pedagógica em Pedagogia (Centro
Universitário Leonardo da Vinci). Doutoranda em Educação pela UNIT/Sergipe. Integra a Comissão de
Diversidade Sexual e Gênero da OAB Subseção Santa Maria – RS. Integra o Grupo de Pesquisa em Educação,
Tecnologia da Informação e Cibercultura (GETIC/UNIT/CNPq), BRAZIL, E-mailvanessamariaadvs@gmail.com

INTRODUÇÃO

Existe pouca literatura brasileira que retrate os vínculos do Movimento LGBT e os


partidos políticos no Brasil, sinalizando que este tema se estabelece como um vasto campo
a ser explorado pelos pesquisadores da área.
A força política do Movimento LGBT, construída tanto nas atividades de massa, como
nas Paradas do Orgulho, na organização social composta por um conjunto de grupos,
organizações e redes de ativismo de LGBT, paralela a uma conjuntura governamental em nível
Federal mais favorável com as vitórias eleitorais consecutivas do Partido dos Trabalhadores,
possibilitou não só a construção de políticas públicas de diversidade sexual e de gênero
no Estado, mas também a criação de canais de participação social desse segmento que
potencializaram exponencialmente a interlocução do Movimento LGBT com o Estado,
em especial o Poder Executivo, com reverberações em outras instâncias estatais como o
Judiciário e, em menor medida, com o Legislativo (FEITOSA, 2016).

8 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap5
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Nesse sentido, é possível dizer que o Movimento LGBT obteve relativos ganhos
e conquistas ao conseguir fazer de suas necessidades uma “questão de Estado”,
impulsionando temáticas e assuntos até então tidos como próprios do campo privado
para a esfera pública, pois o processo de constituição desta população como sujeitos
políticos encontra seu ponto mais alto no momento em que obtém reconhecimento da e
na sociedade essencialmente política.
Salienta-se que é a partir de 2003, todavia, que surgem as primeiras iniciativas
governamentais de maior magnitude voltadas para a conquista de direitos e promoção de
igualdade para LGBTs, tendo como marco o lançamento do programa Brasil Sem Homofobia
(2004). Desde então, um conjunto complexo de programas e políticas públicas vem sendo
discutido entre governo e movimento em espaços institucionais criados para articular
sociedade civil e sociedade política no tratamento das demandas de LGBTs.
O alargamento da estrutura de participação social implementado durante o governo
Lula e continuado pelo governo de Dilma Rousseff constitui-se como marca destes governos
e realmente representa um relevante aprofundamento da participação. Entretanto,
existem problemas e contradições que impedem leituras muito otimistas. Fatores como
fragmentação institucional, caráter consultivo de tais espaços mais do que deliberativo, o
próprio peso e o papel do poder executivo, os mecanismos de definição dos representantes
entre outros, afetam sobremaneira seu funcionamento. Cita-se aqui também a falta de
recursos financeiros, de arranjos institucionais mais hábeis e a ausência de uma estrutura
jurídica que garanta força normativa suficiente para sua aplicação.
A evidente exclusão dessa população das instituições representativas como o
Senado, a Câmara Federal, Assembleias Legislativas Estaduais e Câmaras Municipais, além
da baixíssima disputa por cargos majoritários como Prefeituras, Governadorias Estaduais e a
Presidência da República requer maiores investigações e pesquisas na Ciência Política, mas
podem ser explicadas preliminarmente por fatores estruturais (MIGUEL, 2016), simbólicos
(BOURDIEU, 2000) e específicos da população LGBT como a violência e a discriminação
sofridas por fora e dentro das instituições liberais (BORRILLO, 2010).
Buscamos nesse capítulo analisa a dinâmica da participação política no movimento
social LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros). A questão
central deste trabalho, portanto, se debruça sobre os impedimentos e as possibilidades da
participação política no movimento social LGBT.

77
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Baseia-se em uma abordagem qualitativa, de caráter exploratório, quanto aos


procedimentos, utilizou-se de uma pesquisa bibliográfica, com levantamentos de autores e
artigos que discorrem sobre a temática LGBT.
Consideramos os movimentos sociais como importantes espaços de participação
política na sociedade contemporânea, pois “se situam em um espaço de privacidade
compartilhada que possibilita a conversão de interesses privados em questões de debate na
esfera pública, e permitem encontrar uma estrutura de plausibilidade para viver a cidadania
vicária [tradução nossa]” (TEJERINA, 2005).
A partir da ação afirmativa exercida pelos movimentos LGBT no Brasil, pode-se
dar maior ênfase a uma agenda com as propostas que fundamentam medidas jurídicas
que atendam aos anseios dessas pessoas. Essas transformações, partindo de debates da
sociedade civil organizada com os elaboradores da legislação, podem auxiliar a diminuir
a intolerância que persiste em alguns locais e ainda ajudar na consecução de medidas de
melhoria da dignidade dos LGBT’s.

DIVERSIDADE SEXUAL E O CAMPO POLÍTICO BRASILEIRO

A homofobia, que opera em distintas esferas da sociedade (FEITOSA, 2016), inclusive


nos campos de produção simbólica como a mídia, a educação e diferentes denominações
religiosas, concorrem simultaneamente para a geração de invisibilidades, que dificultam a
presença de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais na esfera pública e nos espaços
de destaque da sociedade, incluídos aí os espaços de poder político (mas não só).
Logo, o receio de ser ofendido em virtude de sua orientação sexual ou identidade
de gênero na vida política, seja nas campanhas ou nos mandatos, também geram um
afastamento e um impedimento à ambição política.
Compreendendo as trajetórias profissionais de pessoas engajadas em processos
políticos relacionados aos temas de gênero e sexualidade, conclui-se que:

[...] O sentimento que leva um indivíduo a se engajar na área de direitos


sexuais vem de uma inquietude diante de desigualdades determinadas
por questões de gênero e sexualidade, e uma concomitante satisfação
com tomar conhecimento de formas de entender - de nomear - essas
desigualdades e de se envolver em iniciativas para saná-las [...] (ZILLI, 2017)

78
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

É o conteúdo moral de suas interpretações que faz a ponte entre a identificação de


problemas e o engajamento, permitindo passar da cognição para o afeto que mobiliza.
(ZILLI, 2017).
Para travestis, mulheres transexuais e homens trans, o uso do nome social se configura
como um constrangimento até para meros eleitores, sugerindo que a igualdade política
ainda está longe de ser consolidada no Brasil.
Alguns candidatos trans, quando postulam o registro de candidatura, fazem-
no de porte de sua nova documentação civil, a qual já reflete a orientação sexual com a
qual se identificam. A situação não parece problemática, tendo em vista que o registro de
candidatura se baseia nos documentos civis e, para fins de análise do preenchimento da
reserva de vagas de candidatura, será levado em conta o sexo neles constante. Existem,
entretanto, aqueles trans que permanecem, no registro civil, com nome e indicação do sexo
com o qual não se identificam psicologicamente, nem se apresentam perante a sociedade.
Quanto a esses, paira a dúvida de como sua candidatura deve ser contabilizada para fins de
análise do cumprimento da cota eleitoral por sexo (MACHADO, 2018).
O nome civil da pessoa é o sinal de individualização mais visível no meio social. A
partir do nome, a pessoa difere das demais no círculo familiar e social, bem como das demais
pessoas. Em razão disso, o nome deve receber especial proteção do Estado.
Sobre a essencialização e personificação das identidades, acredita-se que ver a
diversidade simplesmente como um espaço de destino é naturalizar a diferença, o que não
nos permite compreender os regimes de poder envolvidos na construção da “diversidade de
identidades”. Para Silva (2000), ser isto ou aquilo não faz sentido absoluto a não ser enquanto
processo discursivo conectado com a produção da diferença.
Quanto às pessoas trans que já realizaram a retificação do seu nome e gênero na
documentação civil, não há maiores problemas, uma vez que o cadastro eleitoral será um
reflexo deste. A dúvida surge quanto às pessoas que ainda não fizeram essa alteração. Para
esses casos, foi editado o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, que regulamenta o uso do
nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais
no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, dispondo em
seu art. 2º indica que os “órgãos e as entidades da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da
pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento” e nos termos do decreto
(MACHADO, 2018).

79
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

No campo privado, formado pela família tradicional, homem e mulher e filhos


biologicamente gerados, os LGBT’s não se enquadram, são “figuras” estranhas, atípicas,
sujeitos promíscuos, até mesmo depravados. Foram os LGBT’s que escolheram a vida
que têm, logo, a série de violências sofridas por estas pessoas nada mais é que um forte
mecanismo pedagógico de repressão e conversão de suas orientações sexuais e identidades
de gênero para a regra dominante. Olhando por este ângulo, a supressão dos LGBT’s do rol
político torna-se mais fácil de entender.
É difícil, em um contexto de educação cerceada como o nosso, as pessoas perceberem
que a sexualidade e a identidade de gênero, mais do que meras características humanas, são
marcadores sociais que definem valores, lugares e desigualdades.
A cultura do machismo e do patriarcado que se perpetua durante décadas no Brasil
faz a sociedade não amar as pessoas trans, por isso é tão difícil uma pessoa LGBT candidatar-
se e obter êxito na política.

MOVIMENTO LGBT E CANDIDATURAS LGBT NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Muitas das dificuldades enfrentadas pelas mulheres para terem acesso à carreira
política são também vivenciadas pelos candidatos assumidamente LGBT’s. A análise
dos dados das candidaturas demonstrou tais semelhanças e apontam para importantes
singularidades desse fenômeno político.
Na seleção de candidatos, as mulheres têm probabilidade menor do que os homens
de receber incentivos provenientes de uma fonte política como de líderes partidários, por
exemplo. Além disso, elas têm menos probabilidade do que os homens de se considerarem
qualificadas para concorrer a um cargo político. Enquanto que os homens que se julgam
pouco qualificados têm muito mais chances de cogitarem disputar eleitoralmente. Outro
achado importante sobre as barreiras para a participação política delas se refere à socialização
cultural, que faz com que as mulheres não se sintam instadas a ingressar na disputa eleitoral
(FOX et al., 2012).
Constata-se, ainda, que são necessários três tipos de recursos para a participação
política: dinheiro, tempo livre e uma rede de contatos, recursos esses concentrados entre
os homens brancos e cisheterossexuais. O tempo livre configura-se como o maior obstáculo
à participação política das mulheres, interditando o interesse pelos assuntos públicos. É
importante ter em mente que não é simplesmente uma questão de tempo, mas de atribuição
de determinadas responsabilidades impostas a elas. Essa constatação pode explicar o fato de

80
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

que muitas mulheres ativas na política herdam um capital político de perfil familiar, oriundo
de seus pais, maridos ou outras formas de parentalidade (MIGUEL et al., 2010).
Além da clara sub-representação da população LGBT nos espaços de poder,
semelhantemente às mulheres (MIGUEL et al., 2010) e aos/às negros/as (Campos, 2015),
constata-se que tais candidaturas ocupam uma posição inferior em termos políticos, ao
observar que a maioria concorreu ao cargo de vereador, o qual fica em posição inferior na
categoria das carreiras políticas, quando comparado a outros cargos elegíveis. Ainda assim,
concorrendo ao cargo de vereador, o qual necessita de menor quantidade de votos para se
eleger, a inclusão da população LGBT é baixa.
Deste modo, pode-se concluir que:

As frentes parlamentares são grupos que promovem a articulação de


interesses, constituindo-se enquanto “espaços” de “opinião mobilizada”
dentro do Parlamento. Além de agregar deputados e senadores com
posicionamentos semelhantes em uma dada temática, as frentes
parlamentares auxiliam nos processos de definição e organização de
interesses, que ocorrem em interação tanto com a chamada “sociedade civil
organizada” quanto os membros do poder Executivo. (CORADINI, 2010)

As políticas LGBT’s são frágeis institucionalmente e deficientes estruturalmente


em face de precariedades jurídicas que as tornam políticas de governo e não de Estado,
o que as deixam ao sabor das conjunturas e das conveniências políticas; das dificuldades
em gerir as políticas de maneira transversal e em diálogo com a sociedade civil; do pouco
ou nenhum recurso previsto nas legislativas orçamentárias, como o Plano Plurianual (PPA),
a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA); e do baixo
número de servidores/as permanentes especializados/as responsáveis pela elaboração, a
implementação, o monitoramento e a avaliação (MELLO et al, 2011).
Esse conjunto de fatores e entraves age diretamente na ausência de motivação e
pretensão política para que a população LGBT se lance na disputa eleitoral, assim como
outras minorias discriminadas socialmente. Logo, não se trata de “não gostar” da política,
mas sim de não vislumbrar nela possibilidades sólidas alcançáveis.

ENTRAVES À REPRESENTAÇÃO POLÍTICA LGBT

A participação de pessoas pertencentes a grupos minoritários e sem grande


representatividade/visibilidade na política provém de muitas razões, seja pelos parcos

81
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

recursos financeiros, pelo pouco estudo, falta de anseio ou estímulo a participar de posições
no campo político, constrangimento de exposição ou até mesmo por auto se acharem em
situação subalterna em relação aos demais na sociedade.
Entre as barreiras para viabilizar a candidatura, encontra-se o preconceito, a resistência
da classe política e dificuldades de ordem burocrática. Os partidos aos quais estes se filiam
são diversos, assim como os seus estados de origem.
No plano nacional, as candidaturas, principalmente de transgêneros, têm pouca
articulação e os obstáculos são muitos. Aqueles que transpõem os obstáculos e conseguem
tirar a candidatura do papel ainda enfrentam outros desafios, como o constrangimento de
se apresentar no registro eleitoral com o sexo diverso ao que se identificam socialmente,
por exemplo.
Esse panorama de desigualdade resulta em sistemas políticos ineficientes e incapazes
de responder aos anseios da população, como também, em um crescente sentimento de
frustração coletiva com o funcionamento das nossas instituições, além da descrença na
política como instrumento de transformação social, de mediação dos conflitos e de conquista
de direitos.
Segundo Nancy Fraser:

A luta por reconhecimento está rapidamente se tornando a forma


paradigmática de conflito político no atual século XX. Demandas por
reconhecimento da diferença dão combustível às lutas de grupos
mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, raça, gênero
e sexualidade. Nestes conflitos pós-socialistas, a identidade de grupo
suplanta o interesse de classe como o meio principal da mobilização
política. A dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça
fundamental. E o reconhecimento cultural toma o lugar da redistribuição
socioeconômica como remédio para a injustiça e objetivo da luta política
(FRASER, 2006, p. 01).

A luta pela livre expressão da orientação sexual e identidade de gênero tem ocupado
uma posição de marginalidade nas instituições representativas nacionais. Mesmo com a
mobilização de ativistas de grupos e entidades do movimento homossexual (posteriormente
denominado Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT’s) junto a essas
instâncias políticas desde, pelo menos, o fim da década de 1980, os direitos sexuais da
população LGBT têm experimentado um tortuoso e difícil caminho em sua efetivação. Mais
ainda, a política brasileira tem testemunhado, nas últimas duas décadas, o aumento no

82
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

número de parlamentares eleitos (em sua maioria vinculados a denominações religiosas)


que trazem entre suas bandeiras políticas o rechaço a qualquer reconhecimento ou garantia
de direitos a esta população (SANTOS, 2014).
Nessa conjuntura de maior visibilidade pública e de maior resistência de setores
conservadores e religiosos à temática LGBT, é que observamos o aumento das candidaturas
de pessoas assumidamente LGBT.
Butterman (2012) avalia que, mais que nunca, é possível vislumbrar a politização
das identidades sexuais e de gênero em diferentes campos da sociedade, incluindo a
mídia, significativo campo produtor de visibilidade. É importante também reconhecer que
a definição de Movimento LGBT também é algo aberto, inconcluso e em disputa, seja no
ativismo, seja na academia.
Outro fator salientado remete-se ao fato de que o Estado várias vezes vale-se do
movimento social LGBT em busca de benefícios próprios, ou para a construção de uma
imagem positiva do Estado, ou de membros do Estado com relação ao combate às distintas
formas de opressão. Logo, o fortalecimento de partidos políticos pode fazer uso dos LGBT’s
para fazer deles candidatos eleitos para o partido e não para a discussão das demandas e
reivindicações do grupo, o que muitas vezes ocorre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, observamos um maior envolvimento nos partidos políticos de pessoas


LGBT’s, o que reflete uma das principais transformações vivenciadas pela política brasileira
neste século.
O movimento LGBT segue sua senda de lutas e mobilizações por um futuro mais
inclusivo no âmbito partidário, embora o legislativo brasileiro aos poucos dê demonstrações
de maior permeabilidade quanto às diligências deste segmento da população. Os resultados
indicam que há um anseio intenso do Movimento LGBT em participar da esfera pública e
dos processos decisórios estatais visando desenvolver políticas públicas, efetivar direitos já
previstos e conquistar novos direitos com o objetivo de romper a violência LGBTfóbica e
garantir a cidadania dessa população.
O primeiro desafio é a abertura aos partidos políticos, dirigidos por homens cis
heterossexuais. Ademais, os partidos exibem, em seus programas e projetos, conteúdos
priorizando o empresariado, latifundiários e banqueiros. Também na disputa eleitoral, os
partidos tendem a apostar em candidaturas com mais chances de vitória, logo, as mulheres
e o público LGBT teriam uma chance bem menor de adentrar nesta seara.

83
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Segmentos que gozam de mais solidariedade social como o das crianças e


adolescentes têm maior apelo social, sensibilizam mais população, defendem pautas mais
abrangentes como saúde, educação, diferente de uma candidatura que defenda os direitos
LGBT’s, os quais tendem atrair bem menos eleitores.
Outro desafio para estas candidaturas é de ordem estrutural e relacionada à posição
subordinada tomada por indivíduos LGBT’s, fazendo com que estes se sintam depreciados
frente aos outros candidatos. A exemplo disso, a grande maioria dos candidatos LGBT’s
postulou até hoje o cargo de vereador, o mais baixo na hierarquia.
Tem-se que a participação política merece ser mais bem explorada sendo possível
estabelecer como uma pauta para futuras pesquisas a compreensão sobre como o
fortalecimento de políticas públicas específicas para o segmento LGBT poderia favorecer a
conscientização individual ao propiciar um maior reconhecimento na esfera pública para os
LGBT’s, bem como maiores possibilidades de negociação com o Estado e a sociedade e de
combate a atitudes homofóbicas.
Ainda que sejam muitos os entraves enfrentados para a constituição de uma
representação política LGBT, a cada eleição mais candidatos assumem sua orientação sexual/
identidade de gênero publicamente para pedir votos. A representatividade política LGBT é
muito importante, pois, através dela, é que se conhece tão bem sua tortuosa realidade, e
pode-se reformar instituições, implantar políticas para combater a discriminação e garantir
a inclusão efetiva de mais pessoas LGBT’s, bem como garantir o acesso efetivo à justiça;
incluindo reparação e investigações contra atos de violência e discriminação a pessoas LGBT.

REFERÊNCIAS

1. BORRILLO, D. Homofobia: História e crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica,


2010.

2. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

3. BUTTERMAN, S. Invisibilidade vigilante: representações midiáticas da maior parada


gay do planeta. São Paulo: Versos, 2012.

4. CAMPOS, L. A.; MACHADO, C. A cor dos eleitos: determinantes da sub-representação


política dos não brancos no Brasil. Revista Brasileira de Ciência Política. Brasília, n. 16,
pp. 121-151, janeiro/abril, 2015.

84
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

5. CORADINI, O. L. Frentes parlamentares, representação de interesses e alinhamentos


políticos. Revista Sociologia e Política. Curitiba, v. 18, n. 36, jun, pp. 241-256.2010,

6. FEITOSA, C. notas sobre a trajetória das políticas públicas de direitos humanos lgbt no
Brasil. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, Bauru, v. 4, n. 1, 2016.

7. FOX, R.; LAWLESS, J. Entrando na arena? Gênero e a decisão de concorrer a um cargo


eletivo. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 8, 2: p. 129-163, mai-ago. 2012.

8. FRASER, N. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era


“póssocialista”. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, 2006.

9. MACHADO, R. C. R. A Participação das Pessoas Trans na Política: identidade de


Gênero, Cotas de Candidatura e Processo Eleitoral. Disponível em: http://genjuridico.
com.br/2018/03/08/participacao-das-pessoas-trans-na-politica-identidade-de-genero-
cotas-de-candidatura-e-processo-eleitoral/ Acesso em: 02 de julho de 2021.

10. MELLO, L.; PERILO, M.; BRAZ, C.; PEDROSA, C. Políticas de saúde para lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade
e equidade. Sexualidad, salud y sociedad, Revista latinoamericana, v. 9, p. 7-28, 2011.

11. MIGUEL, L. F. Desigualdades e democracia: O debate da teoria política. São Paulo:


Editora Unesp, 2016.

12. MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. Práticas de gênero e carreiras políticas: vertentes explicativas.
Revista Estudos Feministas, n. 18, 3: p. 653-679, set-dez, 2010.

13. SANTOS, G. G. da C. Diversidade Sexual, Partidos Políticos e Eleições no Brasil


Contemporâneo. In: 38° Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e re
em Ciências Sociais (ANPOCS), 38, 2014, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPOCS, p. 01-32,
2014.

14. SILVA, T. T. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

15. TEJERINA, Be. Movimientos sociales, espacio público y ciudadanía: los caminos de la
utopia. Revista Crítica de Ciências Sociais, 72, 67-97, 2005.

16. ZILLI, B. D. Teorias que Libertam: narrativas de intelectuais brasileiros sobre engajamento
em Direitos Sexuais. Interseções [Rio de Janeiro] v. 19 n. 1, p. 106-128, jun. 2017.

85
6
Uma perspectiva filosófica sobre o corpo e seus
paradigmas9
Cleandre Barbosa(1)
Fábia Monaly Vieira Campos(2)

(1)
Universidade Estadual de Alagoas/Professora, Brazil, cleandre.barbosa@gmail.com;
(2)
Universidade Federal de Alagoas/Professora, Brazil, fabiamonaly@gmail.com;

INTRODUÇÃO

Os paradigmas do corpo versam sobre diversas questões, dentre elas, ontológicas,


históricas e culturais, dialogando também com temas, tais como, arquétipos, símbolos e
ideias, algumas dessas abordagens foram inseridas e discutidas no meio social ao longo do
tempo através da ciência, religião, filosofia, meio médico, entre outros. No contexto deste
capítulo, os paradigmas serão debatidos sob uma perspectiva filosófica, trazendo, de forma
sucinta, posicionamentos teóricos dos estudiosos mais relevantes de cada época: antiga,
medieval e contemporânea10.
O objetivo deste capítulo consiste em apresentar, de forma pontual, os principais
paradigmas filosóficos sobre o corpo, através de um estudo panorâmico à luz da história das
ideias filosóficas. A divisão cronológica destes pontos se deu a partir da relação histórica,
política e cultural mais relevante, que são: época antiga, moderna e contemporânea. As
escolhas dos autores se deram a partir dos clássicos, e justificam-se pela sua contribuição e
relevância na literatura e todo desdobramento das suas teorias.

9 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap6
10 Esta produção é resultado de estudos através do curso de extensão, ofertado pelo Grupo de Pesquisa
Gnosiologia, Ética e Informação (GP GEINFO) vinculada à Linha de Pesquisa Filosofia e estética do corpo e
do movimento humano, desenvolvida como ação de intercâmbio no Curso de Educação Física (EFISL) da
Universidade Federal de Alagoas.
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Justifica-se a importância desta exposição temática pela sua possibilidade de auxiliar


na compreensão da filosofia do corpo e pela relevância do debate sobre a questão do corpo
enquanto referência para a vida humana e elemento fundamental para o resgate do sentido
da corporeidade.
Eu sou meu corpo? O que é meu corpo? Estas questões, amplamente discutidas na
filosofia, retomam debates calorosos em relação ao ser e a existência do homem. Assim, a
questão problemática deste capítulo é uma ramificação dessas indagações que giram em
torno das influências que o corpo pode ter ou não sob a resposta do ser, portanto, a questão
problemática é: Existe alguma influência do corpo que possa atuar no entendimento do ser?
É importante observar que não há intenção de responder integralmente esta questão,
mas que esta sirva como base para um direcionamento do texto, assim, trazendo à luz das
ideias, a possibilidade de haver ou não uma relação entre o corpo e a construção da resposta
do ser, através de análises e reflexões que são possíveis através do debate filosófico.
A metodologia utilizada neste referencial estrutura-se na revisão de literatura dos
seguintes teóricos: para Compreensão da filosofia do corpo no período histórico antigo: Platão
(1991 e 2001), Costa (2021); Medieval: Aristóteles (2005), Gallo (2015) e Contemporâneo:
Nietzsche (2011), Costa (2021).
Também foram utilizados recursos através de aulas expositivas do curso de extensão:
Curso de Filosofia do Corpo (2021), debates e exercícios.
Este capítulo apresentar uma breve revisão bibliográfica de textos que se relacionados
a temática do corpo para tratar sobre a corporeidade, as ideias inseridas como verdades,
conceitos, modelos e questionar o corpo sob a perspectiva filosófica do ser.

PARADIGMA PLATÔNICO: O CORPO PRISIONEIRO

Platão é um dos filósofos mais conhecidos mundialmente e sua compreensão e


pensamento sobre corpo e alma influenciaram o pensamento ocidental no entendimento
do ser. A alma seria o centro para entender a realidade e o corpo uma prisão.
Neste sentido, o corpo físico é um obstáculo para atingir a verdade. A obtenção do
conhecimento só seria possível através do mundo inteligível, ou, popularmente conhecido
como mundo das ideias, por intermédio da alma. Assim, o mundo tal qual conhecemos e
sentimos é apenas a sombra da ideia, do perfeito, sendo o mundo físico denominado por
mundo sensível.

87
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Para Platão, “Quem experimenta uma sensação nunca é um órgão sensitivo, mas é
sempre a alma, isto é, o homem em sua totalidade.” (CASERTANO, 2010). Deste modo, as
sensações são apenas uma parcela da verdade.
No livro Teeteto (2000), é possível compreender melhor sobre o que é o conhecimento
em Platão, esclarecendo essa dualidade entre mundos sensível e inteligível e corpo e alma.
Nessa continuidade, Sócrates argumenta que, se conhecimento fosse sensação, ou seja,
tudo que conseguimos compreender através dos sentidos e do corpo, significaria dizer
que nenhuma coisa possuiria por si um modo próprio e característico de manifestação,
encontrando-se todas elas em permanente mudança. As sensações não seriam nunca o
que são se não pudessem ser identificadas como tais e diferenciadas de outras. Assim, as
sensações não podem ser uma fonte de verdade, pois seriam apenas compreendidas pelo
corpo de forma inconsciente.
No livro A República (2001), na conhecida alegoria da caverna, há uma alusão do
que seriam esses dois mundos, assim como os prisioneiros da caverna viam as sombras dos
objetos na parede, a mesma compreensão é imposta ao mundo físico, o mundo material
são apenas as “sombras” do mundo real que seria, portanto, uma parcela da realidade, e a
verdade só se conseguiria através da alma, única condutora para obtenção possível para
compreender verdadeiramente o mundo. Neste sentido, seria necessário o distanciamento
das sombras, ou seja, do mundo físico, para o mundo das ideias, o mundo inteligível. Assim,
estamos presos a um corpo que sente uma parcela do mundo real, que vive uma experiência
no mundo das sombras, mas só a alma é capaz de entender o que é a realidade.
Se o corpo é material e a alma sensível, temos uma separação dual: corpo e alma. O
corpo obtém sensações, mas é só através da alma que conseguimos entender o que o corpo
sente. O indivíduo é duplo, mas não há um contra o outro e, sim, um lado a lado, porém, a
alma supera o corpo no sentido de obtenção do conhecimento, do esforço em alcançar a
verdade, da busca e do constante interesse em reconhecer o que é real e o que é ilusão.
Porém, temos uma tragédia eminente em Platão: a verdade não pode ser dita. Ainda
em Teeteto (2000), Sócrates postula que, se o conhecimento fosse opinião verdadeira
acompanhada de logos [explicação], aquilo para o qual não houvesse explicação não poderia
ser conhecido. Antes disso, se toda opinião afigurasse uma realidade, todos estariam na
verdade e ninguém poderia opinar ou dizer falsidades. Indiscutível que opinião remete a
algo que é. É pelo opinar que as coisas originalmente se apresentam no mundo. O que não
se pode conhecer e expressar seria o fundamento do que pode ser expresso e conhecido.
Isto configura-se como a tragédia em Platão, a verdade não pode ser dita.

88
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Assim, o corpo físico passa a ser um obstáculo para a alma no processo de aquisição
da verdade, pois, enquanto o ser humano adquirir conhecimento através do sensível, este
será um conhecimento falso, Costa explica isto de forma precisa:

De fato, para Platão, possuir a definição precisa de conhecimento equivale


a possuir a verdade que, todavia, sempre está além, sempre escapa aos
habitantes da caverna, aos homens vivos e presos à existência corpórea.
Para estes, a verdade deve permanecer um eterno e metafísico objeto de
vontade, uma eterna emulação. (COSTA, 2014, p. 13)

Portanto, apenas a alma pode alcançar o inteligível, ou seja, o mundo das ideias.
Alcançar, assim, este objeto de vontade citado por Costa que é a verdade. O corpo nada
mais é que um cárcere da alma.
O homem em Platão possui uma natureza dupla, dissociada e contrária ainda muito
aceita no senso comum. Uma parte é corpo, elemento representante do sensível, e a outra
é alma, inteligível, representante da razão e próxima ao divino.” (MONTENEGRO, 2015, p. 2)
Na compreensão do ser, essa dualidade perdura até hoje em algumas discussões e na
“nobreza” de um pelo outro, da mente superior ao corpo, da alma superior ao corpo. O corpo
desprezado por ter sensações e desejos que distanciam ao verdadeiro saber. Em Platão, a
alma tem nobreza, o corpo, seu cárcere.

PARADIGMA ARISTOTÉLICO: MATERIALIZAÇÃO DE UMA FORMA

Na visão Aristotélica, o corpo tem um caráter considerável e importante em relação


ao corpo platônico. O corpo é relevante para obtenção de conhecimento e também
seriam necessários cuidados específicos, como por exemplo, boa alimentação e exercícios,
pois o corpo é visto não como um obstáculo, mas sim um instrumento para obtenção do
conhecimento.
Neste sentido, é compreensível que entendamos também o conceito de alma em
Aristóteles, para ele, todo ser vivo tem alma, o que os diferencia do mundo inorgânico.
Entretanto, cada alma tem uma característica específica, a alma das plantas, por exemplo,
teria como função a nutrição; a do animal, a sensibilidade e a locomoção; e a do homem,
o conhecimento, o racional, mas a alma do homem contempla as outras duas, a sensitiva
e a nutritiva.
Hilemorfismo é a teoria criada por Aristóteles de que o corpo e alma (soma e psique)
são um único sistema, distintos, porém não podem ser compreendidos separadamente.

89
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Portanto, são aspectos complementares (Gallo, 2006). Assim, não há distinções superiores
ou inferiores, mas sim, complementares, um dá vida ao outro. A alma, nessa perspectiva,
seria uma inteligência do corpo, ou a forma do corpo. O corpo é uma alma que aparece.
O corpo, portanto, seria um resultado “hilemórfico” da apropriação da essência (alma),
com a matéria (corpo).

Sob esse prisma, o corpo humano é a matéria fugaz de uma forma


imorredoura, o acidente que flui como caça que vive escapando de uma
essência que reflui como caçadora, como se um corpo incorruptível fosse
a causa final do desejo de ócio que fomenta o trabalho da alma. (COSTA,
2021)

A materialização de uma forma, como sugere Costa, é que a essência, ou seja, a alma,
busca materializar-se num corpo que é um instrumento para obtenção de um conhecimento.

A visão de Aristóteles pode ser chamada de orgânica; a alma é aquilo


que anima o corpo, mas está plenamente integrada a ele. O movimento,
qualquer movimento físico, é feito pelo corpo, mas possibilitado pela ação
da alma; da mesma maneira, o pensamento é faculdade da alma, mas só
pensamos porque somos corpóreos. Parece-me ficar claro, assim que, para
Aristóteles (representando o espírito da cultura grega da época), “corpo
ativo” não seria um conceito estranho, posto que o corpo é necessariamente
lugar de atividade, garantindo o dinamismo da vida. (GALLO,2006)

Assim, respondendo à questão norteadora deste capítulo, na questão sobre o corpo


influenciar nas respostas do ser, dentro do prisma de conhecimento aristotélico sobre o corpo,
é possível nos guiar para o entendimento de que se conhecer através do movimento do corpo
é conhecer sua própria alma, sua razão. Valorizando a forma física, tal como a forma intelectual.

O CORPO NIETZSCHIANO: COMPLEXO VIVO

A abordagem nietzschiana do corpo é essencialmente contrária ao pensamento


socrático-platônico, abandona e critica o dualismo corpo e alma. O corpo é interpretante,
capaz de produzir novas corporeidades a partir de si mesmo e a alma não é percebida como
entidade superior ao corpo, em Assim falou Zaratustra (2011, p. 32), Nietzsche destaca: “corpo
sou eu inteiramente, e nada mais; e alma é apenas uma palavra para um algo no corpo.”
Esse dualismo da filosofia socrático-platônica engendra a desvalorização,
esquecimento e aviltamento do corpo, sobreposto pela alma, no capítulo Dos desprezadores

90
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

do corpo (2011, p.32), Nietzsche ressalta: “aos desprezadores do corpo desejo falar. Eles não
devem aprender e ensinar diferentemente, mas apenas dizer adeus a seu próprio corpo — e,
assim, emudecer”.
O mundo também é alvo da desvalorização na perspectiva plantonista, já que ele é
considerado como efêmero, que há uma vida além do mundo, essa visão de mundo é dita
por Nietzsche como um mundo fictício e, no capítulo Dos trasmundanos (2011, p.30), propõe
aos homens: “não mais enfiar a cabeça na areia das coisas celestiais, mas levá-la livremente,
uma cabeça terrena, que cria sentido na terra!”. Aqui é válido ressaltar que a ciência voltada
para o mundo das ideias, nessa proposição socrático-platônica, passa a ser considerada uma
espécie de doença e o corpo incutido nesse mundo é um corpo adoecido. (COSTA, 2021.)
A visão nietzschiana do mundo o coloca como carne, uma experiência do próprio
corpo ou mesmo uma extensão do corpo, logo sua desvalorização torna-se, portanto, a
negação da própria carnalidade e da vontade de potência. Azeredo (2008, p.13) cita que:

Para Nietzsche, a vida é vontade de potência, é luta permanente, é combate


entre forças e, portanto, só pode se expandir através do exercício das forças.
Ao negar o corpo e os instintos, o ideal ascético está negando o combate,
negando a vida enquanto vontade de potência.

Ainda segundo Azeredo (2008, p.53):

O ideal ascético apresenta-se, portanto, como o preenchimento do vazio


existencial e ao mesmo tempo, impede a negação da vontade. Esse niilismo
inerente ao ideal ascético deprecia a vida, opõe um mundo supra-sensível
ao sensível, estabelece conceitos universais como o bem, o ser, o verdadeiro,
Deus universal. Segundo Nietzsche, toda essa transposição para o ideal
trouxe como consequência a negação deste mundo, negação da vida,
negação da afetividade, negação do corpo. Os ideais ascéticos negaram o
corpo sustentando a existência de uma alma que se perpetua em um outro
mundo e como decorrência, a vida passou a fazer parte de um segundo
plano e o corpo foi desvalorizado.

No estudo do corpo hermenêutico de Nietzsche, é possível observarmos que o filósofo


aponta como cerne do desprezo ao corpo o moralismo, os princípios morais evidentes no
platonismo e, consequentemente, no cristianismo, que, segundo ele, foi responsável pelo
aviltamento do corpo enquanto o “Eu”.
Superar a moralidade a partir da transvalorização permite ao homem uma
modificação/superação de si e de sua visão de mundo dicotômico, dividido entre bem e

91
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

mal. É um convite a vivenciar a carnalidade integral, sem freios morais que ceifam a potência
do homem, ter assim uma visão estética do mundo, contemplá-lo como arte, dizer sim a
imperfeição e aceitar o destino e a vida tal como é.

Vede, eu vos ensino o super-homem!


O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-
homem seja o sentido da terra! Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis
à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas!
São envenenadores, saibam eles ou não. São desprezadores da vida,
moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra está
cansada: que partam, então! (NIETZSCHE, 2011.)

A influência do corpo em Nietzsche é de uma totalidade do corpo e alma, sobrepondo


a “dualidade platônica” que perdurou por tanto tempo e ainda faz jus a alguns pensamentos
e também à dicotomia corpo e mente tão mecanicista do pensamento moderno. Em
Nietzsche, corpo e alma não são duais.

CONCLUSÃO

É possível perceber que a visão sobre o corpo, o homem e o ser se dão de forma distinta
entre os pensadores mais nobres de cada época, cada pensador foi de grande importância
para os estudos mais acurados sobre o tema e sua relevância é estudada até a atualidade.
É possível que haja influência no pensar sobre o próprio ser a partir do conhecimento que
temos sobre o corpo e cada época histórica e social tem sua parcela de contribuição.

REFERÊNCIAS

1. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2005.

2. AZEREDO, V. P. de O. O corpo em Nietzsche a partir de uma leitura de “genealogia da


moral”. 2008. Dissertação (Mestrado)- Universidade Federal de Ouro Preto. Instituto de
Filosofia Artes e Cultura

3. CASERTANO, G. Paradigmas da verdade em Platão. São Paulo: Loyola. 2010.

4. COSTA, I. A. Nietzsche e o corpo interpretante: material de aula. Arapiraca, AL: Grupo


de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021.
Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/ntzschcrp.html. Acesso em: 16 abr. 2021.
5. COSTA, I. A. O corpo humano, na filosofia de Aristóteles: material de aula. Arapiraca,
AL: Grupo de Pesquisa Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web

92
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Filosofia, 2020. Disponível em: https://www.gpgeinfo.org/p/arsttlscrp.html. Acesso em:


16 abr. 2021.

6. GALLO, S. Corpo ativo e filosofia. In: MOREIRA, W.W. (Org.). Século XXI: a era do corpo
ativo, Campinas: Papirus, 2006, p. 9 -30. Brasil, Ministério da Saúde. Estatuto do Idoso.
Estatuto do Idoso. p. 1 – 72, 2013.

7. GALLO, S. Paradigmas filosóficos do corpo. Arapiraca, AL: Grupo de Pesquisa


Gnosiologia, Ética e Informação / CNPq / Ufal - Projeto Web Filosofia, 2021. Disponível
em: https://www.gpgeinfo.org/p/cstcrpprdgm.html. Acesso em: 16 abr. 2021.

8. NIETZSCHE, F. W. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

9. PLATÃO. Teeteto. 3. ed. Belém: Universitária, 2001. (Coleção Diálogos). Disponível em:
<http://br.egroups.com/group/acropolis>. Acesso em: 02 jun. 2000.

10. PLATÃO. A República. 9. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

93
7
Uso de Benzodiazepínicos durante a pandemia da
COVID-1911
Beatriz Bomfim Durier de Lima(1)
Julyana Thiago de Moura(2)
Laís Macedo Vilas Boas(3)

(1)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5774-0830; Centro Universitário Cesmac, graduanda em Psicologia,
Brazil. E-mail: beatrizbomfimdl99@gmail.com.
(2)
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8333-4724; Centro Universitário Cesmac, graduanda em Psicologia,
Brazil. E-mail: julyana.thiago@gmail.com.
(3)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5360-8429; Centro Universitário Cesmac, docente e Doutora em
Psicologia Clínica e Cultura, Brazil. E-mail: macedovb@gmail.com..

INTRODUÇÃO

Segundo Ramos et al. (2020), os benzodiazepínicos (BZP) estão na lista de


medicamentos mais receitados por médicos no mundo, de acordo com o Sistema Nacional de
Gerenciamento de Produtos Controlados, a cada cinco dos princípios ativos mais consumidos
do Brasil entre 2007 e 2010, dois são benzodiazepínicos. Na lista dos 100 medicamentos mais
comercializados em 2017 no país, dois deles são benzodiazepínicos, levantando a hipótese
de alguns autores que tais medicamentos podem ser consumidos sem a devida prescrição
médica (RAMOS et al., 2020). De acordo com Auchewski et al. (2003), o consumo crescente
de benzodiazepínicos pode ser uma consequência da baixa resistência da sociedade
contemporânea em lidar com o estresse, pode-se ainda correlacionar à pressão da indústria
farmacêutica e até mesmo à prescrição inadequada de médicos. O estresse sofreu um
incremento em 2019, quando a China relatou o surto de uma nova cepa do coronavírus
caracteriza pela sua rápida disseminação e gravidade infecciosa (CORRÊA et al, 2020). Como
estratégia de controle, foram implementadas estratégias de distanciamento e isolamento

11 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap7
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

social. Nesse sentido, o temor do impacto da doença e o isolamento são condições que
endossam a vivência de estresse nos anos de 2020 e 2021.
A atualidade é marcada também pelo uso da internet como fonte de orientação,
inclusive para o uso de psicofármacos. Ramos et al. (2020) destacam a busca de informações
sobre tais medicamentos na internet e suas implicações, especialmente com relação à
qualidade desse conhecimento, já que é possível encontrar dados condizentes e outros não.
Para essa problemática, uma das soluções encontradas pela Health On Net Foundation (HON),
uma organização não governamental da Suíça, foi conceder um certificado de qualidade em
páginas que respeitem uma conduta baseada em tais princípios: autoria, complementaridade,
confidencialidade, atribuições, justificativas, transparência e honestidade da publicidade.
Em São Paulo, o Centro de Vigilância Sanitária (CVS) adaptou para português o documento
da Organização Mundial de Saúde (OMS), que é utilizado como um guia para informações
seguras, objetivando fazer com que os usuários usem critérios de avaliação de conteúdo
nos sites, tais como: nome, contato dos responsáveis, datas de publicação e identificação
de financiadores e objetivos (RAMOS et al., 2020). Outra iniciativa foi dada pelo Conselho
Regional de Medicina do Estado de São Paulo, no qual publicou um manual com princípios
éticos para sites de medicina e saúde (RAMOS et al., 2020).
Embora os benzodiazepínicos sejam medicamentos seguros, a experiência clínica
mostrou que eles podem causar efeitos colaterais indesejados, desenvolvimento de
tolerância, síndrome de abstinência e dependência, principalmente entre os usuários
crônicos. No Brasil, a prescrição de tais medicamentos passou a ser controlada pela Portaria
334/98, no final da década de 90, narrando que tal lista de medicamentos está sob controle
especial (GONZALEZ; TOMA, 2020).
Os benzodiazepínicos são divididos em grupos distintos, apesar de terem o mesmo
mecanismo de ação e produzirem efeitos clínicos semelhantes, eles diferem na potência,
tempo de início e duração da ação, de tal forma, tais características são importantes na
hora de escolher um BZP para uso terapêutico (GONZALEZ; TOMA, 2020). Ainda de acordo
com Gonzalez e Toma (2020), esses medicamentos podem ser prescritos para tratar vários
transtornos e sintomas, como: transtornos de ansiedade e afetivos, problemas do sono,
dependência de álcool e comportamentos de natureza violenta ou agressiva em psicoses.
Os efeitos benéficos dos BZP podem incluir: a redução da ansiedade, indução e manutenção
do sono, relaxamento muscular, tratamento e prevenção de crises convulsivas; estas funções
dependem das potências e propriedades farmacocinéticas, devido aos benefícios e eficácia

95
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

terapêutica, eles são indicados principalmente em tratamentos de ansiedade e insônia


(GONZALEZ; TOMA, 2020).
Os benzodiazepínicos podem provocar efeitos colaterais nocivos, como a diminuição
da atividade psicomotora, pode trazer prejuízos na memória, desinibição paradoxal,
tolerância, assim como dependência e a potencialização de um efeito depressor, sendo o
mesmo provocado pela interação com outras drogas depressoras, como o álcool (AUCHEWSKI
et al., 2003; GONZALEZ; TOMA, 2020).
Quando do uso desse fármaco, é fundamental o acompanhamento médico, pois há
o risco da dependência do remédio, e também para o monitoramento das doses, avaliação
dos efeitos colaterais, assim como a resposta terapêutica ao tratamento (AUCHEWSKI et al.,
2003). Dessa maneira, a orientação dada é que, na presença de prescrições, as mesmas devem
ser feitas em doses baixas e por um período curto, não excedendo seis meses de tratamento,
sendo importante o papel do médico como informante das possíveis consequências
trazidas pelo uso incorreto dos benzodiazepínicos durante a vida (GONZALEZ; TOMA,
2020). A dependência de BZPs pode ser manifestada por sintomas físicos, como sintomas
semelhantes a gripe, câimbras musculares e sintomas psicológicos, como irritabilidade,
insônia, pesadelos, alterações perceptivas e despersonalização/desrealização. Podendo esses
sintomas serem confundidos com sintomas de origem ansiosa. A orientação obtida para
casos que há dependência do medicamento é a otimização ou substituição farmacológica,
o medicamento deve ser retirado gradualmente e o paciente deve ter suporte psicológico
(GONZALEZ; TOMA, 2020).
O primeiro caso por coronavírus foi detectado em dezembro de 2019 na China,
sua rápida disseminação ao redor do mundo fez com que a World Health Organization
declarasse uma pandemia, suas consequências físicas e psicológicas podem ser vistas na
população desde o começo (Schmidt et al, 2020). Além das inúmeras repercussões físicas,
são observados ecos na saúde mental, pois o medo crescente eleva os níveis de estresse
em sujeitos saudáveis e intensifica a experiência daquelas que já possuíam um grau de
sofrimento psíquico elevado. Nesse sentido, “o número de pessoas cuja saúde mental é
afetada tende a ser maior que o número de pessoas afetadas pela infecção.” (ORNELL et al,
p.2, 2020). Este impacto é percebido na prescrição de BZP.
Em análise de prescrições médicas de uma UPA, por Santos et al (2021), avalia-se que
houve um aumento na taxa de dispensação de benzodiazepínicos e opioides de janeiro
a abril de 2020. Dos BZPs prescritos, os principais foram Clonazepam 2mg Via Oral (VO),

96
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

indicado principalmente como ansiolítico e anticonvulsivante; Diazepam 5mg ou 10mg VO,


Diazepam 10mg/mL Intramuscular (IM), indicado como ansiolítico; e Midazolam 15mg/3mL
ou 50mg/10mL IM/Intravenosa (IV), com indicação hipnótica anestésica. Desses, o mais
distribuído na unidade foi o Diazepam, em discordância com os dados da ANVISA, que
aponta o clonazepam como o mais receitado (SANTOS et al. 2021). Os resultados divergem
da pesquisa de Lima et al. (2020), que também analisam prescrições e apuram 48,2% (41)
de uso de clonazepam, seguido de 27,1% (23) de alprazolam; e 17,6% (15) de bromazepam.
A prescrição inadequada de benzodiazepínicos impacta não somente em
consequências à saúde de quem os consome, mas também reflete em consequências
econômicas, sociais e éticas. De modo contrário ao que se percebe recorrentemente quanto
ao crescente aumento na indicação, é desincentivada a prescrição de BZP para pessoas
que não utilizavam essa medicação antes do início da pandemia. Devendo ser evitada a
indicação para reduzir sintomas de TEPT e/ou problemas de sono durante o primeiro mês
do evento traumático. A recuperação do sujeito não é realizada através do esquecimento
sobre o evento, e sim de uma adaptabilidade e aprendizado, essas que poderiam ser
comprometidas com o uso de benzodiazepínicos durante esse estágio (CAMOZZATO, 2020).
Isoladamente, aspectos como distanciamento social ou redução na proximidade
física não são suficientes para adoecimento mental. Estando, portanto, mais evidenciado
em aspectos de vulnerabilidade. Mulheres e adultos jovens possuem, segundo os estudos
apresentados, maior vulnerabilidade de determinados aspectos da saúde mental. Assim
como história prévia de adoecimento mental, redução de renda ou ter contato constante
com informações negativas ou falsas a respeito do COVID-19, tornam as pessoas mais
suscetíveis ao possível desencadeamento de adoecimento mental. O aumento da prescrição
de psicofármacos pode estar relacionado ao aumento de transtornos mentais, mas também
existem outros fatores que transpassam essa simples conclusão, como diagnósticos
inadequados com prescrição indevida, desconhecimento da atuação do fármaco no
organismo ou até mesmo das consequências do seu uso prolongado ou indiscriminado
(QUEMEL et al., 2021).
O presente capítulo tem por objetivo descrever a prevalência do uso de
benzodiazepínicos na população em tempos de pandemia e identificar algumas
características, como tempo de uso, informações recebidas pelos profissionais da saúde e as
motivações para uso.

97
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

MATERIAIS E MÉTODOS

Este foi um estudo transversal e quantitativo, de caráter exploratório realizado com


indivíduos entre 18 e 60 anos, como parte integrante de um projeto maior chamado “Saúde
Mental e Gênero: o trabalho doméstico como fator condicionante e características do uso
de benzodiazepínicos”. Contou com a participação de 306 pessoas, que responderam um
questionário que unificou itens sociodemográficos, itens relativos aos índices de saúde
mental, itens que avaliam o trabalho doméstico e itens sobre o uso de BZP. Para este capítulo,
serão utilizados os dados relativos ao uso de BZP.
A avaliação do uso de benzodiazepínicos foi realizada a partir da elaboração de um
questionário, em que os seguintes fatores foram abordados: uso da medicação ao longo do
tempo, a relação com os profissionais da saúde que prescrevem, motivações para o uso da
medicação no cotidiano, conhecimento sobre o tempo do tratamento e os riscos envolvidos.
A pesquisa foi realizada integralmente online por meio da plataforma Google Forms.
Após a leitura e o aceito do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o participante
poderia responder às perguntas do questionário. A pesquisa foi submetida à Plataforma
Brasil, avaliada pelo Comitê de Ética de Pesquisa e aprovada sob o parecer de número:
4.245.162.
Para a análise de dados, foram utilizados testes de Correlação de Pearson. As bases de
dados utilizadas foram: Scielo, Pepsic, Lilacs, Google Acadêmico e Google Livros, com base
nos estudos de temáticas relevantes a respeito da relação entre saúde mental, transtornos
mentais comuns e o uso de benzodiazepínicos. Estudos que tratavam dessa temática
em tempos da COVID-19 também foram selecionados. Nas escolhas dos materiais, foram
consideradas publicações entre os anos de 2003 e 2021. A coleta dos dados foi realizada
entre os meses de setembro de 2020 a julho de 2021. Todo o material encontrado foi avaliado
e selecionado na medida em que apresentavam uma relação com os objetivos da pesquisa,
estavam disponíveis na íntegra e eram relevantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Na presente pesquisa, foi questionado ao público respondente se eles faziam uso de


algum benzodiazepínico (como Rivotril, Diazepam, Bromazepam, Clobazam, Clonazepam,
Valium, Alprazolam, Midazolam) pelo menos uma vez por semana; nos resultados obtidos,
foi visto que 93,4% não faziam uso de benzodiazepínicos, correspondendo a 283 dos
participantes, e 23 (6,6%) responderam que fazem uso de algum BZP. Estudos sobre a

98
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

utilização de BZP de base populacional são raros no Brasil. Estudos realizados antes da
pandemia apontam que o uso no Brasil é bastante elevado quando comparado com outros
países, sendo mais prevalente entre as mulheres e idosos (SOUSA et al, 2016). Estima-se que
a prevalência da população adulta que faz uso crônico de BZP seja de 1,6% (FIRMINO et
al, 2011). Não foram encontrados dados durante a pandemia. A população estudada nesta
pesquisa é de adultos, o que pode sugerir o aumento do uso da população nessa faixa etária.
Os participantes foram questionados sobre o início do uso de tal medicação (mês
e ano), as respostas obtidas foram: de 2004 a 2018, 7 pessoas (35%); de 2019 a 2021, 10
pessoas (50%); e 15% das respostas obtidas não condizem com a pergunta realizada. Esses
dados apontam para o uso a longo prazo (3 anos ou mais, chegando a 17 anos) por um
número considerável de participantes e, conforme Gonzalez e Toma (2020), esse tipo de uso
pode ser marcado por diversos efeitos colaterais nocivos como: fadiga, tontura e redução
da coordenação motora, pois os BZPs podem deprimir o Sistema Nervoso Central (SNC). Os
autores indicam ainda a possibilidade de dependência do fármaco que pode acarretar uma
série de sintomas que podem ser confundidos com um quadro de ansiedade, podendo, assim,
gerar um ciclo retroativo, onde o paciente fica “refém” de seus sintomas e do medicamento
e o medicamento gera novos sintomas.
O uso prolongado de BZP relaciona-se com diversos efeitos adversos, como sedação,
problemas de memória, declínio cognitivo e prejuízo psicomotor. Os dados obtidos por Lima
et al. (2020) compreendem que a maior parte dos participantes de sua pesquisa utilizavam
BZP há mais de um ano (56,47%). Usualmente, a utilização da medicação é indicada durante
poucos meses.
O uso por um período de tempo tão logo pode ser consequência de diversos fatores:
precariedade de informações sobre a duração do tratamento e sobre os riscos relacionados
ao uso; erros de prescrição (como a ausência da validade na receita); a receita e sua renovação
ser realizada por um médico não especialista (LIMA et al., 2020).
Com relação aos primeiros fatores elencados, o fornecimento de informações
adequadas acerca do tempo total de tratamento (com 17 respostas válidas) e riscos
relacionados ao seu uso (20 respostas válidas), observa-se que: 70,6% (12) relatam que não
foram informados sobre o tempo total de tratamento; 5,9% (1) foi informado prazo de 30
dias; 5,9% (1) prazo de 3 meses; 5,9% (1) prazo de 6 meses; 5,9% (1) foi informado que teria
uso por tempo ininterrupto e 5,9% (1) por tempo indeterminado. Sobre o recebimento
de informações acerca dos riscos relacionados ao uso, foi relatado que: 55% receberam
informações, ainda que poucas; e 45% relatam não terem recebido nenhuma.

99
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Os autores Castro et al. (2013) fazem uma crítica ao uso indiscriminado de medicação
psicotrópica, alertando também sobre o uso prolongado de BZPs, como acima de quatro
meses, podendo contribuir para um aumento de toxicidade, assim como o déficit cognitivo
ou desenvolvimento de dependência. Dado que também é evidenciado na pesquisa de
Orlandi e Noto (2005), onde todos os usuários entrevistados relatam que não foram instruídos
nem quanto ao tempo que seria necessário o uso do BZP, como tampouco foram alertados
quanto aos riscos de seu uso.
Sobre o profissional que prescreve, foram encontrados os seguintes resultados. Com
relação a primeira dosagem, 95% (19) relatam que se derivou de uma prescrição médica,
com variação entre especialidades, onde 58% (11) eram psiquiatras; 21,1% (4) clínicos gerais;
10,6% (2) neurologistas; e 5,3% para cardiologista (1) e endocrinologista (1).
Atualmente, 80% (15) dos respondentes relatam ter acesso ao medicamento com
prescrição médica e os outros 20% afirmam conseguir o medicamento mesmo sem receita.
Dos que têm acesso através de prescrição, as especialidades variam: 60% (9) psiquiatras;
20% (3) clínicos gerais; 13,4% (2) neurologistas; e 6,7% (1) cardiologista.
Em comparativo com estudo prévio de pesquisa realizada por Lima et al. (2020),
observa-se que, das especialidades médicas prescritoras, 61,2% (52) foram clínicos gerais;
11,8% (10) neurologistas; 11,8% (10) cardiologistas; apenas 9,4% psiquiatras; 1% pediatras
e 4,7% outras especialidades. Conforme os resultados obtidos por Orlandi e Noto (2005),
usuários relataram que diversas vezes a indicação para o uso de BZP seguia orientações
advindas de familiares ou até mesmo de amigos.
O número de consultas com o médico que prescreve a medicação também varia. Foi
relatado acerca da frequência que: 31,3% (5) consultam-se a cada 3 meses; 25% (4) vão de
uma a duas vezes ao ano ao médico; 18,8% (3) retornam mensalmente; 12,5% (2) consultam-
se a cada 2 meses e 12, 5% (2) consultam-se a cada 4 meses.
Foi perguntado aos participantes se eles possuíam algum diagnóstico em Saúde
Mental realizado por um profissional da saúde e, se tivessem, foi pedido para especificar
qual. As respostas obtidas foram: ansiedade (35%), combinação de insônia e ansiedade
(5%), depressão (10%), transtorno de pânico (5%), depressão e ansiedade (5%), transtorno
obsessivo compulsivo (5%) e 40% afirmaram que não tinham diagnóstico. Destaca-se o fato
de que alguns participantes possuem mais de um diagnóstico e, por isso, a soma total das
porcentagens pode ser superior a 100%. Outro dado importante é que embora 8 (referente

100
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

a 40%) pessoas tenham afirmado que não têm diagnóstico em saúde mental, ainda assim
fazem uso do Rivotril (benzodiazepínico).
O questionário avaliou a motivação no cotidiano do participante para o uso da
medicação. Os resultados foram divididos em dois blocos. O bloco 1 se refere às motivações:
sintomas físicos (38%), insônia (65,2%), preocupação excessiva e/ou pensamento acelerado
(65,2%). O bloco 2 congrega as seguintes motivações: tristeza (43,5%), vivências estressantes
no cotidiano (43,5%), perdas de pessoas próximas (21,8%) e esquecer problemas (21,8%). O
primeiro bloco aponta motivações que estão potencialmente mais adequadas aos efeitos
clínicos indicados para o uso de BZP, a saber: insônia, sintomas físicos de ansiedade e
pensamento acelerado (GONZALEZ; TOMA, 2020). O segundo bloco aponta um elevado
uso deste fármaco para condições estressoras cotidianas, como esquecer problemas; para
eventos normativos do desenvolvimento, como a perda de pessoas próximas; e diante de
afetos que participam de respostas esperadas aos eventos, como a tristeza.
As principais queixas que motivaram o uso observadas na pesquisa de Lima et al.
(2020) são: agitação 27,1% (23); nervosismo 25,9% (22); insônia 23,5% (20); estresse 17,6%;
e outros motivos 5,9%. Mas também observaram que os usuários consideravam benéficos
os efeitos de melhoria do sono, sensação de tranquilidade e de conforto atribuídos ao uso
da medicação.
Uma pesquisa realizada por Orlandi e Noto (2005) aborda a motivação para o uso de
BZP. Ressalta que a motivação para o início do uso de BZP era, muitas vezes, explicada por
seus usuários como recurso para evitar adversidades cotidianas ou até mesmo para lidar com
situações de luto e perda. No entanto, a manutenção de seu uso posteriormente adquire
novos sentidos, que são refletidos, muitas vezes, por novas estratégias para obter novas
prescrições que permitam seu uso crônico, como: alternar entre médicos até que obtenha
a receita; busca de conhecidos que possam fazê-lo, como amigos ou familiares médicos; ou
até mesmo a simulação de condições clínicas que justifiquem a prescrição. Fator esse que
pode ser ainda mais agravado pela grande acessibilidade de informações disponíveis na
internet, por exemplo.
Dois principais efeitos são apontados como os que mais evidentemente justificam o
uso de BZPs, sendo eles para o tratamento de distúrbios do sono e tratamento de transtornos
ansiosos. Efeitos esses que também refletem nos perfis que mais recorrem ao uso: idosos
que visam sua ação hipnótica; e mulheres de meia idade que visam seu efeito ansiolítico
(ORLANDI; NOTO, 2005).

101
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

O BZP, no entanto, é interpretado pelos seus usuários como recurso que pode
resolver seu problema e pode achar com isso, a partir dessa interpretação por longos
períodos, dificuldade em conseguir sustentar-se sem ele. Havendo dificuldade na autocrítica
e reconhecimento de dependência, mas reconhecendo, em seu uso, segurança para
permanecer vivo. Seu uso também é endossado pela representação feita por usuários que
relutam em afirmar apenas fatores positivos promovidos a partir de seu uso, como: propiciar
relaxamento, calma, que permite que o indivíduo tenha um sono restaurador ou que consiga
adormecer facilmente. Com tal leitura, há dificuldade em compreender ou aceitar que o uso
prolongado do BZP pode trazer malefícios e, com isso, o indivíduo procura manter-se em
uso, independente do risco a que está submetido (ORLANDI; NOTO, 2005).
Esta pesquisa foi realizada durante um momento alarmante da pandemia
no Brasil, o que permite realizar algumas ponderações sobre BZP e essa crise sanitária.
Em um primeiro momento, serão abordados os impactos na saúde mental de forma
ampla. As implicações psicológicas como a incerteza sobre como controlar a doença e sua
gravidade, imprevisibilidade e o fato de não termos uma data específica para o possível
fim da pandemia, são apenas alguns dos fatores que podem gerar risco à saúde mental da
população (SCHMIDT et al, 2020).
Os autores Schmidt et al (2020) também destacam os mitos e informações errôneas
sobre o contágio e prevenção, além de fake news, a suspeita de infecção que pode
ocasionar sintomas obsessivos-compulsivos, a diminuição de conexões e mudança em
relações interpessoais, problemas de ensino-aprendizagem, medo de transmitir a doença
e entre outros.
Corrêa et al. (2020) citam que um estudo de revisão sobre os efeitos psicológicos
desta pandemia mostra sua diferença com as anteriores (SARS, Ebola, influenza H1N1,
MERS e gripe suína), sendo seus efeitos negativos: distúrbios emocionais, depressão,
estresse, baixo humor, irritabilidade, insônia e sintomas de estresse pós-traumático. Na
pesquisa realizada por Corrêa et al. (2020), com 226 indivíduos, mostrou-se que 46,5% dos
participantes tinham sintomas normais de estresse e 2,8% tinham sintomas severos. Ao
se tratar de ansiedade, constatou-se que 68,1% tinham sintomas normais e 8% severos. E,
por fim, sobre depressão, os autores chegaram ao resultado de que 66,2% apresentavam
sintomas normais e 3,3% severos.
Grupos com suspeita de COVID-19, familiares e profissionais na linha de frente se
comportam de maneira diferente e têm necessidades distintas, sendo assim, o necessário

102
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

é que sejam feitas intervenções específicas (ZWIELEWSKI et al, 2020). Toda essa realidade
e processo de adoecimento pode durar por muito tempo, até mesmo depois do fim da
pandemia (ZWIELEWSKI et al, 2020).
Uma das soluções trazidas pelos autores Zwielewski et al (2020) foi o tratamento
psicológico através da terapia cognitivo-comportamental (TCC), pois uma de suas práticas
é explicar as reações psicológicas e os padrões comportamentais, como: a avaliação de si
e dos outros, consequências de suas decisões, analisar suas crenças ou pensamentos que
podem desencadear situações estressoras. O que pode ajudar a visualizar uma realidade
menos “contaminada” por pensamentos e comportamentos disfuncionais.
Nesse contexto em que o estresse se eleva e a angústia é endossada pela neblina
na paira sobre o futuro da população, é possível perceber um aumento do uso de BZP pela
população adulta, como fora apontado no início dos resultados. Esse aumento desvela uma
provável elevação do sofrimento psíquico que precisa de atenção em saúde. Ao passo que,
ao comparar com as motivações para o uso de BZP, percebemos um conjunto de respostas
que demonstram que o fármaco pode estar sendo colocado como uma espécie de tela que
amortece os eventos de vida diários desconfortáveis. Inclusive com a possibilidade de uma
ação iatrogênico, em que são desconsiderados os riscos e efeitos colaterais da medicação.
Um BZP não constitui recurso de enfrentamento para estresse.
Por isso, além de dar maiores informações sobre o uso de benzodiazepínicos a
população, também é necessário que os profissionais de psicologia façam propostas
psicoeducativas, cartilhas, intervenções psicológicas, que promovam estratégias para
promoção de bem-estar psicológico, enfatizando o fortalecimento da rede de apoio das
pessoas, assim como desmentir algumas informações errôneas disseminadas no meio social
(SCHMIDT et al, 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os benzodiazepínicos estão entre os medicamentos mais consumidos no Brasil,


porém isso não significa que exista, entre os profissionais da saúde e da população, uma
clara preocupação em buscar e manter uma educação em saúde adequada. A pesquisa
evidenciou que há uma falha de compreensão em boa parte de seus usuários quanto ao
que, de fato, o medicamento se propõe a realizar e dos perigos acerca de seu consumo a
longo prazo.

103
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

A literatura especializada aponta que as falhas podem ser oriundas de diferentes


meios, como a pesquisa por meio de recursos inadequados como sites não-autorizados sobre
seu uso ou efeito; falha na transmissão de informação clara e explicações individualizadas
por parte de especialistas ao receitarem; ou até mesmo por ser utilizada pelo usuário como
recurso que o auxilia a lidar com situações cotidianas que lhe provoquem desconforto,
como tristeza ou ansiedade coerentes ao contexto vivenciado pelo sujeito. É, nesta última
falha, que se centraliza o presente capítulo. Ao investigar motivações encontradas para a
continuidade de uso inadequado de benzodiazepínicos como resposta a baixa tolerância a
desconfortos e falta de estratégias de enfrentamento diversas promovidas pelo fenômeno
de medicalização de adversidades cotidianas. Ainda que esse uso inadequado acarrete, ao
indivíduo, efeitos colaterais ou dependência a longo prazo.
Durante a pandemia, observa-se que houve aumento no consumo de
benzodiazepínicos, muito embora a indicação para uso e prescrição seja desincentivada para
casos de pessoas que previamente não utilizavam a medicação. Sendo compreendido que
a estratégia mais sugerida como coerente dado o contexto seria o incentivo ao aprendizado
e à adaptabilidade à experiência, e não o entorpecimento emocional promovido pelo uso
medicamentoso desassociado com a ponderação acerca da experiência vivida. Possibilitando,
assim, que o indivíduo utilize do benzodiazepínico como recurso pontual e coeso.

REFERÊNCIAS

1. AUCHEWSKI, L. et al. Avaliação da orientação médica sobre os efeitos colaterais


de benzodiazepínicos. Revista Brasileira de Psiquiatria, 2004; v. 26, n. 1,
p. 24-31. São Paulo, 2003. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbp/a/
F3QNLqgGfyqsH49hmBQD35J/?lang=pt>

2. CAMOZZATO, A. et al. Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia da COVID-19:


psicofármacos na COVID-19. Rio de Janeiro: Fiocruz/CEPEDES, 2020. 16 p. Cartilha.
Disponível em: <https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/06/
cartilha_psicofarmacos.pdf>. Acesso em: 9 jul. 2021.

3. CASTRO, G. L. et al. Uso de Benzodiazepínicos como automedicação: consequências


do uso abusivo, dependência, farmacovigilância e farmacoepidemiologia. Revista
Interdisciplinar. v. 6, n. 1, p. 112-123, jan.fev.mar. 2013. Fortaleza, 2o13. Disponível em:
<https://revistainterdisciplinar.uninovafapi.edu.br/index.php/revinter/article/view/21 >

104
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

4. CORRÊA, C.A. et al. Níveis de estresse, ansiedade, depressão e fatores associados durante
a pandemia de COVID-19 em praticantes de Yoga. Revista Brasileira de atividade física
e saúde. v. 25, n. 0118, 2020.

5. FIRMINO, K.F. et al. Fatores associados ao uso de benzodiazepínicos no serviço municipal


de saúde da cidade de Coronel Fabriciano, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde
Pública, v. 27, n. 6, 2011.

6. GONZALEZ, F. G.; TOMA, A. Uso racional de benzodiazepínicos: da droga terapêutica à


toxicológica. Revista UNILUS Ensino e Pesquisa, v. 17, n. 46, jan./mar. 2020, p. 190-
204. São Paulo, 2020. Disponível em: <http://revista.lusiada.br/index.php/ruep/article/
view/1263> Acesso em: 9 jul. 2021.

7. LIMA, M. S. G. et al. Perfil do consumo de pacientes e erros nas prescrições de


benzodiazepínicos atendidas em farmácia privada no Sertão de Pernambuco. Brazilian
Journal of Development. Curitiba, v. 6, n. 8, p. 55297-55307, ago. 2020. Disponível
em: <https://www.brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/14568/12085>.
Acesso em: 10 julho de 2021.

8. ORLANDI, P.; NOTO, A. R. Uso indevido de benzodiazepínicos: um estudo com informantes-


chave no município de São Paulo. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 13, n.
1, p. 896-902, sep./oct., São Paulo, 2005.

9. ORNELL F, et al. Pandemia de medo e COVID-19: impacto na saúde mental e possíveis


estratégicas. Revista Debates in Psychiatry No prelo 2020. Disponível em: http://www.
ufrgs.br/ufrgs/noticias/arquivos/pandemia-de-medo-e-covid-19-impacto-na-saude-
mental-e-possiveis-estrategias.

10. QUEMEL, G. K. C. et al. Revisão integrativa da literatura sobre o aumento no consumo


de psicotrópicos em transtornos mentais como a depressão. Brazilian Applied Science
Review. Curitiba, v. 5, n. 3, p. 1384-1403, maio/junho de 2021. Disponível em: <https://
www.brazilianjournals.com/index.php/BASR/article/viewFile/30182/23774>. Acesso
em: 9 de julho de 2021.

11. RAMOS, T. B. et al. Informação sobre benzodiazepínicos: o que a internet nos oferece?
Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, n. 11, p. 4351-4360. Rio de Janeiro, 2020. Disponível em:
<https://www.scielosp.org/article/csc/2020.v25n11/4351-4360/>

105
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

12. SANTOS, R. M. et al. Consumo de benzodiazepínicos e opióides no primeiro


quadrimestre de 2020 em uma Unidade de Pronto Atendimento na Paraíba. Revista
Interdisciplinar em Saúde. Cajazeiras, v. 8, 2020. Disponível em: <https://scholar.
archive.org/work/3jfxhlqd6jgvhg4wsiaoimczhm/access/wayback/http://www.
interdisciplinaremsaude.com.br/Volume_29/Trabalho_47_2021.pdf>. Acesso em: 9 jul.
2021.

13. SCHMIDT, B. et al. Saúde mental e intervenções psicológicas diante da pandemia do


novo coronavírus (COVID-19). Estudos de Psicologia, 37, e200063. Campinas, 2020.
Disponível em: < http://dx.doi.org/10.1590/1982-0 275202037e200063 >

14. SOUSA, N.M.M. Perfil de usuários de psicofármacos atendidos em uma farmácia


comunitária do alto sertão paraibano. Revista Brasileira de Educação e Saúde, v.6, n.1,
2016.

15. ZWIELEWSKI, R. et al. Protocolos para tratamento psicológico em pandemias: as


demandas em saúde mental produzidas pela COVID-19. Psiquiatria - Abril-Junho 2020.
Disponível em: < https://www.revistardp.org.br/revista/article/view/36/24 >

106
8
O uso medicinal da Maconha no Brasil e sua
representação social12
Weslley Melo Santana (1)
Lívia Lara Almeida de Souza (2)
Pedro Dantas Lima (3)

(1)
ORCID https://orcid.org/0000-0002-4483-0247; Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL; Estudante de
licenciatura em Ciências Biológicas; Santana do Ipanema, Alagoas; Brazil. E-mail: weslleysantana@alunos.
uneal.edu.br
(2)
ORCID https://orcid.org/0000-0001-8329-5710; Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL; Estudante de
licenciatura em Ciências Biológicas; Santana do Ipanema, Alagoas; Brazil. E-mail: almeidaliv18@gmail.com;
(3)
ORCID https://orcid.org/0000-0002-9926-481X; Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL; Estudante de
licenciatura em Ciências Biológicas; Santana do Ipanema, Alagoas; Brazil. E-mail: pedrodantas714@gmail.com.

INTRODUÇÃO

Desde a pré-história, a Cannabis sativa é usada para fins têxteis ou medicinais (ROCHA,
2016), quando o mundo ainda era povoado por caçadores-coletores, o hábito de utilizar
plantas para tais finalidades era uma prática comum, este fato não mudou até os dias atuais.
A utilização da maconha como droga é antiga, supostamente de origem asiática,
havendo registros escritos do tratamento de diversas enfermidades na China a partir do
século I a.C., seu uso também foi associado a rituais satânicos, o cânhamo (variedade não
psicoativa usada na confecção de roupas e equipamentos naval) impulsionou a economia
mundial (FRANÇA, 2015). As evidências mais antigas do seu uso datam de aproximadamente
14 mil anos atrás, quando houve a domesticação da espécie Cannabis sativa (SAAD, 2010),
um arbusto pertencente à família Moraceae, denominada popularmente por cânhamo da
Índia, é uma planta que apresenta propriedades terapêuticas e vem sendo utilizada, há
séculos, pelo mundo para diversos fins, incluindo o uso recreativo (BARRETO, 2002).

12 DOI: https://doi.org/10.48016/XIenccultgt5l1cap8
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

No Brasil, o seu primeiro registro foi em 1783. De acordo com França (2015), o uso
recreativo dessa droga foi constantemente estigmatizado, considerado um hábito das
classes baixas e bastante difundido entre os escravos. Tanto os brancos de classe baixa
quanto os negros escravizados trouxeram para o “Novo Mundo” o hábito de consumir a
maconha, seja em forma de resina ou fumo, mas o estigma social que recaiu sobre os negros
acabou reforçando a ideia de uma origem africana do hábito.
De acordo com Pereira et. al (2018), em termos globais de consumo, a maconha é
a droga mais utilizada dentre os usuários de substâncias ilícitas. Em alguns países, o uso
medicinal já é legalizado. No Brasil, o plantio de cannabis spp. para uso medicinal e científico
já é previsto desde 2006, por meio da lei 11.343, a chamada Lei de Drogas, aprovada no
governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas pouco se avançou na sua regulamentação até o
início desta década (MACHADO; SOUZA, 2020).
Segundo a Folha de São Paulo (2020), há pouco tempo foi aprovada a venda do
primeiro produto à base de maconha, um fitofármaco composto de canabidiol, portanto o
primeiro passo foi dado. Porém ainda há muito o que se discutir, pois parte da população vê
o uso da maconha como algo ilegal e imoral, e quem necessita do uso enfrenta uma grande
burocracia até a obtenção do medicamento.
Levando em consideração esses posicionamentos, o objetivo deste estudo foi
descrever as principais variáveis que exercem influência na intenção de uso da Cannabis
sativa, segundo a percepção de pessoas de idades, níveis de escolaridade distintos dentre
outras variáveis.

REFERENCIAL TEÓRICO

“O uso medicinal da maconha é tão antigo quanto ela própria” (MOURA; JÚNIOR,
2015, p. 6). Não obstante, discussões nesse campo são de uma longa data, pois no percurso
da sua trajetória passou do uso terapêutico/farmacológico ao recreativo e criou-se um
determinado preconceito.
Para o cenário brasileiro Carlini (2006) argumenta que:

De uma certa maneira, a história do Brasil está intimamente ligada à planta


Cannabis sativa L., desde a chegada à nova terra das primeiras caravelas
portuguesas em 1500. Não só as velas, mas também os cordames daquelas
frágeis embarcações, eram feitas de fibra de cânhamo, como também é
chamada a planta (CARLINI, 2006, p. 1).

108
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Pode-se notar que a relação das pessoas com essa planta era cooperativa, sem
prejuízos. Entretanto, na esfera brasileira, um passo retrógrado marcou tal relação. “A
associação da cannabis com os negros africanos destacou-se consideravelmente como fator
cultural sobre a planta” (SANTOS, 2016, p. 8). A estigmatização desse povo criou um cenário
negativo para os diversos fins dessa planta.
Historicamente, um embate fora travado sobre esse assunto, com uma onda
emergente das drogas psicoativas, as lideranças esquadrinharam a política proibicionista,
sem mensurar os benefícios de outros usos. Diante do quadro imposto e construído pela
elite frente a utilização da planta, criou-se uma memória traumática e desprovida dos
verdadeiros entornos sociais que circundaram esta temática (ELIAS; OLIVEIRA; BARBOSA,
2020, p. 6).
Atualmente, em vários lugares do mundo, primorosos avanços foram conquistados,
com a criação de políticas para o uso medicinal e em outras esferas. Segundo Souza; Santos;
Aléssio (2018), “[...] a maconha tem sido amplamente discutida, promovendo controversos
debates em campos como os da saúde, direito, economia e segurança pública”.
Tendo em vista a busca pela saúde e bem-estar, pode-se observar um crescente
interesse em se pesquisar sobre inúmeras terapias para as incontáveis patologias que
encontramos atualmente. Hoje, há muitas pesquisas com a cannabis para usá-la como
remédio para diversas enfermidades, e há muitos anos se vem estudando seu alto poder
terapêutico (MOURA; JÚNIOR, 2015, p. 6).
Em relação a temática abordada, Elias; Oliveira; Barbosa (2020) argumentam que:

Desta forma desde 2014 até os dias atuais, o uso da maconha vem
ganhando novos contornos e agregando mais sensibilidade no contexto
social, especialmente com vistas aos benefícios que podem ser promovidos
às famílias de crianças e adultos, ao minimizarem um quadro patológico,
com a sua utilização medicinal (ELIAS; OLIVEIRA; BARBOSA, 2020, p. 70).

Por muitas vezes, o tema vem sendo debatido, pois envolve não apenas contextos
relacionadas a legalização, mas também abrange aspectos relacionados ao direito a uma
vida digna e à desconstrução do preconceito acerca do uso da maconha. Há pessoas que
necessitam de compostos oriundos dessa planta para obter uma vida “normal”; Santos
(2016) afirma que “[...] sobre o uso medicinal da maconha e suas representações sociais,
o consumo de substâncias psicoativas tem sido um tema presente em inúmeros debates,
suscitando muitas discussões na sociedade contemporânea”.

109
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Dentro deste âmbito, temos o tema das representações sociais que, segundo a
definição proposta por Santos (2016), “As representações sociais se dispõem como uma
forma do indivíduo representar e repensar a realidade cotidiana vivenciada individual ou
coletivamente, para firmar suas opiniões e teorias em meio às mais diversas situações e
eventos”. É de extrema importância observar essa linha de diálogo ao se lidar com um tema
tão delicado. Por outro lado, a epidemiologia de uso da maconha no Brasil mostra que esse
assunto não pode ficar mais sem um enfrentamento franco e decisivo (CARLINI, 2006).
As abordagens de discussão relacionadas ao consumo individual e coletivo da
maconha são importantes para evidenciar a sua relevância no âmbito da saúde, como
argumenta Souza et al. (2018). Ao longo da trama histórica, é possível perceber que a
maconha é construída ativamente na cena pública e comporta tensões discursivas que
repercutem no contexto atual.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Com o propósito de responder a problemática do estudo, este capítulo caracteriza-se


como descritivo pautado na abordagem quali-quantitativa, útil em estudos exploratórios,
aqueles em que se tem pouco conhecimento inicial sobre a temática investigada, suas
fronteiras e os horizontes inexplorados, problemas que envolvem atores, contextos e
processos (ENSSLIN; ENSSLIN; VIANNA, 2007).
Os dados utilizados para o presente estudo são provenientes de formulários elaborados
com a ferramenta Google Forms e disponibilizados ao público-alvo através de comunicação
por plataformas digitais, principalmente redes sociais. Os questionários semiestruturados
ficaram disponíveis durante um período de 30 dias e eram compostos de questões abertas
e fechadas possibilitando uma boa construção de opiniões e, ao mesmo tempo, a obtenção
de um percentual crítico e imparcial das informações adquiridas.
Ressalta-se que os sujeitos da pesquisa participaram de forma voluntária, sem
necessidade de divulgar informações de identificação, apenas opiniões acerca das questões
abordadas, possibilitando críticas e diversos pontos de vista sob um único conteúdo. Desta
forma, a quantidade de entrevistados não é o mais importante, embora todos os cálculos
e dados de porcentagem tenham sido obtidos através dela. Finalizada a coleta, os dados
foram preparados para análise, a transcrição das respostas é algo pertinente com vista à
evidenciação daquilo que se quer passar, e, além disso, é uma boa forma de tomar exatamente
as opiniões dos indivíduos que foram entrevistados.

110
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

RESULTADOS E DISCUSSÕES

De forma essencial, este estudo apresenta reflexões frente a opiniões de aspectos


relacionados à planta cannabis sativa e um contexto social. Estas, por sua vez, são baseadas
em considerações de 55 pessoas de níveis educacionais, locais e contextos sociais distintos,
mas que ainda aparentam ter construído opiniões semelhantes dentro dessa temática.
Usando como descritor o referencial de idade, pode-se perceber que grande parte
dos entrevistados, cerca de 61,1%, estão na faixa de 19 a 30 anos, geralmente esse público
tem amplo acesso à informação e tem autonomia para formular argumentos baseados em
fatos. A parcela da população amostral na faixa dos 30+ representou 37% dos entrevistados,
como podemos observar no gráfico 1:

Gráfico 1. Representação da faixa etária dos participantes do estudo. Autoria própria.

Fonte: Dados da pesquisa, 2021.

Os participantes desta pesquisa têm como maior representatividade o nível superior


(completo e incompleto), somando um total de 88,90% de estudantes. Os demais, 11,10%,
correspondem à categoria do nível básico. Assim, estes dados justificam a maturidade com a
qual os respondentes opinaram neste estudo, o nível de clareza presente nas contribuições
reflete nas mentes jovens, brilhantes, frescas e sábias, gráfico 2:

111
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Gráfico 2. Representação do nível de escolaridade dos participantes do estudo.

Fonte: Dados da pesquisa, 2021.

A discussão acerca da descriminalização do uso de uma forma mais ampla


(farmacêutico/recreativo) desta planta levanta opiniões, pois existem diversas esferas que
exprimem julgamentos. Vale ressaltar que o intuito desse trabalho foi entender como, dentro
da população amostral, essas ideias estão difundidas, visto que cada um dos entrevistados
carrega consigo uma bagagem cultural que conota na formação de opiniões.
Mais da metade dos entrevistados, 57,7%, apoiam a descriminalização, possivelmente
embasados nas notícias exitosas que foram veiculadas nos últimos anos, 24,1% responderam
que apoiam parcialmente, 22,2% negam apoio a essa ação, ver gráfico 3.

Gráfico 3. Representação da opinião dos estudantes em relação a descriminalização da

Fonte: Dados da pesquisa, 2021.

112
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

O questionamento referente à forma com que o nosso país lida com questões de
saúde e qualidade de vida nos mostrou, de forma nada surpreendente, com 96,30% de
votos, que a ineficiência em relação a esses temas é notada pela maioria dos estudantes e
talvez até dos brasileiros.
De forma significativa, os estudantes apontaram que o Brasil não lida de forma
eficiente com questões de saúde e qualidade de vida. Essa resposta é o reflexo de todas
as más ações tomadas pelo país no decorrer dos anos, como: o baixo incentivo às classes
trabalhadoras, falta de saneamento básico, alto índice de analfabetismo, mortalidade infantil
e tantas outras medidas que, se executadas da maneira correta, elevaria tais níveis para a
maioria da população brasileira. BUSS (2000, p. 3) cita que:

“...Em países como o Brasil e outros da América Latina, a péssima


distribuição de renda, o analfabetismo, o baixo grau de escolaridade,
assim como as condições precárias de habitação e ambiente têm um
papel muito importante nas condições de vida e saúde (BUSS, 2000, p. 3).

Ou seja, enquanto essas ações não forem tidas como importantes, a população seguirá
desassistida e correndo riscos frequentemente. Mas, de que maneira isso está relacionado
ao uso da maconha e sua representação social? Respostas apresentadas no gráfico 4.

Gráfico 4. Representação da opinião dos respondentes frente a postura do país em situações


relacionadas a saúde e qualidade de vida.

Fonte: Dados da pesquisa, 2021.

Ainda há muita polêmica envolvendo a desburocratização da cannabis tanto para


o uso medicinal, quanto recreativo, muitas drogas com propriedades muito mais nocivas

113
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

carregam o nosso selo para o uso legal, a exemplo do cigarro que não possui nenhuma
propriedade medicinal.
Com efeitos antagônicos, a maconha possui diferentes ações farmacológicas e/ou
fisiológicas, a fumaça do cigarro estimula algumas vias cancerígenas, de modo a aumentar
o efeito da enfermidade no organismo, enquanto a maconha, por sua vez, possui o efeito
contrário minimizando, desta forma, os impactos da doença.
Mostrando, assim, a hipocrisia frente à legalização da maconha, principalmente no
preconceito enraizado na nossa sociedade quanto a seu uso. Dificilmente podemos atribuir
morte a utilização de maconha, mas sem sequer pensar, podemos associar incontáveis
mortes no trânsito à direção alcoolizada, overdose por uso de analgésicos prescritos ou não,
e doenças pulmonares ligadas ao tabagismo.
Frente a esses fatos, os entrevistados foram questionados se eles tinham
conhecimento do uso farmacológico de compostos provenientes de maconha e os
resultados surpreenderam, 100% das respostas foram afirmativas, demonstrando aqui que
não é apenas o conhecimento único sobre esse fato que ajuda a quebrar o preconceito, mas
um trabalho integrado de conscientização e discussões integradoras.
Portanto, fez se necessária a seguinte pergunta: “Você apoia a desburocratização para
pesquisa e uso medicinal da maconha?”, diante desse questionamento pode-se vislumbrar
no gráfico 5 os seguintes dados:

Gráfico 5. Representação dos respondentes sobre o apoio a desburocratização da maconha

Fonte: Dados da pesquisa, 2021.

114
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

Assim, como está exemplificado no gráfico 5, 98,10% dos respondentes apoiam a


desburocratização para pesquisa e uso medicinal da cannabis. Este número justifica-se
devido ao seu alto potencial medicinal, já descrito, testado e comprovado cientificamente em
outros países, onde a mesma também já está legalizada para uso medicinal e/ou recreativo.
Os fitocanabinóides mais estudados da cannabis sativa são o Δ9-tetrahidrocanabinol
- THC e o canabidiol - CBD, o THC está relacionado à atividade psicoativa da planta além das
atividades terapêuticas de analgesia, anti-inflamatória, relaxante muscular, estimulante de
apetite, broncodilatador e a redução da pressão ocular e o canabidiol é mais conhecido pela
sua atividade antiepiléptica além das atividades terapêuticas de ansiolíticos, antieméticos,
antipsicóticos, imunomoduladores, anti-inflamatórias (SOUZA, et.al, 2018, p. 2).
Algumas opiniões relacionadas à burocratização do uso da maconha foram citadas:

E.9: “Essencial para as famílias que necessitam do seu uso e são prejudicados
pela burocratização. Além de estimular novas pesquisas e descobertas do
grande potencial terapêutico que ela tem”.
E.10: “Concordo plenamente, a legalização seria uma forma de diminuir
toda a burocratização em relação ao uso dessa planta para pesquisa”.

Essas contribuições nos fazem refletir acerca do processo legal que é destinado
àqueles que dependem das substâncias advindas da maconha que, segundo o E.51: “A
maconha, assim como qualquer outra planta que tenha potencial medicinal e terapêutico
deve sim ser utilizada, de forma consciente e acompanhada, com o objetivo de melhorias em
quadros clínicos”, favorecendo sempre o bem-estar da população, priorizando e respeitando
o direito à saúde assegurado pela constituição.
Conforme citado por Lambert, Martins (2018), quando se fala em uso medicinal da
maconha, aciona-se o judiciário para garantir o seu acesso, a demanda se constrói justamente
no sentido de “garantir a saúde”, como um direito previsto na Constituição Federal, e que não
deve ser negado a ninguém.
Para vislumbrar o acervo de informações dos entrevistados sobre o assunto, os
mesmos foram questionados sobre uma situação vivenciada ou visualizada/veiculada
por meios digitais a que tiveram acesso sobre o tópico, vale ressaltar que a identidade do
informante não foi solicitada e que a confidencialidade das informações foi garantida.
Abaixo estão elencadas as respostas mais contrastantes. Os entrevistados foram
“identificados” seguindo a ordem de resposta (E.1, E.2...). As concepções se completam e se
divergem ao mesmo tempo.

115
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

E.1: “Uma situação comumente vista de forma midiática é a luta judicial


para obter a legalização do uso medicinal da maconha. Seja o Canabidiol;
Naxibimols (extrato vegetal); Dronabinol e tantos outros usos em potencial
dessa planta, o conflito desnecessário para a permissão da utilização de algo
que lhe ajudará a melhorar ou curar alguma enfermidade é humilhante.
A batalha para garantir a própria saúde se torna não apenas institucional,
como também social. Sei que essa não é uma experiência própria minha,
mas, a meu ver é uma vivência coletiva que frequentemente encontramos
nas nossas mídias.”
E.6: “Não conheço nenhum caso próximo, mas sei que o uso do extrato da
maconha em dosagem certas pode melhorar bastante doenças ligadas ao
sistema nervoso.”

E. 20: “Eu vi uma reportagem de uma mulher que estava usando a maconha
para tratamento do seu filho que sofria de Epilepsia.”

Diante destas três respostas, podemos ter uma noção de quanto e de que forma os
entrevistados estavam situados diante da temática, entretanto uma porção considerável
respondeu que não sabia de nenhum caso e não havia vivenciado nenhuma ocorrência. Tal
posição nos permite um pequeno observar de como as pessoas estão diante desse tema.
A questão seguinte solicitava ao respondente que “de modo suscinto descrevesse sua
opinião sobre o uso terapêutico e recreativo da maconha”. Opiniões de apoio para ambas as
utilizações da maconha são recorrentes, frisando a importância da regulamentação no uso
recreativo para que não fuja do controle.

E.1: “A maconha foi recentemente retirada da lista de drogas perigosas pela


Comissão de Narcóticos (CND) isso em suma já deveria significar alguma
coisa, há muitas plantas bem mais perigosas que a Canabis sem tantos “pré-
conceitos” formados sobre ela. O uso medicinal e recreativo dessa planta
deveria ser tão opcional quanto o uso de álcool e cigarros que são bem
mais nocivos aos nosso corpo”.
E.11: “Existem drogas muito piores (como o álcool) e é legalizado. o fato de
ser proibido alimenta o tráfico de drogas. Deveria ser permitido tanto na
forma terapêutica como recreativa”.
E.14: “Deveria ser bem regulamentado pelo governo para que a situação no
recreativo não saísse do controle, já o uso terapêutico/medicinal deveria ser
liberado pois vários estudos já confirmam sua eficácia em várias doenças”.
E.31: “Sou completamente a favor do uso terapêutico e, para o uso recreativo,
defendo que deveria haver uma regulamentação (a exemplo do Uruguai)”.

Deste modo, os respondentes, mesmo possuindo formações individuais e opiniões


próprias construídas no decorrer da vida, apresentaram um senso de coletividade em relação

116
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

a esse aspecto, que, como citou o entrevistado 12: “É essencial para a promoção da saúde da
população”, justificando assim uma diminuição no seu protocolo para fins medicinais.
A junção das considerações dos respondentes forma uma fala reflexiva: E.29 “A
maconha deve ser vista como um meio medicinal e eficaz. De modo a contribuir para que
a medicina avance em suas pesquisas”, usá-la como tal, E.40 “seria quebrar um paradigma”.
Algumas pessoas ainda se prendem a concepções de que seu uso não tem
comprovação científica mesmo com publicações e testes clínicos provando o contrário,
como mostram as respostas abaixo:

E.4: “Deveria ser liberada quando comprovado a utilização para fins


medicinais”. E.6: “[...] Temos que pesquisar e nos aprofundar pra sabermos
se vale ou não a pena”. E.35: “Acredito que o manuseamento da maconha
com fins medicinais deve ser pensado, bem como sua liberação no Brasil”.

Tais respostas demonstram o quão questionável é a ciência frente à minoria da opinião


pública e esse questionamento só cresceu no último ano, de modo que o comprovado se
torna duvidoso e o incorreto ou duvidoso se torna comprovado.
Por fim, elencando uma pergunta de opinião pessoal diante de um caso hipotético,
foi questionado: “Hipoteticamente, se na sua família houvesse um caso de determinada
enfermidade cujo uso do extrato da maconha aliviasse os sintomas, de que forma você
procederia com o tratamento?”. As opiniões mais salientes são descritas abaixo:

E. 2; 12; 14; 22; 31; 34; 36; 47 e 50: “sim, certamente!”


E. 5: “Buscaria informações acerca da melhor forma de manipulação e
dosagem adequada para garantir uma melhor eficácia do tratamento”.
E. 10: “Eu precisaria de autorização judicial para poder utilizar o que não é
muito eficiente.”

O respondente E. 41 verbalizou um comportamento que grande parte das pessoas que


passam por essa situação o fazem que é: “Buscaria ajuda as autoridades que defendem o uso
do extrato e também buscaria integrar a alguma associação ou grupo que luta por essa causa.”
Porque buscar apoio é uma das formas de conseguir ser ouvido, diante desse assunto.
O caminho em busca do tratamento com maconha perpassa por muitas instâncias
sociais e legais: bom senso, Poder Legislativo, Poder Judiciário etc. O uso medicinal que
é reivindicado está ancorado nas autoridades e nos saberes médicos, que são também
definidores, ao lado dos saberes jurídicos, da política de drogas que atualmente está em
vigor no Brasil (LAMBERT; MARTINS, 2018, p. 205).

117
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

A promoção à saúde é direito de dignidade da pessoa humana, proibir o uso de um


composto que ajude a sanar problemas de saúde vai na contramão da ciência e da cidadania,
com impactos severos na qualidade de vida da população, principalmente dos indivíduos
mais pobres, cujas outras vias de tratamento para determinadas enfermidades excedem
drasticamente suas condições financeiras. Portanto é notório destacar que vidas estão em
jogo, em cada decisão tomada acerca desta temática.

CONCLUSÃO

Com base nos resultados apresentados, percebe-se de modo claro que as


regulamentações para a utilização da maconha não são bem fundamentadas e, se
comparadas a outras drogas legais, seus efeitos são bem menos nocivos.
A associação da maconha como porta de entrada para outras drogas ilícitas mais
perigosas poderia ser facilmente substituída por drogas lícitas como: cigarro, álcool e
analgésicos. Mas, para alguns, essa comparação é totalmente incabível e esse pensamento é
o que transforma uma discussão como a acima abordada algo tortuoso.
Faz-se importante que essa discussão seja enfatizada, abordada e levada em conta
em diversos aspectos, pois sabe-se da importância que se tem para a qualidade de vida para
muitas pessoas. Entretanto, deve-se deixar o preconceito de lado e não infligir julgamentos
baseados em verdades parciais e opiniões não bem fundamentadas.

REFERÊNCIAS

1. BARRETO, L. A. A. S. A maconha (Cannabis sativa) e seu valor terapêutico. Trabalho


de Conclusão de Curso (Licenciatura em Ciências Biológicas), Graduando, Brasília – DF,
Faculdade de Ciências da Saúde, Brasília, 2002.

2. BUSS, P. M. Promoção da saúde e qualidade de vida Ciência & Saúde Coletiva, Rio de
Janeiro, v.5, n.1, p. 163 – 177, 2000.

3. CARLINI, E. A. A história da maconha no Brasil. Jornal Bras. Psiquiatria. São Paulo, v. 55,
n. 4, p. 314 - 317, 2006.

4. COUTINHO, M. da P.; ARAÚJO, L. F.; GONTIÈS, B. Uso da maconha e suas representações


sociais: estudo comparativo entre universitários. Psicologia em Estudo. Maringá, v. 9
n.3, p. 469-477, set./dez. 2004.

118
Território, corpo e sociedade
Cirlene Jeane Santos e Santos • Erika Flavia Soares Costa • Maria Ester Ferreira da Silva Viegas (Org.)

5. JUNIOR ELIAS, J. da S.; OLIVEIRA; B. M. J. F.; BARBOSA, M. N. R. Anseios e devaneios: a


memória social envolta ao progresso de legalização da maconha para fins medicinais no
Brasil. Perspectivas em Ciência da Informação. Paraíba, v.25, n.3, p. 63-81, jul/set, 2020.

6. ENSSLIN, L.; ENSSLIN, S. R.; VIANNA, W. B. O design na pesquisa quali-quantitativa


em engenharia de produção – Questões a considerar. Revista Gestão Industrial,
Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR Campus Ponta Grossa - Paraná –
Brasil, v. 03, n. 03: p. 172-185, 2007.

7. FOLHA DE SÃO PAULO. Anvisa aprova a venda do primeiro produto a base de maconha no
país. São Paulo, 08 de maio de 2020. Instagram: @folhadespaulo. Disponível em: https://www.
instagram.com/p/B_SbC3eHUPq/?igshid=10te86z6s1l8d Acesso em: 04 de jul. 2020.

8. FRANÇA, J. M. C. História da maconha no Brasil. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2015.

9. LAMBERT, L..; MARTINS, L. O Poder Judiciário como balcão de direitos: reflexões sobre
as estratégias jurídicas para a garantia do uso medicinal da maconha. Em Sociedade,
Revista do Departamento de Ciências Sociais – PUC MINAS – v. 1, n. 1; p. 190 – 207, 2018.

10. MACHADO, L.; SOUZA, F. A “legalização silenciosa” da maconha medicinal no Brasil.


BBC News Brasil, Pinheiros – SP, ago. de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/
portuguese/brasil-53589585 Acesso em: 12 de fev. de 2021.

11. MOURA, D. S.; JÚNIOR CARVALHO, N. dos R. Maconha Medicinal: O direito à saúde versus
o uso de substâncias entorpecentes. Revista de Iniciação Científica - UNIFEG, Guaxupé,
v. 1, n. 15 p. 1 – 14, 2015.

12. PEREIRA, J. R.; SOUSA, C. V.; SHIGAKI, H. B.; LARA, J. E. Cannabis sativa: aspectos relacionados
ao consumo de maconha no contexto brasileiro. Revista de Administração Hospitalar
e Inovação em Saúde – RAHIS, Belo Horizonte, MG v. 15, n.1, p. 01 – 16, Jan/Mar 2018.

13. ROCHA, J. V. P. D. Maconha e preconceito: representações sociais de uma droga. Textos


Graduados. Brasília, v. 2, n. 1, p.70-88, 2016.

14. SAAD, L. Medicina Legal: o discurso médico, a proibição da maconha e a criminalização


66 do negro. Revista de História, v. 2, n. 2, p. 59-70. 2010.

15. SOUSA, Y. S. O.; SANTOS, M. de F. de S.; ALÉSSIO, R. L. dos S. Maconha e Representações


Sociais em Matérias de Jornal. Psicologia Clínica e Cultura. Brasília, v. 34, n. 3, p. 1 – 10,
dez., 2018.

119
O
s textos apresentados nesta obra são fruto do XII
ENCCULT - Encontro Científico Cultural
de Alagoas, que teve como tema nesta edição
Sociedade e Ciência: um diálogo necessário. São 12 anos
contribuindo para o fomento das discussões científicas no
âmbito interdisciplinar, congregando pesquisadores de
diferentes instituições no contexto local e regional.

Dr. José Crisólogo de Sales Silva


(Organizador do evento)

Você também pode gostar