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MÍSTICOS E

MÍSTICAS DO
NORDESTE
(SÉCULO XX)

Drance Elias da Silva


João Luiz Correia Júnior
José Afonso Chaves
(Organizadores)

Recife, 2023
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO – UPE
REITORA Profa. Dra. Maria do Socorro de Mendonça Cavalcanti
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Universidade de Pernambuco
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M678 Místicos e Místicas do Nordeste (Século XX) / Organização


de: Drance Elias da Silva, João Luiz Correia Júnior e José
Afonso Chaves. -- Recife : EDUPE, 2023.
260 p.

[recurso eletrônico]

ISBN: 978-65-85651-38-7

1. Religião - Filosofia. 2. Espiritualidade. 3. Mística I. Silva,


Drance Elias da. II. Correia Júnior, João Luiz. III. Chaves, José
Afonso. IV. Título.

CDD: Ed. 23 -- 200.1

Elaborado por Claudia Henriques CRB4/1600


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO Drance Elias da Silva 6

PREFÁCIO José Afonso Chaves 10

INTRODUÇÃO Marcelo Barros 12

MÍSTICOS(AS) LIGADOS À DEVOÇÃO POPULAR

Cícero Romão Batista Silvério Leal Pessoa


17
Padre Cícero Orlando Pereira da Silva

Maria da Luz
Wêdja Domingos de Melo 29
Irmã Adélia de Cimbres

Maria de Araújo
Maria do Carmo Pagan Forte 42
Beata Maria de Araújo

Maria Rita
Lucas Costa Monteiro 53
Irmã Dulce

MÍSTICOS LIGADOS À INSTITUIÇÃO ECLESIAL

Luciene Lima Gonçalves


Caetano Minette de Tillesse
Fabrício Wagner do Nascimento 66
Padre Caetano Cavalcante

Helder Pessoa Camara João Luiz Correia Júnior


79
Dom Helder Filipe Francisco N. Domingues da Silva

Jerônimo de Carvalho Silva Gueiros


Aleandro Correia da Silva Lira 93
Pastor Jerônimo

Joaquim Arnóbio de Andrade


Lucileide Cavalcante Silva 103
Padre Arnóbio
Marcelo Pìnto Carvalheira
Sérgio Sezino Douets Vasconcelos 115
Dom Marcelo

MÍSTICOS(AS) LIGADOS À TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Adélia Carvalho
Zélia Cristina Pedrosa do Nascimento 127
Irmã Adélia

Agostinha Vieira de Melo Marcelo Barros


140
Irmã Agostinha Malu Aléssio

Angelino Caio Feitosa


Faustino dos Santos 151
Frei Angelino

Geraldo Leite Bastos


Anderson Felipe da Silva Santos 165
Padre Geraldo Leite

Ivan Teófilo Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues


179
Padre Ivan Pe. João Carlos Ribeiro

José Calixto Ferreira de Araújo


Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues 192
Padre Calixto

José Comblin
Alzirinha Rocha de Souza 206
Padre Comblin

Eunaide Monteiro de Almeida Silva


Margarida Alves José Landes Marinho Soares
220

Reginaldo Veloso
José Artur Tavares de Brito 233
Padre Reginaldo

Romano Zufferey
Valmir Assis da Silva Filho 244
Padre Romano

CONSIDERAÇÕES FINAIS 257


APRESENTAÇÃO

Mística, Sensibilidade e Fé comprometida


Drance Elias da Silva1

Sabemos que a espiritualidade é o estilo ou o modo como se vive


a fé, e a mística, a emulação que decorre dessa espiritualidade, que se
traduz como uma energia amorosa, impregnada da presença inefável
de Deus, voltada à constante afirmação da vida.
Em uma perspectiva de libertação, a experiência pessoal da fé,
toda a realidade pessoal, comunitária, social e cósmica é perpassada
pela presença divina, assim como inserida em um contexto de projeto
histórico do Deus da vida. A adesão a um Deus de libertação, que ins-
pira uma mística de abertura ao “outro”, não fica restrita ao pertenci-
mento no espaço do religioso. A busca pela justiça de Deus está posta
sob a inspiração de exprimir o desejo: a transformação do mundo. Os
ideais sociais modernos, por exemplo, a liberdade, a participação, a
fraternidade, a solidariedade, o respeito à diferença, à dignidade das
pessoas, o cuidado pelos fracos, estão colocados como pressuposto da
mensagem cristã.
A fé, na experiência de quem luta pela soberania da vida, exprime
seu compromisso com a transformação social e política, expressando
uma espiritualidade que não corre risco de viver no vazio de piedosas
abstrações, pois encontra nessa práxis de libertação, o meio eficaz de
sua efetiva encarnação. A tarefa da fé, sob tal ótica, não é vista e en-
tendida como uma abstrata afirmação da existência de Deus, mas o

1 Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião e do


Bacharelado em Teologia da Universidade Católica de Pernambuco. País de origem: Brasil.
E-mail: dranceelias1991@gmail.com

6
discernimento concreto do Absoluto. Nesse discernimento, a fé em sua
relação com a vida, é tratada como matéria de amor. Em uma espiri-
tualidade assim vivida, a mística reveste de coragem todos aqueles e
aquelas que se mostram capazes de questionar e de se opor às situações
de mortes decorrentes de profundas injustiças. A mística desenha com
sensibilidade nosso amor pelo outro. É assim que a gente vê como cada
místico apresentado consegue, com sua sensibilidade humana e reli-
giosa, se aproximar do outro em sua necessidade. O percurso místico
a seguir não são simples frases subjacentes aos textos, mas, o desenho
geral de como essas pessoas se dispuseram a enfrentar o desamor em
um mundo que tanto falta sensibilidade e reconhecimento do outro.

MÍSTICA,
Uma postura de fé,
Toda humildade e vida laboriosa,
Desejo de Deus,
Beber do próprio poço.
Encontrar o sagrado nas feições do povo.
Vivência na experiência, na alegria, na simplicidade,
no cuidado com o outro.
Em oração, preces a Deus agindo em nós.
A contemplação é bela e profunda, de modo leve,
ativa e criativa,
Transmuda o corpo com o êxtase, com o sonho vivo.
MÍSTICA,
Coragem de levar adiante a vida que se medita,
Inserida,
Encarnada,
Que se mistura ao drama humano.
MÍSTICA,
Paixão e compromisso,
Oceano profundo,
Que à noite risca o mundo,
Escrevendo cartas dizendo sua oração: “aos pobres me doou”.
MÍSTICA,
Desapego e entrega de si,
Presença que arde o coração,
Experiência da espera, do topar com Deus
E ser transformado.
MÍSTICA,
O olhar mais profundo, cuidadoso, prático
De palavra viva e comunitária.

7
O interior é denso, de amor, do bem, da verdade, da bondade.
Tudo na experiência e na vida do outro.
A penitência é reflexão,
Mudar é a conversão.
MÍSTICA,
A morte nunca é em vão
Muitos viram sementes e uma flor de justiça brota.
Morrer na luta,
Pela vida plena,
Pela vida em abundância.
Pelo pão repartido,
Pelo sangue testemunho,
Pelo ressignificar da fé.
Tudo isso se faz laço com a vida no espírito.
MÍSTICA,
A cor do destino nas aparições,
Algo de sobrenatural desponta!
Luz que enche corações,
Visão que aponta missão, caminho da boa oferenda.
Os pedidos são escutados,
O corpo resgatado
E os anjos cantam por essa doação!
MÍSTICA,
Na verdade, vida interior,
Perpassada pelo mundo como um rio que corre.
Vida beata,
Dom consagrado.
Ah, quanto mistério na hóstia em sangue!
A vida em êxtase incomoda,
Pois quando bate à qual seja porta,
Une a devoção,
O sagrado,
O coração.
Eis a ponta de lança da mais profunda prece,
Nossa bendita oração.

Nesse percurso místico percebemos em suas entrelinhas, algo que


se dá e funda no sentido mais fundamental, uma aliança em torno da
justiça, pois a vida, qualquer que seja e tenha sido tirada pelo des-
respeito e não o reconhecimento, foi ela que prevaleceu como motu
continuo da vida espiritual. Todos esses místicos e místicas, portanto,
sabia da força que transbordaria do laço através da sua espiritualidade,
e que esta desenharia impacientemente a sua subjetividade religiosa.

8
Essas espiritualidades e místicas significaram ações comunicativas de
luta por reconhecimento, revelando-se, assim, como expressão de ex-
periência de injustiça social dos sujeitos. Todo esse percurso religiosa-
mente poético é sinal de permanência firme no amor, no direito e na
solidariedade ao outro que sofre. Eis o sentido de suas espiritualidades
e místicas.

9
PREFÁCIO
José Afonso Chaves2

Um livro, bem sabemos, nunca é o resultado do trabalho de uma


única pessoa. Por mais que, em geral, ele expresse um esforço intelec-
tual de um indivíduo, sempre temos muitas mãos envolvidas em sua
feitura, desde aquele que assume o papel de editor até aqueles que o
produzem graficamente, sem esquecer daqueles que mais diretamente
os fazem chegar em nossas mãos, como os livreiros.
Chamo atenção dessa condição do livro porque, este livro, pre-
cisamente, acentua essa sua natureza colaborativa. Além de abrigar
a contribuição de diversos estudiosos e estudiosas da mística e das
personagens místicas de que trata essa obra, esse trabalho nasceu, li-
teralmente, de uma conversa entre os pesquisadores dos Grupos de
pesquisa “Religião Cristã, Fundamentos e Desafios Contemporâneos”
e “Religiões, Identidades e Diálogos”, do Programa de Pós-graduação
em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco
- UNICAP.
Esses pesquisadores deram-se conta do quanto de pesquisas,
orientações e textos já haviam sido produzidos em suas atividades
acerca de tanta gente que, na sua abertura de vida ao Divino, tinham
contribuído para a vivência de muitas propostas místicas nascidas ao
longo de suas trajetórias pelo chão do nordeste brasileiro. Resolveram,
portanto, compartilhar essa riqueza espiritual com um público maior.
Eis o desfecho dessa conversa: o livro que agora chega em suas mãos.
É um trabalho diversificado, na forma de organização dos textos,
na abordagem e mesmo nos modos de gestação e amadurecimento de

2 José Afonso Chaves é professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião


da UNICAP. E-mail: afonso.chaves@unicap.br

10
cada uma dessas experiências místicas aqui tratadas. Entretanto, para
além de toda essa diversidade, existem aspectos que perpassam todos
os trabalhos, dando uma coerência construtiva ao projeto do livro.
Gostaria de salientar, a seguir, três desses aspectos.
O primeiro deles diz respeito ao universo da memória. Elemento,
por si só, de grande importância, posto que toda experiência humana
ocorre em meio às muitas contribuições já realizadas por aqueles e
aquelas que nos antecederam. Assim, para melhor nos compreender-
mos, precisamos nos reconhecer em uma estrada que já foi palmilhada
por muitos. Mais ainda, esse aspecto recobre-se de importância, por
conta de uma cultura do esquecimento tão comum aos dias de hoje.
O segundo, nos fala do testemunho da esperança. Sabendo que
esses místicos e místicas aqui retratados se puseram no caminho do
movimento de Jesus de Nazaré e que este está assentado no evento
da Ressurreição, que lembra o tempo todo que a experiência humana
guarda uma promessa de vida plena, sempre nova e que se transforma
no caminho da emancipação, não podemos deixar de notar que o per-
curso místico dessas figuras nos deixa a lembrança de que a esperança
é uma condição humana que não pode ser abdicada.
O terceiro parece guardar um convite inquietante. O modo como
os textos foram elaborados, guardando a dimensão de vivência dessas
experiências místicas, estão a nos provocar; embora a mística que aqui
se apresenta esteja circunscrita ao mundo do cristianismo, não pode-
mos deixar de perceber que há uma provocação para que todos e todas
nunca esqueçam de alimentar em seu cotidiano a dimensão da mística,
pois sem ela a construção de sentido do existir seria tarefa inválida.
O que esses textos nos mostram, por fim, é que esses homens e
mulheres se entregaram de tal modo ao encontro da Alteridade Radical
e que está em Deus que não podiam realizar essa entrega se não fosse
pela via da vida mística.
Que saibamos encontrar nosso modo de seguir por esse mesmo
caminho através, também, da leitura desse livro.

11
INTRODUÇÃO

MÍSTICOS E MÍSTICAS, SANTOS AO PÉ DA PORTA


Marcelo Barros3

Quando o mistério é muito profundo, a linguagem mais capaz de


penetrá-lo é a amorosa. Essa mistagogia não se apreende por vias na-
cionais, pois a maravilha que é cada ser humano só se revela na intimi-
dade do diálogo espiritual. Isso se comprova ainda mais, quanto mais
especial forem as pessoas das quais nos aproximamos. Se do santuário
de uma vida, só podemos nos aproximar de pés descalços e de cabeça
baixa, como o profeta do Sinai diante da sarça ardente, quando a in-
tensidade do fogo sagrado se torna incêndio, a experiência mística faz
com que cada encontro seja inédito e renovador. Cada pessoa contem-
plada se torna sacramento do Espírito que, incessantemente, renova a
face da terra e rejuvenesce nossas vidas.
“Santidade ao pé da porta” é a expressão do Papa Francisco na
exortação apostólica sobre o chamado à santidade na Igreja. Ele dis-
tingue, de um lado, a santidade extraordinária de pessoas especiais
como São Francisco e Santa Clara, São João da Cruz e Santa Tereza e,
do outro lado, a santidade anônima, construída nos pequenos gestos
de amor e solidariedade da vida cotidiana, que podemos encontrar na
doação amorosa de vizinhos e vizinhas com os/as quais convivemos
(Francisco, Gaudete et exsultate, n. 6- 9).
Os místicos e místicas do Nordeste que este livro reúne, confor-
me o testemunho dos irmãos e irmãs que, nessas páginas, são mui-

3 Marcelo Barros é monge beneditino, teólogo e assessor de comunidades eclesiais de base


e de movimentos populares. Tem 65 livros publicados, entre os quais um dos mais recentes
é “Não deixe cair a profecia. A herança de Dom Helder Camara para a humanidade de hoje”.
Recife, CEPE, 2022. E-mail: irmarcelobarros@uol.com.br

12
to diversificados. A diferença entre essas figuras aqui retratadas é tão
grande que, à primeira vista, fica difícil descobrir pontos em comum,
além do profundo amor a Jesus Cristo e a fé no projeto divino para
o mundo. Alguns/mas foram militantes comprometidos com a cami-
nhada da Igreja dos pobres. Outros, traduziram no Nordeste e mais no
meio dos pobres a antiga espiritualidade monástica vivida na tradição
dos mosteiros e conventos. A lista começa com um pastor presbiteria-
no da Igreja evangélica tradicional. Poderia haver o nome de outros
evangélicos ilustres por sua mística e espiritualidade como o pastor
Djalma Torres, da Aliança Batista que viveu em Salvador, BA e nos
deixou há poucos anos. Alguém também poderia lembrar João Pedro
Teixeira, trabalhador rural, membro da Assembleia de Deus, líder da
Liga Camponesa de Sapé, mártir da luta pela Terra em 1962 e imor-
talizado no filme de Eduardo Coutinho: “Cabra marcado pra morrer”.
Sua esposa, dona Elizabeth Teixeira, também evangélica, heroína que
resistiu a todas as perseguições e à injustiça de uma pobreza extrema,
hoje com 98 anos, vive ainda em João Pessoa.
De todo modo, só podemos agradecer aos autores e autoras des-
te livro o primoroso trabalho que tiveram para nos oferecer essa
amostra de santos e santas da nossa casa, místicos e místicas com os
quais convivemos e, talvez, mesmo a alguns, tivemos como amigos.
Pessoalmente, dos vinte irmãos e irmãs aqui recordados, tive a graça
de conviver com dez desses mestres e mestras, sendo que com alguns
como Dom Helder Camara que me ordenou presbítero, o padre José
Comblin que me formou em teologia e a irmã Agostinha que me acom-
panhou espiritualmente, durante anos, tenho um preito de gratidão
especial. Com os amigos Reginaldo Veloso e Geraldo Leite, em longos
diálogos, aprendi a orar os salmos do jeito dos pobres de Deus e em co-
munhão com o povo oprimido. Com frei Angelino, em vários diálogos
de alma, aprendi a revalorizar a oração de Jesus e a mística do silêncio
do coração.

13
Nenhum deles se considerava místico e quase todos viveram sua
espiritualidade no diálogo e no aprendizado com os mais pobres. Até
hoje, tenho aqui ao lado dessa mesa na qual escrevo, um caderno todo
escrito com a letra da irmã Agostinha Vieira de Melo. Nesse caderno,
ela copiava as palavras de sabedoria que ouvia das pessoas pobres com
as quais convivia em Mandacaru (João Pessoa). Quando completou 25
anos de votos monásticos, alugou um barraco na beira da linha de trem
para conviver com as pessoas mais pobres. Assim, ela buscava escutar
os segredos que o Espírito esconde dos grandes e revela aos pequenos.
Qual o Cristo em seu caminho de cruz, todos esses irmãos e irmãs
tiveram de renunciar às tentações do prestígio e do poder mesmo re-
ligioso. Todos e todas, de um modo ou de outro, viveram marginaliza-
ções e foram incompreendidos. Assim, puderam retomar o primeiro
amor e se deixarem conduzir por este Espírito da Paz que “sopra onde
quer, ouve-se a sua voz, mas não sabe para onde vai, nem para onde
vem”.
A nós, cristãos, o Espírito sussurra um nome que nos leva ao
Infinito: Jesus de Nazaré. Mas, nos leva também a outros nomes que
são sinônimos de amor e de paz, nas mais diferentes religiões e nas
mais diversas culturas. Que riqueza. Nenhum mortal pode amordaçar
a ventania. O mistério é nossa Paz e os caminhos religiosos, se con-
seguem sê-lo, podem apenas ser nossas parábolas de amor. Em um
de seus mais belos escritos, o sermão pronunciado em sua ordenação
presbiteral, no século IV, Gregório de Nissa, pastor da Igreja oriental,
propunha:

Imagine-se uma pessoa que caminha no deserto, sob o


sol escaldante do meio-dia. Você está sedento/a e não
tem água. De repente, à margem do caminho, eis uma
fonte de águas límpidas e transparentes ali ao seu alcan-
ce. Sem dúvida, não lhe passará pela cabeça ficar racioci-
nando sobre a natureza da água, nem perder tempo com
estudos sobre como aquela água chegou até ali. Você vai

14
simplesmente aproximar-se da fonte, jogar o seu corpo
por terra e beber daquela água até saciar-se (Gregório de
Nissa, 1996, Omelie XI).

Do mesmo modo, você que está com sede, faça isso com esse livro.
Deus o(a) abençoe e o(a) acompanhe neste caminho.

Seu irmão Marcelo Barros

REFERÊNCIAS
FRANCISCO, Exortação apostólica Gaudete et exsultate, sobre a chama-
da à santidade no mundo atual. Disponível em: https://www.vatican.
va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-fran-
cesco_esortazione-ap_20180319_gaudete-et-exsultate.html. Acesso
em: 13 set. 2023.

GREGÓRIO DE NISSA. Omelie sul Cantico dei Cantici. Roma: Città


Nuova, 1996, pp. 225- 226. (Omelie XI).

15
I

MÍSTICOS(AS) LIGADOS(AS)
À DEVOÇÃO POPULAR

CÍCERO ROMÃO BATISTA


Pe. Cícero

MARIA DA LUZ
Irmã Adélia, de Cimbres

MARIA DE ARAÚJO
Beata Maria de Araújo

MARIA RITA
Irmã Dulce

16
CÍCERO
ROMÃO
BATISTA
Pe. Cícero

Silvério Leal Pessoa4


Orlando Pereira da Silva5

“O milagre é o filho predileto da fé.”


Johann Goethe

Os “milagres” do místico apresentado neste capítulo, vão de fazer


jorrar sangue da boca de uma fiel após ingerir a hóstia em uma con-
fissão em 1894, até que a vida perpassou três áreas não comumente
interligadas: a espiritual, a social e a política. Para o Padre Cícero, a
adesão e a atividade na vida mundana foram vistas por ele como um
complemento do seu trabalho eclesiástico, influenciado por uma ten-
dência relativamente comum à época: a do ativismo de determinados
membros da igreja no Nordeste. Padre Cícero, que sofrerá punições do
Vaticano sendo expulso da ordem, é uma figura de grande destaque
na fé e no imaginário nordestino, sendo considerado um dos maiores
interventores junto ao divino do Brasil, e mobilizando centenas de mi-
lhares de romeiros todos os anos, entre os dias 16 a 20 de julho, para a
cidade do Juazeiro do Norte, uma cidade no interior do Ceará.

4 Silvério Leal Pessoa é professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião


da UNICAP. E-mail: silverio.pessoa@unicap.br
5 Orlando Pereira da Silva é mestrando do Programa de Pós-graduação em Ciências da
Religião da UNICAP. E-mail: orlando.2022601061@unicap.br

17
Difícil encontrar uma casa no sertão nordestino na qual
não exista uma imagem de padre Cícero. Retratado sem-
pre com o cajado, o chapéu e a batina, ele parece oni-
presente entre os sertanejos. Em Juazeiro, mais ainda.
Ele está na fachada das lojas, dos supermercados, dos
cartórios, das bodegas, dos comitês eleitorais. Estátuas
de Cícero de gesso — e em tamanho natural — adornam
até mesmo as agências das grandes redes bancárias ins-
taladas na cidade. Ele só não está nas igrejas (Neto, 2009,
p. 13).

Cícero Romão Batista, conhecido como Padre Cícero, nasceu no


dia 24 de março de 1844, na cidade do Crato, Ceará. Filho de Joaquim
Romão Batista, comerciante, e Joaquina Vicência Romana, dona de
casa. Vindo de família com algumas posses fora estudar na Paraíba,
onde passou parte da adolescência e início da vida adulta. Até que em
1865 precisou voltar para o Crato, com a morte de seu pai. Teve sua
formação eclesiástica no Seminário da Prainha, em Fortaleza, onde foi
ordenado Padre, em 1870.
A história da vida de Cícero permeia tanto o momento histórico,
eclesiástico, quanto político do interior daquela região. A Igreja ca-
tólica passava por um momento de forte descontrole sobre a vida e
comportamento de seus membros, em especial nos interiores e nas ci-
dades pequenas. A “desordem” era tamanha que em algumas cidades
era possível encontrar padres vivendo com mulher e filhos sob o teto
fornecido pela Igreja. Situação que preocupava bastante as Matrizes
nas capitais, pois a exigência dos votos de castidade eram premissa da
igreja desde o Concílio de Trento, e a Igreja, por ser uma das institui-
ções mais fortes na época, precisava ser e cobrar exemplos de “civili-
dade” de seus membros.
Diante de situações como essa, a vida no seminário era bastante
regrada. Os alunos viviam atarefados e afastados de questões mun-
danas, o mero contato com os relógios anunciava os horários das in-
termináveis orações e estudos, tendo permanecido debruçado sobre

18
os livros na maior parte do período que habitou o seminário. Fora um
aluno mediano, sem grande destaque nos padrões avaliados pelo en-
sino do local.
Apesar das inúmeras regras e horas infindas de trabalho que bus-
cavam uniformizar e consolidar o método e a forma de pensar e pre-
gar dos futuros padres, Cícero havia crescido em meio ao catolicismo
popular dos sertões, onde a mística e as histórias populares andam
de mãos juntas. Dessa forma, o padre nunca abandonou suas raízes e
sua visão de mundo, era difícil enquadrá-lo na rigidez e na ortodoxia
ultramontanas reforçadas pelo seminário dirigido pelo reitor Pierre-
Auguste Chevalier.
Dessa forma, Cícero não exerceu uma função específica de pronti-
dão, ao sair do seminário não obteve autorização para servir de modo
efetivo em alguma paróquia, exercendo atividades esparsas. Celebrou
sua primeira missa no dia 8 de janeiro de 1871, na matriz de Nossa
Senhora da Penha, mesma onde fora batizado no Crato, 26 anos antes.
Depois disso, foi enviado por dois meses para o distrito de Trairi por
dois meses, depois para o distrito de Paracuru, onde tinha como mis-
são refazer uma série de casamentos e batizados tornados nulos pela
diocese porque haviam sido celebrados por um sacristão que havia se
passado por padre.
Após cumprida a missão, Cícero moveu–se mais uma vez ao Crato,
à espera de nova incumbência por parte da diocese, pois a ausência
de vigários na província era gritante, em especial no interior. Ainda
assim, o recém-ordenado continuava sem atribuição específica. Nesse
meio tempo, Cícero trabalhou durante todo o ano de 1871 como pro-
fessor de latim no Colégio Cratense, cujo fundador era José Marrocos,
seu amigo que havia sido expulso do seminário em Fortaleza. Amizade
e proximidade que não foram bem-vistas pela diocese. José Marrocos
fomentava o misticismo na região, em especial através das páginas do
jornal A Voz da Religião no Cariri, que começou a circular desde 1868

19
sob sua direção. A qual era usada para propagar as maravilhas ocorri-
das em um distrito da então vila de Barbalha, vizinha ao Crato.
No mesmo ano, próximo ao Natal, Cícero foi procurado no Crato
pelo professor Simeão Correia de Macedo. Simeão era genro de um
fazendeiro bastante rico da região, o coronel Domingos Gonçalves
Martins, e trazia um convite para que rezasse a tradicional Missa do
Galo em uma capelinha de um povoado próximo. A capelinha era eri-
gida em homenagem a Nossa Senhora das Dores e estava há algum
tempo sem sacerdote, da mesma forma que Cícero estava sem igreja.
Então, Cícero aceitou o convite, visando retornar ao Crato logo que
acabasse o trabalho, planejava convencer o reitor Chevalier a lhe con-
ceder vaga de professor no Seminário da Prainha. Mas como a vida
toma caminhos diferentes dos imaginados, Cícero ficaria por ali mes-
mo, no povoado e cuidaria daquela gente, conforme pedira Jesus com
tanta ênfase em seu sonho que será apresentado abaixo.
O misticismo sertanejo permeou a vida e os sonhos de Cícero, que
mesmo dentro do seminário tinha visões em sonhos, revelações e pe-
didos como acreditava. O universo relacionado ao mundo da mística,
coloca-o no interior desse conhecimento, desse campo tão presente na
história das espiritualidades, o termo mística, assim, “nos reporta emi-
nentemente à noção de secreto, de escondido ou oculto, especialmen-
te vinculado a um conhecimento (sentido) ou experiência pessoal que
não pode ser transmitido para outros” (Pinhiero; In: Losso; Bingemer;
Pinheiro (Orgs.), 2022, p.21)
Não cabia a Cícero desacreditar do poder dos sonhos, visto que a
Bíblia é repleta de referências a mensagens, profecias e avisos oníri-
cos. A exemplo das visões noturnas em forma de misteriosas alego-
rias do profeta Daniel, dos anjos que visitavam José, esposo da mãe de
Jesus, anjos enquanto dormia, dentre outras histórias. Por que esses
não podiam vir para o padre sertanejo?

20
Segundo Lira Neto (2009, p.44), o sonho mais marcante do padre,
que fora decisivo para condução da sua vida, ocorreu no ano poste-
rior ao que saíra do seminário: ele sonhara com 13 homens vestidos
com longas túnicas brancas postados em volta de uma mesa. Cena que
Cícero atribuiu a Jesus e seus 12 apóstolos, nela, Jesus trazia o peito em
chamas, a exemplo das gravuras populares do Sagrado Coração. Bem
logo Jesus começou a falar aos discípulos, uma multidão de sertanejos
apareceu na porta na porta do local: homens e mulheres esqueléticos
e vestidos com farrapos, traziam trouxas miseráveis sob os ombros.
As crianças trazidas pelos pais estavam sujas, com remelas nos olhos
e completamente nus, com seus ossos à mostra. Cristo dirigiu-lhes a
palavra e prometeu que faria um último esforço para libertar o mun-
do de tanta iniquidade e sofrimento. Mas era preciso que, para isso,
a humanidade mostrasse sincero arrependimento. Do contrário, os
céus mandariam supremo castigo. Viria o Dia do Juízo Final. O mundo
iria acabar. “Você, Cícero, tome conta dessa gente”, teria dito Cristo em
sonho ao jovem sacerdote, apontando para a caravana de famintos.
Desse momento em diante, as ações de Cícero se voltaram para cum-
prir essa missão.
Com essa missão seguiu a atividade pastoral com afinco, pregava
o evangelho, aconselhava, tentava moralizar a região, dava confissões
e visitava a comunidades. Cícero vivia no interior da grande seca no
Nordeste brasileiro (1877-1879), que castigou os miseráveis, tal qual
a visão de Cícero, e logo conquistou a simpatia do povo, liderando a
comunidade e moralizando os costumes “do pecado”. Segundo seus
biógrafos, Cícero fez um voto de castidade aos 12 anos, possuindo um
forte senso de moralidade no que tangia esse tópico. Utilizando esse
mote, Cícero possuía uma forte preocupação social: com os miseráveis,
crianças esqueléticas e sem estudo, dentre outros, mas era um con-
servador, filiando-se posteriormente ao (PRC), Partido Republicano
Conservador.

21
Em sua incansável atividade pastoral, pregava o evangelho, acon-
selhava, dava confissões e visitava a comunidade. Em pouco tempo
conquistou a simpatia do povo, liderando a comunidade e morali-
zando os costumes “do pecado”, como os excessos de bebedeira e a
prostituição. Sua obra se expandiu e padre Cícero precisou recrutar
mulheres solteiras e viúvas, organizando e exercendo sua autoridade
sobre uma irmandade leiga, formada por beatas, que o ajudava nas ati-
vidades pastorais.
Nesse momento começou a realizar seus milagres, tanto no cam-
po místico, quanto terreno. Um dos maiores exemplos deste último
foi Nova capela de Nossa Senhora das Dores ficou pronta apenas em
1884, quando Cícero completava por volta dos quarenta anos de ida-
de. A Igreja era uma obra tão grandiosa que fugia completamente dos
padrões de um povoado tão pequeno, a edificação possuía três naves,
com duas altas torres quadrangulares e topos em forma de pirâmides
apontando para o céu, construída sem verbas oficiais da Igreja, parecia
uma verdadeira catedral.
No entanto, o milagre que o tornara famoso e resultou na sua ex-
pulsão da ordem aconteceu em 1889, quando na hora da comunhão ofe-
recera uma hóstia na boca da beata Maria de Araújo, como fazia com os
fiéis, trazia sangue vivo. Segundo relatos, o fenômeno se repetiu diver-
sas vezes durante cerca de dois anos. A notícia do milagre ocorrido em
Juazeiro espalhou-se rapidamente, e muitos fiéis e curiosos vinham
à cidade para presenciar o milagre. Apesar da popularidade, contam
relatos que o padre Cícero se sentia desconfortável com a situação e
solicitou à diocese que formasse uma comissão de padres e profissio-
nais da área da saúde para investigar o suposto milagre. A comissão
foi constituída por padres e profissionais da saúde: o padre Clycério
da Costa era o presidente e o secretário era o padre Francisco Ferreira
Antero, além dos médicos Marcos Rodrigues Madeira e Ildefonso
Correia Lima, além do farmacêutico Joaquim Secundo Chaves. Em ou-

22
tubro de 1891, a comissão encerrou as pesquisas e chegou à conclusão
de que não havia explicação natural para o ocorrido, considerando os
feitos, que se repetiram diversas vezes, milagres.

O fio de sangue desceu dos lábios da mulher e, como ela


tentasse contê-lo, este lhe banhou o dorso da mão es-
querda. Depois, escorreu ao longo do braço, até cair no
chão da capela, que ficou respingado de vermelho. Com ar
aflito, a beata mirava e mostrava ao padre uma toalhinha
branca dobrada nas mãos, tingida pelas manchas rubras
que haviam transbordado da boca e que ela depois procu-
rara enxugar (Neto, 2009, p. 66).

Pouco tempo depois, naquele mesmo ano, espalhava-se que ou-


tro fenômeno ocorrera no povoado: a beata Maria de Araújo, a mesma
cuja boca jorrava sangue ao receber a hóstia, tivera visões proféticas.
A humilde beata afirmou que o próprio Jesus Cristo o teria apareci-
do em visão, enquanto ela orava na capela. E após dois dias, em nova
aparição à beata, durante a celebração da missa pelo padre Cícero,
Jesus teria revelado a ela, que decidira fazer do Juazeiro um portal por
onde apenas os puros e justos entrassem no reino dos céus. Segundo
o livro de Lira Neto, Cícero de fato acreditava nas visões da beata, e
chegou a dizer por carta para Dom Joaquim que ela conversava com
toda a corte celeste e fazia viagens espirituais ao Céu, ao Inferno e ao
Purgatório: “Eu desejava que Vossa Excelência visse ao menos uma ida
dela ao Purgatório para fazer penitência pelas almas. Certamente sensí-
vel como é Vossa Excelência, ficaria comovido até as entranhas”. Nessa
mesma carta Cícero buscou reforçar sua disposição de manter o dever
de obediência ao bispo nas últimas linhas, tanto que mandara proibir o
culto aos paninhos ensanguentados. Mas a medida não funcionou pois
o povo continuou a procurá-los.
O número de pessoas que passou a visitar a pequena cidade cres-
ceu exponencialmente, muitos moradores das cidades e localidades

23
próximas chegavam de forma espontânea ao pequeno povoado, in-
cluindo-o no mapa da região como local onde o sangue de Jesus fora
derramado em pleno agreste nordestino. Uma data que marcou as pe-
regrinações foi 7 de julho, um domingo que marcava o ápice da festa
cristã do Precioso Sangue, quando a pequena cidade de Juazeiro pre-
senciou pela primeira vez a chegada em peso e ordenada de milhares
de peregrinos. Essa foi a primeira de todas as romarias que se seguem
até os dias de hoje. Apenas em uma manhã, cerca de 3 mil pessoas,
quase dez vezes a população do povoado, amontoavam-se no local.
Essas histórias geraram muita curiosidade, devoção e respon-
sabilização na vida de Cícero. Não tardou para que as histórias dos
Milagres no agreste cearense chegassem aos principais jornais do país.
Sendo a gazeta da capital do Império o primeiro periódico a noticiar
o caso, o segundo fora o Diário do Commercio, que noticiou o caso da
seguinte forma:

Quando o padre Cícero dava a comunhão à virtuosa bea-


ta Maria de Araújo, transformou-se a sagrada forma em
sangue, que caiu na toalha e na murça da beata, fato que
se foi dando todas as sextas-feiras e depois diariamente
(Neto, 2009, p. 66).

Pouco mais de uma semana depois, o Diário de Pernambuco no-


ticiou o caso com um alarde ainda maior: “Fato estupendo”, com a
descrição do caso e a informação de que caravanas de peregrinos não
paravam de chegar ao povoado. A ponto do bispo Dom Joaquim José
Vieira, bispo do Ceará, insatisfeito com o parecer da primeira comis-
são, nomear uma nova comissão para investigar o caso. O presidente
dessa nova comissão era o padre Alexandrino de Alencar, e o padre
Manoel Cândido ocupando o cargo de secretário. A segunda comissão
concluiu que não houve milagre, mas sim um embuste, uma fraude,
uma enganação. Dom Joaquim se posicionou favorável ao segundo

24
parecer e, com base nele, suspendeu as ordens sacerdotais de padre
Cícero e determinou que Maria de Araújo fosse enclausurada. No en-
tanto, mesmo com a beata instalada na casa de caridade do Crato, a
população da cidade correu em massa ao prédio, a multidão obstinada
conseguiu forçar a entrada pelo portão principal ou deu um jeito de se
aproximar para ver e tocar a beata tida como milagreira. Maria Araújo
foi movida para outra cidade e faleceu alguns anos depois em 1914.
Tal movimentação chamou a atenção do Vaticano e, em 1898, foi a
Roma reunir–se com o Papa Leão XIII e com membros da Congregação
do Santo Ofício, conseguindo sua absolvição da suspensão das suas or-
dens pelo bispo do Ceará. No entanto, ao retornar a Juazeiro, a decisão
do Vaticano foi revista e ele teria sido excomungado. Situação que te-
ria sido revista posteriormente, na qual estudos realizados pelo bispo
Dom Fernando Panico sugerem que a excomunhão não chegou a ser
aplicada de fato. Mas Cícero acreditava que havia sido excomungado.
No início do século XX, o suposto padre excomungado começou
sua trajetória na política, participando de outra importante esfera da
vida pública. Em 1911, quando o povoado foi elevado a cidade, Padre
Cícero, filiado ao Partido Republicano Conservador (PRC), foi o pri-
meiro prefeito de Juazeiro do Norte. Em 4 de outubro de 1911, ele e
outros dezesseis líderes políticos da região se reuniram em Juazeiro e
firmaram um acordo de cooperação mútua, bem como o compromisso
de apoiar o governador Antônio Pinto Nogueira Accioli. O encontro
fora apelidado de Pacto dos Coronéis, sendo apontado como uma im-
portante passagem na história do coronelismo brasileiro. O corone-
lismo foi um movimento que aconteceu nas cidades interioranas na
República Velha, onde as lideranças locais dividiram o poder entre si
de forma independente do poder central do Estado, havia um Estado e
um código de regras hiper fragmentado, e Cícero não poderia exercer
sua missão sem relacionar-se com as lideranças locais.

25
Cícero foi destituído do cargo pelo governador do Estado Marcos
Franco Rabelo em 1913, mas voltou ao poder no ano seguinte em 1914,
quando o governador foi deposto no evento que ficou conhecido como
Sedição de Juazeiro. Na mesma década, a influência política de Cícero
saiu do âmbito local, para o estadual, sendo eleito, vice-governador do
Ceará, no Governo do General Benjamin Liberato Barroso.
No entanto, no fim da década de 1920 começou a perder força po-
lítica, conseguindo ser eleito deputado federal em 1926, porém não
chegou a assumir o cargo, mas acabou sua carreira política na década
seguinte depois da Revolução de 1930. No entanto, seu prestígio como
homem-santo milagreiro, figura mística, aumentaria cada vez mais.
Por encarnar a força de ser uma figura mística e simbólica, o Padre
Cícero possuía uma rede de admiradores influentes, alguns não usuais
como Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. O cangaceiro era devoto
de padre Cícero, pela sua figura religiosa e mítica, e respeitava as suas
crenças e conselhos. No entanto, os dois se encontraram apenas uma
única vez, em Juazeiro do Norte, em 1926. No ano em que a Coluna
Prestes, liderada por Luís Carlos Prestes, atrelada ao movimento te-
nentista, percorria o interior do Brasil desafiando o Governo Federal.
Para combatê-la foram criados os Batalhões Patrióticos.
Os batalhões patrióticos contavam com cerca de 1000 voluntários,
mas Floro Bartolomeu, jornalista, político e conselheiro de Cícero, no
intuito de sair vitorioso na luta contra Prestes apelou para medidas
extremas e solicitou reforço para um homem. O nome era apenas um,
mas valia por outros mil: Lampião, o rei dos cangaceiros. E pediu para
que o padre Cícero fizesse o convite, convite que fora feito prometen-
do ao cangaceiro mundos, fundos, e uma patente de capitão. Uma vez
que Lampião tivera a confirmação da presença do Padre Cícero na em-
preitada, migrou junto com seu bando para a Terra do Sol.
O único encontro de que se tem real notícia entre padre Cícero e
Lampião gerou uma série de versões contraditórias. Segundo o livro de

26
Lira Neto há a versão que Lampião se ajoelhou aos pés do sacerdote
chorando remorsos; em outra versão há quem acredite que o canga-
ceiro teria chegado a levar uma sova de cajado do padre e ainda há
os que asseguravam que nada daquilo era verdade, que Cícero apenas
teria dito a Lampião da inconveniência de sua presença na cidade, já
que o Batalhão Patriótico estava esfacelado. Como Lampião exigia re-
ceber armas, dinheiro e a patente que lhe fora prometida para deixar
a cidade, Padre Cícero procurou Pedro de Albuquerque Uchoa, único
funcionário público federal no município, que escreveu em uma folha
de papel que Lampião seria, a partir daquele momento, Capitão e rece-
beria anistia por seus crimes. Documento que não teria valor de fato,
mas Lampião já havia deixado o Cariri e decidiu seguir com sua vida
de crimes.
Quase cego, com pouca influência política e com a morte preco-
ce do amigo Floro Bartolomeu aos 49 anos no Rio de Janeiro, Cícero
delegou o cuidado da sua casa e das suas propriedades para a beata
Mocinha, que autorizava suas procurações, cuidava dos contratos de
compra e venda das suas propriedades. Com o tempo, Mocinha passou
a controlar também as visitas ao sacerdote, tanto dos frequentadores
usuais, quanto dos romeiros que vinham ouvir os conselhos do Padre,
beijar-lhe as mãos, tocar-lhe a batina etc.
À medida que sua saúde ficara mais delicada, Mocinha se ocupava
dos cuidados para tratar e evitar as doenças e informava aos fiéis o
estado de saúde do Padre Cícero, em especial quando esse precisou ser
submetido a uma intervenção cirúrgica. Depois da qual suas aparições
públicas foram aos poucos rareando. No entanto, o Padre se sentiu no
dever de fazer um grande esforço para prestigiar um evento que trouxe
grande sensação à cidade: a chegada dos trilhos da estrada de ferro a
Juazeiro, no qual fora convidado de honra na viagem inaugural, onde
seguiu na locomotiva até o Crato, ao lado dos engenheiros da compa-
nhia. E mesmo debilitado, o Padre fez questão de acenar com o cha-

27
péu preto para a multidão. Em 1934, no meio do inverno, aos 90 anos
Cícero dá seu último suspiro na cidade de Juazeiro do Norte, onde seu
corpo fora sepultado, deixando a esfera terrena e passado a habitar na
espiritual.
Padim Ciço, o místico deste capítulo, fez jorrar sangue da boca de
uma beata, transformou um povoado em um centro de peregrinação,
incluindo-o no mapa e tornando-o conhecido nacional e mundial-
mente, mobilizou o mais importante cangaceiro e seu bando para lu-
tar contra a Coluna Prestes e participou da política sendo o primeiro
prefeito da cidade de Juazeiro. É possível duvidar da magia por trás dos
atos desse cearense de 1,60 de altura, mas é praticamente impossível
dizer que ele não operou milagres.

REFERÊNCIAS
AQUINO, Pedro Ferreira de. O Santo do Meu Nordeste - Padre Cícero
Romão Batista. São Paulo: Letras & Letras, 1997.

NETO, LIRA. Padre Cícero – Poder, fé e Guerra no Sertão. São Paulo:


Companhia das Letras, 2009.

PINHEIRO, Eduardo Guerreiro. As origens. In: LOSSO, Eduardo


Guerreiro; BINGEMER, Maria Clara; PINHEIRO, Marcus Reis. A místi-
ca e os místicos. Petrópolis: Vozes, 2022. p. 13-22.

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MARIA
DA
LUZ
Irmã Adélia, de Cimbres

Wêdja Domingos de Melo6

INTRODUÇÃO
No presente artigo será apresentada uma breve biografia de
Ir. Adélia, que fora religiosa da Instrução Cristã e vidente de Nossa
Senhora das Graças, no Sítio Guarda, em Cimbres, Pesqueira/PE. Desde
a infância Nossa Senhora das Graças lhe aparecia, conversava com ela
e fazia alguns pedidos. Durante a sua adolescência ingressou na Vida
Religiosa Consagrada e dedicou-se ao cultivo do silêncio, recolhimen-
to, oração e serviço, sobretudo às pessoas mais empobrecidas, pelas
quais sentia grande empatia e indescritível compaixão.
Doou a sua vida a Deus expresso no serviço junto às pessoas mais
carentes, sobretudo na Vila Santa Luzia, no bairro da Torre, em Recife.
Demonstrava muito carinho e zelo para com as crianças e uma escuta
solidária aos adultos. Sempre tinha algo a oferecer além do acolhimen-
to. Pois sabia bem que a pessoa humana precisa de “pão” e de “afeto”.
O seu ser refletia bondade, humildade e entrega. Demonstrava
muito amor a Jesus, com quem parecia cultivar muita intimidade. A
meu ver, com base na memória que guardo, Ir. Adélia foi uma mística.
Nesse sentido, afirma Mendonça:

6 Wêdja Domingos de Melo é Mestra em Ciências da Religião pelo Programa de Pós-


graduação em Ciências da Religião da UNICAP. E-mail: wedjadm@gmail.com

29
É místico aquele ou aquela que não pode deixar de cami-
nhar. [...] A mística se aprofunda num longo e pacientís-
simo colóquio. Contudo, mesmo as grandes viagens têm
de começar com um pequeno passo. [...] Percebe que cada
lugar por onde passa é ainda provisório e que a demanda
continua (Mendonça, 2016, p. 31-32).

Ir. Adélia foi desenvolvendo a mística, iniciando com pequenos


passos. Inclusive, por ela ter vivido a Espiritualidade Inaciana, que
proporciona um mergulho em si e uma saída para ir ao encontro do/a
outro/a. Bem como, favorece uma vivência da fé de modo encarnado na
realidade, tendo em vista a formação integral do ser humano, cuja cen-
tralidade está na pessoa de Jesus e que também é trinitária. Utilizarei,
enquanto metodologia, a pesquisa bibliográfica e alguns relatos de Ir.
Adélia, do tempo em que desfrutei da sua convivência.

QUEM FOI A IRMÃ ADÉLIA?


Nascida em uma família profundamente cristã, no sábado, 16 de
dezembro de 1922, no Sítio Guarda, em Cimbres, no município de
Pesqueira/PE, foi a segunda filha do casal Auta Monteiro e Arthur
Ferreira, que lhes deram o nome de Maria da Luz. Desde cedo, mos-
trou-se uma menina muito viva, de personalidade forte, embora com
saúde frágil.
O local de nascimento de uma pessoa e onde esta desenvolve os
seus primeiros aprendizados possuem reconhecido valor, pois impri-
mem traços significativos no tocante aos aspectos culturais e religio-
sos, sobretudo. Assim, Dom Rafael da Silva apresenta algumas carac-
terísticas e informações históricas sobre Cimbres e, especificamente, o
Sítio Guarda:

A Cimbres pesqueirense, fundada em 1692 e que se cha-


mava Monte Alegre, só passou a ser chamada Cimbres em

30
1762. Nesta vila, de importância histórica, política e reli-
giosa no agreste pernambucano sobressaem alguns fatos
importantes que ilustram a sua história. A implantação
do seu primeiro Senado; a dedicação da paróquia a Nossa
Senhora das Montanhas; o primeiro cardeal da América
Latina, Joaquim Arcoverde de Albuquerque Cavalcanti.
O Sítio Guarda está situado ao pé da Serra do Ororubá e
dentro do território paroquial de Cimbres pesqueirense
(Silva, 2016, p.28).

A família se expandia. Logo nasceram seus doze irmãos. Viviam


com simplicidade do trabalho na lavoura. Dona Auta sempre muito
cuidadosa com a educação dos filhos, prezava para que todos estudas-
sem. Porém, Maria da Luz e a sua irmã mais velha, Maria Dolores, pre-
cisavam ajudar no serviço da casa e no cuidado dos irmãos mais novos,
o que impediu a Maria da Luz frequentar a escola. Segundo Ir. Adélia,
todas as manhãs e noites, a família se reunia para a recitação do terço,
a escuta da leitura de bons livros, feita por Dona Auta, seguida de boas
conversas acerca de assuntos religiosos.
Em julho de 1936, Maria da Luz caminhava com seu pai para aju-
dá-lo na plantação de milho e de feijão, quando avistou uma casa
muito humilde e, à sua frente, aquela que seria a sua nova amiga e
companheira nas aparições que Nossa Senhora faria a ambas: Maria da
Conceição, que foi convidada para morar em sua casa como membro
da família. As duas meninas demonstravam muita devoção a Nossa
Senhora.
Era costume da família comprar roupas novas para usarem duran-
te a Festa de São Miguel Arcanjo. No entanto, naquele ano, a lavoura
não produziu o esperado e o Sr. Arthur, muito tristemente anunciou
que não seria possível fazer despesas extras, ao que Maria da Luz e
Maria da Conceição pediram para arrancar mamonas, vender e com-
prar roupa nova pelo menos para as crianças menores. O pai consen-

31
tiu, recomendando-lhes que tivessem cuidado, pois, há poucos dias,
Lampião e o seu bando passaram pelas imediações do Sítio Guarda.
Em uma linda manhã de sol, as duas meninas, animadas, enchiam
os seus balaios com as mamonas recolhidas. Em um dado momen-
to, Maria da Luz perguntou a Maria da Conceição o que ela faria se
Lampião chegasse. Em um ímpeto, a sua amiga respondeu: “- Nossa
Senhora haveria de dar um jeito para esse malvado não nos ofender”.
Como sempre acontece quando algo sobrenatural desponta, em
pleno dia ensolarado começou a cair uma chuva fina e, de repente, um
relâmpago rasgou o céu com um enorme clarão em direção ao monte.
Maria da Conceição foi a primeira a avistar, naquela direção, no alto da
serra, a imagem de uma mulher com um menino em seus braços, que
a chamava, fazendo sinal com as mãos. Então, exclamou para Maria
da Luz: “- Olha lá aquela senhora!”. Maria da Luz pôde, igualmente,
contemplar a imagem de uma bela mulher, com o seu filho, conforme
descreveu depois... Era o dia 08 de agosto de 1936.
Ir. Adélia viveu uma existência com sentido. Porém, como um sim-
ples ser humano que desfruta o instante como único e encontra no
ordinário a presença de Deus que se revela sempre e que se deixa en-
contrar. Saboreia essa presença e faz o possível para que as pessoas
que com ela caminham também desfrutem da presença divina. Sobre
uma pessoa mística, afirma Mendonça:

Os místicos sabem que Deus se dá ausentando-se. Entre


Deus e nós há um espaço vazio. Nós nos movemos nesse
espaço. O essencial está além, só na pobreza da nossa car-
ne e do nosso tempo, que são também carne e tempo de
Deus, podemos entrevê-lo. Ver, entrever e experimentá-
-lo na transparência do instante. Não é fugindo do banal
e do ordinário, pois ele habita todo o comprimento deli-
cioso e árduo do nosso caminho (Mendonça, 2016, p. 34).

32
Lutas, dúvidas, saudade e fé compuseram os dias de Ir. Adélia, até
ser chamada “à Glória de Deus” no dia 13 de outubro de 2013, aos 90
anos de idade. Tendo o seu corpo velado na Capela do Colégio Damas.
Seis anos depois foi construído um memorial em sua homenagem, um
espaço para depositar os seus restos mortais e receber visita de pes-
soas que a consideram uma santa. Inclusive, já Serva de Deus, está em
processo de beatificação. No dia 13 de outubro de 2019, por ocasião da
inauguração do referido memorial, o jornal do comércio lançou uma
matéria sobre ela, intitulada: Ir. Adélia pode ser a primeira santa per-
nambucana. Entrevistado, Dom José Luiz Ferreira Sales fez o seguinte
pronunciamento:

[Ir. Adélia] Viveu um processo de intimidade com Deus.


E, a gente acredita e crê que ela teve uma graça de ter es-
tado com Nossa Senhora, rezado a Nossa Senhora. Nossa
senhora apareceu a Ir. Adélia, a gente tem essa intuição
que ela viveu essa graça tão importante e tão bonita na
vida dela. E, para nós enquanto igreja de Pernambuco,
enquanto igreja de Pesqueira, é muito importante aquilo
que Ir. Adélia deixou para a gente (Jc On-line, 2019).

É importante contar com a credibilidade e o apoio de um represen-


tante da Igreja para o reconhecimento da vida santa que teve Ir. Adélia.
Sobretudo, a sua compaixão e solidariedade com as pessoas mais em-
pobrecidas. Bem como, o seu despojamento e confiança em Deus, que
foram pilares no desenvolvimento de suas virtudes.

AS PRIMEIRAS APARIÇÕES DE NOSSA SENHORA À IRMÃ ADÉLIA


E À MARIA DA CONCEIÇÃO
Apoiadas na Graça, desceram a pedra e subiram o monte sem se-
quer ter algum arranhão, “como se voassem”, relatou mais tarde Maria
da Luz. Ao chegar em casa, logo contaram à mãe, que procurou dis-

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suadi-las, chamando-as para almoçar e afirmando: “– Foi engano de
vocês!” Pois a notícia trouxe à Dona Auta encantamento e indagações.
Tomando conhecimento, o Sr. Arthur decidiu ir até o local com as me-
ninas e três de seus trabalhadores.
Mais uma vez, a senhora lhes apareceu. O pai, que não a viu, pediu
que Maria da Luz faça-lhe algumas perguntas:
- “Quem é você?”
- “Eu sou a Graça”.
- “Que quer a senhora aqui?”
- “Vim para avisar que hão de vir três castigos mandados por Deus.
Diga ao povo que reze e faça penitência”.

Logo as pessoas vizinhas tomaram conhecimento do ocorrido e


iniciaram a romaria até o monte. No local da aparição rezavam o terço,
cantavam e soltavam fogos. Também as meninas para lá se dirigiam
diariamente. Viam Nossa Senhora, com quem falavam, e rezavam.
No dia 10 de agosto do mesmo ano, conforme o pedido das meni-
nas para que Nossa Senhora oferecesse um sinal ao povo, esta indicou
uma pedra sem rachadura, onde havia uma grande cavidade. Maria da
Luz cavou com as mãos, retirando a terra que havia e logo escorreu
água pela rocha. Ao perguntarem para que servia a água servia, a Mãe
respondeu: - “Para curar doenças”. Novamente os pais de Maria da Luz
e as pessoas que moravam nos arredores subiram ao local. Logo a no-
tícia chegou também ao vigário de Cimbres, Pe. Rafael. Este comuni-
cou ao bispo, que pediu para falar com as meninas. No dia marcado,
lá estavam as videntes acompanhadas de Sr. Arthur. Impossibilitado
de atendê-las, Dom Adalberto pediu ao seu secretário, Pe. José Kehrle,
que o fizesse. Desse momento em diante o referido padre iniciou o
processo de investigação, com muita minúcia e prudência. Esses dias
se seguiram não sem provações para as meninas e os seus pais. Acerca
da biografia desse sacerdote, registrou Dom Rafael da Silva:

34
De naturalidade alemã, nasceu em 19 de maio de 1891.
Estudou no Ginásio Mergensthein e na Universidade de
Munique. Veio para o Brasil com 18 anos. Em 1º de ou-
tubro de 1909, como estudante de medicina, hospedou-
-se no Mosteiro de São Bento de Olinda. Abandonou o
curso, fez seus votos solenes como monge e foi ordena-
do sacerdote em 14 de março de 1914. Dedicou-se à vida
acadêmica e trabalhou na primeira Escola Agrícola de
Pernambuco, junto ao Mosteiro de São Bento de Olinda
(Silva, 2016, p.28).

Na vida monástica beneditina o Pe. José Kehrle era conhecido


como Dom João Kehrle e foi Vice-prior do Mosteiro de São Bento onde
vivia. Assumindo a missão de investigar as aparições em Cimbres, foi
assumindo uma espécie de apadrinhamento às meninas, pois chegava
à evidência de se tratar, de fato, de aparições de Nossa Senhora e de
que esta queria a propagação do ocorrido.
Maria da Luz afirmava que Nossa Senhora pediu que ela estudasse
e que Pe. Kehrle a colocasse em um Colégio em que ele a pudesse vi-
sitá-la. O primeiro que ele procurou foi o Colégio de Santa Dorotéia,
em Pesqueira. A Madre Superiora fazia a inscrição da menina quan-
do, ao escutar o seu nome completo, suspendeu a caneta, por se tra-
tar de “a vidente de Cimbres” e recusou-se a recebê-la. Depois, ten-
tou o Colégio Sagrado Coração de Jesus, em Caruaru, das Beneditinas
Missionárias de Tutzighen. Pe. Kehrle continuou a sua busca até que
teve a alegria de receber uma carta comunicando que Maria da Luz
seria aceita no Colégio Santa Sofia, em Garanhuns, para cursar a “se-
gunda série primária”. Os seus pais a acompanharam até lá. E algumas
pessoas de Pesqueira se juntaram para enviar uma mensalidade para
ajudar na despesa do Colégio. Porém, após um ano de estudo, o bispo
de Pesqueira exigiu que ela o deixasse. Com tristeza, Maria da Luz obe-
deceu. Seguiu como catequista de Primeira Eucaristia. Em três anos
ela despertou para a vocação à Vida Religiosa Consagrada. Maria da

35
Conceição não iria querer seguir o mesmo caminho e a decisão dela
deveria ser respeitada. Nossa Senhora pediu que Pe. Kehrle a ajudasse,
sem temer, e seria muito feliz, por toda a vida, relatou Ir. Adélia.

A VOCAÇÃO DE IRMÃ ADÉLIA À VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA


No ano de 1938, tendo dezoito anos incompletos, Maria da Luz
sente o ardente desejo de consagrar a sua vida ao Senhor no Instituto
das Religiosas da Instrução Cristã, conhecidas como “as Damas”. Seus
pais aceitam a sua decisão e as Religiosas estão dispostas a acolhê-
-la. O maior obstáculo, no momento, era de caráter material. Seus pais
não tinham condições sequer de providenciar o seu enxoval. Porém, a
providência de Deus sempre a acompanhou e enfim, a sua entrada no
convento foi possível.
Aos 12 de junho de 1940 entra na Vida Religiosa com o ideal de se
sacrificar pelos sacerdotes e pelos pobres. No dia 14 de janeiro de 1941
foi a sua vestição e recebeu o nome de Ir. Adélia. Em um cartão enviado
ao Pe. Kehrle ela escreve:

Ah! Que vida feliz a do convento. Meu coração vive ra-


diante de alegria. Agora o que desejo é trabalhar pela
santificação de todos, especialmente por quem tanto me
ajudou a me tornar uma santa para um dia nos vermos
todos reunidos lá no céu (Paiva, 1993, p. 96).

Durante a sua formação foi proibida de falar sobre as aparições.


Outra provação: logo que entrou no convento tinha muitas vertigens
e passava alguns momentos desacordada, precisando algumas vezes
ser levada à enfermaria da comunidade. Temia que isso fosse um im-
pedimento para a sua aceitação para a Profissão Religiosa. Ela contava
que em uma determinada primeira sexta-feira do mês, dia dedicado ao
Sagrado Coração de Jesus, a quem era muito devota, enquanto Jesus
Eucaristia passava, pediu-lhe, em voz alta, que trocasse aqueles mo-

36
mentos que passava desacordada por alguma coisa que não interviesse
negativamente em sua vocação. O seu pedido foi escutado. A partir de
então, passou a ter momentos de sonolência que a acompanharam por
toda a vida. Muitas vezes, em reuniões comunitárias, Ir. Adélia parecia
dormir profundamente. No entanto, ao abrir-se espaço à partilha, por
suas palavras, notava-se que ela esteve inteiramente presente. Enfim,
foi aprovada para fazer a sua Profissão temporária. Desde a sua entra-
da, mostrava-se muito dedicada à oração, ao trabalho, ao silêncio e à
obediência. A esse respeito, registrou Paiva:

O voto de obediência, para Ir. Adélia, não consistia so-


mente em atos exteriores, mas numa disposição interior
muito grande, que a levava muitas vezes a suportar priva-
ções e sofrimentos por amor e completo abandono ao seu
estado de vida. Era proibido falar sobre as aparições de
Nossa Senhora no Sítio Guarda porque quando ela entrou
no Convento pediu às Superioras para ficar no anonima-
to, pois tinha medo de não ser recebida ou de não ficar
naquela Congregação [...] (Paiva, 1993, p. 96).

Esse silêncio em relação às aparições somente foi quebrado cin-


quenta anos mais tarde, quando Ir. Adélia recebeu o diagnóstico de
câncer. Pensando que se abreviava a sua vida terrena, pediu licença
à superiora para partilhar aquela experiência com as suas Irmãs de
comunidade. Essa partilha aconteceu no dia 05 de fevereiro de 1985.
Logo as Irmãs se organizaram para fazerem a primeira romaria/visita
ao local, em Cimbres, o que aconteceu no dia 09 de fevereiro do mesmo
ano. Aquele dia foi muito especial para Ir. Adélia, que escreveu:

Não se pode imaginar a emoção que senti quando vi a


turma de religiosas que me acompanhava, foi o que mais
me impressionou depois de tantos anos e antes de minha
morte: poder apreciar este momento de graça. Também,
no meu estado de saúde, enfrentar grandes ladeiras sem

37
nada sentir. Lá de cima eu recordei tudo. Parecia estar vi-
vendo os dias do ano de 1936 [...] (Paiva, 1993, p. 96).

O câncer não foi o motivo de sua morte, que ocorreu muitos anos
depois, pois havia sido curada, milagrosamente. Teve uma vida longa,
fecunda e virtuosa. Realizou uma bonita missão, em diferentes cida-
des onde morou, sobretudo em meio aos menos favorecidos. Nessas
circunstâncias, revelava a sua mística, no sentido encontrado no
Dicionário de Mística, que se segue:
Nos Padres, a mística nasceu junto com a consciência da insufi-
ciência do conceito humano para explicar as verdades reveladas pela
Trindade e pela Encarnação (Borriello, Caruana, Del Genio, Suffi, 2003,
p.743).
Na história de Ir. Adélia há muitas verdades impossíveis de con-
ceituar e de difícil compreensão senão por meio da fé. Pois trata-se
de um mistério revelado por Deus e somente aqueles/as que dele se
aproximam conseguem fazer a leitura dessa realidade.

A MISSÃO DE IRMÃ ADÉLIA ENTRE OS MAIS EMPOBRECIDOS


Pensar ou falar em Ir. Adélia é fazer memória de sua missão em
meio aos mais empobrecidos, pelos quais doava a vida, com amor
oblativo. Ela tinha o olhar muito profundo, firmeza e sensibilidade ao
sofrimento humano. Iniciou o seu trabalho social na favela de Santo
Amaro e de João de Barros, onde existiam muitos jovens prostrados
pela dependência química e, consequentemente, na marginalidade.
A sua primeira missão nessa linha se deu em Campina Grande, no
Colégio Imaculada Conceição, junto às pensionistas. Morou nessa co-
munidade por um ano e foi transferida para Nazaré da Mata. Cidade
esta que marcou a sua vida, conforme relatou mais tarde, pois foi onde
celebrou o seu Jubileu de prata de Vida Religiosa Consagrada.

38
Novamente transferida, dessa vez para Vitória de Santo Antão,
onde iniciou a sua missão no bairro do Cajá, junto ao povo sofrido que,
segundo ela “só conhecia a voz do trabalho e da miséria, cujos jovens
eram vazios de Deus”. Lá fundou uma fraternidade. Oferecia curso de
corte e costura, integrou-se ao Movimento Brasileiro de Alfabetização
(Mobral) e assistia aos doentes e evangelizava, pelo anúncio da Palavra.
Alguns anos depois, voltando a morar em Recife, dedicou-se, com
afinco, junto aos moradores da Vila Santa Luzia, no bairro da Torre. As
casas ainda eram feitas de palafitas e as famílias viviam em extrema
pobreza quando Ir. Adélia iniciou as suas visitas, sempre oferecendo
pão e afeto. Com o passar do tempo, juntou-se a ela alguns leigos e for-
mandas para a Vida Religiosa de seu Instituto conseguindo ampliar o
serviço e oferecer formação humana e espiritual, assistência às crian-
ças e aos idosos. Dentro de alguns anos, Ir. Adélia recebeu a doação
de uma casa modesta, em meio àquela comunidade, viabilizando uma
melhor assistência àquele povo. Com o passar do tempo, essa casa foi
reformada, mantendo um caráter muito simples, no entanto com con-
dições de oferecer educação infantil às crianças que ali residiam.
O Colégio Damas, dentro da filantropia, ofereceu algumas profes-
soras, uma cozinheira e uma funcionária de serviços gerais para cola-
borarem com a mais nova obra educativa e de evangelização. A cada
ano, duas aspirantes ou postulantes davam aulas de Ensino Religioso.
A diretora era uma voluntária, irmã de uma das Religiosas do referido
Instituto e Ir. Adélia continuava sendo uma presença profética até o
dia em que a fragilidade própria de uma pessoa cujos anos de vida se
acumulavam, a impediu de se deslocar do Colégio Damas à Torre.
O seu amor a Deus, a fecundidade de sua missão e o zelo com que a
realizava se dava graças à sua experiência de oração integrada na vida,
pois Ir. Adélia era um testemunho fiel de que é possível ser uma pessoa
contemplativa na ação. A esse respeito, afirma Galvão:

39
Para estar inteiro em Deus é urgente aprender a estar in-
teiro em si mesmo; e isto exige uma disciplina do silên-
cio e da pausa. Rezar, ao contrário do que se pensa não
significa abrir um espaço para a transcendência em meio
aos afazeres do dia, mas continuar fazendo tudo o que é
necessário ser feito sem perder a conexão com a própria
interioridade (Galvão, 2018, p. 10).

Esse é, sem dúvida um exercício que requer constância e intei-


reza. Pois, o cultivo da vida espiritual precisa ser uma decisão diária,
que exige disposição interior. Para ser contemplativa na ação, a pessoa
vai aprendendo a viver dentro e fora de si autêntica e coerentemente,
buscando e encontrando a vontade de Deus na disposição de sua vida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo ser humano é convidado a cultivar uma mística “com os olhos
abertos” à realidade que o circunda e a encontrar Deus no cotidiano,
no ordinário da vida. Ir. Adélia que seguia a Espiritualidade Inaciana
buscava “ver Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus” e isso
lhe proporcionou atribuir sentido à sua vida e à sua missão, sobretudo
em meio às pessoas mais vulneráveis e empobrecidas.
Desde a sua infância esteve aberta à graça de Deus e cultivava uma
sensibilidade às necessidades daqueles/as que o Senhor lhe confiava
para cuidar. Buscava, igualmente, no silêncio, na oração e na simpli-
cidade de vida unir-se a Jesus, bem como, encontrar e pôr em prática
a sua vontade. Sempre guiada pela luz e pelas inspirações do Divino
Espírito Santo, foi desenvolvendo as virtudes próprias do humano
que busca o Transcendente e caminha em direção ao fim para o qual é
criado.
Por essa razão, é possível considerar Irmã Adélia uma mulher
nordestina mística, que viveu no século XX e que deixa, para todas
as pessoas que desejam crescer, um legado de compaixão, caridade,

40
simplicidade, humildade, obediência e livre entrega de si ao Senhor.
As aparições de Nossa Senhora são apenas “delicadezas de Deus” para
com ela, que vinham acompanhadas de responsabilidade e de compro-
misso com os seus semelhantes.

REFERÊNCIA
BORRIELLO, L.; CARUANA, E; DEL GENIO, M.R.; SUFFI, N. Dicionário
de Mística. São Paulo: Paulus; Loyola, 2003.

GALVÃO, Francisco. O cultivo espiritual em tempos de conectivida-


de. São Paulo: Paulus, 2018.

MENDONÇA, José Tolentino. A mística do instante: o tempo e a


promessa. São Paulo: Paulinas, 2016.

PAIVA, Ione Maria Cavalcanti. Aqui o céu encontra-se com a terra.


Maceió: Sergasa 1993.

SILVA, Rafael Maria Francisco da. Eu sou a Graça. As aparições de


Nossa Senhora das Graças em Pernambuco. Campinas: Ecclesiae
Editora, 2016.

JC ON-LINE. Disponível em: www.jconline.ne10.uol.com.br/canal/ci-


dades/regional/noticia. Acesso em: 14 out. 2019.

41
MARIA
DE
ARAÚJO
Beata Maria de Araújo

Maria do Carmo Pagan Forti7

INTRODUÇÃO
Maria de Araújo foi contemporânea de Padre Cícero. Nas palavras
dele, desde cedo notou naquela menina de 9 ou 10 anos uma “dispo-
sição para a vida interior”, tomando-a desde então sob sua direção
espiritual.
Mal sabia Padre Cícero o quanto essa menina lhe traria de sofri-
mento e de consolação. Mal sabia essa menina que, por causa de sua
“disposição para a vida interior”, transformaria a vida de um lugarejo,
a fazenda Tabuleiro Grande, na grande cidade que hoje é Juazeiro do
Norte, no Cariri, sul do estado do Ceará.

UM POUCO DA SUA HISTÓRIA


Maria de Araújo8 nasceu em 24 de março de 1862 nesse povoado.
As descrições sobre sua aparência nos dizem de uma pessoa franzina,

7 Psicóloga, Mestra em Ciências da Religião – PUC-SP e Doutora em Filosofia da Religião pela


Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa.
8 A Beata Maria de Araújo não deve ser confundida com a Beata Mocinha. De acordo com
Lira Neto, a Beata Mocinha era governanta e tesoureira do Padre Cícero, enquanto a Beata
Maria de Araújo é conhecida pelo Milagre da Hóstia, em Juazeiro do Norte, quando recebeu
a Comunhão dada pelo Padre Cícero Romão Batista, que se transformou em sangue na sua
boca (Neto, 2009).

42
estatura média, mestiça, com predominância do negro, cabeça peque-
na e arredondada, cabelos quase carapinhos, olhos pequenos, lábios
grossos. Mas também havia quem a descrevesse em termos mais rudes,
como o Padre Alencar Peixoto, que a conheceu pessoalmente:

Maria de Araújo é um produto do cruzamento de duas


raças desprezíveis, negra e índia, dando, portanto, uma
hibridez horrível, uma monstruosidade feita mulher. [...]
A cabeça que traz sempre descoberta, tem a configuração
de um corredor de boi. [...] Os olhos pequenos e sem um
raio sequer de expressão que lhe ilumine o semblante, [...]
os beiços moles e relaxados deixam a descoberto em um
dos cantos da cacóstomas boca, à competência com a pele
cor de azeitona em estado de putrefação, denegridos, os
dentes lanianos. É uma alma soberanamente execrável
(Peixoto, 1913, p. 46).

E ela se descreve:

Meu nome é Maria Magdalena do Espírito Santo de


Araújo. Sou solteira e costureira. Não sei ler ou escrever.
Estou ligada à Igreja desde minha primeira comunhão.
Mais tarde, minha consagração a Deus foi feita de for-
ma definitiva, com um consórcio espiritual, celebrado
na Capela do Santíssimo Sacramento, em presença de
Maria Santíssima, de São José, de coros de anjos e Jesus,
chamando-me esposa e confirmando-me como tal, exi-
giu que eu me consagrasse a ele de modo mais íntimo e
anunciou-me que eu ainda sofreria muito por seu amor.
Jesus disse-me ainda que os fatos que aconteceram e que
ainda vão acontecer comigo, serão para avivar a fé nele
e na eucaristia, já tão enfraquecida nestes tempos. São
também para fazer de Juazeiro uma porta do céu e um
lugar de salvação para as almas, para a conversão dos pe-
cadores e perseverança dos justos (Inquérito I, p.19)9.

9 Em todas as citações que têm como fonte os Inquéritos I e II, apenas a ortografia foi
atualizada, conservando-se a construção das frases como no original.

43
Essa mulher pobre, negra, analfabeta foi, segundo muitos relatos,
objeto de fenômenos que se pode chamar de místicos. O então reitor
do Seminário da cidade do Crato, Mons. Monteiro, em carta ao Bispo
Dom Joaquim, relata alguns deles:

Vou narrar, vou ter a consolação Sr. Bispo, de narrar á V.


Excia. Rvma. fatos tão grandes que vi a olhos descober-
tos, no Joazeiro, conversando com Maria de Araújo so-
bre os tormentos de Nosso Senhor Jesus Cristo, que tive
pena, que coisas tão santas não fossem vistas pelo mun-
do inteiro!!! [...] rezava o meu Breviário na Capela do SS.
Sacramento, quando a Beata Maria de Araújo entrava para
fazer oração. [...] eu, por piedade, e pode ser, também, que
por um pouco de curiosidade, comecei a falar-lhe sobre
o sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, [...] e vejo na
testa uma cinta ensanguentada, e o sangue a correr pelo
rosto com tanta abundância, que lhe molhou a roupa; a
este choque sucedeu um êxtase, e logo com uma humil-
dade profunda de confundir, ela trata de retirar-se. Opus-
me, dizendo que Deus me havia feito testemunha daquele
caso e para a glória dele me explicasse o que aquilo era;
respondeu que Nosso Senhor ensanguentado, coroado de
espinhos, tirou a coroa sagrada e a colocou em sua cabe-
ça, dizendo: - aprende a amar-me. Monsenhor Monteiro.
Seminário de S. José, 20 de abril de 1890 (Inquérito I, p. 78).

Em 1886, em Quixará, hoje cidade de Farias Brito-CE, Padre Cícero


foi ao encontro de D. Joaquim que ali se encontrava em visita pastoral
para relatar-lhe fenômenos que já então observava na Beata e para os
quais buscava orientação do Bispo: exsudações sanguíneas, visões do
céu e do purgatório, revelações de eventos que posteriormente se rea-
lizavam, estigmas da crucificação nas mãos, nos pés, a coroa de espi-
nhos e a chaga no tórax. O Bispo o aconselhou que guardasse segredo,
pois poderiam ser fenômenos passageiros. Padre Cícero assim o fez
até que em 1º de março de 1889, ao dar-lhe a comunhão diante de di-
versas outras beatas e pessoas que se encontravam na Igreja, a hóstia

44
consagrada sangra. Publicamente. Não há mais segredo possível de ser
guardado. Era uma sexta-feira da quaresma e o fenômeno se repetiu
em todas as quartas e sextas-feiras da quaresma daquele ano e em al-
guns períodos dos 5 anos seguintes.
Conta Padre Cícero também ao Bispo Dom Joaquim:

Passei toda a noite confessando homens na Igreja onde


passarão também orando seis ou oito mulheres que fa-
ziam parte da irmandade; com pena delas interrompi o
trabalho para despachá-las dando-lhes a comunhão das
quatro e meia para cinco horas. Maria de Araújo que era
a primeira, a sagrada forma, logo que a depositei na boca,
imediatamente transformou-se em porção de sangue, que
uma parte ela engoliu servindo-lhe de comunhão e outra
correu pela toalha até o chão; [...] depois que depositei a
âmbula no Sacrário, ela vem entender-se comigo, cheia
de aflição e vexame de morte, trazendo a toalha dobrada,
para que não vissem e levantando a mão esquerda, aonde
nas costas havia caído um pouco do mesmo sangue que
corria pelo braço, e ela com temor de tocar com a outra
mão naquele sangue, como certa que era a mesma hóstia,
conservava um certo equilíbrio para não gotejar no chão.
Eu que conheço a sinceridade e simplicidade desta cria-
tura desde a idade de dez anos que a confesso, a confusão
de vexame como estava, nem se quer eu tinha dúvida da
verdade que via; [...] purifiquei o que havia nas mãos e
no braço [...] Alguma pessoa sempre viu alguma cousa e
não soube calar-se, mas eu fiz quanto pude para abafar
disfarçando o negócio; porém o fato continuou regular-
mente nas sextas e quartas-feiras e do sábado véspera do
Domingo da Paixão todos os dias até o dia da Ascenção do
Senhor inclusivamente quando então cessou, comungan-
do regularmente nas espécies de pão como era antes. Foi
tempo de sobra para eu ficar bem certo da verdade do que
via. Eu me conservei sempre no firme propósito de ocul-
tar tomando toda cautela para que não se visse, fazendo-
a comungar separada das outras (Inquérito I, p. 78).

45
O fenômeno do sangramento da hóstia, mais do que os outros fe-
nômenos místicos, causou uma verdadeira revolução no nordeste bra-
sileiro no fim do século XIX, estendendo-se até início do século XX.
Maria de Araújo era considerada santa por parcela da população nor-
destina que acorria a Juazeiro em romaria. A Igreja em Fortaleza e, por
extensão, no Vaticano, especificamente no Santo Ofício, não aceita-
ram como legítimas as ocorrências relatadas mesmo depois de muitas
averiguações realizadas por teólogos, médicos, farmacêuticos e nem
aceitaram o testemunho de milhares de pessoas que não se recusaram
a declarar e avalizar a veracidade dos fatos.
Em 1894 saiu o primeiro decreto do Santo Ofício que considerou
os fenômenos como “vãos e supersticiosos” e condenou a todos - lei-
gos ou membros do clero - que se aproximassem da Beata, dos pa-
nos ensanguentados ou do que sobre o assunto se escreveu, a graves
reprimendas.
A Igreja tudo fez para acabar com as romarias. Mas elas continua-
vam e, sempre, em primeiro lugar, visitavam o túmulo da Beata, antes
de continuar o percurso na cidade. Tanto que, ainda na tentativa de
acabar com as romarias e a memória da Beata, em 1930, na calada da
noite, seu túmulo foi retirado da Capela do Socorro, onde estava en-
terrada e seus restos mortais desapareceram. Nem assim as romarias
deixaram de acontecer. Mas deixou-se de falar nela. Mais do que isso,
muitos a consideraram embusteira, na trilha da Igreja hierárquica.
A presença, no entanto, desses romeiros e romeiras, ao longo dos
anos, na contramão da percepção e da perseguição eclesiástica, con-
tinuou pressionando quer a Igreja, quer a Academia, exigindo outros
olhares, outras teorias que respondessem às indagações que essa sim-
ples presença, na terra por eles e elas considerada sagrada, instigavam.
E assim se fez. Hoje Padre Cícero está às portas do Dicastério para
as Causas dos Santos, num processo de beatificação. E a Beata? Mulher,
pobre, analfabeta, feia, negra. Sequer foi citada na biografia que intro-
duz o processo de beatificação do Padre Cícero. Incômoda.

46
É POSSÍVEL ENTENDER A BEATA MARIA DE ARAÚJO COMO
MÍSTICA?
Há sempre o perigo de, ao analisar uma pessoa como mística, tirá-
-la da terra e colocá-la no céu, lugar de onde não pode incomodar nin-
guém, como a Igreja já procurou fazer com tantos místicos e místicas
ao longo da história. Sua independência em relação aos poderes terre-
nos - eclesiásticos ou não - sempre foi considerada um perigo para os
donos do poder. Mas é necessário, sim, colocá-la na terra, pés no chão,
e verificar se ela, como mística, se encaixa na abordagem dada pelo
Documento de Puebla e pelo livro “La Mística Popular” de J. Seibold
(2006).
Mística diz-se da profunda, familiar e íntima relação com Deus.
Uma experiência que transforma a vida de quem responde a Ele, como
transformou a vida da Beata Maria de Araújo. Mas além disso:

A teologia espiritual, mais concretamente a mística, tem


esse empreendimento primordial: ensinar o caminho do
encontro com Deus, que passa pela experiência de con-
templação e pelo serviço ao irmão e pelo compromisso
com a história (Garcia, 2002, p. 69).

De acordo com o Catecismo da Igreja Católica,

O progresso espiritual tende para a união cada vez mais


íntima com Cristo. Essa união chama-se “mística” porque
participa dos mistérios de Cristo pelos sacramentos - “os
santos mistérios” - e, n’Ele, no mistério da Santíssima
Trindade. Deus chama-nos a todos a esta íntima união
com Ele, mesmo que graças especiais ou sinais extraor-
dinários desta vida mística somente a alguns sejam con-
cedidos, para manifestar o dom gratuito feito a todos
(Catecismo da Igreja Católica, n. 2014)

47
A natureza por vezes dúbia do fenômeno místico, o mau uso que
dele foi feito por uns quantos e o caráter de autonomia que alguns mís-
ticos se autoimpuseram, originou o comportamento arredio da Igreja,
inclusive no caso de Maria de Araújo que foi taxada de embusteira, de
histérica e insana.
Zas Fris esclarece um outro aspecto da dificuldade de se entender
e aceitar a mística, ainda mais quando ela se dá no meio popular:

É tradicicional distinguir, em teologia, a vivência-expe-


riência da fé (fides quae) e a reflexão que se realiza como
consequência dela (fides qua). Quando a reflexão não é
acompanhada da experiência viva da fé, dá-se uma teo-
logia teórica e abstrata, desencarnada; mas, se a vivência
não é acompanhada do discernimento e da reflexão, é fá-
cil que se interprete as experiências de forma errada (Zas
Friz, in: Seibold, 2006, p. 19).

A questão é que em algum momento na história recente, deu-se a


separação entre a vida de fé do clero e a vida de fé do povo, portanto
entre a vivência e a reflexão e a religiosidade popular não coube mais
nos moldes da teologia “científica”, da mesma forma que esta não cou-
be mais nos moldes da vivência da fé do povo.
Nesse contexto, pode-se entender o impacto que as Conferências
Episcopais de Medellin e Puebla tiveram na América Latina, já que a
partir de então se tinha um instrumento teológico para interpretar a
experiência de fé popular e, por outro lado, o povo via refletida sua
experiência no seio da Igreja.

A religiosidade do povo, em seu núcleo, é um acervo de


valores que responde com sabedoria cristã às grandes in-
cógnitas da existência. A sapiência popular católica tem
uma capacidade de síntese vital; engloba criadoramente
o divino e o humano, Cristo e Maria, espírito e corpo, co-
munhão e instituição, pessoa e comunidade, fé e pátria,
inteligência e afeto (Documento de Puebla, n. 448)

48
Maria de Araújo faz essa síntese vital: une a vida da Igreja e a vida
do povo de Deus. Une o catolicismo oficial e o popular. Une a devoção
ao Sagrado Coração de Jesus, sangrante, ponta de lança do catolicismo
da época, às devoções populares, luso-brasileiras, à cristandade. Diz
que Jesus Cristo quer fazer do Juazeiro um lugar de salvação para as
almas que se converterem.
O aspecto sapiencial que tem a religiosidade popular, indicado
no Documento de Puebla e também em muitos outros autores, como
Seibold, Stolz, Splidik, é a sabedoria cristã que não é ensinada, mas que
é transmitida pela infusão do Espírito Santo e é ela que introduz os
fiéis propriamente na vida mística. Conforme Stolz (1952, p. 219): “O
dom da sabedoria acontece pela virtude da caridade. Este dom é muito
importante para a mística. O amor fundamenta o parentesco espiritual
com Deus; daqui brota o dom que induz a julgar tudo do ponto de vista
do divino”.
Não tenho dúvidas em afirmar esse dom em Maria de Araújo já
que muitos depoimentos sobre ela, especialmente de Padre Cícero, seu
diretor espiritual, sempre ressaltou a sua profunda dedicação à oração,
ao serviço com os pobres e órfãos.
Seibold nos fala da “presença sentida” que é quando a alma se es-
vazia de si mesma para ser totalmente possuída por Deus já que só
quer ser habitada e viver em seu Mistério. Mas a iniciativa desse movi-
mento não pertence ao fiel, mas é um dom de Deus, que o impulsiona
irresistivelmente para Ele. Para o místico, a suprema consagração a
Deus é receber em seu próprio corpo os sofrimentos, as dores, os flage-
los de Jesus Cristo. E Maria de Araújo foi contemplada com isso e dizia
da consolação para a alma que essa união tão íntima com Jesus lhe
proporcionava. Mas a vida mística não se conforma apenas com sentir
a presença de Deus, mas procura transformar-se n’Ele, pela proximi-
dade. O que Seibold chama de “amizade espiritual, fonte de não pou-

49
cas graças para o crescimento e a transformação espiritual em Deus”
(2006, p.112).
É na relação de amor com o próximo que essa “mística dos humil-
des” alcança sua plena afirmação. Segundo Seibold:

Um amor a Deus que não expresse com igual intensida-


de seu amor ao próximo, deixaria atrás de si uma grande
interrogação. Não se alcança o céu sem a construção do
Reino que o Senhor, com sua pessoa inaugurou e que dei-
xou, como tarefa, à Igreja (2006, p. 124).

Penso que não é demais quando insisto em demonstrar que a beata


Maria de Araújo tinha, como instrumento de Deus que era, a missão
de “transformar Juazeiro num lugar de salvação para as almas. Não
somente para ela, ou para Padre Cícero ou outros de sua relação de
amizade. Mas para todos os que quisessem se converter e aproveitar o
tempo de graça e de misericórdia anunciado a ela em seus colóquios
com Jesus. É uma “mística social” como apresenta Seibold, desenvol-
vida com autonomia, mas que não está desvinculada dos “valores de
transcendência que lhe dá a perspectiva do Reino onde se encontram
unificados o amor a Deus e ao próximo” (2006, p.33).

À GUISA DE CONCLUSÃO
Quando em 2014, completou-se 100 anos da morte da Beata Maria
de Araújo, Dom Fernando Panico que desde 2002 já iniciara o processo
de reconciliação da Igreja com Padre Cícero e que por causa disso já
conhecia suficientemente a sua história, em sua homilia, dizia:

Hoje celebramos o centenário da morte da Beata Maria


de Araújo. [...] [Ela] ainda hoje nos ensina, com o seu
exemplo e com a sua própria vida, o serviço da justiça e
da profecia do Reino de Deus. [...] [essa é] uma mensagem
que ainda merece ser escutada. [...] Ela, na sua profunda

50
fé, reconheceu […] naquela hóstia sagrada que se conver-
teu em sangue em sua boca, o sinal da misericórdia de
Deus que vem nos provar o seu amor, que perdoa a todos
através do sangue de Cristo. Maria de Araújo foi colocada
em situações para que ela negasse este fato. Ela preferiu
silenciar. É a mártir do silêncio! Ela passou por muitas
provações. Passou por sérias dificuldades: foi injustiçada,
foi ofendida na sua dignidade de mulher, mas ela tudo
suportou com e por amor. Que a Beata Maria de Araújo,
assim como o Padre Cícero nos ajude a todos para que a
nossa memória sobre eles, seja uma memória viva, uma
memória que transforme a nossa vida! (Panico, 2014).

Este é um Bispo que nos instiga a olhar a Beata em sua grandeza.


A reconhecer nela valores que a Igreja de antes dele não reconheceu e
que a Igreja de hoje não dá importância. Mais uma vez ela está sendo
apagada da história. Mas há esperança. Há um forte movimento popu-
lar para recuperar e preservar a memória da Beata através da arte, dos
encontros, das celebrações, das romarias. Isso nos salva.

REFERÊNCIAS
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Novíssima edição de acordo
com o texto oficial em latim. Brasília: CNBB; São Paulo: Loyola, 2013.

DOCUMENTO DE PUEBLA. Conclusões da Conferência de Puebla.


CELAM. São Paulo: Paulinas, 1998.

INQUÉRITO I. Cópia Authentica do processo instruido sobre os fac-


tos extraordinarios occorridos nesta povoação do Joaseiro. Inquéritos
I (1891) e II (1892).

GARCIA, C. Teologia Espiritual Contemporânea. Corrientes y pers-


pectivas. Burgos: Ed. Monte Carmelo, 2002.

NETO, LIRA. Padre Cícero – Poder, fé e Guerra no Sertão. São Paulo:


Companhia das Letras, 2009.

51
PANICO, Dom Fernando. HOMILIA DE DOM FERNANDO PANICO,
Bispo do Crato, na celebração da missa pelo centenário da morte da
Beata Maria de Araújo. 17.01.2014. Disponível em: https://historia-
dejuazeiro.blogspot.com/2014/01/homilia-de-dom-fernando-panico-
-bispo-do_21.html. Acesso em: 07 out. 2023.

PEIXOTO, A. Joazeiro do Cariri. Fortaleza, 1913.

SEIBOLD, J. La Mística Popular. México, Buena Prensa, 2006.

SPLIDÍK, T. Prefazione. In: JOHNSTON, William. Teologia mistica. La


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PARA SABER MAIS:


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WALKER, D. Maria de Araújo. A beata do milagre do Juazeiro. Juazeiro


do Norte: Ed. Ipesc/Urca. 1996.

52
MARIA
RITA
Irmã Dulce

Lucas Costa Monteiro10

INTRODUÇÃO: BIOGRAFIA
Maria Rita nasceu em 26 de maio de 1914, filha do dentista e pro-
fessor universitário Augusto Lopes Pontes e de Dulce de Souza Brito,
dona de casa. Sua família era de classe-média alta e de fortes contatos
com a política na Bahia seus antepassados eram ligados à política em
Salvador (Rocha, 2019, p. 19).
Seus pais se casaram cedo. Sua mãe ainda não tinha 18 anos quan-
do casou. O primeiro filho chamava-se Augusto (1913), Maria Rita era
a segunda (1914), Dulce Maria (1915), Aloysio (1918), Geraldo (1919) e
Regina (1921) (Rocha, 2019, p. 22). A matriarca Dulce faleceu de uma
hemorragia após o parto da última filha e a caçula faleceu dois meses
após o seu nascimento. Suas tias paternas, Georgina e Magdalena aju-
darão a criar os filhos do dentista Augusto com sua primeira mulher
Dulce, ensinarão a prática de orações e participação do movimento do
Apostolado do Coração de Jesus, algo que influenciará decisivamente
a vocação de Irmã Dulce para com os pobres (Rocha, 2019, p. 26-27).
Durante a infância, Maria Rita viveu de modo bem lúdico. Gostava
de brincar de boneca, de roda e empinar pipa (Godoy, 2019, p. 17). Ia

10 Doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco, Mestre


em Teologia pela Escola Superior de Teologia – EST, especialista em bioética pela Faculdade
SOBRESP e bacharel em teologia pela Faculdade Católica de Fortaleza.

53
ao futebol aos domingos com o seu pai e seu irmão mais velhos, tor-
nando-se uma torcedora assídua do Ypiranga e do artilheiro do time,
Popó. Certa vez sua tia Magdalena a chamou para entregar mantimen-
tos e roupas em um bairro pobre, fazendo a sobrinha ter seu primeiro
contato com os pobres e abandonar as brincadeiras com os irmãos,
bem como a frequência nos jogos de futebol. Foi neste contato com os
pobres e na participação diária da Missa que Maria Rita sentiu o desejo
de ser freira (Rocha, 2019, p. 30-31).
Maria Rita esperou terminar os estudos e se preparar para in-
gressar na vida religiosa. Mas enquanto não chegava o momento, saía
mais cedo de casa e ia participar da primeira Missa do dia na Igreja
de Santana antes de ir à escola diariamente. Na cabeça desta jovem
já havia a mentalidade de ver o rosto de Cristo nos pobres e doentes.
Depois de receber o diploma do colegial, decidiu entrar na congrega-
ção das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus,
em 8 de fevereiro de 1933. E foi em uma viagem de trem até Sergipe,
onde era localizado o convento. Anos depois, na profissão religiosa ela
mudou seu nome, e o fez em homenagem à sua mãe falecida: Irmã
Dulce (Godoy, 2019, p. 22-24).
Desde presidentes da república aos vendedores da feira, Irmã
Dulce sempre procurava um meio para pedir uma doação para os po-
bres que cuidava. Foi mal compreendida por suas irmãs de congrega-
ção porque achavam que ela devia estar mais dentro do convento do
que fora, ajudando os pobres e com a saúde sempre debilitada, devido
à má alimentação, noites mal dormidas e jejuns. Sempre teve a saúde
fragilizada (Passarelli, 2019, p. 212-213).
Fundou o Círculo Operário de Salvador e anos depois iniciou as
Obras Sociais Irmã Dulce (a obra tinha seu nome). Dali surgiu o hos-
pital Santo Antônio, considerado o coração das Obras Sociais Irmã
Dulce, em Salvador – BA (“Portal Obras Sociais Irmã Dulce”, [s.d.]). Seu
testemunho como religiosa a fez ganhar um título dado pelo povo: O

54
anjo bom da Bahia. Faleceu em 13 de março de 1992. Dulce não falava
de céu, pois seu tempo era encarnado na terra com sinais de eternida-
de porque o amor interliga tudo jamais se acaba (1Cor13,8) (Passarelli,
2019, p. 7-9).

UMA MÍSTICA PARA OS POBRES


Irmã Dulce era de uma mentalidade prática ao invés de teórica,
ao mesmo tempo distante de qualquer tendência político-partidária
e ideológica. Seu foco era somente viver de maneira radical o manda-
mento de Jesus em ajudar prontamente os mais necessitados. Certa
vez, numa entrevista, a religiosa falou que Deus não gosta dos insen-
síveis e a miséria é falta de amor entre a humanidade. A freira dizia
também que o seu partido era a pobreza (Passarelli, 2019, p. 116).
Muitas pessoas falavam mal dela pelo fato de proteger e defender
“os irmãos pobres”, como falava. Contudo a religiosa afirmava que só
convivendo com eles que as pessoas terão noção do quanto padecem
e necessitam do alento espiritual (Palavra de Deus) e de ajuda mate-
rial. Dizia isto pedindo donativos para ajudar essas pessoas a saírem da
condição de miséria (Passarelli, 2019, p. 79).
Ela é mística porque sua doação aos pobres era inspirada no
Evangelho, na mesma compaixão que Jesus (Mc 6,34-36) teve quando
viu a multidão sofrida:

Assim que ele desembarcou, viu uma grande multidão e


ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam como
ovelhas sem pastor. E começou a ensinar-lhes muitas coi-
sas. Sendo a hora já muito avançada, os discípulos aproxi-
maram-se dele e disseram: “O lugar é deserto e a hora já
muito avançada. Despede-os para que vão aos campos e
povoados vizinhos e comprem para si o que comer”. Jesus
lhes respondeu: “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Bíblia
de Jerusalém, 2002).

55
O Bom Pastor não somente se compadece da multidão, mas man-
da alimentá-los sobre a grama verde e saciá-los com cinco pães e dois
peixes, isto é, aquele que dá vida em abundância a todos (Jo 10,10).
Dulce era uma religiosa que deixava ser interpelada pela realidade
que a rodeava, se solidarizando concretamente em prol das pessoas
com, assim como fazia Jesus (Correia Júnior; Gameleira Soares, 2016,
p. 53). Ela buscava de alguma forma restaurar a vida de cada uma que
a encontrava pedindo ajuda, moribundos em qualquer momento ou
espaço. Fazia conforme a espiritualidade fértil do Nazareno, capaz
de gerar vidas ao invés de permanecer num intimismo que só reflete
egoísmo (Correia Júnior; Gameleira Soares, 2016, p. 61-62).
Quando conhecemos o testemunho de caridade nesta freira nor-
destina é perceptível notar nela o valor da alteridade. Correia Junior e
Nilo Ribeiro vão descrever como amor-cuidado ou como uma expres-
são da condição frágil e vulnerável, por se tratar do amor que cuida
do outro, das suas fragilidades. Por isso é que o cuidado requer preo-
cupação pela vulnerabilidade do outro para que este seja protegido e
promovido (Correia Júnior; Gameleira Soares, 2013, p. 52-53).
Dulce dizia que preferia trabalhar em silêncio, fazendo a caridade
e não falar da caridade. Ela não gostava de falar de si, mas das obras
que administrava com a intenção de atrair donativos. A freira enfatiza-
va que o amor é mais importante do que a esmola dada momentanea-
mente (PASSARELLI, 2019, p. 182-183).
Por ser devota de Santo Antônio, Irmã Dulce tinha uma inspiração
franciscana bem florescida em seu interior, ela foi uma freira contem-
plativa. Mas a sua dimensão de espiritualidade era a contemplação na
ação. Para isso é necessária uma entrega total a Deus e o compromisso
com o seu Reino (Correia Júnior; Gameleira Soares, p. 81-82). A prova
disso é o seu amor esponsal a Cristo como religiosa e sua opção prefe-
rencial pelos pobres.

56
Um fato ocorrido antes dela entrar no convento foi quando estava
no trem, partindo para Sergipe e viu um homem pobre necessitado de
uma passagem para ir à sua terra. Contudo o segurança do transporte
o impediu de entrar mandando-o embora. A jovem, que ainda se cha-
mava Maria Rita, enfrentou o guarda afirmando que aquele homem
era seu irmão e pagou a passagem dele. Ali ela é definida por aquele
maltrapilho como “anjo do Senhor”, (Godoy, 2019, p. 26-27) não por-
que estava com asas, mas por concretizar o amor de Deus ajudando-o.
O amor e o perdão correspondem a atitudes que são movidas uma
pela outra. E dentro da mística cristã as atitudes mais desafiadoras a
ser vivida é a de dar a outra face (Lc 6,29), se alegrar quando estiver na
perseguição (Lc 6,23), ou ficar contente por sofrer agressões físicas por
causa do nome de Jesus (At 5,41). É sobre o perdão sincero e a resiliên-
cia que Irmã Dulce vivia diariamente e em continuar seguindo firme
no propósito de continuar ajudando os pobres, sempre na Comunhão
Eucarística diária e no jejum. E as humilhações não foram poucas, bem
como a necessidade de ser mansa e paciente. Cuidar dos mais neces-
sitados não é fácil, mas Irmã Dulce, em alguns dos seus escritos parti-
culares descreveu que através da contemplação de Cristo presente no
sofredor é que conseguiremos amá-lo,

O pobre, o doente, aquele que sofre, o abandonado, é a


imagem de Cristo. Se virmos o pobre com esses olhos, o
seu exterior, o estar sujo, cheio de parasitas, com gran-
des chagas, não nos incomodará, pois na sua pessoa está
presente o Cristo sofredor. Somente quem convive com o
pobre pode compreendê-lo. Muita gente pensa que faço
muito, que concedo muita atenção aos pobres e me criti-
cam por isso (Passarelli, 2019, p. 94).

É radicalmente notória a vivência da passagem bíblica do


Evangelho de Mateus, onde mostra nitidamente como o crente será
salvo: se fizer o bem aos mais necessitados, é a Jesus que fará, esteja

57
ele com fome, sede, nu, doente ou se for estrangeiro. Os benditos do
Pai não são os que se preocupam com cargos, carreiras e visibilidade
dentro da Igreja, mas os que têm essas práticas de vida (Mt25,32-45).
Um detalhe importante é que, além de estar convicta da sua missão,
também trazia consigo outra característica da caridade: a paciência
(1Cor13, 4). Certa vez foi dar uma sopa a um doente recolhido na rua,
totalmente abandonado. Depois que ele tomou a primeira colherada,
cuspiu a comida na cara da religiosa e ela, pacientemente deu a segun-
da colherada dizendo: “a primeira é a minha, a segunda é sua. Coma,
que vai fazer bem para você” (Passarelli, 2019, p. 94-95).
A religiosa sempre dizia o motivo da força do seu intenso apos-
tolado: a oração, em todo tempo e lugar, até mesmo dormindo. Para
ela, a oração era o alimento da alma. Sem a oração não é possível fazer
nada, pois é por meio dela que se obtém as graças de Deus para ajudar
os mais pobres, já que os seres humanos são criaturas falhas e passí-
veis de erros (Passarelli, 2019, 130).
Na década de 1950, a freira era chamada popularmente de “pido-
na”, algo pejorativo. Algumas vezes era maltratada por isso. Ela escre-
via muita carta fazendo pedidos para muita gente que tinha condições
de ajudar. Entretanto recebeu muito mais ajuda do que rejeição, sendo
ajudada por pessoas de todos as instâncias, seja dos governos, empre-
sários e feirantes (Rocha, 2019, p. 94).
Um dos episódios inusitados foi quando o dono de um supermer-
cado, Mamede Paes Mendonça, ficou furioso ao saber que os fardos de
alimentos amontoados seriam doados à Irmã Dulce, mandando guar-
dar no estoque toda aquela mercadoria. Anos mais tarde o mesmo se
aproximou da religiosa e tornou-se um dos grandes benfeitores das
Obras Sociais Irmã Dulce, chegando a ser conselheiro da instituição
(Rocha, 2019, p. 94). Possamos recordar um outro fato quando a reli-
giosa estava pedindo esmolas,

58
Acontecia, então, que ela lançava mão de tudo e, um dia,
ao entrar numa loja, pediu: “O senhor pode me dar algu-
ma coisa para os meus pobres? ”, e estendeu a mão. Como
resposta, o homem lhe deu uma cusparada. Dulce não se
perturbou; ao contrário, ela respondeu-lhe com tranqui-
lidade: “Meu senhor, isso é para mim... Agora dê alguma
coisa para os meus pobres”. O homem olhou-a atônito,
mas para não deixar transparecer o seu embaraço, reagiu
com violência: “Saia daqui imediatamente “! (Passarelli,
2019, p. 100).

Dulce ofereceu ao Crucificado aquela humilhação e deu graças pelo


que havia passado. Algum tempo depois têm-se notícia que o mesmo
homem que havia cometido tal atitude se arrependeu e tornou-se ben-
feitor das obras de Irmã Dulce.
Eis um grande ensinamento através do próprio testemunho de
vida a respeito da caridade e do perdão inspirados pelo alimento pri-
mordial da oração. Diariamente Irmã Dulce se alimentava espiritual-
mente, além das orações comunitárias, da recitação da Via Sacra, uma
devoção que aproximava sua relação com os mais pobres e sofredores
que acorriam a ela como protetora (Passarelli, 2019, p. 101).
Por causa da fé vivida concretamente em seu cotidiano, Irmã Dulce
sabia viver com alegria seja através da carícia de uma criança como a
recuperação de um delinquente, ou a cura de um doente. Ela não fazia
distinção do amor, pois sua caridade era feita de modo desinteressado
(Passarelli, 2019, p. 133).

LEGADOS PARA A SOCIEDADE


O grande legado para a sociedade deixado por Irmã Dulce são as
Obras Sociais que fundara a partir do Círculo Operário que iniciara, na
década de 1940. Vinham muitas pessoas doentes para que Irmã Dulce
cuidasse no convento. Contudo as obras sociais nasceram no dia 26 de
maio de 1959, fruto de uma caminhada de oblação e amor da religiosa

59
aos mais necessitados. Atualmente as OSIDs possuem dezenas de nú-
cleos espalhados pelo estado da Bahia, promovendo integralmente a
vida da população (OSID, 2023).
Daí surgiu a ideia de pedir à madre superiora o galinheiro para
cuidar melhor deles. Eram em torno de 70 doentes os que foram res-
gatados das ruas de Salvador, no Albergue Santo Antônio, inaugurado
em 1963. Na década de 1980 foi inaugurado o Hospital Santo Antônio,
atualmente uma das maiores e mais bem equipadas unidades de saúde
do Nordeste do país. É um complexo hospitalar que se tornou referên-
cia para outros estados, com milhares de internações e cirurgias feitas
anualmente, bem como atendimento em dezenas de especialidades.
Um dos maiores hospitais da Bahia nasceu de um galinheiro (OSID,
2023a). A sede das Obras Sociais Irmã Dulce (OSID), em Salvador,
possui uma área construída de 40 mil metros quadrados de uma rede
hospitalar e possui quatro hospitais em áreas distintas, vinculadas ao
governo do estado da Bahia: Hospital Sagrada Família, uma unidade
que se tornou referência no período da pandemia, atendendo pacien-
tes com COVID-19; Hospital Metropolitano, que atende em casos de
urgência e emergência; Hospital Regional de Juazeiro, especialista em
pronto em atendimento; Hospital Paulo Afonso, regulado pelo SAMU
(OSID, 2023).
Além da rede hospitalar, possui o ambulatório José Sarney, prin-
cipal porta de entrada para as OSID, oferecendo a todos que acorriam
para buscar serviço de saúde gratuito. Centros de reabilitação para
portadores de necessidades especiais, Centro de tratamento para de-
pendentes de bebidas alcoólica, Centro Exames de Bioimagem em la-
boratórios e o Centro de convivência social Irmã Dulce, cujo foco é
assistência para adictos e fortalecimento da cidadania, instigando à
arte, cultura e educação, bem como a economia solidária e geração de
renda própria (OSID, 2023b).

60
Por causa do legado deixado, existe um projeto que visa inscrever
Santa Dulce dos Pobres no Livro dos Heróis da Pátria, um volume que
homenageia brasileiros que dedicaram sua vida à defesa e construção
do país com heroísmo. A religiosa foi a primeira santa genuinamente
brasileira, algo diretamente ligado ao que fizera em toda sua vida: o
trabalho com os pobres e doentes e as obras sociais construídas por ela
através da doação que pedia às pessoas (OSID, 2023b).
Além de doentes e mendigos, Dulce também se preocupou com os
jovens e fundou um Centro Educacional para eles saírem daquela rea-
lidade de capitães da areia e ter uma vida digna e inserida na socieda-
de. Dentre inúmeros relatos de jovens delinquentes que entraram no
Centro Educacional Santo Antônio, também fundado por Irmã Dulce
temos o do “Tio Correia”. Este garoto, aos seis anos de idade presen-
ciou o pai esfaqueando a mãe. Chegou no Colégio bastante revoltado
e agressivo. Mas lá, com bastante paciência, Irmã Dulce foi aconse-
lhando e oferecendo afetos que estavam ausentes em sua vida. Outro
depoimento foi de Antônio Passos, que foi criado pela freira devido à
condição econômica da família. Lá estudou todo ensino básico e na
fase adulta se formou em contabilidade. Gilson Borges da Silva deu um
depoimento que a religiosa o acolhera no Centro Educacional, pois a
família era desestruturada e ajudou a promover sua vida (Pontes, 1988,
p. 70-71).

ATUALIDADE DESSA EXPERIÊNCIA MÍSTICA


Irmã Dulce antecipou uma época que se está vivendo na atuali-
dade, em que as religiosas podem ficar longe da Congregação, na mis-
são com os mais pobres. Foi uma grande dor espiritual passar anos de
sua vida exclaustrada de sua congregação por causa das obras sociais.
Mesmo assim ela aceitou a situação em oração e sem deixar de traba-
lhar para os mais pobres. Anos depois retornou ao convívio.

61
Nos encontros das Conferências Episcopais Latino-Americanas,
foi falada que a expressão da “opção preferencial pelos pobres” passa
não somente pelos gestos de esmola, mutirão de refeições ou quais-
quer ações solidárias, mas pela intensa luta para que as estruturas da
sociedade mudem para promover os mais pobres, aqueles que se en-
contram caídos. Este amor desinteressado é a maior apresentação da
Boa-Nova do Reino (Aquino Júnior, 2018, p. 69-70).
Diante da menção acima, podemos perceber que Irmã Dulce já se
adiantou em sua prática pastoral, até antes mesmo do grande evento
eclesial, Concílio Vaticano II acontecer e mais à frente as Conferências
Latino-Americanas e o pontificado do Papa Francisco, onde o pontífice
falou que desejava uma Igreja em saída para as periferias, pobre para
os pobres (Aquino Júnior, 2017, p. 21). Ela foi à frente do seu tempo
porque se antecipou em viver o apelo de Jesus diante daquela realida-
de das periferias de Salvador, na Bahia. Conforme o Documento 84 da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, “a comunhão eclesial não
se fecha em si mesma, mas torna-se fermento de relações novas den-
tro da sociedade humana. ” (CNBB, 2005, p. 30). Isto também podemos
constatar no apostolado da religiosa, fermento na sociedade.

CONCLUSÃO
Foi contemplando a realidade cruel daqueles pobres que Maria
Rita quis tornar-se religiosa como Irmã Dulce. Como já dissera o Papa
Bento XVI, na Encíclica Deus Caritas est, nº 16 “o amor ao próximo
é uma estrada para encontrar também a Deus, e que fechar os olhos
diante do próximo torna-os cegos também diante de Deus” (Bento XVI,
2006, p. 23). Por isso é que as pessoas viam nela um anjo do Senhor
(Passarelli, 2019, p. 30), anjo da guarda (Passarelli, 2019, p. 193), mãe
dos pobres e desvalidos (Pontes, 1988, p. 152), doce irmã de todos nós,
envidada de Deus à terra (Pontes, 1988, p. 54-55), sem preconceitos

62
religiosos e acolhendo todas as pessoas no seu Hospital (Pontes, 1988,
p. 105) numa época bastante conservadora com políticas etiquetas so-
ciais ainda excludentes.
Irmã Dulce foi canonizada pelo Papa Francisco no dia 13 de ou-
tubro de 2019 e passou a ser chamada oficialmente de Santa Dulce
dos Pobres (Passarelli, 2019, 222). O Papa João Paulo II, quando se en-
controu com ela, disse: “Continue, Irmã Dulce, continue” (Passarelli,
2019, p. 192). Ao depararmos com a vida desta mulher, religiosa, que
enfrentou os desafios e adversidades de sua missão com mansidão e
paciência, acolhendo preferencialmente os mais pobres da periferia
do Recôncavo Baiano, podemos nos perguntar se é preciso continuar
como estamos ou recomeçar uma caminhada cristã mais encarnada na
realidade, ajudando os mais necessitados à luz da espiritualidade de
Jesus, sendo bons samaritanos.

REFERÊNCIAS
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dade. São Paulo: Paulinas, 2017.

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2006.

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63
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PASSARELLI, G. Santa Dulce dos pobres: o anjo bom do Brasil. 4a


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ROCHA, G. Irmã Dulce: a santa dos pobres. 2a edição ed. São Paulo:
Planeta, 2019.

64
II

MÍSTICOS(AS) LIGADOS(AS)
À INSTITUIÇÃO ECLESIAL

CAETANO MINETTE DE TILESSE


Padre Caetano

HELDER PESSOA CAMARA


Dom Helder

JERÔNIMO DE CARVALHO SILVA GUEIROS


Pastor Jerônimo

JOAQUIM ARNÓBIO DE ANDRADE


Padre Arnóbio

MARCELO PINTO CARVALHEIRA


Dom Marcelo

65
CAETANO
MINETTE
DE
TILESSE
Padre Caetano

Luciene Lima Gonçalves11


Fabrício Wagner do Nascimento Cavalcante12

INTRODUÇÃO
A experiência de uma relação única do ser humano com Deus é de-
finida na teologia cristã como mística, como uma percepção de Deus,
uma experiência. Nesse sentido, é válida a pergunta: o que é um mís-
tico? A resposta necessariamente se encaminha para apontar alguém
que teve uma profunda experiência de Deus, sente a presença de Deus
em seu interior e é tomado por uma mudança existencial que transfor-
ma toda a sua vida.
Com base nessa ideia de mística, elenca-se agora alguns elemen-
tos da vida de Pe. Caetano Minette de Tillesse que permitem a afir-
mação de ser ele um místico dos tempos atuais. Pe. Caetano passou
pela reclusão de um mosteiro de estrita observância por vinte e dois
anos. Depois, movido pelos ventos renovadores do Concílio Vaticano
II, decidiu fazer uma experiência diferente no continente sul-ameri-
cano. Inserido no meio do povo pobre aprendeu a simplicidade da fé

11 Mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Doutoranda


em Ciências da Religião pela mesma universidade.
12 Graduado em filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza. Graduado em Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Mestrando em Comunicação Social pela PUC Minas.

66
do povo, aprendeu e ensinou como viver a experiência da consagração
batismal, a de ser mergulhado na vida nova em Cristo e não reter nada
para si, abandonando-se em Deus.
Quando alguém vive vinte e dois anos uma experiência profun-
da de silêncio num mosteiro trapista de estrita observância, o silêncio
e a oração tornam-se uma necessidade sem a qual é difícil viver. Pe.
Caetano foi marcado de maneira indelével por essa experiência. Seu
tempo era dedicado a oração cotidiana, a meditação da palavra, a es-
cuta da voz de Deus que fala por vários meios. Viver, para ele, era estar
em uma sintonia constante com Deus, em todas as situações da vida,
ser sensível aos apelos profundos do Espírito Santo.
Pe. Caetano ingressou no Mosteiro Cisterciense de Orval, Bélgica,
em 11 de fevereiro de 1946, logo após ter vivido a experiência mar-
cante da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e ter lido as obras li-
terárias de Thomas Merton, famoso monge cisterciense (1915-1968).
Entrou muito jovem na vida religiosa, tinha 21 anos de idade. Segundo
testemunharam as religiosas e os religiosos mais antigos do Instituto
Religioso Nova Jerusalém, ele afirmou que desde cedo sonhava em ser
missionário no continente africano e trabalhar com os pobres (Lima,
2016, p. 45).
Os vinte e dois anos passados no mosteiro lhe garantiram uma
rígida disciplina monástica. Acordava muito cedo para rezar na cape-
linha dedicada a São José. Pe. Caetano gostava de usufruir do silêncio.
Muitos membros do Instituto recordam, eu inclusive, que ele ficava
das cinco às seis horas da manhã rezando em silêncio. Ele sempre fala-
va que a oração deveria ser passiva, que é Deus pelo Espírito Santo que
ora em nós. Então nosso trabalho interior deve ser o de deixar Deus
nos visitar. Quando perguntávamos sobre como era essa oração passi-
va, ele nos mostrava uma jangada no mar e como ela se deixava con-
duzir pelo vento. Assim, o Espírito Santo deveria nos guiar para onde
Ele quisesse. Sempre nos falava da oração passiva, de deixar Deus ser

67
o condutor e nos deixar ser conduzidos e de nos abandonar em Deus.
Pe. Caetano falava com muita simplicidade da oração, da experiência
com Deus. Ele nos perguntava se estávamos indo visitar o Senhor e
como estava nosso relacionamento com Ele, se brigávamos com Deus,
contávamos nossas dificuldades, nossos medos, angústias.
Pe. Caetano compreendia a experiência com Deus de uma maneira
extremamente simples e, portanto, era capaz de ser vivida por todos os
batizados e batizadas. Para ele, a relação com Deus exige do ser huma-
no uma entrega total e incondicional, o ser humano necessita “topar
com Deus”. Pe. Caetano nos falava desse topar com Deus como um
esbarrar, estamos caminhando e nos chocamos contra o outro. Esse
acontecimento nos faz rever nosso caminho, nos afeta diretamente.
Pe. Caetano vivenciou uma experiência com o Espírito Santo atra-
vés do Movimento de Renovação Carismática Católica (RCC)13 em
Fortaleza. Para ele, as pessoas estavam sendo dóceis à ação do Espírito
Santo e, por isso, todas aquelas experiências estavam acontecendo:
falar em línguas, curas, e o mais significativo: um grande reavivar do
Espírito Santo na Igreja. Era um novo Pentecostes ocorrendo na co-
munidade dos fiéis da Paróquia de Cristo Redentor. Apesar de ser um
homem extremamente racional, estudioso da Sagrada Escritura, ele
sempre estava muito disponível aos novos ventos do Espírito que sem-
pre eram anunciados na Palavra de Deus. Para nosso fundador, a RCC
redescobriu o poder vivificante do Cristo Ressuscitado e ressuscitante
que trouxe de volta a alegria comunicativa da celebração eclesial. Para
ele, toda experiência pessoal tem ressonâncias diretas na vida eclesial.
O desejo de que todos os cristãos e cristãs tivessem uma expe-
riência profunda com Deus levou Pe. Caetano, após a experiência com
a RCC, a elaborar no formato de um seminário de doze semanas, Um
Novo Seminário de Oração no Espírito Santo. Trata-se de uma tradu-

13 Doravante indicada apenas pela sigla RCC.

68
ção portuguesa do estudo de Jacques Serr: La prière Du coeur, redi-
gido em 1960 e publicado em 1977 na Collection Spiritualité oriental
e vie monastique. Ele pediu autorização aos editores para fazer a tra-
dução e fazer acréscimos na obra. Ele adicionou notas explicativas
e textos bíblicos para uma oração cotidiana a ser realizada em doze
semanas. Segundo ele, o Novo Seminário é uma verdadeira escola de
oração pessoal e comunitária. Esse seminário está fundado na prática
espiritual de oração bastante difundida na Igreja Oriental e na Igreja
Ortodoxa russa em particular, chamada de: Oração de Jesus, ou Oração
do Coração, trata-se de invocar o nome de Jesus (1Tes 5,17; Lc 18,1).
Essa prática vem dos padres do deserto: Macário e Evágrio. Há quem
acredite que tenha origem apostólica, nos textos paulinos que exor-
tam a orar sem cessar invocando o nome de Jesus. A primeira parte
do seminário é denominada “Deificação pessoal” e corresponde ao
aprofundamento da experiência pessoal com Jesus; a segunda parte
é chamada “Crescimento eclesial” e diz respeito ao momento de ex-
perimentar esse encontro íntimo com Jesus em comunidade, mas com
o cuidado de não incorrer no intimismo e no isolamento. Essa oração
de Jesus é eclesial, abre aos batizados a obra de salvação de Jesus que
teve compaixão da multidão sofredora. Assim, os que se aproximam de
Jesus devem necessariamente acolher os que padecem neste mundo.
Outro momento marcante na vida do Pe. Caetano é o período dos
últimos anos de sua vida. Ele experimenta um grave quadro de saúde
com várias enfermidades: artrose, Parkinson, acarretando a amputa-
ção de uma de suas pernas, deixando-o acamado, tendo que ser cuida-
do diariamente por irmãs e irmãos. Sua saúde se agrava dia após dia.
Suas dores se multiplicam. Um fato que impressionou a todos foi que
logo depois de ter sua perna amputada, Pe. Caetano deixou de falar por
decisão sua. Não havia nenhum impedimento físico que o impossibili-
tasse. Até sua morte, não disse uma única palavra de lamento, de quei-
xa, de reclamação pelas terríveis dores que sentia pelas escaras que

69
atingiram suas costas, nádegas, o tronco da perna retirada. Olhávamos
e víamos a profecia do Servo sofredor de Isaias 53,4: “homem de dores,
experimentado no sofrimento”. Durante esses dois anos, foram várias
as internações e as complicações. A debilidade física se abateu sobre
ele. Teve que ser sondado para que fosse ministradas medicação e ali-
mentação. Seu quarto foi transformado em um leito de hospital para
melhor atendê-lo clinicamente. Em meio a tudo isso, seu olhar sereno
nos transmitia uma profunda paz, nunca houve desespero em sua face.
Ao olhá-lo, experimentávamos o mistério da Paixão de Jesus. Não se
pode compreender, só contemplar e unir seu sofrimento ao de toda a
humanidade. Ele faleceu na passagem do ano de 2009 para 2010. Nós,
irmãs e irmãos, nunca o deixamos sozinho, nem mesmo na Unidade de
Terapia Intensiva (UTI). Acompanhamos todo o seu calvário até a sua
entrega definitiva, seu retorno aos braços do Criador, na festa da Mãe
de Deus. Assim como Maria esteve junto a Jesus na cruz, esteve com
Pe. Caetano segurando-o em suas mãos para levá-lo até seu filho Jesus.

BREVE HISTÓRICO DA VIDA DO PADRE CAETANO


A história de um príncipe14 bem que poderia começar com a fa-
mosa expressão “era uma vez...” Afinal, durante anos as muitas crian-
ças dos anos 1980 – hoje pais e mães de família da Paróquia Cristo
Redentor – tinham essa imagem do Pe. Caetano. Relatos, verídicos ou
não, davam conta de afirmar que o Padre alto, da voz enrolada e que
colocava as crianças do bairro em seu carro para ir até a Igreja Matriz,
era um príncipe.
Fato é que a família do Pe. Caetano descendia da nobreza belga.
Nascido em 07 de junho de 1925, o segundo filho de Georges Minette
de Tiliesse e Augusta de la Zangry e Baronne é natural de Neder-

14 O autor de músicas William Santiago, membro da Paróquia de Cristo Redentor, compôs


uma música em homenagem ao Pe. Caetano que relata essa figura imaginária do padre para
as crianças.

70
Okkerzeel, uma cidade perto de Bruxelas, Bélgica. Herdou de sua famí-
lia a educação, além de ter sofrido os males de uma guerra, especifica-
mente a segunda guerra mundial. A família teve os bens confiscados e,
como narrava o padre em alguns de seus relatos em aulas com irmãs
e irmãos do Instituto Religioso Nova Jerusalém, teve que fugir de sua
casa por meio de uma bicicleta.
Anos depois, o jovem Gaetan Minette de Tilesse, de forma volun-
tária, se torna um combatente na longa e dilacerante guerra. Segundo
ele relatava, no campo de guerra, ao ver seu primo e amigo falecer,
decide entregar sua vida a Deus. No solo da morte, o jovem soldado
721015, inicia internamente seu caminho na experiência do Cristo
Ressuscitado. Esse caminho se iniciará junto aos monges cistercien-
ses, na Bélgica, onde dedicou 22 anos de sua vida.
Em 11 de fevereiro de 194616, entra para o Mosteiro Cisterciense
trapista de Orval, onde fica até março de 1968. A vida monástica lhe
proporcionou a experiência com o silêncio e a contemplação, além de
lhe dar a formação em filosofia e teologia. Mas foi em Roma que seu
caminho de especialização e aprofundamento na Sagrada Escritura
se solidificou17. Em 1952, enviado por seus superiores, foi à Roma e
consegue sua licenciatura em teologia, assim como, a licenciatura em
Bíblia18. Ao retornar para Orval, se dedica a lecionar as disciplinas de
Bíblia, além de liturgia, para seus confrades.

15 Número de registro de combatente do jovem Gaetan, no exército belga. Vale ressaltar


que, mesmo tendo recebido três condecorações importantes, a guerra para ele não tinha
um aspecto de louros. É possível perceber em sua leitura teológica da história suas dores e
dissabores sobre esse marco negativo para o cristianismo, assim como para todo o mundo.
16 Em 19 de março de 1946, recebeu o hábito de noviço e passou a ser chamado por Frère
(irmão) Marie-Georges. O nome de religioso é uma homenagem a seu pai. Seus votos simples
datam de 25 de março de 1948 e, na mesma data, no ano de 1951 faz seus votos perpétuos.
Fora ordenado, na Catedral da Diocese de Namur, em 26 de julho de 1953.
17 Seu interesse e amor pela Sagrada Escritura chamou atenção de seus superiores quando
ainda estava no noviciado. Já nos seis primeiros meses de noviço, leu, por conta própria,
toda a Bíblia.
18 Em 1954 ingressou no Pontifício Instituto Bíblico. A licenciatura equivale ao que,
atualmente, se chama de mestrado.

71
Nesse período seu amor e dedicação à Sagrada Escritura, já re-
conhecida entre os estudiosos e seus confrades, cresce ainda mais19.
Um ponto relevante, em seu caminho de estudo bíblico, é que, mesmo
abraçando o evangelho de Marcos como seu objeto de pesquisa, fora
enviado par estudar Antigo e Novo Testamento, já que Orval não tinha
condições de enviar dois religiosos.
Dois pontos na formação e serviço de Pe. Caetano serviram de ali-
cerce para seu caminho. Primeiro, o tempo em que lecionou Antigo
e Novo Testamentos no mosteiro deu ao Padre uma visão global da
Escritura Sagrada. Isso lhe conferiu uma compreensão própria e sin-
gular da relação entre as duas partes da Bíblia20. O outro fator prepon-
derante e norteador é que sua estada em Roma é marcada pelo espírito
do aggiornamento que já pairava e que daria forma, anos depois, ao
Concílio Vaticano II.
Esse tempo de aprofundamento na Palavra, com seus irmãos, to-
cada pelos ventos do Concílio Vaticano II, o fez abraçar a ideia21 de
buscar uma nova experiência entre os mais pobres, fora do continente
europeu – ou de toda cultura que fosse mais próxima de suas raízes.
Iniciaram, ainda em 1967, as conversas que dariam impulso à missão
e um curso intensivo de português. Foi assim que, em março de 1968,
Pe. Caetano, junto de seu confrade Pe. Norberto Gorrissen, chegou ao
Brasil.

19 Entre os anos 1962 e 1968, lança várias publicações em revistas conceituadas de teologia
e estudos bíblicos. Entre elas sua tese de licenciatura intitulada “O Segredo Messiânico em
São Marcos”. A tese é, ainda na atualidade, uma importante referência para os pesquisadores
no Evangelho de Marcos.
20 Ainda que controversa, uma das metas de estudo do Pe. Caetano, repassada como
objetivo comum para os membros da Nova Jerusalém, é a busca por uma teologia bíblica.
Uma teologia – ou linha teológica – que esteja presente desde os textos mais antigos da
Escritura e que alcance os mais recentes do Antigo Testamento.
21 Depois do Concílio, em comunidade, os monges de Orval fizeram um estudo sobre a
possibilidade de uma fundação nova, moldada com os ares e contribuições de uma vida
mais próxima dos pobres. Foi com esse primeiro objetivo que os Padres Caetano e Norberto
vieram ao Brasil.

72
A primeira parada se deu em Salvador-BA, onde passaram oito
meses no mosteiro de São Bento e trabalharam na evangelização da
favela do Pau Miúdo. Mas já, em novembro do mesmo ano, chegavam
às areias do Pirambu22. Ao encontrar um povo pobre, com condições
precárias e subumanas, Pe. Caetano lutou por uma reforma social, mo-
tivada pelas ideias de justiça e reinado de Deus da Sagrada Escritura.
Para o pensamento de Pe. Caetano, a vida de fé não se separa da vida
social. O homem de fé vive na sociedade sua expressão de pertença a
Deus e constrói em comunidade o seu reino.
No tocante à vida eclesial, já em janeiro de 1969, é criada a Paróquia
do Cristo Redentor. Padre Caetano, fundador da paróquia, é designa-
do pároco e Pe. Norberto designado vigário paroquial. Nesse período,
como ainda não havia uma Igreja Matriz, as celebrações aconteciam
no Ginásio Monsenhor Hélio Campos. À medida que o trabalho de
evangelização crescia, a paróquia ganhava novas comunidades e todo
o cenário urbano ganhava um novo arranjo.
Ainda imbuído pelo espírito de engajamento social, observou o
número relevante de crianças não assumidas integralmente ou até
abandonadas por suas famílias23. Para ajudar nessa situação, fundou,
no dia 12 de outubro de 1969, a Comunidade Infantil Cristo Redentor.
O projeto vivia das muitas doações que chegavam de vários lugares do
Ceará e, de acordo com as possibilidades, do salário daqueles que já
tinham condições e oportunidade de um emprego24. De acordo com a

22 O Pirambú, na década dos anos 1960, era apontada como uma das maiores favelas da
América Latina. O território, atualmente, é ocupado por vários bairros e comunidades – que
foram mudando de nome no decorrer dos anos.
23 Não há um levantamento oficial da época. O que se tem de dados, desse período, tem
como fonte o Jornal Unitário (Lima, 2016, p. 76).
24 O que se relata sobre a Comunidade, também conhecida popularmente como Casa do
Menor, era que todos deviam se sentir responsáveis uns pelos outros e, consequentemente,
pelo bem comum. Tudo era partilhado, até mesmo os cuidados dos mais velhos para com
os mais novos. A ideia era que não se sentissem num orfanato, mas numa verdadeira
comunidade.

73
realidade particular das crianças, algumas foram adotadas e assumidas
civilmente como filhas do padre25.
Em janeiro de 1981, em um retiro realizado entre os dias 11 e 16 de
janeiro, funda o Instituto Religioso Nova Jerusalém. A inspiração para
a fundação abraça a proposta inicial de sua vinda ao Brasil, uma nova
experiência e expressão de vida monástica, no meio dos pobres e a ser-
viço deles. Um aspecto relevante e essencial para essa nova fundação
é que ela se torna mista26, acolhendo homens e mulheres que decidem
entregar sua vida total e incondicionalmente nas mãos de Deus.
Ao longo de 40 anos, Padre Caetano se dedicou ao serviço do povo
de Deus, mais precisamente em Fortaleza, em diversas instâncias.
Além da criação da Paróquia e do Instituto Religioso, foi fundador do
bairro – antes conhecido como Tirol e pertencente ao complexo do
grande Pirambu. No mesmo, foi o fundador ou motivador da criação
de diversas escolas, projetos sociais - no campo da profissionalização
e capacitação de crianças, jovens e adultos. Lutou pela pavimentação
das ruas, saneamento básico, melhorias e implantação de conjuntos
habitacionais.
Como exemplo de sua participação em obras públicas, podemos
citar a construção da Avenida Presidente Humberto de Alencar Castelo
Branco (mais conhecida como Leste-Oeste). A obra foi construída nos
inícios dos anos 1970 e Pe. Caetano colaborou no projeto. Com a con-
tribuição do Pe. Caetano o número de famílias desalojadas foi menor
e conservaria um número alto de pessoas próximas à região em que
trabalhavam, além de conservar o convívio social com os vizinhos de
longa data.

25 Estima-se que 46 crianças levam o sobrenome do padre (Lima, 2016, p. 76).


26 No primeiro ano, 12 rapazes fazem o retiro e ingressam no Instituto. No ano seguinte,
ingressam algumas moças, sob a orientação da Ir. Maria dos Anjos (da Congregação das
Filhas de Santa Teresa), religiosa que exercia um forte papel missionário na Paróquia de
Cristo Redentor.

74
Muitas foram as atividades “assumidas” pela necessidade e vonta-
de de servir a Deus e ao seu povo. Além de Padre, pároco e fundador de
Congregação, Pe. Caetano foi fundador de abrigo para crianças, funda-
dor de bairro e paróquia, fez as vezes de arquiteto e arquiteto. Serviu
à muitas famílias escrevendo cartas de recomendação, atendendo às
pessoas que buscavam empregos em diversas empresas. Foi orientador
espiritual, teólogo, biblista, escritor, pesquisador e, até sua morte, um
homem inquieto e que olhava para frente com esperança.
Ao mesmo tempo, foi o homem do desapego e do abandono. Nos
últimos anos de sua vida, esteve mais recluso e foi acometido por uma
artrose e Parkinson. Iniciou, a partir dessas doenças e as complicações
que elas geraram em seu quadro de saúde, seu caminho de calvário.
Todo esse caminho, como testemunham irmãs e irmãos do Instituto,
foi vivido no silêncio e na espera em Deus. O período mais crítico de
sua fragilidade foi entre maio de 2008 e, especificamente o primeiro
dia de 2010.
Sua última grande obra e ensinamento consistiu em viver o que
mais aspirou, a entrega total e incondicional a Deus. Sua Páscoa defi-
nitiva data de 01 de janeiro de 2010. Enquanto o mundo celebrava um
novo ano, sob os sons de música e dos fogos de artifício, Pe. Caetano,
de forma discreta e silenciosa, se despede desse mundo. Sua morte,
celebrada com dor pelos muitos que herdaram seu legado, deixa como
marca essa entrega desmedida ao plano divino da salvação.

LEGADO IMATERIAL
Pe. Caetano deixou um grande legado para a Igreja do Brasil e em
especial para a Arquidiocese de Fortaleza. Começando pela criação
da Paróquia do Cristo Redentor, em 26/01/1969, o fortalecimento de
uma comunidade de fé marcada pelo espírito missionário com o en-
gajamento de crianças, jovens, adultos e idosos; o Instituto Religioso

75
Nova Jerusalém, fundado em 16/01/1981, cujo carisma é evangelizar
o mundo de hoje a partir das Sagradas Escrituras. Centenas de jovens
passaram pelo vocacional do instituto e cultivaram um amor todo es-
pecial pela Palavra de Deus, entre homens e mulheres que mesmo não
se consagrando na vida religiosa levaram para suas famílias uma forte
experiência de cultivo da oração, fundada na leitura orante da Bíblia.
Além dos dois institutos, masculino e feminino, temos o ramo leigo
conhecido como Movimento Bíblico Nova Jerusalém. Eles atuam em
Fortaleza, Maracanaú, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza,
Mossoró-RN e Belo Horizonte-MG. O Movimento Bíblico tem entre
seus membros jovens, adultos, idosos, muitos deles cursaram gradua-
ção em Teologia e até mestrado em Bíblia. Mais importante que os tí-
tulos acadêmicos era o desejo do Pe. Caetano de que a Nova Jerusalém
pudesse suscitar uma geração bíblica: crianças, jovens, homens, mu-
lheres, idosos apaixonados pela Palavra, vivendo por ela, irradiando
para o mundo o Amor de Deus em palavras e ações
Ao falarmos do legado imaterial do Pe. Caetano, se percebe uma
relação entre interno e externo, material e imaterial. Aqui, vale um
paralelo com um texto da Sagrada Escritura. No texto de Ezequiel 37, o
profeta contempla o “vale dos ossos ressequidos”. O lugar da morte, da
ausência do espírito e da vida em Deus, é transformado e se torna lugar
da vida nova, da ressurreição. O antigo Pirambu era local de desova e
servia como um campo de concentração27 para os refugiados da seca. A
morte se fazia presente e reinava naquele lugar.

27 Em dois momentos distintos, mas da mesma miséria e sofrimento, foram erguidos


campos de concentração no Ceará, em 1915 e 1932. Ao todo, foram sete campos nos quais
várias pessoas em situação de profunda miséria, por conta da seca, foram “abrigadas”.
O principal motivo das instalações era impedir que os “retirantes chegassem” à capital
cearense. Em Fortaleza havia dois, um no “Matadouro” – nos arredores da atual Praça Otávio
Bonfim – e outro no Pirambu. O documentário “No Caminho dos Campos de Concentração
do Ceará” traz testemunho de pessoas contemporâneas aos campos, além de depoimentos
de especialistas. Há outros diversos estudos e reportagens disponíveis na internet sobre o
tema, como o artigo de Frederico de Castro “Curral dos Bárbaros: campos de concentração
no Ceará (1915 e 1932)” para a Revista Brasileira de História, disponível online no site: www.
anpuh.org.br.

76
Mas, assim como na visão do profeta, o sopro de Deus deu vida
nova. Restauração e ressurreição imperaram nesse lugar. Se antes, o
solo do Pirambu era tocado pela morte, desde a chegada do Pe. Caetano,
com seu testemunho de fé e trabalho, seu solo conheceu a ressurreição
e, sobre ele, a morte não teve mais a última palavra. Assim, tudo o que
foi tocado por sua presença e ensinamento tem como marca a luta, o
amor, a esperança e a ressurreição.
Como fundador do bairro, seu grande legado, para além das es-
truturas físicas, consiste no espírito de partilha e engajamento social.
Muitos dos projetos sociais, iniciados ou motivados por ele, continuam
de pé ou se reinventaram. O número de projetos sociais na região ain-
da é um dos maiores em toda a capital cearense. Marca de um povo
que entendeu a necessidade de lutar por seus direitos e percebeu sua
própria capacidade de mudança.
Todas essas instâncias são tocadas pela espiritualidade que lhe foi
cara e que reside no coração de cada um de seus filhos e filhas espiri-
tuais. É comum, aos filhos do bairro, aos leigos engajados e consagra-
dos, assim como nas religiosas e religiosos, um espírito de entrega e
espera em Deus. Em todos, a certeza da filiação divina, de uma perten-
ça e marca indelével do Amor.
A experiência da espera em Deus em nada é passiva ou letárgica,
muito menos intimista. Como dita em uma das antigas versões das
constituições do Instituto Religioso Nova Jerusalém, essa espera ma-
nifesta-se na salvação ativa. Essa consiste na participação consciente,
num alinhamento fecundo da vontade divina com a vontade humana.
Ao abraçar a salvação ativa, o homem se torna corredentor, instrumen-
to ativo para a salvação dos outros e do mundo inteiro.
Enquanto corredentor, o ser humano vive seu caminho de união,
de parceria com Deus. Ele se faz mediador no mundo, sendo responsá-
vel por suas irmãs e irmãos, na busca pela implantação do Reino. Nas
palavras do Pe. Caetano, “o homem topa com Deus” e, por Ele é trans-

77
formado, entendendo seu propósito e valor no mundo, conhecer e dar
a conhecer o plano divino da salvação.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Carlos. A trágica história dos “campos de concen-
tração” do Ceará. Deutsche Welle, Fortaleza, 20 de jul. de 2019.
Disponível em: <https://www.dw.com/pt-br/a-trágica-história-dos-
-campos-de-concentração-do-Ceará/a-49646665>. Acesso em: 18 dez.
2022.

LIMA, Narcélio Ferreira (Org.). Um Monge missionário: Vida e Obra


de Pe. Caetano Minette de Tillesse. Rio Bonito: ECU, 2016.

INSTITUTO RELIGIOSO NOVA JERUSALÉM. Constituição. 2ª ed.


Fortaleza: Nova Jerusalém, 2002.

MINETTE DE TILLESSE, Caetano. Um Novo Seminário de Oração no


Espírito Santo. Fortaleza: Nova Jerusalém, 1987.

NASCIMENTO, Tatiany. Campo de concentração onde ‘flagelados da


seca’ eram aprisionados é tombado no Ceará. G1 CE, Fortaleza, 20
de jul. de 2019. Disponível em: <http://g1.globo.com/ce/ceara/noti-
cia/2019/07/20/campo-de-concentração-onde-flagelados-da-seca-e-
ram-aprisionados-e-tombado-no-Ceara.ghtml>. Acessado em: 18 dez.
2022.

NEVES, Frederico de Castro. Curral dos Bárbaros: campos de concen-


tração no Ceará (1915 e 1932), Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 15, n. 29, pp.93-122, 1995.

78
HELDER
PESSOA
CAMARA
Dom Helder

João Luiz Correia Júnior28


Filipe Francisco Neves Domingos da Silva29

INTRODUÇÃO
Dom Helder Camara (1909 – 1999), chamado carinhosamente de
“Dom”, foi um dos religiosos do Nordeste brasileiro, no século XX,
“que ultrapassaram as fronteiras das igrejas e do país, por suas qua-
lidades éticas e espirituais, intelectuais ou políticas”, conforme escre-
veu o historiador Pe. José Oscar Beozzo (Camara, 2009, vol. I, tomo I,
Apresentação, p. xvii). De acordo com Beozzo:

Homem de ação, no pleno sentido da palavra, Dom Helder


era ao m tempo um contemplativo e um poeta, sem tem-
po de organizar e muito menos de publicar as milhares
de páginas que escreveu, quase sempre nas horas, mas da
madrugada consagradas à meditação, à oração e à escrita
de sermões, poemas, de conferências e cartas. Nele, va-
mos encontrar várias das virtudes de figuras marcantes
da Igreja Católica do Brasil: o profetismo e a veia literária
de Pedro Casaldáliga; a intrepidez e o senso político de

28 Doutor em Teologia, com concentração em Bíblia, pela PUC-Rio. Professor titular e


pesquisador da Universidade Católica de Pernambuco, onde leciona em Programas de Pós-
graduação (Ciências da Religião e Teologia), e no Bacharelado em Teologia.
29 Doutorando em Ciências da Religião da Universidade Católica de Pernambuco, onde
leciona no Programa de Pós-graduação em Ciência Política. Mestre em História Social e
Política pela UFPE.

79
Ivo Lorscheiter; a atenção aos pobres e a capacidade de
conciliação de Luciano Mendes de Almeida; a bondade e
intuição teológica de Aloísio Lorscheider; a coragem e de-
fesa intransigente dos direitos dos pequenos de Evaristo
Arns (Camara, 2009, vol. I, tomo I, Apresentação, p. xix).

Os textos do Dom foram escritos com requintes estéticos por meio


de palavras bem escolhidas, em prosa (expressão natural da lingua-
gem) ou em verso (cada uma das linhas de um poema). Sem dúvida,
quando navegamos nesse legado textual, novos e diversos horizontes
vão se abrindo, revelando-nos um olhar surpreendentemente original
e belo diante da paisagem que vislumbramos. Esses mares muito rara-
mente foram calmos, pois sua coragem diante do percurso foi carrega-
da de paixão por Cristo, e na paixão de Cristo.
A posse de Dom Helder na Arquidiocese de Olinda e Recife, em 12
de março de 1964, aconteceu em um contexto intenso e conturbado da
história do Brasil, doze dias depois do golpe civil-militar que roubou
vinte e um anos de nossa história política (1964-1985). O mundo vivia a
contracultura, os processos libertários de decolonização, as revoluções
promovidas pelos movimentos sociais e a contraposição de “mundos”,
termo muito utilizado por Dom Helder em tempos de Guerra Fria para
se referir aos antagonismos do primeiro mundo (países de capitalismo
avançado), segundo mundo (países socialistas) e terceiro mundo (paí-
ses “subdesenvolvidos”). Já a Igreja romana, por seu turno, vivencia-
va o processo de recepção do aggiornamento promovido pelo Concílio
Vaticano II.
Antes de chegar em terras pernambucanas, durante os vinte e oito
anos que morou no Rio de Janeiro de 1936 a 1964, Dom Helder teve
uma ascensão extraordinária nas frentes eclesiais, sociais e políti-
cas. Tornou-se membro do Conselho Nacional de Educação, fundou a
Cruzada São Sebastião para auxiliar a população periférica e o Banco
da Providência para dar suporte as famílias mais desprotegidas, arti-

80
culou a criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB),
além de ter sido um dos idealizadores da Sudene, Superintendência
de Desenvolvimento do Nordeste. Foi no Rio de Janeiro que o Dom se
projetou para o Brasil e para o mundo. Partir do Rio de Janeiro, onde
era arcebispo auxiliar desde 1956, para o Recife, não deve ter sido fácil
foi muito doloroso para o Dom. Mas ele sempre manteve contato com
a família mística que lá foi edificada.
Vale ressaltar que os militares nomearam o golpe civil-militar de
“Gloriosa Revolução democrática de 31 de março de 1964”. Não foi
“gloriosa”, porque sua herança foi nefasta, com o aumento da desi-
gualdade social, hiperinflação, favelização, aumento da dívida externa
e uma população impedida de votar para os principais cargos políti-
cos. Não foi “revolução”, porque não houve uma mudança estrutural
no país: pobres se perpetuam no empobrecimento crescente, e ricos
continuaram cada vez mais ricos às custas da mão de obra assalariada
ou contratada temporariamente; manteve-se a estrutura latifundiária
e agroexportadora em detrimento de uma reforma agrária profunda.
Não foi “democrática” nem tinha caráter popular porque depôs um
presidente legítimo e constitucional, João Goulart. E, por fim, não foi
em “31 de março”, pois já era a madrugada do “dia da mentira”, pri-
meiro de abril
Mas, o importante mesmo é compreender que esse evento é fruto
de um processo histórico de relações de poder entre diversas forças
sociopolíticas, um golpe de Estado não acontece do dia para a noi-
te. Sugerimos, para aprofundamento desse período, a obra “1964. A
Conquista do Estado”, do historiador e cientista político uruguaio
René Armand Dreifuss. Trata-se de um trabalho de pesquisa rigoroso
sobre os atores e forças sociais desse conflituoso e delicado momento
de nossa História política (Dreifuss, 2006).
Foi nesse caldeirão político que o Dom chegou ao Recife. A ques-
tão é: por que ele? Acreditamos que por sua fina capacidade de diálogo,

81
experiência em circular em meios políticos e habilidade de articulação,
cultivando uma singela postura mística de humildade. Isso fica claro
desde o seu famoso discurso de posse, afirmando, categoricamente,
que as portas da Igreja estariam abertas para todos, e deu uma lição
carregada de sabedoria: “Ninguém pretenda prender-me a um grupo,
ligar-me a um partido, tendo como amigos os seus amigos e querendo
que eu adote as suas inimizades. Minha porta e meu coração estarão
abertos a todos, absolutamente a todos” (Barros, 2000, pag. 86).
Em meio aos desafios que passou a enfrentar como Arcebispo de
Olinda e Recife, em pleno regime militar, Dom Helder foi buscar forças
em sua experiência mística de intimidade com Deus que se expressou
no fraterno diálogo e humildade relacionamento com todas as pes-
soas. Seguindo o exemplo do “Senhor” (o Jesus dos Evangelhos), Dom
Helder conduziu seu ministério em um amoroso serviço de pastor das
multidões excluídas e abandonadas:

Arranca-me, Senhor
dos falsos centros.
Livra-me, sobretudo,
de colocar em mim mesmo
meu próprio centro...
Como não compreender,
uma vez por todas,
que fora de Ti
tudo e todos
somos excêntricos?
(Camara, 1976, p. 11).

A mística do Dom permeia, ainda hoje, na memória indelével das


pessoas que tiveram a sorte de conhecê-lo pessoalmente, mas está
presente como suave perfume nas cartas circulares que ele escrevia
do próprio punho, a amigos e amigas com quem mantinha contato, na
calada da noite, durante suas vigílias de oração.

82
Ao saborear o raro, caro e saboroso licor do silêncio orante, o Dom
sente-se encorajado (e encoraja seu discipulado), a mergulhar fundo
nos planos divinos:

Mergulha, a fundo
Nos planos divinos.
Mergulha o mais que puderes:
sem medo da massa líquida
sobre teu corpo frágil;
sem medo de peixes vorazes
que te devorem ou te mutilem;
sem medo de correntes submarinas
que te arrastem, traiçoeiras...
Simplesmente sem medo.
Quanto mais te entregares
mais serás conduzido como criança
que mãe solícita
envolve nos braços e leva
ao abrigo de todos e de tudo
Recife, 18/19.4.1964 (Camara, 2009, vol. II, tomo I, p. 18). 30

Percebe-se no poema, que a mística do Dom não é um convite para


ficar entre quatro paredes em contemplação. Muito pelo contrário. Ao
raiar do dia, é imperativo que se mergulhe nas águas profundas da vida,
“sem medo de correntes submarinas”. Desse modo, os escritos de Dom
Helder têm tocado coração do leitor ao longo do tempo, pelo encanta-
mento que despertam e pelo potencial que possuem para aprofundar
a reflexão sobre a existência humana em contextos desafiadores à fé
cristã.
A seguir, serão apresentados e analisados alguns desses escritos,
belamente apresentados em forma de poemas, por meio dos quais o
Dom expressou a sua experiência mística com Jesus, alicerce de sua es-

30 Muitos poemas do Dom aqui citados podem ser encontrados na Coleção “Obras
Completas de Dom Helder Camara”, que contêm as suas famosas Cartas Circulares,
publicadas pelo CEPE – Companhia Editora de Pernambuco. A obra que, paulatinamente,
começou a ser publicada em 1999, contém atualmente 5 volumes, em 16 tomos. São
considerados de grande valia para a pesquisa acadêmica, inclusive sobre os bastidores do
Concílio Vaticano II. Sobre o assunto, sugerimos o artigo “Dom Helder Camara e o Concílio
Vaticano II” (Laurier, 2010).

83
piritualidade. E, em um segundo momento, a experiência prática des-
sa experiência de fé, a opção pelos pobres, na perspectiva das novas
orientações pastorais do Concílio Vaticano II.

A MÍSTÍCA CRISTÃ DE DOM HELDER INSPIRADA NO JESUS


COMPASSIVO
Em seus poemas místicos, Dom Helder deixa claro que sua relação
com Deus Pai está em sintonia espiritual com todos os que estão em
condições sub-humanas. E o faz por meio do Filho, o Cristo Jesus, que
conhece dos Evangelhos:

Já não aguento, Pai


ver tanta miséria,
ouvir tanto lamento.
Sabes
que comida
perde, dia a dia,
qualquer sombra de interesse
para quem carrega nos olhos
as imagens que eu carrego,
para quem guarda nos ouvidos
as vozes que registro para sempre...
Estou quase pedindo
que o teu Filho
- um comigo –
recomece os milagres,
com pena da multidão.
Perigo de humildade?
ser-lhe-ia tão fácil
amarrar meu orgulho...
Afinal,
vale ou não vale
ser um com Ele?...
Recife, 18/19.2.1965 (Camara, 2009, vol. II, tomo II, p. 193).

Por esse poema, a exemplo de tantos outros, percebe-se que na


mística cristã do Dom, o Deus Pai e o Filho Jesus são invocados com
a mesma intensidade. No Pai, por meio do Filho, Dom Helder revela

84
profunda sintonia espiritual, intimidade mística: “Pai... teu Filho, um
comigo”.
Fica evidente, nas entrelinhas do texto, uma mística cristã não é
alienada da realidade, e, muito menos, insensível ao sofrimento huma-
no. Inspirado nos relatos dos Evangelhos sobre a prática compassiva e
solidária de Jesus, o Dom expressa poeticamente que ele “carrega nos
olhos” e “guarda nos ouvidos” as cenas e lamentações de quem não
tem o que comer. Isso é mesmo de tirar o apetite: “Sabes que comida
perde, dia a dia, qualquer sombra de interesse para quem carrega nos
olhos... e guarda nos ouvidos as vozes que registro para sempre”.
A partir do contexto de miséria e fome do povo da Arquidiocese de
Olinda e Recife, em apenas um ano de magistério como Arcebispo, o
Dom se sente interpelado a recomeçar os milagres de Jesus, “com pena
[no sentido de “compaixão”] da multidão”, em uma referência ao senti-
mento de Jesus ao ver as multidões: “Assim que desembarcou, viu uma
grande multidão e ficou tomado de compaixão por eles, pois estavam
como ovelhas sem pastor” (Bíblia de Jerusalém, 2002, Mc 6,34a).

A OPÇÃO PELOS POBRES, TAL QUAL O FEZ JESUS


A opção de Dom Helder pelos pobres não é um mero assistencia-
lismo sentimental. Trata-se de algo que surge da experiência mística
com o Jesus dos Evangelhos que, em sua compaixão, aproxima-se das
pessoas, deixando-se tocar por elas.
O encontro pessoal com os pobres, motivado pelo sentimento de
compaixão, causa em Dom Helder um grande júbilo. Isso fica evidente
em poemas que expressam seu entusiasmo pela proximidade e convi-
vência com os preferidos de Deus:

Estou felicíssimo.
Teus pobres descobriram
nosso Palácio.
Entram sem medo.

85
Pisam firme
como quem entra na própria casa.
Espalham-se
Pelas salas numerosas.
Sentem-se à vontade.
Ri a mais não poder
encontrando um velhinho
sentado, tranquilo,
no trono
que não quis ocupar.
Nunca entendi tanto
O Cristo Rei.
Recife, 18/19. 04. 1964 (Camara, 2009, vol. II, tomo I, p. 20-21).

“Estou felicíssimo... Nunca entendi tanto o Cristo Rei”. A abertu-


ra e a conclusão do poema não é mera retórica poética; denota algo
que permeia a mística do Dom: sua compaixão solidária para com os
pobres, para quem dirige objetivamente sua missão episcopal, lhe dá
grande consolação, profunda alegria, porque o faz compreender em
profundidade o Jesus Cristo dos Evangelhos.
São, portanto, os pobres, muito bem acolhidos: em “nosso palá-
cio”, os pobres de Deus que “entram firme como quem entra na própria
casa”, que o inserem definitivamente na profunda mística Cristã, do
Jesus Cristo Vivo.
O Dom não só abriu as portas do Palácio Episcopal para receber os
desafortunados que vivem em casebres (“mocambos”), como aceitava
convite para ir à casa dessas pessoas empobrecidas:

No casebre miserável
“mocambo” como se diz aqui
o pobre me convidou
para o almoço.
Não estivesse tão acompanhado
e ficaria.
Que teria ele
no barraco, sórdido,
metido na lama,
para oferecer?....
Pergunto por perguntar.
Ele apenas te emprestou os lábios.

86
O convite partiu de Ti:
o anfitrião
eras Tu.
Recife, 18/19. 04. 1964 (Camara, 2009, vol. II, tomo I, p. 21).

Nesse “Tu” pode-se incluir toda a Família Trinitária, da qual Jesus


faz parte. O Jesus que surge nas linhas dos poemas e orações de Dom
Helder está sempre em uma correção familiar trinitária, na qual está
inserida a Mãe Santíssima e, com ela, toda Igreja:

Uno-me à Santíssima Trindade que está comigo, dentro


de mim, no meu pobre mocambo...
Ajuda-nos, Pai, a acertar com a tua vontade, sem, de
modo algum, defender a nossa como se fosse tua...
Filho de Deus, Verbo Eterno, Luz da Luz, meu irmão Jesus
Cristo: a Igreja é o teu Corpo Místico, és tu. Ajuda-nos!
Vive conosco estas horas críticas em que nossa pobre
inteligência iluminada pela fé pensa ver claro, mas pode
estar enganada...
Espírito Santo, mais do que nunca chegou tua vez! Guia-
nos pela mão. Não nos deixes na indecisão e na sombra...
Mãe Santíssima, Mãe do Cristo Total, Mãe da Igreja: aju-
da-nos! Obtém da Santíssima Trindade que o amor pró-
prio não funcione, de lado nenhum, nestas horas graves...
Recife, 19/20. 09. 1964 (Camara, 2009, vol. I, tomo II, p. 34).

Esses poemas do Dom revelam a concepção que ele tinha sobre


Jesus, fiel à tradição teológica católica de sua formação inicial, mas
também denotam uma experiência mística interpelada pelos novos
desafios que se impunham à Igreja, no seu contexto histórico. Isso
foi decisivo, de forma positiva, em sua participação como Bispo do
Terceiro Mundo, nas quatro sessões do Concílio Ecumênico Vaticano
II, em uma defesa intransigente das causas sociais que envolvem os
mais pobres do planeta.
Não foi por acaso que, na busca de despojamento em busca de uma
vida mais próxima dos pobres, o Dom toma a decisão de mudar-se do

87
imponente Palácio dos Manguinhos, residência oficial do arcebispo de
Olinda e Recife, que fica nas Graças, bairro nobre da capital pernam-
bucana, para residir (a partir de 1968) nos fundos de uma igrejinha
colonial no bairro da Boa Vista.
Na simplicidade e desapego às pompas materiais, Dom Helder não
somente se aproxima da vida do povo da Arquidiocese, mas assume
seu sacerdócio de forma cada vez mais coerente com o Jesus que anun-
cia, de forma poética.

O JESUS QUE O DOM ANUNCIA DE FORMA POÉTICA


Dom Helder soube muito bem utilizar os meios de comunicação
que tinha a seu alcance para anunciar Jesus e sua Boa-Nova. As trans-
missões de Rádio foram um desses veículos utilizados.
A Rádio da cidade de Colônia, Alemanha, pediu ao Dom, quando
estava em Roma, a gravação de uma breve reflexão sobre o verdadei-
ro espírito do Natal, que foi transmitida na programação natalina de
1964. Eis o texto, poeticamente escrito em prosa:

Perdoem-me se lhes trago, talvez, problemas, quando


festejamos a Noite da alegria e do amor. A quem abrir, de
boa vontade, o coração aos três pensamentos que levan-
to, asseguro, da parte de Deus, a paz que os homens não
possuem e, portanto, não podem oferecer...”.
Pensem que os homens que se dizem e se sentem cris-
tãos, isto é, ligados ao Cristo, estão, mesmo assim, di-
vididos em várias famílias religiosas. Então, lhes sugiro
esta prece: “Senhor: que um dia o Natal seja festejado por
todos os cristãos unidos... Verdadeiramente unidos como
um só coração e uma só alma!”.
Pensem que, depois de dois mil anos da vinda do Cristo,
a maior parte dos homens nem mesmo escutou o nome
do Filho de Deus que se fez o Homem-Deus, o Salvador
dos homens de todos os tempos, todas as raças e todas as
regiões do mundo. Então, lhes sugiro uma segunda prece:

88
“Senhor: que eu viva este Natal em nome de todos os que
te amariam, talvez mais do que eu mesmo, se tivessem a
alegria de conhecer-te, como eu te conheço!”.
Pensem que o Natal continua, a história se repete. No
mundo de hoje, mais de 2/3 da humanidade permanecem
na miséria e na fome. Quer dizer que o Cristo continua
sem lugar conveniente onde nascer, sem lugar no meio
dos homens, obrigado a procurar um canto qualquer no
meio dos animais... Então lhes sugiro esta prece final:
“Senhor: abre-me os olhos! De que adianta saudar-te
no presépio da Igreja, se não te reconheço quando cho-
ras de frio e de fome, em milhões de barracos do Mundo
subdesenvolvido!...”.
Roma, 10/11. 11. 1964 (Camara, 2009, vol. I, tomo II, p. 262).

Nessa bela mensagem de Natal, salta aos olhos a observação ini-


cial de que as pessoas de fé cristã estão ligadas a um único Cristo, em-
bora divididas em várias famílias religiosas. Daí a relevância da prece,
para que um dia o Natal seja festejado por todos os cristãos unidos em
um só coração e em uma só alma. Além disso, o Dom salienta que, após
dois mil anos de Cristianismo, a maior parte da humanidade nem mes-
mo ouviu falar de Jesus. Daí a importância de viver o Natal em sintonia
com todas as pessoas que amariam Jesus se tivessem a alegria de co-
nhecê-lo. Por último, Dom Helder lembra dos mais de 2/3 (dois terços)
da humanidade que permanecem na miséria e na fome, para ressaltar
que o Cristo continua “sem lugar decente onde nascer, obrigado a pro-
curar um canto qualquer”. Daí a necessidade de se deixar interpelar
por um questionamento inconveniente: “de que adianta saudar o me-
nino Jesus no presépio da Igreja, se não o reconhecemos quando chora
de frio e de fome, em milhões de barracos do Mundo?”.
Percebe-se claramente que o Jesus que Dom Helder cultivou em
sua mística, mesmo quando indefesa criança que nasce em uma estre-
baria, é altamente interpelador à fé. Daí a delicada solicitação prévia
de perdão, antes de colocar a impertinente reflexão: “Perdoem-me se

89
lhes trago, talvez, problemas, quando festejamos a Noite da alegria e
do amor”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esses poemas do Dom, em prosa e em verso, na época em que fo-
ram escritos, traçam uma concepção sobre Jesus que pode ser inter-
pretada como reveladora de pensamentos, no mínimo, incômodos e
até subversivos.
No contexto em que surgiram, o regime militar perseguia as pes-
soas de consciência crítica (sindicalistas, políticos de esquerda, in-
telectuais e jovens estudantes) que se rebelavam contra o sistema
econômico, mantido por velhas oligarquias nacionais, que se perpe-
tuavam no poder à custa do suor e do sangue da classe trabalhadora.
Era um momento profunda indignação ética dos empobrecidos, bem
como de conscientização e articulação do proletariado no Brasil e na
América Latina. Pernambuco estava em ebulição, com as lutas campo-
nesas contra o latifúndio, sobretudo na zona canavieira. Parte dessa
região, mais próxima do Recife, ainda hoje faz parte da Arquidiocese
de Olinda e Recife.
Mas, ainda hoje, os poemas do Dom sobre Jesus Cristo incomodam,
pois questionam a inércia de muitos cristãos diante do sofrimento hu-
mano. São atualíssimos, sobretudo porque tocam no drama humano
da miséria e da fome.
Na breve mensagem “O julgamento final”, escrita para o Programa
da Rádio Olinda, “Um olhar sobre a cidade”, o Dom escreveu em prosa:

Vamos recordar a cena do Julgamento Final, tendo a cora-


gem de aplicá-la à nossa vida, ao nosso tempo e ao nosso
meio. Cristo dirá a cada um de nós: “Eu tive fome”. Se
tivermos tido coração Ele acrescentará: “E me destes de
comer”. Se não tivermos tido olhos para descobrir o pobre

90
com que Cristo se identifica, ele completará: “Tive fome e
não me destes comida”
Há fome em nossa cidade, ou dizer que há fome é dema-
gogia e falta de patriotismo? Já nos demos ao trabalho
de ver com nossos próprios olhos o que se passa, a cada
manhã, em volta das latas de lixo? A gente vê e não faz
nada? Por que não se podendo fazer mil, não se faz qua-
tro ou cinco? E como, juntos, ir à raiz do mal? Ou vamos
admitir que Deus errou nas contas e criou gente demais
para a terra alimentar?
Cristo, no Julgamento, como Ele disse, continuará dizen-
do: “Eu tive sede... Eu estava nu... Eu estava doente... Eu
estava preso... Eu era estrangeiro...”. Cada uma dessas
afirmações do Mestre cria para nós obrigações sagra-
das: nossa sorte vai depender de nossa atitude diante
do estrangeiro, do preso, do doente, do maltrapilho, do
faminto...
(Camara, In: Rozowykwiat (Org.), p. 169-170).

O que mais relatar e refletir aqui sobre o tema proposto, senão


externar o encantamento com tão belos poemas em prosa e em verso,
que tão bem revelam a concepção que Dom Helder tinha sobre Jesus, e
a experiência mística de amor que fazia com o Cristo.

REFERÊNCIAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova versão revista e ampliada. São Paulo:
Paulus, 2002.

BARROS, Raimundo Caramuru; OLIVEIRA, Lauro de. Dom Hélder:


O Artesão da Paz. Brasília: Editora do Senado Federal, 2000. 389 p.
Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
id/1046/580860.pdf. Acesso em: 19 mai. 2023.

CAMARA, Helder. O Deserto é Fértil (Roteiro para as Minorias


Abraâmicas). Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976.

91
CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 12 de setembro a 22/23
de novembro de 1964. Recife: CEPE, 2009. v. I, tomo I. 301 p.

CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 12 de setembro a 22/23


de novembro de 1964. Recife: CEPE, 2009. v. I, tomo II. 301 p.

CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 13/14 de outubro de


1962 a março de 1964. Recife: CEPE, 2009. vol. II, tomo I. 305 p.

CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 12 de setembro a 22/23


de novembro de 1964. Recife: CEPE, 2009. v. II, tomo II. 354 p.

CAMARA, Helder. In: ROZOWYKWIAT, Tereza (Org.). Meus queridos


amigos. As crônicas de Dom Helder Camara. Recife: CEPE, 2016.
485 p.

DREIFUSS, Rene Armand. 1964. A conquista do Estado. Petrópolis:


Vozes, 2006. 900 p.

LAURIER, Jean-Marie. Dom Helder Câmara e o Concílio Vaticano II.


Revista Contemplação, n.1, p. 1-15, 2010.

92
JERÔNIMO
DE
CARVALHO
SILVA
GUEIROS
Pastor Jerônimo

Aleandro Correia da Silva Lira

INTRODUÇÃO
Jerônimo de Carvalho Silva Gueiros, também conhecido como
Jerônimo Gueiros, e dependendo da localização geográfica dos evan-
gélicos, “Norte ou Sul”, ele era adjetivado de forma diferente. Os evan-
gélicos do Norte o chamavam de “A Águia do Norte”, e entre os do Sul,
era conhecido como “O Leão do Norte”, tudo indica que era pelo fato
de ser pernambucano.
Jerônimo Gueiros nasceu em Queimadas de Santo Antônio
(Jurema), município de Quipapá, uma cidade desbravada por negros
foragidos que faziam parte do Quilombo dos Palmares. Situada na
Zona da Mata Sul do Estado de Pernambuco, cidade que fica a aproxi-
madamente 180 Km da capital Recife.
Nascido em 30 de setembro de 1880, sendo o décimo filho de uma
família de doze, e o filho homem mais novo dos cônjuges Francisco
de Carvalho Silva Gueiros e Rita Francisca Barbosa da Silva. Era um
homem alto, esbelto e de pele alva. O sobrenome Gueiros veio do avô,
que foi o primeiro a ter o sobrenome, provavelmente por uma que-
bra do sobrenome Queiros. Até os quatro anos de idade morou em um

93
vilarejo chamado Salobro na cidade de Pesqueira, só depois de 1986
retornou para Garanhuns com toda família (Souza, 2018, pág. 94-95).
Com o fim do regime escravocrata, foi obrigado a trabalhar como
marceneiro para sustentar a família. Porém foi em uma fábrica de ci-
garros junto com seu irmão Antônio de Carvalho Silva Gueiros, que
trabalhou até meados de 1984. Durante esse período Jerônimo viveu
uma vida adepta de farras semanais, regadas a bebidas alcoólicas e a
jogos de azar, algo que se tornou um vício para ele, e o levou ao status
de profissional ainda aos treze anos de idade.
Jerônimo Gueiros foi convertido ao protestantismo por meio do
trabalho realizado pelo reverendo Dr. George W. Butler (conhecido
como “O médico amado” de Pernambuco), e Mary Rena Butler, um ca-
sal de missionários norte-americanos, que chegou a Garanhuns (PE)
em meados de 1895. Jerônimo foi um dos quinze primeiros conversos
batizados pelo Reverendo Dr. George W. Butler, que ganhou a estima,
o respeito e a admiração do povo por se desdobrar no atendimento e
cuidado aos enfermos em uma epidemia de febre amarela na cidade
de Garanhuns que ceifou mais de 800 pessoas (Matos, 2004, pág. 216).
Em janeiro de 1900, Butler idealizou um colégio para formação de
obreiros para o Nordeste e seu primeiro aluno foi Jerônimo Gueiros.
Essa escola foi o embrião do futuro Seminário Presbiteriano do Norte.
A ordenação ao ministério pastoral, ocorreu no dia 15 de setembro de
1901 pelo Presbitério de Pernambuco. Jerônimo foi um pastor, profes-
sor, jornalista, poeta e compositor cristão presbiteriano pernambuca-
no, foi muito influente na Igreja Presbiteriana do Brasil no Nordeste,
especialmente no Seminário Presbiteriano do Norte. Ele faleceu em
Recife, no dia 07 de abril de 1953.

94
POR QUE JERÔNIMO GUEIROS É CONSIDERADO MÍSTICO?
Jerônimo Gueiros é considerado um místico por ser uma pessoa
com uma postura de fé inabalável no Senhor Jesus Cristo. Ele repre-
sentava a relação entre o humano e o divino, e ao entender o desejo
primeiro de Deus, se dedicou de forma extraordinária, e com profun-
das convicções a uma vida de serviço a Deus e ao próximo.
A trajetória de Jerônimo Gueiros se iniciou após sua conversão,
quando passou a tomar gosto pelos estudos. Sendo ensinado aos pés
de Rena Butler em uma escola que ela iniciou em sua casa. Foi ali que
Jerônimo aprendeu várias matérias, inclusive o inglês. A continuidade
de seus estudos se deu na escola paroquial criada pelo pastor Martinho
de Oliveira, e o resultado de sua empreitada, foi tornar-se uma figu-
ra importante no mundo acadêmico e pastoral, se destacando por sua
grande influência e capacidade oratória, jornalística e polemista, o que
chamou a atenção do Governador de Pernambuco, Dr. José Bezerra
Cavalcanti, no ano de 1920, que o convidou para ser o diretor e do-
cente de História da Civilização da Escola Normal Oficial do Estado de
Pernambuco31.
Jerônimo Gueiros não parou desde então, em 1929, foi eleito mem-
bro da academia pernambucana de letras ocupando a “cadeira 11”, que
antes havia sido ocupada pelo patrono, o general Abreu e Lima. Em 26
de janeiro de 1938, foi alçado à presidência da academia onde presidiu
até 1948. No seu discurso de posse apresentou claramente sua mística
e representatividade social dizendo:

[...] Senhores acadêmicos: Há alguma coisa que nos ir-


mana e nos vincula nesta oficina de luz. Somos todos se-
nhores de alguma coisa além da vida com seus pendores

31 Escola Normal Oficial do Estado de Pernambuco, foi criada em 13 de maio 1864, através
do cumprimento da lei número 598, e foi destinada a formar professores de instrução
primária por meio de ensino metódico e de educação exemplar, para que os alunos
inicialmente soubessem ler, escrever e contar. Também se ensinava sentimentos morais e
religiosos pela leitura dos Evangelhos (Peixoto, 2006, p. 63-71).

95
subalternos. Vivemos do ideal com que sonhamos. Pelo
menos, minha vida tem sido uma urdidura de sonhos em
que sobressai minha tendência associativa com escopo
superior. E todos os meus sonhos objetivaram-se em do-
ces realidades, tanto quanto permitiram a contingência
e relatividade das cousas humanas. Sonhei, primeiro, na
obscuridade da minha vida sertaneja, no meio da pobreza
extrema de rude operário, com ilustrar-me para fazer-me
afanoso obreiro espiritual, de modo a poder levar a mi-
nha gente o influxo do Livro que inspirou a civilizações
das maiores potências do Velho e Novo Mundo. E o so-
nho foi realidade. Através de 30 anos, desdobro, ininter-
ruptamente, minha atividade espiritual com a profunda
convicção que me levará ao seio de Deus e com esse en-
tusiasmo crescente e insopitável que a fé inspira e me faz
exclamar com o apóstolo dos gentios: Ai de mim, se eu
não evangelizar! (Souza, 2018, p. 96)

Esse místico, foi responsável por impactar mentes a promover


através da educação, bons seguidores e imitadores de Cristo.

LEGADO MATERIAL E IMATERIAL DEIXADO POR JERÔNIMO


GUEIROS
Jerônimo Gueiros foi um homem intelectual, dedicado, piedoso e
muitíssimo talentoso. Sua espiritualidade, intimidade com Deus e ca-
pacidade teológica, lhe serviram de instrumentos fundamentais para
composição do hino “A vinda do Senhor”. Essa obra, que descreve a
vinda de Jesus Cristo (ponto crucial do protestantismo) e sua invoca-
ção, e tem seu clímax no refrão que relata o estabelecimento do reino
triunfante de Cristo. Este hino está registrado em hinários protestan-
tes como: Hinário Novo Cântico da igreja Presbiteriana do Brasil, e
também da Igreja Cristã Maranata, e o Hinário Cantor Cristão, utiliza-
do na Igreja Batista.

96
Hino 292 – A vinda do Senhor

1. Como foi para o céu, Jesus Cristo há de vir


Quando o som da trombeta ecoar!
Quando a voz do arcanjo
Celeste se ouvir,
Eu irei com Jesus me encontrar.

Oh! Que dia glorioso esse dia há de ser,


Quando o som da trombeta ecoar!
Quando Cristo, nas nuvens, tiver de descer
E, então, triunfante reinar!

2. Nesse dia de glória,


O meu corpo mortal
Semelhante ao de Cristo há de ser!
E já livre da morte,
E já livre do mal,
A vitória de Cristo hei de ver.

3. Eu aqui, pela cruz,


Para o mundo morri,
Muita dor inda aqui sofrerei;
Minha vida com Cristo
Em meu Deus escondi,
E com Cristo eu, enfim, reinarei.

4. Vem Jesus, ó Senhor,


Vem depressa reinar!
Vem a paz e a justiça trazer!
Criação, povo teu,
Tudo almeja o raiar
Desse dia de glória e poder.

5. Este império do mal


Vem, Senhor, destruir!
Rei celeste, vem presto reinar.
Vem, ó sol da justiça,
No mundo luzir.
Ó meu Rei, vem meu pranto estancar (Gueiros, 1897).

Esse e mais doze hinos que Jerônimo compôs, estão no Hinário


Presbiteriano Novo Cântico, dentre esses temos “Graças te rendemos”
(56), “Eis-me aqui, Senhor bondoso” (344) e “Da Bíblia a luz celeste”
(371). No Hinário Evangélico, estão dez hinos de sua autoria, dos quais

97
os mais conhecidos são “Redime o tempo” (287) e “Glória sem par”
(465). Ele era um poeta da melodia, que movia corações contritos e
desejosos por paz, tranquilidade e certeza de sua fé em um Jesus que
se compadece dos mais necessitados e aflitos (Matos, 2018).
Em 1948, no tricentenário da 1ª Batalha dos Guararapes, Jerônimo
Gueiros escreveu a “Canção de Minha Terra”, saudando Pernambuco,
uma obra que homenageia os heróis da primeira batalha dos
Guararapes, que é uma parte da obra maior chamada “Canções do Meu
Prazer”. Em duas estrofes da obra Canções da Minha Terra, Jerônimo
coloca de forma mística Pernambuco como sendo um lugar abençoado
e protegido por Deus:

[...] Bendito sejas, Pernambuco amado!


Deus te aconchegue ao mundo em paz firmado!
E contra o mal te tornes apercebido,
No doce seio do Brasil querido!

Que êle te estenda a protetora mão!


E aos teus congrace pelo coração,
Fazendo-os em virtudes prosperar,
E, em plena liberdade, a paz gozar! (Gueiros, 1948, p. 15)

Esse texto supracitado é mais um de tantos poemas escritos por


Jerônimo Gueiros que constam nos anais da história. O Reverendo
Reginaldo José de Pinho Borges, ex-pastor da Igreja Presbiteriana da
Boa Vista, publicou muitos deles. Sendo assim podemos revisitar os
trabalhos realizados no meio cultural, religioso e literário das obras
que foram deixadas como resultado da mística de Jerônimo Gueiros.
As contribuições imateriais mais profundas de Jerônimo Gueiros
são claramente reconhecidas nos 52 anos de ministério pastoral, reali-
zados em Fortaleza, Natal e Pernambuco. Mas sua grande obra era com
o magistério, voltado para a educação. Ele foi professor no Seminário
Teológico de Garanhuns e diretor do colégio Presbiteriano 15 de

98
Novembro, também em Garanhuns. Em Natal fundou com o Reverendo
Calvin Porter, uma escola para rapazes chamada Externato Natalense,
na qual estudou o presidente da república João Café Filho. Também
fundou a Escola Eliza Reed e reorganizou o Instituto Pestalozzi, onde
lecionou português por vários anos. Foi professor da Escola Normal do
Rio Grande do Norte. O jornal “Agreste Presbiteriano, em 26 de feve-
reiro de 2018, publicou uma matéria sobre Jerônimo Gueiros, dizendo:

[...] o Rev. Jerônimo se propôs a criar um trabalho pres-


biteriano na cidade, iniciando uma escola dominical em
sua residência. No dia 27 de fevereiro de 1921, mediante
autorização do presbitério, foi organizada nas dependên-
cias do Colégio Agnes Erskine a 2ª Igreja Presbiteriana de
Recife (4ª Igreja), embora, na verdade, já existissem ou-
tras três na cidade: a 1ª Igreja, Areias e Campo Alegre. Por
algum tempo, o Rev. Jerônimo também assumiu o pas-
torado da igreja de Campo Alegre e da 1ª Igreja. Iniciou
congregações que mais tarde se tornaram as igrejas de
Tejipió (1948) e da Madalena (1951). Em 1922, ao falar no
Instituto de Ciências e Letras de Pernambuco, demons-
trou preocupações sociais, condenando a injusta explora-
ção de trabalhadores por industriais ricos (Matos, 2018).

Foi com essas ações que o Pastor Jerônimo se tornou uma figura
representativa e ilustríssima na sociedade pernambucana. Inclusive a
verdadeira fé que ele professava, permitiu que estabelecesse um bom
relacionamento com católicos de Recife, que envolvia também repre-
sentantes do clero. A sua boa relação resultou no final da sua vida, a
produção de um poema dedicado a Maria, onde descreveu-a nos ter-
mos evangélicos como “a mãe de Cristo”, mas como poeta, afirmou que
ela foi “a mãe da salvação” (Matos, 2018).
Jerônimo escreveu vários livros como: O espiritismo analisado,
Projeções de minha vida – letras, história e controvérsia (coletânea de
estudos, 1952), “Minha conversão”, “Igreja Presbiteriana da Boa Vista

99
(síntese histórica)”, “O destino da mulher”, “Religiões acatólicas em
Pernambuco”, “A Reforma e o cristianismo”, “A Bíblia e a cultura hu-
mana”, “Influência da Bíblia na cultura nacional” (onde fala de inúme-
ros personagens do protestantismo brasileiro), “Deus conosco” e “Nós
pregamos a Cristo crucificado”. Durante a 1ª Guerra Mundial, escreveu
uma pequena peça teatral de caráter pacifista, “A paz e a guerra ante a
história e a razão”, publicada no Norte Evangélico e encenada em mui-
tas igrejas.
Produziu também os seguintes escritos de controvérsia: “A eu-
caristia”, “A pedra fundamental da igreja”, “A Bíblia e a ciência”,
“Deus revelado”, “Modernismo teológico e fundamentalismo cristão”,
“Razões de meu silêncio”, “Perigos dos últimos tempos”, “Firmeza
doutrinária da Igreja Presbiteriana da Boa Vista”, “O Brasil ameaça-
do”, “Firmeza e ortodoxia”, “A heresia pentecostal” e “O perigo do erro
à sombra da verdade”. Neste último trabalho, dirigiu fortes críticas a
alguns escritos do colega Miguel Rizzo Júnior, nos quais viu a defesa
de um misticismo extrabíblico e a colocação da experiência acima da
doutrina. Redigiu várias pastorais do Presbitério de Pernambuco e do
Sínodo Setentrional, entre as quais “Mensagem de paz e fraternidade
às igrejas presbiterianas do Brasil – a propósito da fé que professamos”
(1950).

ATUALIDADE DESSA EXPERIÊNCIA MÍSTICA


Dia após dia sabemos da importância da educação para a vida e
desenvolvimento da sociedade, e a experiência mística de Jerônimo
Gueiros, embora diferente da muitos outros místicos ao ser trazida
para a atualidade, mostra que o ditado popular que diz: “Dê ao homem
um peixe e ele se alimentará por um dia. Ensine um homem a pescar

100
e ele se alimentará por toda a vida32”, é algo que precisa voltar a ser
repassado para nossa geração. Ao atender a necessidade do que tem
fome hoje, agimos com o amor de Cristo e esse ato de amor pode ser
continuado através do ensino.

CONCLUSÃO
Diante de toda essa humildade e vida laboriosa, foi que Jerônimo
Gueiros viveu, tornando-se influenciador de uma geração que hoje
olha para trás e percebe o quanto foi significativo seu trabalho na edu-
cação, na academia Pernambucana de Letras e na Igreja Presbiteriana
do Brasil. E É pensando no conceito básico de evento místico, que se dá
na relação entre o ser humano e o divino (Bingemer, 2022, p. 33), o teó-
logo espanhol Jon Sobrinho, descreveu a mística da seguinte forma:
“Se toda mística pressupõe abertura e obediência ao desejo de Deus,
pessoalmente sentido e experienciado, em um contexto de pobreza,
opressão e injustiça, o desejo primeiro de Deus é que a maioria dos
pobres possa viver. (Sobrinho, 1983, p. 335-344)”. Foi dessa forma que
Jerônimo Gueiros deu a muitos o direito de viver, não só lhes dando
pão, mais acima de tudo lhes dando o saber através da literatura.
O trabalho de vida de Jerônimo Gueiros foi lembrado e homena-
geado por diversas áreas, nomes de escola, nomes de ruas etc. Hoje o
nome desse místico está gravado em ruas das cidades de: Abreu e Lima
- PE, Campina Grande - PB, Canhotinho – PE, Garanhuns – PE, além
da Escola de Referência em Ensino Médio de Garanhuns, e na Escola
Estadual Jerônimo Gueiros Ensino Fundamental e Médio, em Natal,
Rio Grande do Norte.

32 Provérbio chinês (atribuído a Lao-Tsé, importante filósofo da China antiga, conhecido


como o autor do “Tao Te Ching”, obra basilar da filosofia taoísta)

101
REFERÊNCIAS
GUEIROS, Jerônimo. Hino: 292 – A Vinda do Senhor. Disponível em:
http://novocantico.com.br/hino/292/292.xml. Acesso em: 06 abr. 2023.

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Universidade Federal de Pernambuco. Disponível em: https://reposi-
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Pernambuco. Disponível em: https://xdocz.com.br/doc/cancao-de-
-minha-terra-saudando-a-pernambuco-qnjjvwr0y9n6. Acesso em: 08
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livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Je-
r%C3%B4nimo_de_Carvalho_Silva_Gueiros&oldid=64829394. Acesso
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SOUZA, José Roberto. Protestantismo em Revista. Memórias


Protestante em Jornais e Revistas. São Paulo: Fonte Editorial, 2018.

102
JOAQUIM
ARNÓBIO
DE
ANDRADE
Padre Arnóbio

Lucileide Cavalcante Silva

INTRODUÇÃO
Este estudo visa apresentar a mística em Joaquim Arnóbio (1915-
1985), padre. Pode-se dizer que o núcleo de sua mística está na repa-
ração, “percebendo a frieza, indiferença e ingratidão da humanidade,
especialmente de sacerdotes e religiosas, diante do grande amor de
Deus” (Constituições, 1983, p. 05), a mística da reparação busca em to-
das as suas atividades ser fiel a Deus. Trata-se de reparar-amar-cuidar,
em sua inteireza, dos irmãos que vivem em situação de vulnerabili-
dade social. A reparação, do latim reparare, consiste em fazer reparo,
consertar, restaurar ou refazer (Ferreira, p. 1818). Pela ótica bíblica, “a
reparação enfoca o amor, o amor do Pai ao Filho no Espírito repara a
queda da humanidade, e o amor de Jesus, leva ao Pai no amor, o mundo
decaído” (Iammarrone, 2003, p. 918) e se alimenta na espiritualidade
do cotidiano, que enxerga razões em lapidar o coração e as ações para
desenvolvermos “os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Bíblia de
Jerusalém, 2002, Fl 2,5). Pe. Arnóbio, é um sacerdote da Diocese de
Sobral-CE e fundador da Congregação das Missionárias Reparadoras
do Coração de Jesus.

103
O adorável Coração de Jesus Cristo, pulsa de amor ao mesmo tem-
po humano e divino desde o ventre de Sua Mãe (PIO XII). Durante sua
vida, Pe. Arnóbio buscou conhecer a Cristo, não somente pelo esforço
da inteligência humana, mas, pelo cultivo e abertura diária à revelação
do alto, que vem do Pai, deixando-se guiar pelo Espírito e na leitu-
ra da Palavra de Deus, inspirado na oração do salmista, “se me tives-
se ofendido um inimigo, eu o teria suportado, por certo, mas eras tu,
meu companheiro, amigo íntimo e meu familiar” (Bíblia de Jerusalém,
2002, Sl 54,13-15).
Em sua experiência de oração no cotidiano, reflete na pergunta
do Salmo 116, 12: “como poderia retribuir a Deus por todos os bens”?
Sente um apelo de criar um grupo de irmãs para sonhar juntos. Arnóbio
confia em Jesus, o Reparador por excelência e promete Amar, Reparar
e Evangelizar, onde, Ele o Senhor, não poderá ir. Na raiz da mística de
Pe. Arnóbio está o Amor-Reparação que transcende na kenósis (esva-
ziamento) de Jesus na cruz pela humanidade.

ARNÓBIO: ENTRE A PRECOCIDADE E A OBRA OFERTA DE SI


No outono de 1915, nasce, no nordeste do Brasil, em Massapê-CE,
Joaquim Arnóbio de Andrade, aos 26 de abril de 1915, uma segunda-
-feira, festa de Nossa Senhora do Bom Conselho. Seus pais são Joaquim
Anselmo de Andrade e Maria da Penha Sousa Andrade, foi batizado no
dia 10 de junho de 1915, pelo Pe. Antônio Cândido de Melo, na Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em Massapê.
O ano de 1915, respirava os horrores da Primeira Guerra Mundial,
iniciada em 28 de julho de 1914 e terminando em 11 de novembro de
1918. Segundo o historiador José Luís Lira, alguns fatos marcaram este
ano:

O mineiro Venceslau Brás havia assumido a presidência


da República do Brasil em 15 de novembro de 1914 e se

104
manteve na presidência até 15 de novembro de 1918.
Benjamin Liberato Barroso, era o Governador do Ceará,
o vice-governador eleito, sem se candidatar, liberalida-
des da lei da época, era Padre Cícero Romão Batista, já
passada a chamada “Sedição de Juazeiro”. Naquele ano
ocorreu uma das maiores calamidades climáticas do sé-
culo no Ceará que ficou conhecida como a seca de 1915,
a maior seca já documentada na nossa história. Inúmeras
pessoas fugiram do sertão para se abrigarem nas cidades
litorâneas e nas grandes cidades do país. Vem da época
os relatos de Rachel de Queiroz, em sua obra prima “O
Quinze”, sobre a seca e a fome que o sertanejo passou na-
quele ano difícil (...). Após a morte do Papa Pio X, depois
canonizado e aclamado o Papa da Eucaristia, os cardeais
reunidos em conclave, elegeram Giacomo dela Chiesa o
novo Papa, em 3 de setembro de 1914. O Pontífice que es-
colheu o nome de Bento XV e criaria a Diocese de Sobral
no mesmo 1915 em que nascera Joaquim Arnóbio, sen-
do Sua Santidade Bento XV, também o responsável pela
promulgação do Codex Iuris Canonici (Código de Direito
Canônico) (...). Sobral, a cidade mais importante do nor-
te cearense, tinha como pároco, o Padre José Tupinambá
da Frota (...). Dom José foi sagrado bispo e nomeado para
a recém-criada Diocese de Sobral, e, 10 de novembro de
1915 e se tornou, por sua ação administrativa, símbolo
para aquela cidade-polo e sua região (Lira, 2021, p. 25-26).

Um breve resumo do período histórico que marcaram este ano,


marca também a vida e a vocação de Pe. Arnóbio que desde cedo expe-
rimentou o êxodo, a migração para outras cidades como muitos nor-
destinos, pois, seu pai, Joaquim Anselmo, exercia cargo na Inspetoria
Federal do Departamento Nacional de Obras Contra Seca. Em 1924,
Arnóbio e sua família migram para Sobral-CE e em 1925, ele fez sua
primeira comunhão com o Pe. José Gerardo Ferreira Gomes. Passa a
residir em Sobral-CE e em meio aos estudos, cultiva a semente da vo-
cação sacerdotal e o desejo de santidade. Em 1926, se torna acólito na
Igreja da Sé, juntamente com o amigo Francisco Expedito Lopes (Bispo

105
de Garanhuns, com o processo de Beatificação aberto), depois, sacer-
dote, monsenhor e atualmente Servo de Deus (Lira, 2021, p. 36).
É inegável o ardente desejo de Arnóbio em pertencer a Deus. Certa
vez, estando Dom José Tupinambá da Frota, primeiro Bispo de Sobral
em sua casa, Arnóbio pediu ao Bispo para entrar no seminário. O fato
de seus pais não terem recursos econômicos para custear suas despe-
sas como futuro sacerdote, não era compreendido pelo jovem Arnóbio.
Quando a pessoa acende a luz em sua vida e entende o sentido de sua
existência expulsa o medo, dissipa suas ilusões e enriquece sua vida
(Grun, 2007, p. 95), pois, o amor é como um selo sobre o coração (Bíblia
de Jerusalém, 2002, Ct 8,6). Dom José, segundo relatos, riu-se de sua
simplicidade e disse: “Arnóbio, diga a sua mãe que faça uma batina
preta, com uma faixa azul, que seu lugar está reservado no seminário”
(Lira, 2021, p. 37).
O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida verdadeira, a felici-
dade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera que não nos
resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa (Francisco,
2018, n. 1). Uma santidade “ao pé da porta”, daqueles que vivem per-
to de nós e são um reflexo da presença de Deus (Francisco, 2018, n.
7). Arnóbio, entregou toda a sua vida ao serviço do Reino, à luz do
Coração de Jesus.

CONTEMPLAR O CORAÇÃO DE JESUS


O jansenismo33, doutrina religiosa inspirada em Cornelius Jansen,
surgiu na França e na Bélgica no século XVII, e propagavam que a hu-
manidade nascia predestinada ao céu ou ao inferno, sem o livre-arbí-
trio. Defendia a prática rigorosa da ascese e consideravam um Deus
rigoroso, sem misericórdia.

33 Jansenismo – Heresias. Disponível em: totustuusmariae.com.br acesso em: 28/03/2023

106
Contra esses rigores da justiça divina, surge o culto ao coração
de Jesus e suscita nas pessoas a confiança na misericórdia de Deus.
Margarida Maria Alacoque, jovem religiosa da Ordem da Visitação
(1647-1690), viveu uma intensa experiência mística com o Coração de
Jesus no convento em que vivia em Paray-Le-Monial na França, entre
os anos de 1673 e 1675 (Joaozinho, 2000, p. 13).
Com isso, tocamos o cerne da espiritualidade do coração de Jesus,
o amor-reparação, “Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho úni-
co” (Jo 3, 16). Um amor doado na totalidade do ser em Jesus, muitas
vezes não correspondido pela frieza e indiferença, especialmente de
sacerdotes e religiosos (as). Neste cenário, Pe. Arnóbio tem diante dos
olhos, o amor-reparação que brota do seu amor para Jesus. Como, no
entanto, poderia surgir algo para reparar estas ofensas? Qual será o elo
intermediário para amar o Amor? A experiência reparadora permite a
Pe. Arnóbio a compreender a sua missão como um apóstolo da repara-
ção do Coração de Jesus. Ele mesmo se tornará um canal nas mãos de
Deus. Considera a espiritualidade do Coração de Jesus como um dom
de Deus derramado à humanidade (Bíblia de Jerusalém, 2002, Rm 5, 5).

MÍSTICA DA REPARAÇÃO: UMA ESPIRITUALIDADE DO


COTIDIANO
Na vida de Pe. Arnóbio, vemos como a mística da reparação pode
estar em íntima união com Deus e com os irmãos, transformando e
reelaborando a partir de si, a relação com um mundo de grandes con-
trastes, onde os mais desprovidos eram colocados à margem, relegados
e maltratados na sociedade, sob condições que desumanizam.
Pretende-se entender a mística não de um ponto de vista do senti-
mentalismo, pois isto muda completamente o seu verdadeiro sentido,
mas no sentido de íntima relação fecunda com Deus e com o próximo
que transforma a vida da pessoa e a integra nas várias dimensões da
vida.

107
O verdadeiro sentido da mística é identificado no modo como o
místico a vive, de forma atual, inserida nos problemas que envolve a
história, dentro de sua cultura. O místico, sempre preocupado em de-
sestruturar os sistemas que geram a desigualdade e a pobreza de acor-
do com os seus limites, como um ser humano semelhante aos outros,
e não como alguém idealizado, “endeusado” ou, até mesmo, alienado
de sua situação, dentro do contexto no qual esteja inserido, luta para a
transformação do mesmo em um contexto de igualdade e fraternidade
(Pernambuco, 2009, p.10).
Pe. Arnóbio utiliza o fio condutor do amor-reparação para criar um
grupo de jovens mulheres para levar adiante o seu sonho de colaborar
com o Senhor na messe. Por volta do ano de 1956, no dia 4 de setembro
de 1956, pontificado do Papa Pio XII, Pe. Arnóbio, escreve ao primeiro
Bispo de Sobral, Dom José Tupinambá da Frota, solicitando a Capela de
Santo Antônio, salão e terrenos anexos na cidade de Sobral para a sede
da Congregação, que desde 20 de maio daquele ano, com a aprovação
e bênçãos do Bispo, fora instituída. Dom José aceitou o pedido. Mas, a
criação oficial se deu no dia 15 de agosto de 1957, na festa da Assunção
de Nossa Senhora, do ano seguinte.
E o sonho se torna realidade. É como se Pe. Arnóbio escutasse:
“Vá! Siga seu chamado! Faça o bem aos que necessitam. Chame outras
pessoas para amar-reparar aos que sofrem e precisam de atenção, de
saúde, de pão e de educação. Pois, a riqueza e a profundidade interior
de vida mística devem desembocar sempre, naturalmente, na ação:

Esta (ação) pode assumir diferentes aspectos, dependen-


do das circunstâncias: pode ter um caráter marcadamen-
te religioso, caritativo, mas pode também se concretizar
no social e no político, de qualquer modo sendo total-
mente o contrário da fuga da realidade” (Vannini, 2005,
p. 19-20).

108
Em sua vida, Pe. Arnóbio encarna um profundo zelo pela Igreja
na pessoa dos pobres, dos jovens, no acompanhamento aos casais, na
escuta atenta no confessionário e no cuidado e presença à vida consa-
grada reparadora que estava a brotar.
Após observar alguns relatos da vida de Pe. Arnóbio, destaca-se
alguns testemunhos:

D. José Luiz Gomes de Vasconcelos - Bispo da Diocese de Sobral

A Diocese de Sobral criada pelo Papa Bento XV em 1915 teve como


primeiro Bispo um filho da terra Dom José Tupinambá da Frota, homem
iluminado, que amava sua terra e não mediu esforços para engrande-
cer sua Diocese. Além das edificações que imortalizadas seu nome o
grande legado deixado por este inesquecível prelado foi sem dúvida o
Clero que ele formou. Ali brotaram exímias vocações. Homens sábios,
intelectuais, pastores e santos. Do Clero formado por Dom José saíram
cinco Bispos. Desse mesmo Clero a Igreja Particular de Sobral conta
com três Servos de Deus com processo de Beatificação e Canonização.
Entre eles está o Monsenhor Joaquim Arnóbio de Andrade, falecido em
1986. Não são poucos os que conheceram aquele padre santo. Vigário
Geral da Diocese de Sobral do ano 1965 até sua Páscoa eterna. Segundo
depoimento dos que o conheceram era o homem da escuta, da mansi-
dão, do aconselhamento e da adoração reparadora ao Sagrado Coração
de Jesus. Inclusive, a fundação da Congregação das irmãs Missionárias
Reparadoras do Coração de Jesus foi sem dúvida seu maior legado.
Pelo fruto se conhece a árvore, diz o Senhor.
As irmãs discípulas do Monsenhor Joaquim Arnóbio estão inse-
ridas na Diocese de Sobral e com fidelidade ao carisma do seu funda-
dor fazem transbordar o amor do coração ferido e misericordioso de
Jesus por onde atuam. Seja na educação de crianças, adolescentes e
jovens, seja na ação evangelizadora paroquial, seja nas obras sociais,

109
seja na vida de oração que cultivam aprendidas por imortal mestre de
oração que deixou nelas impresso o compromisso com a mais piedosa
reparação.
A Diocese de Sobral e a Congregação das Irmãs Missionárias
Reparadoras do Coração de Jesus esperam ansiosas de um dia verem
seu filho e pai respectivamente elevado à glória dos altares.

Ir. Antonieta Carneiro Portela, ex-Superiora Geral das


Missionárias do Coração de Jesus

Encontro-me agora diante da imagem do Coração de Jesus e reflito


na oferenda da vida de Pe. Arnóbio. É preciso uma grande ousadia para
seguir Jesus e está à disposição do Senhor para escutá-lo: “amplia o
lugar da tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas, não te dete-
nhas, alonga as cordas, reforça as estacas” (Bíblia de Jerusalém, 2002,
Is 53, 2) e foi o que Pe. Arnóbio fez; espalhou a Boa Nova, qual semen-
te ao vento: fez avançar o que está em germe a nossa Congregação e
chamou aquém encontrou para seguir o Mestre. Posso, hoje, contem-
plar suas marcas na família reparadora e em tantos irmãos sacerdotes,
fruto da missão vocacional de Pe. Arnóbio. Escutar as dores do coração
humano foi parte da missão de nosso pai fundador.

Testemunho de Pe. Emídio Moura Gomes

Pe. Arnóbio foi meu padrinho de crisma. Era um homem acessível,


voz mansa, tinha um olhar fixo quando falava com a gente, comuni-
cativo e sempre de batina azulada. Evangelizava nas zonas rurais de
Taperuaba-CE, 71 km de Sobral e impressionava as pessoas por saber
ouvir, orientava e criava uma ligação afetuosa com muitas pessoas. Pe.
Arnóbio, foi o primeiro reitor no Seminário Menor em Sobral-CE. Lá,
eu pude vê-lo assíduo, exigente para com a nossa educação.

110
A cada dia, antes da Oração das Completas, fazia um apanhado de
tudo que havia observado durante o dia e terminava sempre exortando
a cada seminarista em se tornar como São Luiz de Gonzaga: “fazendo
em cada momento o que era para fazer”. Era o primeiro e o último a
sair da capela: sempre o encontrávamos ajoelhado com as mãos segu-
rando o rosto e os olhos semifechados, depositava no Coração de Jesus
a missão, as dores e esperanças do povo e de todos que conviviam com
ele. Reservava sempre um tempo para a escuta atenta de cada um pre-
cisasse falar com ele
Acredito que o seu legado, além da Congregação das Missionárias
Reparadoras do Coração de Jesus é também para nós, Padre Diocesanos,
um exemplo de pastor, de homem de oração e de cuidado para com
os pobres. Com a crise de identidade no clero de Sobral-CE, no iní-
cio do Vaticano II, muitos jovens saíram e foram acolhidos por Pe.
Arnóbio, que colaborou com a reabertura do Seminário de Sobral-CE,
no pós-Concílio, e no início das vocações sacerdotais na Diocese de
Sobral-CE.
Eu vi em Pe. Arnóbio as palavras do evangelho de João se torna-
rem concretas: “O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (Bíblia de
Jerusalém, 2002, Jo 10,11). Ele gastou sua vida, inteira, promovendo
o bem das pessoas e da Igreja, cultivando uma rede de contatos (não
havia celular) com pessoas de todas as classes sociais, incentivando as
vocações laical, religiosas e sacerdotal.
Recordo com emoção, quando ele já tinha extraído um rim e conti-
nuava trabalhando ativamente, eu indaguei: - “Mons. Arnóbio, por que
o senhor se impõe ainda tantas tarefas? Ele me olhou demoradamente
em silêncio e responde: “é, meu caboclo, quando se tem pouco tempo
precisa trabalhar com maior dedicação”.

111
Francisco das Chagas do Nascimento, docente do Instituto
Benjamin Soares

Quando Pe. Arnóbio, tomou a firme decisão de seguir Jesus (Bíblia


de Jerusalém, 2002, Lc 9,51), por querer conformar-se à Vontade di-
vina, ele vai construindo um caminho para suas ousadas inspirações
espirituais, uma via espiritual para atingir a liberdade de espírito e a
alegria pascal, pois, não existe uma vida espiritual autêntica sem um
risco absoluto. Para quem nasce de Deus, encontra-se é perde-se (De
Mori, 2022, p. 419).
Toda a vida de Pe. Arnóbio foi marcada pela práxis do cuidado: o
cultivo cotidiano da vida de oração, a obediência e escuta amorosa a
Igreja, o exercício metódico em ler as Sagradas Escrituras, a atenção
e cuidado aos mais necessitados, a contínua superação de si próprio
para tornar-se simples e ser útil às pessoas, está à disposição de Jesus
no amor eucarístico e no amor aos “Jesus” que sofrem.
Nesse caminho o grande teólogo alemão contemporâneo, Johann-
Baptist Metz afirma que a mística é:

A experiência de Deus inspirada biblicamente não é uma


mística de olhos fechados, mas sim uma mística de olhos
abertos; não é uma percepção relacionada unicamente
conosco mesmos, mas sim uma percepção intensificada
do sofrimento alheio (Metz, 1996, p. 26).

A vida de Pe. Arnóbio é marcada pela mística do amor-reparação e


seu testemunho perdura até hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há no amor-reparação uma realização que plenifica o ser. No per-
curso espiritual da vida de Pe. Arnóbio, ele compreende que seguir
Jesus implica abrir os olhos para a realidade que o cerca. Sua vida é

112
uma mística de olhos abertos, em que todos são chamados a ser. É um
caminho construído lentamente perseverança, persistência e cuidado.
Pois, rezar é um trabalho, artesanal, “fio a fio”, que envolve todo o ser e
o interpela a estar completamente presente em Deus e receptível a ele.
Hoje, nós, Missionárias Reparadoras do Coração de Jesus, so-
mos interpeladas a atualizar a experiência espiritual fundante de Pe.
Arnóbio: reparar com amor e evangelizar em todos os recantos da
realidade em que estamos inseridas. Cuidar com amor e atenção das
crianças em situação de vulnerabilidade social, na construção de uma
sociedade mais justa e fraterna no mundo da educação, construir jun-
tos um caminho sinodal nas pastorais e movimentos de uma Igreja em
saída.
A experiência espiritual de Pe. Arnóbio não está separada da prá-
xis-mística-ética-reparação. Ele é um homem nordestino, do século
XX, exemplo de “místico com os olhos abertos”, ousa corresponder ao
amor do Amado, o Reparador por excelência, experimentado em sua
inteireza, esvazia-se de si e ao voltar cada vez mais para o seu interior,
escuta o Mestre: “alarga o espaço de sua tenda, estende as cortinas das
tuas moradas, não te detenhas, alonga as cordas e reforça as estacas”
(Bíblia de Jerusalém, 2002, Is 54, 2). Pe. Arnóbio, vive um processo de
descentrar-se, para que Deus encontre em sua vida um lugar para Ser.

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PERNAMBUCO, Mariana do Nascimento. A mística cristã na con-


temporaneidade. Disponível em: https://www.puc-rio.br/ensi-
nopesq/ccpg/pibic/relatorio_resumo2009/relatorio/ctch/teo/mariana.
pdf. Acesso em: 24 mar. 2023.

PIO XII. Haurietis Aquas. São Paulo, Paulus, 2003.

VANNINI, Marco. Introdução à Mística. São Paulo: Loyola, 2005

114
MARCELO
PINTO
CARVALHEIRA
Dom Marcelo

Sergio Sezino Douets Vasconcelos34


Marcelo Marques Santana Júnior35

INTRODUÇÃO
Este trabalho busca refletir sobre um aspecto da vida e da obra de
Dom Marcelo Pinto Carvalheira36, um homem de grande influência e
participação na história da Igreja no Nordeste do Brasil. Nos limita-
remos ao seu período como padre na Arquidiocese de Olinda e Recife,
especificamente sobre a sua contribuição, a partir da sua profundida-
de espiritual e sensibilidade pastoral, para a formação sacerdotal no
Nordeste do Brasil.
Marcelo Pinto Carvalheira nasceu em Recife (PE), em 01 de maio
de 1928 e faleceu 25 de março de 2017. Natural da cidade do Recife,
Pernambuco. Filho do Álvaro Pinto Carvalheira e de Maria Theresa

34 Professor dos Programas de Pós-Graduação em Ciências da Religião (Doutorado e


Mestrado) e de Teologia (Mestrado), da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP,
onde atualmente coordena o Curso de Teologia.
35 Mestre em Ciências da Religião, no Programa de Ciências da Religião da UNICAP.
36 Marcelo Pinto Carvalheira (1928-2011) foi nomeado bispo auxiliar da Arquidiocese da
Paraíba, em 1975. Em 1981, torna-se bispo da Diocese de Guarabira - PB. E em 1995 torna-
se Arcebispo da Arquidiocese da Paraíba, até 2004. Como bispo e arcebispo, foi membro da
Comissão Episcopal de Pastoral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-CNBB (1987-
1991 e 1995-1998), foi responsável pelo setor dos Leigos e das CEBs e foi Vice-Presidente da
CNBB Nacional (1998-2004). Participou do Sínodo dos Bispos, sobre os Leigos e da Quarta
Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Santo Domingo e foi delegado à
Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a América, em 1997, em Roma.

115
Mendonça Carvalheira, sendo ele o terceiro filho do segundo casamen-
to do seu pai (Carvalheira, 1996, p. 19).
Oriundo de uma família católica, foi fortemente influenciado pelo
ambiente católico familiar, principalmente da sua mãe e de dois tios
padres, irmãos da sua mãe: Pe. José Carvalho de Mendonça e Pe. Luiz
Gonzaga Carvalho de Mendonça. Os irmãos padres faziam parte da
Congregação dos Salesianos.
Dede cedo, o jovem Marcelo se sentiu atraído pela espiritualidade
beneditina, buscando construir uma espiritualidade em que a união da
mística com a evangelização o levasse ao cerne social da mensagem
do Evangelho. Contudo, essa inclinação não o realizaria se ele a encer-
rasse nas paredes de um mosteiro, pois a mística, “ao que lhe parecia”,
não se limita a uma vida de solidão, sem comprometimento direto com
o anúncio do Reino de Deus na sociedade.
No final dos anos de 1930, Marcelo Carvalheira já manifestava o
desejo de ingressar no seminário. Contudo, seus pais o achavam muito
novo para assumir tal responsabilidade e, além disso, ele ainda cursava
o Ginasial. Porém, mesmo com a ponderação dos seus pais, Marcelo
realiza o seu desejo, entrando no Seminário Arquiepiscopal de Olinda
e Recife - Seminário Maior Nossa Senhora da Graça (Nunes, 2001, p. 1).
Ele ingressou no Seminário de Olinda, em um período forte e rico
para a história da Igreja Católica, pois naquele período surgiram muitos
movimentos de renovação eclesial, como a Ação Católica37; no campo
teológico, surgiram vários pensadores que procuravam dar respostas
aos desafios em relação ao diálogo da Igreja com a sociedade moderna,
também estava em um forte momento o “Movimento Litúrgico38”que

37 A Ação Católica foi um movimento surgido na Igreja Católica que tinha como objetivo
uma maior atuação dos diversos seguimentos do catolicismo na sociedade civil.
38 O final do século XIX e a primeira metade do século XX, foram marcados, na Igreja Católica,
por um forte movimento que pedia a revisão da forma celebrativa no catolicismo. Esse
movimento culminou na promulgação da Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium,
sobre a Sagrada Liturgia, em 04 de dezembro de 1963.

116
juntamente com o “Movimento de volta às fontes” influenciaram pro-
fundamente o pensamento do jovem seminarista, bem como outros
“movimentos”.
A formação seminarística se deu, sobretudo, em duas etapas: a
primeira no Seminário de Olinda, onde cursou o Seminário Menor e a
segunda, residindo no Colégio Internacional Pio Brasileiro, em Roma,
sendo seus estudos de Filosofia e Teologia realizados na Universidade
Gregoriana, na mesma cidade. Sobre este período, um testemunho de
um contemporâneo:

Duas coisas que mais me fazem recordar de Marcelo, era


a sua seriedade e piedade. Era sempre um menino muito
sério. Cumpridor de seus deveres. Não se envolvia nunca
em problemas. E possuía uma capacidade de concentra-
ção muito grande. Quando ele estava na capela, eu logo
percebia algo diferente. Forte. Muitos não entendiam,
mas só depois eu pude dizer: aquilo que eu percebia era
verdade (Rocha, 2015).

Desde a infância, a vida espiritual de Marcelo era acentuada por


pequenos gestos que o acompanhavam. A forma de rezar, os gestos, a
participação na Missa, são sempre características apontadas por quem
o observava. Como afirma Zeferino Rocha, “Quando ele ia para a fila
da comunhão, chamava a atenção de todo mundo. A forma como se
comportava, me admirava. Havia uma fé muito grande” (Rocha, 2015).
Não foram anos fáceis, a Europa pós-guerra estava muito sofrida.
Além disso, a distância do Brasil. Contudo, não foram as dores e difi-
culdades que impediram que a vida espiritual do jovem encontrasse
seus alicerces mais fortes. O silêncio das catacumbas romanas e o en-
contro com a história dos primeiros cristãos o faziam solidificar uma
mística muito profunda.
Ao término do curso de Teologia foi ordenado presbítero em Roma,
no dia 28 de fevereiro de 1953, juntamente com outros 80 jovens, pela

117
imposição das mãos e oração consacratória do Cardeal Caetani39. Já
no presbiterado, resolveu adotar o lema que o acompanharia por toda
vida e que é a expressão de seu ideal: “Evangelizar”. Nas catacumbas
romanas também celebrou sua primeira missa, sob o silencioso teste-
munho daqueles que morreram pelo Evangelho.

A VIDA COMO SACERDOTE NA ARQUIDIOCESE DE OLINDA E


RECIFE
As aptidões para os estudos, a vida espiritual e a postura moral fi-
zeram com que o Pe. Marcelo exercesse seu ministério presbiteral qua-
se que integralmente ligado à formação dos novos presbíteros. Assim
que foi ordenado, foi logo convocado pelo Arcebispo, Dom Antônio
Almeida de Moraes Júnior40, para integrar a equipe de formação do
seminário menor, como diretor espiritual, tendo como reitor, o Pe.
Zeferino Rocha41.
Os primeiros anos no trabalho de formação foram muito ricos e
muito desafiadores. A Igreja vivia tempo de efervescências. Manter o
equilíbrio entre avanços e fidelidade era um grande desafio para o cle-

39 Não consta em nenhuma referência dados bibliográficos a respeito do referido cardeal


ordenante. Era um costume, entre os colégios internacionais situados em Roma, que, uma
vez ao ano, se convidasse um bispo ou cardeal que trabalhasse na cúria romana ou estivesse
de passagem em Roma para conceder as ordenações aos candidatos que estivessem
preparados naquele ano. Assim, é de se concluir, que o Cardeal Caetani não tinha nenhuma
ligação afetiva com o seminarista Marcelo Carvalheira, mas fora simplesmente convidado
para conferir-lhe, juntamente com outros, a Ordenação.
40 Dom Antônio Almeida de Moraes Júnior foi o quarto arcebispo de Olinda e Recife.
Mineiro, de Sapucaí-Mirím, nascido em 26 de junho de 1904, foi nomeado bispo para
Montes Claros em 1949 e, em 1952, transferido para Olinda e Recife onde permaneceu por
oito anos. Conhecido por ser um grande orador, foi muito envolvido nas causas sociais de
seu tempo, além de muito respeitado no meio intelectual.
41 Zeferino de Jesus Barbosa Rocha, pernambucano, nascido em 26 de agosto 1928,
foi seminarista e, posteriormente padre da Arquidiocese de Olinda e Recife. Conviveu
com Marcelo Carvalheira, ainda no seminário menor de Olinda, bem como no Colégio
Internacional Pio Brasileiro, em Roma, onde fez seus estudos de filosofia e teologia, e
mestrado em ambas as disciplinas. Na década de 1960, deixou o ministério sacerdotal.

118
ro da época, sobretudo para aqueles que estavam à frente da formação
dos novos presbíteros.
Inserida num mundo de descobertas e conquistas, a Igreja, já nas
primeiras décadas do século XX42, percebe que há uma necessidade ur-
gente de renovação. Surgem então, as primeiras aspirações que resul-
tariam no Concílio Vaticano II.
Sem dúvida alguma, o Concílio Vaticano II foi o maior evento ecle-
sial, não de um século, mas, de uma era. O próprio Papa João XXIII,
cercado de críticas e diante da perplexidade do Concílio, se surpreen-
dia diante do acontecimento eclesial. Em seu leito de morte, o Papa
Bom43, disse ao Mons. Cappovilla: “Nenhum medo. O Senhor está pre-
sente. Um novo tempo começou”44.
Um Novo tempo! Era exatamente isso que a Igreja abria com o
Concílio. A Igreja gera uma consciência acerca da necessidade de ini-
ciar uma nova fase de sua vida em que ela se colocasse à par com o
tempo, com a sociedade que a circundava. Uma palavra caracterizou
a proposta do Papa João XXIII: “aggiornamento”. “Colocar-se em dia”,
“atualizar-se”. Era isso o necessário! A Igreja precisava inserir-se no
tempo, seja, como alguns pensavam, sendo ousada, jogando-se na
busca do novo, seja como outros pensavam, perdendo a segurança de
suas trincheiras que a colocaram de pé durante tanto tempo.
Esse contexto eclesial refletia claramente no estilo de formação,
nas discussões acadêmicas, no comportamento e no modo de ser dos
seminários. A ânsia dos formandos e o equilíbrio dos formadores pre-
cisavam travar uma batalha sadia na busca da construção de um pres-
bitério capaz de enxergar o seu tempo e à frente dele. Obviamente,

42 Já na Encíclica Rerum Novarum, que data do final do século XIX (1891), o papa Leão XIII
expressa preocupação com tão grandes modificações.
43 O Estilo e Abertura do Papa João XXIII logo conquistaram a massa católica, o que o fez
receber o Título popular de “Papa Bom”!
44 O Mons. Cappovilla transmite essa mensagem a Dom Helder Câmara em carta datada de
26 ou 27 de setembro de 1964 (Camara, 2009, vol. 1, tomo II, p. 63).

119
tudo isso era tomado pelo jovem Pe. Marcelo, a partir de suas intuições
espirituais e de uma profunda seriedade com a missão de evangelizar.

MARCELO CARVALHEIRA: SUA ATUAÇÃO NA FORMAÇÃO


PRESBITERAL DO NORDESTE II
Nesse sentido, o Pe. Marcelo Carvalheira teve uma atuação impor-
tantíssima para o seu tempo, através da formação dos futuros pres-
bíteros da Igreja Católica. Motivado pelas grandes mudanças de seu
tempo, seja no âmbito eclesial ou seja civil, teve a preocupação de
formar sacerdotes cultos e sensíveis para o trabalho pastoral, a fim
de que com clara percepção da realidade, sensibilizar-se e promover
o povo carente, não apenas com o acesso ao mais imediato, mas com
uma promoção humana, capaz de transformar as situações e promover
integralmente a pessoa.
Em 1960, o Pe. Marcelo Carvalheira, que avia sido diretor espiri-
tual, torna-se vice-reitor do Seminário de Olinda, conhecido como a
Escola de Heróis45. O reitor era o Cônego Miguel Cavalcanti.
A volta ao Seminário de Olinda marcava, também, o início da con-
cretização de um projeto muito caro aos Bispos do Regional Nordeste
II, da CNBB46, a partir das inspirações do Concílio Vaticano II: a cria-
ção de um seminário regional para o nordeste brasileiro, que pudesse
oferecer melhor estrutura de formação aos futuros padres, sobretudo,
das dioceses mais distantes e desprovidas de recursos, tanto materiais
como humanos.

45 Escola de Heróis é um título dado ao Seminário Arquidiocesano de Olinda, pelo cônego


José do Carmo Baratta, em reconhecimento à bravura e grandeza de muitos daqueles que
ali foram formados e que influenciaram grandes acontecimentos em nível local e nacional,
como a Revolução Pernambucana de 1817 (Baratta, 1985, p. 54).
46 A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) é um órgão colegiado da Igreja do
Brasil que organiza os bispos, dioceses, fiéis, a fim de uma maior eficácia na ação pastoral.
Devido às grandes proporções do Brasil, para facilitar a articulação, a conferência se divide
em regiões territoriais. No Nordeste brasileiro há quatro. A segunda delas (Nordeste II),
compreende os estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.

120
UMA NOVA CONCEPÇÃO DE FORMAÇÃO SACERDOTAL
Durante o VII Congresso Eucarístico Nacional, que seu deu de 05
a 08 de maio de 1960, na Cidade de Curitiba, o episcopado do Regional
Nordeste II, em reunião à parte das atividades do congresso47, nova-
mente optou por deixar o prédio do Seminário de Olinda, que não
comportaria tantos estudantes e construir novas instalações para um
novo Seminário Regional, com capacidade para acolher 450 alunos.
Para esse fim, foi montada uma comissão composta por Dom Carlos
Coelho48,Dom Aldelmo Machado49, Dom Manuel Pereira50, Pe. Luiz

47 Devido às distâncias territoriais, não era tão fácil para os bispos, com as demandas de
suas dioceses, fazerem reuniões com frequência sobre os temas comuns de governo. Assim,
ainda hoje é prática, que sempre que há um evento eclesial de grande porte que reúne as
lideranças de vários territórios, se separa um tempo para reuniões que toquem problemas
comuns.
48 Carlos Gouveia Coelho nasceu em 28 de dezembro de 1907 na Paraíba. Ingressou no
seminário da Paraíba, e uma vez ordenado presbítero, foi designado secretario do bispado
da Paraíba - que era ocupado por seu tio, Dom Moisés Sizenando Coelho, vigário cooperador
e diretor do Colégio Padre Rolim. Em seguida, foi catedrático do Seminário da Paraíba.
Capelão do Colégio Pio X de João Pessoa e de N. Sra. de Lourdes e diretor do Departamento
de Educação da Paraíba. Foi também presidente da Comissão de Educação da CNBB, sócio
e presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano. Em 1948, foi
nomeado bispo da Diocese de Nazaré, de onde foi transferido para Niterói, em 1954, e, daí,
para a Arquidiocese de Olinda e Recife, em 1960. Submetido a uma intervenção cirúrgica,
não resistiu devido a complicações com a anestesia.
49 Adelmo Cavalcante Machado nasceu em 05 de março de 1905 em Penedo, Alagoas.
Foi bispo coadjutor de Maceió, tendo direito à sucessão, que se deu em 1963. Foi um dos
pioneiros no Brasil da implantação das decisões do Concílio Vaticano II. Incentivou a vinda
de ordens religiosas para a Arquidiocese de Maceió, bem como a inserção delas nas obras
de caridade, fundando escolas e orfanatos. Veio a falecer em 28 de novembro de 1983,
vítima de espasmo cerebral, que o debilitava desde 1974.
50 Dom Manoel Pereira da Costa nasceu em Pocinhos-PB, aos 12 de setembro de 1915.
Filho de Libânio Pereira da Costa e Vicência Pereira da Costa. Estudou em Pocinhos,
Seminário Metropolitano de João Pessoa, Seminário Metropolitano de São Paulo, Colégio
Pio Brasileiro (Roma) e Universidade Gregoriana. Foi ordenado em Roma, a 23 de março
de 1940. Professor de Filosofia e Teologia no Seminário de João Pessoa. Vice-Reitor, depois
Reitor do Seminário. Iniciou a construção do novo Seminário de João Pessoa. No dia 31
de maio foi eleito Bispo Titular de Tino, Auxiliar de João Pessoa. A 15 de agosto de 1954
foi sagrado Bispo na Catedral Metropolitana. Em 20 de junho de 1959, foi transferido para
diocese de Nazaré da Mata - PE. No dia 25 de agosto de 1962, foi transferido para a Diocese
de Campina Grande, e no dia 30 de setembro de 1962 tomou posse como Bispo de Campina
Grande. Nesse mesmo ano em 06 de outubro, partiu para Roma (Concílio Vaticano II). Dom
Manoel faleceu aos 91 anos de idade, no dia 26 de julho de 2006.

121
Gonzaga Fernandes51 e Pe. Marcelo Carvalheira. O novo edifício seria
construído no entorno do Recife, por se julgar que era a cidade da re-
gião com a melhor estrutura para acolher o projeto.
A consciência caritativa do Pe. Marcelo foi fundamental nessa eta-
pa da vida. O sentido mais profundo de sua consciência de Deus lhe
apontava para a liberdade. E isso marcaria profundamente o seu con-
ceito de formação. Era claro para ele que a postura do reitor do semi-
nário, como aquela figura autoritária e inacessível, era maléfica para o
futuro, tanto da Igreja Católica, como da sociedade. O padre formado
na opressão se tornava insensível e, assim, incapaz de ser pastor.
Uma nova organização foi criada, com uma participação ativa dos
seminaristas na organização da casa e nas constituições disciplina-
res. Eram feitas reuniões periódicas para analisar as dificuldades da
comunidade. Foram criadas as chamadas “equipes de vida”, formadas
por números reduzidos de seminaristas, a fim de trabalhar uma maior
aproximação. Dividiu-se o Seminário em setores e departamentos,
para organizar e planejar as diversas atividades da casa, a fim de que
os próprios alunos promovessem o bem da comunidade, como depar-
tamento de esportes, de liturgia, de estudos, dentre outras. Daí, um
aprendizado fundamental para a vida pastoral dos futuros presbíteros:
as lições da escuta atenciosa dos subordinados, da abertura à opinião
do outro, da obediência tendo como fundamento não a autoridade ou
a superioridade, mas o diálogo e a felicidade de todos.
A vida de um padre, na consciência do Pe. Marcelo, exigia compe-
tência. Não é que o padre se capacitaria para viver uma vida paralela
à da Igreja, com outras competências que não toquem a sua vida mi-
nisterial, é que ele precisava ser presença evangelizadora nas diver-

51 Luiz Gonzaga Fernandes nasceu em 24 de agosto de 1926 na cidade de Marcelino Vieira,


no Rio Grande do Norte. Entrou no seminário de Maceió e foi ordenado em 08 de dezembro
de 1950. É nomeado bispo de Campina Grande e ordenado em 05 de dezembro de 1965. É
conhecido pelo seu trabalho com as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Faleceu em 04
de abril de 2003 em João Pessoa, Paraíba.

122
sas realidades sociais. Ser uma presença inteligente, aberta, capaz de
dialogar e assim, convencer. Não pela imposição, mas, pela clara de-
fesa da verdade. Como ele mesmo afirma: “O padre hoje precisa con-
quistar. Pelo seu conteúdo pessoal, o seu papel dentro da sociedade.
Pelo seu valor autêntico, ele deverá tornar-se acreditado e estimado”
(Carvalheira, 1966, p. 550).
Outro tema de grande relevância para a compreensão da formação
presbiteral do Pe. Marcelo Carvalheira era a atuação pastoral. Além
das palestras e rodas de discussão, a partir de 1965, os seminaristas,
aos finais de semana, deixaram o Seminário de Olinda e passaram a
colaborar nas paróquias.
A pastoral proporcionava para os seminaristas um confronto com
a realidade em suas diversas esferas. Tirava-os do isolamento prote-
cionista da grande casa para fazê-los confrontar-se com o que pensava
e fazia a sociedade. Os seminaristas podiam sentir as diversas tendên-
cias que iam surgindo na sociedade, tinham aproximação com os jo-
vens da mesma idade. Muitas vezes, esse choque era duro, pois exigia
adaptação e capacidade de diálogo, mas extremamente necessário e
enriquecedor. Toda essa ação pastoral e humana recebia um acento
muito especial da formação espiritual. O Pe. Marcelo Carvalheira dava
uma dimensão muito clara ao crescimento espiritual dos formandos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao observarmos a visão e as decisões tomadas por Marcelo
Carvalheira, como responsável pela formação presbiteral na
Arquidiocese de Olinda e Recife, pode-se perceber como ele, em coe-
rência com as orientações do Concílio Vaticano II, soube ser capaz de
“ler os sinais dos tempos”, percebendo, antecipadamente, os novos
desafios da cultura contemporânea, para as novas lideranças religio-
sos da Igreja católica. Ele foi capaz de perceber que a complexidade da

123
cultura moderna exige da formação dos seus futuros líderes religiosos
uma aguçada capacidade de dialogar com as múltiplas variantes da
cultura. Para isso, a formação sacerdotal deveria promover a possibili-
dade para que os formandos adquirissem competências e habilidades,
a partir de vivências, para serem capazes de construírem “pontes entre
o cristianismo e a cultura contemporânea. Marcelo Carvalheira, como
foi apresentado, além de uma profunda experiência espiritual, possuía
uma invejável formação humanística, além de ter consciência que a
Igreja deveria apesentar o Evangelho de forma que as pessoas encon-
trassem a relevância antropológica dos enunciados da fé para a sua
própria existência. Para tanto, era fundamental ter sacerdotes capazes
de repropor a fé em diálogo com a complexidade da cultura contem-
porânea, superando uma “teologia de seminário”, autorreferenciada,
característica da formação sacerdotal que foi se desenvolvendo em
oposição aos desafios da sociedade moderna. Pelo contrário, para ele,
a formação deveria levar os futuros sacerdotes ao diálogo, à luz da fé
cristã, com as diferentes dimensões da cultura.
Ele tinha muita clareza de quais eram as demandas da cultura e o
que deveria ser, do ponto de vista teológico e espiritual, um padre dio-
cesano nos tempos atuais e, por isso, se esforçava ao máximo para que
os seminaristas fizessem, já nas etapas formativas, uma experiência
transparente daquilo que os acompanharia, por toda a vida, no exercí-
cio do ministério presbiteral. Era a consciência de que espiritualidade
e ação pastoral são duas faces de uma única moeda. Um bom padre
diocesano não poderia se imiscuir do trabalho pastoral que exigia dele
presença no meio do povo e sabedoria bem fundada para guiar este
mesmo povo nos caminhos do Senhor.
Ele tinha consciência, e já antecipava o que hoje se tem consciên-
cia, de que a formação sacerdotal deve ser integral, dando ferramentas
para que o futuro sacerdote seja capaz de se tornar um “cura d’alma”,
em um mundo cada vez mais complexo e líquido. Para tanto, ele já

124
propunha, como podemos ver, mesmo antes da utilização do termo
no debate teórico contemporâneo, uma formação interdisciplinar, ca-
paz de favorecer vivências motivadoras de competências e habilida-
des para os futuros sacerdotes capazes de apresentar o cristianismo na
cultura atual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARATTA, José do Carmo. Escola de heróis: o Colégio Nossa Senhora
da Graça e o Seminário de Olinda. Recife: Fundarpe, 1985.

BEZERRA, Almeri. Entrevista, 2015.

CABRAL, Newton D. de Andrade. Onde está o povo, aí está a Igreja?


História e memória do Seminário Regional Nordeste II, do Instituto
de Teologia do Recife e do Departamento de Pesquisa e Assessoria.
Recife: Fundação Antônio dos Santos Abranches, 2008.

CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 13/14 de outubro de 1962


a março de 1964. Recife: CEPE, 2009. vol. II, tomo I.

CARVALHEIRA, José Henrique. A família Carvalheira em


Pernambuco. Recife: s/ed., 1996.

CARVALHEIRA, Marcelo. O tipo de padre que a Igreja espera após


o Concílio Vaticano II. In: Revista Eclesiástica Brasileira, n. 26,
Petrópolis: Vozes, 1966.

NUNES, José. Dom Marcelo: o bispo da solidariedade. João Pessoa:


Textoarte Editora, 2001.

ROCHA, Zeferino. Entrevista, 2015.

ROCHA, Zildo. Anotações pessoais, 1959-1964.

125
III

MÍSTICOS(AS) LIGADOS(AS)
À TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

ADÉLIA CARVALHO
Irmã Adélia

AGOSTINHA VIEIRA DE MELO


Irmã Agostinha

ANGELINO CAIO FEITOSA


Frei Angelino

GERALDO LEITE BASTOS


Padre Geraldo

IVAN TEÓFILO

JOSÉ CALIXTO FERREIRA DE ARAÚJO


Padre Calixto

JOSÉ COMBLIN
Pe. Comblin

MARGARIDA ALVES

REGINALDO VELOSO
Padre Reginaldo

ROMANO ZUFFEREY
Padre Romano

126
ADÉLIA
CARVALHO
Irmã Adélia

Zélia Cristina Pedrosa do Nascimento52

INTRODUÇÃO
Trazemos para reflexão neste livro que resgata figuras de mís-
ticas e místicas do Nordeste do século XX o testemunho de Adélia
Carvalho, artista plástica e religiosa da Congregação das Filhas de
Maria Auxiliadora - FMA, mais conhecidas como irmãs salesianas. Irmã
Adélia sempre atuou junto as comunidades populares seja no Recife-
PE ou em Moçambique na África e se identificava com o Cristianismo
da Libertação e expressava em seus quadros os seus sentimentos, suas
convicções e sua mística, ou seja, tudo aquilo que impulsionava sua
vida e sua missão. 53
Com as cores e as formas ela revelava sua visão do mundo e do
divino que sempre deviam estar em comunhão. Em seus trabalhos a
figura de Jesus não era a principal, mas inspiração e presença junto
as lutas por um mundo mais pleno de vida. Se ao longo dos anos as
características de suas pinturas mudaram revelando as influências das
experiências que viveu na missão, os traços que permanecem, como
os grandes olhos das figuras, a profusão de cores, a valorização da cul-

52 Mestra em Educação pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Doutoranda


em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Especialista em
Assessoria Bíblica pela Escola Superior de Teologia da Faculdade Luterana de São Leopoldo.
Assessora do Centro de estudos Bíblicos de Mossoró/RN. E mail: zelia.2020801116@unicap.br
53 Parte desse texto foi apresentado no XI Congresso Internacional de Ciências da Religião
da PUC-GO

127
tura popular a riqueza de detalhes e o simbolismo de cada imagem
demonstram a riqueza da sua espiritualidade, a força de sua esperança
e o compromisso com os valores que acreditava e vivia.
A partir de dados biográficos e da contemplação de alguns de seus
quadros queremos destacar a coerência entre sua vida e sua arte, am-
bas impregnadas das experiências missionárias junto aos pobres e aos
movimentos populares. Principalmente colocando seus dons a servi-
ços das causas que acreditava.
A forma como Adélia entendia sua arte pode ser resumida nesse
trecho do artigo que ela escreveu para o livro comemorativo dos 25
anos do Curso de Verão:

Entendo que a arte não é simplesmente um enfeite ou


uma expressão do belo, mas é uma atividade humana,
uma ferramenta para fazer pensar e mostrar aspectos da
realidade da nossa sociedade, da nossa comunidade que
precisam ser trabalhados, ora melhorando-os, ora modi-
ficando-os. Portanto, a arte vem a ser também uma ex-
pressão política (Carvalho, 2011, p.340).

Vamos verificar a força e a veracidade dessa compreensão, a partir


da vida e da arte produzida por Adélia.

ADÉLIA CARVALHO – UM RESUMO DA SUA HISTÓRIA54


A irmã Adélia Oliveira de Carvalho nasceu em 25/10/1937 no
Sítio Lagoa das Cobras, Município de Santo Antônio no Rio Grande do
Região agreste potiguar e bioma caatinga. Nascida em casa, com ajuda

54 Os dados biográficos sobre a irmã Adélia foram obtidos em publicações na internet,


especialmente homenagens feitas quando de seu falecimento em agosto de 2022 que
podem ser visualizadas nos seguintes links: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/621393-
a-arte-de-adelia-carvalho; https://www.facebook.com/cehilabrasil/about
Para dados mais pessoais e familiares, entrevistei a Sra. Eneida Dornellas, sobrinha de
Adélia e alguns amigos e amigas íntimas numa reunião on-line pelo aplicativo Google Meet.
Esse encontro foi gravado com autorização dos participantes.

128
de uma parteira, como tantos nordestinos. Perdeu a mãe ainda criança
e o pai na adolescência. Estes fatos fizeram a família ir morar em João
Pessoa, na Paraíba onde ingressou na Congregação das Filhas de Maria
auxiliadora – salesianas no ano de 1958, fez os primeiros votos em
1960 e permaneceu na vida religiosa até sua morte em 16/08/2022 no
Recife, após longa luta contra o câncer.
A sobrinha Eneida Dornellas nos conta que seu primeiro traba-
lho na vida religiosa foi como professora, mas logo passou a residir
em comunidades de periferia, especialmente na cidade do Recife, se
comprometendo com grupos populares e causas sociais. Um momento
marcante de sua vida religiosa foi a experiência missionária na África
onde morou por quase cinco anos, nas aldeias de Cabo Delgado, dio-
cese de Pemba, na região mais pobre de Moçambique ao norte do país.
Era animadora de comunidades e, na sua trajetória, fez par-
te de diversos grupos como o Centro de Estudos Bíblicos (Cebi) em
Pernambuco, onde integrou a equipe que criou o CEBI Quarto Sábado.
Era ligada a Comissão de Estudos da História da Igreja na América
Latina (CEHILA), ao Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e
Educação Popular (CESEEP), ao grupo dos artistas da caminhada55 e ao
Observatório das Religiões na UNICAP.
Sua veia artística está presente desde a infância, como ela mesma
declara ao recordar sua trajetória artística:

Desde cedo, gostei de me expressar em desenhos e traba-


lhos manuais. Diante das cores, sombras, relevos, paisa-
gens, imagens, esculturas, o meu instinto é de contem-
plação e admiração. A natureza é o meu espaço preferido.
Na escola, meus desenhos eram admirados por serem bem
feitos, com combinações de cores. Minha caminhada ar-

55 Para quem quiser conhecer um pouco amis sobre a trajetória do Movimento dos Artistas
da Caminhada e sua atuação junto as comunidades eclesiais de base consultar o blog http://
artistasdacaminhada.blogspot.com/. Em 2021 foi feita uma live recuperando essa história e
essa experiência do canal do You Tube do professor Babi Fonteles - https://www.youtube.
com/live/aWE827iVXgs?feature=share

129
tística, propriamente dita, tem início no noviciado (1958-
1959), quando começo a pintar a óleo temas religiosos.
Nos anos seguintes ao noviciado, continuo pintando, mas
sem orientação. Pintei cenários, murais e quadros. Minha
preferência é por figuras humanas. Paisagens e outros
elementos aparecem como complemento.56

Iniciou na pintura como autodidata e aponta como uma formação


mais técnica ao frequentar, em 1972, o atelier do Prof. Inaldo Medeiros
(em memória), na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Posteriormente, em 1995, frequentou o atelier do Prof. Maerlant
Denis, no Recife. Ilustrou cartilhas populares nos tempos de D Helder.
A cartilha “O Tesouro dos mais velhos” foi recuperada e disponibiliza-
da para download após a sua morte57.
Sua arte era engajada e coerente com suas escolhas de vida.
Infelizmente o espaço dessa comunicação não nos permite aprofundar
mais a sua vida, mas pelo exame de algumas obras que ela produziu
podemos conhecer melhor a artista, a mística, e a pessoa plenamente
humana que ela era.

A ARTE MISTICA E MILITANTE58


As obras mais divulgadas da irmã Adélia são painéis, cartões e
ilustrações elaboradas para o Centro de Estudos de História da Igreja
(CEHILA), e grandes painéis grandes painéis que serviam de quadro

56 Eduardo Hoornaert, no texto publicado pelo site da UNISINOS e já citado nesse trabalho,
partilha um escrito de Adélia intitulado ”Falando sobre minha trajetória artística’, que
ela redigiu em 25 de agosto de 2015, em preparação de um encontro rememorativo do
CEHILA, realizado em Belo Horizonte no qual fala sobre sua formação artística os sentidos
encontrados nela.
57 Disponível em: https://www1.unicap.br/observatorio2/?p=7084&fbclid=IwAR0En7ahjAe-
wQCAfgF5OsL7zjFdmkxZkMGtycTZIcpayqSPJ2RdYuL93jqI. Acesso em: 31 jul. 2023.
58 Os quadros aqui utilizados podem ser visualizados na internet, são obras públicas e
compartilhadas por diversas entidades

130
de fundo em Cursos de Verão promovidos pelo Centro Ecumênico de
Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEEP).
Eram cuidadosamente pensados, planejados e rezados e retrata-
vam o seu ser mais íntimo. Essa relação é percebida por Andréa Caselli
Gomes que entrevistou Adélia em 2017 e, ao falar sobre a sua arte,
assim se pronuncia:

As suas pinturas propõem um recolhimento no si mesmo,


harmonioso e envolvente: os contrastes das cores mos-
tram os dinamismos possíveis. Zela para que não se perca
de vista o ponto focal bem definido, que é a mensagem di-
vina contida nos textos bíblicos. É notável a presença do
simbolismo da partilha e do milagre do pão. O espectador
é permeado de devaneios a respeito do empenho e da ge-
nerosidade - ou da falta dela; incendeia-se de fogo sagra-
do. Une criatividade com interação (Gomes, 2021, p. 344).

Um exemplo desta interação pode ser visualizado no cartão abai-


xo que foi elaborado no ano de 2021 e transformado pelo CESEEP na
mensagem anual da instituição.

131
Podemos dizer que essa imagem evoca uma festa com fartura de
frutos gerados pela terra. Percebemos a harmonia entre as pessoas e a
natureza pois os animais estão tranquilos e até os astros se enfeitam.
A cena se passa em uma periferia pois a cidade está ao longe. No fundo
vemos as sombras das lutas populares, retratadas nas mobilizações e
bandeiras e que certamente contribuíram para esse momento de festa.
A figura de Jesus não está presente como indivíduo, mas o seu sonho
e o seu louvor estão na imagem, como ele exclamou em Mt,11,25-26:
“Naquele tempo, Jesus disse: «Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da
terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes, e as
revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado”
(Bíblia de Jerusalém, 2002).
Talvez um dos seus quadros mais famosos seja o painel intitulado
Ameríndia, reproduzido abaixo:

O quadro foi exposto em 2015 em Belo Horizonte duran-


te o II Congresso Continental de Teologia e ilustrou a capa do livro

132
Espiritualidade, transdisciplinaridade e diálogo 2 editado pela Unicap
e citado nas referências. No quadro há uma profusão de detalhes, to-
dos eles com uma mensagem e significados próprios, mas o conjunto
já causa impacto à primeira vista. Qual a memória que elas despertam:
a desigualdade, a poluição e degradação da natureza, os retirantes
da seca, o imperialismo? Que cada um veja com seus próprios olhos.
Acimo, no plano celeste temos uma intima ligação da mulher com o
cordeiro. De fato, o sangue do cordeiro alimenta a mulher, em uma cla-
ra alusão ao Apocalipse. As tradições e as inspirações se interpenetram.
A irmã Adélia, no livro editado pela UNICAP e já citado, explica
como chegou a construção desse painel e qual o sentido das imagens
que nele estão contemplados. Explica também a técnica usada para
chegar ao resultado final. Quero destacar aqui o sentimento que a in-
vadiu quando viu a sua inspiração exposta para a contemplação de
todos:

Quando pensei em dizer – Pronto! E assinei meu nome


na tela Ameríndia, fiquei invadida por um sentimento de
louvor e agradecimento, pois este trabalho, foi para mim
uma conquista e um presente do Céu. Claro que ele recla-
ma por estudos mais acurados sobretudo com relação à
palheta. - Nada de estranho. Foi o que consegui fazer nos
momentos de trabalho de criação e produção. Contudo,
estou feliz por vê-la assim e deixo-a exposta à crítica.
Também há muito a dizer, sobretudo, com relação aos
aspectos religiosos/culturais ali presentes. Neste cami-
nho gostaria que ela fosse um convite para olharmos as
diferenças religiosas com tranquilidade e como um hino
de louvor a Deus. Sem perder nossa identidade gostaria
que acontecesse com certa frequência momentos progra-
mados de vivência desse hino de louvor; gostaria que em
rede déssemos as mãos, como elos de uma corrente soli-
dária na luta pela promoção da vida, assim diferente mais
parecidos (Carvalho, 2011, p. 23).

133
Como vemos, uma imagem de Jesus que ultrapassa as imagens tra-
dicionais do cristianismo e o incorpora ao mundo no qual um dia se
encarnou. É nesse sentido também que ela faz uma releitura da última
ceia, conforme estampado na figura seguinte:

As diferenças em relação a representação clássica da ceia são evi-


dentes. Podemos elencar algumas. A mesa é circular. Os convivas são
em sua maioria mulheres e crianças. O encontro acontece fora de uma
sala, debaixo de uma árvore com frutos variados. Ao fundo temos os
grandes e impessoais prédios do mundo urbano, mas o grupo está en-
tranhado nas periferias. No centro um livro e os pães da partilha. Há
uma semelhança que se destaca em todas as figuras, longos braços e
grandes olhos, talvez retratando a capacidade de olhar o mundo com
mais profundidade e de se colocar a serviço tanto de quem está pró-
ximo como de quem está distante. A ceia de Adélia é mais rica e mais
inclusiva do que aquela comumente retratada de Jesus e os apóstolos.
Atenta a atuante nas grandes causas Adélia achava tempo de cul-
tivar as amizades e os pequenos grupos. Estimulava as pessoas a cres-

134
cerem, a se cuidar e a ter os olhos atentos para as revelações de Deus
espalhadas pelo cotidiano. Adélia tinha um gesto carinhoso de repro-
duzir em tamanho menor os grandes painéis e presentear os amigos,
alguns deles com modificações importantes. Um exemplo que pode-
mos citar é o do quadro da ceia, que ela releu na perspectiva das mu-
lheres, chegando a seguinte imagem, partilhada por Mary Ruth Lemos
Monteiro, amiga de Adélia e participante do CEBI Pernambuco:

Facilmente se percebe que é temos o mesmo enquadramento e


igual número de comensais. Mas nesse novo quadro com exceção de
Jesus, todas são mulheres. A cena é mais íntima pois o fundo é esmae-
cido. Na mesma mesa circular não temos Bíblia nem pães, mas muitas
centelhas coloridas que se espalham pelas roupas. Os olhares não se
voltam para Jesus, mas são dirigidos ao mesmo horizonte que ele fita.
A mesa está debaixo de duas arvores, mas nesse jardim nenhuma delas
produz o mal. A mesma cena, retrabalhada diante de novos temas e de-
safios. No ano de 2022 e CEBI Pernambuco estampou esse quadro em

135
uma caneca e entregou como lembrança as pessoas que participaram
da Assembleia anual.
Outras cenas e símbolos poderiam ser buscados e destacados, mas
o que apresentamos é suficiente para constatar que a arte acende em
nós sentidos nunca suspeitados e que Adélia e outros artistas nos aju-
dam a descobrir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde tempos antigos, a arte tem sido usada como uma forma de
expressar o sagrado e o divino. A arte religiosa, como a pintura de íco-
nes e as esculturas de santos, são exemplos de como a arte pode ser
usada para expressar e explorar ideias religiosas e espirituais. Adélia
segue essa tradição, mas também expressa suas convicções e suas
lutas.
Nela, a fé não é dogmática nem um ponto de chegada. Mas o início
de uma jornada de grandes descobertas que ela partilha a cada passo.
Nesse caminho ela não perde as suas raízes sertanejas, mas as apro-
funda e imbrica com outras culturas. Os amigos e familiares testemu-
nham que ela tinha o dom de juntar pessoas e animá-las, um dom tão
importante quanto a sua arte.
Trazemos uma última imagem e através dela apontar uma figura
que o Padre Oscar Beozzo associou a Adélia. Primeiro vamos ao quadro
e depois retomamos explicaremos:

136
Em publicação feita o site do CESEEP poucos dias depois da morte
de Adélia, o Padre José Oscar Beozzo, diretor da instituição e amigo de
Adélia se refere a esse painel elaborado para o Curso de Verão do ano
de 2014 que tinha como tema as juventudes. Nessa espiral que pode
parecer caótica está presente a riqueza e a dinâmica da criação e da
humanidade onde as diferenças são complementares. O ser humano
está no centro da espiral, brotando junto com a criação e as artes, mas
também no seu fim realizando uma grande marcha como parte de uma
grande marcha que celebra a diversidade e pede igualdade.
Padre José Oscar Beozzo chama a atenção para uma figura solitária
e contemplativa, colocada no local mais alto do prédio:

Trazemos um último painel pintado por Adélia para o


Curso de Verão de 2014, Juventudes em foco. Parece re-
tratar-se a si mesma encarapitada no alto de um prédio e
já querendo voar para o infinito e convidando-nos a nos
arriscar para esta mesma aventura. Relembra-nos que
“somos peregrinos e estrangeiros em busca da pátria de-
finitiva” (1 Pd 1, 11) que, há muitos anos, lutava brava-

137
mente contra um câncer insidioso, foi se apagando aos
poucos e, para fugir do inverno, agarrou-se a uma rabiola
colorida, na verdade a duas, uma em cada mão, logo ao
amanhecer de 16 de agosto de 2022, e saiu voando para
Deus, em busca da eterna primavera (BEOZZO, 2022).

Concordamos com o padre Beozzo e entendemos que, nessa posi-


ção, Adélia não esteva alijada das lutas, mas contemplava a caminhada
percorrida com louvor e esperança. Como as rabiolas coloridas ela se
entregou ao sopor do Espírito, como sempre fez e seu olhar ficou cada
vez mais atento e mais abrangente.
O mistério da vida é maior do que aquilo que pensamos e apren-
demos. Adélia proclama que vale a pena gastar a vida lutando pelas
grandes causas e por uma vida mais digna para todos, como sonhou
Jesus ao proclamar a chegada do Reino. Cabe a nós continuarmos a sua
construção, mas sem perder a ternura e a mística que nos sustentam.
Adélia Carvalho, presente na caminhada!

REFERÊNCIAS
ARGÃO, Gilbraz; CARVALHO, Adélia. O espírito (o terceiro) é que nos
une. In. ARAGÃO, Gilbraz; MARIANO, Vicente (org). Espiritualidade,
transdisciplinaridade e diálogo 2. Universidade Católica de
Pernambuco – Unicap, 2018. 404 p. (e-book)

BEOZZO, José Oscar. Adélia de Carvalho. Artista da Luz e Alegria,


Ternura e Libertação. Mestra na Pintura e no Caminhar Espiritual.
Disponível em: https://ceseep.org.br/adelia-de-carvalho-artista-da-
-luz-e-alegria/. Acesso em: 31 jul. 2023.

CARVALHO, Adélia Oliveira de. Um olhar sobre a arte no curso de ve-


rão. In: POSSANI, Lourdes de Fatima Paschoaletto; SANCHEZ, Wagner
Lopes. Formação ecumênica e popular feita em mutirão: Curso de
Verão, 25 anos. São Paulo: Paulus, 2011, p. 335-341.

138
Gomes, Andréa Caselli. Ciranda do arco-íris: confluências entre be-
leza e fé na arte de Adélia Carvalho. In ARAGÃO, Gilbraz; MARIANO,
Vicente (org). Espiritualidade, transdisciplinaridade e diálogo 2.
Universidade Católica de Pernambuco – Unicap, 2018. 404 p. (E-book)

139
AGOSTINHA
VIEIRA
DE
MELO
Irmã Agostinha

Marcelo Barros59
Malu Aléssio60

Em João Pessoa, até há alguns anos, o bairro de Mandacaru era


considerado de periferia. Ali, da esquina das “Sete Bocas” até a Avenida
Tancredo Neves, construída no local que antes se chamava Baixa da li-
nha de trem, desce a rua Monte Castelo.
Até 2016, quem passasse por aquela rua, dificilmente imaginaria
que em uma daquelas casas, sem calçada, do lado direito, moravam
duas monjas beneditinas que, até 1970, viviam em mosteiro tradicio-
nal e optaram por buscar a intimidade com o Mistério Divino e a vida
comunitária na inserção junto ao povo mais pobre na periferia de uma
cidade como João Pessoa.

59 Monge beneditino, teólogo e biblista. Doutor Honoris Causa em Ciências da Religião


pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Assessora as comunidades eclesiais de base
e movimentos populares como o Movimento de Trabalhadores-sem Terra (MST). Tem 63
livros publicados no Brasil e em outros países.
60 Doutora em Ciências da Vida. Professora aposentada pela UFPE. Ex-Secretária de
Educação de Recife. Atualmente Coordenadora da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese
de Olinda e Recife, membro da Comissão Justiça e Paz nacional e Coordenadora Geral da
Educação em Camaragibe/PE.

140
1. Itinerário de buscas e aventuras
Das duas monjas, a irmã Agostinha Vieira de Melo era a nordes-
tina. Para ela, a inserção em João Pessoa representava um reencontro
com as raízes de sua vida. Tinha nascido em Natal, RN (1926) e a fa-
mília tinha se transferido para o Rio de Janeiro, quando ela ainda era
criança.
No Rio, como estudante universitária, entra em um grupo ligado à
JUC (Juventude Universitária Católica). Ali, se aproxima de um padre
a quem todos chamavam de “padrezinho” e, por todos aqueles anos de
juventude, ele se torna o seu orientador espiritual. Chamava-se Helder
Camara. Aquela mocinha tímida que, por seu batismo, se chamava
Marion logo manifestou o desejo de ser monja beneditina. Entra na
Abadia de Santa Maria em São Paulo e recebe o nome monástico de
Irmã Agostinha.
Na época, o Mosteiro de São Paulo era a comunidade para a qual
acorriam as moças de classe alta e de famílias tradicionais que deseja-
vam vida religiosa como monja. A cultura e os costumes eram muito li-
gados às monjas fundadoras inglesas. Por desejar uma vida monástica
mais simples e despojada, poucos anos mais tarde, a irmã Agostinha se
une a um pequeno grupo de monjas que parte para uma nova fundação
em Belo Horizonte.
Mais de dez anos depois, sempre na mesma inquietude e na mes-
ma busca interior, nova partida, dessa vez a um mosteiro no Nordeste.
De novo, expectativa frustrada. Reencontrou no Nordeste o mesmo es-
tilo de vida monástica e a mesma mentalidade de distanciamento do
mundo real que os monges e monjas tradicionais se sentem chamados
a viver em qualquer outro continente. No Mosteiro do Monte, irmã
Agostinha se reencontra com Dom Helder Camara, então arcebispo de
Olinda e Recife.
Em uma ou outra de suas cartas circulares, escritas nas madruga-
das da vida e dirigidas ao grupo de amigos/as e assessores/as que ele

141
chamava de “família mecejanense”, o Dom alude a visitas que faz ao
mosteiro e encontros mais pessoais que tem com a irmã Agostinha.
Só para dar um exemplo, na circular n. 377, escrita na madrugada de
17 de março de 1968, o Dom escreve: “Marion e as monjas do Mosteiro
do Monte ficaram encantadas com uma ordenação em português” (até
então, essas celebrações eram sempre em latim) (CAMARA, 2009, vol.
IV, tomo II, p. 44).
Na época, Dom Helder confidenciava a alguns assessores mais pró-
ximos que, diante da tarefa de acompanhar grupos religiosos e monás-
ticos na arquidiocese, ele gostava de pedir conselho à irmã Agostinha.
Só não sabia se a superiora e as irmãs do Mosteiro compreendiam que
o arcebispo aparecesse por lá em horários os mais inesperados para
conversar com uma das monjas que não tinha nenhum cargo ou hie-
rarquia no mosteiro. E ela, irmã Agostinha nunca falou sobre isso nem
aos amigos mais chegados.
Ninguém do círculo mais próximo do Mosteiro estranhou quando,
depois de algum tempo, sem conseguir um bom diálogo com a supe-
riora da comunidade, Agostinha decide voltar ao seu mosteiro de Belo
Horizonte.
De lá sairá em 1970, junto com a irmã Maria Letícia, por convite
de Dom José Maria Pires, arcebispo de João Pessoa e com a bênção
da sua abadessa, partem três monjas de Belo Horizonte ao Nordeste
para iniciar a “Fraternidade Deus Conosco”, uma pequena comunida-
de inserida em alguma periferia de João Pessoa. Pouco tempo depois,
uma das irmãs volta ao mosteiro de origem, enquanto Maria Letícia
e Agostinha tentam diversas experiências de moradia e de inserção
junto aos vizinhos pobres, até se fixarem definitivamente na casa da
rua Monte Castelo.

142
2. Ler a Bíblia a partir do povo mais pobre
Entendemos bem a perspectiva de Agostinha na leitura da Bíblia
quando um dia ofertou um presente de aniversário a amigos indo com
eles para a praia de Tamandaré e levando o livro Um Projeto de Deus,
de Carlos Mesters, ainda fotocopiado, para mergulharem juntos na
compreensão da Bíblia. Compreender a Bíblia a partir dessa chave de
leitura proposta por Carlos Mesters é um método que ajuda o povo a
se situar diante do texto sagrado e a partir da história do povo bíblico.
Mas, para a irmã Agostinha era também porta diferente e nova para a
vida de oração e espiritualidade. Ela tinha sido formada na escola da li-
turgia considerada como Opus Dei: ofício divino, ou seja, obra de Deus.
Quando completou 75 anos, ela mesma conta em um poema o que para
ela significou o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) e como esse modo
novo de ler a Bíblia mexeu na vida dela e em todas as suas concepções:

Parteira de amores​
… Nas águas dos meus 75 anos vou navegando.
Até hoje sou de muitos amores e de vários divórcios…
Sou muito exigente nos noivados.
Por isso não marquei no calendário
um primeiríssimo amor.
Fui possuindo vários primeiros amores
conforme o ângulo da minha respiração, aspiração
e do pó do chão que piso.
Bem nos começos da minha idade média
minhas buscas estavam em pico:
necessitadas de parceria para as visões se clareando,
de convivência para certas lutas,
sedentas e famintas de justiça e de liberdade,
carentes de espaço lúdico para a brincadeira, a beleza e a boemia,
roxas pra mudanças nas desarrumações sociopolíticas.
Dois moços altos me deram uma ajuda: o CEBI.
Marcelo Barros apontando,
Carlos Mesters me acolhendo.
Caí no berço do CEBI cercada por todos os lados
pela baía de Angra dos Reis
com a palavra na Vida e a Vida na Palavra.
Pude aí buscar, encontrar, perder, reencontrar,
concordar, discordar, escrever, apagar,
rezar, blasfemar,

143
lidar com diferentes amores,
tocar de mais perto os pobres,
misturar tudo com jeito e entranhas de mulher…
Sempre fui devota do Emanuel.
O Deus conosco sempre esteve presente
antes, durante e depois dos meus partos.
O CEBI (com tantas e tantos!) foi boa parteira.
Aí peguei mais tarimba
para desconstruir a competição que aborta a paixão
e nos impede de brincar com Deus
que é menina e é menino!
(João Pessoa, 03/07/2002).

A partir do aprendizado de um novo modo de ler a Bíblia a partir


da vida do povo oprimido, ela passa a compreender o Ofício Divino
como a grande obra de transformação do mundo. Assim, a liturgia se
torna sacramento ou sinal dessa ação libertadora que Deus quer rea-
lizar no mundo. E se é assim, urgência urgentíssima seria fazer com
que as celebrações, os textos litúrgicos e os sinais e ritos falem mais de
perto e diretamente à vida do povo oprimido. A partir desse momento,
Agostinha vai se dedicar com muito esmero a conhecer mais profunda-
mente a cultura e a compreensão que o povo pobre tem da vida e da fé.
A equipe de coordenação do CEBI na Paraíba escolhe Agostinha
como coordenadora do CEBI no Estado e durante alguns anos, ela viaja
por todo o estado a serviço de escolas bíblicas para lavradores sem-
-terra, pessoas de periferia e também crianças e jovens da pastoral da
juventude de meio popular. Ela ajuda as pessoas a descobrirem a Bíblia
como grande parábola que nos confirma: O Espírito de Deus está co-
nosco na luta da vida para nos guiar e nos dar força e resistência, até
a vitória.
Quando o padre José Comblin, depois do seu longo exílio, volta
ao Brasil em 1980 e retoma a experiência da Teologia da Enxada no
Seminário Rural em Serra Redonda, nas proximidades de Campina
Grande, a irmã Agostinha é chamada a compor a equipe de coorde-
nação. Durante anos, será a professora de Bíblia para o grupo inserido

144
nessa experiência. Sua metodologia será sempre a leitura orante da
Bíblia a partir da vida e da luta do povo.

3. A aprendizagem com os/as pobres de Deus

Alargar as tendas​

Alargar as tendas
Esticar cada parte da tenda
Acampar no chão
Arejar as tendas
Alargar a vista
Deixar abrir o coração
(sem desprezar o pensar)

Incluir
Fazendo compaixão
Alargar a vida
Não limitar a força
Penetrar o novo
Escutar o ventre pular
Permitir o novo nascer!

Se a mais forte razão para as duas irmãs decidirem morar na peri-


feria era a inserção junto às pessoas mais pobres, a raiz dessa opção era
a espiritualidade. No evangelho, Jesus ora: “Eu te agradeço, Pai, porque
escondeste as tuas coisas, os teus segredos aos sábios e entendidos e os
revelaste aos pequeninos” (Bíblia de Jerusalém, 2002, Mt 11, 25). Assim
como pessoas piedosas dedicam horas do dia para a oração, Agostinha
e Maria Letícia davam prioridade a conviver gratuitamente com os vi-
zinhos e vizinhas mais pobres.
Quando completam 50 anos de seus votos religiosos, monges e
monjas costumam escolher um mosteiro afastado do burburinho do
mundo para viver uns dias de retiro e se preparar para celebrar o gran-
de dia. O que, em João Pessoa, ninguém esperava foi que, quando quis
preparar o seu aniversário de 50 anos de monja, a irmã Agostinha es-
colheu alugar um barraco entre as casinhas da linha de trem e passar

145
lá o mês preparatório para a festa do seu jubileu. Ali, talvez para não
esquecer as conversas que tinha com as pessoas e para meditar no que
escutava de cada pobre, ela começou a anotar com sua letra em um
caderno o mais saboroso das conversas e as palavras de sabedoria que
colhia de cada um/uma.
Um dos escritos mais antigos dos antigos monges é a coleção de
sentenças dos pais do deserto (século IV). Agostinha começou a escre-
ver algo semelhante, só que não sobre ditos dos monges e sim palavras
e pensamentos dos pobres com os quais convivia. Quando se lê algum
dos cadernos hoje não se tem ideia do que na época aquelas palavras
simples, quase comuns podiam significar. E principalmente significar
para ela que as ouvia não apenas com a inteligência racional, mas com
o coração.
Até hoje, temos fragmentos desses velhos cadernos, com anota-
ções muito simples, aparentemente quase banais, mas sempre lumi-
nosas. Eis alguns exemplos:

Chico de Piancó (da cidade do padre Zé), ex-favelado, retirante,


conseguiu fazer uma casinha de palha. Sobre o tempo em que estava
tentando cobrir a casinha e estava sem emprego, ele falou:
- Tinha hora que eu me aperriava, pedia a Deus e tinha aquele con-
forto, vendia uma laranja, uma fruta, pegava força, seguia com fé”.

Conversa com Luzia, lavadeira.


Ela contou sobre a noite de chuva em que sua casinha começou a
arrear. A parece começou a ceder, o guarda-roupa tombou. Os cinco
meninos todos moiado. Ela olhou aquilo tudo e foi passando na cabeça
o que ela tinha vivido ali dentro., os esforços, todo o trabalho. “Tive
um desengano do coração”. João dizia: neguinha, nossa casa vai cair.
Aí eu disse para ele: Ajoelha, nego. Bota o joelho no chão e vamos
fazer uma reza. Ajoelhemo. E eu rezei mais ele. A senhora sabe o que

146
uma experiência? Pois, eu tive. Rezava e chorava. Foi uma oração de
sangue. Uma reza diferente. Aí eu tive aquela certeza, aquele conforto.
Limpei a casa e disse: João, levante. Essa noite, nossa casa não cai.
Amanhã, a gente toma as providências. Chama os irmãos para uma
solução. Mas, hoje, ela não cai. E não caiu”.

Conversa com Zé Lima, ajudante de pedreiro do bairro:


- Num deu ponto não. A fé é pra sair. Vivê. Fazer caminhada com
os irmãos.
- A luta boa é a luta dos pobres unidos.

Seu Pedro de Mucatu: (a respeito da morte de um homem opressor):


“É como diz o ditado: a morte da cobra alivia o sapo`”.
- Deus é bom, mas é um fogo exigente. Eu sei disso por experiência.

Foi essa experiência de escuta orante dos pequeninos de Deus que


fez irmã Agostinha decidir compor alguns mantras e antífonas da ora-
ção comunitária que, pouco a pouco, passou a ser chamada de “Ofício
Divino das Comunidades”. Ela participou do começo ao fim da equipe
de coordenação e ajudava por seu imenso bom gosto e simplicidade
nas letras.
Até hoje, em todo o Brasil, as comunidades gostam de cantar:

Desça como a chuva a tua palavra.


Que se espalhe como orvalho,
como chuvisco na relva;
como aguaceiro na grama. Amém
(Baseado no cântico do livro do Deuteronômio 32).

Que arda como brasa,


tua Palavra nos renove,
como a chama que a boca proclama...

147
4. Uma mística da amizade como laço divino
Nos dois últimos anos de sua vida, depois da partida de Maria
Letícia, os amigos garantiram que ela pudesse continuar em sua casa
na rua Monte Castelo, com sua Vida, Arte e Beleza, pois onde ela esta-
va era encontro de fé, de amizade, de partilha.
As conversas eram plenas de espiritualidade e de alegria, desde
os relatos mais simples do cotidiano até os problemas mais sérios que
eram tratados com leveza. Um dia quando os amigos a levavam para
ver o mar que ela amava, ela disse “ mais bonito que o mar, só a ami-
zade!” De amizade ela conhecia a profundidade! Como não pensar na
relação afetuosa, fiel e de identidade na fé que ela teceu com Malu e
Ricardo Aléssio, Marcelo Barros e Ivone Gebara.

De Marcelo disse:
“ - em ti o vento de Deus soprou com um rumo, uma sede e uma
cor”.

De Ivone, com carinho, canta:


“Na amizade rocha,
ao mesmo tempo afago e brisa,
parceira diaconisa,
cuidadosa cuidadora
de quem cuidados precisa…”.

As poesias que nos deu sobre o CEBI, mostram como ela soube
tecer com amor o caminho da Palavra:
“Entre outros cochichos,
este aqui do CEBI de suas bocas:
de Deus, do povo e de um ecumênico coro.”

148
Como não ver isso na mulher do povo que chega na rodoviária para
um dos primeiros encontros da Escola Bíblica do CEBI, em Recife e traz
o desenho de um peixe para ser reconhecida na chegada?
A amizade e o compromisso com as mulheres do povo revelaram
a Agostinha feminista, que soube compreender as dores, as alegrias
e conflitos dessas mulheres numa identidade como se ela fosse mãe,
esposa, amante… talvez por isso fosse tão apaixonada pelas músicas
de Chico Buarque.
Sua empatia profunda com as expressões cotidianas da vida dos
pobres, especialmente das mulheres, fazia de suas meditações, um
testemunho de amor e comunhão que nos revelava a essência mesmo
do evangelho. Uma ferramenteira encontrando no povo as lonjuras do
arco íris como na Síndrome da Guará Vermelha:

De repente
me senti desdobrada
ali, na pobreza
do quartinho de Irene e de Rosálio.
E fui alumiada
numa vontade mais amadurecida de amanhecer.
Mais amadurecida para ver, tocar, sentir, ouvir
as enxurradas de cios que chegam
de “propícias estações”
dos corpos, dos afetos
dos amores e dores
das fomes e sedes
que nem ninguém explica...

Inveja me deu
de ter uma caixa de madeira
onde pudesse hospedar

149
palavras, histórias, contos, causos, provérbios,
poemas, cantos, lendas, cordéis, mitos e preces
com seus arrastões de dramas e poesia.

Vontade de ficar amanhecida


e mais alerta e mais esperta
para ouvir e engolir
essas-coisas-de-nada
que curam asas feridas
e amamentam voos
que chegam às lonjuras do arco-íris!

(João Pessoa, 29 de novembro de 2005)

REFERÊNCIAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova Edição, Revista e Ampliada. São
Paulo: Paulus, 2002.

CAMARA, Helder. Circulares Conciliares: de 17 de março de 1964.


Recife: CEPE, 2009. v. IV, tomo II.

150
ANGELINO
CAIO
FEITOSA
Frei Angelino

Faustino dos Santos61

UM ACENO BIOGRÁFICO SOBRE FREI ANGELINO


Filho de Manoel Caio Feitosa e Maria Rosa Pereira Feitosa, Frei
Angelino tinha por nome de batismo José Pereira Feitosa. Nasceu
aos 09 de janeiro de 1925 em Porto da Folha, estado de Sergipe. No
livro Porto da Folha: Fragmentos da História e Esboços Biográficos de
Manoel Alves de Souza (2009) que trata da vida na cidade natal de
Frei Angelino, o autor descreve que a sensibilidade da família do jo-
vem José sobre sua vocação o ajudou para que sua caminhada religiosa
fosse cultivada. Foi por isso que em 1940 ele foi enviado ao Seminário
Franciscano pertencente à Província Franciscana de Santo Antônio do
Brasil, da Ordem dos Frades Menores, em Lagoa Seca, Paraíba.
Passados cinco anos do seu ingresso no Seminário, em 1945 no
Colégio Seráfico Santo Antônio, instalado no mesmo espaço do
Seminário, Frei Angelino concluiu o curso médio. Naquele mesmo ano,
no dia 07 de dezembro foi admitido ao Noviciado Franciscano, na épo-
ca sediado no primeiro convento dos franciscanos no Brasil, localizado
na cidade de Olinda, Pernambuco. Foi nesse ano que José recebeu o
nome de Angelino Caio. A causa da mudança do nome tem a ver com o

61 É frade franciscano, mestre em Teologia e doutorando em Ciências da Religião pela


UNICAP. E-mail: faustinosantos17@gmail.com

151
costume vigente até o Concílio Vaticano II (1965) de que cada religioso
mudaria de nome, recebendo um outro nome, um onomástico (do la-
tim: “do seu nome”) que normalmente estava ligado a algum santo do
dia de devoção ou nome de admiração.
Concluído o noviciado franciscano, Frei Angelino professou pela
primeira vez os votos de Obediência, Nada de Próprio e Castidade na
Ordem dos Frades Menores aos 08 de dezembro de 1946. Fez os estudos
filosóficos enquanto ainda morava no convento de Olinda. Exatamente
três anos após a primeira profissão, no Convento de Salvador, Bahia,
durante o período de estudos teológicos. Frei Angelino professou os
votos solenes ou perpétuos na Ordem franciscana. Sua ordenação
presbiteral, por outro lado, se passou longe do Nordeste brasileiro. Ele
foi ordenado presbítero no dia 15 de agosto de 1953 em Campos do
Jordão, São Paulo. Foi realizada no estado de São Paulo devido à ne-
cessidade de tratamento de um problema pulmonar que o frade esta-
va enfrentando. A primeira Celebração Eucarística presidida por Frei
Angelino foi celebrada no dia 23 de agosto de 1953, porém não poderia
ter sido em outro lugar senão na sua cidade natal.
Ficou na casa dos seus pais durante sua recuperação. Naquela ci-
dade, Frei Angelino pôde colaborar com o pároco no exercício pasto-
ral e sacramental. Após isso, voltando à Província, ele “foi designado
como Vice-Reitor da Escola Apostólica de Canindé, no sertão do Ceará,
onde também foi professor, de 1954 a 1958, preparando os alunos para
o Seminário Diocesano e para o Colégio Seráfico de Ipuarana” (SOUZA,
2009).
No período de 1959 a 1961 exerceu o papel de educador no
Seminário de Ipuarana onde deu aulas de Religião, Português, Grego
e Alemão. Ele exerceu também outras funções que eram próprias da-
quela etapa de formação, tais como o encargo de acompanhar a rotina
diária dos alunos da fase intermediária. “Devido ao seu zelo na forma-
ção dos futuros frades, Frei Angelino foi transferido em 1962 para o

152
Convento de Sirinhaém/PE para ser o Mestre dos Noviços, permane-
cendo nesta atividade até 1968” (Souza, 2009).
Na década de 1960 na Igreja se refletia as transformações que o
mundo passava, o que não poderia ser diferente já que a Igreja é uma
instituição presente no mundo e constituída de membros “munda-
nos”. No coração das transformações ocorridas na Igreja se localiza o
importante marco que foi o Concílio Ecumênico Vaticano II realizado
de 1962 a 1965. O evento eclesial possibilitou à Igreja adaptar-se aos
tempos presentes sem, porém, se desvirtuar do essencial que é Jesus e
sua mensagem.
Na América Latina, crescia a assimilação do Concílio e se fortale-
ciam as reflexões da Teologia da Libertação. Enquanto muitas pessoas,
incluindo religiosos, faziam opção aos pobres e galgavam um caminho
de inserção no meio deles, aumentava também no Brasil um regime
bastante difícil e opressor que foi a ditadura. Contrário às forças da
tortura e da opressão contra a liberdades, surgiram movimentos den-
tro e fora da Igreja para combater aquele regime. Assimilando a es-
piritualidade conciliar, Frei Angelino decidiu fazer uma experiência
inserida no meio dos pobres.

Com o idealismo cívico aguçado e movido por sentimento


libertário, Frei Angelino, que há alguns anos vinha par-
ticipando dos encontros pastorais em Recife, promovi-
dos e ministrados por Dom Hélder Câmara (o bispo mais
vigiado e odiado pelos órgãos de repressão da ditadura
militar), resolve sair do convento para viver a experiência
de São Francisco de Assis entre os pobres (Souza, 2009.

Saindo da vida claustral naquele período, o lugar escolhido por Frei


Angelino para fazer essa nova vivência é a sua cidade natal, Porto da
Folha, em Sergipe, no ano de 1968. No entanto, ao invés de se hospedar
na residência dos pais ou mesmo na casa paroquial, ele decide se ins-
talar em uma humilde casa. Não tardou muito e no ano seguinte dois

153
frades embebidos pela consciência política e religiosa do seu contex-
to e ainda estudantes de teologia se juntaram ao Frei Angelino. Dois
anos depois, em 1970, Frei Juvenal Bonfim que vinha sendo observado
pelos agentes militares também se juntou ao frei na sua empreitada.
Naquela realidade, viviam na simplicidade. Ora cultivando um roçado
em um pedaço de terra que pertencia à Paróquia, ora colaborando no
aperfeiçoamento cultural dos jovens daquela região ou ajudando a co-
munidade para uma vivência cristã consciente. A atuação dos frades
foi determinante para a implantação do Ginásio local bem como do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais.
A vida e atuação dos frades naquela região dura por aproximada-
mente mais três anos quando, tal como peregrinos e forasteiros, deci-
dem fazer a mesma experiência em outra região, não mais em Sergipe,
mas dessa vez no interior de Pernambuco, na cidade de Paranatama.
Quem vê esse relato de uma vida ativa, não imagina que uma das
características mais marcantes da vida de Frei Angelino tem a ver com
o silêncio e a meditação. Poderíamos dizer que esse é um segundo mo-
mento importante da sua vida, a começar da sua decisão pela inser-
ção no meio dos mais simples. Não que sejam necessariamente temas
opostos. Além da sua experiência de inserção e simplicidade, a outra
marca forte da vida e atuação do frade foi a meditação/contemplação.
Poderíamos enfatizar nesse texto o aspecto místico de Frei
Angelino a partir das suas ações concretas e decisões marcantes con-
siderando o que diz Leonardo Boff e Frei Betto de que a mística, de-
rivada de mistério, “está ligado à vivência/experiência globalizante”
(Betto; Boff, 2014, p. 49). No entanto, queremos fazer a associação do
Frei Angelino como um místico que fez da sua vida um caminho de
meditação. Quem conheceu Frei Angelino sabe que o modo como ele
falava e vivia o mistério tinha um quê de especial. Exalando um modo
particular de viver que reunia um misto de liberdade e felicidade, Frei

154
Angelino apresentava uma sensibilidade ao Mistério sem escrúpulos.
Ele falava de Deus de modo muito livre, íntimo e particular.

FREI ANGELINO FOI MESMO UM MÍSTICO?


Essa é uma pergunta cuja resposta vem como consequência da
compreensão e noção do que é mística. Ao modo de ver de Boff e Betto,
“a palavra mística é um adjetivo de mistério” que, por sua vez, tem
uma variedade de sentidos. Olhando para o sentido original do grego
mysterion, a palavra mistério “provém de múein, que quer dizer ‘perce-
ber o caráter escondido, não comunicado de uma realidade ou de uma
intenção’” (Betto; Boff, 2014, p. 49).
O “mistério não equivale a enigma que, decifrado, desaparece.
Mistério designa a dimensão de profundidade que se inscreve em cada
pessoa, em cada ser e na totalidade da realidade e que possui um ca-
ráter definitivamente indecifrável” (Betto; Boff, 2014, p. 51). Ele não
se opõe ao conhecimento. “Pertence ao mistério ser conhecido. Mas
pertence também ao mistério continuar mistério no conhecimento”
(Betto; Boff, 2014, p. 52).
Quem experimenta o mistério é o místico. No entanto, embora
exista uma compreensão mais clássica que designe a mística como o
contato com o misterium tremendum et fascinans, é importante consi-
derar que “a experiência do mistério não se dá apenas no êxtase, mas
também, cotidianamente, na experiência de respeito diante da reali-
dade e da vida” (Silva, 2010, p. 21).
Olhando desse modo, pode-se dizer que:

A mística não é, pois, o privilégio de alguns bem-aventu-


rados, mas uma dimensão da vida humana à qual todos
têm acesso quando descem ao nível mais profundo de si
mesmos; quando captam o outro lado das coisas e quan-
do se sensibilizam diante do outro e da grandiosidade,

155
complexidade e harmonia do universo (Betto; Boff, 2014,
p.55-56).

Considerando essa definição de mistério e mística, é possível dizer


que Frei Angelino pela sua vida foi sim um místico. Essa convicção
está dada na sua vida em diferentes traços, seja naqueles cuja biogra-
fia sinaliza, seja também na sua disposição em contemplar o mistério
divino na vida inserida e por meio da medicação.
Partindo da compreensão que a contemplação é notadamente um
traço característico da mística neotestamentária, seria possível dizer
que dos elementos místicos que existem em Frei Angelino, esse é o
que mais o define. Ele contemplou e levou outras pessoas a fazerem o
mesmo. Compreendendo que “a contemplação é maravilhamento ati-
vo, provocado pela escuta do Deus inefável” (Silva, 2010, p. 52), Frei
Angelino dedicou grande parte da sua vida à busca da escuta da voz de
Deus e o fez de modo simples na vivência e na meditação.
Há muitos relatos sobre a excepcional figura de Frei Angelino que
estão no âmbito da oralidade ou daquilo que as pessoas contam a seu
respeito que podem reforçar sua sensibilidade com as pessoas como
reflexo da sua vida de contemplação a Deus. Um dos casos é o da Irmã
Cilene, religiosa da Congregação das Franciscanas da Providência,
natural da mesma cidade de Frei Angelino e que tem por ele extre-
ma admiração. Ela narra alguns episódios que ela mesma presenciou.
Irmã Cilene conta que a sensibilidade e jeito particular com que Frei
Angelino agia era contagiante e atraente.
Certa vez ela estava em uma missa onde o frade estava presidindo
a Eucaristia e havia uma criança na assembleia que começou a chorar
interrompendo assim o frade na sua pregação. Ele desceu do altar e
foi ao encontro da criança caridosamente e disse: - meu irmãozinho,
me deixe falar agora que, assim que eu terminar, deixarei que você tenha
a sua vez também. Irmã Cilene conta que incrivelmente a criança pa-
rou de chorar, como se entendesse o que o frade havia dito, e a partir

156
daí a criança se manteve em silêncio pelo resto da celebração. Outra
narrativa contada pela irmã é que, sendo de uma família influente em
Sergipe, Frei Angelino tinha um irmão que foi político na cidade. Ao
modo da irmã falar, ele não foi um político honesto. Certa vez, em um
diálogo travado com o frade, irmã Cilene disse que não gostava do ir-
mão dele pela corrupção exercida na cidade. Ela criticava o parente do
Frei Angelino de modo enérgico e revoltado. Frei Angelino paciente
ouviu e ao final disse: - eu concordo com tudo que você disse, mas mesmo
sendo corrupto, ele ainda é meu irmão e disso não posso abdicar. Essa
atitude do frade a fez desarmar e admirar ainda mais Frei Angelino.
Graças a curiosidade de algumas pessoas é possível encontrar
também outros relatos interessantes, dessa vez escritos, sobre a vida
de Frei Angelino que atestam seu interessante odor místico. No site
oracaocentrante.org que narra sobre um retiro que o frade foi pregar
em Belo Horizonte se diz: “Frei Angelino encantou a todos e todas
com sua alegria, simplicidade, humildade, amor a Jesus e ao seu povo!
Fez tanto bem a todos nós, tantos se sentiram tocados não tanto pela
oratória, mas pelo ‘ser de Deus’ que ele é”. Outro relato presente no
site paulofcamposs.blogspot.com.br diz que “ele mesmo experimenta
a vida contemplativa e sabe comunicar aos outros o que aprendeu. E
mostra o caminho do silêncio e da contemplação nos encontros que
realiza” (Campos, 2011).
Frei Angelino era afeiçoado pela vida eremítica, cujos escritos de
São Francisco de Assis legitima e autoriza os frades a viverem desse
modo. Em entrevista concedida no dia 05 de junho de 2011, no in-
tervalo de um retiro que foi pregar em Icoaraci/PA para um grupo de
leigos e religiosos, quando perguntado porque ser um eremita, ele
respondeu que “não é ser eremita que é bom. É ser este companheiro
contínuo desse Jesus Cristo, que veio para nós, e veio nos dar a sua
alegria, para que a nossa alegria seja completa” (Campos, 2011). Como
elementos constitutivos da vida eremítica, Frei Angelino narra que o

157
caminho do silêncio e recolhimento é, para ele, caminho de felicidade
mais completa:

Meu chamado para a vida de eremita não foi fácil, pois a


tradição deste recolhimento foi quebrada e foi vista com
certa desconfiança de que, na verdade, procurava-se evi-
tar o mundo, e não é isso. Na verdade, é justamente estar
no mundo com mais presença do que antes. Há 20 anos
tenho a vida contemplativa de um eremita, mas a realiza-
ção veio em 1991. A vida de eremita não se trata de coi-
sas intelectuais, de filosofia, mas de sede de ser feliz. Sou
uma pessoa, usando uma certa expressão, bem estudada.
Mas senti que a realização não estava aí, na mente, mas
em outro espaço mais holístico, mais inteiro e verdadeiro
de todo o meu ser (Campos, 2011).

A caminhada do nosso eremita é regada pela sua disposição sin-


cera e interessada em entrar em contato com os modos como Deus se
revela na vida cotidiana e na natureza.
Esses relatos e alguns outros nos dão elementos para entender que
a prática de vida do Frei Angelino e seu ardor evangélico de viver e agir
sensivelmente como e junto dos pobres, bem como a importância que
deu à meditação e a oração permitem que Deus seja o sujeito em/para
cada um.

O SEU LEGADO PARA A COMUNIDADE


Aqui poderíamos nos limitar a elencar alguns feitos cuja influên-
cia do Frei Angelino dá a tônica, tais como aqueles que são descritos
na biografia acima: a criação do sindicato dos trabalhadores da cidade
de Porto da Folha, a criação do ginásio da cidade ou mesmo a cria-

158
ção da festa da vaquejada62. Poderíamos ainda enfatizar como parte
do seu legado os livros que lhe são atribuídos a autoria, tais como,
“Ao encontro de você”, “Chão Necessário” e “Estrela Guia”, etc. Sobre
estes, o próprio frade narra que não foram organizados por ele. Os li-
vros dizem respeito às “palestras de apoio à prática contemplativa em
reuniões abertas - que foram gravadas e transcritas por diversas pes-
soas” (Feitosa, 2001, p. 7). Ou seja, eram frutos das pregações de retiro
que o frade ministrava e que as pessoas gravavam e depois elaboravam
a publicação. O interesse das pessoas em perpetuar os ditos do frade
denota que não era qualquer coisa que era partilhada. Supõe-se que as
pessoas realmente viam algo de diferente nas palavras do frade.
Diríamos, porém, que a maior colaboração que ele deixou foi seu
interesse incessante pela prática da meditação, característica própria
da sua vida eremita. Foi essa prática que Frei Angelino quis levar adian-
te. Seu interesse em rezar e meditar não parou na sua vivência pessoal.
Ele levou outros a fazerem o mesmo. Talvez por isso ele é conhecido
por ser um dos maiores divulgadores da meditação cristã no Brasil.
Ele entendia a oração como algo extremamente essencial, sem a
qual a pessoa se perde e sem a qual a ação da igreja não acontece e não
há forças para o trabalho na comunidade. Testemunhas afirmavam que
Frei Angelino ensinava uma oração libertadora. Frei Angelino dizia que
a verdadeira libertação cada um a realiza dentro de si e que pela prá-
tica da contemplação as pessoas ficam mais humildes, descobrem as
próprias faltas e limites e, amando os próprios limites reconhece que
são seres humanos e que precisa melhorar. A libertação pela oração/
meditação para ele não acontece como um passe de mágica, mas vem
por meio da oração, “vem de Deus agindo em nós” (Campos, 2011).

62 A vaquejada da cidade de Porto da Folha teve Frei Angelino como um dos seus
fundadores. Essa memória as pessoas recordam até hoje na sua cidade natal. Interessante
é o fato que, na sua origem, a festa dos vaqueiros tem mais a ver com a valorização daquelas
pessoas simples que trabalhavam todo o dia juntando o gado no campo. Com o passar do
tempo ela foi ganhando uma conotação mais festiva.

159
No prefácio do livro “Ao encontro de você” de Frei Angelino que foi
escrito por Padre José Comblin, é dito o seguinte acerca do interesse
do frade pela oração e meditação:

Frei Angelino ensina essa tradição a grupos de irmãos


e irmãs. Ele mesmo experimenta a vida contemplativa,
aprendeu a orar, o que não é tão frequente entre religiosos
e sacerdotes e sabe comunicar aos outros o que aprendeu.
Sabe mostrar o caminho do silêncio e do recolhimen-
to, da oração e da contemplação (Comblin, 2001, p. 5).

Quem folheia as páginas dos livros do Frei Angelino que, como


referido, são resultado do trabalho de pessoas que viram o valor das
palavras do frei e as tornaram livros, vai rapidamente notar aquilo que
pode ser considerada a principal intenção da sua missão como difusor
da meditação: sentir-se animado a tornar viva e realista a experiência
de abrir-se mais para Deus (Feitosa, 2001, p. 7). Por isso que insistimos
em dizer que o seu maior legado tem a ver com, a partir da sua própria
experiência de contato com Deus, levar outros a pessoalmente torná-
-la possível. Ele recomenda que cada um possa dar valor ao diálogo
interior que possibilita “o desejo de abrigar-se em Deus”. É aí que “de
modo leve, mas ativo e criativo” cada um se deixa “realizar pelo Pai”
(Feitosa, 2001, p. 7).
Em tom cósmico e profundo, como quem consegue fazer a sín-
tese do ser humano com o todo condensado no mistério divino, Frei
Angelino diz:

Somos referência de realidade mais ampla que nos mexe


interiormente e que nos chama a ultrapassar nossa in-
dividualidade no rumo da comunhão, da interação com
Deus e seu mistério que se desdobra aqui e agora dentro e
em torno de você, atingindo o universo em todos os seres
humanos, na criação e na terra (Feitosa, 2001, p. 7).

160
Afirmações como essas revelam que o caminho místico trilhado
por Frei Angelino, certamente sem qualquer intencionalidade, o co-
loca no horizonte mesmo da contemplação como mística porque lhe
permitiu abrir os olhos para o todo que o envolve.

O sujeito humano que contempla se deixa iluminar, guiar


por uma verdade, pela beleza ou santidade da realidade
contemplada. A vida mesma se transforma: vida contem-
plativa do contemplativo. A vida mística deixa brilhar a
realidade contemplada. A mística contemplativa e espi-
ritual é a dos olhos abertos, cósmica (Silva, 2010, p. 51).

Considerando o elemento da meditação, Frei Angelino não só aju-


dou as pessoas a rezarem, mas, a partir disso, motivou algumas delas a
fazer o mesmo com outras pessoas. Como é o caso da ainda existente
Escola de Meditação Franciscana cujo diretor, Frei Sávio Romero, ere-
mita capuchinho, aprendeu a meditar e levou adiante o aprendizado
recebido de Frei Angelino.

À GUISA DE CONCLUSÃO: ATUALIDADE DA EXPERIÊNCIA


MÍSITCA DE FREI ANGELINO
Uma vez que a ênfase que estamos dando à experiência mística
de Frei Angelino está mais destacada no elemento da sua contempla-
ção e, nesse sentido, a “contemplação foi e é utilizada para designar
o conhecimento místico de Deus”. Queremos enfatizar a atualidade
desse elemento místico presente na vida de Frei Angelino a partir das
palavras do Padre Comblin que, por sua vez, referenda o frade eremita
como alguém que possibilita um “primeiro contato com a vida místi-
ca” (Feitosa, 2001, p. 6).
Como quem sugeria uma alternativa de oração, Comblin recomen-
dava o próprio Frei Angelino como sugestão de alívio das apreensões.
Ele disse:

161
Na época atual a oração desapareceu das famílias, das
casas, das escolas, das cidades. Por isso todo mundo fica
nervoso, angustiado, aperreado. Frei Angelino ensina o
remédio. Quem puder, participe com ele das sessões de
formação. Quem não puder, tem o recurso deste livro.
Claro que o livro não transmite toda a simpatia do frei. Mas
desperta o desejo de conhecê-lo pessoalmente no seu re-
fúgio, aprendendo dele diretamente a arte da oração que
liberta a pessoa se si mesma, de todo peso da vida passa-
da e abre para um futuro renovado (Comblin, 2001, p. 6).

É verdade que hoje não é mais possível encontrar Frei Angelino


pessoalmente, já que ele realizou sua passagem em 5 de abril de 2015.
No entanto, aproveitando a deixa combliniana, poderíamos dizer que a
vida de Frei Angelino, tanto pela sua coragem em querer levar adiante
o espírito do Concílio Vaticano II de ser um com os mais pobres, bem
como o seu zelo pela vida de contemplação e meditação, levanta um
alerta para a carência de tais práticas na vida cristã e da comunidade
eclesial de hoje.
Sem dificuldade, é possível perceber uma baixa no interesse dos
membros cristãos, dentro ou fora de uma comunidade eclesial, por
aquilo que foi o duplo interesse de Frei Angelino: uma vida inseri-
da no meio dos pobres em uma determinada fase da sua vida, e uma
vida eremita que valoriza a oração e meditação como centrantes para
a contemplação do mistério e da experiência com Deus.
Ao ponderar a esse respeito não queremos entrar na discussão
acerca dos desdobramentos da prática atual. A sinalização serve ape-
nas para enfatizar que aquele que aqui ousamos chamar de místico, na
sua vida, viveu aspectos essenciais da vida mística cristã e, para além
disso, levou outros a fazê-lo com singularidade e sem pretensão de
qualquer reconhecimento.
Em linhas finais, é difícil pensar em algum místico que tenha tido
consciência dessa proeza na sua vida. A atribuição desse título é sem-

162
pre feita por quem está de fora, sobretudo por quem conviveu ou por
quem teve contato mais próximo com relatos e ou obras do místico ou
mística em questão. Uma vez que Frei Angelino realizou sua páscoa
definitiva em 2015, não é difícil encontrar testemunhas que confir-
mem o diferencial de como ele viveu mas, sobretudo, de como ele se
relacionava com Deus e como levou muitos outros a fazê-lo.
Embora o conceito de mística seja complexo devido às múltiplas
atribuições que lhe são dadas, dizer que Frei Angelino foi alguém que
pela sua prática revelou aspectos da mística e, nesse caso, da mística
cristã, tem a ver, sobremaneira, com o aspecto do seu testemunho e
oração. Frei Angelino foi um homem que sabia contemplar o mistério
absoluto que se mistura com a história humana por meio da meditação.

REFERÊNCIAS
BETTO, Frei; BOFF, Leonardo. Mística e Espiritualidade. 2ed.
Petrópolis: Vozes, 2014.

CAMPOS, Paulo Fernandes. Frei Angelino Caio Feitosa. 16 de junho


de 2011. Disponível em: http://paulofcamposs.blogspot.com/2011/06/
frei-angelino-caio-feitosa.html. Acesso em: 10 mar. 2023.

COMBLIN, José. Prefácio. In: FEITOSA, A. C. Ao encontro de você.


Recife: UFPE, 2001, p. 5-6.

FEITOSA, Frei Angelino Caio. Ao encontro de você. Recife: UFPE,


2001.

SILVA, Brás José da. A fraternidade Cósmica na perspectiva do


Cântico das Criaturas: uma contribuição de São Francisco de
Assis para a teologia mística / Brás José da Silva; orientadora: Janura
Clothilde Boff. – 2010. 2 v., 488 p.

SOUZA, Manoel Alves de. Porto da Folha: fragmentos da história e


esboços bibliográficos. Socorro/SE: Imprima Gráfica, 2009.

163
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
NASCIMENTO, Eugênio. Frei Enoque: vida e missão, uma contesta-
ção em nome do Evangelho. 18 de dezembro de 2021. Disponível em:
https://www.blogprimeiramao.com.br/frei-enoque-vida-e-missao-u-
ma-contestacao-em-nome-do-evangelho/. Acesso em: 27 fev. 2023.

ORAÇÃO CENTRANTE-BRASIL. Frei Angelino Feitosa, OFM. 06 de


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ORAÇÃO CENTRANTE E LECTIO DIVINA. 2004 - Frei Angelino.


Disponível em http://www.oracaocentrante.org/index.php/principal/
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PORTO DA FOLHA. Frei Angelino. Disponível em: https://www.por-


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ROMERO, Sávio. Escola de Meditação Franciscana/Fotos/Frei


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blogspot.com/p/fotos.html. Acesso em: 28 mar. 2023.

SANTOS, José Roberto Morais dos. O colégio seráfico de Santo


Antônio e suas práticas escolares: 1941-1971. Diss./Mestrado UFPB
João Pessoa 2017. 135 p.

164
GERALDO
LEITE
BASTOS
Padre Geraldo Leite

Anderson Felipe da Silva Santos63

INTRODUÇÃO
Geraldo Leite Bastos (Figura 1) nasceu em Moreno (PE) no dia
12 de dezembro de 1954. Afeiçoado desde cedo com as atividades da
Igreja, entrou para o seminário aos quinze anos e foi ordenado pres-
bítero em 08 de dezembro de 1961 pelas mãos de Dom Carlos Coelho.
Recém-ordenado, foi enviado à Ponte dos Carvalhos, distrito do muni-
cípio do Cabo de Santo Agostinho (PE), periferia da Grande Recife, sen-
do pároco fundador da Paróquia de Nossa Senhora do Bom Conselho
(1962-1980).
Assumiu a recém-criada Paróquia de Nossa Senhora da Conceição
do Morro (Recife - PE), trabalho que desempenhou nos anos 1975-
1977, concomitante à Ponte. Por fim, foi pároco da Matriz de Nossa
Senhora da Apresentação da Escada (PE) entre 1980 e 1987. Dotado
dos inúmeros dons com que o Senhor o cumulou, Geraldo foi um gênio
multiartista: vitralista, santeiro, arquiteto de espaços litúrgicos, tea-

63 Licenciado em Biologia. Mestre em Patologia. Professor do Instituto Federal de


Pernambuco - Campus Garanhuns. Leigo na Arquidiocese de Olinda e Recife, é pesquisador
da vida e obra dos Padres Geraldo Leite Bastos e Reginaldo Veloso. Mantém na internet o
blog “Nação do Divino”, onde disponibiliza todo o acervo musical do Padre Geraldo Leite e o
canal do YouTube “Cantando o dia do Senhor”. Contato: anderson.santos@garanhuns.ifpe.
edu.br

165
trista e pioneiro, em terras brasileiras, na composição de canto litúrgi-
co em ritmos brasileiros.
Essa gama de campos artísticos pela qual Geraldo passeou fez dele
“um dos melhores e mais dotados padres do clero católico de Olinda e
Recife”, nos dizeres de Dom Sebastião Armando Gameleira Soares
(Filho, 2012, p. 11). Realizou sua Páscoa em 19 de abril de 1987, junto
com seu Mestre Jesus, em um contexto profundamente místico: era
Domingo da Páscoa da Ressurreição (Fonseca, 2000, p.311).

Figura 1 - Padre Geraldo Leite em celebração na Matriz de Escada


(PE). Note a profunda entrega do presbítero durante a liturgia, que era
tida como verdadeira festa da vida. (Acervo pessoal do autor).

O CONTEXTO DA ATIVIDADE PASTORAL DE GERALDO


Ao ser ordenado presbítero, Geraldo foi enviado à Ponte dos
Carvalhos, povoação pobre na periferia de Recife. Pessoas vindas de
todos os lugares - do estado e de fora dele - por decorrência do surto
de desenvolvimento industrial daquela década de 60, não encontra-
vam lugar no Recife e começaram a se estabelecer nestas periferias.
Geraldo encontrava ali um ambiente extremamente adverso: era pre-
ciso juntar aquela gente desorganizada, desenraizada de suas culturas,
enfim: era preciso começar tudo “do zero” (Veloso, 2012, p.4). Geraldo

166
costumava contar que, certo dia, desolado com a grandiosidade dos
problemas daquele lugar, estando decidido a deixar a Ponte, ouviu de
uma paroquiana sua, Dona Renata (in memoriam), uma provocação:
“Padre, não desanime! Um pobre ajuda outro pobre e, no fim, tudo se re-
solve!”. Teria sido essa a conversa que tocou Geraldo e, dali em diante,
decidiu-se que Ponte dos Carvalhos seria seu lugar e, de fato, o foi. A
seu pedido, após sua morte, foi sepultado aos pés de sua madrinha,
Nossa Senhora do Bom Conselho (Fonseca, 2000, p. 128).
Naqueles idos de 1960 e 1970, Pernambuco vivia uma verdadeira
efervescência cultural (Veloso, 2012): no campo, as Ligas Camponesas;
na cidade, borbulhava o Movimento de Cultura Popular (MCP) de
Miguel Arraes, Anita Paes Barreto e Abelardo da Hora e o Movimento
Armorial de Ariano Suassuna, Francisco Brennand, Raimundo Carrero
e Antônio Nóbrega; na educação popular, despontava a figura de Paulo
Freire.
Aos 11 de abril de 1964, assumia a Arquidiocese de Olinda e Recife
a figura de Dom Helder Câmara. Na homilia da celebração de posse,
Dom Helder já deixava claro a que vinha:

No Nordeste, o Cristo se chama Zé, Maria e Severino. (...)


Ninguém se escandalize ao me ver frequentar pessoas
consideradas indignas e pecadoras. (...) A minha porta e o
meu coração serão sempre abertos para todos. (...) É claro
que, ao amar todos, a exemplo do Cristo, devo ter um amor
especial pelos pobres! (citado por Barros, 2022, p.19).

Não raro, Dom Helder frequentava assiduamente as celebrações


litúrgicas da Ponte dos Carvalhos (Figura 2) e teria a Matriz do Bom
Conselho como “a menina dos olhos” (Fonseca, 2000, p.165).
Também em abril de 1964, o Brasil se depararia com a instalação
de um regime de exceção, decorrente de um Golpe Militar. A casa pa-
roquial de Ponte dos Carvalhos era constantemente vigiada, à “caça
de comunistas”. O Arcebispo era ameaçado de morte. Em 27 de maio

167
de 1969, Padre Antônio Henrique, foi brutalmente assassinado. Eram
tempos difíceis em Olinda e Recife.
Por fim, no contexto da Igreja universal, havia se encerrado o
Concílio Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII (1962) e con-
cluído por Paulo VI (1965). O Concílio, que se propôs a abrir a Igreja
para o diálogo com o mundo moderno (Santos; Kyrillos, 2019, p.25),
teve como um de seus frutos a Constituição sobre a Sagrada Liturgia
Sacrosanctum Concilium que previu, dentre outras necessidades:
- Participação ativa, plena, consciente e frutuosa dos fiéis na li-
turgia (cf SC 14).
- Não impor uma forma rígida à Liturgia (cf SC 37), mas permitir
adaptações para as diversas realidades onde a Igreja se insere (cf SC
38).
- Incorporação de elementos das tradições e índoles de cada
povo ao culto divino (cf SC 40), incluindo a tradição musical própria
dos povos (cf SC 119).

Figura 2 - Dom Helder Câmara em diferentes celebrações litúrgicas da Ponte dos


Carvalhos: à esquerda, “Encontro de Penitência” de 1968, jogral apresentado na
Sexta-feira da paixão, uma atualização da tradicional via-sacra feita do Padre Geraldo

168
Leite (todos os participantes acompanhavam com os pés descalços, incluindo o
“Dom”); à direita, em uma missa na Igreja Matriz (Acervo pessoal do autor).

A IGREJA DE NOSSA SENHOR DO BOM CONSELHO, ESPAÇO


SAGRADO DE ORAÇÃO E PARTILHA DE VIDA
De início, as celebrações litúrgicas na Ponte dos Carvalhos eram
conduzidas em um galpão improvisado. Porém, para um Pastor com-
prometido com a celebração da fé que brota da vida de sua gente, o
espaço celebrativo precisava estar alinhado a este propósito. Com a
colaboração do arquiteto peruano Hugo Salinas, e com as mãos de ar-
tesãos locais e do povo paroquiano, Geraldo edificou, às margens da
antiga BR-101, um belíssimo templo em forma de tenda, que quer ser
“a tenda de Deus no meio de seu povo” (Ap 21, 3). Geraldo chama-
ria, por toda sua vida, a comunidade paroquial da Ponte de “Nação do
Divino”; Nação, conforme o texto bíblico da carta de São Pedro - “vo-
cês são a raça escolhida, (...) a Nação Santa...” (I Pd 2, 9); Divino, porque
a piedade do povo assim se remete carinhosamente a Deus.
No interior da Igreja, os bancos se dispunham ao redor do altar,
que estava no centro do templo: o altar simbolizava a Grande Hóstia
e o povo ao redor, o cálice. Os portões no frontispício da Igreja fo-
ram elaborados pelo artista pernambucano José Corbiniano e retratam
em realismo histórico a ocupação laboral do povo da Ponte - pesca-
dores, lavadeiras, vendedores de hortifrutis e Nossa Senhora do Bom
Conselho ao lado de todos. Ao fundo do presbitério estava pintada uma
imagem feita pelo padre redentorista Francisco Soelman, intitulada “O
Cristo do Canavial” que retrata um Cristo mestiço de pés descalços ao
lado do povo da Ponte, que carrega os frutos do trabalho. Desta forma,
o povo de Deus se via representado na Igreja: era a integração da vida
com culto divino.
Lamentavelmente, toda essa estrutura (Figura 3) foi descaracteri-
zada a partir dos anos 2000.

169
Figura 3 - De cima para baixo: A Matriz de Nossa Senhora do Bom Conselho, em
formato de tenda. Detalhes do frontispício da Igreja do Bom Conselho (Corbiniano):
pescador e lavadeiras, ofícios típicos do povo da Ponte e Nossa Senhora do Bom
Conselho, padroeira. Antiga disposição dos bancos da Igreja Nossa Senhora do Bom
Conselho (o altar estava ao centro). Por fim, o afresco “Cristo do Canavial”, que ficava
aos fundos do presbitério da Igreja, destruído em 2000. (Acervo pessoal do autor).

GERALDO: INCULTURAÇÃO LITÚRGICA E MISTICIDADE

Grupos humanos de toda a terra sentem-se mais livres


para entoarem pela nova força do Divino um canto novo
ao Pai comum e ao Irmão Maior. Graças vos damos,
Senhor, solidários com todos os irmãos da Terra e canta-
mos em vossa Igreja no Nordeste esse canto de pobre em
toques alegres. Que os instrumentos e a música do vosso
povo recordem em vossos ouvidos a vida que passamos
por aqui, em vossa espera. (BASTOS, 1970)

Uma vez determinado a permanecer em Ponte dos Carvalhos,


Geraldo começou a entrosar-se com sua gente, penetrando no cotidia-
no daquelas pessoas, bebendo dos gestos mais profundos de sua cultu-
ra, aprendendo a se encantar com seus valores e belezas, especialmen-
te com seus festejos - os ritmos de Carnaval, o Maracatu de Nação, a

170
Ciranda, as rodas de côco de Pontezinha e os toques de Terreiros, nas
liturgias afro (Veloso, 2012, p.5). Certa vez, em entrevista à Revista de
Liturgia, Geraldo confessou: “O que eu faço, aprendi nos terreiros de
Umbanda e de Xangô, nos folguedos populares. Perdi noites e noites nas
brincadeiras do povo.” (Bastos, 1986, p.15).
E, então, Geraldo começou, na década de 60, a compor músicas
litúrgicas para serem entoadas nas diversas celebrações litúrgicas da
Ponte dos Carvalhos. Para isso, se utilizava dos tesouros da tradição
litúrgica da Igreja e dos elementos da cultura popular. Assim surgiram
músicas litúrgicas em ritmos de frevo, baião, bossa nova, samba, ma-
caratu, ciranda, caboclinho, guarânia, côco..., algo pioneiro em terras
brasileiras. Era a plenificação do que o Vaticano II pedia em matéria
de culto: a liturgia encarnando-se na realidade do povo da Ponte dos
Carvalhos.
Da mesma forma, os instrumentos musicais populares foram adi-
cionados ao culto. Quem executava o canto ritual nos encontros litúr-
gicos da Ponte utilizava triângulo, pandeiro, agogô, zabumba, acor-
deom, violão e - o mais especial de todos - o tambor. O tambor estava
presente em todas as celebrações do ano litúrgico. Na Quaresma, to-
dos os instrumentos eram silenciados e apenas o tambor permanecia
sustentando o canto da Assembleia orante (Fonseca, 2000, p.177). Em
entrevista à Revista de Liturgia, Geraldo comentaria sua relação com
o tambor:

Em todas as culturas, o tambor está ligado ao sentimento


e à prática religiosa do povo. (...) O tambor reduz as pes-
soas ao silêncio, é algo que unifica, que cria unidade até
mesmo no modo de cantar. (...) No meio do povo, existem
pessoas que tem o ritmo natural, um ritmo que está den-
tro da batida do coração. O tambor tem uma força incrí-
vel. Em Ponte dos Carvalhos, eu notava que até os objetos
ficavam impregnados com as emanações do tambor, algo
que entra no corpo da gente. (...) Ao invés de dispersar ou
distrair, de criar um ambiente profano, ele reduz a pessoa

171
ao silêncio interior, ao silêncio da fé. Eu diria que neste
sentido o tambor é sagrado (Bastos, 1988, p.58).

A aceitação era unânime, afinal boa parte dos paroquianos tinha


profundas raízes africanas. Há inúmeros relatos de paroquianos da
época do Geraldo de que as missas eram verdadeiras festas. Em uma
das Vigílias Pascais da Ponte, por exemplo, o círio pascal chegou a cair
do pedestal sem que ninguém tivesse tocado nele, tamanha era a vi-
bração do povo dançando a ciranda do Exultet musicado por Geraldo
(Bina, 2006, p.48). Era a cultura do povo integrada ao que há de mais
precioso para ele, a celebração da fé.

O OFÍCIO DIVINO: UMA EXPERIÊNCIA DE ORAÇÃO POPULAR

Nossa música é toda uma mistura de melancolia e espe-


rança, de ritmos e saudades, de alegrias e dores, de África
e de Brasil… (Bastos, 1984, p.3).

Após conhecer a Comunidade de Taizé em Olinda e na França,


Geraldo começou a pensar num ofício que pudesse ser rezado com a
comunidade paroquial. Criou, com o povo, uma versão adaptada da
Liturgia das Horas, enquanto ainda era pároco da Ponte dos Carvalhos
(Carpanedo, 2012, p.12). O ofício se iniciava no silêncio, aos toques
do atabaque, seguido pelos demais elementos: convite à oração, hino,
salmo adaptado à realidade cultural nordestina (Geraldo compôs inú-
meras versões de salmos), leitura bíblica do dia, preces, concluindo
com o pai-nosso. Geraldo foi, portanto, o pioneiro também na oração
popular do Ofício. Posteriormente, um grupo maior em nível nacional
elaboraria a primeira edição do Ofício Divino das Comunidades (1988),
expandindo para o país inteiro o que já era tradição naquela periferia
pobre da Grande Recife.

172
GERALDO, PASTOR A SERVIÇO DA VIDA, IRMÃO DE TODOS
Geraldo, porém, não resumiu sua Pastoral às 4 paredes da Igreja.
Foi muito além disso. O cuidado de Geraldo era com todos, indepen-
dente de credo. Na apresentação do LP “Nação do Divino” (1970), Dom
Helder Camara escreveria sobre a comunidade Paroquial da Ponte:
“Em Ponte dos Carvalhos, o culto é uma consequência da vida da popula-
ção pobre, na tentativa de dividir o pão e o tempo na comunidade frater-
na, no cuidado de uns pelos outros, na luta pela sobrevivência.” (Camara,
1970, p.2).
São inúmeros os relatos da preocupação de Geraldo com a vida
daquela gente. Já em 1965, Geraldo conseguiu reunir cerca de 2 mil
pessoas em direção à fábrica Coperbo, agrupando, inclusive, evangé-
licos, para denunciar a poluição dos rios da região, que estava preju-
dicando as pessoas que viviam da pesca (FONSECA, 2000). Da mesma
forma, Geraldo denunciava os maus-tratos a trabalhadores das usinas
e fábrica de pólvora da região, inclusive nas celebrações dominicais,
despertando a ira destes empresários. Geraldo, entretanto, não se dei-
xava intimidar.
No ano de 1970, uma grande cheia destruiu muitas casas da re-
gião. Dona Madalena, paroquiana da Ponte, certa vez me confidenciou
que “no meio da noite, Padre Geraldo deixou sua cama quentinha, e de
repente foi visto subindo pelos escombros para socorrer a sua gente”. Em
parceria com a Operação Esperança da Arquidiocese de Olinda e Recife
ajudou a levantar inúmeras casas, que foram depois entregues a quem
havia ficado desabrigado. As prostitutas, por exemplo, foram grande-
mente atingidas. Geraldo não pensou duas vezes: as abrigou na Igreja,
enquanto suas casinhas eram reerguidas. Nada disso causava espanto
na comunidade paroquial, pois, à semelhança dos primeiros cristãos,
havia aprendido a colocar tudo em comum para o bem de todos (At 2,
42-47).

173
Em Escada, os relatos são inúmeros também. A casa paroquial, por
exemplo, ficava do lado da delegacia da cidade. Quando chegavam no-
vos presos e estes eram submetidos a seções de tortura, não hesitavam
em gritar por Padre Geraldo. Geraldo não pensava duas vezes: acorria
à delegacia e fazia parar imediatamente o suplício daqueles homens
(Fonseca, 2000, p.142).

ANÁLISE DE UM CANTO DO COMPOSITOR


O belíssimo canto “Salve a Nação do Divino”, um baião, de autoria
do Padre Geraldo faz menção explícita à Comunidade Nação do Divino
da Ponte dos Carvalhos. Como já comentado anteriormente, o Padre
Geraldo chamava carinhosamente a comunidade paroquial da Ponte
pelo nome “Nação do Divino”: ali se vivia plenamente, sob a inspira-
ção do Divino Espírito, uma Nação de irmãos congregados em torno da
Mesa da Palavra e da Eucaristia, mas além disso, na vida cotidiana, vol-
tados ao cuidado uns com os outros, na luta por melhores condições
de vida para todos. Este canto, assim como os demais do compositor,
passou por um processo de censura, não sendo mais entoado na Igreja
da Ponte. Não contava sequer com gravação musical ou registro em
partitura e corria grave risco de ser perdido no tempo. Em 2014, coletei
in loco a melodia, tendo como informante o diácono Genival Lima, que
conviveu com o Padre Geraldo. Com a colaboração de diversos músi-
cos, consegui o registro em partitura desta e de outras canções.
O canto, já nos próximos parágrafos, enumera as regras de con-
vivência, a “lei” maior da comunidade da Ponte: o próprio Evangelho
encarnado na vida coletiva:

Salve a Nação do Divino,


Salve o povo do Senhor,
Rebanho tão pequenino,
Mas é grande, em nós, o amor!
1. Nós não estamos aqui
Para fazer julgamento,

174
nem ser melhor que ninguém
É o primeiro mandamento!
2. Nós não estamos aqui
Pra combater os irmãos,
Promover a amizade
É nossa disposição!
3. Está Nação está aqui
Para espalhar a verdade,
Nunca fazer mal aos outros
É nossa finalidade.
4. Nosso Rei é Jesus Cristo,
Nossa bandeira, a verdade,
Nosso lema é “serviço”,
Nossa Lei, a caridade!

O refrão da música saúda a comunidade: “Salve a Nação do Divino!”,


“Salve o povo do Senhor!”. Esse povo, apesar de ser um “Rebanho tão
pequenino”, pobre, da periferia da Grande Recife, se tornou um povo
forte, pela sua união “além-da liturgia”.

175
Um interessante fato, sempre recordado por Dona Madalena
(Ponte dos Carvalhos - PE) é que, numa das cheias que assolou a Ponte,
no meio da noite, “Padre Geraldo deixou sua caminha, quentinha, subiu
pelos destroços da cheia e foi acudir nossa gente, que havia perdido tudo”.
Ainda sobre a cheia de 70, Fonseca (2000, p.139/140) reitera que Pe.
Geraldo chegou a abrigar algumas prostitutas que perderam suas ca-
sas na própria Igreja. O próprio Geraldo ajudou a reconstruir as casas
das pessoas, ficando as prostitutas nas últimas casas da rua, para não
incomodar os vizinhos. Estes fatos ilustram a extrema sensibilidade do
Pastor da Ponte e que o segundo exemplo (após o exemplo do próprio
Cristo), vinha dele.
O primeiro mandamento da comunidade é “Ninguém é melhor do
que ninguém”, seguido pela máxima “nós não estamos aqui para fazer
julgamento” (Lc 6,37; Mt 7,1). O próximo mandamento é consequência
deste primeiro: “Nós não estamos aqui pra combater os irmãos, promo-
ver a amizade é nossa disposição”.
A terceira estrofe comenta a finalidade da Comunidade Nação do
Divino: “espalhar a Verdade”. Mentiras, fofocas, calúnias, inveja, dis-
córdias, maledicências não poderiam existir onde está o Divino. Apesar
de humanos, a busca pela perfeição (Mt 5,48) deve ser uma constante
para os cristãos. Os paroquianos da Ponte assumiram isso como sua
“bandeira”.
Por fim, a Comunidade lembra que seu Rei é Jesus Cristo, seu “lema
é ‘serviço’ “ (Mt 20, 28; Jo 13, 14) e que sua Lei é o amor (Jo 13, 34).
Este canto, apesar de se encaixar perfeitamente à realidade da
Ponte dos Carvalhos nas décadas de 1960 e 1970, pode e deve ser
lema de todas as nossas comunidades cristãs. Afinal, nós - “pequenino
Rebanho” (Lc 12, 32) - somos a Nação Santa (I Pe 2, 9), povo escolhido
por Deus.

176
À GUISA DE CONCLUSÃO
O dicionário Michaelis, da Língua Portuguesa, traz como uma das
definições do “misticismo”, “intenso sentimento religioso que leva o
homem a atingir um estado contemplativo que lhe possibilita o en-
contro interior com o infinito divino” (Michaelis, 2022).
Nesse sentido, a associação do significado lexical à figura de
Geraldo Leite Bastos, presbítero da Arquidiocese de Olinda e Recife, é
inevitável. Geraldo conseguiu, ao longo de sua jornada, repetir o gesto
do Verbo Divino, que se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14a). Soube
beber profundamente das riquezas culturais do povo nordestino, inte-
grar-se à vida do povo da Ponte, Morro e Escada e encontrar o Sagrado
nas feições de sua gente. Deixou para a Igreja o testemunho de que é
possível encontrar-se com o Divino estando mergulhado nas belezas
desse século.

REFERÊNCIAS
BARROS, M. Não deixe cair a profecia. A herança de Dom Helder
Camara para a humanidade do século XXI. Recife: CEPE, 2022.

BASTOS, GL. Apresentação do LP Nação do Divino. Rozenblit:


Recife, 1970.

BASTOS, GL. Loas e lamentos. Revista de Liturgia, São Paulo, n. 76,


p. 15-17, 1986.

BASTOS, GL. Loas e lamentos. Conversas sobre o Ofício Divino das


Comunidades. Revista de Liturgia, São Paulo, n. 86, p. 56-58, 1988.

BASTOS, GL. Loas e lamentos, v. 2. [livro de cânticos]. Escada, 1984.

BINA, GG. A contribuição do atabaque para uma liturgia mais


inculturada em meios afro-brasileiros. [Dissertação de Mestrado
em Teologia]. Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção. São Paulo, 2006.

177
CAMARA, Helder. Apresentação do LP Nação do Divino. Rozenblit:
Recife, 1970.

CARPANEDO, P. Ofício Divino com o povo. Revista de Liturgia, São


Paulo, n. 233, p. 12-13.

FILHO, Félix. Além das ideias: história de vida de Dom Helder Câmara.
Recife: CEPE, 2012.

FONSECA, J. O canto novo da Nação do Divino: música ritual incul-


turada na experiência do Padre Geraldo Leite Bastos e sua comunida-
de. São Paulo: Paulinas, 2000.

MICHAELIS. Dicionário brasileiro da Língua Portuguesa. Editora


Melhoramentos, 2022. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/
moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/misticismo. Acesso
em: 30 dez. 2022.

SANTOS, AFS.; KYRILLOS, DS. Boca de povo… gritando o novo! Em co-


memoração aos 50 anos de composição litúrgica de Reginaldo Veloso.
Revista de Liturgia, São Paulo, n. 276, p. 24-27, 2019.

SC - SACROSANCTUM CONCILIUM. Constituição Conciliar sobre


a Sagrada Liturgia. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/
hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_
sacrosanctum-concilium_po.html. Acesso em: 22 dez. 2022.

VELOSO, R. O servidor da Nação do Divino. Revista de Liturgia, São


Paulo, n. 233, p. 4-6, 2012.

178
IVAN
TEÓFILO

Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues


Maria do Carmo Barbosa de Melo

INTRODUÇÃO
A trajetória do Pe. José Ivan Pimenta Teófilo tem sido contada em
capítulos e/ou fascículos, enfatizando aspectos significativos de sua
vida, tais como a sua rara sabedoria, sua posição em defesa incansável
aos oprimidos, a sua força revolucionária de suas palavras, inclusive
traduzidos em seus escritos e poesias, vividas em um contexto ditato-
rial, do regime civil-militar brasileiro (1964-1985). Como a conjuntura
desse período foi muito complexa, é necessário atenção ao contexto
sociopolítico que originou o compromisso dos que, como Pe. Ivan, fi-
zeram opção pela vida, a partir da prática do próprio Jesus.
Falar do Pe. Ivan é, para nós, assunto amplo e profundo.
Considerando que se trata de um capítulo, vamos destacar duas carac-
terísticas centrais de sua personalidade, a humildade e o compromisso
cristão, categorias a princípio indissociadas, que estão presentes em
testemunhos e na memória, inclusive a nossa, daqueles que viveram e/
ou compartilharam de sua breve passagem aqui nesta vida. Essas cate-
gorias parecem ser uma das indicações pertinentes para se compreen-
der o relacionamento dele com os fundamentos cristãos. Os termos
humildade e compromisso foram cunhados por Leite e Félix (2022. p.
278), à imagem do Pe. Ivan, em “reconhecimento resultante das suas
ações cotidianas, na defesa dos mais pobres, da preservação ambiental
e da luta em defesa da democracia” (p. 281).

179
A humildade em Ivan se constitui em testemunho acerca do modo
de vida por ele desenvolvida. Apesar de rara inteligência e de alto grau
de sabedoria, ele desenvolveu a simplicidade, “uma grande sensibili-
dade frente ao mundo do sofrimento e ao mesmo tempo uma forte
aspiração de mudança de tudo aquilo que na sociedade e nas comu-
nidades desgastam a justiça e a paz e ainda retardam o ideal de uma
sociedade justa e fraterna para todos” (Ricardo Sobrinho, 1990. p. 2).
Quando lembrado com o perfil de um verdadeiro missionário cris-
tão, menciona-se sua posição histórica frente a um cenário de forte
conservadorismo, autoritarismo e violência política. Assim, afirma-se
um padre revolucionário “no sentido de que é aquele que vai na fren-
te. Quem vai frente leva pancada. Quem abre caminho, sofre. É um
profeta.” (Leite; Félix, 2022, p. 279). Pe. Ivan nunca perdeu sua identi-
dade de servo de Deus, sempre inspirado na verdadeira identidade de
Jesus encarnado, existiu no verdadeiro sentido da palavra, saindo de
si, para seguir o Projeto de Deus. Ele sempre considerou que a paixão
e morte de Jesus precisou ocorrer para mostrar que a Ressurreição é a
plenitude do Existir. Aí se encontra o milagre que acontece no contato
profundo e transformador com Deus que justifica sua fidelidade como
servo.
Nossa tese é de que esses dois traços da personalidade de Ivan o
aproximam das características de um personagem místico, aquele que
desenvolveu em sua história elementos na religião que buscam encon-
trar um contato profundo e transformador com Deus.
Nesse texto utilizamo-nos, além do testemunho de nós autores,
os de outros que partilharam existências de vida com Ivan e que aqui
foram identificados por T1, T2.64

64 T1 – Professor da rede estadual, ex-aluno de Pe. Ivan; T2- Padre salesiano, ex-professor
do ITER, colega de Ivan na comunidade de Base em Caetés – Abreu e Lima – PE.

180
QUEM FOI Pe. IVAN TEÓFILO?
Padre Ivan nasceu em Pedra Branca, Estado do Ceará, em 05
de janeiro de 1940. Com 11 anos ingressou no Colégio Salesiano de
Piedade, em Fortaleza - Ceará. De lá partiu para sua formação inicial,
no aspirantado em Recife e em 1957 fez o noviciado em Jaboatão – PE,
oficializando seu ingresso na congregação salesiana. No ano seguinte
iniciou os estudos filosóficos em Natal - RN e na sequência em Lorena
– SP, concluído em 1960. Estudou teologia na Lapa – São Paulo, de 1965
a 1967, vindo a concluir no ITER (Instituto de Teologia do Recife) em
1968. Em 1973, estudou teologia na Pontifícia Universidade Católica
do Chile.
Foi ordenado em 1968 em Fortaleza, no Ceará e de 1970 até 1983
trabalhou na pastoral do Colégio Salesiano do Recife. Assumiu simul-
taneamente, de 1974 a 1975, a pastoral da juventude no âmbito do
Nordeste salesiano e assessor da pastoral de juventude do Regional
Nordeste II. Sua última atuação ocorreu nas comunidades de base de
Caetés em Abreu e Lima - PE, junto com os padres salesianos João
Carlos Ribeiro e João Norberto, no período de 1984 até sua morte, em
24 de fevereiro de 1990.
Pe. Ivan sempre teve urgência no anúncio da salvação, especial-
mente, nas diversas realidades que viveu e sentiu, desde o período de
sua formação sacerdotal. Sua coerência se confirma pelo fato de sa-
ber “existir”, independente dos riscos e desafios constantes, inclusive,
como ele mesmo afirma no primeiro ano de função sacerdotal, em car-
ta referindo-se ao massacre de Pe. Henrique:

[...] o primeiro grupo que formei foi batizado no sangue


do Henrique...Sem dúvida nenhuma o testemunho de
Henrique me fala muito. Vejo-o não isoladamente. Mas
fazendo parte do processo de transformação social do
Continente Latino- americano, onde a Páscoa do Senhor
continua nas opções de todos aqueles que decidem a vi-

181
ver em função da libertação e não do egoísmo, da justiça
e não da dominação (Carta destinada a Maria do Carmo
Melo, em 28 de maio, s/a. Acervo pessoal).

Agir, no sentido cristão, significava para ele tomar iniciativa par-


ticipando da vida e natureza de Deus. Assim, como Paulo exortava os
fiéis a praticarem a humildade, imitando Jesus Cristo: “Tende em vós
as mesmas disposições de Jesus Cristo” (Fl 2,5), ele, na sua coerência
cristã, não conseguia dissociar a fé da vida. Agia no sentido arendtia-
no, com iniciativa que dava movimento aos grupos que liderava. No
dizer de (Arendt, 1987, p. 91), “o fato de que o homem é capaz de agir
significa que se pode esperar dele o inesperado, que é capaz de realizar
o infinitamente improvável.”.

Ivan, tinha essa dimensão orante, profundo e enraizado


no chão da vida, quem enxergava longe e mesmo na dor
das incompreensões vinda de sua amada congregação e
Igreja, ele tomou pra si bandeiras e isso nos animava, co-
nheci inúmeras pessoas, que ao ver a defesa de Ivan da
vida tomaram pra si o segui com o povo...lindamente dito
no seu poema (T1).

Certamente, foram muitas horas de orações, muitos dias e meses


de “desertos” e muita fé, como ele próprio dizia: “para não cansar na
caminhada a pé.” Pe. Ivan tinha muita clareza que seguir o evangelho
causaria muitos problemas, e ele decidiu enfrentá-los a partir de sua
própria vivência.
Ivan vivenciou o movimento a teologia da libertação, pensada
mais fortemente no contexto da América Latina. Essa teologia apre-
senta uma abordagem teológica cristã que destaca a libertação dos
oprimidos, uma perspectiva que enfatiza a preocupação social com os
pobres e a libertação política dos povos oprimidos.

182
Pe. Ivan foi alguém fortemente tocado pelo ambiente
efervescente da teologia latino-americana, nas décadas
de 1970 e 1980. Antes disso, vivia na média dos bons se-
minaristas de então. Contava que em 1968, vivendo em
Jaboatão na casa salesiana, não se dava conta do que esta-
va acontecendo nos grandes centros urbanos, com os mo-
vimentos de protesto dos jovens, iniciados na França (T2).

Ivan aprofundou um estilo de vida comprometida, durante sua


trajetória como estudante de teologia, creio que tenha sido durante
os estudos de teologia que ele tenha despertado para o grande movi-
mento que tomou corpo na Igreja em reação às ditaduras militares no
continente, o apoio à organização popular e às lutas dos trabalhadores
(T2).
Ele sentiu na pele a brutalidade dos regimes autoritários na
América Latina e confrontou as contradições que daí resultava no mo-
mento em que ocorria sua formação para o sacerdócio, no Chile. “Em
1973, o encontramos estudando teologia na Pontifícia Universidade
Católica do Chile. O governo popular de Allende foi interrompido, na-
quele ano, por um duro golpe militar que forçou a saída dos estrangei-
ros, como o jovem estudante Ivan Teófilo” (T2).

O BALAIO E A FORMAÇÃO DE LIDERANÇAS


Após sua ordenação, de 1970 a 1983, Ivan foi trabalhar na pastoral
do Colégio Salesiano do Recife. Foram 12 anos de sua vida dedicados à
animação de pastoral dos estudantes e dos grupos jovens da Pastoral
da Juventude do Regional Nordeste 2. Foi lá que ele, considerando o
fato da potencialidade gerada em meio a comunidade impulsionada
pela fé e pela realidade vivida na dimensão dialógica e plural, criou um
espaço de acolhimento, escuta, reflexão e planejamento na perspec-
tiva de formação de lideranças embasada no aspecto salvífico envol-
vendo, principalmente, a fé incorporada as concretudes da vida diária.

183
No Colégio Ivan organizou e tornou a sala de pastoral um centro
de atenção e formação de lideranças juvenis, “ali encontravam livros,
revistas, discos e jornais; ali conversavam e ouviam música. Mas, so-
bretudo, sabiam eles que ali encontravam um amigo que os acolhia
e ouvia com coração sacerdotal.” (Ricardo Sobrinho, 1990, p. 4). Esse
local ficou conhecido como “Balaio”, “na sala um grande balaio estava
sempre repleto de livros, revistas e folhetos” (p. 4)
O Balaio tinha uma energia muito boa, conseguia envolver todos
os que o frequentavam em compromissos pastorais movidos por um
sentimento esperançoso. Aquele espaço agregava todos os Grupos
Jovens que haviam sido formados a partir do Cursilho de Cristandade
no qual o Pe. Ivan teve um papel fundamental no despertar dos jovens,
tocados pelo essencialismo cristão.
Ele tinha uma escuta muito aguçada e sabia devolver em palavras
que conseguiam penetrar no interior de cada pessoa que o procura-
va. Seu compromisso era também com a situação existencial de cada
um. Ele sabia que o jovem precisava estar equilibrado emocionalmente
para enfrentar os desafios constantes. Como bem ilustra o testemunho
a seguir:

Na vida religiosa o reencontro com Ivan, na sala de aula,


penso que encontrei quem me fez fazer a boa síntese dos
pensamentos juvenis, influências da família, eu era filho
de um comunista atuante e uma cristã católica fervorosa,
era preciso entender melhor a opção pela vida religiosa as
fontes inspiradoras e o proposto do Nazareno. Eu entendi
com certeza que era umas opções preferenciais, que para
Ivan seria os trabalhadores e trabalhadoras na luta por
libertação (João Simão, Educador e Professor no Recife
– 19.09.2023).

A sensibilidade que possuía Pe. Ivan à condição humana, enquan-


to seres singulares que faz parte de uma pluralidade em meio à ação

184
e opção, revela sua singularidade que era extraordinária. Parecia má-
gico em enxergar os conflitos interiores e manter o espaço em que a
liberdade aparecesse, constituindo uma realidade concreta. Como bem
sabia orientar com sua sabedoria de Mestre:

[...] Duas coisas que a gente deve ter sempre presentes: o


rumo e o veículo para chegar lá. É mesmo clareza de ob-
jetivos operacionais. É preciso saber o que estamos real-
mente querendo. Depois buscar instrumentos adequados
ao que estamos querendo. Creio que Jesus Cristo desco-
briu, em contato com a história do povo, o sentido de sua
vida. Seu objetivo e método adequado para atingi-lo. No
entanto, nem um nem outro é estético: objetivos e mé-
todos são validados e dinâmicos [...]. O grupo realmente
conscientizado realimenta a avaliação permanente. É na
avaliação que tudo vem à tona, através da crítica e da au-
tocrítica. Acho que a conversa que nós tivemos destacam
esses elementos de crítica autocrítica. [...]. Só planejan-
do, poderemos transformar a realidade (Carta destina-
da a Maria do Carmo Melo, em 28 de maio, s/a. Acervo
pessoal).

Ao orientar a atenção no planejamento da ação, Pe. Ivan, mostrava


o cuidado com o imediatismo e a euforia da juventude em querer agir
impulsivamente buscando resultado imediato da ação.

O jeito Ivan de ser tinha muita influência sobre nós,


era presente/preventivo, um escutador dos jovens, algo
do ser salesiano o dar lugar aos jovens. Eu conheci dois
jovens vocacionados salesianos que vieram do colégio
Sagrado Coração, um colégio de classe média, aqueles
dois jovens quiseram ser salesianos, incrível para mim
que vinha da pastoral do meio popular, dois jovens que
tinha em si uma autonomia que exercitaram na experiên-
cia de grupo no balaio (T2).

185
É relevante destacar ainda, o perigo que era ser verdadeiramente
cristão, segundo o Evangelho, em uma ditadura militar. Portanto, ação
e começo eram discutidos, refletidos e deliberados de forma orientada
para se poder atingir um grau de liberdade interior para aprender a
articular o conteúdo fundamental da mensagem cristã. Isso tudo sin-
tetiza a função do Balaio, na missão do Pe. Ivan.

Foi assim que o conheci. Coordenador de pastoral do se-


gundo grau do Colégio Salesiano do Recife, membro do
conselho inspetorial, assessor da pastoral de juventude
estudantil, atento aos temas da educação popular e dos
compromissos dos cristãos com a transformação social.
Encantava pelas ideias, mas também pela forma como
conduzia uma reunião, um encontro, uma conversa, uma
pregação. Um educador para a mudança (T2).

O “balaio” resumia a marca da metodologia de evangelização juve-


nil comprometida com a transformação e o compromisso que exige o
evangelho. Ivan tornou um espaço formal de catequese em um centro
irradiador de uma nova modalidade de formação para os jovens com-
prometidos com a libertação de seu povo, um centro de ideias e de
formação de novas lideranças para o mundo.
Como afirmou o seu superior, Pe. Ricardo Sobrinho, Ivan “era ocu-
padíssimo e por demais solicitado pelas coordenações das diversas
pastorais das Dioceses e também pelas várias Instituições como asses-
sor, conferencista e professor”. Junto com a experiência de formação
no “balaio” ele mantinha diálogos com diferentes realidades, observa-
va, lia a vida, produzia subsídios de reflexão para diversas comunida-
des espalhadas na América Latina, com um olhar atento e solidário à
lutados mais sofridos.

186
IVAN NO CONTEXTO DA DITADURA CIVIL- MILITAR BRASILEIRA
A ditadura militar no Brasil foi duramente vivenciada durante 21
anos (1964-1985) e resultou em fortes consequências para o exercí-
cio da cidadania, marcado por forte censura à imprensa, restrição aos
direitos políticos e perseguição policial aos opositores do regime, in-
cluindo os religiosos.
A atuação política de Ivan, nesse contexto, visava a defesa dos
mais pobres, a questão ambiental e a democracia, não configurando,
no entanto, uma posição hegemônica na igreja daquele tempo. Sua po-
sição política sustentou sua imagem como revolucionário e em conse-
quência, foi registrado por diversas vezes na documentação do Serviço
Nacional de Informações como um nome de ‘destaque’, entre aqueles
que mantinham oposição ao regime (Leite; Félix, 2020).
O nome do Pe. Ivan como pessoa resistente à ditadura civil militar,
contexto de suas práticas é citado nos arquivos do SNI, conforme Leite
e Felix, em mais dois episódios. Um deles refere-se a sua participa-
ção na assembleia de estudantes em Pernambuco, em defesa da jus-
tiça e contra as prisões políticas, especificamente na defesa do então
estudante Edival Nunes da Silva, o Cajá, preso pela Polícia Federal de
Pernambuco em 1978.
Outro caso ocorreu em 9 de abril de 1981, quando o Pe. Ivan é
citado em documento do Comitê de Solidariedade ao Pe. Reginaldo
Veloso e a causa de seu enquadramento na Lei de Segurança Nacional.
Aqui ele é citado nos arquivos do SNI como participante da missa pela
vitória da justiça em homenagem ao Pe Reginaldo Veloso.
É nesse ambiente de perseguição política que Ivan resistiu e con-
tribuiu com a formação de lideranças, assessorias as comunidades, es-
timulando a reflexão e o pensar coerente com a vida cristã.

Na sua militância como educador e religioso, já como pa-


dre, Ivan foi se tornando referência teórica para jovens
e religiosos. Já não era apenas alguém envolvido com o

187
clima libertário, mas também alguém que pensava, que
assessorava encontros, que conduzia a reflexão, que aju-
dava a pensar (T2).

A insegurança que o regime militar representava para seus opo-


nentes colocava sistematicamente Ivan em perigo. Apesar das amea-
ças e de que seu nome era recorrente entre os “olheiros” do regime,
manteve-se coerente e corajosamente ao lado dos mais simples, dos
jovens e de suas lideranças.

INSERIDO NA COMUNIDADE DE BASE EM CAETÉS


Em 1984, três jovens salesianos foram morar em Caetés, bair-
ro de Abreu e Lima, periferia da área metropolitana do Recife em
Pernambuco. Foi o Pe. Ivan que liderou o processo que resultou na
comunidade de inserção de Caetés. Muitas congregações femininas,
inclusive as irmãs salesianas, tinham abraçado essa nova forma de
presença: viver em ambiente popular, no nível do povo, exercendo um
papel de animação da vida cristã, escapando das grandes obras já con-
sagradas pela tradição. De 1984 ao início de 1990, vimos o Pe. Ivan em
contato permanente com as famílias do bairro, os jovens, os operários.

As comunidades foram nascendo do contato com as pes-


soas e os grupos que foram nascendo nas ruas. As cons-
truções foram feitas sempre em mutirão e em conjunto
com todas as comunidades já formadas. Não havia paró-
quia, mas uma rede de comunidades que foi crescendo
sempre mais (T2).

O Pe. João Carlos, colega de Ivan nessa nova forma de viver a vida
religiosa, destaca na atuação no papel de formador das lideranças, ao
lado das lutas dos trabalhadores, na organização da comunidade.

188
Nos seis anos de vida e serviço pastoral em Caetés, en-
contramos o Pe. Ivan na preparação das celebrações, nas
reuniões semanais de avaliação e programação com as li-
deranças (reuniões de segunda-feira), na porta das fábri-
cas nas greves, no curso de alfabetização de adultos com
o método Paulo Freire, no acompanhamento cuidadoso
dos catequistas (T2).

A presença dos padres na Comunidade de Base, fora das tradi-


cionais estruturas de colégios e paróquias, exigia dos religiosos, uma
nova forma de subsistência, a busca por um trabalho adicional à vida
pastoral, que os garantissem à manutenção da casa e de suas despesas
pessoais.

Nesse tempo, trabalhou como professor no Instituto


Teológico do Recife (ITER) e no Instituto Salesiano de
Filosofia (INSAF). Nesse ambiente Ivan contribuiu firme-
mente na formação de novas lideranças comprometidas
com o evangelho, com uma opção de vida religiosa volta-
da aos trabalhadores e trabalhadoras (T2).

Também nesse ambiente acadêmico, repleto de teorias históricas,


com uma grande diversidade de estudantes vindos de diversas congre-
gações e leigos, Ivan se destacou como um militante e testemunho de
religioso comprometido com a luta dos trabalhadores e trabalhadoras.
Sobre seu trabalho em Caetés o Pe. Ivan escreveu: “É fácil consta-
tar que as comunidades de fé, não nascem feitas. Elas são construídas
progressivamente, passando por fase de crescimento, vencendo etapas
de crise, indo para frente com a força de Deus que escolhe os pequenos
e os pobres do mundo para estabelecer seu reinado na história” (ISNE,
2018. p. 4). Entendia o Pe. Ivan que a formação e animação das comu-
nidades de base devem ocorrer em duas dimensões: a) Ligação da vida
da comunidade com as formulações da fé e b) A formação do novo ca-
tequista. A formação pensada por Ivan incluía não apenas pensar a fé

189
a partir da vida das comunidades, mas também pensar um novo modo
de ser catequista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste texto procuramos sintetizar qualidades do Pe. Ivan que tra-
duzem necessidades prementes de serem conhecidas, especialmente
pela atual juventude, tão carente de se realimentar de esperança a par-
tir de testemunhos de quem mostrou com sua práxis aspectos salvífi-
co, incorporando as concretudes da vida diária.
Como ele mesmo disse em um de seus poemas: Felizes os educado-
res que iluminam sua prática com o sonho de um futuro novo em que as
pessoas aprendam, através de novas relações sociais, as lições da justiça
e da solidariedade.
Entendemos que se faz necessário buscar alimentar pesquisas e
publicações de um ícone como o Pe. Ivan capaz de superar uma an-
tropologia abstrata e individual e de abrir caminhos para novas pos-
sibilidades que podem brotar o “esperançar” mediador de condições
para libertação. Tão bem colocado pelo próprio Pe. Ivan, que assim,
fecharemos nossas considerações: “Quem parte não tem medo de se
perder vai chegar a entender que só se perde quem não for. Quem vai
por qualquer caminho jamais andará sozinho” (Poema de Ivan). Ivan
viveu bem a ...”fé, pra não cansar …”

REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. A condição Humana. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1987.

MCGINN, Bernard. O florescimento da mística: Homens e mu-


lheres da nova mística (1200-1350). Tradução Pe. José Raimundo
Vidigal. São Paulo: Paulus, 2017. Disponível em: https://deg.paulus.
com.br/4773.pdf. Acesso em: 07 abr. 2023.

190
MCGINN, Bernard. As fundações da mística. Das origens ao século
V. São Paulo: Paulus, 2012.

RODRIGUES, L. A. R. O desafio da convivência humana - Lições que


estão por trás das letras dos evangelhos. Recife, 2010.

LEITE, A. de M; FÉLIX, K. K. “É preciso cuspir no Ódios, Escancarar As


Prisões”: a Trajetória do Padre Ivan Teófilo no Contexto da Ditadura
Civil-Militar Brasileira. In: ADILSON FILHO, J; GAUDÊNCIO, B. Sob o
signo da Fé. Memória, Poder e Protagonismo de Padres na Paraíba
e em Pernambuco. Rio de Janeiro: Telha, 2022.

SOBRINHO. Pe. Raimundo Ricardo. Carta Mortuária: Padre José


Ivan Pimenta Teófilo. Inspetoria Salesiana do Nordeste do Brasil.
Recife, 1990.

ISNE - INSPETORIA SALESIANA DO NORDESTE. Padre Ivan Teófilo:


O poeta da libertação. Coleção Vida Salesiana. Recife, 2018.

191
JOSÉ
CALIXTO
FERREIRA
DE
ARAÚJO
Padre Calixto

Luiz Alberto Ribeiro Rodrigues

INTRODUÇÃO
Ao longo da história da igreja, diversas pessoas se destacaram pela
simplicidade e profundidade com que manifestaram de alguma forma
a abertura pessoal ao projeto de Deus. Homem e mulheres, religio-
sos(as), sacerdotes(tizas), cristãos leigos(as), personagens considera-
dos místicos, na medida em que desenvolvem características humanas,
tais como a humildade no trato com as demais, especialmente com os
mais fracos, e ao mesmo tempo profundidade e transformação em sua
relação com Deus.
As práticas místicas apontam para uma concepção de destino, en-
xergam e se valem de forças que estão fora do campo do humano e do
mundo material (Mcginn, 2017). O místico constrói ao longo de sua
vida experiências profundas e ao mesmo tempo imediatas, que bus-
cam construir, onde está atuando, um novo jeito de ver a vida a partir
dos valores do Evangelho.
Neste capítulo pretende-se destacar alguns dos traços da vida do
Pe. Calixto (scj) que demonstram aproximação com características es-
senciais da pessoa mística, profundidade e transformação, um teste-

192
munho no modo como abordou as sagradas escrituras e ensinou seus
valores às comunidades por onde atuou como sacerdote.
O modo e o conteúdo com que difundiu as sagradas escrituras ao
longo de vida pastoral, somado a sua aproximação com os mais sim-
ples, revelam nele uma perspectiva de evangelização radical, um tes-
temunho de espiritualidade que enxerga nas escrituras um referencial
para a vida humana em sua plenitude.
Neste relato foram incluídos conteúdos da fala do Pe. Calixto, ex-
traídos de seus sermões, publicados em Rodrigues (2010) e ainda de-
poimentos de pessoas que conviveram com ele por no mínimo uma dé-
cada. Esses depoimentos visam contribuir com a busca de significados,
ampliar pontos de vista em torno de sua atuação pastoral, em especial
como pregador da palavra sagrada. Os depoentes foram identificados
por D1, D2, D3, D4, D5 e D6.65

QUEM FOI PADRE CALIXTO?


José Calixto Ferreira de Araújo nasceu no município de Vertentes,
agreste pernambucano, no dia 14 de outubro de 1930. Formou-se em
letras, filosofia e teologia. Foi ordenado sacerdote em 1956, exerceu
funções de professor e diretor em escolas da congregação nas cidades
de Palmeira dos Índios e Recife
Como sacerdote atuou vinculado à Diocese de Nazaré da Mata,
nos municípios de Surubim em dois períodos (1970 a 1975 e 1987),
em Vicência, no período de (1980 a 1986) e em Aliança, por dois anos
(1987 a 1988). Foi provincial da sua congregação Dehoniana, Província
Brasil Recife, por 10 anos (1990 a 2000).

65 D1- paroquiano, trabalhador, chefe de família, com educação básica; D2- sacerdote
scj, contemporâneo do Pe. Calixto, D3- sacerdote scj, aluno do Pe. Calixto; D4- professora,
catequista; D5 - liderança jovem, com educação básica; D6 - profissional liberal, formador
da pastoral de jovens.

193
Na década seguinte (2000 a 2010), dedicou-se à igreja de São
Francisco de Paula, localizada no terminal da Avenida Caxangá e à ca-
pela de São Francisco de Assis, localizada em Barreiras, ambas per-
tencentes à paróquia de Nossa Senhora do Rosário, na Várzea, Recife
- Pernambuco.
A partir de então o Pe. Calixto, como era conhecido, se ausentou
para receber cuidados especiais de saúde, morando na casa do provin-
cialado na Várzea, vindo a falecer em 22 de janeiro de 2018, com 86
anos.
Era reconhecido pela dificuldade com a voz, pois era portador de
dificuldades na garganta, o que resultou em uma dicção rouca, fraca e
pouco audível, limite este que o deixava longe de ser um grande orador
ou ser reconhecido como pregador, mesmo no âmbito da igreja.
Uma marca trágica que o acompanhou ao longo da vida foi o fato
de ter sido testemunha de um acidente que vitimou um dos seus co-
legas sacerdotes. Na década de 1980, eles retornavam à Recife de uma
missão no interior de Pernambuco, e ao chegar próximo da Região
Metropolitana, “o carro dirigido por Pe. Calixto veio a capotar em uma
ladeira. Ele e o colega sacerdote ficaram feridos. Pe. Calixto se recu-
perou, mas o colega, um recém ordenado que havia chegado há pouco
tempo da Itália, onde terminara o doutorado, não resistiu e veio a óbi-
to” (D2).
O sentimento de culpa pela morte do colega sacerdote acompa-
nhou Calixto ao longo de sua vida, “o trauma maior dele foi se culpar
pela morte de um colega” (D2). Em resposta a este sentimento de cul-
pa, ele começou a exigir o máximo de si, comer o mínimo possível,
como possível forma de reparação e de busca de perfeição pessoal.
“Calixto começou a exigir a perfeição de si mesmo. Ele tinha proble-
mas de alimentação, não queria engordar. No passado era um atleta
forte. Passou a comer muito pouco. O trauma maior foi se culpar pela
morte do colega” (D2).

194
UM OLHAR VOLTADO PARA A QUESTÃO DA CONVIVÊNCIA
O modo como o Pe. Calixto explicou os evangelhos revela uma es-
pantosa aproximação dos conteúdos da bíblia para com o cotidiano
das pessoas, um olhar voltado para os dramas humanos, em especial a
questão da convivência.
Falou dos textos sagrados para os simples de sua comunidade, uti-
lizando-se de uma chave de leitura que relaciona a complexidade da
narrativa sagrada ao compromisso diário da pessoa em comunidade.
Em sua narrativa, os textos sagrados devem ser entendidos e so-
bretudo utilizados para orientar os princípios da convivência humana,
como afirmou, esse é o maior desafio da humanidade, a convivência
(Rodrigues, 2010).
De modo geral, observa-se em uma pessoa mística, elementos de
sua prática religiosa que favorecem e/ou proporcionam contato pro-
fundo e transformador com Deus. As práticas místicas apontam para
uma concepção de destino, enxergam e se valem de forças que estão
fora do campo do humano e do mundo material (Mcginn, 2017).
Para se buscar a mística cristã vivida por diferentes pessoas, é
necessário manter a “noção de consciência da presença de Deus de
um modo mais profundo e mais imediato como a categoria” (Mcginn,
2017. p. 9).
O ‘profundo’ em Calixto estava no trato com as escrituras sagradas
e na relação com os simples. ”Calixto é um místico pela profundida-
de. Um homem que não era muito doce, era pessimista, trazia traumas.
Ele mantinha um olhar com profundidade sobre a realidade, dizia que
o evangelho tem consequências” (D3).
Em especial, era profundo na partilha da Palavra: ”considero que
o Pe. Calixto é uma pessoa mística, pelo fato de que, na sua vida e
nos seus ensinamentos, apesar da dificuldade que tinha para se fazer
entender, partilhava a Palavra com profundidade e ao mesmo tempo
trazia a meditação para a realidade do povo. A meditação era muito

195
profunda, mas por outro lado ele tornava o entendimento muito fácil.
Era complicado ouvir, mas era muito didático” (D5).
Calixto desenvolveu uma prática de leitura bíblica que ilumina-
va a realidade, e permitia uma maior compreensão das contradições
e injustiças nela presentes. “Tinha uma forma de pregação antiga e
ao mesmo tempo realista, profunda”. (D4). Se manteve sempre como
um professor da palavra. “Pe. Calixto é um catequista, um sábio da
teologia, inteligente, reservado, muito educado, muito seleto, era um
professor” (D6).
Além disso, escuta o povo, especialmente os simples. “Era muito
inteligente, gostava de ouvir e fazia sua análise crítica. Muito curioso,
estudioso, criou uma forma própria de divulgar a palavra. Ele era so-
ciólogo, lia muito. Era professor, dava aula de música, tocava piano”
(D2).
Além de profundo, ele estava preocupado com o imediato. “Ele
tinha um olhar prático, cuidadoso com a questão da formação, tinha
método claro” (D3). Afirmava um compromisso prático com a Palavra,
“as ideias religiosas eram muito sérias, muito práticas, preciso nas pa-
lavras. Gostava mais das pessoas simples” (D2). Era provocativo, in-
sistia em mudanças estruturais e pessoais. “Nos levava às mudanças,
a querer sempre mais, a ver a realidade e a compreender o que signifi-
cava a Palavra” (D4).
A relação fé e vida, estava muito presente em seus ensinamentos.
“Convivi com ele quando ainda muito jovem, e me encantava com a
forma da partilha da Palavra. Ele conseguia fazer um contraponto com
a vida da pessoa, trazia para a realidade, tornava a palavra viva, no dia
a dia das pessoas. Trazia muitos exemplos do cotidiano” (D5).

196
MUITO CURIOSO E ESTUDIOSO DA PALAVRA
No discurso do Pe. Calixto existiu uma metodologia clara, que ten-
ta aproximar o ouvinte ao eixo central do livro sagrado. Foi possível
reconhecer nos seus sermões, insistentes orientações quanto a atuali-
dade da mensagem, a centralidade dos princípios a serem buscados e
o cuidado com o método de leitura. “Ele não tinha beatice. Tinha uma
forma especial de abordar a comunidade, percebia quando não ela não
estava prestando a atenção” (D2).
O método de ensinar superou suas dificuldades de dicção. Além
de um conteúdo formal seguro e profundo, contava fatos da vida real
para aproximar a mensagem do povo. “Quando ele falava a gente não
entendia, a pronúncia era muito ruim. Na missa ele descia para junto
do povo e contava histórias” (D1).
Em tudo estava ensinando. “Tinha uma forma de pregação antiga
e ao mesmo tempo realista, profunda. Nos levava a querer aprender
mais. A sua pregação era curta e grossa, nos levava a recordar os tem-
pos antigos e reconhecer nossos erros pela não observação da Palavra”
(D4).
Uma de suas práticas era organizar nas paróquias sob sua respon-
sabilidade uma formação de lideranças para a evangelização. “Ele ti-
nha um olhar prático, cuidadoso com a questão da formação, cuidava
da formação das lideranças da comunidade. Tinha um método claro”
(D3).
Pregou um método de leitura da Bíblia voltado a buscar além dos
textos os ensinamentos, o que a palavra quer revelar. Chamou a aten-
ção sobre a atualidade da bíblia, com um livro perene, constante, sem-
pre atual. Mas alertou insistentemente que era necessário saber ler a
bíblia. Dizia ele, ler a bíblia ao pé da letra, como um livro de história
é perda de tempo. A mensagem está por trás das letras. Precisa-se ler
e perguntar: o que está sendo ensinado aqui? O que o texto quer me
dizer, ensinar? O que o texto ensina? (Rodrigues, 2010).

197
Insistiu que a Bíblia é um livro perene e atual. Explicou várias
vezes em seus sermões, que a bíblia não é um manual de economia,
mas um livro de princípios. Salientou que o central são os princípios
que orientam a relação da criatura humana com seu Deus, e ao mes-
mo tempo é um livro de princípios sobre as relações entre as pessoas
humanas.
Afirmou a centralidade da mensagem a partir dos princípios:
Deve-se ler esses princípios e tirar orientações para ações concretas,
para posições a partir desses ensinamentos (RODRIGUES, 2010).
A abordagem que o Pe. Calixto utilizou para explicar os evange-
lhos, encontra respaldo na tradição dos profetas, que busca dar sentido
a religião a partir de sua proximidade com a vida, Jesus é profeta desta
tradição. Não estimula ritos nem sacrifícios aos deuses, mas deseja a
mudança de vida, o amor como orientação às relações humanas.
Os tópicos a seguir traduzem, em resumo, a fala oral do Pe.
Calixto, extraído de gravações de alguns de seus sermões, publicado
em Rodrigues (2010).

O DESEJO DE DEUS É EDUCAR AS PESSOAS, MELHORAR SUAS


CONSCIÊNCIAS
“E se vocês não se converterem, vão morrer do mesmo modo” (Lc,
13,3).
Esse evangelho está dizendo que Deus não condena ninguém.
Vejam um exemplo: Vi nesta semana na TV, um homem que matou
um policial durante um assalto na cidade de Jaboatão - PE. O homem
apareceu na TV, chorando cinicamente, dizendo que estava sentido o
mesmo que a família do policial morto, porque dizia ele, não fui eu
não, foi Deus que marcou esta morte. Ele tinha que morrer, porque
Deus determinou àquela hora. Dizia ele, eu fui um instrumento de
Deus para matar aquele policial naquela hora.

198
Este evangelho está dizendo que isso não existe, o que aconteceu
de ruim, não é castigo de Deus. Deus não nos castiga, não é vingati-
vo, Deus dispõe de todo o tempo para a nossa conversão. Não existe
condenação, Deus não condena ninguém. O que ele faz é mostrar o
caminho, deu aos homens inteligência, liberdade e consciência moral.
Enviou os profetas, os missionários, a igreja. Muitos instrumentos de
formação de consciência, de educação são colocados a serviço da con-
versão do seu povo.
Todas estas instituições são instrumento de Deus para educar as
pessoas, para melhorar as suas consciências, para ensinar a viver. Cada
pessoa é livre, cada um é dono de seus atos, cada um faz o seu caminho
na vida.
Agora, lá na frente, ele vai prestar contas do que fez. Ele escolheu,
não foi Deus. Cada um tem sua inteligência, sabe o que é certo ou er-
rado, é livre para assumir e dar conta de sua vida.
Alguns acham que Deus é responsável pelas desgraças da histó-
ria. Ouvi uma liderança religiosa dizendo que os terremotos no Haiti
eram sinais dos castigos de Deus, em decorrência das práticas religio-
sas africanas. Ora, se fosse isso, o Recife, Salvador e Rio de Janeiro
já tinham se acabado. É ignorância dizer que Deus mata milhares de
pessoas, boas ou ruins, em um terremoto! Foi um acidente da natureza
e não vingança de Deus.
O que Deus quer é a penitência, o caminho da conversão. A peni-
tência é a reflexão, você olhar para dentro de si, descobrir o que há de
errado e começar a corrigir. A conversão é a mudança, ser outra pes-
soa, conviver diferente, pensar diferente. Jesus diz que você tem que
se converter, mudar de pensamento, mudar sua convivência para se
ajustar ao projeto de Deus. Tenho muitas práticas erradas em casa, não
está como Deus quer, vou começar a mudar, vou me aperfeiçoando.

199
Se quer mudar de vida, deve começar agora!
“Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais” (Jo 8,11).
Esse evangelho se engancha na garganta de muita gente. Dizia a
lei dos judeus que se a mulher fosse flagrada em adultério, deveria ser
morta a pedradas. Um fariseu que conhecia a lei, maliciosamente levou
uma mulher flagrada em adultério para Jesus.
Jesus estava com o povo, ensinado, catequizando, e o fariseu lhe
contou que a mulher fora apanhada em ato de adultério. Lembrou a
Jesus que pela lei de Moisés ela devia ser condenada e perguntou a
Jesus, o que Ele diz disso? Era uma cilada.
Então Jesus calmamente, dono de si, plenamente consciente, dis-
se: Olhe aqui, entre vocês que estão acusando a mulher, quem se achar
sem pecado, puro, jogue a primeira pedra. Todo mundo ficou calado,
cabeça baixa e começaram a sair.
E a mulher ficou só. E agora? Aí vem o drama. Primeiro a relação
entre justiça e lei. Lei é um documento escrito pelos homens, não é
infalível, não resolve todos os casos, não leva em conta situações par-
ticulares, é a lei. Na interpretação da lei pode haver malícia, capricho,
má intenção… Lei é uma coisa, justiça é outra.
Um caso aqui em Recife me chamou a atenção. Um advogado me
contou que certa vez foi chamado para atuar como promotor de acu-
sação em João Pessoa, na Paraíba. Leu o processo, viu que era viável,
se preparou e conseguiu convencer o juri que o acusado era culpado. O
homem foi condenado a 25 anos de cadeia.
No outro dia a mulher do condenado procurou esse advogado e
contou-lhe outra versão totalmente diferente, outras pessoas, outra
circunstância, outras testemunhas. O advogado concluiu que tinha
condenado um inocente. Decidiu abrir novo processo e defender o
condenado e conseguiu soltá-lo.
A justiça de Deus não se resume a formalidades. A nossa justiça é
punitiva, legalista, para punir. A justiça de Deus, ao contrário, deseja a

200
recuperação do pecador, o retorno de quem se afasta, achar quem es-
tava perdido, incluir quem está desgarrado, devolver a vida para quem
estava morto. Deus quer isso, que o pecador volte a viver, retome a sua
vida, recomece.
Se quiser mudar de vida deve começar agora. O que interessa é
a sua mudança de vida daqui para a frente. A confissão só é válida se
tiver esse ingrediente, a consciência de culpa e a decisão de mudar de
vida, a decisão de querer se corrigir.
Jesus não falou do passado da mulher, nem quis saber se foi ver-
dade o que diziam sobre ela. Não condenou, mas disse vá e não peque
mais. Se errou, vá mudar. É o esforço constante de crescimento e aper-
feiçoamento pessoal.

A ressurreição explica o que vem depois


Jesus disse: “Você acreditou porque viu. Felizes os que acreditam
sem ter visto” (Jo 20,29).
A primeira mensagem de Jesus foi desejar a paz, “a paz esteja com
vocês”. Jesus viu que eles ficaram espantados, porque não pensavam
em ressurreição. Estavam com medo de serem perseguidos. A paz de
Jesus é contrária ao medo, à inquietação.
A nossa paz se sustenta pelo poder das armas de destruição, não
temos guerra, mas não temos tranquilidade. A paz de Jesus é seguran-
ça, união, esperança. Jesus dá a entender que vai começar um tempo
novo. Acabou o tempo da lei judaica, das observâncias de regras.
Com Jesus a Lei judaica caducou, agora é o projeto que Ele anun-
ciou. Tem que se transformar na imagem de Deus para poder pregar.
Tem muitas práticas religiosas que são de obrigações, de leis, de regras
morais, não fazer isso ou aquilo.
Muitas cerimônias, muitas celebrações, muitas leis, mas falta esse
espírito. Tem religião, mas não tem interioridade, espírito diferente,
pureza, presença de Deus.

201
O espírito cristão é de amor, de acolhimento, de perdão, de mise-
ricórdia, de construir o mundo, transformar o mundo. Esta marca tem
que estar no cristão.
Nós da comunidade temos que assumir nossa missão de congregar
o mundo a Deus. Essa é a catequese de São João. O cristão é consagra-
do e enviado para transformar o mundo com a presença de Deus e do
Espírito Santo na comunidade, na igreja.
O que sustenta a nossa fé é a ressurreição de Jesus. Essa é a verda-
de que dá fundamento aos sacramentos, a fé, a esperança. Se não hou-
vesse Ressurreição, não tínhamos a resposta sobre o que vem depois.
Depois vem a vida na ressurreição. Se cremos na ressurreição dele, te-
mos que nos comportar com discípulos Dele e ser sinal, no mundo, da
presença de Jesus Cristo.
O problema de Jesus é transformar este mundo, o Reino de Deus.
A ressurreição confirmou o que Jesus disse. É também um protótipo
da nossa ressurreição. Ele prometeu, se Ele ressuscitou, nós também
vamos ressuscitar com Ele.

SEJA QUEM FOR, É HUMANO, É MEU IRMÃO!


“Quem se eleva será humilhado e quem se humilhar será elevado”
(Lc 14,11).
Jesus quer falar de algo que havia na prática religiosa dos judeus e
havia também na comunidade de Lucas. Fala de um defeito, a rivalida-
de, a luta por posições maiores, por liderança, por mandar mais.
Havia como ainda hoje, um jogo sujo de poder e ambição nas co-
munidades. Um jogo de desonestidade, querendo colocar o outro para
trás, superar o outro com injustiças. Na comunidade judaica, na comu-
nidade de Lucas e na igreja hoje, também tem disso. No mundo, nem
se fala.

202
Procurar crescer, melhorar de vida honestamente, sem prejudicar
o outro, sem cometer injustiça, isso é um direito de cada um. Se eu
puder fazer um curso, crescer e ganhar mais, isso é obrigação. Cometer
desonestidade, injustiça, corrupção, isso não!
O que deve haver é colaboração, cooperação e não rivalidade nem
fome de poder. Se uma pessoa tem liderança, o que interessa é o ser-
viço à comunidade, vamos ajudar. Não se deve ficar despeitado, com
inveja, omisso, afastado.
Jesus está falando do que acontece ainda hoje nas comunidades.
Para o relacionamento humano, esse tipo de comportamento é muito
ruim. Eu sempre digo, o problema do mundo é a questão da relação
entre as pessoas, é a convivência.
Se é pobre, tem um defeito, é de outra religião, não é como eu, é
diferente, não importa. Essa é uma dificuldade de todos, aceitar de co-
ração, conviver com o diferente. O evangelho diz que não deve haver
discriminação, todos são iguais, somos filhos de Deus, errar é humano,
o destino é o mesmo, a vocação é a mesma, devemos vier na fraterni-
dade. O evangelho, o Reino de Deus é para todos. Essa é a coerência do
evangelho!
Nós discriminamos os outros e temos a tentação de julgar as pes-
soas. Ninguém sabe do interior da outra pessoa. Tem muita gente que
não tem religião, mas tem coração puro, é honesto, serve aos outros,
tem uma moral, aceita os outros, tem solidariedade com os pobres. Ele,
sem saber, está com Deus.
Julgar os outros é uma imprudência, você pode cometer uma in-
justiça. O importante é cada um cuidar da sua consciência, do seu in-
terior, acolher, servir, ser fraterno, ter compaixão do outro. Seja quem
for, é humano, é meu irmão.

203
Ninguém é bom sozinho e ninguém é ruim sozinho
Pe. Calixto deixou marcas significativas de sua prática pastoral,
sendo uma delas a consciência quanto ao papel de regulação que exer-
cemos junto às demais pessoas da nossa convivência. “Me marcou
muito um ensinamento dele, quando disse uma vez, ‘ninguém é bom
sozinho e ninguém é ruim sozinho’. O modo de ser das pessoas, tem
muito do que elas construíram na convivência com os outros” (D4).
Profundamente consciente de seu papel educativo junto aqueles
que dele se aproximavam, tinha sempre uma lição a ensinar, uma opi-
nião abalizada a emitir. “Ele era muito atencioso, se aproximava das
pessoas para conversar. Sempre que se aproximava tinha uma lição
para dar, sem se impor, na conversa sempre deixava uma mensagem
que mexia com a gente” (D4).
A mística se refere a uma importante dimensão do fenômeno da
religião, que busca encontrar um contato profundo e transformador
com Deus. No cristianismo, “esse elemento místico parte de sua cren-
ça e de práticas que concernem à preparação para a consciência e a
reação ante aquilo que pode ser descrito como a imediata ou direta
presença de Deus” (Moginn, 2012. p. 18).
Difundir o conhecimento profundo da bíblia foi um dos seus ob-
jetivos pastorais de Calixto. Enquanto pároco, manteve com regula-
ridade semanal uma escola de catequese para lideranças, voltado ao
estudo da bíblia sagrada. Era “fiel na formação catequética, mantinha
um movimento de catequese para a comunidade adulta e priorizava o
estudo da bíblia” (D2).
O testemunho sobre Pe. Calixto o coloca como educador do passa-
do e do presente, preocupado com o compromisso e as consequências
para o futuro. Apontou um método radical de leitura dos evangelhos.
Afirmou que não tem limites para se comunicar, “um padre dentro de
sua centralidade, ensinava muito do passado, do presente e falava do
futuro, se não houvesse uma mudança” (D6).

204
REFERÊNCIAS
MCGINN, Bernard. O florescimento da mística. Homens e mulheres
da nova mística (1200-1350). Tradução Pe. José Raimundo Vidigal. São
Paulo: Paulus, 2017. Disponível em: https://deg.paulus.com.br/4773.
pdf. Acesso em: 07 abr. 2023.

MCGINN, Bernard. As fundações da mística. Das origens ao século V.


São Paulo: Paulus, 2012.

RODRIGUES, L. A. R. O desafio da convivência humana. Lições que


estão por trás das letras dos evangelhos. Recife, 2010.

205
JOSÉ
COMBLIN
Pe. Comblin

Alzirinha Rocha de Souza66

INTRODUÇÃO
Não há outra forma de pensar a mística de Comblin, que não aque-
la que o impulsiona a buscar um rosto para sua teologia. O privilé-
gio de sua intelectualidade não obscureceu a sua consciência de ser
um homem com forte espiritualidade e, como essa o impulsiona para
uma forma de viver e de pensar teologia. De outra forma, a teologia
de Comblin não é unicamente “técnica”, mas revela antes de tudo sua
forma de compreensão de mundo, de relação com Deus, logo, de sua
espiritualidade.
Por isso, julgamos importante neste texto destacar os movimentos
que foi realizando e como estes o foram integrando como cristão. Ao
deslocar-se para a América Latina, Comblin realiza não somente uma
mudança geográfica. Realiza sobretudo uma mudança hermenêutica,
de ver o mundo de forma mais concreta. Descobriu em nosso conti-
nente o rosto para sua teologia: o rosto do humano (homens e mu-
lheres) latino-americanos com suas demandas próprias. Como citaria

66 Alzirinha Souza. Leiga, Dra. em Teologia pela Université Catholique de Louvain (Bélgica),
Mestre em Teologia pela Universidad San Dámaso (Madrid) e Graduada em Teologia pela
PUCSP. Pós Doutora em Ciências da Religião pela UNICAP. Atualmente é professora e
pesquisadora do Programa de Pós- Graduação em Teologia da PUCMinas e do ITESP/SP.
Membro da Sociedade Internacional de Teologia Prática e Fundadora do Centro de Pesquisa
e Documentação José Comblin (UNICAP)

206
Jacques Comblin67: “aos poucos Comblin foi se transformando em um
latino-americano”.
Ora, é a transformação pessoal de qualquer pessoa e a observada
na prática de Comblin, que desde meu ponto de vista desvelam sua
espiritualidade que aos poucos vai se “transformando” na mística do
nordestino brasileiro. Por essa razão estruturamos nossa reflexão em
dois momentos que se interligam e que são necessários para com-
preender essa transformação. O primeiro apresentaremos os passos
dados por Comblin para encontrar a América Latina e o segundo duas
de suas práticas mais expressivas, que desvelam sua mística, a que par-
ticularmente denomino Mística da proximidade.

1. A BUSCA DE UMA NOVA PRÁXIS


Nascido em 1923 em Bruxelas em uma família com forte referência
religiosa cristã católica, dada por seus pais e avós, por um tio padre e
pelo irmão André Comblin que se fez missionários da Congregação dos
Padres Brancos, era fácil compreender o interesse pela vida presbiteral
desde muito cedo. A concretização se inicia com a entrada em 1944, no
Seminário Menor São José, da Arquidiocese de Malinas/Bruxelas, tendo
sido passado anteriormente (1940 a 44) pelo Seminário Leão XIII, cria-
do pelo Cardeal Mercier para acolher os estudando mais destacados.
Antes de sua ordenação sacerdotal em 1947, retorna a Louvain para
realizar o Doutorado em Teologia Bíblica que durará de 1946 a 1950.
Torna-se vigário da Paróquia Sacré-Coeur de Bruxelas onde trabalha
como assessor dos jovens escoteiros (scouts) ( Comblin, 1957). De 1950
a 1957, é professor de Sagradas Escrituras no CIBE Centre d’instruction

67 Jacques Comblin, era o irmão caçula de Comblin. O conheci em Bruxelas quando da


celebração da missa de sétimo dia de falecimento de Comblin na Paróquia Santíssima
Trindade em Ixelles. Posteriormente essa afirmação é dada me entrevista pessoal dada a
mim em novembro de 2010.

207
pour brancardiers ecclésiastiques, em Alost, onde estudavam jovens se-
minaristas que estavam prestando serviço militar.
Ora, sua atuação eclesial era dada para o atendimento de uma
Igreja que segundo seu olhar, sob o pontificado de Pio XII em Europa,
já não havia mais continuidade. Ao menos para o que desejava como
jovem doutor e presbítero. Nasce nesse período a ideia de ser mis-
sionário, a exemplo de seu irmão André, missionário em novas ter-
ras (Pereira, 2011, p.57). Esse desejo se converge com o de Pio XII ao
incentivar o envio de padres missionários aos países de missão para
lutar contra ao Comunismo. Depois de dois pedidos aos represen-
tantes da Arquidiocese de Malinas Bruxelas, em setembro de 1957, o
Cônego Conego Van Steenberghen, recebe uma demanda do Bispo de
Campinas, D. Paulo de Tarso, com a solicitação de três padres douto-
res para trabalhar em sua diocese. Solicitaçao aprobada pelo Cardela
Van Roye, Comblin ingressa no COPAL, Collège pour Amérique Latine,
onde se preparam aqueles que viriam fazer missão em nosso conti-
nente. Mesmo com uma preparação frágil, Comblin chega a Campinas
em 1958. Inicia-se uma nova etapa de vida pessoal, intelectual e
presbiteral.

De Campinas ao Nordeste
De Campinas ao Nordeste brasileiro, Comblin passou pela ex-
periência acadêmica docente na PUC Campinas, na Escola dos
Dominicanos em São Paulo (Studium theologicum) e posteriormente
na Universidade Católica de Santiago no Chile. Essas foram experiên-
cias que lhes permitiram conhecer e contribuir não somente com o
pensamento acadêmico, mas é sobretudo com a “forma de ser Igreja
pós-conciliar na América Latina. Sua convivência com Bispos que se
engajaram no movimento pós conciliar seja no reconhecimento dos
limites da realidade do continente, seja no desenvolvimento pastoral,
levou Comblin ao IPLA (Instituto de Pastoral Latino-Americano) no

208
Equador, para cursos e formações junto ao povo de Deus em diversas
Dioceses e países.
Ao final retorna ao Brasil por convite de D. Helder Camara e se ins-
talará em Recife onde viverá de até 1972, quando foi impedido de de-
sembarcar em solo brasileiro ao voltar de uma viagem de trabalho na
Universidade Católica de Louvain. O contato com o povo do Nordeste
brasileiro, que se estruturou no trabalho acadêmico e pastoral, foi de-
cisivo para uma nova constituição de sua obra teológica que reflete em
definitivo um novo olhar e uma expressa sua mística da proximidade.
Comblin, encontrará no NE o rosto do destinatário de sua Teologia,
é dizer, o homem (a humanidade) pobre do NE da qual se fez próximo,
com o qual se reestruturou como pessoa, internalizou os gestos, o vo-
cabulário, a espiritualidade, as lutas e os desafios. Por isso, podemos
dizer que não realizou somente uma mudança geográfica mantendo-
-se um belga na AL. Antes, a mudança geográfica, trouxe a Comblin a
complementação de seu exercício cristão e missionário, do anúncio do
Evangelho que deixou de ser unicamente dos conceitos para a realida-
de, e passou a ser a partir da leitura da realidade para repensar como
fazer sujeitos aqueles/as com os quais encontravam. A mística da pro-
ximidade, se deu por uma troca justa: o professor se abriu ao aprendi-
zado e os aprendizes passaram em muitos momentos a ser professores.
Aprendiam dele a compreensão do mundo, das razões pelas quais se
encontravam em determinadas realidades de exclusão, e os caminhos
para avançarem na dignidade humana à luz do Evangelho, certamente,
mas sem consciência ajudavam a formar um teólogo e um presbíte-
ro cada vez mais próximo do seu povo, do Evangelho e de si mesmo.
Os Rosários recitados diariamente no silêncio da oração ganham ex-
pressão prática de aproximação, acolhida e sensibilização mútua da
realidade. Por isso, podemos afirmar que a mística da proximidade, se
desvela em sua prática.

209
2. A MÍSTICA DA PROXIMIDADE ATRAVÉS DE SUAS PRÁTICAS
As inovações das práticas de realizadas por Comblin, desvelam a
busca constante da observação das realidades as quais ele contribui a
medida em que se faz com. Não se trata unicamente de uma aplicação
de uma teoria caraterizada por uma operação humana, tal como ele
mesmo descreve em sua obra o Provisório de Definitivo (1967), mas se
trata antes de ações humanas, flexíveis que nascem do presente e das
realidades tais como elas se apresentam. Muitas vezes para Comblin,
a realidade se impôs como norteadora de uma nova forma de pensar e
realizar, dada as especificidades de suas demandas.

2.1 A formação presbiteral humanizada


Em 1976, D. Helder Camara solicita sua colaboração no Seminário
Regional Nordeste II (Sirene II), instalado em Camaragibe (Recife).
Além de organizar o Seminário, aquela época estruturado aos moldes
do padrão tradicional de formação de presbíteros, foi solicitado ainda
a participação na construção do ITER – Instituto de Teologia do Recife.
Nesse momento, nasce a nova maneira de formação que associou o
acadêmico a pastoral. A proximidade dos seminaristas com o povo de
Deus e suas realidades se impõe. Grupos são formados para residirem
nas paróquias para o exercício contínuo de uma pastoral encarnada
vinculando à formação acadêmica realizada pelo ITER. A Teologia pro-
duzida na academia era estreitamente vinculada aos desafios pasto-
rais concretos. Em última instância Comblin e sua equipe, buscavam
a realização de uma teologia e uma prática pastoral que refletiam as
propostas de atualização dadas pelo Concílio Vaticano II.
Nos anos de 1969-71, a pedido de um grupo de estudantes do ITER,
Comblin desenvolve a formação presbiteral fora do Seminário, que
ficou conhecido como a Teologia da Enxada (Comblin, 1977). Se aos
olhos de alguns essa formação era a radicalização contra os trâmites

210
tradicionais de formação tradicional da Igreja, para ele foi a realização
de uma formação feita por imersão às realidades das quais se origina-
vam os formandos. A grande questão que viria por base era: a forma-
ção tradicional desloca seminaristas vindos da área rural, lhes oferece
outras referências que os fazem perder suas raízes. Futuramente, os
que voltam para trabalhar nesses espaços, ao não compreender a rea-
lidade se tornam incapazes de realizar um processo e evangelização
inculturada. A questão primeira do método da Enxada para além de
desenvolver os conceitos teológicos, encontrava-se em desenvolver a
mística à luz da experiência de viver as realidades que os camponeses
viviam. Ao “condividir” a vida com os camponeses, trabalhando, viven-
do, rezando, e vivendo as suas experiências, seminaristas não estariam
mais teorizando elementos teológicos, ao contrário, a teologia se fazia
viva a luz dos desafios e das demandas nascidas daquelas realidades.

2.2 As Escolas de formação missionárias


A meu ver o segundo maior exercício da mística da proximidade de
Comblin, se deu na relação e no vínculo que estabelece com leigos/as
do NE brasileiro. Não por acaso, Comblin 30 anos antes de sua morte,
passou a dedicar-se integralmente a formação destes. E em alguns as-
pectos, creio que Comblin se “fez um como eles/as” para compreender
suas demandas, suas questões e suas formas de serem sujeitos na co-
munidade eclesial.
Então, se a Experiência da Enxada se centrava na formação conjun-
ta de seminaristas e leigos, ressaltando sua perspectiva profética; se as
CEBs se tornaram espaços de vivência de diversas vocações, denotando
a perspectiva comunitária, os Centros de Formação Missionária (CFM)
possibilitaram o avanço no processo de evangelização, tornando-se
espaços de referência de formação para a vocação laical missionária.

211
Em sentido oposto ao das CEBs, onde os leigos assumem a res-
ponsabilidade da animação das comunidades em movimento intraco-
munitário, as EFM encarnam o novo ministério nascido na América
Latina: o missionário leigo. Trata-se de pessoas enviadas por suas co-
munidades para evangelizar os que não pertencem a ela, configurando
uma Igreja itinerante até o descobrimento do desconhecido, em movi-
mento no espaço e em saída para o encontro de pessoas novas.
Para Comblin, os missionários como expressão de uma Igreja iti-
nerante, renovada e profética constituem uma expansão do movimen-
to das CEBs. Nesse sentido, eles são novidade e mudam sensivelmente
sua figura quase tradicional. Trata-se, agora, de uma realidade nova
à qual não há alusão nos documentos da Igreja do Brasil. A figura de
ministros itinerantes completa a imagem das CEBs e corrige o que
elas poderiam ter de rígido ou fechado em si mesmas (Comblin,1980,
p.627). Comblin registra que existem casos de animadores de comu-
nidade das CEBs que descobriram sua vocação missionária (Comblin,
1980, p. 627), revelando que são efetivamente formas distintas de vi-
vência da fé.
Os missionários impulsionados pelo Espírito de Jesus assumem
espontaneamente um modo de viver itinerante e começam a evange-
lizar os pequenos povoados e lugares isolados, reunindo pessoas nas
praças e nas ruas. Certamente com permissão eclesial, mas com inicia-
tiva e disponibilidade pessoal, trata-se enfim de uma nova expressão
de Igreja itinerante que circula pelos caminhos do mundo.
De fato, a prática missionária não é nova na Igreja. Pelo contrá-
rio, ela encontra a fundamentação de sua vocação na pessoa mesma
de Jesus, que é o primeiro missionário itinerante, exemplo seguido
por seus discípulos. Ainda que essa experiência tenha sido reforçada
pelos escritos paulinos e finalmente pela Didaqué (11-15), os mis-
sionários judeu-cristãos foram a primeira realização do seguimento

212
de Jesus e o mais antigo modelo de cristianismo e de seus discípulos
(Comblin,1980, p. 644).
Ora, no Nordeste Brasileiro, os leigos também começaram a tomar
a iniciativa de visitar as comunidades isoladas. É a partir dessa iden-
tificação que Comblin dá início, em 1989, às EFM que até esta data se
encontram em atividade.

Histórico das Escolas de Formação Missionária


Foi em 1989, a partir da reflexão sobre a realidade nordestina, que
Comblin, juntamente com D. Mathias Schmidt, bispo de Rui Barbosa,
e os bispos das Dioceses de Juazeiro, Senhor do Bonfim, Paulo Afonso,
Barra, Vitória da Conquista, Guarabira e Picos, inicia o desenvolvi-
mento de uma formação para os leigos68.
Da análise da realidade sugiram as questões de fundo que motiva-
riam a estruturação do projeto. A primeira questão, que é a mesma que
se coloca atualmente, é o baixo número de sacerdotes para fazer frente
a todas as paróquias e comunidades que se situam em regiões isoladas.
Para avançar na evangelização, era necessário pensar uma formação
estruturada para os leigos de forma que eles pudessem sustentar as
comunidades na ausência dos padres. A segunda questão, e a principal,
foi criar um espaço de formação adequado aos leigos nordestinos, isto
é, gente simples da região, seja na questão pedagógica, seja na ques-
tão geográfica. A terceira questão ou motivação, descrita por Comblin
em 1991, trata de formar leigos capazes de fazer frente ao avanço dos
novos movimentos religiosos pentecostais sobre as classes pobres69,

68 Barra. Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM). Documento II, Formando para a missão, p. 1.
69 Leuven. Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL). Carta de José Comblin, 27/11/1991. Afirma
Comblin: “No Nordeste os padres são tão escassos que são como máquinas de fazer
sacramentos. Não se lhes pode pedir mais que isso. As religiosas são dispersas entre tantas
congregações distintas. Mas trabalham mais que os padres com o povo. Agora, quem está
mesmo conquistando a América Latina são as Igrejas do tipo pentecostal. Ali há um avanço
fulminante. A Igreja perdeu o controle das massas e estas buscam a primeira Igreja que se
apresenta a eles em suas culturas”.

213
razão pela qual as EFM se destinariam prioritariamente aos leigos(as)
que estavam assumindo compromissos em suas comunidades70.

Método de formação
À luz da com-vivência com seus formandos, Comblin desenvolve
uma formação própria com algumas características são marcantes no
processo de formação das EFM. Dentre elas, podemos destacar: 1) a
necessidade e realização de uma formação permanente; 2) o vínculo
entre formação e cotidiano; 3) a formação tem momentos fortes no
período de um mês em conjunto, mas é seguida de encontros mensais
que inspiram uma espiritualidade de partilha de experiências, de co-
nhecimento, de oração e necessidades físicas71, 4) “Não é uma forma-
ção estritamente teológica. É uma formação humana, formação com
compromisso de um processo de humanização, buscando o ser huma-
no como um todo e sendo todos os seres humanos chamados a expe-
rimentar esse mesmo processo. É claro que dentro disso há um lado
místico, da espiritualidade, que vai atravessando esses momentos to-
dos também. Então isso é uma coisa que marca dentro da experiência
das Escolas de Formação Missionária72”, e 5) a forma particular de tra-
balhar a compreensão do Reino de Deus (que é maior que a Igreja mes-
ma): ali se trabalha a Igreja como instrumento a serviço do Reino de
Deus, em compromisso com a causa de libertação dos pobres. Segundo
Calado, nesse sentido o pensamento de Comblin e o tom dado às EFM
ajudam a elucidar. Dirá Calado: “Uma das entrevistas tantas que ele

70 Barra. Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM). Documento II, Formando para a missão, p. 2.
71 Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017. Destaca o entrevistado: “Quando
você tem aqueles momentos mais fortes não somente na EFM, mas em todas as experiências.
As Romarias a São Félix são um grande momento de partilha, oração e reencontro (…). Como
ouvi de uma pessoa: ‘Eu não entrei nessa escola, mas continuo nela. Ela marcou a minha
vida’. São um testemunho esses casais missionários e missionárias que andam fazendo
comunidades e o conteúdo estudado não fica parado. Trazem experiências fortes para usar
como roteiro o cotidiano”.
72 Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017 em João Pessoa.

214
deu, delas eu recolho uma coisa importante, quando perguntado pelo
entrevistador sobre o que é mesmo esse Reino de Deus. Ele dizia que a
expressão mais forte para resumir era a categoria Libertação, compro-
misso com as causas dos pobres, não vistos como alvo de comiseração,
como coitadinhos, mas como protagonistas de seu processo de liber-
tação a partir do chamamento do Reino de Deus. Do chamamento tão
presente de Lc, 4”73.
Insiste Comblin:

Se queremos assumir o ministério de missionários nas


paróquias e dioceses, é preciso aceitar que os leigos se
dediquem a fazer presença fora dos espaços eclesiais. Não
estão a serviço das comunidades paroquiais. A paróquia
deve dizer: estão liberados (no sentido de não assumir
tarefas inter-paroquiais) para fazerem-se presentes no
mundo, exercitarem a criatividade, despertarem a po-
pulação para uma vida de fé, suscitarem comunidades. É
nesse sentido que se propõe a oficialização do ministério
missionário. Trata-se de um reconhecimento no sentido
de dar espaço e valorizar a ação missionária74.

Em suma, Comblin sustenta, em sua prática, a coerência com sua


teoria eminentemente paulina de compreensão da missão como tes-
temunho. A partir da proximidade e da compreensão da realidade,
defende a necessidade de estar no mundo em sentido literal, isto é,
de interferir para transformá-lo. A salvação não é abstrata, mas passa
pelo conhecimento essencial que considera as estruturas de pecado
existentes no mundo. O testemunho assume, pois, a perspectiva de de-
núncia e de palavra expressada publicamente que pretende enfrentar e
vencer tais estruturas (Comblin,1973, p. 61).

73 Calado, Aldo Júlio. Entrevista realizada em 12/10/2017 em João Pessoa.


74 Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento III, Escolas de Formação
Misionária. Relatório do Seminário de avaliação. 10 a 12 de abril de 2007, p. 7.

215
O testemunho, concretização da mística da proximidade, é palavra
dirigida (como ação impulsionada pelo Espírito) aos homens que es-
tão organizados no mundo compreendido e por isso é transformador
à medida que é dado pelas pessoas que se libertaram igualmente das
estruturas.
Essa liberdade não consiste simplesmente na rejeição de depen-
dências exteriores, mas na emancipação do Espírito das forças de cum-
plicidade com a dominação que o homem traz em si mesmo. Daí a ne-
cessidade de trabalhar de maneira mais profunda a personalidade do
missionário para que ele seja capaz de dar testemunhos, seja pela força
da Palavra que destrói as estruturas, seja pela capacidade de lutar con-
tra as dominações sem as armas dos dominadores, seja por se tratar de
um cristianismo que finalmente crê e que esteja encarnado na história.
Afirmará Comblin:

O testemunho faz com que o cristianismo seja criador de


história. Se fosse somente palavra mediada no íntimo da
consciência e aplicada à vida individual, o cristianismo
não engendraria a história: seria apenas uma repetição
dos mesmos fatos ocultos, desses fatos que não fazem a
história e permanecem desconhecidos. Contudo, há uma
história cristã e essa resulta do choque entre o mundo e o
testemunho (Comblin 1973, p.64).

É essa historicidade que faz com que a missão seja possível e con-
creta: a ação do missionário-profeta não é repetição de modelos, mas
invenção de um modelo que responda ao ponto de impacto da men-
sagem para o tempo presente no qual é realizada, associada ao co-
nhecimento crítico da realidade, que permite efetivar a ação teológica
posterior.
Dentro da dinâmica de formação das EFM, seu método privilegia
em especial a linguagem expressa pelas narrativas de seus participan-
tes, que os coloca próximos e como sujeitos de sua formação. O pri-

216
meiro momento das formações é dado notadamente ao reencontro de
seus participantes e à troca de experiências trazidas de suas práticas
missionárias. É a partir dessa “contextualidade expressada e narrada”
que as formações são realizadas. Há uma inversão metodológica: os
participantes não estão ali somente para adquirir conceitos. Pelo con-
trário: a partir daquilo que eles mesmos são e do que se transforma
pelo processo da experiência missionária, encontram-se para aprofun-
dar e sistematizar aquilo que já construíram. Para a dinâmica que se
apresenta entre narração, compreensão e ação, as EFM apresentam-se
como espaços de escuta, apoio, sistematização e compreensão, visan-
do à renovação da prática missionária. Ora, dada essa centralidade,
nossa pesquisa se debruça sobre a compreensão e a análise da lingua-
gem, especialmente da linguagem narrada.

CONCLUSÃO
Quisemos neste texto, apresentar a mística da proximidade de
Comblin, à luz da sua prática, em especial a prática formativa acadê-
mica e livre, dedicada a seminaristas e posteriormente centrada na
formação laical.
Nesse sentido, a mística da proximidade, nasce de uma decisão pes-
soal de colocar sua formação intelectual a serviço, daqueles/as que de-
sejam, estando Com e Entre eles/as. Comblin, encontrou não somente
o rosto do destinatário de sua teologia no NE brasileiro, mas se deixou
transformar por todos esses rostos e experiências humanas. Mais do
que seus textos, os testemunhos daqueles/as que com conviveram com
Pe. Zé Comblin, desvelam a inculturação, a simplicidade com que esta-
belecia a proximidade de seu povo de Deus. Enfim, a mística da proximi-
dade, não se dá em caminho reverso à mística tradicional, aquela que
nasce da oração. Antes, ela se estrutura em caminho de convergência
que permite a realização prática do que rezado. Esse era Comblin!

217
REFERÊNCIAS
Comblin, José. Teología. ¿Qué clase de servicio? In: Gibellini, Rosino
(org.). La nueva frontera de teología en América Latina. Salamanca:
Sígueme, 1977, p. 63-81.

Comblin, José. Teologia da Enxada. Una experiencia da Igreja no Nordeste,


Petrópolis, Vozes, 1977.

Comblin, José. Teologia da Missão. Petrópolis: Vozes, 1973.

Comblin, José. O novo ministério de missionário na América Latina. In:


Revista Eclesiástica Brasileira160 (1980), p.626-655.

Comblin, José. Algumas questões a partir da prática das Comunidades


Eclesiais de Base no Nordeste. In: Revista Eclesiástica Brasileira 198
(1990), p. 335-381.

Comblin, José . La pédagogie scoute et le sens de l’Église, dans Travailler


en Église, Editions FSC, 1957.

Pereira, Paulo Cesar. Pastoral Urbana: uma abordagem a partir da


obra do teólogo Joseph Comblin, Dissertação de Mestrado realizada na
Universidade Católica de Pernambuco, 2011. Disponível em: www.uni-
cap.br/biblioteca. Acesso em: 31 jul. 2023.

ARQUIVOS PESSOAIS
Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento II, Formando
para a missão.

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento V, Escolas


de Formação Missionária Terceiro Seminário 2001, p. 5.

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Documento III, Escolas


de Formação Missionária. Relatório do Seminário de avaliação. 10 a 12
de abril de 2007, p. 6.

Barra, Arquivo Pessoal Mônica Muggler (AMM), Breve histórico das


Escolas de Formação Missionária, p.1. Ese material, fue adaptado del
curso de catequesis organizado en Talca – Chili y nuevamente revisa-

218
do y reestructurado cuando del Tercero Seminario de las Escuelas de
Formación Misionaria realizado en agosto de 2011.

Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Carta de José Comblin,


27/11/1991.

Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Carta de José Comblin,


27/11/1991.

Leuven, Arquivo Pessoal Carl Laga (ACL), Carta de José Comblin,


20/09/2000.

219
MARGARIDA
ALVES

Eunaide Monteiro de Almeida75


José Landes Marinho Soares76

INTRODUÇÃO
Mesmo transcorridos 40 anos do assassinato de Margarida Maria
Alves, essa forte mulher nordestina, com seu exemplo de luta em favor
dos pequenos e marginalizados de seu tempo, continua a alimentar
a luta de todos e todas que acreditam em uma sociedade mais justa e
solidária. Assim, o presente texto quer somar forças com tudo o que já
foi falado ou escrito e apresentá-la também, como uma grande mística
nordestina do século XX. Trazer à luz uma reflexão sobre o lado mís-
tico dessa grande mulher é uma oportunidade de tirar do anonimato
muitas outras pessoas, principalmente mulheres, que, por meio da luta
política, doaram suas vidas para que pudéssemos conquistar direitos
importantes, até então negados.
Em Margarida, fé e política se irmanam e juntas caminham em
busca dos mesmos objetivos. Portanto, no primeiro momento, será
apresentado uma breve biografia e no segundo momento se dissertará
sobre Margarida enquanto mística de nosso tempo. Em seguida, re-
fletiremos sobre a atualidade da mística dessa grande campesina que
ultrapassa os muros do obscurantismo e traz a sua personalidade forte
para outros centros.

75 Mestra e doutoranda em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco


- UNICAP.
76 Mestre em Teologia e doutorando em Ciências da Religião pela Universidade Católica de
Pernambuco – UNICAP.

220
A metodologia utilizada é a da pesquisa bibliográfica, pois, com
isso, é possível delimitar melhor o tema escolhido para maior apro-
fundamento no assunto. Dessa forma, é mais fácil identificar contradi-
ções e averiguar problemáticas encontradas em pesquisas anteriores.
Nesse caso, foram utilizados livros e sites que são fontes secundárias
que abordam o tema aqui proposto.

QUEM FOI MARGARIDA MARIA ALVES?


Há 40 anos, a mulher camponesa e líder sindical, Margarida Maria
Alves foi covardemente assassinada no dia 12 de agosto de 1983 na
porta de sua residência a mando de grandes latifundiários do Brejo
Paraibano. Porém, sua morte não foi em vão. Pois, se tornou inspiração
para que muitas outras mulheres, Joanas, Marias, Franciscas, Geraldas,
se colocassem na luta em defesa da justiça social (Woortmann; Heredia;
Menashe, 2006, p. 17).
Margarida é natural da cidade de Alagoa Grande, localizada na re-
gião do Brejo Paraibano. Nasceu no dia 5 de agosto de 1933, no Sítio
Jacu, situado na zona rural do citado município. Era filha de Alexandrina
Inácia da Conceição e de Manoel Lourenço Alves. Filha mais nova de
um grupo de nove irmãos. Possuía fortes traços étnico-racial indígena
e afro-brasileiro, herdados de seu pai e de sua mãe respectivamente
(Ferreira, 2010. p. 21-22).
Desde criança foi uma pessoa sofrida e logo cedo, aos oito anos
de idade, começou a trabalhar na roça para ajudar o pai e os demais
irmãos na sobrevivência familiar. Ainda na adolescência, passou pela
experiência de ver toda a sua família ser expulsa da terra onde mora-
va, sem direito a nada, e serem obrigados a morar na zona urbana de
Alagoa Grande. Graças a ação de um advogado da Confederação dos
Trabalhadores da Agricultura (CONTAG), ainda conseguiram pelo me-

221
nos colher a lavoura que haviam plantado, antes de irem embora da
terra.
Começou a estudar com seis anos de idade, em um sítio de nome
Agreste, próximo à localidade onde residia. Porém, só estudou até
a 4ª série do antigo ensino primário. No ano de 1971, casou-se com
Severino Cassimiro Alves e em 1975 teve seu único filho, José de
Arimatéia Alves. Católica e muito religiosa trazia em si a certeza de
que era Deus quem lhe dava forças para enfrentar e superar as dificul-
dades que fossem surgindo no decorrer da vida (Ferreira, 2010, p. 23).
A respeito da religiosidade de Margarida, Ana Paula R. S. Ferreira,
afirma:

A influência da Igreja Católica no cotidiano e trajetória


de vida e morte de Margarida Alves teve um papel signi-
ficativo no que diz respeito à assessoria política, que era
voltada para a maioria dos trabalhadores rurais dos sin-
dicatos, inicialmente através das CEBs e, posteriormen-
te, através da CPT, considerados setores progressistas da
Igreja, influenciados pelas ações da teologia da libertação
(2010, p. 30-31).

Em sua atuação sindical recebeu forte influência de Severino


Cassimiro Alves (seu esposo), que foi o primeiro presidente do sin-
dicato dos trabalhadores(as) rurais onde, posteriormente, ela atuaria
tornando-se a sua primeira presidenta mulher, lutando em defesa da
sindicalização e dos direitos trabalhistas: carteira assinada, férias, dé-
cimo terceiro salário, repouso renumerado e participação organizada
das mulheres camponesas. Ajudou a fundar o Centro de Educação do
Trabalhador Rural (CENTRU) e do Movimento de Mulheres do Brejo
(MMB), primeira organização da América Latina formada só por mu-
lheres (Ferreira, 2010, p 23). A seguir, uma reflexão sobre como esta
mulher viveu sua espiritualidade em tempos tão conturbados.

222
MARGARIDA MARIA ALVES, UMA MÍSTICA DE NOSSO TEMPO
Imbatível. Essa era a maior característica da defensora dos direitos
das trabalhadoras e trabalhadores rurais do Brejo Paraibano. Justiça
Social era o seu sobrenome. Durante 12 anos, tempo em que ocupou
a presidência do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Lagoa Grande-
PB, lutou contra a violência no campo, a exploração dos camponeses
e a favor da reforma agrária. Fundou o movimento Mulheres do Brejo
e, junto com Paulo Freire, fundou o Centro de Educação e Cultura do
Trabalhador Rural. Até hoje, é propulsora de movimentos sociais que
se destacam pela luta a favor de direitos humanos, como, por exemplo,
a Marcha das Margaridas que acontece a cada dois anos, em Brasília
desde 2002. Primeira mulher a lutar pelos direitos trabalhistas, res-
ponsável por mais de cem ações na Justiça do Trabalho, em plena épo-
ca da ditadura militar.
Sempre muito atenta às necessidades da categoria que representa-
va, falava por todos(as), agia conforme Provérbios 31:8: “Que você abra
sua boca a favor do mudo, pelo direito de todos os povos que se acham
em desolação” (Bíblia de Jerusalém, 2002). Assim, ela anunciava e de-
nunciava, como os profetas do Antigo Testamento, todas as injustiças
do seu tempo e vivia intensamente, repleta de amor pelo ser humano
e de tamanha força espiritual a ponto de dizer que “é melhor morrer
na luta, do que morrer de fome” e “da luta eu não fujo”. Neste gesto,
nos lembra Jesus de Nazaré que tanto amou a humanidade, chegando
ao ponto de morrer na cruz pelo bem de todos(as). Margarida morreu
na bala. Ambos, com a morte, vivem em cada um de nós que busca
“vida em plenitude”, “vida em abundância” (Bíblia de Jerusalém, 2002,
Jo 10,10). Assim, quanto aos poderosos que encomendaram a morte de
Margarida, “Eles não imaginavam que Margarida era semente” e, essa
foi a temática dos 35 anos da morte de Margarida Alves, que teve sua
vida ceifada em 12 de agosto de 1983, quando um tiro de “espingarda

223
calibre 12” foi disparado em seu rosto, enquanto estava na porta de sua
casa, lugar onde mais deveria ter segurança.
Essa grande mulher paraibana também costumava celebrar cada
conquista nas evidências da realidade na qual estava inserida. Em cada
oportunidade, essas conquistas eram compartilhadas com sua comu-
nidade, contando com o esforço para mobilizar todos(as), tal qual as
primeiras comunidades cristãs em que “todos repartiam o pão e não
havia necessitados entre eles” (Bíblia de Jerusalém, 2002, At 4,34).
Dessa forma, “o sangue de Margarida nos irmana no mesmo caminho
de testemunho. Cada um de nós somos Margarida”77.
Essa grande líder camponesa participou de importantes transições
na Igreja Católica de seu tempo, nos movimentos sociais e, podemos
dizer que ela também passou por transições, visto que deixou de ser
apenas uma mulher, dona de casa, trabalhadora do campo como tan-
tas outras, para tornar-se uma mulher ativa no espaço público políti-
co, atuando como sindicalista, militante, feminista e protagonista de
grandes lutas cuja motivação era a busca pela justiça social nas ligas
camponesas. Com sua morte fecundou a terra e dela surgiram outras
margaridas (Ferreira, 2017).
O Evangelho de Jesus Cristo segundo João afirma que “se o grão
de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer,
produzirá muito fruto” (Bíblia de Jerusalém, 2002, Jo 12,24). Essa cita-
ção bíblica pode ser usada como chave para compreensão da trajetória
de vida de Margarida Maria Alves. Mulher que fez de sua existência
um constante serviço em favor dos pequenos agricultores(as) de sua
região, que viviam oprimidos pelo jugo dos grandes latifundiários, po-
líticos e usineiros da cana-de-açúcar.
Contemplando a vida de Margarida a partir da perspectiva da fé
cristã, pode-se afirmar que ela viveu sua vocação batismal até às últi-

77 Fala de Sílvia Souza, em peregrinação à Alagoa Grande, cidade onde morava Margarida.

224
mas consequências, ou seja, até o martírio, quando teve sua jovem vida
tirada por uma bala disparada da arma de um capanga do fazendeiro
José Buarque de Gusmão, ao anoitecer do dia 12 de agosto de 1983.

De fato, o martírio é uma das marcas da Igreja Latino-


americana. Mas com uma característica muito própria:
não diretamente por causa da confissão explícita de fé,
mas por causa da vivência da fé e do compromisso com os
pobres e marginalizados que ela implica. Mais que már-
tires da fé doutrinalmente confessada, são mártires da fé
vivida: mártires da justiça do reinado de Deus, mártires
dos pobres e marginalizados. Com o agravante de que,
não raras vezes, seus algozes e os cúmplices de seus algo-
zes se declaram cristãos ou católicos fervorosos (Aquino
Júnior, 2019, p. 249).

O assassinato de Margarida Maria Alves não foi um evento isola-


do no tempo e no espaço, mas começou a “ganhar corpo”, ou melhor,
tornar-se uma realidade, no dia em que ela fez a opção de assumir a
luta em defesa dos direitos trabalhistas dos pequenos agricultores da
região do Brejo Paraibano, os mais pobres e marginalizados do con-
texto no qual estava inserida. Entre as causas que defendia estavam:
o direito à sindicalização; a conquista de direitos trabalhistas, como
carteira assinada; férias periódicas e o décimo terceiro salário, como
também o repouso remunerado (Ferreira, 2010, p. 23).
Segundo Ferreira (2010, p. 22-23), Margarida era uma mulher de
origem simples e de personalidade forte, forjada em sua ligação com a
terra, na sua capacidade de falar e de escutar os seus companheiros e
companheiras de luta, como também, por sua religiosidade compreen-
dida e vivenciada a partir da inseparável relação e interdependência
entre fé e política, ou seja, sua religiosidade estava claramente entre-
laçada ao seu fazer político.
Na Igreja Católica existe um cântico muito usado em encontros e
celebrações litúrgicas que era o preferido de Margarida. Sua letra diz

225
o seguinte: “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão!”.
É em sua capacidade de doar a vida pelo próximo (e o fez literalmen-
te), na luta política por condições mais dignas de trabalho e de vida,
especialmente em favor dos mais oprimidos de seu tempo, que reside
a sua mística e seu ponto de semelhança singular com Jesus de Nazaré,
assassinado na cruz pela salvação da humanidade. Assim, “[...] “a mor-
te de Margarida se assemelhava ao sacrifício de Jesus”, completando:
“nossa irmã Margarida foi uma mártir da justiça em favor do povo,
pelo qual ela deu a vida” (Rocha, 1996, p. 22).
Certamente, nos tempos atuais, em que cada dia torna mais im-
portante dar destaque a existência sadia do pluralismo religioso, falar
de mística não é algo simples. Provavelmente, no âmbito da filosofia
e da teologia, o conceito de mística seja um dos mais difíceis de ser
definido. Não são poucos os autores que tentaram realizar esta tarefa,
mas sem lograr grandes êxitos. No entanto, levando em consideração a
perspectiva cristã, é imprescindível afirmar que o evento Cristo é cen-
tral para toda experiência mística (Bingemer, 2022, p. 23;29).
Para Vannini (2005, p. 24), a mística cristã deve ser compreendi-
da como “ser um só espírito com o Senhor”, ou seja, o viver em co-
munhão com o Senhor está radicado no Evangelho e constitui o seu
núcleo. Assim, somente quem faz uma experiência profunda de Deus
pode chegar ao estado de comunhão com Ele. Portanto, “[...] a expe-
riência de Deus implica e passa necessariamente pelo cuidado e defe-
sa dos pobres e marginalizados” (Aquino Júnior, 2019, p. 196). “Nem
todo aquele que me diz: ’Senhor, Senhor,’ entrará no Reino do céu, mas
só aquele que põe em prática a vontade do meu Pai que está no céu”
(Bíblia de Jerusalém, 2002, Mt 7,21).
Nesse sentido, Margarida, a partir de sua militância política, as-
sumiu como sendo suas as causas dos pobres e marginalizados de
seu tempo e, consequentemente, as de Jesus de Nazaré. Na vida de
Margarida, fé e política são dois lados de uma mesma moeda, são for-

226
ças indispensáveis na luta por condições melhores de trabalho, na luta
por educação e melhores condições de vida para todos e todas.
Em algumas situações de sua vida, Margarida precisou ressignifi-
car sua fé e religiosidade para continuar firme no propósito que havia
abraçado:

Eu me lembro que, em 1962, quando o sindicato foi fun-


dado, se falava muito nas Ligas Camponesas, em jorna-
da de trabalho, que o trabalhador trabalhava dez, doze
horas. As Ligas estavam falando a verdade. Mas o padre
não dava apoio às Ligas. E como eu era muito religiosa, aí
não fiquei com as Ligas. Mas sempre achando que as Ligas
tinham razão (Ferreira, 2017, p. 12).

Mesmo no primeiro momento não ficando ao lado das Ligas


Camponesas, seja por respeito à opinião ou por não querer ficar contra
o padre de sua comunidade que, ao não apoiar as Ligas de certa forma
está dizendo que fé e política não se misturam, Margarida carrega den-
tro de si a certeza de que a verdade é o contrário, ou seja, na história da
humanidade as duas devem se colocar sempre do mesmo lado.
Em uma de suas falas, Margarida, deixa transparecer o quanto a
sua luta política é permeada e alimenta por sua fé:

“...eu quero pedir a vocês que, quando voltarem para


casa, lembrem-se e rezem por aqueles que tombaram na
luta, lutando na frente de batalha, por aqueles que estão
enfrentando as ameaças dos poderosos. Eu dizia hoje aos
trabalhadores que foram ao Sindicato de Alagoa Grande:
‘Eles não querem que vocês venham à sede porque eles
estão com medo, estão com medo de nossa organização,
estão com medo de nossa união, porque eles sabem que
podem cair oito ou dez pessoas, mas jamais cairão todos
diante da luta por aquilo que é de direito devido ao tra-
balhador rural, que vive marginalizado debaixo dos pés
deles” (Rocha, 1996, p. 3).

227
Assim, com tamanha demonstração de firmeza de fé, a princípio,
Margarida preferiu a passividade orientada pelo seu líder espiritual em
detrimento de sua ansiedade em lutas pela justiça social. Ela perce-
bia em si mesma uma “legítima indignação” (Paulo Freire, 2000) que,
em seguida, impulsionou sua ida à luta de modo a desencadear uma
onda de manifestações em todo o estado da Paraíba e tomando uma
dimensão nacional de modo que, desde a sua morte, os trabalhado-
res do campo celebram anualmente, no dia 12 de agosto, a figura de
Margarida, denunciam a impunidade dos seus assassinos, a renitente
violência no campo e a necessidade de uma reforma agrária urgente78.
A morte prematura tornou-se motivo de estímulo para muitas
camponesas que também atuavam no sindicato. Alimentadas em suas
opções de vida pelo “sangue derramado” de Margarida continuaram
firmes na resistência contra o latifúndio e contra tudo o que as impe-
diam de serem “novas Margaridas” a serviço do bem, da paz, da justiça
e da solidariedade (Ferreira, 2010, p. 23-24).

ATUALIDADE DA EXPERIÊCIA MÍSTICA DE MARGARIDA ALVES


Nos dias atuais, como também, em outros tempos, política e reli-
gião, política e fé cristã ou também outras confissões de fé são temas
muito pertinentes e necessários de serem discutidos, porém nada fá-
ceis de serem abordados, pois, acabam transitando entre aquilo que
há de mais sagrado para a maioria das pessoas (a fé) e o que existe de
mais objetivo e necessário a uma vida digna de qualidade (a política) e
comumente, na vida concreta, no dia a dia das pessoas são colocadas
como antagônicas.
Não são poucos os teólogos, os cientistas da religião, como tam-
bém, os textos e documentos da Igreja Católica que consideram fé e
política como elementos que em sua essência estão a serviço do bem

78 Este é considerado o Dia Nacional Contra a Violência no Campo e pela Reforma Agrária.

228
comum. Segundo Aquino Junior (2010, p. 97), os cristãos e cristãs não
são seres foras do tempo e da história, mas, existem socialmente, inte-
ragem em sociedade, portanto, são seres sociais e políticos (no sentido
amplo e irrestrito do termo).
Sobre essas questões, o documento de Puebla diz que, “a fé cristã
não despreza a atividade política; pelo contrário, a valoriza e a tem
em alta estima” (Puebla 514) e continua, “a necessidade da presença
da Igreja no âmbito político provém do mais íntimo da fé cristã: o do-
mínio de Cristo que se estende a toda a vida” (Puebla 515). Já o Papa
Francisco diz que é necessário que o cristão se envolva na política,
porque ela é uma das formas mais elevadas da caridade cristã sendo
que procura o bem comum. Portanto, é uma atividade nobre. Precisa
ser valorizada, exercê-la com vocação e uma dedicação que exige em
muitos casos o martírio, ou seja, morrer pelo bem comum.
A fratura entre política e religião causada por muitos cristãos par-
te de uma não compreensão do que há de mais essencial na missão
cristã. Seria humanamente possível viver tudo o que Jesus ensinou ab-
dicando do viés político intrínseco a todo esse ensinamento? Por outro
lado, o que seria da vida política sem o elemento religioso, que em
muitas situações, contribui para que se opte pelo que é correto, pelo
que é necessário fazer?
Na vida de Margarida Maria Alves é possível perceber a comunhão
entre fé e política, uma síntese construída no decorrer de toda a sua
história com muito esforço e dedicação. Os frutos gerados por sua
morte são os maiores testemunhos de que ela estava trilhando o cami-
nho certo. O fato é que sua mística continua atual, continua a desafiar
homens e mulheres do nosso tempo a deixarem de lado seus medos e
se decidirem por entrar na luta que há muito tempo vem convocando
muitos.

229
CONCLUSÃO
Nesta pesquisa pode-se observar que o místico ou a mística é al-
guém comprometido com as causas concretas de sua realidade histó-
rica, especialmente com os pobres e oprimidos. Tomando como refe-
rência a vida cristã, quanto mais comprometido(a) com as causas dos
marginalizados(as) de seu tempo, maior será a sua identificação com
a missão de Jesus de Nazaré e consequentemente, sua comunhão com
Deus.
No caso de Margarida Maria Alves, sua mística foi forjada na mili-
tância pelos direitos trabalhista dos pequenos agricultores de Alagoa
Grande, na sua participação e serviço nas pastorais sociais da Igreja
Católica de sua paróquia e diocese e no convívio familiar com seu es-
poso Cassimiro e seu filho Arimatéia, sua luta e suas esperanças con-
tinuam vivas em cada pessoa que de repente se confronta com a desu-
manidade dos poderosos que tentam a todo custo usurpar os direitos
básicos de seus semelhantes.

REFERÊNCIAS
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rias. São Paulo: Paulinas, 2019.

AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Teologia e Política. REVER, pp. 92-118,


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230
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SOUZA, Maria de Fátima Vanderlei. 9ª série. Iniciados: 11º Encontro
de Iniciação Científica, João Pessoa: Ed. Universitária/UFPB, 2006.

VANNINI, Marco. Introdução à Mística. São Paulo: Edições Loyola,


2005.

VENCESLAU. Denis. Memória de Margarida Maria Alves – mística


do encerramento do encontro dos 30 anos da CPT NE2. Comissão
Pastoral da Terra Nordeste II. 18 ago. 2018. Disponível em: https://
www.cptne2.org.br/noticias/noticias-por-estado/4962-memoria-de-
-margarida-maria-alves-mistica-de-encerramento-do-encontro-dos-
-30-anos-da-cpt-ne-2. Acesso em: 10 abr. 2023.

231
WOORTMANN, Ellen F.; HEREDIA, Beatriz; MENASHE, Renata (Orgs.).
Margarida Alves. Coletânea sobre estudos rurais e gênero. Brasília:
MDA/IICA, 2006. Disponível em: https://ieg.ufsc.br/public/storage/
ebooks/October2020/01022010-021924coletanea.pdf. Acesso em: 10
abr. 2023.

232
REGINALDO
VELOSO
Padre Reginaldo

José Artur Tavares de Brito

INTRODUÇÃO

Louvemos ao Senhor porque Ele é bom! Minha gente, eu


venho da caminhada das Comunidades Eclesiais de Base,
das pastorais sociais e de todo povo que acredita que a
vontade do Pai pode ser feita assim na terra como no
céu. E que a gente pode chegar em um mundo que seja a
terra prometida desde aqui onde não vai faltar pão para
ninguém. Onde não vai faltar perdão para ninguém, onde
o egoísmo vai ser vencido e onde prevalecerá a justiça
e o amor (Padre Reginaldo Veloso, ao receber o Troféu
Louvemos ao Senhor, prêmio destinado a reconhecer os
melhores artistas da música católica popular do Brasil -
do ano 2018).

A vida de um missionário fiel e dedicado é sempre um legado a


ser contemplado, admirado e seguido. Tenho a honra de escrever estas
linhas apresentando a vida, o testemunho e legado do Padre Reginaldo
Veloso.
O que se pode dizer de um místico? Padre Reginaldo Veloso, exem-
plar presbítero, esposo e pai. Um ser humano comprometido com as
grandes causas da humanidade. Primeiro de tudo é importante saber
que ele vem de Alagoas, do Nordeste, terra de muito sol e de muitas
cores. De um povo alegre e sempre cheio de esperança, apesar de qui-
nhentos anos de uma história tão marcada pela tragédia que está na

233
própria raiz da formação de nossa nacionalidade. Foi no Nordeste que
teve a invasão dessas terras que vieram depois a chamar-se Brasil, par-
te da América.
Sua mãe Sebastiana ficou órfã de pai e mãe muito cedo. E, também
viria a morrer cedo, em 1945, em decorrência da tuberculose. O meni-
no Reginaldo tinha 7 anos. Ela casou-se com João Veloso, pernambu-
cano, de família de agricultores, semianalfabeto, mas que se tornou
comerciante, dono de uma padaria em Quebrangulo.
No diário da família, seu irmão Roberval, conta que Reginaldo era
uma criança que sempre se destacou pela inteligência e curiosidade,
principalmente no estudo de línguas. “Desde novo ele já falava pala-
vras e frases em inglês, italiano, francês e latim”, diz ele, em entrevista
para um documentário. O pai alimentava a curiosidade e estimulava
os filhos a estudarem, conseguindo que os quatro se formassem: um
médico, um engenheiro e um advogado, além do padre.
O pai marcou profundamente a infância do menino Reginaldo. Ele
também levava os filhos aos comícios políticos da cidade. “Herdei isso
do meu pai: o gosto pela política, tanto a partidária quanto a políti-
ca com ‘P’ maiúsculo, a da preocupação com o bem comum” (Veloso,
2018, p.13).
José Reginaldo Veloso de Araújo, alagoano do município de São
José da Laje, nascido em 03 de agosto de 1937. Veio para o Recife estu-
dar em 1945 e ficou até 1958 quando foi à Roma completar os estudos
da formação presbiteral até 1966.
Reginaldo Veloso foi um homem de muito preparo intelectual e de
muita intuição. Como membro da Congregação dos Padres do Coração
de Jesus, fez o mestrado em Teologia na Universidade Gregoriana em
Roma, justamente no período do Concílio Vaticano II. Formou-se tam-
bém no mestrado em História da Igreja e em Liturgia. Homem de pro-
funda oração que enxergava, como um exímio garimpeiro enxerga a
pérola preciosa, os sinais de Deus no mundo de hoje.

234
A vida de uma pessoa doada fica marcada indelevelmente entre
os seus por aquilo que construiu. Toda a vida de Reginaldo Veloso foi
marcada por um vínculo profundo entre a fé e a política. Daí surgiu
uma espiritualidade com os pés no chão.

REGINALDO VELOSO: UM MÍSTICO PARA OS DIAS DE HOJE

Um dos apreciáveis dons do Padre Reginaldo era levar ao


povo a mensagem da Bíblia mediante a poesia e o can-
to. Em sua atitude mística pessoal, conseguia ajudar o
povo a cantar o que Deus gosta de escutar: os salmos da
Bíblia, os poemas proféticos e os desabafos dos pobres
e de mulheres diante de Deus (Dom Sebastião Armando
Gameleira Soares, bispo emérito da Diocese Anglicana do
Recife/ PE).

A família paterna dos Veloso era bastante católica. A avó de


Reginaldo até construiu uma capela no seu sítio. Certa vez ela foi pas-
sar meses morando com o filho e netos, mas não poderia passar o mês
de maio sem fazer as orações. Então organizou um santuário na casa
do filho, convocou vizinhos e colocou o menino Reginaldo para fazer
as orações. “Assim eu comecei a minha carreira de rezador, liturgo ou
liturgista” (Veloso, 2018, p. 14).
Com pouco mais de 10 anos de idade foi cursar o antigo ginasial
em um colégio católico em Palmeira dos Índios. Com pouco tempo um
padre o chamou para ingressar no seminário. Foi o próprio Reginaldo
que pediu ao pai para ingressar como seminarista. Em janeiro de 1951,
aos 13 anos, mudava-se para o Recife, onde passou a estudar na Escola
Apostólica da Várzea, liderada pelos padres da congregação do Sagrado
Coração de Jesus.
Em 1961, aos 24 anos, Reginaldo Veloso foi ordenado padre, em
Roma, quando a Igreja Católica preparava o Concílio Vaticano II. Como

235
se especializava em Liturgia e em História, acompanhou de perto as
discussões que se faziam durante o Concílio, especialmente, em rela-
ção à Liturgia e à Pastoral. Ao voltar ao Brasil, em 1961, encontrou à
frente da Arquidiocese de Olinda e Recife, Dom Helder Camara, em-
penhado em pôr em prática as decisões do Concílio nas paróquias e
em todos os níveis de pastoral. Reginaldo, já ordenado padre, voltou
ao Brasil com muito entusiasmo, mas com uma compreensão de mis-
são que o missionário precisa prescindir da própria cultura (ele estava
embebido da formação europeia). Em toda a sua vida como missioná-
rio teve uma atitude de simplificar sua linguagem e a sua atitude, as
palavras e os gestos. Segundo o monge Marcelo Barros, o jovem Padre
Reginaldo,

ao contrário de jovens que vão estudar Teologia em Roma


e voltam ao Brasil mais europeus do que os seus profes-
sores romanos, Reginaldo voltou ainda mais fiel às suas
raízes nordestinas. Os estudos em Roma lhe deram uma
carga cultura nova, mas também lhe fizeram ver melhor
a distância imensa que havia entre a visão litúrgica do
clero, mesmo na Liturgia renovada, e a piedade do povo
católico, que continuava ligado a devoções e a expressões
tradicionais da fé (Barros, 2022, p.12).

Quando voltou a Pernambuco foi professor no Seminário Cristo


Rei, em Camaragibe – PE. Não demorou muito, foi convidado para ser o
administrador da Comunidade Santa Maria, na Paróquia da Macaxeira
permanecendo até 1977. Depois foi para sua última paróquia: Santuário
de Nossa Senhora da Conceição, ficando até 1989. Nessa época Dom
Helder Camara torna-se Bispo Emérito e tudo mudou na área eclesiás-
tica. O novo Arcebispo assumindo em 1985 não continuou o trabalho
de Dom Helder e iniciou o conhecido “desmonte eclesiástico”.
Nesse contexto, Padre Reginaldo foi destituído da paróquia e sus-
penso de ordem. Mas, continuou morando no Morro da Conceição e

236
até o final da vida, além de muitos outros trabalhos a nível regional e
nacional, acompanhava três Comunidades Eclesiais de Base. Era firme
nas convicções e não temia ser incompreendido ou julgado por de-
fender o que acreditava. Procurava viver cotidianamente o Evangelho
de Jesus Cristo com coerência e fé. Defendia o que acreditava com
garra e força. Argumentava, justificava de forma coerente e profunda.
Era sua marca se rebelar contra toda forma de opressão, injustiça e
autoritarismo.
Sua porta estava sempre aberta para dizer uma palavra. Mesmo
para a imprensa não negava uma oportunidade para falar, anunciar e
denunciar. Dizia: “temos que aproveitar as oportunidades para lançar
a semente”.
Expressava a dimensão comprometida da fé cristã através da arte e
da beleza, principalmente da poesia e a melodia dos cânticos nas cele-
brações populares e na caminhada das Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs). Não perdia a oportunidade para citar uma frase dita pelo filó-
sofo e jornalista russo, Flódor Dostoievski: “A beleza salvará o mundo”.
Padre Reginaldo se assumia como presbítero leigo das CEBs. Em
23 de abril de 1994, casou-se com Edileuza Veloso e desse amor nasceu
o filho João José. A partir desse novo contexto viveu o ministério a par-
tir da Igreja da Casa. E como presbítero casado era reconhecido pelas
CEBs que o convidava sempre para a assistência as necessidades colo-
cando-se à disposição para os inúmeros convites, principalmente da
Igreja da Caminhada Libertadora e dos Movimentos Sociais. Recordo
que o último assessoramento fora de Pernambuco ocorreu no Juazeiro
do Norte – CE, em 04 de janeiro de 2020. Como participante dessa for-
mação recordo do tema: “A inculturação dos Salmos nas romarias”.
Conheci padre Reginaldo Veloso em Ribeirão, durante a injusta ex-
pulsão do Brasil do padre italiano Vito Miracapillo em outubro de 1980.
Reginaldo era Administrador da Paróquia do Morro da Conceição em
Recife, no tempo de Dom Helder. Viajava com frequência à Ribeirão,

237
cidade devastada pela opressão dos usineiros e senhores de engenho e
sem o padre que era considerado “pai dos pobres”. Viajava à Ribeirão
para prestar solidariedade aos/as trabalhadores/as da “palha da cana”
visitando os engenhos muitas vezes de carona em cima de um cami-
nhão de transporte dos/as chamados/as boias frias. Nesse interim es-
tive com Reginaldo muitas vezes. Sua poesia profética o levou a prisão
em plena Ditadura Civil-Militar quando compôs o hino: “Vito, Vito,
vitória”. Crítica ácida aos poderosos usineiros e ao sistema de justiça
brasileiro vendido e acovardado, que expulsara o padre italiano.
Reencontramo-nos no Recife, ele grande referência das CEBs e da
liturgia no sentido mais pleno da palavra, de quem sabia o que significa
realmente celebrar liturgia como expressão do vivido e eu – com mui-
tas voltas – seminarista da Igreja Católica Romana membro da Diocese
de Palmares – PE e morando, na ocasião, no Morro da Conceição.
Presenciei de perto todo “desmonte eclesiástico” com a substitui-
ção de Dom Helder a partir de 1985. Um terrível acontecimento foi
a suspensão de ordem – do exercício sacerdotal – imposta ao Padre
Reginaldo Veloso, o que considero um ato injusto da Igreja Romana.
Após a citada situação, iniciou as Comunidades Fé e Resistência no
Morro da Conceição e Adjacências.
A história de Reginaldo Veloso pode ser dividida em várias etapas.
Em 1961, aos 24 anos, foi ordenado padre, em Roma, quando a Igreja
Católica Romana iniciava a preparação do Concílio Vaticano II. Como
se especializava em Liturgia e em História, acompanhou de perto as
discussões durante o Concílio, especificamente, em relação à Liturgia
e Pastoral. Logo percebeu a ação litúrgica como expressão das vivên-
cias entre as pessoas.

238
FÉ E POLÍTICA: O LEGADO DO PADRE REGINALDO VELOSO

Sobre o Padre Reginaldo Veloso escrevia Dom Helder,


aos amigos e amigas em uma de suas confidências, em
Carta da madrugada: “Não consigo compreender o que
se tem feito com o padre Reginaldo, sem dúvida um dos
padres mais evangélicos desta Diocese” (Dom Sebastião
Armando Gameleira Soares, bispo emérito da Diocese
Anglicana do Recife/ PE).

O Padre Reginaldo Veloso viveu intensamente as décadas dos anos


1960, 1970 e 1980 do século passado, turbulentas para a História do
Brasil. Sobretudo a década de 1960 manifestada como década de es-
peranças e tristezas. Esse período amanheceu sob o florescimento das
organizações dos Movimentos Sociais e das manifestações que se alas-
traram pelo Brasil nas mobilizações por melhores condições de vida
e terminaram em uma ditadura comandada pelos militares e aliados
civis.
Nesse contexto que o jovem Padre Reginaldo Veloso foi fazendo a
síntese entre a teoria e a prática. Foi crescendo nele o amor às pessoas
empobrecidas e injustiçadas. A perseguição sobre Dom Helder e cola-
boradores/as foi uma escola para Reginaldo. Como presbítero amoroso
com os/as empobrecidos/as imaginamos quantas lágrimas derramou
por ver companheiros e companheiras assassinadas nas mobilizações
contra as armas/opressão e contra a fome. Um momento marcante e
inesquecível para o Padre Reginaldo Veloso, foi o assassinato de um co-
lega no sacerdócio. Em fins de maio de 1969 Antônio Henrique Pereira
da Silva Neto, jovem padre responsável pela Pastoral da Juventude da
Arquidiocese de Olinda e Recife foi violentamente torturado e assas-
sinado e o corpo encontrado nos arredores da Cidade Universitária,
no Recife. Reginaldo contava sempre, com emoção, as cenas de muita
tensão do enterro do Padre Henrique.

239
Em 1975 chega ao Brasil o Padre Italiano Vito Miracapillo que pas-
sa a ser uma força para os camponeses da cidade de Ribeirão/PE. O
povo de Ribeirão “crucificado” nos canaviais foi, em definitivo, o sen-
tido da missão do Padre Vito, com a pronta solidariedade do Padre
Reginaldo. A América Latina estava reagindo aos golpes de Estado.
Vale o registro que se espalhava os martírios na América Latina. Em
março de 1980 com Dom Oscar Romero, santo mártir da Igreja dos po-
bres, ao se colocar no seguimento de Jesus de Nazaré (Sobrino, 2007).
Com a injusta expulsão79 do Padre Vito Miracapillo do Brasil, o
Padre Reginaldo Veloso, poeta e compositor, então administrador
do Santuário de Nossa Senhora da Conceição no Recife, compôs o
hino Vito, Vito, Vitória. Foi o bastante para também ser processado
por compor uma música de protesto. Não esqueçamos que eram “os
anos de chumbo”. Vejamos a letra da música abaixo, somente gravada
em 2012, no CD comemorativo dos 20 anos da Associação Nacional
de Presbíteros (ANPB), “Servidores do Reino, assim na terra como no
Céu”, na faixa de nº 7:

No Ribeirão da opressão alguém de longe vem ser irmão,


/:ser companheiro na escravidão na caminhada
libertação...:/

Senhor-de-engenho dono de usina do lucro segue a


disciplina:
/:ganhar dinheiro é sua sina só ambição é sua rima!:/

VITO, VITO, VITÓRIA!

No Ribeirão da opressão alguém proclama a redenção

79 Padre Vito Miracapillo, missionário italiano atuava na cidade de Ribeirão, diocese de


Palmares/PE, no final da década de 1970 e desenvolvia um trabalho junto aos camponeses
apoiando suas reivindicações por direitos. Foi montado uma farsa pelos usineiros e senhores
de engenho que culminou com o decreto presidencial do governo militar - evocando o
Estatuto do Estrangeiro – de expulsão do religioso em outubro de 1980.

240
/:é perseguido contradição: ser companheiro dá
expulsão...:/

Onze juízes um tribunal onze o supremo coito venal


/:onze, a vergonha nacional pisam o Direito celebram o
mal!:/

VITO, VITO, VITÓRIA!

No Ribeirão da opressão é sexta-feira e da paixão


/:crucificaram de nós o irmão “o pai dos pobres” do
Ribeirão...:/

Palha de cana e sol a pino corta o facão desde menino


/:desce o suor e o pelo fino queimando a carne explode
o hino::/

VITO, VITO, VITÓRIA!

No Ribeirão da opressão mais uma vez vence a paixão


/:vence o amor encarnação que se fez cruz
ressurreição!:/

Você se foi ficamos nós fica a semente da sua voz


/:ficamos juntos não ‘stamos sós se apagam um sol nas-
cem mil sóis!:/

VITO, VITO, VITÓRIA!

Padre Reginaldo Veloso nos deixou uma lição de sabedoria: aceitar


que o tempo não estica, é incrivelmente breve e que, por isso, temos
de vivê-lo com o equilíbrio possível. Ensinou-nos que a vida deve ser
vivida no sentido mais pleno somente alcançado na partilha e no dom.
A síntese fé e política configurava sua missão e atuação como pas-
tor, primeiro no acompanhamento a classe trabalhadora na Pastoral
chamada Ação Católica Operária (ACO) como também a frente das lu-
tas mais importantes da região onde atuava, na Grande Casa Amarela,
na Zona Sul do Recife.

241
O Padre Reginaldo Veloso testemunhou com sua vida e missão
aquilo que o Papa Francisco afirma e solicita em sua encíclica, “Fratelli
Tutti”, de 2020: a política é a forma mais alta da caridade. A vida do
Padre Reginaldo Veloso foi uma síntese feliz desse binômio que o papa
deseja que configure a vida de cada fiel cristão: fé e política. A Igreja
da Caminhada Libertadora no Brasil procurará continuar e ser fiel a
seu legado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Peço a Deus que nos mantenha unidos no esforço de


manter viva a memória do Padre Reginaldo Veloso e o
exemplo que ele nos deixou. Que do céu ele nos abençoe
(Marcelo Barros).

Padre Reginaldo Veloso ajudou muita gente a rezar e se mobilizar


por direitos. A entender que a fé precisa estar enraizada nas mobili-
zações do povo e experimentada na vida para depois ser celebrada a
vida com os irmãos e as irmãs. Como cocriador do Ofício Divino das
Comunidades fez um grande esforço de inculturação da liturgia das ho-
ras com uma linguagem orante, poética e musical para que tudo fos-
se ao alcance do povo mais simples. Com uma grande contribuição à
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) fazendo parte da
equipe de assessores para a liturgia. Uma pérola musical foi o cân-
tico de sua autoria que, sobretudo no tempo do Advento, é cantada
por uma enormidade de comunidades espalhadas por todo Brasil: “Da
cepa brotou a rama”.
Em agosto de 2018, Reginaldo Veloso, deixou anotado na agenda:

O bom é poder sentir que a vida da gente tem um signifi-


cado maior para outras pessoas, que a gente não vive para
si. Que podemos encontrar um sentido para viver servin-

242
do à Igreja, à humanidade e à felicidade dos outros (...)
Acredito que toda pessoa que procura dar sentido maior
à sua vida, servindo à humanidade, se empenhando em
todas as ações e manifestações da vida do povo vive mais
plenamente e tem prazer em viver (Veloso, 2018, p.29).

Reginaldo, poeta, amante das artes e suas linguagens tinha con-


vicção que as escolas deveriam estar repletas da beleza da arte, e essas
têm o poder e a força de salvar vidas (VELOSO, 2022, p.13). Como um
grande educador e seguidor de Paulo Freire apostava em uma edu-
cação conscientizadora e libertadora. Como profetas e profetisas da
Bíblia, Reginaldo foi lindamente místico e profeta e fortaleceu em nós,
qual dedicado mestre, a oração, a poesia e a profecia.

REFERÊNCIAS
BARROS, Marcelo. Reginaldo Veloso: as raízes de sua fidelidade. In:
Revista de Liturgia, São Paulo, 292: 12-13, jul./ago. 2022.

SOBRINO, Jon. Monseñor Romero. San Salvador (El Salvador): UCA


Editores, 2007.

SOARES. Sebastião Armando Gameleira. Reginaldo Veloso, conterrâ-


neo das Alagoas. In: Revista de Liturgia, São Paulo, 292: 4-5, jul./ago.
2022.

VELOSO, Reginaldo. Juventude em movimento, um projeto para


a vida. Uma experiência de Animação Cultural entre Adolescentes
das Escolas da Rede Municipal de Ensino da Cidade do Recife. Recife:
FUNCULTURA, 2022.

VELOSO, Reginaldo. Diário de família: anotações sobre o cotidiano


familiar da família Veloso. Mimeo: 2018.

243
ROMANO
ZUFFEREY
Padre Romano

Valmir Assis da Silva Filho

INTRODUÇÃO
Muitas vezes, a caricatura comum torna difícil a compreensão de
que aquilo que chamamos mística, ou seja, algo de misterioso, íntimo
e impulsionador, é certamente o encontro de uma pessoa com a con-
templação que o faz transcender, transbordar. O místico é alguém que
faz uma experiência com o Sagrado tão significativa que, encarna em
exemplos e vida essa relação, e por amor a essa experiência, não ne-
gocia, ceder a qualquer coisa que o retire dessa relação amorosa. Por
causa disso, o místico é antes de tudo o avesso do que fizeram dele no
imaginário coletivo. O místico é alguém que subverte com sua vida a
ordem estabelecida e constrange com sua virtude. A mística seria, na
vida desse a quem quero saudar nestas páginas, um ato permanente de
subversão. Padre Romano Zufferey era o místico da vida coletiva, era o
profeta da libertação operária80.
A Ação Católica Operária - ACO surge no Brasil, fruto das experiên-
cias de Ação Católica espalhadas no mundo, em especial da Juventude
Operária Católica – JOC. A Igreja no Brasil e no mundo, se oportuniza-
va imergir na realidade social e ocupar novas frentes de evangelização
junto a jovens operários. É aí que os ventos levarão Romano a servir e
viver.

80 Subtítulo de sua biografia – Padre Romano, profeta da libertação operária

244
DA INFÂNCIA AO SACERDÓCIO
A um místico é sempre atribuído que sua história é como riacho
correndo para comunhão das águas. Desde sua nascente há um sen-
tido: ser rio grande, água abundante. A nascente de Romain é água
agitada em cidade calma. Nasceu em Saint-Luc (São Lucas) no dia 23
de dezembro de 1910, um lugarejo longe uns 10 km da cidade de Sierre,
no sudoeste suíço. Sua origem repousa nos nomes Alexandre e Marie.
O pai, operário da usina Chippis e sapateiro que nas horas vagas cuida-
va de um pedaço de terra. A mãe, responsável pelo cuidado dos filhos e
agricultora. A família ainda teria, por parte dos irmãos, dois pedreiros,
um operário de fábrica e duas irmãs casadas com operários, além de
uma irmã cuidadora de idosos em uma comunidade geriátrica. Uma
casa eminentemente de operários e assalariados
Falamos a pouco sobre os sinais que sempre são atribuídos ao per-
curso que um místico faz. A casa de operários já nos aponta um deles,
mas o batismo de Romain preenche o cenário de sua biografia com um
gesto como prelúdio: durante a cerimônia, o bebê Zufferey foi colado
no altar da Igreja, um símbolo oferente que será sempre relembrado
por ele e pelos amigos ao falar sobre sua vocação e missão.
O salto que daremos dista à fase escolar onde, desde a sétima sé-
rie o adolescente participa de uma associação de estudantes católicos
com missão de ajudar nas atividades da paróquia da região. As ini-
ciativas eram variadas, mas boa parte delas passava pela empolgação
artística da juventude e por isso mesmo Romain esteve envolvido em
peças teatrais. O talento abriu os olhos do pároco, Abbé Pomt, amigo
da família. Não demorou muito e o padre foi ter com os Zufferey para
propor a ida do jovem ao seminário. Apesar de nunca ter demonstrado
nenhuma inclinação à vida clerical, a resposta do jovem veio sem titu-
bear e, aos dezoito anos, Romain ingressou no Seminário Menor. Anos
depois, Romain irá atestar que a decisão tinha sido silenciosamente

245
tomada desde os dezesseis anos, muito por influência de seu irmão
Gustave que era candidato à vida religiosa capuchinha naquela época.

UM PRESBÍTERO PARA A CLASSE TRABALHADORA


A sensibilidade que encontramos em alguém a quem ousamos
chamar de místico não é pura intuição. É um exercício constante de
coração voltado para o Sagrado, olhar voltado para seu redor e pés e
mãos implicados na caminhada e na história. De fato, Romain, mais do
que pelo seminário, foi um padre formado por uma família operária,
num bairro operário, amigo de outros tantos adolescentes filhos de
operários... Romain foi um padre formado pela Classe Trabalhadora.
Antes de embarcar para o Brasil o padre Zufferey viveu vinte e
cinco anos de ministério em sua terra. Nenhum deles exercendo a
função de pároco. Entregou seu tempo de pastoral ao operariado do
Valais, região onde seu pai foi operário. Já aí reside a mística subver-
siva de Romain: um padre operário numa região onde o clero era, pre-
dominantemente, serviçal das famílias ricas e apoiadores do Partido
Conservador Católico.
A decisão de ser um padre no meio dos operários começa quando
Romain é designado para ser capelão do canteiro de obras da barragem
de Moiry e da Usina Chippis, que seu pai trabalhara. Ali foi animador
espiritual da JOC, da ACO e do Movimento Popular das Famílias e para
isso teve de assumir o convívio com cerca de 2.500 operários. Como
não era pároco, foi viver também de seu trabalho, assalariado como
os trabalhadores de sua região, Romain se torna inspetor de escolas
públicas. Mais à frente começa a ser remunerado pela capelania dos
trabalhadores de Moiry e aluga um quarto na casa de uma família para
receber os membros da JOC, ACO e MPF para ajudar nas várias adver-
sidades. Com isso, Romain entrava na vida e no sofrimento da classe
trabalhadora e começa a ajudar os trabalhadores nas lutas diárias, na

246
conquista de direitos e no tão difícil diálogo com uma Igreja local com-
prometida com os patrões e suas famílias abastadas.
A forma como Romain lidou com as pressões da Cúria é também
digna da resiliência e da sabedoria encontrada em muitos homens e
mulheres místicos. A atenção e sensibilidade, o zelo pelo diálogo e
reconciliação, e seu espírito missionário são marcas da grandeza de
Romain para lidar com os adversários externos e os dissabores inter-
nos. Como no episódio em que a Cúria perseguiu a JOC por cinco anos
e chegou a tentar retirar o movimento de ação Católica das fábricas e
o encastelar nas paróquias a fim de que a Diocese pudesse domá-lo.
Graças ao assistente da JOC, o bispo recuou das investidas, e por meio
de seu discurso conciliador ainda conseguiu a garantia de poder conti-
nuar com sua missão sem mais ataques.
Romain seguiu com sua missão entre seu povo, sua gente. Dedicou
a esse apostolado 25 anos de sua vida presbiteral. A fidelidade é pró-
pria dos místicos. Ele não abandonara a causa de evangelização dos
operários em momento algum e, diante da Igreja e suas investidas, não
ousou senão dialogar com a certeza de que sua vida comunitária com
os trabalhadores não era uma questão ser negociada ou repensada.
Paradoxalmente, Romain viveu o evangelho principalmente quando
sua missionariedade não estava submetida ideologicamente à hierar-
quia religiosa. Uma vez sobre isso, ele mesmo dirá: Quero, de preferên-
cia, a organização, não porque é cristã, mas porque é operária (Chaparro,
2006, p.254).

“A IGREJA É DO MUNDO TODO. A CLASSE OPERÁRIA TAMBÉM.


EU FICAVA COM ELAS!”
O que diferencia um místico de um jovem apaixonado? Ora, di-
reis que a paixão juvenil é fugidia, com o tempo abafa, perder o ca-
lor, e as coisas voltam ao estado de normalidade. De fato, quanto ao
místico, sua constância é dar respostas diárias de renovação do amor,

247
das convicções, daquilo que o apaixonou e o fez largar tudo para viver
essa ventura. São João da Cruz saia pela floresta gritando sua sauda-
de do Amor, Teresa D’Ávila via nesse amor uma fonte sempre a beber,
Francisco de Assis não esquecia de seu amor porque o via sempre em
cada leproso, Antônio de Pádua via no pobre a presença do menor de
Nazaré com tal ternura que viveu o transe de abraçar o Menino Jesus.
Já em nossos dias, Helder Câmara chorava e entrava em êxtase no meio
das celebrações eucarísticas e a Irmã Dorothy, na hora da morte cruel,
não esqueceu seu amor e leu o texto das Bem-aventuranças para seu
carrasco, antes de ser brutalmente assassinada.
Nessa esteira, Romain se inclui definitivamente. Viveu seu jubi-
leu de prata sacerdotal e já se encontrava com mais de 50 anos, era
aceitável que iniciasse uma diminuição no ritmo de evangelização e
missão. Como com a paixão encontrada em João da Cruz, Teresa de
Jesus, Francisco ou Antônio, ele resolveu não esmorecer. Como com a
longevidade juvenil de Helder e Dorothy, ele seguiu. Em 1961 ouviu do
amigo Paul Adam, após viagem feita ao Rio de Janeiro, relatos sobre
a classe operária no Brasil. Esse depoimento e o impulso missionário
do Concilio Vaticano II, já convocado para iniciar me outubro de 1962,
animaram Romain a desembarcar em Recife no dia 4 de setembro de
1962. Ali mesmo, o bispo local aportuguesaria seu nome, Romain vira
Padre Romano.
Foi residir na casa dos permanentes e assistentes da JOC, no bairro
do Coelhos. Adquiriu um jipe e com ele já caiu em campo. Tratou de vi-
sitar antigos jocistas para engajá-los na ACO e foi percorrer o Nordeste
passando por João Pessoa, Natal, Fortaleza, Maceió, Aracaju e Salvador
(ACO, 1985, p. 54).
Na bagagem dessa missão, Romano trazia preocupações muito
fortes e urgentes: ajudar os novos militantes da ACO a descobrir a rea-
lidade operária e despertarem para o que muito se chamava de cons-
ciência de classe. Romano dizia que só haveria uma evangelização de

248
fato entre os trabalhadores e trabalhadoras quando, percebessem que
existia uma classe operária no Nordeste do Brasil. Certa feita Romano
afirmou:

Afirmo que um operário, para ser cristão autêntico, deve


ser um operário autêntico, em toda a sua extensão e ple-
nitude. - Autêntico operário, autêntico Cristão. A Classe
operária só pode ser cristã se for ela mesma (Chaparro,
2006, p.257).

Em outro momento também afirmara:

Tudo que impede a Classe de se aceitar e de ser totalmen-


te ela mesma, coloca um obstáculo à sua evangelização
verdadeira (Chaparro, 2006, p. 258).

O método de Revisão de vida, que consiste num esquema pedagó-


gico baseado no tripé: Ver, Julgar e Agir, e as conversas sobre o proble-
ma operário seriam parte imprescindível de seu jeito afável de chegar
junto dos trabalhadores e trabalhadoras e animar um processo pasto-
ral junto à Classe trabalhadora.
Aquilo que poderia ser um obstáculo desmoronou graças a sen-
sibilidade de Romano, seu diálogo, sua escuta principalmente, e seu
jeito de ver Deus no rosto calejado. Mais à frente, numa vigília em soli-
dariedade a ele, diante das perseguições que a ditadura militar lhe im-
porá, o padre trabalhador disse à multidão que o rodeava o que sentia
sobre o trabalhador Nordestino:

Foi-me pedido dizer, nesta noite, o que vi durante quin-


ze anos no Recife e no Nordeste, como sinal de um povo
que se levanta e caminha.
E u vi tanta Coisa! Mas só contarei as coisas mais sim-
ples, porque as coisas mais simples são também as mais
belas.

249
O que eu vi foi “um homem proibido”. Eu vi, e todos
nós vimos, o “homem proibido”. Mas vi, no olhar desse
homem, uma pergunta:
- Será que eu tenho direito de desistir de ser homem?
Eu vi também a resposta: - Aceito o desafio. Eu nasci
para ser homem.
A partir daí, vi o homem do Nordeste (Chaparro, 2006,
p. 63)

A CRUZ: A PERSEGUIÇÃO E A LUTA


A recente Ação Católica Operária, sofreu seu “batismo de sangue”
(ACO, 1987). Em 1965 Romano adquiriu, junto a vários militantes,
uma casa para a ACO – disso falaremos mais à frente – no entanto, as
perseguições fizeram a Sede do Movimento ser alvo de espionagem
e invasões. A ACO entra em regime de semiclandestinidade, recon-
figurando sua estrutura, diminuindo o número de dirigentes e con-
centrando sua coordenação em um único lugar. A perseguição tinha
como um dos motivos fortes três publicações do Movimento: Nordeste
– Desenvolvimento sem justiça; Nordeste – O homem proibido; e
Manoel do Ó – 100 anos de suor e sangue.
Em 30 de abril de 1972, após várias ameaças de expulsão do país, por
ser visto como principal liderança dos trabalhadores, o Padre Romano
Zufferey envia uma carta ao núncio apostólico denunciando toda per-
seguição sofrida por ele, e seus colegas trabalhadores e trabalhadoras.
Essas ameaças ganham uma página infeliz em 1977. Militantes da ACO
são presos e torturados para entregar o Padre Romano, na escola do
místico da fidelidade à classe trabalhadora, eles resistem e não entre-
gam o companheiro. O militante João Francisco da Silva, após violên-
cia física e psicológica de toda sorte, foi solto dois dias depois, outras
vezes seria preso e torturado novamente. A antiga “jocista” Angelina
Oliveira também sofreria prisão e violência para entregar o padre foi
solta 8 oito dias depois.

250
Romano soube que estava sendo espionado desde 1967. O registro
da espionagem trazia alguns acontecimentos como mote para a per-
seguição: um folheto de 1º de maio redigido pelo assistente da ACO e
sobre as três publicações já citadas. Uma delas, Nordeste – desenvolvi-
mento sem justiça, tendo sido publicada numa cerimônia com presen-
ça de Dom Helder Câmara.
Não houve jeito, o processo foi aberto tendo por motivo a alegação
de Padre Romano ser “nocivo e perigoso à conveniência e aos interes-
ses nacionais”. Com a ajuda de militantes se chegou ao nome do advo-
gado Eduardo Pandolfi, próximo do MDB e amigo do militante Roberto
Arrais. Pandolfi aceita a tarefa, acompanha Padre Romano nas oitivas
e começa a construir sua defesa. A defesa perpetrada pelo advogado
consistia numa única tese: comprovar que o apóstolo da causa ope-
rária não era comunista. Esse era o pressuposto da acusação. O jurista
defendeu que o padre, obviamente, era cristão, não um materialista.
Sua missão era pautada pelo preceito cristão da solidariedade e fra-
ternidade, tendo a classe trabalhadora como destinatária. Junto a essa
defesa, a classe trabalhadora, na região metropolitana do Recife, se
mobilizou em vigílias, atos e manifestações, até que em 2 de outubro
de 1977, Romano, é informado da suspensão do inquérito. Vitória do
Padre Romano e dos trabalhadores cristãos e trabalhadoras cristãs.

AQUELE QUE VEIO DA GRANDE TRIBULAÇÃO


Com o medo constante de ser expulso do país, Romano não ousou
voltar à Suíça para visitar sua família e amigos. Em 1985 sentiu que
poderia realizar esta viagem, mas em 7 de fevereiro Romano sofreu
um processo de febre, falta de apetite e indisposição. Ainda querendo
dar conta de várias atividades foi aconselhado a repousar, tendo acor-
dado na manhã da terça feria, 12 de fevereiro, muito indisposto, aca-
bou solicitando que o médico viesse vê-lo após o meio dia. De acordo

251
com o que os militantes narraram ao médico, o cardiologista Ovídio
Montenegro chegou às 14h10, já com uma ambulância. A militante
Maria Lorena, sentindo a gravidade, comunicou a Dom Helder e Dom
Lamartine que correram ao Hospital Pro-cárdio, mas, chegando lá,
souberam que Romano havia falecido às 16h30, vítima de uma embolia
pulmonar. A amiga Lorena teria ido à Suíça numa ocasião de agenda do
movimento, e num gesto sábio e sensível, foi visitar Saint-Luc, berço
de Romano, lá recolheu um pouco de terra, trouxe e guardou em sua
casa. No caixão de Romano, fez um pequeno travesseiro com essa terra
e o homenageou permitindo que sua cabeça reclinasse sobre sua terra
natal.
O desejo de Romano foi respeitado, conforme bilhete escrito em
12 de dezembro de 1977:
Amo muito a minha terra, mas desejo ser enterrado na terra bra-
sileira, esperando que minha presença aqui sirva de estímulo aos mili-
tantes da Classe Operária Brasileira (Chaparro, 2006, p. 71).
E depois de uma celebração emocionante, presidida por Dom
Helder Câmara, acompanhado de Dom Lamartine e mais trinta padres,
Romano teve seu corpo sepultado no cemitério no centro do Recife.

A CASA, A PALAVRA, A VIDA


Regar uma planta é dar-lhe vida. O que cultiva vida no coração de
um místico é o sonho, o desejo, a utopia que o impulsiona. Romano
tinha um sonho: Que a classe trabalhadora tivesse uma casa para se
reunir e se apoiar. Há quem pense que estamos falando de uma sede
administrativa para a ACO, mas o assistente queria mesmo uma casa
como espaço solidário, afetivo e organizativo da Classe Operária. O so-
nho caiu no coração de outros companheiros e companheiras e no dia
26 de dezembro de 1965, numa festa de natal repleta de trabalhadores
e trabalhadoras, a sede da ACO foi inaugurada no centro da cidade.

252
A concretização desse sonho foi possível com a luta de militantes do
Nordeste e a ajuda de trabalhadores suíços. Essa foi uma das maio-
res alegrias de Romano. Olhar para esta casa era olhar a edificação do
Reino de Deus. O assistente da JOC e da ACO escreveu sobre o que de-
sejava como missão para esta casa, uma carta linda que até hoje anima
quem passa por esta casa. Alguns trechos dizem da espiritualidade de
Padre Romano e o quanto essa casa é a contemplação dessa realidade.

A sede será a casa dos operários. Será uma casa boa,


para que eles não se sintam sempre os últimos na Igreja.
Contribuirá para lhes dar consciência do seu valor e do
lugar que devem tomar na sociedade. A casa quer expri-
mir o valor e a dignidade da Classe Operária. Vamos fazer
tudo para que ela seja de fato a casa dos operários, mem-
bros do Movimento e da Classe Operária.
Na sede, o trabalho que nela vai se realizar será sempre
orientado pelo objetivo de revelar e procurar a dignidade
dos trabalhadores, assim como defender a Classe contra
todas as violências com que quiserem oprimi-la.
A casa não terá luxo, mas se esforçará sempre para ter
o conforto necessário ao cumprimento da missão do
Movimento. Pensamos que a pobreza bíblica não consiste
em viver num momento atrasado, mas em dar-se total-
mente a si mesmo e em colocar as coisas nas condições
de servir plenamente ao bem da comunidade e do Reino
de Deus.
A casa quer se situar na linha do desenvolvimento e pro-
gresso, chamando assim a Classe Operária a ir em frente.
Esta casa quer testemunhar contra o individualismo e em
favor da vida e do dinamismo, na linha da esperança...
... Baseada nos valores humanos e cristãos, a casa estará
atenta ao perigo de se fechar em si mesma. Estará, sobre-
tudo, atenta aos contatos com os Movimentos de Ação
Católica, especialmente a JOC e a ACI, assim como com
os sindicatos e as organizações operárias...
...Quem entra aqui tem que sair melhor.
(Chaparro, 2006, 93).

253
A ACO, na década de 1990 mudou seu nome para Movimento de
Trabalhadores Cristãos. Continua animando dez equipes de base na fi-
delidade a Jesus Cristo e a Classe Trabalhadora, e mantem a casa como
no desejo de Romano.
Suas palavras que uniam fé e vida chegavam aos trabalhadores e
trabalhadoras de várias formas. Uma linda mensagem de Pentecostes
escrita em 1982 para um jornal do movimento, nos aponta sua
espiritualidade:

Pentecostes: veio e vem o Espírito Santo


O espírito santo vem no momento em que todos, juntos, o
esperam. Não é um acontecimento individual, mas ligado,
acima de tudo, a existência de uma organização. É nesse
ambiente coletivo que a língua de fogo pousa sobre cada
um dos que estavam esperando juntos, conscientes das
dificuldades da situação e das tarefas a assumir a trans-
formação que se realiza em todos os presentes provocam
a vida admiração. Cada um ouve o seu próprio idioma, de
repente, corajosos. Estavam sem compreender e ficam, de
repente, capacitados. Estavam sem rumo e seguros e, de
repente, todos percebem o alcance da sua missão.
Há uma conclusão a tirar da esfera coletiva do Pentecostes:
quanto mais a classe operária for unida e organizada,
tanto mais estará preparada e disponível para receber o
Espírito Santo. Os efeitos de coragem e compreensão são
importantes para nós, trabalhadores, e para nossa classe.
Não temos um enorme medo a vencer? Não precisamos
nos capacitar? Não temos dificuldades em descobrir os
rumos E o alcance das nossas lutas? Constatamos a pre-
sença do espírito santo, animando e esclarecendo nos-
sas iniciativas, quando simples trabalhadores do campo
e das cidades sustentam, com vantagem, debates duros
diante dos patrões, dos sábios, dos policiais, dos políticos
opressores, sem recursos, enfrentam na luta, os riscos de
perder o emprego, e mesmo a vida, para serem solidários
com os companheiros explorados e injustiçados.
Antes, disseram, na vinda do espírito santo, que os após-
tolos e os fiéis estavam com a cabeça cheia de vinho.

254
Hoje, dizem que os militantes operários são cabeças du-
ras, são subversivos. Mas é preciso persistir, compreendo,
no meio da classe, a promessa do Senhor. “Derramarei o
meu espírito sobre toda criatura”. Precisamos estar cons-
cientes de que impulsionamos o reino de Deus quando,
organizados com os companheiros, estamos lutando pela
justiça pela verdade pela igualdade de todos. (Chaparro,
2006, p. 225).

Padre Romano, é vida pulsante, foi palavra aos oprimidos no mun-


do do trabalho e seu nome será sempre uma casa, um abrigo a quem
precisa recorrer a esperança que organiza, mobiliza, congrega. O pa-
dre que nunca assumiu uma paróquia para fazer no chão da fábrica
sua catequese é casa, palavra e vida. Numa realidade dura, exploradora
e injusta, Romano foi a gota d’água no bico do pássaro mensageiro,
Romano foi um místico, um apaixonado por Jesus Cristo operário.

REFERÊNCIAS
ACO – AÇÃO CATÓLICA OPERÁRIA. História da Classe Operária no
Brasil. 4º Caderno. Rio de Janeiro, 1985.

CHAPARRO, M. C. Padre Romano, profeta da libertação operária: a


saudade que impulsiona. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
ACO. História da ACO, fidelidade e compromisso na classe operária.
1ª ed. Rio de Janeiro- RJ, 1987.

ACO. Assumir - Movimento de trabalhadores Cristãos. “A JOC diante


dos acontecimentos de Primeiro de Abril”, 1964. Ano XXX – setembro/
dezembro. Rio de Janeiro, 2008.

255
ACO. Assumir - Movimento de trabalhadores Cristãos. Ano XXXIII –
janeiro/abril. N.88. p.27. Rio de Janeiro, 2011.

CHAPARRO, M. C. Padre Romano, profeta da libertação operária: a


saudade que impulsiona. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.

MONTEIRO, M. A. S. Ação Católica Operária, fé e luta em tempos


difíceis no Nordeste do Brasil. Universidade Federal de Pernambuco:
Centro de Ciências Sociais Aplicadas, 1992. 321 p.

MONTENEGRO, Antônio Torres. Travessias – Padres Europeus no


Nordeste (1950-1990). Recife, CEPE, 2019.

PRIGOL, Mário. Trabalhadores comprometidos por Solidariedade


e Paz. Rio de Janeiro: MTC, 2009.

256
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em uma breve correspondência trocada com um professor que en-


sinou no Instituto de Teologia do Recife (ITER), Instituto fechado em
1989, refletira em uma de suas cartas dedicada à alguns amigos seus:

“Nos últimos decênios estamos assistindo a um fenô-


meno, que é cultural, existencial e ubíquo: põem-se ao
centro das atenções “o presente”, os momentos fragmen-
tados da realidade, os indivíduos atomizados, os sucessos
contraditórios das tecnologias, a economia desligada de
qualquer perspectiva humanista. Vive-se num “presente”
que não tem passado e não olha para o futuro! Um “hic et
nunc” no qual estamos imergidos e que não admite con-
siderar nenhuma outra possibilidade de mundos diferen-
tes daquele que temos. O realismo impõe de olhar para o
mundo como é, e de viver nele sem ilusões.
Esta cosmovisão, rigidamente atemporal e acriticamen-
te realista, parece dominar o nosso mundo e condená-lo
a repetir-se a si mesmo como um eterno Sísifo que nem
tenta mais levar para o topo da montanha a pedra da sua
condenação. Vivemos num mundo de incertezas, inse-
guranças e medos! E parece que estamos condenados,
para sempre, a sobreviver num formigueiro em que não
há e não pode haver sentido para a existência humana!”
(Gilseppe Stacone).

Os místicos (as) que foram aqui apresentados (as), sabemos, es-


tiveram bem situados (as) em seu tempo, em seus contextos, em suas
realidades. Suas vidas sempre estiveram ao centro das atenções, pois
refletiram em seus ensinamentos, em suas sabedorias o “presente”, os
momentos fragmentados da realidade bem como o desligamento da
vida desligada de qualquer perspectiva humanista.

257
Esses místicos (as), sempre souberam, que viviam num mundo de
incertezas, inseguranças e medos! Sentiam o quanto toda essa situa-
ção era de achatamento das existências, e por certo tinham consigo a
pergunta: é possível aos indivíduos desse tempo abrir suas mentes e
corações ao sonho de uma vida boa e solidária? O professor e amigo
Gilseppe Stacone nessa breve visão de mundo acima, não nos deixa
perder as esperanças, pois, em qualquer contexto historicamente de-
terminado, as realidades sempre foram muito duras. Ele joga com a
ideia de “parece que estamos condenados...” Será que estamos mesmo?
Os Místicos (as) não encarceraram a esperança das pessoas e nem
do mundo, condenando-os assim como o professor Gilseppe também
não o faz, mas, nos alerta quanto a nossa existência no mundo, e que
se faz necessário a vigilância evangélica e o compromisso profético
com a vida.
Os Místicos(as) aqui brevemente perfilados(as) ousaram dizer que,
sem dúvida alguma, a vida humana é melhor quando ela se faz de so-
nhos, lutas e fé comprometidas. Para concluir essas considerações,
destaco o que reflete a professora Zélia Cristina, na p. 93 deste livro,
sobre a mística da Ir. Adélia, pois os Místicos (as) artistas sabem bem
o valor dos contornos com os quais a vida vai sendo delicadamente
feita...

“Com as cores e as formas ela revelava sua visão do mundo


e do divino
que sempre deviam estar em comunhão.
Em seus trabalhos a figura de Jesus não era a principal,
mas inspiração e presença junto as lutas por um mundo mais pleno de vida.
Se ao longo dos anos as características de suas pinturas mudaram
revelando as influências das experiências que viveu na missão, os traços que perma-
necem como os grandes olhos das figuras, a profusão de cores,
a valorização da cultura popular, a riqueza de detalhes e o simbolismo de cada ima-
gem, demonstram, a riqueza da sua espiritualidade,
a força de sua esperança e o compromisso
com os valores que acreditava e vivia”.

258
Assim são os Místicos (as)
A desenhar suas asas.

Os organizadores.

259
Tipografias
PT Sans
PT Serif

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