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PADRE HENRY BOLO.

AS GAULESAS E OS GAULESES NA PAIXÃO DE JESUS.

Conferência proferida em Marselha na Igreja de Notre-Dame du Mont, na sexta-feira Santa, 31 de março


de 1893.

Dedico este modesto opúsculo ao público de homens que se reuniu em torno do púlpito de Notre-Dame
du Mont, em 31 de março de 1893. O enorme comparecimento, provocado pelo simples anúncio do tema que
seria abordado, e o interesse admiravelmente sustentado pela plateia durante as duas horas de demonstrações
bastante áridas que tentarei reproduzir aqui, deixaram claro, naquele dia, que patriotismo e fé vivem lado a
lado nas almas francesas, e que o sentimento religioso perdurará, entre nós, enquanto perdurar o amor pela
pátria. E como poderia o amor pela pátria arrefecer num país tão belo como a França?

SENHORES,

Os primeiros cristãos contavam, nas suas lendas, que logo após a Paixão, os anjos
foram, piedosamente, recolher todos os fragmentos deixados pelo Salvador na via dolorosa
(gotas de sangue, cabelos arrancados, todo tipo de farrapos) para restituí-los à Santa
Humanidade, no momento de sua ressurreição. Neste dia do aniversário das lágrimas e das
lembranças sagradas, que seja permitido à nossa fé e ao nosso amor enlutado imitar esses
anjos, e recolher, dentre os vestígios da Santa Paixão, algumas lembranças (lembranças
também são relíquias) que serão mais caras, especialmente, à nação francesa. Quero referir-
me, senhores, a três ou quatro episódios importantes da grande tragédia do Calvário, cujos
heróis e heroínas pertenciam, quase certamente, à nossa boa e velha raça gaulesa. Talvez lhes
cause certo espanto o enunciado de semelhante tese e, no entanto, o que pode haver de
espantoso no fato de Jesus ter chamado ao sacrifício de seu sangue e à solenidade de sua
morte aqueles que viriam a ser na terra os mais generosos herdeiros da sua fé, os mais
ardentes defensores de sua divindade? Vamos aos fatos.
Segundo algumas tradições religiosas que podem parecer, à primeira vista,
merecedoras de crédito apenas relativo, a raça gaulesa teria sido representada, na Paixão, por
Cláudia Prócula, esposa de Pilatos, que foi a única a intervir em favor do Divino Mestre,
durante a cena tão conturbada do julgamento; por Verônica, a corajosa matrona que limpou o
rosto do Salvador, na via dolorosa; e finalmente pelos soldados que flagelaram o Cristo,
ultrajaram sua realeza, crucificaram sua carne, mas refrescaram sua agonia ao dar-lhe de
beber na cruz e foram os primeiros a proclamar sua divindade, assim que ele entregou o
último suspiro.
A ousadia e a relevância de tais asserções certamente não lhes passam despercebidas e
vocês podem ver que, já desde o Calvário, se as tradições estiverem de acordo com a história,
nossa raça teria manifestado suas tendências, apossando-se de suas glórias e de sua
predestinação futuras, ao mesmo tempo em que assumia, no crime cometido, uma parte
demasiado conforme, infelizmente, aos defeitos do seu gênio e aos desvios do seu
temperamento.

1
Permitam-me então, senhores, tentar, nessa noite, demonstrar-lhes a exatidão ou ao
menos a enorme probabilidade histórica das lendas relativas a Claudia Prócula, a Verônica e
aos soldados que executaram o Salvador. Quando nós tivermos estabelecido, o quanto for
possível, a quase certeza desses dados, não será difícil deixar sua admirável e profunda
harmonia com o caráter e a vocação da raça gaulesa.

I.

É absolutamente histórico e certo que a raça gaulesa constituía um elemento de


primordial importância na sociedade de Jerusalém no momento da morte do Salvador. Três
causas principais provocaram esta invasão dos filhos do extremo Ocidente e mantiveram-na
permanentemente. Estas três causas foram: a proximidade dos Gauleses da Ásia Menor e a
superioridade indiscutível que lhes conferia, sobre os Gregos e os Asiáticos, a sua
honestidade, a sua bravura e até a sua inteligência; a passagem ainda recente de Germânico,
amigo por excelência dos Gauleses, que organizara, por volta do ano 18 ou 19, a dominação
romana na Judeia; finalmente, as afinidades muito reais e bem caracterizadas da
administração e da família de Tibério e Pôncio Pilatos com o país da Gália. Digamos uma
palavra, senhores, sobre cada uma destas fontes de infiltração gaulesa em Jerusalém.
Os gauleses da Ásia Menor (os gálatas) eram gauleses absolutamente puros, do ponto
de vista racial. Embora estivessem estabelecidos há aproximadamente duzentos e cinquenta
anos sob o céu asiático, nada perderam da sua fisionomia, da sua língua, nem da sua moral.
Se vocês tivessem conhecido então um desses homens bonitos, de longos cabelos loiros,
olhos azuis e um semblante irônico e orgulhoso, não hesitariam um só momento em
reconhecer neles os valentes compatriotas de Brennus e Vercingetórix. Tal foi a energia de
resistência que esta raça opôs a todas as influências dos desprezados asiáticos que, mais de
trezentos anos após a morte de Jesus Cristo 1, São Jerónimo reconheceu que a sua língua ainda
era a língua gaulesa. Ainda hoje, os armênios não se enganam sobre a origem do tipo alto,
loiro e de pele clara, que se encontra com frequência nesses países 2, e chamam aqueles que
têm essa fisionomia particular de franceses de antigamente. Estes franceses de antigamente,
senhores, inteligentes e letrados como os gregos, valentes como os franceses, e de
reconhecida probidade, foram muito procurados pelos príncipes da Síria e da Judeia e, além
disso, impuseram-se a si próprios a inferioridade da moralidade dos asiáticos. Enquanto os
romanos eram apenas administradores, enquanto as funções de cozinheiros, de peruqueiros,
bem como todas as profissões obscuras e excessivamente servis eram reservadas aos gregos,
os gauleses da Ásia Menor eram muito apreciados como secretários, administradores,
professores e até (do ponto de vista militar) como guarda-costas pela sua honestidade,
delicadeza e coragem. O historiador Josefo3 mostra-nos, no funeral do rei Herodes, as tropas
deste pequeno soberano divididas em três corpos: os citas, os alemães e os gauleses. Em
breve, ouviremos o centurião Longino responder ao governador da Capadócia, Otávio, que
ele é da Isáuria, ou seja, de um país então povoado pelos gauleses da Ásia Menor. Também
lhes indiquei, senhores, a passagem de Germânico como causa de crescimento da sociedade
1
Epist. ad Gal. I. Il Præf.
2
Elisée Reclus, Asie antérieure [Ásia anterior].
3
Antiq. Iud. XVII, X, 3.

2
gaulesa de Jerusalém. Basta ter lido as páginas admiráveis que Tácito dedica nos seus Anais a
este grande homem para perceber os laços indestrutíveis e profundos que a sua longa estadia
e as suas gloriosas campanhas contra os alemães do Reno o fizeram estabelecer com a nação
gaulesa. Viveu dias inesquecíveis com os soldados gauleses 4. As suas legiões, compostas em
grande parte pelos nossos antepassados, quiseram, com a morte de Augusto, proclamá-lo
imperador. E quando Tibério o enviou ao Oriente e à Judeia para cumprir uma missão que
seria fatal para ele, não há dúvida de que ele deve ter trazido consigo uma considerável
colônia de gauleses. Além disso, quatro ou cinco anos após a sua morte, encontramos, na
Judeia5, quatro legiões cujo efetivo é quase inteiramente gaulês: a 6ª Ferrata, a 10ª Fretensis
(aquela que foi tão querida a César), a 12ª Fulminata6 e a III Gallica, cujo nome por si só é
decisivo, do ponto de vista que nos interessa 7. É fácil imaginar que centro de atração, do
ponto de vista da colonização gaulesa, teria formado um exército tão importante na Síria.
Finalmente, senhores, estou ansioso por pôr fim a estas generalidades que estais dispostos a
suportar com uma paciência que vos honra, e chego à terceira causa desta preponderância do
elemento gaulês em Jerusalém: a própria administração romana.
A família Cláudia que então detinha, na pessoa de Tibério, as rédeas do império, era
também gaulesa, ou, se preferir, tão ligada quanto possível à Gália, por todos os tipos de
ligações, incluindo as ligações de nascimento e de sangue. E se, senhores, em vez de nos
encontrarmos na segunda cidade da França que vocês chamam de Marselha, estávamos na
segunda cidade da França que outros chamam de Lyon, seria impossível para vocês
mergulharem no passado sem encontrar em todos os lugares a marca desta família Cláudia,
da qual a cidade de Lyon era pátria adotiva, enquanto esperava tornar-se pátria, através do
nascimento, do próprio imperador Cláudio. Creio que é inútil insistir neste fato histórico dos
mais elementares. Isto resultou obviamente, por parte do imperador que também permaneceu
durante bastante tempo na Gália, um carinho por este país, um conhecimento dos seus
habitantes, uma confiança neles, que deve tê-los apontado, mais do que outros, a atenção do
mestre, e atrair para eles mais de uma alta função, mais de uma missão importante. Uma
administração interessante e delicada como a da Judeia, um país onde as causas que já
mencionamos deram origem a uma colônia gaulesa já tão considerável, era o país que parecia
mais claramente designado para ambições galo-romanas e o mais adequado para inspirar
Tibério com a ideia de enviar para lá, como dignitários, seus amigos de além dos Alpes.
Não lhes direi, senhores, que Pôncio Pilatus, de raça italiana, era gaulês de
nascimento. Preciso manter todo o meu crédito com vocês e não comprometê-lo com
afirmações fracas ou infundadas. Basta-me assinalar-vos que a família Pôncio tinha
representantes, nesta época, na Gália, e que o sufixo -atus que termina o apelido do Pôncio
em questão era frequente no nosso país. É certo que Pôncio Pilatos tinha numerosos parentes
na Gália8; é bem possível que ele tenha vindo e morrido ali; é muito provável, como vocês
verão, que ele tenha se casado lá. A digna e generosa mulher que foi a única a intervir em

4
Tacit. Anais I, 42, 43, 44.
5
Tacit. Anais IV,5 : Quatre légions tenaient en respect les vastes contrées qui s'étendent de la Syrie à l'Euphrate [Quatro
legiões mantiveram sob controle as vastas regiões que se estendiam da Síria ao Eufrates].
6
E não: Fulminatrix, como alguns acreditavam.
7
Ver Marquardt. Coleção Mommsen, t. XI, p. 163.
8
Os museus de Narbonne, Vienne, Genebra, Arles, Nîmes possuem ânforas, vasos de barro e outros objetos, marcados com
o nome de Gens Pontia. A mais importante destas inscrições está em Narbonne, um detalhe a recordar. CIL 4534, 5683-334.

3
favor do divino acusado, Cláudia Prócula9, era na verdade, senhores, com muita
probabilidade, filha dos gauleses. A lenda que lhe dá origem na Gália de Narbonne é
demasiado consistente com os dados da história mais certa, por mais que tenhamos grande
dificuldade em admiti-la10. O seu nome Cláudia indica certamente que pertencia à família do
imperador cujas afinidades com a Gália, repito, eram tão numerosas e próximas quanto
possível. Ela só poderia ser chamada de Cláudia se fosse parente, cliente ou liberto da família
imperial11. Libertado, Pilatos que era um cavaleiro romano e, portanto, nobre, não poderia
casar-se com ela12. Simples cliente, e não dando um nome a ela, ele não a desejaria. Por outro
lado, como ele próprio era apenas um cavaleiro, certamente não teria obtido a mão dela se a
tivesse pedido quando Tibério já era imperador 13. Então ele se casou com ela antes de Tibério
chegar à Itália. E como a principal estadia de Tibério durante esse longo período foi na Gália,
Pilatos, que um dia teria o título de amigo de César 14, poderia muito bem casar-se ali com a
parente do futuro imperador. Veja, se conhecermos o país de origem de Cláudia apenas por
meio de uma simples lenda, a própria história torna essa lenda muito plausível para que
possamos negar-lhe qualquer credibilidade. Cláudia teria, portanto, conquistado para o
marido a elevada posição que ocupava na Judeia: só isso poderia autorizá-la a uma
intervenção tão ousada quanto aquela que ela iria se permitir na Paixão. É inédito uma mulher
assumir a responsabilidade de ditar uma sentença a um magistrado superior, no exato
momento em que esse magistrado está em seu tribunal. A partir deste facto indubitável 15,
podemos concluir com ousadia, visto que o Evangelho o registra, que Cláudia Prócula teve
uma importância muito grande em Jerusalém e que, ela própria gaulesa, deve ter sido o centro
da sociedade das grandes damas gaulesas que se encontravam certamente na cidade santa. E
foi assim que todo um grupo de moças nobres do Ocidente, como Jeanne 16, esposa de
Chusas17, Verônica, esposa do rico receptor pagão Amator ou Amadour, que se
autodenominava Zaqueu em Jerusalém, se reuniu em torno dela, em uma comunidade de

9
Il Niceph. Hist. I, 36, os apócrifos Evang. Nicod. Claudia Procla ou Procula. Cf. Lucien Dexter. Chron. An. 34 n° 2, e Menol.
græc. Acredita-se que é sobre ela que se trata a Ile Epístola de São Paulo a Timóteo: Salutant e Eubulus, e Pudens, e Linus,
e Claudia.
10
Há uma carta muito antiga e muito interessante, embora apócrifa, que parece estabelecer tradição neste ponto. Seria
endereçada pela própria Cláudia Prócula a Fúlvia Hersília. Não falarei com você, escreveu Cláudia à amiga, dos meus
primeiros anos, passados em Narbonne sob a égide de meu pai e sob os cuidados de sua amizade. Você sabe que, quando
eu tinha dezesseis anos, me uni a Pôncio, um romano de família nobre e antiga. No final da carta, ao completar o relato dos
acontecimentos que presenciou, Cláudia (ou o apócrifo) acrescenta, sobre o centurião, um detalhe que nos é precioso, pois
está em conformidade com as probabilidades históricas que aqui apresentamos: Conheci o centurião que presidiu a execução
de Jesus. Este centurião era um veterano inocentado das guerras contra os partos e os alemães. Sabemos que Germânico
liderou muito recentemente as legiões gaulesas à vitória contra os alemães do outro lado do Reno. A carta de Claudia nos foi
comunicada pelo gentil secretário do Bispado de Carcassonne, Sr. Cônego Guilhem, a quem temos o prazer de agradecer.
11
Ver Mommsen. Antiq. Rom. XIV,1.
12
Parece-nos difícil admitir, com o Padre Ollivier, cuja obra sobre a Paixão é notável sob todos os pontos de vista, que Cláudia
proceda de uma família libertada por Claude. Os libertos levavam o nome de seu patrão, mas seus descendentes não
mantiveram nem esse nome nem o antigo nome servil. Ver Marquardt, Vie privée des Romains [Vida privada dos romanos], I,
22. Cf. CIL VI, 8012, e CIL I, 582, onde os filhos que não levam mais o nome emprestado do patrão são designados pelo pai
liberto.
13
Tácito, depois de ter falado do orgulho hereditário do sangue de Cláudio, Ann. 1, 4, menciona Druso, o bisavô deste
príncipe, Pompônio Ático, um simples cavaleiro romano, cuja imagem a esse respeito parecia contrastar com a de Cláudio.
Ann. 2.43.
14
Joh. 19, 12.
15
Fato indubitável e também provável do ponto de vista da história profana. Os parentes desses imperadores não duvidaram
de nada. Se não tivéssemos visto, alguns anos antes, a esposa de Germânico, Agripina, assumir o comando das legiões na
ausência do marido, impedir a ruptura de uma ponte sobre o Reno e discursar contra os soldados no momento em que
marchavam contra o inimigo? (Tacit., Ann. 1, 69.)
16
Um dos que foram ao túmulo no dia de Páscoa para embalsamar Jesus.
17
Provavelmente outro gaulês da Ásia, como parece indicar a natureza de suas funções como mordomo de Herodes.

4
relações mundanas, de linguagem e de moral. Madeleine, que não parece ter sido a prostituta
que geralmente18 acreditamos que fosse, mas apenas uma socialite de moral demasiado fácil e
de vaidade vistosa, frequentava muito este ambiente brilhante e alegre. Foi através dele que
Jesus e Maria, sua mãe, teriam encontrado ali um círculo de amigos devotados. Mais tarde, as
lendas não nos enganarão, quando nos mostrarem em Verônica uma amiga íntima da Virgem
Maria19, e compreenderemos, no meio da indiferença ou do ódio geral, a presença deste
grupo de mulheres piedosas, mais crentes e mais corajosas do que os próprios apóstolos que
acompanharão ao Calvário e encontrarão no santo sepulcro aquele de quem obtiveram graças
especiais e milagres excepcionais20. Acima de tudo, compreenderemos, o que permaneceria
inexplicável fora da nossa hipótese, por que quase todos vieram se estabelecer na Gália, após
a ressurreição do divino Mestre. Além disso, senhores, embora várias lendas tenham
atribuído a Verônica tantas e mais diversas pátrias quanto ao próprio grande Homero, a
tradição que parece prevalecer é incontestavelmente aquela que lhe deu origem na Gália, na
região de Bazadaise. Grégoire de Tours21, Garcia, bispo de Bazas22, Géraud Dupuy, na sua
famosa crônica23, dão-lhe origem em solo da Aquitânia; ela chega a Jerusalém na época da
decolagem de João Batista. Graças às facilidades que lhe são proporcionadas pelas relações
com a família do mordomo de Herodes, Chusas, ela consegue, em troca de dinheiro, obter
algumas gotas do sangue do precursor. Após a morte do Salvador, ela retornou ao seu país e
construiu a famosa igreja de Saint-Jean-Baptiste em sua cidade natal. Garcia 24 acrescenta um
detalhe muito característico ao ponto de vista que nos interessa. Ela retorna, diz ele, entre
muitos amigos ou compatriotas. E este detalhe concorda de forma completamente inesperada
com a história de Ughelli, na Itália sacra, monumento histórico cujo espírito está longe de ser
favorável às lendas cristãs, de Pierre Subert, bispo de Saint-Papoul, de Bernard de la Guionie,
bispo de Lodève, que todos nos mostram a sua chegada à Gália, na companhia dos primeiros
apóstolos do nosso país. O que o atraiu ao nosso país? O que atraiu seu marido Zaqueu, agora
Amadour? Ou, se como diz Ughelli, ela e Zaqueu vieram para a Aquitânia, enviados por São
Pedro, por que o Príncipe dos Apóstolos designou preferencialmente para eles esta região,
senão porque falavam a língua e viviam ali em casa? É incontestável que Verônica
evangelizou a Aquitânia: é, por outro lado, difícil ou pelo menos gratuito, admitir que
recebeu o dom das línguas, pois quem hesita em atribuir-lhe é obrigado a reivindicar uma
18
Como a opulenta e respeitável família de Lazare e Marthe teria tolerado a presença de uma mulher semelhante no lar
doméstico? Além disso, a palavra em um estado pecaminoso, na qual se baseia esta opinião insultuosa, não significa cortesã,
mas “indevota ou pagã”. Para os judeus, o pagão era o pecador por excelência, e dificilmente havia crime maior do que o de
não ser judeu. É por isso que entre eles a denominação de “pecador - pecadora” designava particularmente um pagão e,
consequentemente, uma judia cujas ligações lhes pareciam demasiado pagãs. Várias passagens dos capítulos V, VI e VII de
São Lucas não deixam dúvidas a este respeito. O epíteto peccator [pecador] foi usado em oposição ao status dos filhos de
Abraão, e todos sabem que os filhos de Abraão não eram, pelo menos naquela época, pessoas que fossem o oposto de
“pecadores” no sentido comum e geral desta palavra. É portanto no sentido de “pagãos”, e não de “culpados”, que devemos
entender a qualificação insultuosa: “Amigo dos pecadores” dirigida a Nosso Senhor Jesus Cristo pelos judeus. Disseram-lhe o
mesmo: “Tu és samaritano”. É-nos agradável pensar que estes “pagãos”, de quem Jesus já era amigo, eram em grande parte
e talvez principalmente os gauleses, de quem herdamos a nossa raça e a nossa fé.
19
L. Dext. an. 48.
20
Luc. 8, 2,3.
21
De Gloria Mart., I, 12.
22
Baptist. Salvat.
23
Chronic. Vasat. 5.
24
Manu suorum plurima comitante. Bapt. Salvat. Esta crônica remonta ao início do século XII. Uma lenda, relatada,
acreditamos, pelos Bollandistas, mostra-nos o seu desembarque na costa da Provença, na companhia de Lazare, Madeleine e
Marthe. Este detalhe, porém, confirma a existência dos laços que uniam os amigos do Salvador numa mesma sociedade, e
para a qual só havia um país no mundo, depois da Terra Santa: a Gália, para onde vieram quase todos, depois da morte do
divino Mestre.

5
origem gaulesa, e que, no entanto, reconhecem que ela pregou Jesus Cristo na língua dos
nossos pais25. É provável, pelo contrário, que o seu marido Zaqueu tenha obtido as altas
funções de príncipe dos publicanos, uma espécie de recebedor-geral, devido à sua origem
gaulesa e às suas afinidades quer com a família de Pôncio quer com a família imperial,
conforme as explicações que dei mais acima 26. Além disso, senhores, observem o seguinte:
Verônica só poderia realizar a ação corajosa e terna que a imortalizou enquanto fosse uma
matrona elevada e poderosa, em relações conhecidas com o governador. Talvez, sendo uma
mulher simples, ela tivesse tido a coragem de romper a multidão e enfrentado os soldados
para resgatar nosso divino Mestre. Mas certamente, estes mesmos soldados, pouco
duradouros por natureza, e que acabavam de fazer o cireneu pagar caro por uma simples
atitude de piedade com Jesus, não teriam deixado Verônica chegar ao mestre se algum
prestígio não a tivesse protegido contra a sua bem conhecida insolência e brutalidade.
Mais um momento de paciência, senhores, e chegaremos ao fim de nossas
investigações históricas.
Podemos afirmar, ou pelo menos sustentar, que os soldados da Paixão eram gauleses?
Sim, senhores. Dado que o elemento gaulês representava uma proporção tão grande do
exército de ocupação romana, Pilatos teria de ter decidido afastar os gauleses, para que as
suas coortes (seja a guarnição da Antônia ou a sua guarda pessoal) não fossem
abundantemente providos deles. Ora, Pilatos não só não teve que rejeitá-los, mas, pelo
contrário, tudo o levou a escolher preferencialmente estes soldados de elite, para cargos mais
perigosos ou mais honrosos. O posto de Jerusalém durante as férias da Páscoa era de um e de
outro. A gaulesa Cláudia, vocês não têm dúvidas, direcionou os favores do marido aos seus
compatriotas. Por outro lado, Pilatos não tinha motivos para não escolher soldados que
certamente o protegessem melhor. Não se esqueceram que a Legio Gallica estava, na Síria, à
disposição do governador, e podem facilmente ver, sob todos os pontos de vista, onde
deveriam ir as preferências do governador. Um documento duplo também alterou as nossas
probabilidades para uma quase certeza. São Mateus que deve, na sua qualidade de israelita,
ter compreendido melhor os detalhes desta natureza, visto que os tinha constantemente diante
dos olhos, conta-nos, de forma precisa, quais os soldados que desprezaram Nosso Senhor
Jesus Cristo. Então, os soldados do governador levaram Jesus ao pretório e, tendo reunido
toda a coorte, despiram-no e vestiram-no com um lenço escarlate 27. Estes são os mesmos
soldados que, mais tarde, o crucificarão. Depois de terem zombado dele... levaram-no para
crucificá-lo28. Então estes são de fato os soldados de Pilatos. De que país eles são? Senhores,
a resposta foi dada pelo principal deles e está de acordo com os dados gerais da história que
lhes indiquei anteriormente. Um manuscrito da maior antiguidade 29 mostra-nos o seu líder,
Longino, diante do governador da Capadócia, Otávio, que lhe pergunta: De que país você é?
E Longinus lhe responde: Da Isauria. Ora, não há dúvida de que a Isáuria era, naquela época,
25
Santa Verônica, apóstola da Aquitânia. Toulouse. Apêndice ao cap. VII: Em que língua Santa Verônica pregou a fé?
26
Ver Mommsen. Ant. Rom. Organização financeira.
27
Mateus., 27, 27.
28
Mateus., 27, 31.
29
Boll., xv, Mart., Act. I, Long. mart. A verdade obriga-nos a reconhecer que existem algumas imprecisões graves neste
manuscrito. Assim, conta-se que Longino e seus soldados foram encarregados de guardar o sepulcro do Salvador antes de
sua ressurreição, que ele recusou o dinheiro que os judeus lhe ofereceram para mentir e afirmar que os apóstolos haviam
removido furtivamente o corpo do Homem-Deus, dinheiro que os outros soldados aceitaram. São Mateus (XXVII, 65) conta-
nos formalmente que, tendo os príncipes dos sacerdotes vindo pedir a Pilatos sentinelas romanas, ele recusou, dizendo: Tens
a tua guarda; vá embora, e acrescentou com um tom de desprezo: Fique, você sabe como fazer!

6
povoada pelos gauleses30. Não há, portanto, nenhuma precipitação em dizer que a nossa raça
ainda existia. Muitos dados históricos em que todos acreditam e que consideramos,
erradamente, como factos adquiridos e superiores a qualquer discussão, não se baseiam em
documentos tão convincentes e claros.
Finalmente chegamos, senhores, à parte menos chata desta conferência. Tentamos
estabelecer a nacionalidade de cada um dos personagens que nos interessam. Tentaremos
agora estudá-los nos diferentes episódios de que participaram, e estou convencido de que
vocês encontrarão ali comigo a manifestação de características raciais inegáveis 31.

II

Em primeiro lugar, senhores, na hipótese de que os soldados que executaram Nosso


Senhor Jesus Cristo fossem soldados gauleses, permitam-me afastar uma suspeita que não
podemos deixar pairar sobre a memória dos nossos antepassados.
Vocês se lembram desta cena abominável que inaugurou a tragédia do Calvário: a
cena do beijo, no jardim do Getsêmani. Que quadro imundo na história da humanidade: um
lamaçal composto por criados de templos, armados de paus, carregando lanternas cujo brilho
duvidoso e pálido parece tornar mais hediondo o rosto pálido do líder que os conduz; almas
vis e baixas, nas quais o ódio do Sinédrio desceu como uma sentinela; feras selvagens ao
mesmo tempo assustadas e ferozes, que esperavam que a escuridão encobrisse o seu crime;
bandidos movidos pela traição e perseguidos pelo medo de serem pegos; tudo isso servindo
de escolta ao ser mais vil da humanidade, Judas, no momento em que este comete o ato mais
repugnante de sua vergonhosa existência.
E há, senhores, um mal-entendido que poderia levar a crer que os soldados do império
tiveram parte neste odioso acontecimento.
É verdade (ah! deixe-me dizer-lhe, porque hoje é o dia em que devemos pensar no
horror dos nossos crimes e em que devemos arrepender-nos deles!), é verdade que na nossa
qualidade de pecadores, estávamos lá! É verdade que a alma de Judas era naquele momento a
alma de todos os culpados, especialmente daqueles que persistem em ofender Jesus, depois
de todos os testemunhos de amor que ele nos deu. É verdade que se os lábios que deram o
beijo mortal foram os lábios de Judas, a perfídia que esse beijo exalou teve a sua origem em

30
Marquart. Ant. Rom. I, Il. Dio Cass. LIII, 26. Cfr. Fouard, Saint Paul C. II, Galatie.
31
Mais de uma pessoa nos perguntou brincando: e o galo? O galo gaulês, a ave que desempenhou, em suma, quase um
protagonismo na Paixão? Se não virmos no que se segue uma continuação da piada, certamente surpreenderemos alguns
leitores dizendo-lhes que há, mesmo neste caso, material para uma pequena discussão. De fato, recebemos de um amigo
encantador e muito digno a seguinte carta: Quanto aos gauleses no Calvário, você esqueceu aquele que é positivamente
nomeado no Evangelho e que lança uma nota marcante na Paixão: Gallus cantavit. O Evangelista foi acusado de ter
introduzido falsamente um galo em Jerusalém. Esses animais, às vezes encontrando algo diferente de pérolas no esterco,
foram banidos da cidade santa. Non alunt Gallos Hierosolymis propter sacra. (Bava Kama c. 7, hal., ult.) Não poderia a
presença deste galo confirmar a existência de uma guarnição de gauleses, a quem era querido o animal simbólico do seu
país?... D. Castellan. Infelizmente para esta opinião, acredita-se geralmente que foi apenas na época da invenção do brasão e
das armas falantes que o galo se tornou, por causa do seu nome, um emblema nacional. Além disso, segundo todos os
zoólogos, em particular Temmink, o galo é originário da Ásia. Ainda hoje é importado em massa do Mar Negro, do Egito e do
Levante. Não é menos verdade que o galo da Paixão foi educado na França, como prova a seguinte anedota. Embora
possamos garantir a sua historicidade, esquecemos o nome do homem que foi o seu herói. Talvez seja o Cardeal Pierre
d'Ailly, o terrível estudioso dos concílios, o autor da famosa observação lançada em plena assembleia de bispos: Plurimi
prælati sunt asini mitrati (muitos prelados são burros com mitra). Este cardeal francês, quem quer que fosse, ficou portanto
muito agitado num concílio e atacou o próprio Papa de forma bastante dura. O Papa, indignado com as suas observações,
perdeu a paciência e gritou, brincando com a palavra Gallus, que também significa francês e galo: Quando este galo se
calará? O esperto gaulês respondeu imediatamente: Quisera Deus que, ao cantar deste galo, Pedro se arrependesse mais
uma vez e começasse a chorar por suas faltas!

7
todas as hipocrisias humanas. Isto é verdade, senhores, e como pecadores devemos nos
orgulhar ainda mais porque o crime de que cada um de nós tem a sua parte suscita revoltas
mais amargas e mais profundas naquelas das nossas almas que herdaram mais da
generosidade e lealdade gaulesa. Mas, finalmente, creio poder afirmar, do ponto de vista da
nossa honra nacional e do legítimo orgulho da nossa raça, que não estivemos no Horto das
Oliveiras e que não pisamos nos restos mortais de Judas.
E precisamos afirmar isto, porque Santo Agostinho, cujas palavras são sérias, disse: A
coorte que prendeu Jesus não era judia, era composta pelos soldados do pretor 32. Vejam,
senhores, a consequência desta afirmação de Santo Agostinho: se os soldados são gauleses,
os gauleses estiveram envolvidos na sórdida obra de Judas.
Bem! Não, eles não estavam lá! Pilatos ainda não havia interferido no assunto. Os
soldados do Antônia não poderiam ser requisitados por um assunto que não fosse da alçada
do governo romano; não podiam fazer parte de um bando de criminosos que não sentiam
maior terror do que a ideia de serem vistos pelas sentinelas romanas; o soldado gaulês era
brutal, rude, não era covarde. Além disso, os príncipes dos sacerdotes tinham ao seu serviço
toda uma milícia de circuncidados, responsáveis pela sua defesa material, e era este bando de
judeus, meio polícias, meio sacristãos, que escoltava o beijo de Judas.
Além disso, um incidente muito característico mostrou suficientemente o nível moral
e o grau de coragem a que este lacaio dos pontífices poderia ser suscetível. Vocês se
lembram, senhores, da raiva miserável de Pedro, que tão desajeitadamente atingiu Malco e
cortou-lhe a orelha? Não hesito em afirmar que se os gauleses estivessem lá, Pedro não teria
escapado tão facilmente e não teria um dia se tornado nosso primeiro pai na fé. Sabemos, pela
história, que ninguém foi menos duradouro do que os gauleses. Durante a invasão de Roma
por Breno em 390, um gaulês puxou a barba de um consular e este o atingiu com seu cajado
de marfim. Por este golpe com o bastão de marfim, os oitenta consulares romanos, que
heroicamente representavam a majestade da república, foram massacrados até o fim. Foi
assim, senhores, que os gauleses se comportaram. Não elogio a violência, não defendo a
vingança e a brutalidade, mas não posso deixar de pensar que hoje há crentes demasiado
resignados a certos ultrajes dirigidos à sua fé, e digo: Culpa por culpa, prefiro, eu, filho de
um gaulês, ser herdeiro daqueles que devolvem golpes de espada com golpes de bastão, do
que irmão daqueles que inauguraram essa coisa odiosa que se chama beijo de Judas.
Não estávamos no jardim. Não estávamos, portanto, senhores, nesta procissão sinistra
e ofegante que levava Jesus, com passos apressados, à cova dos sumos sacerdotes. Não
estávamos nesta morada maldita de Ana e Caifás, onde nenhuma voz se levantou para ajudar
o pobre Jesus, como diz Bossuet, oprimido, desprezado, abandonado pela família e negado
por aquele que, no entanto, foi tão querido! Por que somos pecadores endurecidos e
incorrigíveis? Porque, poderíamos dizer de uma forma mais absoluta e mais total que nada
temos a ver com as fúrias destes loucos, que tão ignominiosamente abusaram da sua
segurança e da sua força, para esmagar o inocente trazido por um traidor, no seu covil!
Finalmente, senhores, é no entanto um consolo pensar que o sangue que corre nas
nossas veias reprova toda esta cobardia, e que podemos apelar à nobreza da nossa raça, para

32
Tract., C. XII. Citado por R. P. Ollivier, que refuta perfeitamente o santo médico. La Passion [A paixão]. Prisão de Jesus, II,
III.

8
aí encontrar mais um recurso contra a invasão do pecado, um horror maior do que um mal
cujo resultado é associar-nos às infâmias da Paixão.
Vamos depressa à casa de Pilatos.
Vocês sabem, senhores, quão miserável foi a atitude deste homem. Nunca a
autoridade romana, o poder e a superioridade de um conquistador tiveram uma oportunidade
melhor e maior de salvaguardar a justiça e a virtude. Quando Pilatos viu o divino Mestre
chegar à sua presença, gentil e calmo, apesar das aparências insignificantes do acusado, não
conseguiu confundir o seu verdadeiro valor. Este homem com roupas desordenadas, coberto
de poeira, garroteado, que foi jogado no tribunal, pareceu-lhe indescritivelmente superior à
tropa de loucos que veio pedir-lhe que o condenasse à morte, com vozes estranguladas pela
fúria. E aí, novamente, a lei sucumbiu. Pilatos, indeciso, vacilante, vendo a justiça, mas
cedendo à brutalidade das pessoas que desprezava, nem sequer sabia como se defender. As
cenas na casa dos pontífices deveriam ser reproduzidas, tanto mais hediondas quanto a
majestade romana acrescentasse a escravização à sua grandeza.
Então uma mulher interveio.
Essa mulher, senhores, era a nossa Cláudia Prócula.
Se ela acompanhou o desenrolar do drama de alguma janela da residência pretoriana,
se foi informada do que estava acontecendo naquela hora por algum criado complacente,
pouco nos importa. O fato é que ela não queria fazer isso. De forma muito feminina, e que
nos prova que as próprias fraquezas da mente têm algo de respeitável e de grande, quando
inspiradas pela generosidade do coração, ela interveio. Ela mandou uma mensagem ao
marido: Não se envolva no assassinato desse homem justo, tive pesadelos terríveis com ele
ontem à noite33.
Reparem, senhores: naquele momento a tríplice negação de Pedro ainda enchia os
ouvidos e o coração regado do divino Mestre; desde o início, o fluxo de calúnias,
imprecações e insultos não parou; foi, portanto, a primeira palavra de simpatia, a primeira
voz amiga que se ouviu, desde que começou o infame julgamento do Homem-Deus. Não vou
dizer que foi uma palavra corajosa, mas mostrei anteriormente que foi uma intervenção
ousada. No momento em que, na pessoa de Pilatos, se debilitava o último recurso da justiça, a
única autoridade capaz de salvar a vítima, a filha da Gália era mais firme que ele, mais fiel e,
apesar da sua inferioridade feminina, mais determinada, mais absoluta, disse-lhe com aquela
clareza que parece ser característica de todas as sugestões da consciência: Não se envolva de
forma alguma neste assunto!
Esta garantia da mulher que não teme repreender ou aconselhar, em circunstâncias tão
graves, é muito gaulesa, senhores. Os gauleses, quase sozinhos entre os povos da antiguidade,
souberam dar às suas esposas um lugar honroso e digno na existência comum. A mulher
gaulesa desconhecia a escravização e o estupor dos seus pares, condenados, em todo o lado,
às condições mais abjectas. Parece que a Providência preparava de longe as nobres missões e
as atitudes orgulhosas desta mulher que hoje é chamada de mulher francesa. Se vocês não
tiverem que sorrir, lembrarei a observação muito apropriada de Mirabeau, dizendo sobre o
infeliz Luís XVI: O rei tem apenas um homem, que é sua esposa. Este tem sido
frequentemente o caso em nossa história. É notável verificar que o único país onde, segundo
a lei sálica, o cetro não deve cair sobre a roca, ou seja, onde as mulheres não reinam, é
33
Mateus. 27,19.

9
também o país onde, moralmente falando, as mulheres mais reinaram. Com esta ousadia santa
e inteligente que fez as mulheres francesas ascenderem ao nível de Joana d'Arc, ela trabalhou
de forma admirável pela honra e prosperidade deste belo país que deve tanta influência,
senhores, às vossas mães, às vossas esposas e às suas irmãs. Ora, estude a história das
mulheres da França e verá que todas elas são tanto mais sublimes nesta nobre e fecunda
missão, quanto mais se relacionam com a orgulhosa e generosa Cláudia Prócula.
Sobre este assunto, deixem-me, senhores, dizer-lhes de passagem, se vários de vocês
ouvissem menos a mulher para quem Cristo não é nada, e ouvissem um pouco mais a voz de
Cláudia Prócula que a Providência colocou ao lado deles, eu tenho a certeza de que a sua vida
seria mais nobre e que, depois de amanhã, o seu lugar não ficaria vazio neste banquete pascal,
para o qual todos estavam convidados.
Pilatos lavará as mãos. Cláudia, de coração amargurado, alma quebrantada, não terá
aqui outra missão senão lamentar a morte do Amado e rezar para que aquele que não soube
fazer justiça, obtenha o perdão. Nesse ínterim, é realizada a flagelação ordenada pelo
governador.
Devo me apressar, senhores, porque tenho muito medo de abusar da admirável
atenção com que se dispõem a me ouvir. Vocês agora sofrem ao pensar que, se dissemos a
verdade antes, são as mãos gaulesas que seguram o chicote e destroçam a carne redentora de
Jesus Cristo. Infelizmente, é muito doloroso pensar nisso! Contudo, somos ainda mais
responsáveis por toda esta brutalidade, através das nossas fraquezas e das nossas
sensualidades quotidianas, porque, sem elas, Jesus não teria tido que suportar esta dolorosa
tortura. Seja como for, do ponto de vista do crime da nossa raça, não deixamos de ter obtido,
se não merecido, alguma indulgência. Mais tarde, por ocasião do martírio corporal a que é
submetido, Jesus dirá por nós: Meu Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem 34. E o
apóstolo dos gentios nos absolverá, se não das brutalidades cometidas, pelo menos de
qualquer acusação de deicídio: Se o tivessem conhecido, dirá, não o teriam crucificado35.
Não é menos verdade que a culpa, pelo menos materialmente, terá sido cometida. Os
soldados acreditavam que tinham apenas um judeu: por isso espancaram-no sem piedade,
sendo os judeus daquela época já, para os gentios, uma raça para a qual a execração se
misturava com o desprezo. E enquanto atacavam impiedosamente, acreditando que estavam
apenas dilacerando um desgraçado, a quem a sua barbárie natural poderia dar rédea solta,
açoitavam atrozmente o filho imaculado da Virgem Maria.
Senhores antissemitas, permitam-me dizer-lhes isto: se acreditam que o judeu
moderno é inimigo da Igreja e da França, estão perfeitamente livres para travar uma guerra
leal contra ele e para defender a herança nacional, na medida em que vocês o consideram
comprometido. Mas tenha cuidado! Não é permitido violar as leis da caridade e exceder a
medida das exigências justas, mesmo quando alguém é antissemita e encontra um judeu sob a
sua influência. Devemos, portanto, recordar esta cena da flagelação, e não esquecer que, indo
além das leis evangélicas, podemos acreditar que estamos agredindo apenas um judeu, mas
através do judeu é muito possível que prejudiquemos a caridade, isto é, Jesus Cristo.
Eis agora, senhores, as cenas que se sucederão até o fim, assumindo um caráter de
grandeza cada vez maior e mais sublime. Os soldados (e tais factos estão bem dentro do
34
Lucas 23, 34.
35
I Coríntio 2, 8.

10
temperamento irônico e agradável da nossa raça) aproveitam a ausência prolongada do
governador para ridicularizar a sua vítima. Este rei dos judeus, eles lhe darão a investidura e
procederão à sua coroação. Eles tecem uma coroa de espinhos e colocam em sua cabeça,
pegam um pano vermelho e jogam em seus ombros, pegam um junco e colocam em suas
mãos. Finalmente, depois de lhe terem esbofeteado, dobram os joelhos diante dele e
proclamam a sua realeza, entre gargalhadas: Salve, rei dos judeus!
Por mais que essas zombarias vistas de perto tenham sido miseráveis e vergonhosas
para seus autores, vistas de longe, após dezenove séculos de cristianismo, elas se tornam
solenes e significativas.
Sim, senhores, os soldados gauleses, para usar uma expressão usada noutro sentido
por Santo Agostinho, os soldados gauleses eram então profetas sem o saberem. Olhem para
trás, nesta longa sequência de acontecimentos que nos separam do Pretório e formam uma
longa avenida entre nós e o Cristo desprezado, vocês verão, senhores – ah! não posso deixar
de sentir profunda emoção ao lembrá-los dessas coisas – vocês verão a raça francesa
coroando verdadeiramente Jesus Cristo e garantindo aqui abaixo um reino terreno para sua
igreja e sua fé. Do sangue ainda fumegante de Mentana e Castelfidardo, passando por Carlos
Magno, o heroico soberano do Ocidente, até Constantino, este imperador dos gauleses, vocês
verão os filhos dos gauleses trabalhando para Cristo. Se Jesus usa uma coroa aqui embaixo,
se ele segura um cetro, se ele está vestido de púrpura, se ele entrou na posse deste reinado
terreno que as profecias lhe anunciaram, senhores, senhores, é uma grande nação que
cumpriu estas maravilhas, é um povo sublime que sempre deu para isso as tendências do seu
gênio, e às vezes do seu sangue, é a França onde os gestos divinos foram quase sempre a
continuação não mais irônica, mas sincera, do que faziam esses soldados no pretório,
ajoelhando-se diante de Cristo e repetindo-lhe: Ó rei, eu te saúdo!
Queiram, apenas, em meio aos sentimentos de orgulho legítimo que tais lembranças
devem inspirar em você, observar que a ironia, tão natural ao nosso caráter, pode tornar-se
um perigo para a nossa fé. O que foi que eu disse? Levou-nos muitas vezes à profanação das
coisas santíssimas e aos escândalos mais deploráveis. Menos refinado e menos erudito, já era,
no Pretório, o riso de Voltaire que zombava de Nosso Senhor Jesus Cristo.
A procissão subiu a encosta do Calvário. A divina vítima, ferida pela dor e pelo
cansaço, cambaleava a cada passo. Atrás dela algumas mulheres tímidas e tristes se
lamentavam. Ao seu redor agitavam-se as paixões judaicas e a impaciência militar. Os
golpes, os insultos, as blasfêmias, as sujeiras choveram sobre sua santa humanidade. De
repente, à beira do caminho doloroso, uma porta se abriu. Adiantou-se uma mulher de rosto
comovido e nobre, trazendo na mão um precioso linho. Eu lhe disse: Verônica deve ter sido
uma das notáveis matronas da alta sociedade de Jerusalém. Seguiu-se um silêncio: os
soldados afastaram-se respeitosamente, diante do gesto imponente da loura e orgulhosa
gaulesa. Ela veio ao Mestre, ao mesmo tempo terna e ousada. Ela enxugou o amado rosto,
que estava completamente coberto de sangue e lama, e voltou para casa, sem que a tradição
tivesse deixado nada ao seu redor além de um profundo sentimento de admiração e respeito,
pela ação compassiva que acabava de realizar.
Reconheceis, senhores, esta admirável raça de mulheres, que doravante encontrareis
em todos os caminhos, nos quais a humanidade dolorida arrasta as suas misérias, as suas
feridas e os seus sofrimentos? Quem então, tanto quanto a mulher do nosso país, carrega no

11
peito um coração ao qual podemos, sem hesitação, aplicar a famosa definição: Forte como
um diamante, terno como uma mãe? Onde está a mulher que sabe amar o infeliz para quem
tudo é difícil: a vida, os acontecimentos e os homens?
Onde está ela, aquela que, amando assim, não tem medo nem dos fragmentos de
obuses que assolam os campos de batalha, nem dos horrores do contágio que transforma, em
certos dias, os hospitais em antros de morte? Sinto-me muito bem, senhores, em
cumprimentar esta mulher, cuja nome não preciso dizer. Ela mora muito perto de vocês,
vocês a conhecem muito bem e vocês mesmos são orgulhosos demais para poder chamá-la
tanto em nome de sua fé quanto em nome de sua raça: Minha irmã! Ei! Ora, um maldito
vento de injustiça, que sopra sobre a nossa pátria francesa, passa hoje também sobre a cabeça
destas mulheres, que a virtude e a caridade deveriam proteger duplamente de qualquer ataque
de ingratidão. Neste solo de Marselha, onde Verônica, a sua modelo, certamente deixou a
marca dos seus passos, a triste tentativa está prestes a concretizar-se. Ah! Que vocês,
senhores, se oponham ao mal triunfante com o ímpeto de sua indignação generosa; que os
sentimentos de admiração que professais, no fundo das vossas almas, pela caridade heroica
das mulheres cristãs e francesas, fora das quais os infelizes e os abandonados já não
encontrarão aqui abaixo uma palavra doce para consolar, um coração terno para ser amado,
que estes sentimentos se irradiem ao seu redor e imponham a todas as hostilidades, qualquer
que seja a sua natureza, o respeito por esta mulher tão francesa e tão santa que personifica a
Caridade!
Finalmente chegamos ao Calvário. Vou abreviar, embora ainda tenha coisas
importantes a dizer.
Visto que a crucificação de Jesus foi o grande sacrifício autêntico e definitivo que a
terra ofereceu à justiça eterna, era apropriado que a nação romana, a nação que daria o seu
nome à igreja verdadeira e definitiva, o realizasse. Dado que a Igreja Romana viveria através
dos séculos apenas da generosidade do povo francês, era apropriado que estes soldados do
exército romano pertencessem, pela sua raça, à nação que seria o exército de Cristo.
Os gauleses, segundo a nossa hipótese, teriam derramado sangue redentor. E foi ainda
mais uma função da parte deles do que um crime. Deste último ponto de vista, a história
mostrou-nos tudo o que a consciência nacional fez para se purificar desta cooperação no
deicídio. Vocês sabem como os cavaleiros francos, os cruzados imortais, foram, alguns
séculos depois, restaurar seu próprio sangue, em troca do sangue redentor. Onde o sangue de
Cristo correu, para que não manchasse, como nas mãos de Pilatos e nas testas dos judeus, o
sangue dos cavaleiros, os mais nobres, os mais puros, os mais generosos de toda a nação,
correu livremente. Não te parece que, imbuídos desta harmonia providencial,
compreendemos melhor as cruzadas e já não temos que procurar os seus resultados
problemáticos?
E se não estão convencidos, senhores, desta profunda harmonia, graças à qual
encontramos ao pé da cruz o início de todos os nossos destinos, aqui está outro detalhe que
concorda admiravelmente com a nossa história religiosa.
Os soldados partilham as roupas do crucificado. Divididos os lotes, resta uma túnica.
Toda a tradição reconheceu nesta túnica o emblema da unidade da Igreja, porque esta túnica é

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sem costura, sem uso36. E é o que dizem os soldados: Não vamos rasgar! Nada de escândalo,
pessoal!
O futuro responderá à sua voz e a França ouvirá da Igreja o que é a realidade, a
palavra de ordem dada pelos soldados gauleses sobre a túnica que é o emblema. Durante
muitos séculos, heresias de todos os tipos baterão à porta do nosso grande país. Até mesmo os
soberanos tentarão levar o erro religioso ao trono, e assim rasgar o vestido sem costuras,
separando a nação francesa da Igreja Católica. Mas a alma do povo nunca esquecerá as
palavras dos soldados: Não vamos rasgar! Na verdade, estes carrascos, inconscientes da
justiça eterna, ainda parecem ser os profetas do Deus que pregaram na cruz!
Eles já começam a compreender a inocência, a vislumbrar algum raio da beleza de sua
vítima. Uma piedade surge em suas almas. Eles sempre brincam, é verdade, mas vocês veem
que no fundo eles estão começando a amolecer. Jesus com voz moribunda sussurra: Eli! Eli!
Meu pai! Meu pai! Os soldados têm mais uma palavra de ironia, que Deus permite para que
possamos ter certeza de que não são judeus. Se fossem judeus, teriam entendido e não teriam
acrescentado: Ele está chamando Elias, vamos ver se Elias vem libertá-lo! Este sinal
inequívoco da sua nacionalidade provocou, imediatamente, o moribundo, sedento, que deixou
escapar da sua garganta ardente esta palavra queixosa: Tenho sede! E aqui está o soldado que
não aguenta mais. João, o apóstolo dos corações comovidos, notou a ânsia deste carrasco que
de repente se tornou prestativo: ele correu e pegou a esponja. Ele corre, luta para chegar à
boca febril, pega uma esponja, embebe-a na bebida azeda que os soldados trouxeram para
eles, coloca-a na ponta de uma cana e entrega ao mártir moribundo o último abrandamento
que ele recebeu aqui embaixo nesta terra maldita, no coração desta humanidade ingrata.
Assim, Jesus lembrar-se-á que se deveu, aqui embaixo, o seu primeiro gole à ternura
da sua mãe, recebeu o que resta da piedade gaulesa!
E agora, senhores, minha fé está comovida e meu patriotismo está perturbado, tão
impressionante e sublime é o último grito da sombria tragédia. No momento em que Jesus,
proferindo o clamor supremo, dá o seu último suspiro, no momento em que a natureza
assustada estremece, no meio da desordem e do tremor universal, sob o céu escurecido,
diante da multidão assustada e atordoada, eleva-se um grito solene, uma palavra imortal, que
é como o eco desta imensa convulsão, ressoa: Verdadeiramente este era o filho de Deus!37
Assim o grito de vitória escapa das próprias entranhas da morte. Assim, a explosão da fé
responde finalmente como um clamor triunfante às longas e impacientes profecias do
passado. Assim, a divindade de Cristo é proclamada pela primeira vez, numa declaração da
qual todas as outras declarações serão apenas uma repetição.
Agora, vocês sabe, em que língua foi proferido esse grito imortal?
Lembrem-se, senhores, que Longinus veio de um país povoado pelos gálatas e que,
quatrocentos anos depois, a língua dos nossos pais ainda era falada neste país.
Só tenho mais uma palavra, senhores, para lhes dizer. Vocês se lembram da famosa
exclamação do rei Clóvis, quando São Remi lhe contou as dores e humilhações do Homem-
Deus? Este filho indomável de uma raça que misturou o seu sangue com o da raça gaulesa, ao
saber da imensa injustiça, ergueu a mão à espada indignado e gritou: Onde estão os meus
francos? Parece-me que do alto da sua glória, quando o Crucificado contempla as apostasias
36
Joh. 19,23.
37
Mateus. 27,54.

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e a tibieza religiosa que logo se tornariam a desonra da nossa raça se Deus não providenciasse
um remédio. Ele se lembra de Prócula, de Verônica, daqueles que saudaram profeticamente
sua realeza, os que respeitaram sua túnica sagrada, os que refrescaram sua agonia, o centurião
que proclamou sua divindade, e então ele também pergunta, por sua vez: ONDE ESTÃO
MEUS GAULESES?

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