Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MÍSTICAS DO
NORDESTE
(SÉCULO XX)
Recife, 2023
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE
REITORA Profa. Dra. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcanti
VICE-REITOR Prof. José Roberto de Souza Cavalcanti
Membros Externos
Profa. Dra. Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento - Universidade Tiradentes (Brasil)
Profa. Dra. Gabriela Alejandra Vasquez Leyton - Universidad Andres Bello (Chile)
Prof. Dr. Geovanni Gomes Cabral - Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Brasil)
Profa. Dr. Gustavo Cunha de Araújo - Universidade Federal do Norte do Tocantins (Brasil)
Prof. Dr. José Zanca - Investigaciones Socio Históricas Regionales (Argentina)
Profa. Dra. Letícia Virginia Leidens - Universidade Federal Fluminense (Brasil)
Prof. Dr. Luciano Carlos Mendes de Freitas Filho - Instituto Federal da Bahia (Brasil)
Prof. Dr. Pedro Gil Frade Morouço - Instituto Politécnico de Leiria (Portugal)
Prof. Dr. Rosuel Lima-Pereira - Universidade da Guiana - França Ultramarina (Guiana Francesa)
Profa. Dra. Verónica Emilia Roldán - Università Niccolò Cusano (Itália)
Prof. Dr. Sérgio Filipe Ribeiro Pinto - Universidade Católica Portuguesa (Portugal)
[recurso eletrônico]
ISBN: 978-65-85651-38-7
Maria da Luz
Wêdja Domingos de Melo 29
Irmã Adélia de Cimbres
Maria de Araújo
Maria do Carmo Pagan Forte 42
Beata Maria de Araújo
Maria Rita
Lucas Costa Monteiro 53
Irmã Dulce
Adélia Carvalho
Zélia Cristina Pedrosa do Nascimento 127
Irmã Adélia
José Comblin
Alzirinha Rocha de Souza 206
Padre Comblin
Reginaldo Veloso
José Artur Tavares de Brito 233
Padre Reginaldo
Romano Zufferey
Valmir Assis da Silva Filho 244
Padre Romano
6
discernimento concreto do Absoluto. Nesse discernimento, a fé em sua
relação com a vida, é tratada como matéria de amor. Em uma espiri-
tualidade assim vivida, a mística reveste de coragem todos aqueles e
aquelas que se mostram capazes de questionar e de se opor às situações
de mortes decorrentes de profundas injustiças. A mística desenha com
sensibilidade nosso amor pelo outro. É assim que a gente vê como cada
místico apresentado consegue, com sua sensibilidade humana e reli-
giosa, se aproximar do outro em sua necessidade. O percurso místico
a seguir não são simples frases subjacentes aos textos, mas, o desenho
geral de como essas pessoas se dispuseram a enfrentar o desamor em
um mundo que tanto falta sensibilidade e reconhecimento do outro.
MÍSTICA,
Uma postura de fé,
Toda humildade e vida laboriosa,
Desejo de Deus,
Beber do próprio poço.
Encontrar o sagrado nas feições do povo.
Vivência na experiência, na alegria, na simplicidade,
no cuidado com o outro.
Em oração, preces a Deus agindo em nós.
A contemplação é bela e profunda, de modo leve,
ativa e criativa,
Transmuda o corpo com o êxtase, com o sonho vivo.
MÍSTICA,
Coragem de levar adiante a vida que se medita,
Inserida,
Encarnada,
Que se mistura ao drama humano.
MÍSTICA,
Paixão e compromisso,
Oceano profundo,
Que à noite risca o mundo,
Escrevendo cartas dizendo sua oração: “aos pobres me doou”.
MÍSTICA,
Desapego e entrega de si,
Presença que arde o coração,
Experiência da espera, do topar com Deus
E ser transformado.
MÍSTICA,
O olhar mais profundo, cuidadoso, prático
De palavra viva e comunitária.
7
O interior é denso, de amor, do bem, da verdade, da bondade.
Tudo na experiência e na vida do outro.
A penitência é reflexão,
Mudar é a conversão.
MÍSTICA,
A morte nunca é em vão
Muitos viram sementes e uma flor de justiça brota.
Morrer na luta,
Pela vida plena,
Pela vida em abundância.
Pelo pão repartido,
Pelo sangue testemunho,
Pelo ressignificar da fé.
Tudo isso se faz laço com a vida no espírito.
MÍSTICA,
A cor do destino nas aparições,
Algo de sobrenatural desponta!
Luz que enche corações,
Visão que aponta missão, caminho da boa oferenda.
Os pedidos são escutados,
O corpo resgatado
E os anjos cantam por essa doação!
MÍSTICA,
Na verdade, vida interior,
Perpassada pelo mundo como um rio que corre.
Vida beata,
Dom consagrado.
Ah, quanto mistério na hóstia em sangue!
A vida em êxtase incomoda,
Pois quando bate à qual seja porta,
Une a devoção,
O sagrado,
O coração.
Eis a ponta de lança da mais profunda prece,
Nossa bendita oração.
8
Essas espiritualidades e místicas significaram ações comunicativas de
luta por reconhecimento, revelando-se, assim, como expressão de ex-
periência de injustiça social dos sujeitos. Todo esse percurso religiosa-
mente poético é sinal de permanência firme no amor, no direito e na
solidariedade ao outro que sofre. Eis o sentido de suas espiritualidades
e místicas.
9
PREFÁCIO
José Afonso Chaves2
10
cada uma dessas experiências místicas aqui tratadas. Entretanto, para
além de toda essa diversidade, existem aspectos que perpassam todos
os trabalhos, dando uma coerência construtiva ao projeto do livro.
Gostaria de salientar, a seguir, três desses aspectos.
O primeiro deles diz respeito ao universo da memória. Elemento,
por si só, de grande importância, posto que toda experiência humana
ocorre em meio às muitas contribuições já realizadas por aqueles e
aquelas que nos antecederam. Assim, para melhor nos compreender-
mos, precisamos nos reconhecer em uma estrada que já foi palmilhada
por muitos. Mais ainda, esse aspecto recobre-se de importância, por
conta de uma cultura do esquecimento tão comum aos dias de hoje.
O segundo, nos fala do testemunho da esperança. Sabendo que
esses místicos e místicas aqui retratados se puseram no caminho do
movimento de Jesus de Nazaré e que este está assentado no evento
da Ressurreição, que lembra o tempo todo que a experiência humana
guarda uma promessa de vida plena, sempre nova e que se transforma
no caminho da emancipação, não podemos deixar de notar que o per-
curso místico dessas figuras nos deixa a lembrança de que a esperança
é uma condição humana que não pode ser abdicada.
O terceiro parece guardar um convite inquietante. O modo como
os textos foram elaborados, guardando a dimensão de vivência dessas
experiências místicas, estão a nos provocar; embora a mística que aqui
se apresenta esteja circunscrita ao mundo do cristianismo, não pode-
mos deixar de perceber que há uma provocação para que todos e todas
nunca esqueçam de alimentar em seu cotidiano a dimensão da mística,
pois sem ela a construção de sentido do existir seria tarefa inválida.
O que esses textos nos mostram, por fim, é que esses homens e
mulheres se entregaram de tal modo ao encontro da Alteridade Radical
e que está em Deus que não podiam realizar essa entrega se não fosse
pela via da vida mística.
Que saibamos encontrar nosso modo de seguir por esse mesmo
caminho através, também, da leitura desse livro.
11
INTRODUÇÃO
12
to diversificados. A diferença entre essas figuras aqui retratadas é tão
grande que, à primeira vista, fica difícil descobrir pontos em comum,
além do profundo amor a Jesus Cristo e a fé no projeto divino para
o mundo. Alguns/mas foram militantes comprometidos com a cami-
nhada da Igreja dos pobres. Outros, traduziram no Nordeste e mais no
meio dos pobres a antiga espiritualidade monástica vivida na tradição
dos mosteiros e conventos. A lista começa com um pastor presbiteria-
no da Igreja evangélica tradicional. Poderia haver o nome de outros
evangélicos ilustres por sua mística e espiritualidade como o pastor
Djalma Torres, da Aliança Batista que viveu em Salvador, BA e nos
deixou há poucos anos. Alguém também poderia lembrar João Pedro
Teixeira, trabalhador rural, membro da Assembleia de Deus, líder da
Liga Camponesa de Sapé, mártir da luta pela Terra em 1962 e imor-
talizado no filme de Eduardo Coutinho: “Cabra marcado pra morrer”.
Sua esposa, dona Elizabeth Teixeira, também evangélica, heroína que
resistiu a todas as perseguições e à injustiça de uma pobreza extrema,
hoje com 98 anos, vive ainda em João Pessoa.
De todo modo, só podemos agradecer aos autores e autoras des-
te livro o primoroso trabalho que tiveram para nos oferecer essa
amostra de santos e santas da nossa casa, místicos e místicas com os
quais convivemos e, talvez, mesmo a alguns, tivemos como amigos.
Pessoalmente, dos vinte irmãos e irmãs aqui recordados, tive a graça
de conviver com dez desses mestres e mestras, sendo que com alguns
como Dom Helder Camara que me ordenou presbítero, o padre José
Comblin que me formou em teologia e a irmã Agostinha que me acom-
panhou espiritualmente, durante anos, tenho um preito de gratidão
especial. Com os amigos Reginaldo Veloso e Geraldo Leite, em longos
diálogos, aprendi a orar os salmos do jeito dos pobres de Deus e em co-
munhão com o povo oprimido. Com frei Angelino, em vários diálogos
de alma, aprendi a revalorizar a oração de Jesus e a mística do silêncio
do coração.
13
Nenhum deles se considerava místico e quase todos viveram sua
espiritualidade no diálogo e no aprendizado com os mais pobres. Até
hoje, tenho aqui ao lado dessa mesa na qual escrevo, um caderno todo
escrito com a letra da irmã Agostinha Vieira de Melo. Nesse caderno,
ela copiava as palavras de sabedoria que ouvia das pessoas pobres com
as quais convivia em Mandacaru (João Pessoa). Quando completou 25
anos de votos monásticos, alugou um barraco na beira da linha de trem
para conviver com as pessoas mais pobres. Assim, ela buscava escutar
os segredos que o Espírito esconde dos grandes e revela aos pequenos.
Qual o Cristo em seu caminho de cruz, todos esses irmãos e irmãs
tiveram de renunciar às tentações do prestígio e do poder mesmo re-
ligioso. Todos e todas, de um modo ou de outro, viveram marginaliza-
ções e foram incompreendidos. Assim, puderam retomar o primeiro
amor e se deixarem conduzir por este Espírito da Paz que “sopra onde
quer, ouve-se a sua voz, mas não sabe para onde vai, nem para onde
vem”.
A nós, cristãos, o Espírito sussurra um nome que nos leva ao
Infinito: Jesus de Nazaré. Mas, nos leva também a outros nomes que
são sinônimos de amor e de paz, nas mais diferentes religiões e nas
mais diversas culturas. Que riqueza. Nenhum mortal pode amordaçar
a ventania. O mistério é nossa Paz e os caminhos religiosos, se con-
seguem sê-lo, podem apenas ser nossas parábolas de amor. Em um
de seus mais belos escritos, o sermão pronunciado em sua ordenação
presbiteral, no século IV, Gregório de Nissa, pastor da Igreja oriental,
propunha:
14
simplesmente aproximar-se da fonte, jogar o seu corpo
por terra e beber daquela água até saciar-se (Gregório de
Nissa, 1996, Omelie XI).
Do mesmo modo, você que está com sede, faça isso com esse livro.
Deus o(a) abençoe e o(a) acompanhe neste caminho.
REFERÊNCIAS
FRANCISCO, Exortação apostólica Gaudete et exsultate, sobre a chama-
da à santidade no mundo atual. Disponível em: https://www.vatican.
va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-fran-
cesco_esortazione-ap_20180319_gaudete-et-exsultate.html. Acesso
em: 13 set. 2023.
15
HELDER
PESSOA
CAMARA
Dom Helder
INTRODUÇÃO
Dom Helder Camara (1909 – 1999), chamado carinhosamente de
“Dom”, foi um dos religiosos do Nordeste brasileiro, no século XX,
“que ultrapassaram as fronteiras das igrejas e do país, por suas qua-
lidades éticas e espirituais, intelectuais ou políticas”, conforme escre-
veu o historiador Pe. José Oscar Beozzo (Camara, 2009, vol. I, tomo I,
Apresentação, p. xvii). De acordo com Beozzo:
79
Ivo Lorscheiter; a atenção aos pobres e a capacidade de
conciliação de Luciano Mendes de Almeida; a bondade e
intuição teológica de Aloísio Lorscheider; a coragem e de-
fesa intransigente dos direitos dos pequenos de Evaristo
Arns (Camara, 2009, vol. I, tomo I, Apresentação, p. xix).
80
culou a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
além de ter sido um dos idealizadores da Sudene, Superintendência
de Desenvolvimento do Nordeste. Foi no Rio de Janeiro que o Dom se
projetou para o Brasil e para o mundo. Partir do Rio de Janeiro, onde
era arcebispo auxiliar desde 1956, para o Recife, não deve ter sido fácil
foi muito doloroso para o Dom. Mas ele sempre manteve contato com
a família mística que lá foi edificada.
Vale ressaltar que os militares nomearam o golpe civil-militar de
“Gloriosa Revolução democrática de 31 de março de 1964”. Não foi
“gloriosa”, porque sua herança foi nefasta, com o aumento da desi-
gualdade social, hiperinflação, favelização, aumento da dívida externa
e uma população impedida de votar para os principais cargos políti-
cos. Não foi “revolução”, porque não houve uma mudança estrutural
no país: pobres se perpetuam no empobrecimento crescente, e ricos
continuaram cada vez mais ricos às custas da mão de obra assalariada
ou contratada temporariamente; manteve-se a estrutura latifundiária
e agroexportadora em detrimento de uma reforma agrária profunda.
Não foi “democrática” nem tinha caráter popular porque depôs um
presidente legítimo e constitucional, João Goulart. E, por fim, não foi
em “31 de março”, pois já era a madrugada do “dia da mentira”, pri-
meiro de abril
Mas, o importante mesmo é compreender que esse evento é fruto
de um processo histórico de relações de poder entre diversas forças
sociopolíticas, um golpe de Estado não acontece do dia para a noi-
te. Sugerimos, para aprofundamento desse período, a obra “1964. A
Conquista do Estado”, do historiador e cientista político uruguaio
René Armand Dreifuss. Trata-se de um trabalho de pesquisa rigoroso
sobre os atores e forças sociais desse conflituoso e delicado momento
de nossa História política (Dreifuss, 2006).
Foi nesse caldeirão político que o Dom chegou ao Recife. A ques-
tão é: por que ele? Acreditamos que por sua fina capacidade de diálogo,
81
Assim são os Místicos (as)
A desenhar suas asas.
Os organizadores.
259
Tipografias
PT Sans
PT Serif