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VESTÍGIOS

EM
MOSAICO
A extensão universitária
como parte do fazer acadêmico
VESTÍGIOS
EM
MOSAICO
A extensão universitária
como parte do fazer acadêmico

Maria Ester Ferreira da Silva Viegas


Saulo Luders Fernandes
Virginia da Silva Santos Amaral
Cicero Ferreira de Albuquerque
(Organizadores)

MACEIÓ, AL, 2019


UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
Reitora
Maria Valéria Costa Correia

Vice-reitor
José Vieira da Cruz

Diretora da Edufal
Elvira Simões Barretto

Conselho Editorial Edufal


Elvira Simões Barretto (Presidenta)
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Cid Olival Feitosa
Cristiane Cyrino Estevão Oliveira
Nilton José Mélo de Resende
Ricardo Carvalho Cabús
Talvanes Eugênio Maceno
Tania Marta Carvalho dos Santos

Coordenação Editorial: Fernanda Lins


Imagem da capa: colhida Por Virginia Amaral do acervo Coleção de
Arte Popular: A Invenção da Terra Coleção de
Tania de Maya Pedrosa no Acervo da Superintendência
do IPHAN/AL - Artista Antônio Elias da Silva (Mestre
Saúba) 1953, Campina Grande/PE
Revisão de Português e ABNT: Eduarda Rocha Góis da Silva
Revisão e capa: Virgínia da Silva Santos Amaral
Diagramação: Ed Vasconcelos
Supervisão gráfica: Márcio Roberto Vieira de Melo
Catalogação na fonte
Universidade Federal de Alagoas
Biblioteca Central - Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecária Responsável: Helena Cristina Pimentel do Vale – CRB4 - 661
V583 Vestígios em mosaico / Maria Ester Ferreira da Silva Viegas ... [et al.]. – Maceió :
EDUFAL, 2019.
186 p. : il.

Inclui bibliografia.
ISBN:978-85-5913-173-4.

1. Ciências sociais. 2. Campesinato. 3. Psicologia. 4. Quilombolas. 5. Adoção.


4. Exclusão social. I. Viegas, Maria Ester Ferreira da Silva, org. II. Fernandes,
Saulo Luders, org. IV. Amaral, Virginia da Silva Santos, org. V. Albuquerque, Cícero
Ferreira de, org.

CDU: 36

Direitos desta edição reservados à Editora afiliada:


Edufal - Editora da Universidade Federal de Alagoas
Centro de Interesse Comunitário (CIC)
Av. Lourival Melo Mota, s/n - Campus A. C. Simões
Cidade Universitária, Maceió/AL Cep: 57072-970
Contatos: www.edufal.com.br | contato@edufal.com.br | (82) 3214-1111/1113
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO............................................................................ 7

1. A PRESENÇA DO NEGRO NA FORMAÇÃO DO


CAMPESINATO DO SEMIÁRIDO ALAGOANO.................. 17
Cicero Ferreira de Albuquerque

2. TERRITÓRIO: SOBREVIVÊNCIA MATERIAL E


CULTURAL DE UM POVO.................................................... 45
Maria Ester Ferreira da Silva Viegas

3. FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM SERVIÇO SOCIAL E


A RELAÇÃO ENTRE TEORIA E PRÁTICA MEDIADA
PELA PESQUISA ..................................................................... 65
Érika Flávia Soares da Costa

4. QUESTÃO AGRÁRIA E “QUESTÃO SOCIAL”:


APONTAMENTOS E RELAÇÕES DE SUAS RAÍZES
HISTÓRICAS E TEÓRICAS-CONCEITUAIS........................ 83
Karina Lima Duarte Neves Rocha

5. O PROCESSO DE ADOÇÃO NO BRASIL E SEUS


REFLEXOS NO AUMENTO DA “ADOÇÃO À
BRASILEIRA”.......................................................................... 97
Francyneide Sobreira de Souza
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

6. A PSICOLOGIA ENQUANTO CIÊNCIA E PROFISSÃO


NO SEMIÁRIDO BRASILEIRO E A RECASA COMO
EXPERIÊNCIA....................................................................... 107
Clariana Rodrigues Trabuco, Tatiana Henrique Santos,
Antônio César de Holanda Santos

7. ACESSO À SAÚDE NOS QUILOMBOS DO BRASIL


E EM ALAGOAS: DESAFIOS À IMPEMENTAÇÃO
DA POLÍTICA DE ATENÇÃO BÁSICA NAS
COMUNIDADES QUILOMBOLAS..................................... 127
Saulo Luders Fernandes

8. A RECONSTRUÇÃO DE LIMA BARRETO NA ESCRITA


DE CEMITÉRIO DOS VIVOS: QUANDO A OBRA
É, AO MESMO TEMPO, FRUTO DE EXCLUSÃO E
ENFRENTAMENTO............................................................. 137
Anne Karolina Fernandes Cavalcante Maia

9. DO EMOCIONAL AO ELETRÔNICO: OS MÚLTIPLOS


SUPORTES EM CUIDE DE VOCÊ, DE SOPHIE CALLE.... 155
Virginia da Silva Santos Amaral e Gilda Vilela Brandão

10. OUTRA FORMA DE COMPREENDER O TDAH: UM


OLHAR ANALÍTICO-COMPORTAMENTAL..................... 171
Lucas Costa Neves Rocha

6
APRESENTAÇÃO

Este livro é resultado de caminhadas e aspirações de professores


e alunos que construíram o Programa de Educação Tutorial (PET)
Núcleo de Estudos do Semiárido Alagoano (NESAL). O PETNESAL
foi criado em dezembro de 2010, resultante do Edital lançado pelo
MEC (Ministério da Educação e Cultura), Edital n° 09 - PET 2010.
Tal edital vinha para cobrir uma lacuna que havia se ampliado com a
expansão universitária, haja vista que a presença na Universidade no
interior do Estado de Alagoas demandava muitos questionamentos e
novas ordenações em relação à tríade “ensino, pesquisa e extensão”. Entre
outras coisas, o referido edital propunha a expansão de grupos PET
vinculados a áreas prioritárias e a políticas públicas de desenvolvimento
nas Instituições Federais de Ensino Superior como meio de combate às
desigualdades sociais e regionais, visando a ampliação da relação entre a
universidade e os moradores de espaços populares, assim como com suas
instituições. Esses grupos do PET passaram a ser denominados “PET/
Conexões de Saberes”. Esse edital intencionava também aprofundar a
formação de jovens universitários de origem popular como pesquisadores
e extensionistas, mirando uma intervenção qualificada em diferentes
espaços e estimulando a formação de novas lideranças que fossem
capazes de articular a competência acadêmica com compromisso social.
Dentre essas prerrogativas, o edital criou um lote em que contempla
exclusivamente estudantes de graduação oriundos de comunidades do
campo ou quilombolas. Foi dentro desta demanda que foi apresentada
a proposta do PETNESAL.
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

O Programa de Educação Tutorial Núcleo de Estudos do


Semiárido Alagoano tem como um dos seus princípios articular projetos
de estudos da realidade do semiárido alagoano que possibilitem ao
estudante, durante a formação acadêmico-profissional, intercambiar
saberes científicos e tecnológicos, artístico-culturais e ético-políticos
que resultem num exercício profissional cidadão, comprometido com
a transformação realidade em que irá atuar, de modo a contribuir para
o desenvolvimento local. O PETNESESAL almeja apresentar-se como
um espaço de discussão, planejamento e construção de estratégias para
que sejam capazes de pensar as questões que emerjam desta realidade,
suas particularidades, valores e potencialidades, estabelecendo relações
entre a comunidade acadêmica, o Estado, a sociedade civil organizada
e a população em geral, através de ações voltadas para a extensão, o
ensino e a pesquisa. O espaço do PETNESAL, assim, consolida um
dos princípios básicos da UFAL em sua expansão/interiorização:
implementar um Projeto Político Pedagógico inovador, centrado na
realidade local e na sua transformação. O semiárido alagoano, diverso,
dinâmico e cheio de possibilidades, carece de pesquisa, de sistematização
e de publicação de seus resultados.
A articulação entre ensino, pesquisa e extensão abre espaço a
uma formação integrativa dos discentes participantes do projeto, pois
esses têm a possibilidade de perpassar em uma ação conjunta sobre os
pilares que amparam o saber acadêmico, já que participam dos grupos
de estudos orientados, elaboram propostas de investigação e ação nas
comunidades. Nesses seis primeiros anos, passaram pelo PETNESAL
vários alunos dos cursos de Psicologia e Serviço Social, todos admitidos
por processos públicos de seleção. Eles foram os multiplicadores e a
ponte entre o saber acadêmico e os saberes das comunidades.
Ao apresentar essa proposta de Tutoria, o grupo inicial de
professores que permitiram a concretização dessa proposta e que não
poderíamos deixar de citar foram: Maria Ester Ferreira da Silva Viegas,

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VESTÍGIOS EM MOSAICO

Saulo Luders Fernandes, Mailiz Garibotti Lusa, Cícero Ferreira de


Albuquerque, Gerson Alves, Cícero Adriano, Lucas Pereira. Desse
conjunto, alguns estiveram mais presentes a exemplo da professora Dra.
Maria Ester Viegas – Geógrafa (tutora do grupo até julho de 2016), Dr.
Saulo Luders - Psicólogo (atual tutor), Dra. Mailiz Garibotti Lusa –
Assistente Social, e Cícero Albuquerque – Sociólogo
O PETNESAL está lotado na Unidade Acadêmica de Palmeira
dos Índios, onde funcionam os cursos de Psicologia e Serviço Social. O
seu caráter interdisciplinar é um desafio constante e uma necessidade
para que o grupo possa existir. A ideia da interdisciplinaridade é
muito forte dentro do grupo, sendo vista e forjada no sentimento da
metodologia da bricolagem, do francês bricoleur, que significa uma
espécie de trabalhador manual, um faz tudo que lança mão de todas
as ferramentas disponíveis para realizar uma tarefa. A bricolagem
possibilita a produção do heterogêneo, da diversidade, no momento
em que não prioriza determinados saberes em detrimento de outros, ao
contrário, compõe com os saberes envolvidos reflexões para a resolução
de problemáticas e para a transformação da complexidade do real. E
é neste fazer com as diferenças e no cuidado a diversidade que está o
potencial de criação do bricoleur.
Assim, a bricolagem tem um caráter interdisciplinar que
nos auxilia para que avancemos dentro da complexidade que nos
rodeia e possamos pinçar problemáticas, afunilando-as ao nível de
compreensão do cotidiano. Esse livro tem esse caráter de mosaico,
construído através de um trabalho de bricoleur em que todos buscam
sua posição de pesquisador dentro da teia da realidade, nos lugares
sociais, onde constroem redes de relações com outros pesquisadores
e outros atores sociais. Na bricolagem é permitido que as
circunstâncias deem formas aos métodos empregados, respeitando os
diversos olhares e as diversas experiências que permeiam a sociedade
multicultural contemporânea.

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

O que se pretende com esse livro não é construir verdades, ou


validar pressupostos universalizantes sobre o mundo, mas compreender
como os diferentes agentes sociais ao atuarem no cotidiano, com
suas artes de fazer, produzem e reproduzem o que é imposto pelos
discursos hegemônicos. Porém, essa arte de fazer é discreta e pode
passar despercebida a um olhar que compreende de forma passiva e
pejorativa o homem e a mulher do cotidiano. Quando percebidos por
um observador meticuloso que os coloca em um lugar de produtores
do real, outro nível de análise entra em jogo. Esses sujeitos passam a
ser compreendidos como atores que se apropriam dos discursos, dos
mecanismos e das práticas dominantes, nem sempre a integrá-las a sua
realidade de forma imediata e ingênua, mas de modo oposto atuam por
um rol de intervenções que, por vezes, as modificam e as fazem agir a
seu proveito. Na inversão dos signos dominantes e na configuração de
práticas de resistência, que de forma astuciosas introduzem elementos
surpresas, nem sempre previsível à ordem. Assim, este livro/mosaico,
traçado a várias mãos, acredita em uma postura epistemológica
horizontalizada que pressupõem: o encontro entre saberes, a troca de
experiências e a coabitação de concepções interpretativas como alicerces
à construção de saberes possíveis à intervenção e à compreensão da
realidade. Tal projeto epistemológico auxilia na elaboração de um
regime participativo e democrático entre os saberes, que objetiva como
horizonte ético-político a autonomia dos atores envolvidos. Autonomia
compreendida não como algo que se tem propriedade ou se possui
de forma individualizada, mas enquanto processo a ser negociado
constantemente com os outros. A autonomia é exercida no espaço
público, partilhada com as diferenças, na exigência de um outro ao
diálogo, que traz consigo suas concepções e necessidades, na produção
de relações que podem ora limitar, ora intensificar a nossa liberdade.
Então, assim, em forma de mosaico esse livro tem diferentes olhares e
diferentes problemáticas em seu bojo.

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VESTÍGIOS EM MOSAICO

A questão da presença do negro no campesinato alagoano


é discutida no capítulo “A Presença do Negro na Formação do
Campesinato do Semiárido Alagoano”, em que o autor, Cícero
Albuquerque, evoca a presença do Quilombo dos Palmares como um
exemplo do campesinato em Alagoas; fazendo referências à importância
do negro na formação do campesinato alagoano e enfatizando a
participação desses no povoamento e desenvolvimento da agricultura
campesina do Semiárido, discussão aprofundada em sua tese de
doutorado, “Camponeses e canavieiros: razões e significados da migração
do Semiárido para o corte da cana na Zona da Mata alagoana”.
Ainda com o olhar dentro das questões dos povos tradicionais
do semiárido alagoano, o capítulo “Território, sobrevivência material
e cultural de um povo” trata das questões das terras indígenas na cidade
de Palmeira dos Índios. A autora, Maria Ester Viegas, ressalta o território
como categoria essencial de análise, tomando como base o conflito
enfrentado pelo Cacique Xiquinho, da Comunidade Xukuru-Palmeira.
Nesse capítulo, o entendimento do conceito de território é o cunhado
por Milton Santos: o território usado é o chão mais a identidade. A
identidade é o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence. O
território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas
materiais e espirituais e do exercício da vida.
A inserção da universidade através da expansão dentro do
interior de Alagoas, suscitou diferentes indagações e inquietações em
relação ao desempenho profissional, à grade curricular e às demandas
locais. Nesse caminho, a petiana Erika Costa discute, no capítulo
“Formação profissional em serviço social e a relação entre teoria e
prática mediada pela pesquisa”, a dimensão investigativa, assim como
a relação existente entre essa dimensão e o exercício profissional do/a
assistente social. A discussão perpassa questões no bojo da formação e da
prática, problematizando e articulando a pesquisa no âmbito acadêmico
e posterior à formação enquanto subsídio à prática, considerando as

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

limitações e possibilidades postas no contexto de luta pela defesa da


indissociabilidade entre teoria e prática.
Com o olhar cruzado nessa direção de contextualidade, no
capítulo “A psicologia enquanto ciência e profissão no semiárido
brasileiro e a recasa como experiência”, a petiana Clariana focaliza
sua discussão questionando de que forma psicólogas e psicólogos têm
considerado o semiárido brasileiro ao pesquisarem e atuarem nesse
contexto. Nesse texto, ela se propõe a discutir sobre a inserção ético-
política da Psicologia no semiárido, sobretudo nos contextos e processos
educativos. Para tanto, a autora aborda brevemente alguns elementos
da configuração geográfica, histórica e política sobre o semiárido e
sobre a interiorização da Psicologia no Brasil, debatendo sobre alguns
pressupostos e experiências em torno da educação contextualizada para
a convivência no semiárido alagoano, visando destacar a importância da
inserção de psicólogas e psicólogos nesse âmbito.
Em continuidade com os estudos sobre o semiárido e os povos
tradicionais da região do agreste alagoano, o professor Saulo Luders
Fernandes volta olhares para o direito ao acesso à saúde das comunidades
quilombolas no capítulo “Acesso à saúde nos quilombos do Brasil e
em Alagoas: desafios à implementação da política de atenção básica
nas comunidades quilombolas”, o autor apresenta informações
nacionais quanto as condições de saúde destas comunidades. Neste
trabalho, o Saulo Luders reflete sobre os efeitos da implementação da
política de atenção básica nos territórios quilombolas e sua atuação para
mitigação do acesso ao direito à saúde nestas comunidades. No decorrer
do texto, o autor caracteriza as condições e acesso à saúde da população
quilombola no contexto alagoano e discute sobre a necessidade de
fortalecimento da política de atenção básica nas comunidades da
região e realiza o desfecho do trabalho problematizando os desafios
e as possibilidades para o avanço no acesso à saúde das comunidades
quilombolas alagoanos, enfatizando a luta pela garantia de direitos e a

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VESTÍGIOS EM MOSAICO

mitigação das desigualdades sociais como caminho a ser trilhado por


essas comunidades no reconhecimento político de sua existência.
Também situado na área de Psicologia, o trabalho da petiana
Anne Karolina Fernandes Cavalcante Maia, discente de psicologia,
dedica-se à análise do livro de Lima Barreto, Cemitério dos Vivos. No
capítulo intitulado “A reconstrução de Lima Barreto na escrita de
Cemitério dos Vivos: quando a obra é, ao mesmo tempo, fruto de
exclusão e enfrentamento”, a autora objetiva refletir como a obra
analisada apresenta-se como produto da exclusão social vivida pelo
escritor e também como forma de enfrentamento às experiências
cotidianas de violência vividas pelo autor no início do século XX
no Rio de Janeiro, violências essas que culminam na internação de
Lima Barreto em um hospital psiquiátrico. Assim, a autora propõe
um olhar crítico sobre as vivências biográficas de Lima Barreto,
artista negro e proletário, e na relação com a obra do autor, que
expressa as estratégias de enfrentamento que ele produziu para lidar
com as contradições de uma sociedade racialmente hierárquica e
estruturalmente excludente.
Também compõe esse livro o texto de Lucas Rocha, petiano
do curso de Psicologia. Nele, o autor discute em “Outra forma de
compreender o TDAH: um olhar analítico-comportamental”, sob a
ótica da Análise do Comportamento, a utilização abusiva dos fármacos
no tratamento das problemáticas relacionadas à aprendizagem.
Segundo Rocha, a medicalização da aprendizagem tem se configurado
como um dos grandes problemas da hodiernidade na escolarização, seja
no âmbito do ajustamento do indivíduo ao ambiente escolar ou em
relação ao processo de aprendizagem. Para tanto, o autor se utiliza de
pressupostos da ótica analítico-comportamental e acredita que essa linha
da psicologia pode contribuir para o desenvolvimento e a aplicação de
estratégias menos onerosas e nocivas para lidar com o Transtorno por
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Voltando a questão da inserção do Serviço Social no mundo


rural, a colaboradora petiana Karina Duarte nos oferece uma discussão
muito pertinente sobre as intervenções do Serviço Social no espaço
rural, visto que a questão agrária exige da profissão, como as demais
áreas de intervenção, uma leitura crítica da realidade e uma prática
eficaz. A autora busca, então, essa reflexão na discussão do capítulo
“Questão Agrária e ‘Questão Social’: apontamentos e relações de
suas raízes históricas e teóricas-conceituais”. Entretanto, responder
satisfatoriamente a tal demanda tem se configurado em uma tarefa
árdua, em decorrência da escassez de aportes teóricos que busquem, na
gênese da questão agrária, as causas das contradições no campo.
No capítulo “Processo de Adoção à Brasileira”, a petiana
Francineide Sobreira de Sousa discute as ilegalidades no processo de
adoção no Brasil. Tema muito caro a nossa sociedade, a adoção no Brasil
tem demonstrado alguns avanços, mas as irregularidades ainda existem
e são apresentadas e discutidas dentro desse capítulo, convidando-nos
a refletir o quanto precisamos trabalhar para tornar legítima a “adoção
afetiva”. “Não basta somente amar, tem que legalizar”, essa é uma das
ideias discutidas no capítulo.
Já o capítulo “Do emocional ao eletrônico: os múltiplos
suportes em cuide de você, de Sophie Calle”, Virginia da Silva
Santos Amaral e Gilda Vilela Brandão analisam a obra Cuide de você
(2007), da artista Sophie Calle, a qual tem, como ponto de partida um
e-mail que a autora teria recebido de seu companheiro, comunicando
o fim da relação. A distribuição deste e-mail suscitou diversas leituras
performáticas. São os vídeos dessas performances que são analisados com
o intuito de compreender quais novos sentidos surgem no momento da
passagem do código escrito para o código visual. Também se propõe a
observar como, a partir da leitura em voz alta, o corpo também contribui
para a interpretação do texto. Para isso, as autoras recorreram à obra
de Paul Zumthor, Performance, recepção, leitura (2000), para melhor

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VESTÍGIOS EM MOSAICO

compreender o papel do leitor e da leitura no texto literário. Os estudos


de Larrosa (2002) também foram indispensáveis para entender Cuide
de você como uma obra que surgiu da experiência do autor que suscita
experiência no leitor.
Os textos que compõem este livro não são os únicos frutos que
foram gerados pelo PETNESAL. Por entendemos que é impossível
viver uma experiência tão rica sem compartilhar com o conjunto da
universidade e da sociedade local os resultados obtidos e sem debater
os temas que lhe são subjacentes, foi assim que surgiu o “Fala Negro”,
encontro anual de troca de experiências acadêmicas, envolvendo
discentes, docentes e representantes de comunidades e movimentos
sociais, hoje uma das marcas que identificam o PETNESAL dentro
da UFAL de Palmeira dos Índios. Atualmente a discussão é feita nos
últimos tempos como “Fala Negra”, entendendo a importância da
discussão de gênero dentro da temática étnico-raciais.
O que se materializa neste livro serve para registrar alguns entre
os tantos temas que suscitam reflexões no interior do PETNESAL
e da UFAL, na Unidade Acadêmica de Palmeira dos Índios. A
diversidade de temas e de abordagens indicam claramente duas coisas:
a pluralidade do programa e o respeito às diferentes perspectivas
teóricas que se apresentam.

Os Organizadores.

Palmeira dos Índios, março de 2019.

15
1
A PRESENÇA DO NEGRO NA
FORMAÇÃO DO CAMPESINATO DO
SEMIÁRIDO ALAGOANO1
Cicero Ferreira de Albuquerque

1. ESCLARECIMENTOS INICIAIS

Estou me atrevendo a escrever sobre um tema insuficientemente


investigado em Alagoas. O campesinato alagoano é pouco estudado, são
escassas as pesquisas sobre a sua formação e sobre a sua existência, fato
que se agrava quando nos afastamos da zona litorânea e canavieira. O
campesinato do Semiárido é quase um ilustre desconhecido, não só do
grande público, mas também de muitos historiadores e cientistas sociais
do Estado. Este trabalho visa contribuir para o enfrentamento desse
estado de coisas e acontece a partir de dois enfoques: a importância
do negro na formação do campesinato alagoano e, com ênfase, a
participação destes no povoamento e desenvolvimento da agricultura
campesina do Semiárido.
Como temos carência de fontes em Alagoas, vali-me de estudos
realizados nos vizinhos estados de Sergipe (Urbino Viana, 1935; Francisco
Carlos Teixeira da Silva, 1981, 1997) e Pernambuco (Kalina Vanderlei

1
O presente texto é um recorte da tese de doutoramento “Camponeses e canavieiros: razões e significados
da migração do Semiárido para o corte da cana na Zona da Mata alagoana”, apresentada pelo autor
em 2016 ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG).
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Paiva da Silva, 2003; 2001). Dos autores alagoanos, Dirceu Lindoso é


aquele com quem interlocutei mais na realização deste artigo. Com ele
tenho encontros e desencontros, várias são as avenças e as desavenças,
elas aparecerão no decorrer das próximas páginas. Entretanto, a Lindoso
demando louvores pelo conjunto de sua obra, particularmente, pela
iniciativa pioneira de escrever sobre o Sertão alagoano.

2. QUILOMBO DOS PALMARES: SÍMBOLO DA LUTA NEGRA


E CAMPESINA DO BRASIL

Não é possível investigar o campesinato no Nordeste brasileiro


sem considerar a presença do negro na sua gênese. Em Alagoas,
conforme Diégues Júnior (2012), os primeiros negros chegaram para o
trabalho na cana-de-açúcar vindos de Angola, Congo, Rebolo, Costa,
Mina, Bengala, Caxangue e de Moçambique. Esses negros chegaram
ao Brasil trazendo experiências no cultivo de vários gêneros, bem como
conhecimento de metalurgia e outras especialidades, porém grande
parte de seu contingente serviu no eito: plantio, limpa e corte da cana.
Não só de cana vivia a colônia, era preciso produzir alimentos
para a sobrevivência da escravaria, dos senhores e de toda a população
que só crescia nas novas terras. A experiência campesina trazida da África
foi importante na produção que alimentou o Brasil colônia2. Há uma
ampla literatura sobre essa produção feita aos domingos e dias santos.
Com o tempo, em diversas fazendas, os escravos alcançaram mais dias
de trabalho, mais roças e autonomia sobre os seus produtos. Diferente
do que indicou Ciro Flamarion Cardoso (1988), isso significou bem
mais do que uma brecha no sistema monocultor/escravocrata, pois,
no seio da sociedade escravocrata, em diversas circunstâncias, os
2
Índios e pobres livres também produziram alimentos, utilizados para o próprio consumo, como também
voltados para o consumo de outros. Foram os pobres livres, através de suas roças, os responsáveis pelo
abastecimento colonial.

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VESTÍGIOS EM MOSAICO

negros foram escravos e camponeses. Entretanto, registrar a presença


campesina do negro no período da escravidão é mais do que atestar
que eles plantavam para a própria subsistência ou que sua produção se
emoldurava na estratégia senhorial de retenção da mão de obra escrava
no interior de suas propriedades. São muitos os registros de que os
escravos produziam para o próprio consumo e para o mercado.
A escravidão foi um instituto de força, de opressão e privações
várias, a principal delas era a ausência de liberdade. Por isso, no
cotidiano, os escravos desenvolveram vários meios de resistência,
insatisfação e revolta contra a dominação e a exploração a que estavam
submetidos. No repertório da insubordinação, constavam também “[...]
as insurreições; as agressões perpetradas por escravos, contra feitores
e senhores; os suicídios; a recusa de trabalhar, ou simplesmente o
afrouxamento no trabalho” (SANT’ANA, 1989, p. 30 - grifos do autor).
A fuga tornou-se um expediente comum e forte, ameaçou de colapso
a economia açucareira e colocou em xeque o poder dos senhores de
terra. A grande quantidade de matas virgens representou um convite
permanente à evasão.
No interior das matas, surgiram os mocambos3, comunidades
insurgentes e, em seguida, os quilombos, organização social e política
máxima dos rebeldes cuja existência consta ser da segunda metade
do século XVII. Por representarem ameaça ao status quo, as rebeldias
cotidianas no interior das fazendas, as fugas e as organizações sociais e
políticas dos fugitivos foram gravemente perseguidas pelos senhores de
terra e pela Metrópole.
A resistência à opressão, a luta por liberdade e realização de um
projeto campesino são elementos compostos nas fugas dos escravos,
3
Mocambo é um termo de origem africana utilizado para designar as moradias de negros, índios e pobres
livres no interior e nas margens dos centros urbanos do Nordeste no período colonial. Conforme Silva
(2003, p. 105), “Mocambo ou mucambo é a palafita construída à beira de água, ou a choça à base de
taipa que serve às populações marginais do litoral pernambucano. (...) o mucambo do pobre, faz uma
referência direta ao mocambo do negro fugido”.

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

mas poucas vezes reconhecidos e como tal valorizados. O Quilombo


dos Palmares foi a mais importante experiência de resistência negra-
popular e também o mais original e intenso experimento campesino
de todos os tempos no Brasil. Os palmarinos eram conhecidos por
seus inimigos, eles são descritos como “grandemente trabalhadores”.
A agricultura era uma de suas principais atividades, através dela
faziam estoques para os períodos de guerra e inverno. A fraqueza
dos palmarinos eram as suas roças. Carneiro (2011, p. 33) cita um
parecer do ex-governador da Província de Pernambuco, João de
Souza, de 1687, no qual afirma que “o mais sensível mal” e a “maior
opressão” que os negros poderiam sofrer era a destruição de suas
lavouras. Eles “[...] plantavam feijão, batata-doce, mandioca, milho,
feijão, favas, mandioca, amendoim, batatas, cará, bananas, abóboras,
ananases, e até fumo e algodão (CARNEIRO, 2011, p. XLII). A
lavoura mais importante era o milho que lhes fornecia duas safras
anuais. Também plantavam cana, arroz, além das atividades de caça,
pesca e a criação de animais domésticos, como porcos e galinhas,
e colhiam diversos frutos na mata, além de mel de abelha e azeite
das palmeiras. Enfim, “[...] o quilombo constituiu, certamente, uma
lição de aproveitamento da terra, tanto pela pequena propriedade
como pela policultura, ambas desconhecidas na sociedade oficial”
(CARNEIRO, 2011, p. XLVI).
Nesses termos, não apenas a busca de liberdade atraía e mantinha
o negro no Quilombo. A busca de uma vida em melhores condições
também deve ser considerada como causa fundamental:

A vida nos quilombos não deve ser romantizada, mas


relacionada com as condições médias de existência
conhecidas habitualmente pelos cativos na escravidão
colonial. De produtividade limitada por suas próprias
determinações sociais e materiais, a horticultura
quilombola garantiria aos mocambeiros, com menos
trabalho, abastecimento alimentar significativamente

20
VESTÍGIOS EM MOSAICO

superior ao conhecido pelos cativos das cidades


e campos. A realidade alimentar nos quilombos
estáveis seria superior à da própria civilização livre,
pobre, sobretudo urbana (MAESTRI; FIABANI,
2008, p. 76).

Palmares foi uma experiência ímpar, que durou cerca de cem


anos e chegou a ter uma população aproximada de trinta mil habitantes,
ocupando uma área estimada entre quarenta a cinquenta quilômetros.
Por seu volume e, principalmente, seus significados, era imperativo que
a ordem açucareira, escravocrata, latifundiária e colonial o combatesse
com rigor, e assim foi até o seu aniquilamento. A destruição do
Quilombo representou um revés não apenas para os sonhos de justiça e
igualdade de negros, índios e brancos pobres do Brasil Colônia, como
também o de triunfo dos opressores, sendo um freio histórico às lutas
de todos os oprimidos brasileiros.
No final do século XVII, o Estado colonial, fortemente
apoiado na iniciativa privada, conforme nos esclarece José de Souza
Martins (1994), avançava sobre os lugares mais recônditos do nosso
território e atuava sobre eles e as populações que os habitavam, sempre
com o objetivo de efetivar o seu projeto de exploração de todas as
possibilidades de riqueza que a Colônia pudesse gerar, bem como de
garantir que os usos já estabelecidos fossem preservados de qualquer
ameaça. Isso significava não só garantir o monopólio da terra, como
também reprimir e dizimar os povos resistentes. Do Litoral ao Sertão,
o projeto era um só:

A destruição de Palmares, o Estado negro, núcleo de


rebeldia que trazia intranquila toda a zona do baixo São
Francisco, como a necessidade de afastar o selvagem
contumaz, castigando-o severamente de suas investidas
contra os estabelecimentos ribeirinhos (VIANNA
1935, p. 35).

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

É relevante constatar que o combate ao negro nas matas e aos


índios que viviam no Sertão foram movimentos sincronizados. Ao
Estado colonial não bastava combater a rebelião negra, era preciso
destruí-la, aniquilá-la, isso tranquilizaria não só a região canavieira
e seus arredores, mas também “toda a zona do baixo São Francisco”
(VIANNA, 1935, p. 35), pois evitaria a migração para lá dos negros
sobreviventes aos ataques. Documentos da época, pareceres dos ex-
governadores da Província de Pernambuco, Aires de Souza de Castro
(1685) e Souto-Maior (1686) dão conta de que a perseguição aos negros
continuaria e realmente continuou. Lindoso sintetiza bem os motivos
disso na passagem que segue:

O Quilombo dos Palmares foi uma invenção social


que entrava em choque, ao estar onde estava plantado
territorialmente entre duas invenções coloniais que a ele
se contrapunham – a sociedade do pastoreio sertanejo
e a sociedade dos engenhos de açúcar – e que durante
mais de um século, talvez, ele evoluiu no sentido
contrário das duas sociedades coloniais, e com elas se
chocou (LINDOSO, 2011b, p. 278).

Os quilombos e as comunidades mucambeiras eram


incompatíveis com os dois universos, o da cana e o do gado. Eles
eram mais comuns não região canavieira, mas também estavam
presentes na foz do Rio São Francisco, intermediações de Penedo e
porta de entrada para o Sertão. Com a queda de Palmares, os negros
que não foram mortos ou recapturados, fugiram ainda mais. Ao
fazerem isso, forçaram o dilatamento das fronteiras e promoveram
uma outra interiorização, uma interiorização fora da ordem, buscando
terras onde pudessem viver em liberdade, onde o poder repressor
ainda não estivesse instalado ou encontrasse dificuldade de alcançá-
los e, por motivos semelhantes, índios e pobres livres faziam os
mesmos movimentos. A destruição de Palmares e de outros pequenos

22
VESTÍGIOS EM MOSAICO

quilombos existentes no território alagoano foi uma ação decisiva para


a constituição do campesinato negro, pardo, mameluco e mestiço que
hoje habita o Sertão e o Agreste alagoano.

3. A OCUPAÇÃO DO SEMIÁRIDO ALAGOANO

Sem maiores rigores, podemos identificar que diferentes


processos históricos produziram o povoamento e a sociedade que temos
hoje no Semiárido alagoano. Os primeiros habitantes, assim como de
todo o território brasileiro, foram os índios. Desde os tempos mais
primitivos, o elemento indígena ocupou essas terras. Segundo Brandão
(2015, p. 53), o Sertão alagoano era habitado pelos “[...] Xucurus, os
Vouvés, os Xocós, os Umãs, os Pipianos e os Coropotos” que haviam
chegado à região forçados por disputas e guerras contra outros povos
indígenas. Souza (1879) informa dos conflitos entre os Tapuias, os
Caetés e Tabajaras e de como tais choques influenciam, entre outras
coisas, na ocupação dos sertões por estes povos. A presença indígena
não foi, como querem alguns, usufrutuária apenas, além da colheita de
frutos havia também o cultivo de produtos como a mandioca, o milho
e feijões, além de criarem animais e tecerem redes com o algodão que
produziam (GUIMARÃES, 1989; LINDOSO, 2011b).
Muitas e cruéis foram as formas de violência praticadas pelos
portugueses e seus agentes contra os índios que viviam no Semiárido
brasileiro. No século XVI, já se tem notícias dessas agressões que duram
até os dias atuais. Mais duradoura, porém, tem sido a capacidade de
resistência de tantos povos e lutas que sobreviveram preservando sua
cultura e defendendo suas terras, outros foram dizimados.
Uma característica marcante da ocupação indígena do Semiárido,
distinção determinada em grande medida pelas peculiaridades do solo
e do clima da região, foi o caráter permanentemente móvel dessas

23
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

populações, mobilidade marcadamente intraregional. Conforme


Lindoso (2011a, p. 30), “o índio migrava por injunções culturais. O
índio, ao contrário do colonizador, possuía a cultura dos caminhos. [...]
A tribo era a comunidade do índio que caminhava. [...] A sua cultura
estava toda dirigida para o nomadismo”. Em circunstâncias excepcionais,
devido ao acirramento da disputa de terras ou nos períodos de secas
mais graves, também ocorreram migrações de volta aos vales dos rios
Paraíba e Mundaú ou mesmo para o Litoral, onde eram submetidos a
regimes de aldeamentos ou onde eram rechaçados.
Registro feito de que os índios foram os primeiros e legítimos
povoadores do Semiárido, o processo de povoamento que vem em
seguida, além de complexo, tem características particulares em cada
estado do Nordeste. Dialeticamente, vamos ponderar que esse novo
momento ocorreu em conflito com o primeiro e, em Alagoas, foram
realizadas por diferentes razões: a) a transferência para a região de
rebeldes sociais que lutavam por espaço na sociedade colonial, fruto
que eram das contradições intrínsecas ao modelo e de colonização
implantado nas zonas de plantation; b) as medidas de povoamento
empreendidas e orientadas por Portugal com vistas a garantir a posse, o
povoamento e o usufruto da terra.
As medidas colonizadoras de povoamento do Semiárido foram
efetivadas a partir de dois grupos bem distintos, mas complementares:
os brancos com posses, que traziam consigo o gado, alguns escravos e
agregados; e os brancos pobres, empregados na defesa da ordem e no
combate aos pobres rebeldes4.
Os fazendeiros, a partir de Penedo, margeando o Rio São
Francisco, embocaram pelo Sertão espalhando gado e currais sempre
que possível. Não há dúvida de que eles foram muito importantes na
4
Desse processo também participaram os jesuítas, cuja importância histórica para o êxito do modelo
dominante de povoamento da região é indiscutível, eles colaboraram com o projeto colonial cumprindo
papel destacado na contenção e disciplinamento dos índios e na pacificação da região, mas não cabe
chamá-los de povoadores.

24
VESTÍGIOS EM MOSAICO

ocupação do Semiárido, especialmente do Sertão. Eles não vinham só.


Os escravos negros também estiveram presentes em todo processo de
formação dos currais e de consolidação do gado, junto com vaqueiros e
outros agregados da propriedade, eles completavam a força do trabalho
empregada para a criação de gado. Os membros da repressão, brancos
pobres, tiveram origens diferentes, desde os bandeirantes que chegaram
por lá e se instalaram como proprietários de grandes, médias e pequenas
propriedades, até os milicianos e membros de forças oficiais catados
entre vadios da cidade do Recife, por exemplo (SILVA, 2003).
Por razões diferentes das razões dos rebeldes, outros três grupos
de brancos pobres participaram da povoação do Semiárido: a) os que
cometeram crimes na região canavieira e fugiram para o lugar mais
distante que puderam para refazer suas vidas; b) os que rejeitavam os
recrutamentos militares compulsórios promovidos pelas autoridades
constituídas; c) os que participavam do quilombo e não quiseram ou
não conseguiram retornar para os domínios dos poderosos senhores de
terra da região canavieira.
Por fim, destacamos a presença do negro no processo de
ocupação das terras do Semiárido. Não é possível determinar
quantos eles eram quando chegaram à região depois da destruição
do Quilombo dos Palmares ou de outros pequenos quilombos, nem
quantos haviam chegado antes ou depois de 1695, o certo é que no
Sertão e no Agreste alagoano foram formadas diversas comunidades
de negros5. A destruição do Quilombo intensificou a sua presença, isso
impactou muito a região: trouxeram um espírito guerreiro elevado,

5
Muitas dessas comunidades resistiram ao tempo e às pressões e existem ainda hoje. Elas ainda não
foram estudadas em profundidade, o processo de formação das mesmas é desconhecido. Em Poço
das Trincheiras, município sertanejo, por exemplo, encontramos o Povoado Jorge, formado por
remanescentes de um negro que escapou à destruição de Palmares com uma índia da região, “caçada
no mato”. Porém, em conversas informais com militantes do movimento negro alagoano há os que não
acreditam que as comunidades de remanescentes existentes no Semiárido datem do fim do Quilombo
dos Palmares, há quem diga que são mais recentes, do final do século XIX ou começo do século XX e
estariam ligadas a diferentes fluxos migratórios, inclusive, à construção de estradas de ferro na região
ou mesmo à abertura de estradas e rodovias.

25
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para o fugitivo da escravidão a guerra tinha sentido total (lutavam


para continuar vivos e livres, do contrário, era a morte ou o cativeiro);
tinham, desde a África, uma tradição de metalurgia; diferente dos
índios, eles construíam armas mais sofisticadas, também tinham larga
experiência na produção de alimentos, bem como na troca, venda e
compra de produtos, saber desenvolvido no contato com comunidades
circunvizinhas ao Quilombo.
Por fim, a presença dos negros no Semiárido fortalecia um
modelo de ocupação do solo semelhante àquele praticado pelos
indígenas, mas já bastante enfraquecido pelo combate realizado
pela sociedade do curral. Esse padrão também encontrava abrigo
entre os pobres brancos rebeldes, o que era uma ameaça efetiva ao
molde da sociedade agropecuária e aos interesses lusitanos. Por
tudo isso, os conflitos foram redimensionados e o Estado português
teve que se redobrar para enfrentar o conjunto de rebeldes do
Semiárido, agora fortalecidos pela presença dos guerreiros e
guerreiras quilombolas6.
O século XVIII foi um século especialmente grave para os pobres
da terra, dado o recrudescimento da repressão e o avanço do canavial e
dos currais, mas também foi o período no qual o campesinato se efetivou
enquanto segmento da classe trabalhadora brasileira (ANDRADE,
2014; PALACIOS, 2004; SCHWARTZ, 2001). A ocupação das regiões
litorâneas e dos vales do Paraíba e do Mundaú pelo latifúndio se tornou
mais grave, a presença de Domingos Jorge Velho e membros de suas
tropas, inclusive, afirmou como legado nas terras dos quilombos e nos
seus arredores um esquema armado para evitar que novos quilombos
surgissem e para coibir novas fugas, essas medidas tinham se revelado

6
As mulheres tiveram um papel destacado na sociedade quilombola dos palmares. Conforme Lindoso
(2011b, p. 21), a mulher quilombola [...] “não só dirigia os trabalhos agrícolas executados pelos
maridos na parcela recebida, como também vigiava a defesa do quilombo a que pertencia, e avaliava,
diante do Conselho de cada mocambo, a produtividade do trabalho de seus maridos, entregava a
produção da colheita e formava com eles, o grupo de defesa da cerca real”.

26
VESTÍGIOS EM MOSAICO

eficazes contra os índios.7 A efetividade delas voltou a ser testada, agora


contra os negros quilombolas. Tanto no entorno do Quilombo quanto
no Semiárido8, elas evitaram uma migração em fuga para o Agreste e
o Sertão, como serviram para afastá-los do vale do São Francisco para
pontos mais inacessíveis do território sertanejo, abrindo mais espaços
para a nova leva de gado que chegava.
Motivada pelos bons preços do açúcar no mercado internacional,
a Coroa editou, em 1701, uma Provisão Régia determinando o
afastamento do gado por dez léguas do litoral. O Sertão foi reinvadido
pelo gado e as terras devolutas abundantes, nos dizeres de Capistrano
de Abreu (1963), foram, então, ocupadas pelo latifúndio, surgindo
diversas novas fazendas de gado. Assim, apesar da resistência dos pobres
da terra, depois de três séculos de combate, no século XIX, o poder
branco oligárquico nas margens do São Francisco e em amplas parcelas
das terras do Semiárido estava consolidado, mas os índios, os negros e
as comunidades camponesas resistiram em parcelas de terras da região.
No Sertão, habitam os Geripankó, Kalankó, Karuazu, Katökinn e
Koiupanká; e, no Agreste, os Xukuru-Kariris (VIEIRA, 2015), além
das tantas comunidades quilombolas e dos milhares de pequenos
camponeses que são objeto desse estudo.
Os pobres da terra – índios, negros fugitivos e pobres livres –
ocuparam o Semiárido primeiro. Francisco Carlos Teixeira da Silva em
Camponeses e criadores na formação social da miséria: Porto da Folha no
Sertão do São Francisco (1820-1920) (1981) defende a precedência dos
pobres e das formas camponesas no Semiárido sergipano. Os resultados


7
Nessa época, a grande resistência dos índios do Semiárido já tinha sido quebrada, as forças de Domingos
Jorge Velho só desceram para enfrentar os quilombolas após submeterem os povos indígenas. Muitos
índios, inclusive, serviram na luta contra os negros, eles foram decisivos para o triunfo branco.

8
Os remanescentes quilombolas tomaram dois destinos. O primeiro e mais difícil foi tentar sobreviver
nas matas da região norte da província e para a fronteira Agreste de Pernambuco. Esse movimento vai
ser decisivo para a eclosão da Guerra dos Cabanos, 1832-1850, em territórios de Alagoas e Pernambuco
(ver Andrade, 2005; Lindoso, 2005). O outro, certamente o mais intenso, foi o Semiárido e os vales do
São Francisco.

27
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

de seus estudos asseguram-nos a efetividade histórica de algumas de


nossas assertivas sociológicas aqui realizadas e, principalmente, nos dão
a oportunidade de enfrentar alguns equívocos presentes no pensamento
social brasileiro sobre a ocupação e a formação social do Semiárido
nordestino. A calhar é a passagem que segue:

[...] no caso do Porto da Folha, como em outros pontos


do Sertão, a grande propriedade não se constituiu
inicialmente, em um entrave à expansão das formas
camponesas. Na verdade, a pequena produção parece ter
precedido o latifúndio. [...] a região, independentemente
das doações de sesmarias, foi ocupada por índios e
negros refugiados do avanço colonial, e também por
brancos livres, caboclos, que lá se localizaram (SILVA,
1981, p. 39).

O autor rompe com a tese defendida por Alberto Passos


Guimarães (1989, p. 110) de que, diferente de outros continentes,
no Brasil

[...] a propriedade latifundiária foi implantada


primeiro, e a pequena propriedade camponesa somente
vai surgir muito tempo depois, quando o rígido sistema
latifundiário começa a decompor-se. Essa teoria,
importada da Europa, talvez convenha para elucidar
os processos históricos e sociais de outros lugares
do mundo e até sirva para explicar casos pontuais da
formação social do Brasil, mas não tem força de lei e,
se tivesse, de nada valeria para esclarecer os processos
históricos dos vales do Paraíba, do Mundaú, nem do
Agreste e do Sertão alagoano.

Diferente do que acontece nos clássicos Capítulos da História


Colonial, de Capistrano de Abreu (1963), e A Terra e o Homem no
Nordeste, de Manuel Correia de Andrade (1998), Silva (1981; 1979)
não afirma que o gado foi o principal agente da colonização do Sertão,

28
VESTÍGIOS EM MOSAICO

nem endossa a tese da “civilização do couro”. Não se trata, porém, de


negar a importância do gado e nem a influência que ele teve para a
formação cultural da região, apenas de, a partir dos dados da realidade,
refutar o caráter de totalidade imputado ao gado, bem como reconhecer
a presença e a importância de outros atores.
Na mesma direção, Palacios (2004, p. 115), afirma que em sua
variedade, o campesinato representou “[...] um corpo subversivo dentro
da ordem sociopolítica colonial, um foco crescente de contradições”,
(grifo do autor), e que se configurou como portador do seu próprio
projeto e interesses. Porém, não obstante a presença renitente do
campesinato, não são poucos os ensaios que negligenciam a sua
importância e o seu significado social nas terras semiáridas do Nordeste.
A contribuição econômica do complexo agropastoril campesino, quase
sempre, foi relegada à condição de atividade subordinada às grandes
culturas, quando muito de atividade auxiliar. Com maior aspereza,
chegamos a afirmações que dizem que a agricultura “[...] desenvolveu-
se mediocremente à sombra dos ‘currais’” (ANDRADE, 1998, p.
180) ou que o gado “[...] foi o motor da descoberta do Sertão e do
crescimento econômico” da região (CARON; HUBERT, 2003, p.
103). Considerando tais passagens, o lugar da agricultura camponesa
sertaneja na história é muito ingrato. 9
Nesses termos, até quando o algodão ou o tabaco, mais o primeiro
e menos o segundo, emergiram e foram reconhecidos como atividade
econômica de destaque ou quando o milho e o feijão tornaram-se ainda
mais necessários para a subsistência dos que viviam na região e até fora
dela, o camponês cultivador dessas culturas foi descurado. A questão,
reiteramos, não é negar a hegemonia do gado, o próprio Silva (1997, p.
144) afirma que “Roças de alimentos; a criação de pequeno porte e as

9
Uma pequena, mas importante observação cabe nesse instante. Ao identificarmos passagens da obra de
Manuel Correia de Andrade, e ao expô-las de forma ácida, não estamos desconhecendo a contribuição
dele para a boa compreensão do mundo rural e do campesinato nordestino. Na verdade, estamos
chamando a atenção para o vigor que tem a tese da “civilização do couro” e para os seus limites.

29
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

lavouras comerciais do algodão e do fumo complementariam o cenário


da pecuária sertaneja [...]”, logo, a pecuária aparece como a atividade
econômica primeira. O que não é correto é submeter as demais culturas
às patas do boi ou reduzir a realidade local à lógica do couro e do curral.
São muitas as incompreensões que reduzem o papel pioneiro
do campesinato na ocupação da região e se somam às várias tentativas
de sua abjeção histórica. Esse equívoco está ancorado na tese da
“civilização do couro” e acomete até pesquisadores com visão acurada
dos fenômenos regionais, mas que não escapam de escorregos teóricos
sobre os verdadeiros significados da agricultura camponesa no
Semiárido nordestino10.
Francisco Carlos Teixeira da Silva escapa desse senso comum.
Mesmo quando, por exemplo, em acordo com Abreu e Andrade, afirma
que o modelo de latifúndio descomunal imposto pela colonização
não foi efetivo (além das grandes extensões de terra e, por vezes por
dentro delas, também existiram médias e pequenas posses, resultantes
de acordos de arrendamento entre particulares), sua abordagem não
está empenhada em demonstrar que o sistema de arrendamento é um
modelo resultante do consórcio da pequena com a grande propriedade,
mas, ao contrário, demonstra que ele é uma modalidade de existência
da média e da pequena propriedade no interior da sociedade colonial,
cujos significados precisam ser atualizados permanentemente.

Em alguns vales, como do rio Paraguaçu, a partir de


Milagres, e do São Francisco, entre Penedo (Alagoas)
e Porto da Folha e Garararu (Sergipe), criam-se à solta
animais de pequeno porte: são cabras e porcos que vivem
no comum, ao lado de muitas aves de terreiro. Tais áreas
comunais estabelecem-se sobre superfícies cobertas de

10
Uma pequena, mas importante observação cabe nesse instante. Ao identificar passagens da obra de
Manuel Correia de Andrade e ao expô-las de forma ácida, não estou desconhecendo a sua contribuição
para a boa compreensão do mundo rural e do campesinato nordestino. Na verdade, estou chamando a
atenção para o vigor que tem a tese da “civilização do couro” e para os seus limites.

30
VESTÍGIOS EM MOSAICO

mata caatinga e utilizadas como pastagens naturais, sem


cercas nem limites de propriedade, daí serem chamadas
à época de indiviso (SILVA, 1997, p. 124-5).

Contrariando um argumento hegemônico no campo da História


e das Ciências Sociais, o Sertão e o Agreste não foram e não são apenas
espaços ocupados tão somente pela grande propriedade, pela criação
do gado e produção de carne. Índios, negros e levas de camponeses
pobres tiveram presença marcante desde os primeiros movimentos de
sua ocupação, produziram alimentos, tabaco, algodão, criaram animais
diversos, consumiram, trocaram e venderam produtos que, tanto
ontem como hoje, marcaram e marcam a vida da região. Em áreas de
posse comunal ou mesmo em posses individuais com largas relações de
solidariedade com os vizinhos, os negros ocuparam parcelas de terra,
lançaram sobre elas as sementes do campesinato, confrontaram o poder
do latifúndio.
Na verdade, nas terras do Semiárido, além da pequena propriedade
ter existido, há registros do uso coletivo do solo. Genericamente,
podemos aludir quatro tipos diferentes de propriedades coletivas: 1)
conforme a tradição mais profunda, existiam as terras indígenas, de
usufruto comum; 2) também conforme as tradições mais densas, cujas
raízes remetem à África, nas terras ocupadas por negros fugitivos e livres
sob a forma de mocambos e quilombos, prevalecia o uso coletivo; 3) nas
comunidades camponesas de pobres e livres com uso comum do solo
e nas quais prosperaram as relações de reciprocidade tão fartamente
estudadas pela sociologia rural, também existia o uso comum da terra; e
4) existiam as terras comuns de criação de animais, utilizadas, inclusive,
por grandes proprietários, sem que ninguém reclamasse a posse delas.
Devemos buscar nas três primeiras as raízes históricas e culturais do
que Francisco Carlos Teixeira da Silva chama de “mundo camponês”
do Semiárido.

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4. O LUGAR DO NEGRO NO SEMIÁRIDO ALAGOANO

Escravidão e fuga de escravos são expressões afins nas terras


brasileiras. Em regra, para manter-se seguro, quanto mais distante do
lugar da fuga pudesse ir o fugitivo, menores eram as possibilidades de ser
alcançado por seus algozes e mais seguro estaria. Em solo nordestino, as
terras do Sertão eram as mais distantes e menos acessadas. Em diferentes
momentos, milhares de negros tomaram esse destino, seja fugindo do
julgo da escravidão, seja fugindo da repressão aos quilombos.
A carta do governador de Pernambuco, Caetano de Mello e
Castro ao rei, no final do século XVII, informa que dos ditos Palmares
fugirão “muytos e se espalharão por estes Sertoiz”. Nesse período, as
fronteiras sob o controle do poder colonial ainda eram muito estreitas,
logo, todo território que não estava sob o julgo da cana e do latifúndio
era chamado de sertão. Abreu (1963, p. 128) nos diz, por exemplo,
que “Domingos Jorge auxiliou a debelação dos Palmares, mocambos de
negros localizados nos sertões de Pernambuco e Alagoas”.
Esses movimentos migratórios forçados foram decisivos para
instituir a pequena propriedade no Semiárido e se configuram em
importante obstáculo para a realização plena do projeto colonizador.

Não só os índios eram os responsáveis pelo fechamento


da fronteira sertaneja, os negros, desde logo fugidos das
áreas de plantagem, buscavam refúgio na região, onde
chegavam a estabelecer uma ampla teia de mocambos,
recriando sua “angola janga”. Não devemos esquecer
a proximidade de Palmares. Plantadores de milho e
mandioca eram grandes guerreiros capazes de impedir
o avanço dos rebanhos e de algum modo responsáveis
pelo fato das doações de sesmarias não terem
efetivamente conseguido ocupar a região (SILVA,
1981, p. 38).

32
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Esse novo registro de Silva nos dá conta não apenas de “uma


ampla teia de mocambos” negros em terras sertanejas, mas também
grava um valioso aspecto de sua forma de sociabilidade. A “angola
janga” é uma comunidade que usava coletivamente o solo, dedicada ao
plantio de gêneros alimentícios de primeira necessidade, praticante de
tradições culturais bem diversas daquelas impostas pelos colonizadores,
enfim, um modelo de sociedade com um projeto político oposto ao do
projeto colonizador. Outro dado importante é que essas notas rompem
com as tentativas de negação da presença do negro no Sertão nordestino
durante o período da escravidão ou que a minimiza. Euclides da
Cunha, por exemplo, no clássico Os Sertões, afirmou que “a grande tarja
negra debruava a costa da Bahia ao Maranhão, mas pouco penetrava o
interior” e que “o elemento africano de algum modo estacou nos vastos
canaviais da costa” (CUNHA, 2002, p. 124-5). Ainda mais graves são
as afirmativas de Dirceu Lindoso:

[...] a sociedade de pastoreio era uma sociedade de


vaqueiros, onde não havia negros livres nem negros
escravos. Em lugar do negro livre quilombola ou do
negro escravo das plantations, o que havia eram os índios
dos colégios de padres e os índios de corsos, ambos de
uma mesma etnia, e que não eram negros (LINDOSO,
2011b, p. 207).

A tese de Lindoso é que “a conquista do Grande Sertão foi a


conquista do semiárido nordestino e foi feita com currais de bois e
vaqueiros tangedores” (Ibidem, p. 25). Em outras palavras, a sociedade
do pastoreio fora fundada pelo boi e o índio, o primeiro como agente
e o segundo como instrumento dos brancos, bem como que o sertão
“sempre refugou” o negro como escravo. As afirmações sobre uma
não presença do negro no Semiárido durante a escravidão podem ser
encontradas em diferentes obras do autor, mas em O Grande Sertão ela
se repete diversas vezes. Reunimos aqui apenas duas passagens nas quais

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

fica bem delineado o que Lindoso pensa: “Quem não deixou o negro
entrar no sertão não foi a terra, mas os currais de boi. No sertão o negro
não foi vaqueiro” (LINDOSO, 2011a, p. 152) e também

A visão que o curraleiro tem do negro é uma visão


periférica. O negro não foi integrado ao sertão. Ele
chegou ao sertão onde este começa ou acaba. No
limite. O negro é um ser que o sertão rejeitou, isto é,
nem o integrou nem quis pra si, o Grande Sertão por
ser um espaço de pastoreio preferiu o índio nômade e
catecúmeno (LINDOSO, 2011a, p. 158)11.

Causa grande estranheza que tais formulações venham


de Lindoso, um estudioso da história com ênfase na revelação da
trajetória de luta dos excluídos, um pesquisador que denuncia a escrita
estamental alagoana. Por tudo isso, como é possível ele afirmar e
reafirmar que “no Sertão, o negro nunca teve vez” ou que “no sertão,
o negro é a grande ausência”? As afirmações de Lindoso não dão conta
da realidade de Alagoas e menos ainda do conjunto do Nordeste. Há
registros vários de escravidão negra e de negros em todos os lugares
do Nordeste e do Brasil. Em Abreu (1963, p. 147), colhemos que “os
primeiros ocupadores do sertão passaram vida bem apertada; não eram
os donos das sesmarias, mas escravos ou prepostos”, bem como nos
informa da presença de brancos, mulatos, negros e índios no transporte
das boiadas. Andrade (1998, p. 170) afirma que nos sertões “[...] os
grandes sesmeiros mantinham alguns currais nos melhores pontos de
suas propriedades, dirigidos quase sempre por um vaqueiro que, ou era
escravo de confiança ou um agregado”.
Mesmo que a presença do negro não fosse tão expressiva
(diferente da cana-de-açúcar, a pecuária não exigia grande quantidade
11
Em outra obra, A Razão Quilombola, essa mesma tese é defendida pelo autor: “A civilização do couro,
em Alagoas, se inicia com a expansão da frente de colonização de Penedo, que é um tipo de colonização
tendo por base o pastoreio em savanas semiáridas, e que não conheceu a escravidão negra, mas a
servidão do índio de aldeia e missões religiosas” (LINDOSO, 2011b, p. 34).

34
VESTÍGIOS EM MOSAICO

de braços), desde os primeiros movimentos colonizatórios ela esteve lá


e desconsiderar a sua importância na composição social e na economia
local parece-nos um equívoco. Retornamos aqui a Francisco Carlos
Teixeira da Silva que apresenta dados da população da freguesia de
São Pedro do Porto da Folha em que nos anos de 1850, 1851 e 1872,
respectivamente, a população escrava era 45%, 44% e 10%. Tal redução
ocorrera, conforme o autor, devido ao fim do tráfico. Ainda que esses
dados não possam ser generalizados, porque não existem dados de outras
regiões sertanejas, eles são suficientes para afirmar que “Para o Sertão do
São Francisco, um percentual de 45% de escravos na população parece
colocar por terra a hipótese de trabalho escravo no Sertão” (SILVA,
1981, p. 165-166).
Mais completas, porém, são as pesquisas realizadas por
Luiz Mott no contexto do Sertão piauiense sobre o tema. O negro,
afirma Mott (1985), foi quem mais construiu o “´curral e o açougue
do Brasil”. Os negros escravos, comprova o autor, chegaram a ser a
maioria da população local e percentualmente dominantes quando
comparados com o restante da Província, bem como não só estavam
presentes em grande quantidade, como, em alguns casos, ocupavam
posição de destaque na sociedade, servindo como vaqueiro e até
como administrador de fazenda. Mott nos apresenta dois quadros.
No primeiro, temos a constituição da população do Piauí por etnia e
cor nos anos 1697 e 1723. Nos dois períodos, a população negra era
superior a branca; em 1723, por exemplo, 33% dos piauienses eram
negros, só 16,7% brancos e os índios representavam 5,9%, os demais
eram mamelucos, mulatos e mestiços (MOTT, 1979, p. 68). O segundo
quadro apresenta a composição da população das fazendas do Sertão
do Piauí em 1762, de um conjunto de 2.406 habitantes, os escravos
somavam 1.324 (55,1%), os negros livres 49 (2,0%), os brancos 882
(36,7%), os índios 101 (4,2%) da população, enquanto os demais eram
mamelucos, mulatos e mestiços livres (Ibidem, p. 71).

35
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Não dispomos de informações sobre Alagoas tão bem definidas


como as apresentadas nos exemplos acima. Entretanto, os dados abaixo,
referentes a um período no qual o fim da escravidão já estava próximo,
demonstram não só a sua existência, mas também que ela tinha alguma
vitalidade no Semiárido alagoano. Destaque especial merecem os
números referentes a Palmeira dos Índios.
Somados, os escravos das sete paróquias, em 1872, representavam
quase 10% da população do Semiárido alagoano, dado semelhante
ao de Porto da Folha, apresentado por Silva no mesmo período. Se
separarmos os municípios do Agreste (Traipu, Limoeiro e Palmeira dos
Índios) e do Sertão (Pão de Açúcar, Santana do Ipanema, Água Branca
e Mata Grande), os percentuais serão bastante alterados. Enquanto a
população de escravos do Agreste era maior de 7.4%, apenas 1,5% da
população do Sertão era escrava. Na verdade, o alto índice de escravos
no Agreste era determinado pelo município de Palmeira dos Índios que,
excepcionalmente, tinha 20% de sua população composta de escravos12.
Diante da fartura de evidências, não nos parece mais necessário
inventariar sobre a presença ou não do negro e menos ainda do trabalho
escravo na região. Fato é que, por vontade própria ou obrigado pelo
instituto da escravidão, o negro foi e é presença marcante nas terras
do Semiárido. Nem mesmo a invisibilidade histórica a que esteve
submetido por tantos anos – fenômeno agravado pelo abandono,
também histórico, da região em que vivem – conseguiu escondê-los. O
fato é que

[...] os quilombos e os mocambos continuaram a se


reproduzir mesmo com o fim da escravidão. [...]. Os
vários quilombos – que já eram micro comunidades
camponesas – continuaram se reproduzindo, migrando,
desaparecendo, emergindo e se desenvolvendo no
12
Uma hipótese que pode explicar uma maioria tão larga de escravos no Agreste do que no Sertão pode
ser encontrada na própria formação da economia Agrestina, mais policultora e menos pecuarista que o
Sertão. As roças demandariam uma quantidade maior de braços.

36
VESTÍGIOS EM MOSAICO

emaranhado das formas camponesas do Brasil de norte


a sul (GOMES, 2015, p. 120).

As condições de existência anteriores de negros e escravos não foram


modificadas com o ato oficial de acabar com a escravidão – a abolição não
previu qualquer compensação aos escravos pelo trabalho que realizaram,
nem foram adotadas medidas de correção do alijamento social a que os
negros estiveram submetidos. O “padrão escravista de administração e
tratamento” não acabou simplesmente porque a escravidão acabou. Por
tudo isso, os mocambos e quilombos continuaram se reproduzindo nos
quatro cantos do país. Na verdade, o quilombo de livres deixava de ser o
lugar marginal e perseguido que reunia fugitivos e passava a ser o abrigo de
negros, marginalizados socialmente, mas, principalmente, organizações
sociais e políticas nas quais camponeses pobres disputavam terra e nelas
realizavam seu projeto de liberdade e campesinato.
Porque existiram e porque resistiram, encontramos hoje em
Alagoas quase oito dezenas de comunidades já reconhecidas como
comunidades de remanescentes de quilombolas, são milhares de pessoas
que buscam a sua história e a sua identidade em uma sociedade que
sistematicamente tem negado as suas existências, bem como existem
outras comunidades que reivindicam reconhecimento e outras tantas
que, por tantos interditos históricos, ainda não se reconhecem como
tal. O processo de autor reconhecimento, que é anterior a qualquer
reclame público de reconhecimento, é muitas vezes o mais lento e difícil
de ocorrer.
Se em Alagoas padecemos de registros históricos sobre a ocupação
negra e a formação das comunidades quilombolas no Semiárido, os
dados no presente são proeminentes e provam que isso aconteceu em
grande número.
Atualmente, existem 68 comunidades quilombolas certificadas
em Alagoas. Destas, 55 estão localizadas no Semiárido, o que representa

37
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

73,86% das comunidades oficialmente reconhecidas, nelas vivem cerca


de seis mil pessoas. No Sertão estão localizadas 49,36% das comunidades
quilombolas de Alagoas e no Agreste vamos encontrar mais 24,5% delas.
Apenas 6,32% estão na região do Baixo São Francisco e pouco mais de
20,25% no Litoral e na Zona da Mata (Fundação Palmares, 2016).
A distribuição das comunidades quilombolas nas diversas
regiões de Alagoas é desigual e isso decorre da efetivação dos projetos de
exploração das terras e das riquezas da colônia Brasil, mas também das
dinâmicas sociais e políticas produzidas antes e depois da dominação
portuguesa e por causa dela. Em todos os casos, os pobres e oprimidos
da terra atuaram como sujeitos portadores de seus próprios projetos.
No semiárido alagoano, por exemplo, os negros, destacadamente,
participaram dos processos de ocupação e de colonização.13 O que
encontramos lá hoje, certamente, é o resultado dessa dupla dinâmica
social e de outras que não conseguimos identificar, mas que certamente
ocorreram. E nada disso pode ser subestimado.

5. CONCLUSÃO

Por ser tão diversa na sua origem e por resultar de tantos e tão
intensos conflitos, a sociedade do Semiárido encerra em si grandes temas
para a investigação histórica e sociológica, mas esse não é um exercício
fácil. Apesar, por exemplo, da ausência de informações fundamentais
sobre o tamanho da migração negra ocorrida por causa da destruição dos
quilombos e comunidades mucambeiras no final do século XVII, sobre
o volume de trabalho escravo na região no período da escravidão, o fluxo
de migração negra após o fim da escravidão para o Semiárido, e outros,

13
A separação desses fenômenos acontece porque entendo que a ocupação realizada pelos marginalizados
foi um processo que ocorreu à revelia do Estado português e das autoridades coloniais, enquanto que
a colonização se definia como uma ação política de Estado, um processo organizado de domínio e de
utilização do espaço.

38
VESTÍGIOS EM MOSAICO

nos parece acertado afirmar que em Alagoas, extraordinariamente, os


negros fizeram da região uma trincheira avançada na luta por liberdade
e um espaço de construção da sua aspiração campesina.
Com o fim do Quilombo dos Palmares, grande parte dos
aquilombados migrou para o Semiárido e nessas migrações procuraram
reconstituir os seus projetos de existência. Essa experiência é um
importante indicador do equívoco de pensar a formação da sociedade
do Semiárido como resultado unilateral das ações colonizadoras
impostas pela Coroa portuguesa, conforme o modelo do couro. É um
exagero dizer que a sociedade do Semiárido aconteceu nos arredores
dos currais. Os pobres da terra não pegaram carona nos carros de boi. A
sociedade do Semiárido é fruto de diferentes processos históricos, deles
o campesinato participou sempre como protagonista.
É vã qualquer tentativa de negar ou reduzir a contribuição
do negro na formação da sociedade do Semiárido. Sem o negro, o
campesinato do Semiárido não teria o volume que tem, mas ser negro e
ser camponês são dois desafios conjugados e de grande envergadura. Os
negros que vivem na região enfrentam hoje grande parte das dificuldades
com as quais se confrontaram no passado. As tantas comunidades
quilombolas existentes na região são sociedades campesinas particulares,
organizações construídas para enfrentar os interditos socioeconômicos e
buscar espaço no âmbito da sociedade global.
Por ter enfrentado desde os seus primórdios grandes contradições,
recorrentemente a sociedade do Semiárido é destacada como menos
desigual e menos verticalizada socialmente (ANDRADE, 1998;
SABOURIN, 2003; LINDOSO, 2011a). No Sertão e no Agreste, a
terra é melhor distribuída e por isso as duas regiões são mais justas
socialmente. Entretanto, tal constatação precisa ser melhor apurada.
As vantagens econômicas e sociais do Semiárido despontam quando a
região é comparada às regiões da Zona da Mata e do Litoral, gravemente
injustas e desiguais, logo, são vantagens parciais.

39
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Um esclarecimento importante é que nada disso é obra do


acaso ou resulta de um improviso histórico qualquer; por razões que
já vimos, conflitos deslocados da zona canavieira para o Semiárido,
somados à tradição de luta dos índios, forçaram uma configuração
de apropriação menos desigual da terra e, consequentemente, uma
sociedade menos hierarquizada na região. O encontro dos perseguidos
e alijados socialmente do sistema de plantation (negros e pobres livres)
com os oprimidos pelo sistema do curral (índios, negros e agregados)
se constituiu num evento de grandes significados – acontecimento que
ainda não foi devidamente investigado entre nós.

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43
2
TERRITÓRIO: SOBREVIVÊNCIA
MATERIAL E CULTURAL DE UM POVO
Maria Ester Ferreira da Silva Viegas

Tudo na história humana tem suas raízes na terra, o


que significa que devemos pensar sobre habitação,
mas significa também que as pessoas pensam em ter
mais territórios, e, portanto, precisaram fazer algo em
relação aos habitantes nativos. Num nível muito básico,
o imperialismo significa pensar, colonizar, controlar
terras que não são possuídas e habitadas por outros. Por
inúmeras razões, elas atraem algumas pessoas e muitas
vezes trazem uma miséria indescritível para outras.
(SAID, 1995, p. 37).

1. INTRODUÇÃO:

A apropriação do território de Palmeira dos Índios pelos


portugueses trouxe diferentes espacialidades ao lugar e a territorialização
do grupo português implicou drasticamente no processo de (des)
territorialização de outros grupos. O processo de (des) territorialização
acontece quando expropriados do seu território os naturais do lugar
não conseguem se territorializar em outros espaços acontecendo a
sua exclusão e a marginalização. O processo de colonização, quando
se apropria de territórios que têm um povo nativo originário do lugar
(sem o processo de imigração), gera uma onda inevitável de violência,
pois são submetidos a novas culturas e a um novo poder. A força militar
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

do estado colonizador é usada para ditar o domínio sobre os nativos dos


territórios colonizados com presença militar, jurídica, administrativa e
religiosa. Segundo Moraes a colonização gera uma relação sociedade–
espaço, os “naturais” do lugar são concebidos como atributos do espaço,
uma sorte do recurso natural local (MORAES, 2002, p. 85, 86).
Comungando com o pensamento de Said e Moraes (1995,
2002), observa-se que essa prática do imperialismo “pensar, colonizar,
controlar terras” predominou no território de Palmeira dos Índios, que
sofreu perdas consideráveis como os povos indígenas e as comunidades
de negros rurais ou “quilombolas”. Para Moraes (2002, p. 80):
“Colonização envolve conquista e esta se objetiva na submissão das
populações encontradas na apropriação dos lugares e na subordinação
dos poderes eventualmente defrontados”. O processo de colonização
traz características de violência, conquista e poder militar. As
estruturas produtivas já existentes têm que se adaptar ao novo poder de
colonizador, quer por incorporação ou por destruição. Notadamente
a colonização pode ser afirmada como um processo de valorização do
espaço, com apropriação dos meios naturais, transformando-os numa
segunda natureza e numa produção de formas espaciais e apropriação
do espaço produzido.
Estes territórios que estão em disputa se tornam garantia de
identidade e de luta, sendo transformado de território de exclusão e
marginalidade em território de luta e sobrevivência garantidos pela
tradição e pela ancestralidade. A tríade: destruição, a construção e a
reconstrução fazem parte do espaço, tornando-o qualificado para as
futuras apropriações. “A constituição de um território é, assim, um
processo cumulativo, a cada momento um resultado e uma possibilidade
– um contínuo em movimento” (MORAES, 2002, p. 57), sendo assim,
a construção de um território se torna uma maneira singular de ler a
história de um lugar. Portanto, a apropriação é um elemento que define
território, porque qualifica uma porção de terra através do trabalho

46
VESTÍGIOS EM MOSAICO

social do grupo que ocupa e explora aquele espaço, numa evidente


relação sociedade-espaço1.
Entende-se a história da formação do território como a
explicação dos processos sociais resultantes das intervenções humanas
que envolvem dimensões econômicas, políticas e culturais da vida
social, o que dá uma identidade ao território que pertencem a um povo
e a uma cultura própria. Resgatar a história da formação territorial é
importante para fazer uma análise das ações que culminaram nas atuais
áreas de dominação do Estado. A geografia humana se preocupa em
entender e explicar as formas de ocupação e valorização do espaço
natural através do trabalho humano identificando, o modo de ser, de
agir, as manifestações culturais e históricas que atuam nas sociedades de
modo diferente na construção do espaço social.
Neste texto, proponho-me a considerar o território como
categoria básica de análise, tomando como base o conflito, enfrentado
pelo Cacique Xiquinho, da Comunidade Xukuru-Palmeira. Aqui
o entendimento do conceito de território é o cunhado por Milton
Santos: o território usado é o chão mais a identidade. A identidade é
o sentimento de pertencer aquilo que nos pertence. O território é o
fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e
espirituais e do exercício da vida (SILVA apud SANTOS, 2004 p. 01).
Faz-se necessário observar a questão do Estado como
instrumentalizador e legitimador da segregação espacial sofrida pelos

1
Essa discussão é feita com muita propriedade por Antônio Carlos Robert de Moraes em sua obra:
A Valorização do espaço, em que ele afirma que: “[...]. Nesse sentido resta o espaço como categoria
social real, o espaço-resultado, construído e em construção, o espaço real como demarcação de práticas
sociais precisas, uma realidade que não prescinde em hipótese alguma da vitalidade histórica que lhe
é impressa por uma sociedade concreta. Não há, espaço sem sociedade, nesta concepção; ou melhor,
não pode haver espaço, nem como categoria a priori e ideal nem como dimensão física isolada e
arbitrariamente pré-delimitada. O que há é a possibilidade de se trabalhar uma relação sociedade-
espaço, relação que é social exclusivamente, e que historicamente se expressa em processos reais ou mais
complexos, cuja compreensão deve ser tarefa de uma teoria marxista da geografia. Daí a proposta que
aqui será desenvolvida: trata-se de desvendar as formas concretas que qualificam e determinam essa
relação, cuja historicidade a define enquanto processo permanente de dês naturalização, humanização
e socialização do espaço terrestre” (MORAES, 1999, p.72-73).

47
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

povos negros e indígenas na organização do território brasileiro, assim


como as diversas formas de resistências empreendidas pelos diferentes
povos indígenas e quilombolas para conseguirem sobreviver ao massacre
imposto pelo modelo econômico capitalista onde o Outro não existe
essencialmente enquanto Ser e sim enquanto mercadoria, e onde a terra
teria apenas valor de troca e não valor de uso:

Se a mercadoria é um instrumento para subjugar os


povos indígenas, tem também o seu retorno, a sua
contrapartida. Ao mesmo tempo em que destrói
ou modifica as sociedades tribais, cria um canal
de vivificação de relações sociais, lança o índio na
contradição da sociedade de mercado... O índio se
transforma em agente dos processos da sociedade que
pretende dominá-lo, passa a ser sujeito político do
mundo que pretende fazê-lo desaparecer... (SILVA apud
MARTINS, 1998. p. 16-17).

Tratar da questão da delimitação dos territórios sociais em Palmeira


dos Índios como uma expressão sinônima da delimitação da terra, ou seja,
do espaço efetivo em que os indivíduos e os povos carecem para viver
dignamente, é tratar de uma problemática que envolve questões de ordem
cultural, política e econômica. É de fundamental importância à reflexão do
lugar dos povos negros e indígenas, no tempo histórico das contradições da
valorização do espaço que se caracteriza na alienação e reificação do valor
capitalista da apropriação dos territórios indígena e quilombolas.
A apropriação do território que hoje forma o município de
Palmeira dos Índios traz uma história de exclusão visível a qualquer
olhar mais atento dirigido à sua formação territorial. Essa formação está
mascarada pela romântica lenda indígena2, não permitindo as pessoas

2
A lenda fala do amor impossível entre o índio Tilixi e a índia Txiliá, a qual era prometida do cacique
Etafé. Quando o cacique descobriu o amor entre os dois, encheu-se de ciúmes condenando o jovem
apaixonado a morte de fome e sede e matou Txiliá com uma flecha certeira em seu coração. No lugar
onde morreram, nasceu uma palmeira frondosa. Assim, essa lenda dá origem ao nome da cidade.

48
VESTÍGIOS EM MOSAICO

perceberem a violência impetrada aos diferentes povos na formação


do território palmeirense, o que torna os habitantes dessa cidade
desinformados sobre sua própria história, sua raiz, sua memória.
Hoje, com todo esse processo de reafirmação de identidade
étnica da facção indígena liderada pelo Cacique Xiquinho, a cidade de
3

Palmeira dos Índios tem agora a emergência de novas territorialidades,


modificando, assim, a espacialidade do povo indígena na cidade
de Palmeira dos Índios. Em seu livro, Cultura e Imperialismo, Said
coloca que nos “territórios sobrepostos”, as culturas são entrelaçadas;
em Palmeira dos Índios, pode ir mais além: as culturas são negadas,
destruídas e silenciadas pelo medo e violência que caracterizam as
relações de dominação oriundas do processo brutal de colonização que
permanecem até hoje.

2. A CONSTRUÇÃO DO TERRITÓRIO INDÍGENA NA CIDADE


DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS.

A palavra território, segundo Geiger:

Vem de terra que, formalmente, significa uma porção


asfaltada, ou cimentada da superfície terrestre, e que
pode ser argilosa, arenosa ou saibrosa [...]. Refere-
se também a uma extensão terrestre, mas inclui uma
relação de poder, ou posse, de um grupo social sobre esta
extensão terrestre. Aliás, o termo é também empregado
para expressar o controle de uma espécie animal, ou
de indivíduos, sobre determinada área geográfica
(GEIGER, 1988, p.235).


3
Sobre esse fato social que nos últimos vinte anos vem se impondo como característico do lado indígena
do Nordeste denominado pela literatura antropológica de “processo de etnogênese” que abrange tanto
a emergência de novas identidades como a invenção de etnias já conhecidas, ver: OLIVEIRA, João
Pacheco (org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena.
Contra Capa Livraria, 1999. Rio de Janeiro-RJ.

49
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

A relação existente entre o território e os seus primeiros


habitantes pode muito bem ser testificada na Europa, na forma como
foram batizados os nomes de seus países, por exemplo: England, terra dos
ingleses; Scotland, terra dos escoceses; Deutschland, dos alemães; France,
dos descendentes dos franceses etc” (Ibidem, p.240). Nas Américas, esse
processo não foi diferente, tanto que os nomes geográficos aplicados às
terras colonizadas pelos europeus foram identificados com o nome de
seus primeiros habitantes ou com a vegetação encontrada, por exemplo:
“Brasil” vem da árvore aqui existente quando da chegada dos primeiros
colonizadores; “Alagoas”, das lagoas existentes; e “Palmeira dos Índios”,
da presença dos povos Xukurus e Kariris que habitavam essa região, e da
vegetação – a palmeira – que existia em grande quantidade.
Os povos Xukurus e Kariri foram os responsáveis pelo nascimento
da cidade de Palmeira dos Índios, isso se sucedeu numa perspectiva
eminentemente estratégica, haja vista que no início do século XVIII
os índios que habitavam a região litorânea tiveram que estabelecer um
processo de fuga para o interior do Estado como forma de garantir a
sua própria sobrevivência uma vez que a ação violenta do colonizador
português era avassaladora.
Para escapar da violência da empresa colonizadora portuguesa
em Alagoas, os povos Xukuru-Kariri tiveram que fugir para o interior
do estado, como afirma Torres:

A princípio, os aborígines tentaram barrar a


intromissora penetração, mas se viram, assim como já
acontecera com outras tribos anteriormente, derrotados
fragorosamente. Os poucos que sobreviveram quando
dos embates iniciais ou não caíram em poder do
branco que os escravizava, chegaram à conclusão de
que lhes seria impossível vencer o inimigo tão poderoso
[...]. Esta conclusão amedrontava-os, obrigando-os a
mergulharem mais e mais no sertão desconhecido, onde
talvez pudessem conservar-se escudados pelas selvas e

50
VESTÍGIOS EM MOSAICO

caatingas, provisoriamente distante dos exploradores


(TORRES, 1972, p.1).

Em estado de fuga, o povo Xukuru-Kariri conseguiu fixar


agrupamentos por quase todo percurso realizado entre a cidade de
Palmeira dos Índios e o litoral alagoano. Foram descobertos vestígios da
presença Xukuru-Kariri em cidades como: Limoeiro, Tanque d’Arca,
Belém, Igaci e Quebrangulo. A atual cidade de Palmeira foi escolhida
como um espaço significativo porque nos seus vales e serras afloravam
muita palmeira, nessas terras eles se estabeleceram desde a serra da Boa
Vista, do Brejo da Cafurna, até as terras de Olhos d’Água do Acioli,
hoje município de Igaci e circunvizinhanças (Ibidem, 1972, p.2-3).
Mas a empresa colonizadora portuguesa não tardou também
a chegar em Palmeira dos Índios, isso porque a mesma oferecia boas
terras para a exploração da cana-de-açúcar, que chegou a contar
posteriormente com mais de dezessete engenhos. Com isso, os
Xukuru-Kariri foram novamente aviltados de suas terras, porque os
portugueses não reconheciam o direito histórico dos indígenas. Diante
da ferocidade, nada foi incapaz de impedir que as vastas porções de
terras férteis fossem parar nas mãos dos colonizadores. Para expulsar
os Xukuru-Kariri de suas terras, os colonizadores usavam diferentes
expedientes, desde a guerra declarada e o atear fogo sobre suas matas,
até o instrumento das missões e dos aldeamentos. A primeira missão
instalada em Palmeira dos Índios foi em 1789, depois da criação da
Freguesia de Nossa Senhora do Amparo (Ibidem, 1972, p. 9).
Em 1822, a diminuta terra do patrimônio eclesiástico passou
também a ser objeto de interesse do colonizador. Ameaçados novamente,
os setecentos índios ainda restantes realizaram

Uma petição à Junta Governativa de Alagoas pedindo


que os confirmasse na légua de terra onde viviam
pobremente. Alegaram posse secular e imploram 3.000

51
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

braças em quadro (uma légua) /.../. Nesse mesmo


ano, o governo mandou o sargento mor José Gomes
da Rocha, com sua equipe, proceder à demarcação.
(Ibidem, 1972, p. 18).

O espaço é dinâmico, no sentido de que ele, na medida em


que contribui no processo de mudança do homem, é também por ele
transformado com o decorrer do tempo. O homem é capaz de formar
e transformar a si mesmo na relação com o espaço: homogeneizando
e heterogeneizando o espaço de acordo com a sua temporalidade. Na
medida em que imprime a sua marca sobre o espaço, o homem acaba
se apropriando e transformando o espaço natural, agindo, assim, o
homem acaba imprimindo a sua marca sobre a natureza e tornando os
objetos naturais formas úteis à vida humana.
Na sua crescente necessidade de transformação, os diferentes
grupos que formam a sociedade vão aperfeiçoando cada vez mais as
formas de se apropriar do território. Na apropriação desse, os conflitos
entre as diversas classes que compõem a sociedade são mediados pelo
Estado que é o instrumento utilizado pelas classes dominantes através de
leis, decretos-leis, decretos e regulamentos para consolidar os interesses da
classe social dominante, deixando clara a sua vocação para legitimador da
dominação territorial e da hegemonia desta mesma classe:
O Estado não é uma entidade que existe em si mesmo, para
poder existir e interferir na vida dos indivíduos, ele carece de diferentes
mediações, dentre elas poderíamos destacar a necessidade de um dado
conjunto de pessoas, o povo, de uma dada estrutura econômica e de
um território. Existe, então, uma relação necessária de imbricação entre
o tipo de território em que se vive e o modo de produção ou formação
econômico-social subsistente nesse mesmo território.

O pré-requisito necessário para a conformação material


de qualquer Estado-Nação moderno corresponde à

52
VESTÍGIOS EM MOSAICO

apropriação exclusiva de um território onde montar,


a posteriori, o processo de integração social ligado
à hegemonia do capital e da burguesia como classe
dominante (ESCOLAR, 1996, p. 103).

As sociedades indígenas têm sido submetidas, desde a época


colonial, ao processo de expropriação com grandes perdas de suas
posses territoriais. As populações que sofreram uma destruição quase
que completa de seu patrimônio cultural e que perderam, na quase
totalidade, as terras que ocuparam no passado (por exemplo: os Xucuru-
Kariri – Palmeira dos Índios/Al) voltaram a se organizar criando novas
identidades e construindo uma etnicidade emergente. Nesse processo
de autoconstrução social, o antigo território assume uma enorme
importância simbólica e emocional, sendo a referência de unidade e
força catalisadora do grupo étnico.
Convém ressaltar que não é da natureza das sociedades
indígenas estabelecer limites territoriais precisos para o exercício de sua
sociabilidade, mas essa necessidade advém da situação de expropriação a
que os povos indígenas foram submetidos ao entrarem em contato com
o homem branco. A chegada dos primeiros colonizadores portugueses
no Brasil significou a presença de um aparato institucional que procurou
redistribuir o território nacional, ocupado pelos diferentes povos
indígenas, ao sabor dos interesses econômicos. É possível apontar que o
Estado, dentro de sua aparente impessoalidade, é um dos responsáveis
pelo processo de desagregação das comunidades indígenas e pela
segregação espacial dos mesmos.
A primeira medida da empresa colonizadora portuguesa foi
destituir os Xukuru-Kariri, como os demais povos indígenas em
todo Brasil, do seu valor fundamental: a terra. Destituído da terra e
de sua dignidade, os Xukuru-Kariri foram exterminados quase que
completamente ao longo desses 500 anos de colonização, porque depois

53
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

dos colonizadores vieram os fazendeiros, com o gado ou a produção


agrícola em larga escala (plantações de cana-de-açúcar4), que acabaram
jogando esse povo no ostracismo e na condição de um deserdado em
sua própria terra. A violência e a expropriação são situações intrínsecas
ao processo colonial e permanecem até os dias de hoje, foi utilizada
pelas elites para silenciar o “continuum” das ricas potencialidades desse
povo essencialmente diferente do colonizador do ponto de vista moral,
político e econômico.
Em 1861, o juiz da comarca de Anadia, Serapião Eusébio
d’Assunção, deu ganho de causa para os índios, mas não concedeu
“a emissão de posse confirmando sua sentença, isso permitiu que em
1872 o governo declarasse extinto o aldeamento e, 1874, a câmara de
vereadores de Palmeira dos Índios pedisse ao governo o espólio para
constituir seu patrimônio municipal” (TORRES, 1972, p. 18). Apesar
do genocídio e etnocídio cometido contra as populações indígenas em
todo o Brasil, vimos nascer, desde a década de 60, um novo impulso
organizacional dos povos indígenas em todo o país. A ação organizada
dos indígenas, sob o apoio de várias organizações não-governamentais e
do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), possibilitou que o Estado
brasileiro, através da Constituição de 1988, reconhecesse, pela primeira
vez na história do Brasil, que os índios eram portadores de diferentes
costumes e tradições; e mais, que eles tinham direitos históricos sobre
a terra. As áreas indígenas passam a ser classificadas do seguinte modo:
as de que eles são usufrutuários – áreas ocupadas e áreas reservadas – e
as de que são legítimos proprietários, ou seja, as que são de propriedade
integral do índio ou da comunidade indígena. O Estatuto do Índio
(art. 17) assinala que são áreas indígenas: 1) as terras ocupadas ou
habitadas pelos silvícolas; 2) as áreas reservadas; e 3) as áreas de domínio
das comunidades indígenas ou silvícolas. O processo de demarcação
4
Convém ressaltar que o processo de violência contra os povos indígenas da faixa litorânea foi tão
violento que se desconhece qualquer processo de ressurgência étnica nestas áreas, tendo exatamente
grande parte deles se refugiando sertão adentro.

54
VESTÍGIOS EM MOSAICO

das terras indígenas consiste em: 1) reconhecimento da identidade


do povo em questão pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio); 2)
estabelecimento de seus limites mediante portaria do Ministério da
Justiça; 3) da demarcação física e indenização da propriedade pelo
governo federal; 4) na ratificação por decreto presidencial; 5) registro
da área no cadastro imobiliário.
A demarcação das terras dos 215 povos indígenas existentes
no Brasil deveria ser realizada, em obediência ao expediente
constitucional, até 1993; no entanto, até a presente data, existem
441 terras indígenas que estão ainda na primeira fase do processo
de demarcação e 139 que sequer foram identificadas. No entanto,
a demarcação e o registro legal das terras indígenas constituem
apenas um passo inicial no seu estabelecimento e na sua defesa real.
Essa propriedade e posse efetiva veem-se continuamente ameaçada,
usurpada ou reduzida por diferentes causas. Em primeiro lugar, pelas
invasões e intrusões ilegais de terceiros sobre suas terras; segundo,
pelos constantes ataques judiciais e políticos à estabilidade dos direitos
adquiridos ou em processo de consolidação; terceiro, a construção
de diferentes obras públicas em seus territórios, como rodovias e
centrais energéticas, e a constituição de novos municípios nas áreas
indígenas, mediante decisões estaduais. A criação de municípios no
interior das áreas indígenas conduz ao estabelecimento de uma nova
jurisdição que erode a limitada soberania indígena reconhecida pela
Constituição, como também faz surgir uma fonte de atritos entre as
autoridades indígenas e as municipais, já que as últimas estão incluídas
no sistema político estadual. A estrutura municipal e suas relações
de poder também tendem a favorecer a instalação, nessas áreas, de
pessoas não-indígenas e de autoridades e serviços que competem com
os proporcionados ou aceitos pelos líderes indígenas.
É comum nas áreas indígenas predominar, mesmo as
reconhecidas pelo Estado, um clima de insegurança e violência,

55
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

ocorrendo muitas das vezes morte e assassinado de suas principais


lideranças. Além disso, grande parte dos povos indígenas, tanto
em Alagoas como no resto do país, vivem num estado de miséria
significativo, o que faz com que a sua média de vida não ultrapasse
os 42 a 46 anos, sendo que existem regiões em que os índios vivem
apenas 24,5 anos. Apesar disso, a população indígena tem aumentado
em todo o Brasil, ela passou de 220 mil em 1985, para 817 mil
(censo de 2010) atualmente; em Alagoas são 12.115 índios (dados
colhidos do site https://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral).
São mais de 215 povos indígenas que falam 170 línguas distintas no
país. Nas últimas décadas, assistimos o ressurgimento de diferentes
povos indígenas em todo o país, particularmente em Alagoas vimos
ressurgir os Karuazú, em Pariconha; os Kalaancó, em Água Branca;
os Karapotó, em São Sebastião; os Kariri-Xocó em Porto Real de
Colégio, os Koiupanká em Inhapi, os Karuazú; os Katokim e outros
(ver imagem 1). O ressurgimento destes povos significa o resgate do
espaço subjetivo e objetivo de diferentes povos na história de Alagoas5.

5
Recentemente uma equipe multinstitucional formada por FUNASA (Fundação Nacional da Saúde),
FUNAI e MPF (Ministério Público Federal), realizou um recenseamento dos povos indígenas
de Alagoas apontando para 12 grupos indígenas, onde já está incluído o novo grupo faccional
Xukuru=Palmeira.

56
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Imagem 1

Fonte: SILVA, M. Ester

57
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Em Palmeira dos Índios, a luta é árdua, porque as terras


indígenas, objeto de litígio entre 1822-1872 (Igreja de Nossa Senhora
do Amparo), fica exatamente no centro da cidade. Esse fato tem sido
objeto de muitas querelas, na verdade o povo Xukuru-Kariri não
pretende reaver as terras concentradas na zona urbanas, mas somente
aquela pertencente à zona rural, para que nela eles possam plantar
e assim viver dignamente, saindo do estado de miséria e pobreza
em que se encontram. O processo de colonização externo e interno
sofrido pelo povo Xukuru-Kariri afetou sua relação com a terra (como
condição de valor de uso) e consequentemente a organização social da
comunidade indígena. É necessário destacar que os povos indígenas
possuem uma relação com a terra completamente distinta daquela que
apresentada pelo branco colonizador. Para os índios Xukuru-Kariri, a
terra é muito mais que uma simples propriedade, de uma coisa que
pode ser manipulada a qualquer instante, de acordo com os interesses
individuais de seus membros, para os Xukuru-Kariri, assim como as
demais comunidades indígenas, a terra representa o seu próprio modo
de ser no mundo, ou seja, é impossível uma cosmovisão Xucuru-Kariri
destituída da presença da terra.
O Povo Xukuru-Kariri tem junta à sua história de vida a própria
história da cidade. A cidade que antes de tudo é uma criação humana e
deve acolher em seu interior todos os grupos que a ajudaram a construir,
isso visto dentro de uma concepção democrática do que seria uma
cidade. Carlos (2007), em seu livro sobre o lugar no/do mundo, chama
a atenção de como é no lugar que se revela, se lê, se percebe, se entende
o mundo moderno em suas múltiplas dimensões, numa perspectiva
mais ampla é no lugar que se vive o cotidiano e é aí que ganha expressão
o mundial. O mundial que existe no local, redefinindo seu conteúdo
sem anular as particularidades.
A tríade cidadão-identidade-lugar aponta a necessidade
de considerar o corpo, pois é através dele que o homem habita e se

58
VESTÍGIOS EM MOSAICO

apropria do espaço (através dos modos de uso). A nossa existência tem


uma corporeidade, pois agimos através do corpo. Ele nos dá acesso ao
mundo, é o nó vital, imediato visto pela sociedade como fonte e suporte
de toda cultura. (CARLOS, 2007, p.14-19).
Então cabe aqui perguntar como se encontram estes corpos
indígenas na cidade de Palmeira dos Índios? Como andam? O que
comem? Como dormem? Como eles usam a cidade e são usados por
ela? A cidade os reconhece como seus filhos? Ou eles são estrangeiros
em seu próprio lugar?
O espaço é prenhe de ideologias e essas se objetivam no espaço.
Sendo um espaço uma categoria generalizante, é o território a instância
política por excelência que irá fornecer as dimensões das relações
sociais, das relações de vizinhança e solidariedade, das relações de poder.
Raffestin (1993) afirma que o território é estabelecido por e a partir
das relações de poder. Nesse processo está o Cacique Xiquinho e o seu
povo, que ao proclamar a sua identidade indígena e reclamar para si e
seu povo o direito ao uso da cidade de Palmeira dos Índios através do
acesso à terra.
A cidade de Palmeira dos Índios conta hoje com oito grupos
faccionais do Povo indígena Xukuru-Kariri, são eles: Mata da Cafurna,
Amaro, Cafurna de Baixo, Coité, Macacos, Fazenda Canto, Boqueirão
(imagem 2) e agora o grupo liderado por Chiquinho Xukuru, que
estando desaldeados estão espalhados na cidade se concentrando nos
seguintes bairros: Cristo do Goity, Tenório Cavalcante, Xukuru, Alto
do Cruzeiro etc.

59
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Imagem 2

Fonte: SILVA, M. Ester

60
VESTÍGIOS EM MOSAICO

3. PARA NÃO CONCLUIR...

A cidade de Palmeira dos Índios é para os povos indígenas


que aí vivem ou sobrevivem no território de seus ancestrais, o locus
de sua vivência, de sua reprodução enquanto índios. Nessa emergência
de novas territorialidades na cidade Palmeira dos Índios, desvela-se e
se mostra como sobrevive o povo que a ajudou a se erguer enquanto
cidade negros, índios e brancos na clivagem pelo direito à cidade e seus
pretensos benefícios.
É no território que as desigualdades sociais tornam-se
evidentes entre os cidadãos, as condições de vida entre os moradores
de uma mesma cidade mostram-se diferenciadas a presença/ausência
dos serviços públicos se faz sentir e a qualidade desses mesmos serviços
apresenta-se desigual dessa forma: o direito a ter direitos é expresso
ou negado, abnegado ou reivindicado a partir de lugares concretos:
o morar, o estudar, o trabalhar, o divertir-se, o viver saudavelmente,
o transitar, o opinar, o participar (KOGA, 2003, p. 33).
No bojo destas considerações, aponta-se a problemática do
Cacique Chiquinho e seu povo. Como a cidade de Palmeira dos Índios
entende essa questão? O Cacique Chiquinho e o seu povo, assim como as
demais facções que existem na cidade de Palmeira dos Índios, se sentem
aceitos no seu lugar? Como nessas fronteiras invisíveis estão postas
estas questões de identidade e alteridade tão decantada por aqueles que
lidam com estas e principalmente os órgãos do governo que atualmente
pautam seus discursos na importância do lugar e, no entanto, relegam
à condição de párias esses grupos sem nenhuma assistência do Estado
brasileiro, os quais são a ele tutelados.
Em um artigo publicado no livro Índios no Brasil, Carlos
Frederico Marés de Souza Filho se utiliza de uma metáfora de um conto
de Kafka para ilustrar a realidade dos povos indígenas, campesinos,

61
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

quilombolas, mulheres e outros segmentos discriminados da


sociedade latino-americana. O conto kafkiano chama-se “Diante da
lei” e conta a história de um homem que passa toda uma vida diante
da porta da Lei esperando para entrar, sempre há um impedimento,
uma ressalva, uma proibição momentânea, uma ameaça, até que
o homem morre. Marés conclui que dessa mesma maneira os
oprimidos quando chegam à porta da lei encontram um obstáculo,
dificuldade, impedimento ou ameaça, mas o Estado e o Direito
continuam afirmando que a porta está aberta, que a lei faz de todos
os homens iguais, que as oportunidades, serviços e possibilidades de
intervenção do Estado estão sempre presentes para todos, de forma
isonômica e cega.
Faz-se necessário colocar que essa reivindicação do cacique
Chiquinho e seu povo por condições dignas de sobrevivência apontam
exatamente esta falácia que se tornou o estado brasileiro no que diz
respeito a cuidar dos pobres do país.

7. REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Luiz Sávio de. Índios do Nordeste: temas e Problemas 2. Maceió,


EDUFAL, 2000.

ALMEIDA, Luiz Sávio de (Org.). Dois dedos de prosa com os Karapotó. Maceió,
EDUFAL, 1998.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. Ensaios de Geografia Contemporânea Milton


Santos: Obra Revisitada / São Paulo: Ed.da Universidade de São Paulo: Hucitec:
Imprensa Oficial do Estado, 200l.

ESCOLAR, Marcelo. Crítica do Discurso Geográfico. Editora: Hucitec. São


Paulo. 1996.

62
VESTÍGIOS EM MOSAICO

GEYGER, Pedro Pinchas in SANTOS, Milton. Território, Globalização e


Fragmentação. São Paulo, Hucitec, 1998. Informações http://www2.uol.com.br/
JC/sites/indios/historia3.html. Dia 23/12/2007. 05:14. Acessado por Maria Ester
Ferreira da Silva.

https://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral. Acessado por Maria Ester Ferreira


da Silva em 25 de janeiro de 2017, as 09:05 na Rua Dr. Carlos Miranda, número
302. Poço. -Maceió-AL

MORAES, Antonio Carlos Robert. Bases da Formação Territorial do Brasil: o


território colonial brasileiro no ‘longo “século XVI – São Paulo: Huc território
colonial brasileiro no ‘longo “século XVI – São Paulo: Hucitec, 2000.

MORAES, Antonio Carlos Robert Moraes – COSTA, Wanderley Messias da. A


Valorização do Espaço. Editora: Hucitec. São Paulo. 1999.

OLIVEIRA, João Pacheco (org.). A viagem da volta: etnicidade, política e


reelaboração cultural no Nordeste indígena. Contra Capa Livraria, 1999. Rio de
Janeiro-RJ.

TORRES, Luiz B. A Terra de Tilixi e Txiliá: Palmeira dos Índios dos séculos
XVIII e XIX. Maceió, Sergasa.

______. Os Índios Xukuru e Kariri em Palmeira dos Índios. Palmeira dos Índios
–AL, Indusgraf, 1972.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras,


1995.

63
3
FORMAÇÃO PROFISSIONAL EM
SERVIÇO SOCIAL E A RELAÇÃO
ENTRE TEORIA E PRÁTICA
MEDIADA PELA PESQUISA.
Érika Flávia Soares da Costa.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho consiste em pesquisa bibliográfica e se


deu por meio de um debruçar histórico-crítico e dialético e análise de
produções de autores do Serviço Social que se propõem em discutir
a dimensão investigativa, bem como a relação existente entre ela e
o exercício prático do assistente social. A pesquisa tem por objetivo
aludir a discussão acerca de questões relacionadas à formação e a prática
profissional do assistente social, articulando-as à prática da pesquisa no
momento da academia e posterior à formação acadêmica que, por sua
vez, é vista como subsídio ao exercício profissional, sendo devidamente
consideradas as limitações no que toca à sua efetivação.
Tendo em vista que o Serviço Social possui histórico permeado
por um contexto político-econômico e social no que diz respeito à sua
institucionalização enquanto curso e profissão, assim como o lugar e o
papel que a pesquisa tem ocupado e desempenhado na consolidação da
profissão, intenta-se, no presente trabalho, situar, dentro da conjuntura
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

atual do exercício profissional, a relação existente entre teoria e prática


frente às limitações impostas no âmbito da pesquisa, recorrentes no
cotidiano do assistente social, assim como a sua inserção nos programas
de pós-graduação enquanto campo de produção do conhecimento.

2. BREVES APONTAMENTOS QUE SINALIZAM A RELAÇÃO


DA FORMAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL COM A PESQUISA

Ao tratar acerca da temática sugerida pelo trabalho, fazem-se


necessárias algumas reflexões e apontamentos, em virtude disto, vale
lembrar o movimento do capital, uma vez que este apresenta maestria
peculiar em transformar toda realidade em seu objeto – em mercadoria
– que venha de forma direta ou indireta beneficiar a sua reprodução e
manutenção, sendo construído em seu favor um sistema universal de
equivalências que, por sua vez, é próprio de uma formação social que
possui por base a troca de equivalentes ou a troca de mercadorias por
mediação de uma outra mercadoria, o que conhecemos por dinheiro,
que acabou tornando-se um equivalente universal (CHAUÍ, 1999).
É importante atentar ao exposto acima, pois a pesquisa acabou
se tornando também uma mercadoria dentro de toda a lógica capitalista.
E essa, que inserida no processo de formação profissional do assistente
social, sendo reconhecida como componente fundamental e tendo em
vista a busca pela superação do pragmatismo que por muito tempo
marcou a história de sua prática profissional ainda perpassa, mesmo de
forma camuflada ou escancarada, os espaços nos quais se inserem os
profissionais do Serviço Social.
O ensino superior como um todo vem sofrendo com esse
enquadramento1 feito pelo grande capital que acaba regendo-o de
forma a beneficiar sua manutenção enquanto modo de produção
1
Acerca do enquadramento do sistema educacional brasileiro ver NETTO (2011).

66
VESTÍGIOS EM MOSAICO

vigente. Neste sentido, não é difícil de perceber que esse vem sendo
tratado como um dos tantos outros investimentos que objetivam tão
somente adequarem-se às propostas lançadas pelo mercado. Para que
isso fique mais evidente, basta observar para quais áreas são dispensados
maiores recursos no que toca ao financiamento de projetos de pesquisa,
como exemplo podemos citar as áreas das ciências da natureza e
desenvolvimento tecnológico2.
A categoria que forma o Serviço Social tem lutado historicamente
para não cair no enquadramento proposto pelo capital e para que isso
continue ocorrendo é preciso que as universidades se centrem numa
formação profissional possuidora de competência teórica, que possibilite
uma visão de mundo ampla (ANUNCIAÇÃO; DAMASCENA;
OLIVA, 2006). Muito disso pode ser desempenhado quando se busca
a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, pois ao
manter-se tal tripé articulado, estimula-se o espírito crítico durante
a elaboração e apropriação do conhecimento, tanto por parte dos
docentes quanto dos discentes.
Quando notada a composição das Diretrizes Curriculares do
Serviço Social (1996), assim como o próprio Código de Ética (1993)
e a Lei de regulamentação da Profissão (1993), fica evidente que sua
formação generalista pauta-se nas competências teórico-metodológica,
técnico-operativa, ético-política e formativa (GUERRA, 2000)
construídas historicamente pelo Serviço Social e que desempenham
função essencial em contribuir para a consolidação do projeto ético-
político que tem orientado e direcionado o trabalho profissional, bem
como o seu processo de formação. Portanto, considerar as modificações
ocorridas no currículo da profissão em determinados períodos é
perceber que essa não ocorrera de forma aleatória e sem abstração e
maturação teórica, ao contrário, exigiu-se postura comprometida por


2
Tal observação não se ampara em dados estatísticos, apenas em observações empíricas a partir da
inserção em grupos de pesquisas e vivências acadêmicas que proporcionaram acesso à tal percepção.

67
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

parte das entidades representativas da profissão – e de toda a categoria


profissional – o que resultou no acúmulo de debates e trocas de
experiências, sobretudo, no campo da produção acadêmica.
Pensar as nuances que envolvem o processo de formação do
Serviço Social faz remeter a ideia de que:

A recuperação da unidade teoria x prática, é uma tarefa


que envolve o processo histórico de transformação
da sociedade, de maneira efetiva e consciente. No
Serviço Social o Movimento de Reconceituação
representou momento de busca crítica da categoria,
vinculada à exigência do contexto (ANUNCIAÇÃO;
DAMASCENA; OLIVA, 2006, p. 57-58).

Mais uma vez explicita-se a contribuição primordial da


organização da categoria tanto no contexto acima citado, historicamente
delicado, quanto no contexto atual em que a ofensiva capitalista
não mede esforços em fazer regredir os avanços conquistados pela
categoria profissional, do mesmo que no campo dos direitos sociais e
na educação superior como um todo. Vale ressaltar que um momento
de vasta elaboração teórica e expansão de ideias no campo do Serviço
Social foi o Movimento de Reconceituação da profissão, pois, como
supracitado, evidenciou a busca da categoria por uma perspectiva
teórico-metodológica crítica e sua organização em termos legais e
documentais. Nesse sentido

O Serviço Social, até aproximadamente a década de 80,


fundamentou a sua prática profissional em diferentes
paradigmas, como o funcionalismo, a fenomenologia
e o estruturalismo. Enveredou por diferentes modos
de pensamento, como o da igreja católica, dominante
durante longo período, como o funcionalismo norte-
americano e depois o funcional (ANUNCIAÇÃO;
DAMASCENA; OLIVA, 2006, p. 61).

68
VESTÍGIOS EM MOSAICO

As autoras mencionadas consideram que a prática profissional


é como uma dimensão da prática social, que vem a se manifestar de
forma concreta em situação social específica e se concretiza também
através de uma intervenção socialmente construída, posta na divisão
sociotécnica do trabalho. Para tal feito apontado pelas autoras, é exigido
da categoria profissional clareza em relação ao objeto-método, mediante
as complexidades demandadas socialmente.

No tocante à formação profissional e a assumir a


pesquisa na postura histórico-crítico no Serviço
Social, é necessário salientar que isto tomou forma
após a explicitação da perspectiva de intenção de
ruptura. A profissão ganhou uma característica crítico-
reflexiva e redimensionou-se, reconheceu-se como
profissão inserida na divisão sócio-técnica do trabalho
e se considerou desafiada cotidianamente a articular
profissão e realidade social, tendo em vista que o
assistente social não atua apenas sobre a realidade, mas
também na realidade (MELO, 2011, p. 23).

Como salientado, a maturação teórica ou a maioridade das


Ciências Sociais – e a aproximação do Serviço Social a essa área do
conhecimento – tem seu lugar especialmente nas décadas de 1980 e
1990, tendo por reflexo a produção do conhecimento por parte do
Serviço Social que tem como impulso a pós-graduação, que passa a
ter equiparação às outras áreas das Ciências Sociais no que toca o rigor
teórico-metodológico. Considera-se também que houve um aumento no
número de projetos, grupos de pesquisa, fóruns e espaços de divulgação
de pesquisas, em especial no âmbito acadêmico (ANUNCIAÇÃO;
DAMASCENA; OLIVA, 2006). Tal aumento na produção teórica
dentro do Serviço Social prova o quanto a categoria profissional
interessava-se em tornar-se também produtora de conhecimento e não
somente consumir conhecimento das Ciências Sociais.

69
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Pode-se considerar que houve no Serviço Social


avanços significativos no que se refere à pesquisa,
mas existem ainda muitas barreiras, sendo necessário
uma conscientização dos profissionais no sentido
de compreender a real importância da busca de
conhecimento, bem como o incentivo por parte
das universidades, instituições, governo, sociedade
civil, enfim, um trabalho articulado, que tenha como
horizonte uma atuação eficaz e competente num espaço
de trabalho tão contraditório onde o assistente social
está inserido. (ANUNCIAÇÃO; DAMASCENA;
OLIVA, 2006, p. 69)

No sentido apontado até então, pode-se notar que o Serviço


Social, na década de 1980, conquistou muitos patamares no que diz
respeito aos avanços teóricos, porém é notório o fato de que ainda se
exige muito do empenho da categoria para continuar superando os
desafios que se colocam cotidianamente, assim como manter aceso o
processo de desconstrução e reconstrução constante de acordo com as
transformações sociais que se manifestam historicamente.
Melo (2011) sinaliza para o fato de que existe uma necessidade
real de a categoria reafirmar constantemente a importância da sua ação
investigativa, ao mesmo tempo em que deve ser atentada para a dimensão
interventiva, enfatizando, dessa maneira, a essencial interrelação que existe
entre a teoria e a prática e sua relevância para o processo de formação
profissional e, sobretudo, para os reflexos dessa no agir profissional.
Aos profissionais da área do Serviço Social é de ciência as reais
contribuições que a pós-graduação trouxe para a profissão e o papel
que essa veio cumprir junto à construção de um novo direcionamento,
um direcionamento crítico dentro do Serviço Social brasileiro, que não
por acaso possui hegemonia no que toca à produção do conhecimento
e da pesquisa, o que implica diretamente na renovação da imagem do
assistente social contemporâneo.

70
VESTÍGIOS EM MOSAICO

A pesquisa tem papel sumamente relevante dentro da formação


do assistente social, desde o momento da graduação e, sobretudo, na pós-
graduação. De acordo com Guerra (2011), foi na década de 1980 que
a profissão passou por uma importante revisão no campo da formação
profissional, adotando um novo currículo que modificou certos ditames,
o que fomentou um processo de construção de uma cultura inovadora
e crítica que encontrou na pesquisa o seu fundamento, bem como na
produção do conhecimento a contribuição para sua livre expressão.
Para subsidiar tal movimento de ênfase da necessidade da
categoria em fundamentar sua prática e atribuí-la o perfil do profissional-
pesquisador, foram percebidos avanços significativos no campo da pós-
graduação stricto sensu que, no Brasil, teve início na década de 1970
e fora impulsionada por professores que, por sua vez, estavam sendo
motivados pelo ideal de desenvolver a vida acadêmica e a produção
científica, utilizando-se de pesquisa qualificada (CARVALHO; SILVA,
2007, p. 5).
Mediante as proposições dos autores expostos no presente
trabalho, é notável a preocupação que a categoria apresenta, através
de suas entidades representativas, principalmente no que toca a
manutenção de uma prática coerente com os fundamentos teórico-
metodológicos aderidos por ela no decorrer de seu amadurecimento no
campo do conhecimento. Porém, fazer tal manutenção, estando no bojo
de um modo de produção que a cada fase desenvolve facetas ainda mais
fortes no sentido de desregulamentar o que até então fora conquistado,
não somente pelo Serviço Social, mas pela classe trabalhadora como
um todo, não tem sido tarefa fácil de cumprir. Tal realidade é cada
dia mais desafiadora, principalmente quando se depara com um dos
principais dilemas expressos pelos profissionais que estão atuando, de
que “na prática a teoria é outra”.
Carvalho e Silva (2007) explicam a ocorrência de tal afirmação no
sentido de que, na maioria das vezes, o profissional acaba estacionando

71
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

em seu processo de formação e se mantém preso ao entendimento


comum e equivocado de que a teoria se resume a um aparato de regras,
modelos, procedimentos e referências instrumentais que são capazes de
serem aplicadas imediatamente a realidade articulando esta noção de
teoria a um valor, alcance e papel que, por sua vez, são condicionados
à sua capacidade de dar respostas prático-empíricas à realidade. Nessas
condições, encontram-se uma grande parcela da categoria de assistentes
sociais, pois vários são os fatores que os levam a tal estágio, entre eles
encontra-se a própria carga horária de trabalho extensa em alguns
espaços de atuação profissional que, por atenderem a uma demanda
muito extensa, acabam sendo sucumbidos pelo próprio cotidiano, não
conseguindo fazer ao menos o exercício reflexivo mediante a realidade
que lhe chega.
Uma importante dimensão que deve ser considerada na
compreensão da postura profissional frente a tal dilema é que “esse
distanciamento entre teoria e prática é decorrente do processo de
acumulação capitalista, que produz uma alienação capaz de tornar
a prática imediatista, que molda apenas os interesses do capital e da
classe vigente – a burguesia” (MELO, 2011, p. 31). É justamente nesse
sentido que se pode perceber a total relação que se estabelece por parte
da pesquisa no processo de legitimação da indissociabilidade entre a
teoria e a prática, pois a pesquisa, desde a sua inserção no processo de
formação do assistente social, veio para contribuir em diversos aspectos,
sobretudo, na relação teoria-prática, fomentando o comportamento
investigativo e promovendo uma prática mediatizada.
O que é recorrente no cotidiano da prática profissional e o
que se mostra como algo que tem impedido que a pesquisa aconteça
é o fato de que não há incentivo por parte de algumas instituições e
o profissional acaba isentando-se do dever de atribuir essa dimensão à
sua prática e acaba limitando-se ao cumprimento de metas e demandas
institucionais, tendo em vista que a formação acadêmica pressupõe

72
VESTÍGIOS EM MOSAICO

um perfil pesquisador para o assistente social, uma vez que este esteja
submetido à prática. Sem a pesquisa como parte fundamental da
intervenção profissional, torna-se impossível que o assistente social
compreenda a realidade na qual está inserido.
Desta forma

O assistente social precisa ser ousado e construir


mediações para o relacionamento com a instituição
para não direcionar o seu exercício profissional à rotina
sufocadora do cotidiano. Sem deixar que os objetivos
institucionais se misturem e/ou se sobreponham aos
objetivos profissionais (MELO, 2011, p. 34).

Há que se concordar com Carvalho e Silva (2007) quando


afirmam que a profissão e o conhecimento que a fundamenta só podem
ser compreendidos quando considerado o movimento histórico e as
mudanças socioeconômicas e políticas na sociedade brasileira – e no
processo de inserção, construção e reconstrução da profissão neste
âmbito, ao perceber que o tal movimento não se constitui homogêneo
nem tampouco linear.
Muitos são os desafios postos ao Serviço Social na
contemporaneidade, porém existe uma real necessidade em pensar a
profissão em articulação com a Graduação/Pós-Graduação, igualmente
com a própria sociedade brasileira e com a construção do conhecimento,
pois tais desafios pairam sobre a produção de saberes que de forma
eficaz estejam corroborando para o fortalecimento das lutas sociais, na
luta por uma sociedade democrática, levando em total consideração
a apropriação da riqueza socialmente construída de forma igualitária,
inserindo socialmente todos dentro de um padrão de vida digna e
socialmente aceitável (CARVALHO; SILVA, 2007, p. 12).

73
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

3. A CONTRIBUIÇÃO DA PESQUISA NA RELAÇÃO ENTRE


TEORIA E PRÁTICA

Desde que a profissão inicia o movimento de repensar a sua


prática profissional, o que se tem evidenciado é a preocupação com
o que o projeto de formação do assistente social tem reforçado em
todo esse processo. De acordo com Jorge (1999), deve ser reforçada a
necessidade da aquisição de conhecimentos teóricos que tenham por
base pressupostos sustentados em debates científicos. Vale ressaltar o
fato de que todo esse empenho se deu em virtude da elaboração de
um currículo que contemplasse a realidade concreta na qual a profissão
estava inserida. Diante disso

O currículo é um propósito que não é neutro em


termos de informação e corresponde a um conjunto
de intenções situadas no continuum que vai da máxima
generalidade à máxima concretização, traduzidas por
uma relação de comunicação que veicula significados
social e historicamente válidos (JORGE, 1999, p. 140,
grifos da autora).

Tendo em vista o que a autora traz na citação, só se ratifica cada vez


mais o fato de que a construção de um currículo para a profissão não se deu
de forma aleatória nem tampouco por uma demanda unicamente regida
pelo mercado. O que fica mais evidente a cada parágrafo que se discorre
é que a pesquisa está presente em cada momento da história do Serviço
Social, bem como as limitações que a envolvem, mesmo que de formas
e ênfases diferentes a cada período e conta com instâncias representativas
como a ABEPSS3 desde a sua fundação, quando ainda cunhava-se ABESS.
Ainda desenvolvendo observações apontadas pela autora
supracitada, os anos 2000 trouxeram para a profissão uma espécie de
3
Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social.

74
VESTÍGIOS EM MOSAICO

encorajamento para prosseguir nos rumos do projeto de formação


profissional do assistente social, pois, mediante os patamares galgados
pela categoria, esse profissional tinha momento oportuno para realmente
constituir um novo perfil se marcadas as reflexões que historicamente
foram consideradas e conseguir forjar-se a partir de uma nova lógica e
de novos conteúdos curriculares construídos coletivamente. Tendo em
vista tal cenário, fica mais uma vez clara a necessidade de se manter o
processo de formação profissional sob constante e crítica atualização
nos mais variados campos profissionais.
Nesse intercurso de desconstrução e reconstrução de novos
referenciais teórico-metodológicos para o Serviço Social, algumas
instâncias corroboraram para que avanços no campo da pesquisa na
área alavancassem. Uma dessas instâncias foi a Revista Serviço Social &
Sociedade4 com seus conteúdos tais como: depoimentos, entrevistas,
resenhas, notícias, comunicações entre outros. Tais fomentos, dados através
da revista, expressam enfaticamente a relevância desse veículo para a difusão
da produção científica do Serviço Social no Brasil (SILVA, 1999).

Pode-se mesmo dizer que a revista Serviço Social &


Sociedade tem assumido uma liderança inquestionável
no campo da difusão do conhecimento de interesse
do Serviço Social, desempenhando verdadeira função
social pelo compromisso com o debate contemporâneo
das diferentes épocas, além de ter conseguido ser um
espaço pluralista, pela diversidade de temáticas que
aborda. As contribuições à construção do Serviço Social
brasileiro, nestas duas décadas de história, podem ser
assim resumidas: fundamentar e instrumentalizar a
ação profissional crítica na academia, na organização
político-profissional, na prática institucional e junto aos
movimentos sociais populares; contribuir para o avanço
teórico-metodológico no campo do trabalho social;

4
A Revista Serviço Social & Sociedade surge numa conjuntura que contava com profunda efervescência
da sociedade brasileira (1979), pois, tal período marcava a maturidade da luta política para a derrubada
da ditadura militar que fora implantada no país em 1964 (SILVA, 1999).

75
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

fomentar o avanço da produção científica do Serviço


Social e sua difusão (SILVA, 1999, p. 12).

Jorge (1999) vai concordar com a autora no que toca à


significativa produção de trabalhos acadêmicos, principalmente os
Trabalhos de Conclusão de Curso – TCC, produzidos pelas mais
diferentes unidades de ensino de graduação, as dissertações de mestrado
e, mais recentemente, as teses de doutorado, bem como as publicações
de caráter nacional, como a própria revista citada anteriormente e
os Cadernos da ABESS. Toda essa produção tem refletido acerca de
questões que contemplam o projeto de formação profissional e se
configuram em propostas curriculares para a profissão desde o seu
surgimento. Torna-se, portanto, inegável a presença da pesquisa no
bojo profissional, desde o processo formativo até momento em que os
profissionais se encontram nos campos de atuação.
É importante atentar para o fato de que existem realidades que
permeiam o Serviço Social e algumas delas são:

[...] a distância entre a vanguarda acadêmica e a


massa dos profissionais “do campo”; um mercado de
trabalho crescentemente diferenciado versus a formação
profissional; o hiperdimensionamento da magnitude
da ruptura com o conservadorismo, como tendo sido
ofuscada a efetividade da persistência conservadora;
ação das vanguardas profissionais altamente politizadas,
quando o perfil ideológico-político de caráter
conservador não é residual (SILVA, 1999, p. 52).

A despeito dos avanços conquistados pela profissão com


a maturidade teórica, tal cenário aponta, também, para diversas
problemáticas que são trazidas à cena em virtude de uma estrutura
social que se coloca regida pelo modo de produção capitalista e suas
transformações em face das investidas neoliberais. Tais transformações

76
VESTÍGIOS EM MOSAICO

continuam exigindo do profissional de Serviço Social um posicionamento


cada vez mais enfático quanto as determinações teórico-metodológicas
assumidas pela profissão e seu posicionamento ético-político e técnico-
operativo em consonância com o projeto profissional construído
historicamente pela categoria e resguardado continuamente através de
debates afirmativos, produção teórica, bem como pelos posicionamentos
das entidades representativas da profissão.
Olhar diferenciado vem sendo dispensado a presente discussão,
justamente pelo padrão societário que se tem estabelecido pelo
capitalismo, em que a maneira de trabalhar, de viver e, até mesmo, pensar
é imposta a partir de exigências que pressupõem uma atuação na própria
subjetividade do trabalhador para que se consolide a sociabilidade do
modo de produção vigente em sua reatualização (KOIKE, 2009).
As transformações societárias e contemporâneas possuem
exigências para toda a classe trabalhadora, porém o que se tem por
exigência atual no mundo do trabalho para os assistentes sociais
é a necessidade em ter um profissional culturalmente articulado e
politicamente antenado ao contexto histórico, capaz de decifrar o que
fora dito e o não-dito, que consiga compreender os dilemas implícitos
no ordenamento expresso pelo discurso autorizado pelos que estão no
poder, exige, sobretudo, um profissional com competência estratégica e
técnica (IAMAMOTO, 2009):

O exercício da profissão exige um sujeito profissional


que tenha competência para propor, para negociar
com a instituição os seus projetos, para defender o seu
campo de trabalho, suas qualificações e atribuições
profissionais. Requer ir além das rotinas institucionais
para buscar apreender, no movimento da realidade, as
tendências e possibilidades, ali presentes, passíveis de
serem apropriadas pelo profissional, desenvolvidas e
transformadas em projetos de trabalho (IAMAMOTO,
2009, p. 12).

77
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

A autora mencionada faz relevantes apontamentos acerca do


exercício profissional e dos desafios impostos pelo cotidiano. Alguns
destes desafios estão vinculados à postura que o profissional adota
em sua prática mediante as demandas extensas propostas pelas
instituições. A competência de propor e negociar seus projetos junto
ao que a instituição tem por prioridade expressa a postura teórico-
metodológica internalizada na bagagem do assistente social e com
o que este concebe por pesquisa enquanto uma das prerrogativas
primordiais para uma prática eficaz, pois não há projeto de intervenção
profissional isento da dimensão investigativa e da postura curiosa,
debruçada na realidade.
Destarte, concorda-se com o que vem sendo apontado no
parágrafo anterior quando afirma que o profissional de Serviço Social
precisa possuir uma formação que proporcione a esse um perfil crítico
que se funde em rigorosa capacidade teórica, ético-política e técnico-
operativa e que se volte ao conhecimento e transformação da realidade
na qual esteja inserido (KOIKE, 2009).
Nesse sentido, para uma observação do que tem sido o fazer
profissional e as experiências cotidianas, requer-se muito mais do
que uma mera descrição ou a elaboração de receitas prontas para
o “como fazer”. O assistente social que está apto ao exercício
profissional precisa ter ciência de que sua prática deve estar
permeada pela constante análise crítica e teórica fundamentada
no que a formação anterior propôs como direcionamento teórico-
metodológico, percebendo a trama de interesses que se polarizam no
seio social tendo, por sua vez, a intrepidez em construir estratégias
coletivas, articulando-as às forças sociais progressistas que possam
contribuir na potencialização de caminhos que busquem reforçar
os direitos nos diversos espaços ocupacionais em que o profissional
possa estar inserido (IAMAMOTO, 2009).

78
VESTÍGIOS EM MOSAICO

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar e problematizar nuances relacionadas à profissão é tarefa


diária que se coloca na agenda do assistente social. Estes são profissionais
com senso crítico fomentado desde o momento em que se inserem na
academia com o intuito de sair graduados em Serviço Social, portanto
não é tarefa impossível, a qual cabe a cada profissional que se encontra
não somente no campo da pesquisa acadêmica, mas em especial aqueles
que vivenciam a prática da profissão e que, por sua vez, possuem a
experiência ímpar que é estar in loco realizando de perto análises acerca
da dinamicidade social.
A discussão trazida não é estanque, nem tampouco está acabada,
ao contrário, aqui foi dado apenas um pontapé para desdobramentos
futuros. O que fora proposto, até então, é a problematização do lugar da
pesquisa na prática profissional do assistente social e a sua contribuição
na efetivação do exercício profissional.
Conceber o Serviço Social como uma profissão democrática e
sua categoria organizada como um corpo que está disposto a construir
um horizonte diferente do que se tem por realidade social é não deixar
de perceber que cada profissional, estudante, docente e todo aquele
que esteja em alguma medida envolvido nesse projeto societário possui
responsabilidades no sentido de promover espaços e momentos em que
tais debates devem existir, pois o projeto profissional é um processo que
está em permanente construção.
Para que o profissional desenvolva suas potencialidades, faz-se
necessário que haja interlocução com a teoria social crítica adotada pela
própria categoria como norteador teórico-metodológico e que, além
disso, seja exercitada a atitude investigativa e da prática da pesquisa.
Os estudos desenvolvidos pelos profissionais não devem limitar-
se ao período em que estiveram inseridos na academia, esses devem

79
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

avançar nos campos de atuação e, para que isso aconteça, sugere-se que
se insiram nos programas de pós-graduação na própria produção do
conhecimento, apropriando-se dos princípios éticos.
Incansavelmente fala-se em novos tempos, em seguir avante na luta
por maior reconhecimento da própria profissão, porém há que se colocar
em questão um fator que depende de vários fatores externos, entretanto,
em grande medida depende também da própria categoria, que é o assumir
a postura investigativa – a pesquisa propriamente dita – como elemento
imprescindível ao cotidiano do Serviço Social, e é essa tomada de atitude
que fará com que seja impressa e consolidada cada vez mais fortemente a
marca da competência do exercício profissional do assistente social.

5. REFERÊNCIAS

ANUNCIAÇÃO, A. T.; DAMASCENA, A. A. C.; OLIVA, M. S. A


pesquisa como instrumento fundamental na atuação profissional do
assistente social. Presidente Prudente/SP, 2006, p. 36-72. Disponível
em : <http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/Juridica/article/
viewFile/463/457> Acesso em: 10 de dezembro de 2014.

CARVALHO, D. B. B.; SILVA, M. O. S. A pós-graduação e a produção


de conhecimento no Serviço Social brasileiro. Brasília: Repositório
Institucional/UNB, 2007. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/
handle/10482/6301> Acesso em: 10 de dezembro de 2014.

CHAUÍ, M. 20 anos -Reforma do ensino superior e autonomia


universitária. Revista Serviço Social & Sociedade – São Paulo, ano XX, n.
61, ago, p. 118-126, 1999.

GUERRA, Y. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais - A


instrumentalidade no trabalho do assistente social. Cadernos do Programa
de Capacitação Continuada para Assistentes Sociais, CFESS/ABEPSS-
UNB, Brasília, 2000, p. 1-11.

80
VESTÍGIOS EM MOSAICO

______. A instrumentalidade do Serviço Social. 9ª ed. – São Paulo:


Cortez, p. 170-176, 2011.

IAMAMOTO, M. V. Serviço Social: direitos sociais e competências


profissionais: O Serviço Social na cena contemporânea. Cadernos do
Programa de Capacitação Continuada para Assistentes Sociais. CFESS/
ABEPSS-UNB, Brasília, p. 01-45, 2009.

JORGE, M. R. T. 20 anos: A construção curricular no ensino de Serviço


Social: processo permanente. Revista Serviço Social & Sociedade – São
Paulo, ano XX, n. 61, nov, p. 127-151, 1999.

KOIKE, M. M. Serviço Social: direitos sociais e competências profissionais


- Formação profissional em Serviço Social: exigências atuais. Cadernos do
Programa de Capacitação Continuada para Assistentes Sociais. CFESS/
ABEPSS-UNB, Brasília, p. 1-26, 2009.

MELO, L. L. S. A formação profissional do assistente social e a pesquisa.


In: Desafios impostos ao assistente social para desenvolver pesquisa:
um breve estudo sobre a pesquisa na formação acadêmica e na prática
profissional. Ano de depósito na biblioteca 2011, 84 f. Trabalho de
Conclusão de Curso de Graduação em Serviço Social – Universidade Federal
de Alagoas, Palmeira dos Índios/AL.

NETTO, J. P. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no


Brasil pós-64. – 16ª ed. – São Paulo: Cortez, 2011, p. 53-67.

SILVA, M. O. S. 20 anos - Contribuições da revista para a construção do


Serviço Social brasileiro. Revista Serviço Social & Sociedade - São Paulo,
ano XX, n. 61, nov, p. 11-62, 1999.

81
4
QUESTÃO AGRÁRIA E “QUESTÃO SOCIAL”:
APONTAMENTOS E RELAÇÕES
DE SUAS RAÍZES HISTÓRICAS
E TEÓRICAS-CONCEITUAIS.
Karina Lima Duarte Neves Rocha

1. INTRODUÇÃO

O material aqui exposto é derivado do projeto de pesquisa do


mestrado acadêmico, realizado na Universidade Federal de Sergipe
(UFS), e da dissertação apresentada como nota parcial para conclusão
do curso. O objetivo da pesquisa foi entender como se estabelecem as
relações históricas, políticas e teóricas entre a questão agrária e “questão
social” no Brasil à luz da teoria social crítica. Entretanto, neste artigo se
expõe somente as bases ontológicas dessa relação entre questão agrária
e “questão social”.
A escolha de tal objeto justifica-se pela atual demanda de
intervenções do Serviço Social no espaço rural, visto que a questão
agrária exige da profissão, como as demais áreas de intervenção, uma
leitura crítica da realidade e uma prática eficaz. Entretanto, responder
satisfatoriamente a tal demanda tem se configurado em uma tarefa árdua,
em decorrência da escassez de aportes teóricos que busquem, na gênese
da questão agrária, as causas das contradições no campo. Acrescenta-
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

se à justificativa, as participações desta pesquisadora em projetos de


pesquisa de extensão na área que discutem a questão rural no Estado
de Alagoas, na Universidade Federal de Alagoas, o “Observatório da
Questão Rural” e o “Programa de Educação Tutorial – Núcleo de
Estudos do Semiárido Alagoano” (PETNESAL), os quais possibilitam
uma leitura a partir da totalidade, para conhecer o espaço rural e suas
dinâmicas sociais, políticas, econômicas e culturais.
O materialismo-histórico-dialético é o método que se apresenta
como aporte essencial desta investigação, por meio do qual buscou-
se reproduzir teoricamente o movimento real e efetivo do objeto. Esse
método exige a visualização dos fatos sociais a partir de sua totalidade e
foi assim que se tornou possível a esta pesquisa desvendar algumas das
mediações da relação entre questão agrária e “questão social”. Vistos a
partir da totalidade social, esses fenômenos foram explicados por suas
relações dialéticas.
A pesquisa desdobrou-se apreendendo a realidade através de um
percurso para além de sua aparência fenomênica, imediata e empírica
– apesar dessa etapa configurar-se como a primeira do processo de
aproximações sucessivas ao objeto – e exigiu que o sujeito de pesquisa
fosse capaz de mobilizar um máximo de conhecimentos, criticá-los e
revisá-los, além de munir-se de criatividade e imaginação (NETTO,
2011). Esse caminho teve o intuito de se chegar à essência do objeto.
Por outro lado, entende-se que com este trabalho não findam
as inquietações decorrentes deste objeto, até porque se compreende a
totalidade como processos que se constroem na dialética da realidade.
Esta pesquisa se caracteriza por seu caráter exploratório,
aproximando-se do objeto, desvendando-o. A técnica procedimental
utilizada é a da pesquisa bibliográfica, com análise qualitativa dos dados.
De maneira geral, tem-se o esforço de relacionar a emergência
da questão agrária e da “questão social” como processos históricos

84
VESTÍGIOS EM MOSAICO

correspondentes e dependentes. Situa-se também, nesse contexto, a


acumulação primitiva do capital e a “questão agrária”, trazendo à tona
as implicações para a constituição da “questão social”.

2. AS RAÍZES DA QUESTÃO AGRÁRIA E “QUESTÃO SOCIAL”


NOS PAÍSES CAPITALISTAS DE ECONOMIA CENTRAL

Pretende-se, neste item, abordar alguns elementos conceituais e


históricos da relação entre questão agrária e “questão social”, nas suas
expressões clássicas, advindas dos países europeus que fizeram a gênese
do capitalismo no mundo, a fim de fornecer um panorama introdutório
que dará base de estruturação para posteriores reflexões, inclusive para
se pensar esses processos no caso brasileiro.
Logicamente sabendo que a tarefa de relacionar a emergência
da questão agrária e da “questão social” como processos históricos
correspondentes e dependentes, não se restringe a esta pequena
explanação, adverte-se também para o cuidado científico necessário,
considerando-se que os processos sociais não acontecem de forma
linear e com demarcações históricas exatas. Entretanto, compreende-
se ser necessário localizar historicamente os seus principais elementos
constituintes e evidenciar que existem outros componentes a serem
tangenciados nesta relação.
Em suma, compreende-se que a questão agrária, como processo
histórico, se origina quando a propriedade de terra é utilizada para o
aumento da acumulação primitiva de capital e se torna instrumento
também de criação da mão de obra livre e do exército industrial de reserva,
entre os séculos XVI e XVIII – momento histórico de expropriação
dos camponeses, concentração de terras e o início da acumulação de
riquezas para a reprodução capitalista. A “questão social”, por sua vez,
tem suas expressões nítidas no século XIX, com a ascensão capitalista e

85
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

a sociedade industrial. Quando o aumento do processo de acumulação,


através das transformações tecnológicas, intensifica a produção e, com
isso, suas contradições – o crescimento do pauperismo, das lutas sociais
e políticas do proletariado. Em linhas gerais, esse é o conteúdo que se
sintetiza a seguir.

3. ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DO CAPITAL E “QUESTÃO


AGRÁRIA”

Para alcançar o objetivo principal deste trabalho, é necessário


tecer algumas considerações histórico-conceituais a respeito da relação
existente entre a questão agrária e a “questão social”1, com base na teoria
social de Marx.
Se expõe neste item algumas afirmações sobre a antecedência
da questão agrária à “questão social”, que mesmo considerando alguns
autores como referência para a discussão, percebe-se que ou negligenciam
ou deixam de enfatizar a questão agrária como antecedente ao processo
de desenvolvimento do capitalismo. Cita-se aqui Sant’ana (2012),
por exemplo, quando essa afirma que “as particularidades da questão
social resultantes do embate de classes advindo das relações capitalistas
na agricultura compõem a questão agrária [...]” (Sant’ana, 2012, p.
149). Logo, é a partir disso que se desenvolve esta prévia discussão,
questionando afirmações similares a essa, a qual associa a origem da
questão agrária como um desdobramento da “questão social”. Pretende-
se refletir a respeito dessa relação, considerando ambas as questões de
modo ontológico e, portanto, abordando seus fundamentos, para, em
seguida, pensar em como se relacionam no caso do capitalismo clássico
e do capitalismo brasileiro.

1
A utilização de aspas duplas na palavra “questão social”, neste trabalho, será adotada sempre que citada,
na intenção de identificá-la no contraponto à concepção conservadora.

86
VESTÍGIOS EM MOSAICO

A premissa é de que a “questão social”, como qualquer outro


fenômeno social, tem seus antecedentes históricos e, neste caso, a
acumulação primitiva de capital, como chama Marx, é sua “pré-
história”. O modo de produção capitalista herda de sua pré-história
consequências que se tornam constantes em todo percurso histórico, em
particular, destaca-se a gênese e reprodução do que ora foi denominado
de questão agrária. Parte-se do pressuposto que a questão agrária na
Europa apareceu com o processo de acumulação primitiva do capital.
Processo crucial para a disponibilizar grandes massas de capital e de
força de trabalho nas mãos de produtores de mercadorias.
Segundo Soto (2002), no último quartel do século XIX, estudos
sobre a questão agrária tornam-se objeto de análise e debate nos países
europeus onde ainda se mantinham traços da sociedade feudal, em um
movimento que dividia a opinião de alguns pensadores. Uns acreditavam
que o campesinato e os senhores representavam o atraso diante de muitas
outras regiões que já constituíam as relações capitalistas no campo, outros
tinham a expectativa de que a manutenção do campesinato expressava
o amparo nacional diante das migrações de trabalhadores estrangeiros:
“As duas posições iniciais foram modificando-se rapidamente diante
da complexidade do que se conhece até hoje como a ‘questão agrária’”
(SOTO, 2002, p. 30).
O processo de acumulação primitiva de capital representa,
além de outros aspectos, a desconstrução das sociedades feudais e a
constituição da sociedade capitalista, ocasionando, com isso, mudanças
econômicas, sociais e políticas.

Marx e Engels preocupavam-se, desde o início das suas


trajetórias intelectuais, com a problemática agrária,
entendendo-a como parte integrante das suas análises
sobre as relações sociais capitalistas. A questão camponesa,
na perspectiva de Marx e Engels, complementa a análise
da estrutura social no capitalismo. A ideia central que

87
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

está presente na análise marxista é que os camponeses


são considerados como uma classe transitória que se
situa entre as duas classes fundamentais do capitalismo:
a burguesia e o proletariado (SOTO, 2002, p. 30).

O posicionamento que se refere aos camponeses como uma classe


transitória é, na verdade, decorrente do contexto histórico em que os
autores, Marx e Engels, estavam inseridos, visto que, naquela situação,
os camponeses estavam ameaçados pela extinção e se tornando parte
da burguesia ou do proletariado, de acordo com o domínio dos meios
de produção. Contudo, o importante é reafirmar que esses autores já
identificavam que, mesmo antes do capitalismo propriamente dito, já
havia manifestações das expressões do que chamamos de questão agrária.
Compreende-se que a questão agrária se manifesta historicamente de
diversas maneiras, de acordo com as mudanças ocorridas nos modos de
produção e das relações sociais estabelecidas.
A questão agrária se metamorfoseia com a ascensão capitalista.
Os problemas agrários e seus conflitos reaparecem e são visualizados
de diferentes formas, a depender dos interesses de cada classe. Para a
burguesia, o problema da concentração de terras representa o obstáculo
para o crescimento e reprodução da acumulação capitalista na agricultura.
Por sua vez, para a classe trabalhadora, a questão agrária intensifica-se
com o movimento de sua expropriação, a fim de submeter o trabalhador
livre ao capital, que passa também a ser proprietário da terra.

Ela surge em consequência do obstáculo que a


propriedade territorial e o pagamento da renda da terra
ao proprietário representa para a reprodução ampliada
do capital e a acumulação capitalista na agricultura
(MARTINS, 1997, p. 11,12).

Levando em consideração que a acumulação primitiva ocasionou


circunstâncias problemáticas para o campo – êxodo rural, violência,

88
VESTÍGIOS EM MOSAICO

expropriação do camponês, concentração de terras, desconstrução da


identidade camponesa e a imposição da venda da força de trabalho
– essas expressões, futuramente, foram denominadas como partes
constituintes da questão agrária.
Segundo Huberman (2008), esse processo de expulsão dos
camponeses tem por objetivo principal arrancar maiores lucros da terra.
Portanto, a concentração de terras nas mãos de poucos proprietários e a
expropriação dos camponeses gera uma grande população empobrecida
que antecede à consolidação, em si, do capital.

4. “QUESTÃO SOCIAL” E A LEI GERAL DA ACUMULAÇÃO


CAPITALISTA

No primeiro terço do século XIX, a expressão “questão social”


vem dar conta do fenômeno ocasionado pelo processo de industrialização
da Europa Ocidental quando, em meio a crescente acumulação, se
generalizava o pauperismo da classe trabalhadora.
Esse fenômeno contraditório não pode se afirmar pré-existente
a este século, visto que, pela primeira vez na história registrada, “a
pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de
produzir riquezas” (NETTO, 2001, p. 42 – grifos originais do autor).
Ou seja, nesse momento histórico, mudam as razões que determinam
a produção e reprodução da pobreza. O pauperismo passa a ser criado
pela abundância de riquezas acumulada e não por escassez de recursos
de reprodução.
Isso significa dizer que antes da sociedade burguesa, já existiam
desigualdades, privações, contradições sociais provocadas pelo baixo
nível de desenvolvimento das forças produtivas. A escassez, vivenciada
pela maioria da população, decorria de estarem à mercê de fatores
ambientais e climáticos – esses, por sua vez, estavam diretamente

89
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

ligados à produção agrícola, criação de animais domésticos e artefatos


produzidos sem tecnologias avançadas. No entanto, as contradições
(re)produzidas pelo capitalismo foram ocasionadas pela concentração
dos bens produzidos e não pela sua escassez ou precariedade do
desenvolvimento das forças produtivas.
Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, são
produzidos excedentes que não justificam a escassez e a reprodução da
pauperização e de outros fenômenos. Sendo assim, nessa sociedade as
desigualdades e privações são criadas socialmente e de forma, por que
não dizer, propositada. Logo, esse fenômeno é indissociável do processo
de desenvolvimento do capitalismo, não sendo, portanto, herdado de
outro modo de produção.
O pauperismo, por sua vez, quando associado aos desdobramentos
sociopolíticos questionadores da ordem social, foi denominado, a partir
de análises críticas dos processos sociais, de “questão social”:

[...] a análise da questão social é indissociável das


configurações assumidas pelo trabalho e encontra-
se necessariamente situada em uma arena de disputas
entre projetos societários, informados por distintos
interesses de classe, acerca de concepções e propostas
para a condução das políticas econômicas e sociais
(IAMAMOTO, 2001, p.10).

Em face disso, compreende-se que, com o desenvolvimento


do capital, outros fenômenos associados à sua acumulação ampliada
surgem, (re) produzindo novas expressões da “questão social”, mas que
não devem ser dissociadas das contradições entre capital e trabalho.
Desta forma, a gênese das expressões da “questão social” é
particularizada pela acumulação capitalista, que supõe relações sociais
de interesses antagônicos, em que há sujeitos possuidores dos meios
de produção e que podem comprar a “mercadoria” força de trabalho e

90
VESTÍGIOS EM MOSAICO

outros que são sujeitados a vendê-la. Esta mercadoria tem a finalidade


de produzir excedentes e, para isso, é explorada e seu custo minimizado.
Essa reflexão nos permite afirmar que entender o funcionamento
da acumulação capitalista e de seus embates políticos é essencial para
explicar as bases do desenvolvimento capitalista em todos os seus estágios:
“A análise teórica e histórica da acumulação revela resultantes e implicações
tão reiterativas que é inteiramente legítimo mencionar-se uma ‘lei geral
de acumulação capitalista’ ” (NETTO; BRAZ, 2007, p. 137).
Tendencialmente a lei geral vem sendo comprovada em todo
percurso histórico do capitalismo:

A prova cabal da vigência dessa lei geral da acumulação


capitalista, para além das suas evidências factuais e
empíricas, está no próprio debate sobre a ‘questão
social’ engendrada pelo capitalismo (NETTO; BRAZ,
2006, p. 139).

A “pedra angular” do capitalismo, sua lei geral de acumulação,


consiste, em linhas gerais, no seguinte mecanismo: a mudança contínua
da composição da acumulação capitalista e o acréscimo de inovação
tecnológica (que diminui o tempo socialmente necessário à produção
das mercadorias) acarretam o aumento, de forma ininterrupta, do capital
constante (o valor dos meios de produção) com vistas à ampliação da
produtividade do trabalho. Esse movimento, por sua vez, provoca a
diminuição dos investimentos feitos na parte variável do capital (o valor
da força de trabalho).

Assim, por exemplo, com a divisão manufatureira do


trabalho e o emprego das máquinas, transforma-se, no
tempo, mais material e, por isso, quantidade maior,
portanto, de matérias-primas e de materiais acessórios
entram no processo de trabalho. Isto é consequência
da produtividade crescente do trabalho (MARX,
2009, p. 725).

91
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Entende-se, assim, que a produtividade crescente do trabalho


implica na grandeza crescente do capital constante em relação ao capital
variável. Isto é, o emprego, por parte dos empresários capitalistas,
de avanços técnicos e científicos no processo produtivo aumenta a
produtividade, produzindo-se mais em menos tempo. Isso reduz o
valor de produção e, tendencialmente, aumenta o lucro, como também,
reduz a quantidade de força de trabalho ou a torna estável – no processo
de produção – produzindo uma população excedente, que está sempre
disponível a ser explorada.
Há, então, uma diminuição do custo dessa mercadoria e a
formação do trabalhador livre sem emprego, ou seja, um trabalhador
com o potencial a ser empregado, mas que não tem lugar no
mercado de trabalho, criando o Exército Industrial de Reserva (EIR).
O EIR tem como um de seus papéis pressionar, cada vez mais, os
trabalhadores, subordinando-os às vontades do capital, e acirrar a
concorrência fragmentando a classe. Isso acontece porque o capitalista
aumenta continuamente o volume de produção devido aos avanços
tecnológicos, com o menor número possível de trabalhadores e
despende, com esses, em seus salários, os mesmos custos; ou seja, o
trabalho é intensificado, mas o trabalhador recebe o mesmo valor
salarial. Uma vez que, “com maior número, aumenta o dispêndio de
capital constante em relação à quantidade de trabalho mobilizado, se
o número é menor, esse dispêndio crescerá muito mais lentamente”
(MARX, 2009, p. 739).
Logo, explicar a “questão social”, além de apresentar as
contradições sociais e econômicas de sua gênese, exige completar o
quadro dessas expressões associando a estrutura social aos sujeitos que
a ela estavam submetidos, revelando os protagonistas de confrontos
políticos questionadores dessa estrutura.

92
VESTÍGIOS EM MOSAICO

5. À GUISA DE CONCLUSÃO

Com os limites teórico-metodológicos de um artigo, definiu-se


expor essa relação até esse momento histórico. E pode-se observar que,
embora a relação desses dois processos históricos seja de interligação e
dependência, as expressões da questão agrária antecedem à gênese da
“questão social”. Pode-se observar também que nem a questão agrária
nem a “questão social” desaparecem após a consolidação capitalista2; de
tal modo, se refuncionalizam de acordo com as necessidades do capital.
Assim, vale salientar que a discussão dessa relação é real e
histórica até a contemporaneidade e que os elementos apontados, neste
artigo, só se configuram até aqui exposto como uma discussão inicial
dessa relação. E que a particularidade dos países deve ser levado em
conta, para análises reais e singulares.

6. REFERÊNCIAS

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Atlas, 2002.

GUIMARÃES, Alberto Passos. A Crise Agrária. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1982.


2
Outra reflexão que podemos levantar é a impossibilidade de “solução” destas duas ‘questões’, neste
modo de produção, visto que, ambas estão estritamente ligadas a ‘lei geral’ e esta por sua vez, ganha
“novas dimensões e expressões à medida que avança a acumulação e o próprio capitalismo experimenta
mudanças.” (NETTO; BRAZ, 2006, p. 139). Ver também a discussão de MARTINS, José de Souza.
Reforma agrária: o impossível diálogo. São Paulo, EDUSP, 2000.

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VESTÍGIOS EM MOSAICO

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95
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96
5
O PROCESSO DE ADOÇÃO NO BRASIL
E SEUS REFLEXOS NO AUMENTO DA
“ADOÇÃO À BRASILEIRA”.
Francyneide Sobreira de Souza

1. INTRODUÇÃO

Desde o ano de 1916, faz-se presente no ordenamento jurídico


brasileiro leis que asseguram o processo de adoção. Com o passar dos
anos, por vias legais, essa sistemática evoluiu de forma a favorecer sempre
o bem-estar do adotando. E na contramão, tem-se um grande número
de casos de “adoção à brasileira”, um crime previsto em lei que consiste
no ato de registrar como seu o filho de outrem, sem se submeter aos
trâmites legais da adoção.
A legislação brasileira conta hoje com o Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90), com a criação da Lei da Adoção
(Lei 12.010/09), que atualizou o ECA no tocante a sistemática da
adoção no país, além do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), criado
pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que consiste em uma lista de
espera de pessoas aptas e interessadas em adotar, bem como o cadastro
das crianças e adolescentes disponíveis para adoção em todo o território
brasileiro. Porém, mesmo com todos os avanços no ordenamento jurídico
brasileiro que trata da adoção, ao longo dos anos, percebe-se um alto
índice de adoção de forma irregular: a chamada “adoção à brasileira”.
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Mediante observação da ocorrência de casos de adoção ilegal,


este trabalho se desenvolveu por meio de pesquisa documental e
bibliográfica, com análises de estudos, doutrinas e jurisprudências
que tratam do tema, fazendo um modesto levantamento histórico da
regulamentação da adoção no Brasil e seu processo evolutivo, apontando
seus avanços e reflexos em casos de crimes envolvendo adoção.

2. ADOÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E


AS IMPLICAÇÕES NOS CASOS DE ADOÇÃO A BRASILEIRA

O tema adoção foi tratado pela primeira vez na legislação


brasileira no Código Civil de 1916, lei extremamente rígida no
que tange os aspectos necessários para o processo de adoção. As
disposições deste código tiveram vigência até o ano de 1957,
quando foi criada a lei 3.133, que atualizou o instituto da adoção.
Em 1965 foi criada a lei 4.655 apresentando a legitimidade adotiva,
que trazia já em seu primeiro artigo os casos em que se permitia
adotar, a saber:

É permitida a legitimação do infante exposto, cujos pais


sejam desconhecidos ou hajam declarado por escrito
que pôde ser dado, bem como do menor abandonado
propriamente dito até 7 (sete) anos de idade, cujos pais
tenham sido destituídos do pátrio poder; do órgão da
mesma idade, não reclamando por qualquer parente por
mais de um ano; e, ainda, do filho natural reconhecido
apenas pela mãe, impossibilitado de prover a sua criação
(BRASIL, 1965, p. 1).

No ano de 1979 foi criada a lei 6.697, chamada de Código


de Menores, que trazia em seu corpo disposições acerca da adoção,
revogando expressamente a lei 4.655/1965.

98
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Com a criação da Constituição da República Federativa do


Brasil no ano de 1988, teve-se uma delimitação dos deveres da família,
da sociedade e do Estado. A Constituição Federal (CF) traz, em seu
artigo 227º, o que cabe a essas três instituições, a saber:

[...] assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta


prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação,
ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e a consciência familiar e
comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência e
opressão (BRASIL, 1988. p. 1).

Partindo dessa premissa, tornou-se propícia a criação da lei 8.069


em 1990: o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Considerado
o maior marco na legislação acerca de crianças e adolescentes no
Brasil, o ECA tem como premissa fundamental a proteção à criança
e ao adolescente de forma integral. Reafirmando o artigo 227º da
Constituição Federal, ao expressar em seu artigo 4º que:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em


geral e do poder público assegurar, com absoluta
prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer,
à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária
(BRASIL, 1990, p. 1).

De modo a viabilizar e assegurar todos os deveres do conjunto


Estado, família e sociedade em relação à criança e ao adolescente,
[...] a promulgação da Constituição da República,
em 1988 e do ECA, em 1990, marcam [sic] o
início de uma nova fase, que pode ser chamada
de desinstitucionalizadora, caracterizada pela
implementação de uma nova política que se baseia

99
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

numa legislação que rompeu com paradigmas anteriores


de atenção à criança desamparada (PAES, 2013, p.1).

No que tange os aspectos legais da adoção, o Estatuto da Criança


e do Adolescente de 1990 trouxe consideráveis avanços se comparado
a todas as leis anteriores. Em 2009 foi criada a Lei 12.010, chamada
Nova Lei da Adoção, que incorporou melhorias ao ECA.
Como uma alternativa para sistematizar o processo de adoção, o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou no ano de 2008, o Cadastro
Nacional da Adoção (CNA), que consiste em um cadastro único e de
abrangência nacional, reunindo dados acerca de todas as crianças e
adolescentes aptos para adoção e de pessoas que anseiam adotar. Após
o Cadastro Nacional de Adoção, em 2009 o CNJ lançou o Guia do
Usuário do CNA, que reúne informações referentes à sua criação e
funcionamento, visando a simplificação e uniformização da sistemática
que envolve o procedimento da adoção no Brasil, ao passo que quebra
barreiras geográficas e unifica as informações de todos os estados,
facilitando a condução do trabalho de juízes e órgãos responsáveis.
O processo de adoção no Brasil é composto por diversas
fases, conforme apresenta o portal do Cadastro Nacional de Adoção
do Conselho Nacional de Justiça: o encaminhamento inicial para
o requerente a adoção é comparecer à Vara da Infância e Juventude
correspondente ao seu município para iniciar o processo de inscrição
para adoção. Após efetuar a petição, o requerente adentra a etapa de
curso e avaliação, que consiste em uma preparação e avaliação jurídica
e psicossocial, realizada por uma equipe multiprofissional através de
visitas e entrevistas, com o objetivo de avaliar a situação emocional,
psicológica e socioeconômica do adotante. No período de avaliação, o
adotante apresenta o perfil desejado para adoção (informações como
sexo, raça, idade, condições de saúde, irmãos, entre outros) por meio de
entrevistas (CNJ, 2009, p. 1).

100
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Somente após o parecer positivo da avaliação psicossocial e


jurídica, o candidato a adotante recebe o certificado de habilitação e
se torna apto para o Cadastro Nacional de Adoção, integrando a lista
da fila da adoção, em que deverá aguardar que sejam encontrados uma
criança ou adolescente que possua o perfil desejado. Nessa fase, ao ser
encontrada uma criança ou adolescente apto e o adotante demonstrar
interesse, as duas partes são apresentadas. Após a apresentação, a criança
ou adolescente será consultado para demonstrar seu interesse em
continuar ou não o processo de adoção. Caso a resposta seja positiva,
dá-se início a uma fase de convivência monitorada pela Justiça, com
encontros regulares entre adotante ao possível adotado, por meio de
visitas e passeios. Havendo um bom relacionamento de ambas as partes,
abre-se o processo de adoção. A criança ou adolescente ficará sob a
guarda do adotante durante o período que a Justiça julgar necessário,
com acompanhamento por parte da equipe técnica responsável até
o processo ser considerado conclusivo e ser concedida a sentença de
adoção. O processo será concluído com a emissão do registro civil do
adotado, que conterá os nomes do adotante, dando a criança todos os
direitos equiparados a de um filho natural (CNJ, 2009, p. 1).
Desde o momento inicial, em que o adotante recorre a Vara
da Infância e Juventude demonstrando seu interesse em adotar, até
ser proferida a sentença de adoção, tem-se um longo caminho a ser
percorrido, ressaltando que o tempo de permanência no CNA é de cinco
anos. Analisando as fases do processo de adoção, podemos perceber que

A etapa mais longa do processo de adoção é da


aprovação dos adotantes. Depois das entrevistas, da
visita às residências dos pretensos adotantes e, depois
de esclarecidas todas as dúvidas dos técnicos do Juizado,
este processo segue para o Promotor que manifestará
sobre a habilitação e, finalmente, o processo segue para
o juiz que, encontrando-o satisfatoriamente instruído,
poderá deferir a habilitação dos adotantes. Os pretensos

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

adotantes, depois de aprovados pelo juiz, estarão em


condições de adotar e passarão a integrar um cadastro
ou relação de possíveis adotantes (BOCHNIA apud
NASCIMENTO, 2010).

Tal processo costuma durar um longo período de tempo, devido


à burocracia imposta para a averiguação da aptidão do requerente a
adoção, como demonstramos anteriormente.
Como reflexo do processo dificultoso e burocrático de adoção,
podemos identificar um fenômeno cada vez mais frequente no Brasil: a
adoção irregular, chamada de “adoção à brasileira”, ato que consiste em
registrar como seu um filho não biológico, sem submissão aos trâmites
legais do processo de adoção. A “adoção à brasileira” é crime previsto
no Código Penal conforme redação do artigo 242º, atualizado pela Lei
6.898 de 1981:

Art. 242 – Dar parto alheio como próprio; registrar como


seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-
lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado
civil: Pena – reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo único – Se o crime é praticado por motivo de
reconhecida nobreza: Pena - detenção, de um a dois anos,
podendo o juiz deixar de aplicar a pena (BRASIL, 1981,
p.1, grifos nossos).

Como explicita o parágrafo único do artigo supracitado, existe


a possibilidade de absolvição dos acusados desde que seja considerado
como fundamental o vínculo afetivo desenvolvido entre o adotante e o
adotado, de forma a manter o bem-estar do adotado que já se encontra
sob o seio daquela família que cometeu o ato ilícito.
Nascimento (2010) aponta “três fatores relevantes para a prática
da ‘adoção à brasileira’, que são: o desejo da constituição da entidade
familiar, o abandono de crianças e adolescentes e o laço afetivo” (p. 1).

102
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Analisando esses três fatores apresentados, vemos a vontade de construir


uma família como fator preponderante, haja vista que a entidade família
deve compreender a relação perpassada por troca de afeto. E diante do
desejo de constituir uma entidade familiar na qual se possa dar e receber
amor, muitas pessoas recorrem à prática da “adoção à brasileira”, tendo
em vista a agilidade que ela apresenta se comparada a todo o processo
legal da adoção regular. O abandono de crianças também tem relevante
influência nos casos de “adoção à brasileira”, pois entendemos que “os
vários motivos que levam ao abandono de tais crianças nunca poderão
ser analisados de forma isolada, visto que são inúmeros os fatores que
levam a prática do referido ato” (NASCIMENTO, 2010, p. 1), muitos
dos casos de abandono estão associados à condição econômica da família
natural, que com frequência encontra-se à margem da sociedade, em
condição de vulnerabilidade econômica e social que não permite que a
criança seja cuidada com seus direitos fundamentais respeitados, como
prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Este cenário composto por crianças e adolescentes negligenciados
de seus direitos fundamentais, perpassando sentimentos como comoção
e compaixão, desperta nas pessoas a vontade de cuidar da criança e
adolescente que se encontra em situação de abandono, podendo resultar,
assim, na prática da “adoção à brasileira”.
O terceiro fator relevante para a adoção de forma ilegal aqui
tratado refere-se ao laço afetivo que pode ser desenvolvido entre o
adotante e a criança ou adolescente, no sentido de constituição de
uma família. Nascimento (2010) explica que “a afetividade entrou na
concepção moderna dos juristas buscando explicar as relações familiares
contemporâneas, visto que o afeto não representa um modelo único
de família, matrimonial, o afeto representa a diversidade familiar”
(NASCIMENTO, 2010, p. 1). Assim, atualmente se tem uma
concepção de família que preza pelo caráter afetivo presente nas relações,
respeitando as diversas manifestações de grupos familiares, entendendo

103
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

que “a família se transforma na medida em que se acentuam as relações


de sentimento entre seus membros, ou seja, o afeto passa a ser mais
valorizado nas entidades familiares” (NASCIMENTO, 2010, p. 1).
A combinação do desejo de constituir uma família, do grande
contingente de casos de abandono no país e de um laço de afetividade
como fator fundamental para a construção de uma família, somando
com o fator principal que é a morosidade, burocracia e diversos trâmites
do processo legal de adoção no Brasil, cria-se um cenário cada vez mais
frequente de casos de “adoção à brasileira”.
Não se pode desconsiderar a nobreza presente em muitos dos
casos nos quais ocorre a “adoção à brasileira”, entretanto, esse ato
cada vez mais recorrente deve ser analisado com cautela, partindo da
observância do que preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente
acerca do seu bem-estar e segurança, envolvendo aspectos afetivos,
econômicos e sociais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, podemos perceber que na maioria dos casos


de “adoção à brasileira”, tem-se como justificativa a burocracia presente
no processo adotivo, que levam muitas famílias a cometerem o crime
em nome do desejo de adotar. Percebemos que o tempo empenhado na
espera do Cadastro Nacional de Adoção é um fator desestimulante para
o adotante, que prefere recorrer à ilegalidade.
A pesquisa realizada no presente trabalho evidenciou que, mesmo
diante de todos os avanços já ocorridos, ainda não é possível conter os
casos de “adoção à brasileira”, que são cada vez mais recorrentes no país,
sendo uma prática antiga e arraigada na sociedade brasileira. Percebe-
se a necessidade de estratégias mais eficazes para buscar diminuí-la, ou
até erradicá-la. Podemos observar, também, que ainda há muito que

104
VESTÍGIOS EM MOSAICO

melhorar na sistemática do processo de adoção, de forma a efetivar o


que prevê o ECA, garantindo, acima de tudo, a proteção integral e o
bem-estar da criança e do adolescente.

4. REFERÊNCIAS

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em: 02 ago. 2015.

BRASIL. Código de Menores. Lei n. 6.697/1979. Disponível em: < http://


www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm >. Acesso em: 02 ago. 2015.

BRASIL. Código Penal. Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível


em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.
htm>. Acesso em: 8 ago. 2015.

BRASIL. Dispõe sobre adoção: altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de


1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro
de 1992; revoga dispositivos da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 -
Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo
Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943; e dá outras providências. Lei
nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br /ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12010.htm>. Acesso em: 02 ago.
2015.

105
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13 de


julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l8069.htm>. Acesso em: 02 ago. 2015.

NASCIMENTO, Joacinay Fernanda do Carmo. Adoção à brasileira.


Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_
artigos_leitura&artigo_id=14879>. Acesso 7 ago. 2015.

PAES, Janiere. O código de menores e o estatuto da criança e do


adolescente: avanços e retrocessos. Disponível em: <http//www.egov.
ufsc.br/portal/conteúdo/o-c%C3%B3digo-demenores-e-o-estatuto-da-
crian%C3%A7a-e-do-adolescente-avan%C3%A7os-eretrocessos>. Acesso
em: 6 ago. 2015.

106
6
A PSICOLOGIA ENQUANTO
CIÊNCIA E PROFISSÃO NO
SEMIÁRIDO BRASILEIRO E A
RECASA COMO EXPERIÊNCIA.
Clariana Rodrigues Trabuco,
Tatiana Henrique Santos,
Antônio César de Holanda Santos

De que forma psicólogas e psicólogos têm considerado o


semiárido brasileiro ao pesquisarem e atuarem nesse contexto? Esse
texto propõe a discutir sobre a inserção ético-política da Psicologia no
semiárido, sobretudo nos contextos e processos educativos. Para tanto,
abordaremos brevemente alguns elementos da configuração geográfica,
histórica e política sobre o semiárido, trataremos sobre a interiorização
da Psicologia no Brasil e debateremos sobre alguns pressupostos e
experiências em torno da educação contextualizada para a convivência
no semiárido alagoano, visando destacar a importância da inserção de
psicólogas e psicólogos nesse âmbito.

1. O SEMIÁRIDO E O DISCURSO FADADO

Nos últimos anos, percebeu-se uma crescente produção


multidisciplinar acerca do semiárido e dos seus diversos elementos
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

constituintes, sejam culturais, físicos geográficos ou sobre questões


políticas que envolvem os discursos sobre a seca. Embora essas produções
ainda estejam recentes, é possível encontrar em alguns discursos a ideia
do semiárido enquanto um espaço onde “algo precisa ser feito, espaço
incompleto”, como se esse contexto não abarcasse também um lugar de
produção, ressignificação e sentido para a população brasileira que vive
e convive com esse espaço.
Geograficamente o semiárido brasileiro é caracterizado pela
seca presente no Nordeste do Brasil, mais especificamente, pela
irregularidade do período de chuva – aspecto que afeta a população local
e que configura e reconfigura seu cotidiano – além de uma temperatura
elevada (ALENCAR, 2010). O semiárido possui, em sua maioria, a
vegetação da caatinga e abarca em extensão territorial1 982.563,3 km² –
onde a região do Nordeste ocupa 89,5% desse território – abrangendo
os respectivos estados: Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Paraíba,
Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí e o norte de Minas Gerais,
totalizando 1113 municípios2.

Chamamos de semiárida a região submetida a um


clima caracterizado pela insuficiência de precipitações
pluviométricas, temperaturas elevadas e fortes taxas de
evaporação, onde essas precipitações apresentam-se,
além de insuficientes, com uma irregularidade temporal
e espacial, podendo apresentar, assim, longos períodos
de estiagem (FERREIRA; BOMFIM; 2013, p.92).

Por haver uma ligação histórica entre a sociedade local e a natureza


na região, a seca foi sendo personalizada enquanto fator responsável pela
desigualdade social presente no semiárido e como elemento causador da
1
Cf.: INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Portaria Nº 89, de março
de 2005. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/semiarido.shtm?c=4>.
Acesso em: 12 jul. 2015.
2
Cf.:Articulação do semiárido. Disponível em:<http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.
asp?COD_MENU=105>. Acesso em: 12 jul. 2015.

108
VESTÍGIOS EM MOSAICO

miséria e da falta de desenvolvimento tecnológico, maquiando, assim,


relações políticas e de poder envolvidas (RIBEIRO, 1999). Todavia,
esses não foram os únicos elementos que contribuíram para a formação
processual desse conceito. Segundo Coelho Neto (2011, p.12),

[...] a preponderância de uma realidade rural, com


elevada concentração fundiária e graves problemas de
exploração do trabalho no campo, somada aos mais
variados indicadores socioeconômicos desfavoráveis
(concentração de renda, baixos índices de escolarização
e de desenvolvimento humano – IDH) produziram a
ideia de atraso e de subdesenvolvimento.

Ribeiro (1999) discute como o imaginário social foi construído


de modo que o semiárido brasileiro passasse a ser compreendido
enquanto uma “região problema”, que associa diretamente a falta de
desenvolvimento local à realidade climática do ambiente, o que ele
chama de “Determinismo Geográfico3”. Esse fenômeno acaba por
legitimar as ações (ou falta delas) dos governos, que fazem mau uso da
política e não investem em tecnologias e formas de lidar com o ambiente,
de modo a promover o desenvolvimento local dos seus moradores.
Torna-se necessário compreender, ainda, a realidade coronelista com
bases clientelistas e patrimonialistas que ainda fazem parte da política
nordestina, contribuindo para relações de poder entre a elite política
local e a população (COELHO NETO, 2011).
Diante desse cenário, o determinismo geográfico nordestino
encontra-se presente como um conceito que se caracteriza enquanto
uma relação de causa e efeito, de previsibilidade do futuro; além de ver

3
Segundo Ribeiro (1999), a Geografia precisava de bases epistemológicas que a colocasse lado a lado
com as ciências naturais que acreditavam no determinismo da natureza sobre o homem e nas relações
de causa e efeito que havia entre o ambiente e a sociedade. O Determinismo Geográfico, então, tinha
como base a relação indivíduo-ambiente, estando intimamente relacionado com a corrente positivista
da época e contribuindo para o processo de institucionalização da disciplina de Geografia. Se para ser
considerada uma disciplina/saber científico ela precisaria propor leis que possuam uma previsão sobre
a realidade do mundo, o Determinismo Geográfico contribuiu ferrenhamente nesse processo.

109
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

a relação entre a sociedade e a natureza como responsável pelo atraso


econômico e social da região, o determinismo geográfico utiliza-se
desse discurso como justificativa para a isenção do Estado no papel de
provedor dessa economia e se alimenta, através dessa fala legitimada, das
relações de poder entre a elite regional conservadora sobre a população
pobre que se vê obrigada a participar desse “clientelismo” forjado.
Seguindo essa lógica de relações de poder que marcam as relações
sociais da região, encontra-se nos fatores climáticos as condições para a
dominação política dos grandes proprietários de terras e a subordinação
da população pobre e trabalhadora que carece de atendimento no que
concerne as necessidades mais básicas. Segundo Lusa (2013, p. 355),

O semiárido alagoano, pouco discutido pela sociedade,


mas bastante marcado pelas características peculiares,
pulsa intensamente na formação de Alagoas. Nele, as
relações sociais, o modo de vida e de trabalho, as formas
de ocupação e a própria distribuição fundiária ganham
os contornos do clima semiárido.

Uma questão importante a ser considerada no discurso da seca é


o tempo sócio histórico no qual os sujeitos que produzem, reproduzem
e legitimam esse discurso estão inseridos, ou seja, torna-se essencial
analisar de onde se fala e em prol de que tais discursos são produzidos,
para que falas sejam contextualizadas e relacionas aos eventos nos quais
elas estão a favor.

2. A PSICOLOGIA E O SEMIÁRIDO

O semiárido brasileiro é uma região estereotipada no que


concerne ao ideário da seca: criou-se e se institucionalizou no imaginário
social que o semiárido é um local estanque e uma realidade problema,
onde quase nada se produz. Além de estigmatizar a população que desse

110
VESTÍGIOS EM MOSAICO

lugar deriva, desvia-se o foco de outras discussões e variáveis que estão


por trás desse discurso fatalista da seca enquanto causador da miséria
social – como as relações políticas, por exemplo.
Analisando os aspectos que existem diante e por trás de uma
fala, encontra-se presente, também, o papel da Psicologia: compreender
o que há por trás desses discursos e como eles afetam a população
interlocutora nesse processo, promovendo o pensamento crítico e o
empoderamento do sujeito.
Vale ressaltar, ainda, que nem sempre a Psicologia se viu
inserida nesses espaços de construção e de olhares multidisciplinares e
interdisciplinares. Por muito tempo, ela se manteve focada ao contexto
urbano e suas demandas, e somente com a aproximação da profissão
nas políticas públicas – principalmente na década de 90 – com a
municipalização das políticas de saúde e de assistência social, além
da interiorização dos cursos de psicologia, que possibilitou a inserção
desses profissionais no contexto rural (LEITE et al, 2013).
Estudar e analisar o semiárido brasileiro, principalmente
quando se trata de um dos contextos de atuação das/dos profissionais
de psicologia, torna-se fundamental na medida que revela as
contradições dessa realidade e, consequentemente, problematiza como
as/os profissionais estão contribuindo junto às comunidades que
convivem com a seca. Além disso, ressalta-se a importância de uma
atuação contextualizada que se distancie das reproduções de estigmas
classificadores e fatalistas que constroem a concepção do “nada pode
ser feito”.
Dessa forma, pensar na atuação da Psicologia no século XXI,
mais especificamente no Brasil, é pensar de qual modo a profissão vem
se colocando na sociedade e quais os impactos dos profissionais nas
atividades que estes procuram executar. Sabe-se que desde os primórdios
da sua inserção no país, a partir da década de 1930, a Psicologia teve

111
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

seu foco de atuação principal os centros urbanos – por se constituírem


como áreas ricas e industrializadas – considerando que seu surgimento
coincidiu com a necessidade de adaptar a mão de obra para o sistema
vigente, com o processo de industrialização que estava ocorrendo no
país a todo vapor (LEITE et al, 2013).
A Psicologia, então, era convidada a ocupar espaços como
consultórios, escolas, serviços de saúde mental, instituições relacionadas
ao trabalho tendo como função “solucionar e dar suporte para as
inabilidades e desadaptações de indivíduos frente às condições e os
modos de vida nos grandes centros urbanos” (LEITE et al, 2013, p.33).
Se remeter à Psicologia brasileira do século XX é associar a sua
atuação às demandas do mercado e à modernização no qual o país estava
passando. Entretanto, ao se dar conta que essa profissão que educa
e disciplina para o mercado já não é mais suficiente para atender às
demais demandas da realidade brasileira, tornou-se necessário ampliar o
olhar da/o psicóloga/o no Brasil e dois eventos, já no século XXI, foram
cruciais nesse processo: a interiorização da/o psicóloga/o e dos cursos de
Psicologia pelo território brasileiro.
A interiorização dos cursos de Psicologia e da própria profissão
aparecem enquanto produto das ações de políticas de saúde e assistência
social, trazendo no seu bojo novas formas de intervenção e fazer
psicológico, com ações mais contextualizadas e voltadas também para a
prevenção da saúde dos brasileiros.

[...] A própria aproximação dos psicólogos com as


políticas públicas a partir da década de 1990 dão
prova de que os espaços de exercício de sua prática
profissional diversificaram-se. Passamos tanto a ser
demandados para intervir sobre indivíduos de outros
extratos sociais quanto a nos preocupar com a saúde e
a organização social de grupos e populações (LEITE et
al, 2013, p. 33-34).

112
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Com o Estado de bem estar social, a Psicologia passa, então, a


estar presente nas políticas públicas adotando um fundamento político
e crítico no qual as garantias de direitos dos sujeitos participantes da
política fossem preservadas. Como requisitos para essa nova atuação
estavam a presença de uma atuação que promovesse o empoderamento
através da participação popular e do controle social, além de fomentar
movimentos sociais que busquem a garantia de direitos, a construção de
cidadãos críticos e, também, de cidadãos políticos.
Se o fazer psicológico envolve a relação entre os profissionais
e os sujeitos que afetarão e serão afetados por eles, precisa-
se distinguir qual lado da moeda a/o psicóloga/o está usando:
aquela no qual é a favor do sistema e suas ações são pautadas na
“domesticação” e adaptação dos sujeitos ao mesmo, ou se ele adota
uma postura ética-política que contribui para garantia de direitos
e emancipação do sujeito.

Temos considerado as transformações nos modos


de vida da população, ou seja, nos processos de
subjetivação, nas relações sociais e de trabalho, e nas
relações de pertencimento e de identidade com o
lugar, contribuindo com a produção de sujeitos mais
participativos e reconhecedores dos seus direitos e
aspirações, ou simplesmente temos repetido nosso
feito histórico de selecionar e adaptar pessoas no
objetivo de melhorar seu padrão de respostas frente ao
mundo do trabalho (este cada vez mais precarizado)
e as exigências e intempéries da vida? (LEITE et al,
2013, p. 32).

Foi a partir do contato direto com novas realidades e contextos,


como o do semiárido, por exemplo, que a/o profissional passou a
repensar sua atuação, levando em consideração a realidade sócio-
política na qual os sujeitos estão inseridos; a relação da economia com o
seu modo de sobrevivência; além do uso ou não de políticas públicas ou

113
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

auxílios do governo; a relação que a comunidade ou o grupo tem com a


terra; e a cultura que permeia aquele espaço de produção e reprodução.
Segundo Leite et al (2013), a terra, além de se apresentar como
um espaço de trabalho, representa também um espaço de reconstrução
de vida, dignidade, cidadania e, especialmente, de identidade, e é
compreendendo esse aspecto que as/os psicólogas/os que se propõem
estudar modos de vida relacionadas ao clima semiárido e criar estratégias
para se conviver com o mesmo, compreendem a ligação dessa população
com o clima no qual fazem parte.
Essa ligação proporciona tanto estratégias de convivência com a
seca e com o clima semiárido – e é aqui que a/o psicóloga/o pode se inserir
crítica e eticamente – mas, pode provocar também alguns “transtornos”,
como a saída de mulheres e homens desse local para outros estados e/
ou regiões diferentes socialmente, climaticamente e economicamente,
em busca de melhores condições de vida e oportunidades de emprego
– o que pode acarretar no “[...] desenraizamento, falta de apropriação
espacial, perda dos parâmetros identitários existentes nas comunidades
de origem [...]” (FERREIRA; BOMFIM, 2013, p.91).
A perspectiva de convivência com o semiárido vem como uma
possibilidade de ruptura com paradigmas e pensamentos arcaicos acerca
do determinismo geográfico sobre as comunidades do semiárido. O
lema “combate à seca” deixa de ser o foco, trazendo à tona o diálogo
entre a natureza e a produção de tecnologias que contribuam com o
desenvolvimento local de maneira dialógica. Segundo Carvalho (2014,
p. 46-47), “[...] a proposta da convivência considera a seca como parte
da dinâmica ambiental dessa natureza, e, para tanto não é combatê-la,
mas compreendê-la e adequar às obras e as técnicas a esta realidade”.
Como uma das possibilidades de atuação do profissional
de Psicologia em comunidades do semiárido, têm-se a educação
contextualizada, a formação de sujeitos políticos críticos através de

114
VESTÍGIOS EM MOSAICO

palestras, rodas de conversa e outras formas de mediação dinâmicas,


além do auxílio na construção de tecnologias que possibilitem o
desenvolvimento local através da disposição de recursos presentes
no ambiente, sem prejudicá-lo. É necessário compreender que a/o
psicóloga/o não atua sozinho nesse campo: torna-se essencial que seu
trabalho aconteça de forma multidisciplinar e interdisciplinar com
outras profissões e áreas de conhecimento, como Geografia, Sociologia,
Serviço Social, Pedagogia, entre outras.
A educação contextualizada, dessa forma, é um dos objetivos de
quem trabalha com processos educativos e, principalmente, de quem
vivencia realidades distintas em um país que abarca vários “Brasis” – e
o semiárido é um deles. Nele, as escolas do campo vivenciam realidades
distintas e, para isso, faz-se necessário uma prática pedagógica de modo
que a realidade daqueles jovens que estão na escola possa estar contida
na sala de aula, dando significado e sentido àquele estudo.
Uma prática pedagógica que se adapte às especificidades do
campo além de promover o desenvolvimento regional para e em prol da
comunidade, desmistifica estereótipos que circulam o imaginário social
do semiárido. Este, amplamente divulgado como espaço de calamidade,
se constrói nos discursos produzidos pela elite que têm como objetivo
justificar a falta de ações políticas voltadas para as demandas da região,
utilizando-se de argumentos tradicionais que afirmam, de forma trágica
e naturalizante, a miséria como fenômeno provocado exclusivamente
pelo clima seco (REIS, 2010). É importante notar que tais discursos
ofuscam as possibilidades de se enxergar a riqueza no semiárido em suas
especificidades, desafios e demandas.
Reis (2010) define o contexto como um

[...] espaço político, social, cultural, econômico,


ambiental, que ainda nos exige firmeza política para a
problematização de questões cruciais e fundamentais
para o reordenamento de atitudes e ações voltadas

115
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

ao desenvolvimento humano e sustentável da região


(REIS, 2010, p. 118).

Dessa forma, a educação contextualizada promove a


desconstrução das representações negativas do semiárido e possibilita
o desenvolvimento de iniciativas de caráter político, organizadas
em prol da comunidade e com o apoio do governo. Adotando esse
fundamento, a construção de conhecimento na escola adquire sentido
para a comunidade e não mais apenas reproduz imagens ou teorias que
nada tem a ver com a vivência das crianças e dos educadores. Ao trazer
o ensino para o plano da vivência, os educadores – e a/o psicóloga/o é
um deles – contribuem na recuperação do protagonismo desses sujeitos
sociais que agora falam e aprendem por e através da sua realidade
(CARVALHO, 2014) sem o peso do determinismo geográfico nas suas
costas e falas.
No que concerne ao currículo das escolas, é crucial que haja a
construção do mesmo de forma conjunta e que a participação social
desses sujeitos possibilite que eles possam trazer suas angústias e anseios
de modo que o que se aprenda na escola não seja afastado de sua
realidade, que os conhecimentos adquiridos possam ter relação direta
com o seu cotidiano, ampliando as condições para a convivência com
o semiárido.

3. A EXPERIÊNCIA DA RECASA EM ARAPIRACA /AL

A educação como ação política torna-se um pressuposto


fundamental para que se realizem aprendizagens voltadas para
melhorias no contexto social e cultural das comunidades. É a partir de
algumas iniciativas que a educação no campo e, mais especificamente
no semiárido, inaugura modelos de ressignificação das práticas

116
VESTÍGIOS EM MOSAICO

pedagógicas e sustentabilidade, que apoie iniciativas locais de forma


crítica e transformadora da ordem social.
Um espaço que proporciona esse tipo de vivência e põe em
debate e formação a educação contextualizada é a RESAB4 – Rede
de Educação do Semiárido Brasileiro, que se constitui como uma
rede unindo instituições não-governamentais, governamentais e
educadores, que constroem juntos propostas de políticas públicas
que possam contribuir para o desenvolvimento do ensino público no
semiárido brasileiro.
Em Alagoas, os desdobramentos dos objetivos e articulações da
RESAB se dão a partir da RECASA – Rede de Educação Contextualizada
do Agreste e Semiárido Alagoano – que é uma rede de educadores
municipais de Alagoas, que tem como filosofia e objetivo a educação
contextualizada de crianças, jovens e adultos, além de educadores sociais,
professores e equipe pedagógica para a convivência com o semiárido.
A rede atua em 19 municípios da região agreste e 10 municípios do
semiárido alagoano e faz parte da RESAB, já citada anteriormente.
As primeiras iniciativas de referência na educação contextualizada
em Alagoas tiveram início em 1995 a partir do Movimento Pró-
Desenvolvimento Comunitário (MPDC) e da Associação de Agricultores
Alternativos (AAGRA), que visavam o estudo e disseminação de
metodologias construtivistas. Ao longo das experiências educativas,
estas iniciativas conquistaram parcerias e se ampliaram a partir da
organização territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário –
MDA que culminou na criação da RECASA em 2007 (MOVIMENTO
PRÓ – DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO, 2014).
Ao adotar um caráter político e formador, a RECASA atua de
forma a mobilizar a sociedade civil e o poder público para que haja
um fortalecimento de uma educação contextualizada e sustentável que

4
Disponível em: <http://resabnacional.blogspot.com.br/2011/06/resab-possui-varias-publicacoes-
sobre.html>. Acesso em: 12 jul. 2015.

117
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

promova um ensino diferenciado, em que seus alunos participem de


um currículo e um plano pedagógico contextualizado, que englobem
suas realidades; desde pequenos eles aprendem a lidar com o meio
ambiente de maneira sustentável, além de aprenderem a importância
da convivência com a terra e o conhecimento sobre ela.
Dentre as ações realizadas pela RECASA entre 2007 e 2014,
ressaltam-se a implantação da Educação Contextualizada com o Campo
em 10 escolas do Semiárido Alagoano, além de 16 cidades alagoanas
aderirem à rede; publicações de artigos que trazem a experiência do
programa; fortalecimento da rede através da troca de experiências e de
mobilizações, como a divulgação do seu trabalho em meios eletrônicos;
a criação e o fortalecimento do vínculo com a Universidade Federal de
Alagoas – UFAL – e com a Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL
– de forma que seus alunos possam participar de palestras promovidas
pelo programa e que haja um vínculo efetivo entre ambos (Movimento
Pró-desenvolvimento Comunitário, 2014).
Nesse sentido, a proposta de atuação da RECASA parte da
ideia de que a aprendizagem pode (e deve) ser mais significativa
para todos no momento que ressignifica o olhar que lança sobre o
semiárido, afirmando a possibilidade de viver de modo sustentável e
digno nesse contexto.
Dentre as ações da RECASA implementadas em Alagoas,
destacamos a experiência da Escola Municipal Benjamim Felisberto da
Silva, localizada no povoado Gruta D’água, zona rural de Arapiraca.
A escola se apoia nas propostas dos Princípios e Fundamentos da
Proposta Educacional de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável
– PEADS, e na pedagogia de Paulo Freire, que visam favorecer o
ensino a partir da realidade dos educandos (MOVIMENTO PRÓ-
DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO, 2014). Nesse sentido, a
escola integra ainda a comunidade por meio da construção coletiva de
saberes e ações desenvolvidas na escola.

118
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Dentre estas ações, a escola Benjamim Felisberto desenvolve,


desde o ano de 2007, o projeto “Saúde que Vem da Terra”, sendo uma
referência de educação do campo, participando de fóruns e conquistando
alguns prêmios a níveis nacionais5.
O projeto promove práticas inovadoras em educação a partir
do cultivo de plantas medicinais em uma horta que ocupa um espaço
dentro da escola para a produção de remédios caseiros, envolvendo,
nessas práticas, tanto os alunos, quanto os pais e demais moradores
da comunidade. Essas ações se desenvolveram através das demandas
cotidianas da própria comunidade que identificaram a necessidade de
resgate da cultura do plantio medicinal.
Dos materiais colhidos na horta, fabricam-se remédios
caseiros pela e para a própria comunidade que, até o ano de 2015,
não possuía Unidade Básica de Saúde em seu território, acessando os
serviços de saúde nas comunidades vizinhas6. Desse modo, constrói
novas possibilidades de saber-fazer na educação do campo, por meio
do estudo e cultivo de plantas medicinais e produção dos remédios
caseiros que beneficiam a comunidade.
A horta funciona ainda como uma espécie de laboratório vivo,
na qual os educandos trabalham assuntos interdisciplinarmente:

Os estudantes aprendem sobre a preparação da


terra para o plantio, a colheita, características das
plantas medicinais, formas de organizar uma horta,
como produzir mudas, construir um fogão solar,


5
Em 2008, a escola foi uma das vencedoras do concurso “Aprender e Ensinar Tecnologias Sociais”,
promovido pela revista Fórum e a Fundação Banco do Brasil. Como prêmio deste concurso, a diretora
da escola, Edinalva Pinheiro, ganhou a participação no Fórum Social Mundial realizado em 2009 na
Amazônia, para apresentar as ações desenvolvidas na escola. O Fórum Social Mundial é um evento
que reúne movimentos sociais, ONGs e demais organizações da sociedade civil para compartilhar
experiências, debater ideias e fomentar propostas diante das problemáticas sociais decorrentes do
sistema capitalista. A escola também conquistou o prêmio Victor Valla de Educação Popular em Saúde,
promovido pelo Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde.

6
Segundo Edinalva Pinheiro, idealizadora do projeto na escola, a dificuldade no acesso aos serviços de
saúde foi uma das razões que motivaram a criação do projeto.

119
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

cuidados com os animais, preservação e uso da água


e vários outros assuntos do cotidiano comunitário.
Todas as temáticas são desdobradas em estudos
específicos das disciplinas, uma forma concreta
de promover a interdisciplinaridade e também a
interdimensionalidade, considerando que não se trata
apenas de ensinar disciplinas, mas de ensinar valores,
estimular atitudes solidárias, alimentar a autoestima
(MOVIMENTO PRÓ-DESENVOLVIMENTO
COMUNITÁRIO, 2014, p. 23).

A escola oferece formações continuadas que possibilitam


o desenvolvimento de conhecimentos e habilidades, atendendo as
especificidades de aprendizagem na educação do campo, planejando
a utilização dos recursos didáticos e tecnologias educativas a partir
da educação contextualizada. Como resultado, a escola apresenta
um IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, maior
do que as demais escolas de Arapiraca (MOVIMENTO PRÓ-
DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO, 2014).
De acordo com Edinalva Pinheiro, diretora da escola e idealizadora
dos projetos realizados nela, a parceria com a RECASA implicou no
fortalecimento da comunidade escolar, compreendendo que

[...] o RECASA e a escola falam a mesma língua, o


que estimula as novas aprendizagens e nos faz acreditar
numa verdadeira educação do campo, com respeito às
especificidades dos nossos meninos e meninas do campo.
(MOVIMENTO PRÓ-DESENVOLVIMENTO
COMUNITÁRIO, 2014, p. 24).

Por meio desta experiência da escola Benjamim Florisberto,


ressalta-se a importância do fazer educacional que considere a realidade
comunitária e cotidiana em detrimento das práticas tradicionais de
ensino que não se atentam às especificidades do semiárido. Tal fazer

120
VESTÍGIOS EM MOSAICO

educacional contextualizado se pauta em privilegiar os conteúdos de


modo concreto, atribuindo sentido e ampliando os conhecimentos a
partir da realidade.
Converge, portanto, com os princípios trazidos por Reis (2010,
p. 126) ao afirmar que

[...] a escola não pode ser um espaço do diretor; precisa


ser um espaço da comunidade educativa, ser um espaço
do qual os pais e alunos sintam-se partes integrantes,
partícipes do processo, caso contrário, a escola passa a
figurar apenas como um prédio, que nada de relevante
o seja para aquela comunidade.

No que toca a Psicologia, consideramos que cabe as/aos profissionais


de nossa área buscar formas de inserção nesse contexto para atuação
conjunta. Essa atuação deve se dar tanto a partir do âmbito da mobilização
social, quanto a partir de políticas de inserção profissional nos espaços
educativos em Alagoas, também no âmbito das escolas do campo.
Vale destacar que a atuação da/o profissional de Psicologia no
contexto de experiências como essa da RECASA e juntamente com
uma equipe profissional, nesse caso específico, de educadores, deve
estar pautada por uma atuação ética e comprometida, levando-se em
consideração um olhar sobre a realidade, o contexto e a demanda de cada
comunidade, bem como proporcionar a formação de sujeitos políticos,
contribuir para o seu empoderamento, o rompimento de relações, como
a exploração do trabalho e da mão de obra, a violência estrutural e de
direitos, além do mal estar causado pelos conflitos existentes relacionados
à dominação de espaços hídricos, por causa da seca.

Nesse sentido, deve-se reconhecer a importância dos


processos culturais de resgate e construção de novos
referenciais de pensamento (consciência) e do agir
(comportamento). É essa orientação construída para

121
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

o desenvolvimento sustentável no semiárido brasileiro


com base na perspectiva da “convivência” (SILVA,
2010, p.67).

Dessa maneira, a Psicologia possui um papel crucial na formação


e educação contextualizada e comprometida dessa população, levando
em consideração as potencialidades desses sujeitos nesses espaços.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

A seca é um dos assuntos que mais ronda o imaginário e o


cotidiano dos nordestinos brasileiros. Seja através dos romances, das
prosas contadas pelas senhoras e senhores sentados nas suas portas, seja
através dos fatos. Entretanto, essa é, por vezes, colocada enquanto um
fator único e determinante no processo de desenvolvimento econômico
e social do nordeste brasileiro (nesse caso, na falta deste) – região essa
vista como um problema a ser tratado.
Apesar dos autores mais contemporâneos (CARVALHO, 2014;
FERREIRA; BOMFIM, 2013; COELHO NETO, 2011; REIS, 2010;
RIBEIRO, 1999; SANTOS, 2014; SILVA, 2010) tentarem subverter
esse pensamento, essa ideia encontra-se arraigada no imaginário social
da população que vê a seca como a causa determinante da miséria, da
fome e da pobreza no Nordeste e encontrou, durante muito tempo, na
ciência um espaço de legitimação desse processo.
Ao buscar compreender o modo como se tenta depreciar a
população do semiárido, revelam-se as relações de dominação que
buscam impedir o reconhecimento destes, de suas produções e seus
modos de vida. Na via destas relações, caminham estigmas que colocam
o semiárido como lugar de atraso, de precariedade e escassez, pautando-
se em um molde urbano de vida e “verdade”.

122
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Nesse sentido, pensar em uma educação descontextualizada


significa trilhar na direção de um modelo urbano de ensino, uma
direção que confirma a segregação de saberes e renega as produções e
possibilidades que o semiárido tem a oferecer. Neste mesmo trilho,
percorre a tradição teórico-metodológica da Psicologia ao estabelecer
estudos nos/para centros urbanos e que, ao se inserir nos contextos rurais,
leva a mesma bagagem de leituras universais de homem, sem considerar
as especificidades dos territórios rurais.
Na contramão dessas relações, a educação contextualizada caminha
abrindo espaços de ruptura com estas lógicas, integrando o cotidiano
enquanto campo de produção de saberes e práticas que dialogam com
as compreensões técnico-científicas. Nessa caminhada, a Psicologia pode
seguir se reescrevendo nesses contextos e buscando modos de fortalecer a
reconstrução destas relações com a realidade do campo, na perspectiva de
se colocar a serviço dos variados modos de vida e processos de subjetivação
enquanto espaços de produção e ressignificação.
Diante disso, considera-se que experiências como a RECASA precisam
ser difundidas e reconhecidas enquanto exemplos de caminhos possíveis e
plenos, que permitem a reconstrução das relações com a realidade do campo,
contribuindo com a reconstrução dos projetos políticos pedagógicos das
escolas do campo e auxiliando nas lutas políticas destes espaços.

5. REFERÊNCIAS

ALENCAR, Maria Tereza de. Caracterização da Macroregião do Semiárido


Piauiense. In: SILVA, Conceição de Maria de Sousa et al. Semiárido
Piauiense: educação e contexto. Campina Grande: Triunfal, 2010. p. 15-34.

ARTICULAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO. [Página inicial].


Disponível em: <http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_
MENU=105>. Acesso em: 12 jul. 2015.

123
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística. Cadastro de Municípios localizados
na Região Semiárida do Brasil. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/
home/geociencias/geografia/semiarido.shtm>. Acesso em: 12 jul. 2015.

CARVALHO, L. D. A busca por um novo naturalismo e os movimentos de


reapropriação social de natureza no semiárido brasileiro: a contextualização
dos saberes enquanto percurso para o bom uso da semiaridez. Revista
Geonordeste, São Cristóvão, a. 25, n. 2, p. 40-54, ago. 2014.

COELHO NETO, Agripino Sousa. Redes sociais e territorialidade no semi-


árido brasileiro. Revista Geográfica de América Central, Costa Rica, n.
esp., p. 1-18, 2011.

FERREIRA, Karla Patrícia Martins; BOMFIM, Zulmira Áurea Cruz.


Juventude no semiárido nordestino: caminhos e descaminhos da emigração.
In: LEITE, Jáder Ferreira; DIMENSTEIN, Magda (Orgs.). Psicologia e
contextos rurais. Natal: EDUFRN, 2013. p. 89-116.

LEITE, Jáder Ferreira et al. A formação em Psicologia para a atuação em


contextos rurais. In: LEITE, Jáder Ferreira; DIMENSTEIN, Magda (Orgs.).
Psicologia e contextos rurais. Natal: EDUFRN, 2013. p. 27-55.

LUSA, M. O rural no semiárido e a formação sócio-histórica de Alagoas.


Maceió: EDUFAL, 2013.

MOVIMENTO Pró-desenvolvimento Comunitário. Da contextualização


à prática educativa: experiências da RECASA em municípios
alagoanos. Palmeira dos Índios, 2014. (1).

REIS, Edmerson dos Santos. Educação para convivência com o semiárido:


desafios e possibilidades. In: SILVA, Conceição de Maria Sousa et al (Orgs.).
Semiárido piauiense: educação e contexto. Campina Grande: Triunfal,
2010. p. 109-130.

124
VESTÍGIOS EM MOSAICO

REDE DE EDUCAÇÃO DO SEMIÁRIDO BRASILEIRO. A RESAB


possui várias publicações sobre educação contextualizada. Disponível
em: <http://resabnacional.blogspot.com.br/2011/06/resab-possui-varias-
publicacoes-sobre.html>. Acesso em: 12 jul. 2015.

RIBEIRO, Rafael Winter. Seca e Determinismo: a Gênese do discurso do


Semi-árido Nordestino. In.: Anuário do Instituto de Geociências. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1999. (22). Disponível em: <http://www.anuario.igeo.ufrj.br
/anuario_1999/vol22_60_91.pdf>. Acesso em: 12 jul. 2015.

SILVA, Roberto Marinho Alves da. Concepções de desenvolvimento:


convivência e sustentabilidade no semiárido brasileiro. In: SILVA, Conceição
de Maria de Sousa et al. Semiárido Piauiense: educação e contexto.
Campina Grande: Triunfal, 2010. p. 63-81.

125
7
ACESSO À SAÚDE NOS QUILOMBOS
DO BRASIL E EM ALAGOAS:
DESAFIOS À IMPLEMENTAÇÃO DA
POLÍTICA DE ATENÇÃO BÁSICA NAS
COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Saulo Luders Fernandes.

1. POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE À ATENÇÃO BÁSICA NOS


TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS:

Estima-se que, atualmente, existem cerca de 2.200 comunidades


quilombolas no país. Encontram-se reconhecidas 1886 comunidades,
as quais já passaram pelo processo jurídico de definição enquanto
quilombo. Porém, dessas comunidades reconhecidas, apenas 218 têm a
titulação de suas terras, o equivalente a 11,5% do total de comunidades
quilombolas certificados. Esses dados apontam para as dificuldades das
comunidades no acesso pleno aos seus direitos (SEPPIR, 2013).
As formas de cuidado presentes nas comunidades quilombolas, o
modo como lidam para manter a saúde, expressam a contradição entre a falta
de acesso aos direitos básicos e os modos possíveis de lidar com sua realidade.
Diante destas contradições, cabe questionar: qual a situação atual da saúde às
comunidades quilombolas do Brasil e de Alagoas? Quais avanços e retrocessos
produzidos nas políticas públicas de saúde inseridas nos territórios quilombolas?
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

2. CONDIÇÕES DE SAÚDE DA POPULAÇÃO QUILOMBOLA:


DESAFIOS A SEREM SUPERADOS

A atenção à saúde da população quilombola vem sendo


fortalecida e discutida desde 1990, com mobilizações da Marcha
Zumbi dos Palmares, que repercutiu na criação, em 1995, do Grupo
de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra, e
também na criação do subgrupo Saúde. Em 1996, houve a introdução
do quesito raça e cor nos sistemas de informação da saúde, bem como
a resolução 196/1996, com a exigência do recorte racial em qualquer
pesquisa envolvendo seres humanos. Após 10 anos, no Conselho
Nacional de Saúde de 2006, foi apresentada e debatida a Política
Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), apresentada
como proposta política que objetiva refletir e modificar as condições de
vida, desigualdades e injustiças sociais sofridas pela população negra,
população essa que vive a saúde condicionada às relações étnico-raciais
como categoria determinante no modo de viver e adoecer. Em 13 de
maio de 2009, por meio da portaria n° 992, foi instituída a PNSIPN,
a qual foi oficializada como lei em 20 de novembro de 2010 por
meio da Lei 12.288. Pensar a saúde das comunidades quilombola é
colocar em pauta os conflitos étnicos/raciais e a luta pela terra como
marcadores fundantes das desigualdades históricas vividas por eles no
país (ARAÚJO e SILVA, 2015).
Os dados socioeconômicos e a situação dos domicílios das
comunidades quilombolas são reveladores sobre as problemáticas
enfrentadas por estas comunidades no campo da saúde. Os dados
foram os seguintes: 74,73% das famílias quilombolas estão em uma
situação de extrema pobreza; 79,78% são beneficiários pelo Programa
Bolsa Família e 24,81% não sabem ler. Estes dados desdobram-se
na situação domiciliar vivida pelas comunidades, que apresenta
as seguintes condições (SEPPIR, 2013, p.17): 48,7% possui piso

128
VESTÍGIOS EM MOSAICO

de terra batida; 55,21% não possui água canalizada; 33,06% não


possui banheiro ou sanitário; 54,07% não possui saneamento
adequado; 57,98% queima ou enterra o lixo no território;79,29%
possui energia elétrica.
A negligência ao acesso a condições sanitárias ideais, como
afirmam Pinho et al. (2015) e Oshai e Silva (2013), apresenta-se como
um dos fatores no desenvolvimento de agravos nessas comunidades,
já que muitas doenças parasitárias e infecciosas são desenvolvidas em
condições insalubres e pelo consumo de água não tratada.
Para além das condições sanitárias precárias, a falta de políticas
estruturais que garantam mobilidade às comunidades é outro elemento
que impede o acesso, como relatado nas pesquisas de Melo e Silva
(2015), Pereira et al. (2015), Vieira e Monteiro (2013) e Oshai e Silva
(2013), as quais afirmam que uma das dificuldades prevalentes das
populações quilombolas no acesso à saúde é a distância das unidades
básicas e hospitais, bem como a inexistência ou precariedade do
transporte público nesses territórios.
Esses são alguns elementos a nível nacional que dificultam o
acesso pleno das comunidades quilombolas ao direito à saúde. Lutar
para que a PNSIPN seja implementada é norte político para que as
comunidades possam usufruir do direito aos cuidados ao corpo e à vida
nos quilombos.

3. AS CONDIÇÕES DE SAÚDE NOS QUILOMBOS


ALAGOANOS

Os dados nacionais apresentados repercutem sobre as


condições de vida das comunidades quilombolas de Alagoas,
as quais apresentam renda familiar média de R$236,29, para o
sustento em média de quatro pessoas. Os índices de pessoas que

129
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

frequentaram a escola apontam para: 53,3% da população com o


Ensino Fundamental; 14,2% com ensino médio e apenas 0,5%
passou pelo ensino superior. Apesar de 53,3% terem frequentado
o ensino fundamental, apenas 41,4% lê com facilidade, sendo que
55,7% tem dificuldade na leitura ou não conseguem ler (RISCADO
& OLIVEIRA, 2011).
Ferreira et al. (2011), ao realizar um estudo sobre a condição
nutricional e de saúde de crianças quilombolas em Alagoas, na avaliação
de 973 famílias, chega aos seguintes resultados: 60,8% pertenciam a
classe E; 76% estavam inscritas no Programa Bolsa Família. Quanto
ao sistema de abastecimento de água e saneamento básico, 36% não
são abastecidas pela rede pública, utilizando-se de poços, cacimbas,
rios e açudes. Dessas, 35,1% não tratam a água a ser consumida.
Famílias com esgoto sanitário inadequado (fossa sem tampa e esgoto
a céu aberto) equivale a 46,3% do total das famílias quilombolas
do estado. Essas condições fizeram elevar o índice de diarreia entre
crianças de 6 a 59 meses nas últimas duas semanas, o que é equivalente
a 33,8%, maior que o índice nacional de 17,8% das crianças. Outro
dado relevante que demonstra a situação de precariedade vivida pela
população pré-escolar em Alagoas foi a identificação de que 52,7%
das crianças com níveis de anemia.
Os altos índices de precariedade quanto a condições básicas de
vida, aumentam os níveis de vulnerabilidade da população quilombola.
Esses elevados níveis de vulnerabilidade devem-se à negligência ainda
persistente quanto o acesso aos direitos básicos e fundamentais a essa
população. A luta pela garantia ao direito à saúde nos quilombos deve
ser realizada por várias frentes, desde o fortalecimento político das
comunidades e dos movimentos sociais ligados aos quilombolas, até
a implementação de modo eficaz de políticas públicas que abranjam
esses territórios.

130
VESTÍGIOS EM MOSAICO

4.
FORTALECIMENTO DA ATENÇÃO BÁSICA NOS
TERRITÓRIOS QUILOMBOLAS: AVANÇOS E DESAFIOS NO
ACESSO À SAÚDE NOS QUILOMBOS

O fortalecimento da atenção básica é central para ampliação e


garantia da equidade em saúde para os quilombos. Como no estudo
realizado por Marques et al. (2010), que relata a situação de saúde
de duas comunidades do norte de Minas Gerais: Buriti do Meio,
que é atendida por uma ESF; e a Jardim da Prata, não atendida por
esse programa. Mesmo com as condições precárias de infraestrutura
presentes em ambas comunidades, que se alinham ao panorama
nacional já apresentado, a comunidade que é atendida pela ESF
apresenta algumas condições diferenciais, como: visitas do Agente
Comunitário de Saúde (ACS), a presença de grupo de Hipertensos
e diabéticos, exames regulares realizados pela enfermeira, bem como
encaminhamentos aos centros especializados.
A instalação de uma ESF possibilitou a visibilidade dos enquadres
epidemiológicos presentes na comunidade. Já a comunidade Jardim da
Prata apresenta uma condição de saúde negligenciada, sem nenhuma
ação permanente e com atendimentos de saúde esporádicos, por meio de
campanhas de vacinação. Não há dados epidemiológicos elaborados e o
conhecimento sobre a situação da saúde foi colhida por meio de relatos de
membros da comunidade. Apesar dessas diferenças, há momentos que os
relatos dos entrevistados, de ambas as comunidades, se encontram. A falta
da contratação de um médico há cinco meses, relatada na comunidade
Buriti do Meio, leva seus moradores ao mesmo caminho dos membros
da comunidade Jardim da Prata, que não assistidos, necessitam ir à cidade
buscar atendimento a seus agravos em saúde.
Diante das dificuldades de acesso aos serviços de saúde relatadas
anteriormente e aos campos de vulnerabilidade vividos, as comunidades

131
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

quilombolas buscam solucionar seus cuidados em saúde com base em


práticas tradicionais arraigadas em seus territórios, tendo nas ervas e
nos saberes populares, passados de geração a geração, práticas para o
cuidado de seus filhos, netos, maridos, mães, vizinhos. Essas práticas
incluem: remédios caseiros a base de chás e de ervas; garrafadas de raízes
e plantas medicinais; acompanhamento com parteiras; práticas com
rezadeiras, benzedeiras e puxadores (VIEIRA; MONTEIRO, 2013 e
SILVA, 2007).
Para compreender o cuidado em saúde nas comunidades
quilombolas, não se deve tratar os conhecimentos tradicionais apenas
enquanto efeito dos processos sistemáticos de exclusão vividos por
esta população. Eles são efeitos desse processo, mas também são
epistemologias que atrelam o cuidado à saúde a uma dimensão maior,
vinculada aos modos de viver e as quais passam a atuar como saberes que
se incorporam no cotidiano e auxiliam a interpretá-lo, na compreensão
dos fenômenos, da vida, do corpo e das relações do dia a dia.
Como afirma Arruti (2009), compreender as formas pelas
quais as comunidades associam suas práticas tradicionais aos saberes
médicos é viabilizar a implementação de uma política pública de
saúde por meio do reconhecimento da alteridade destes povos, com
suas histórias, saberes, crenças que vão relacionar-se diretamente às
suas concepções de saúde e de doença. Compreender a importância
dos saberes tradicionais no cuidado à saúde é possibilitar a emergência
de uma política pública que, para atuar de forma redistributiva nos
quilombos, necessita incorporar, nos seus princípios, o reconhecimento
da diferença destas populações.
A relevância da política de atenção básica à saúde das
comunidades quilombolas pode ser confirmada com base em pesquisas
realizadas sobre acesso à atenção básica, doenças crônicas e cuidados
em saúde nos quilombos (MELO; SILVA, 2015; PEREIRA ET AL.,
2015; PINHO ET AL., 2015; SILVA, 2007), pesquisas que apresentam

132
VESTÍGIOS EM MOSAICO

os principais tipos de agravos: hipertensão arterial, anemia falciforme,


doenças infecto-parasitárias, diabetes, doenças crônicas ligadas ao
aparelho digestivo, doenças de pele, alcoolismo, tabagismo e afecções
oftalmológicas. Agravos esses que poderiam ter resolubilidade se a
política de atenção básica estivesse efetivada de forma plena nesses
territórios no acompanhamento longitudinal dos agravos recorrentes à
nível individual e coletivo; prevenção, promoção e educação em saúde;
criação de estratégias de cuidado por meio do princípio da equidade e
de acordo com as necessidades da comunidade; bem como, efetiva sua
construção por meio de práticas democráticas e participativas junto aos
atores sociais envolvidos.
Para Oliveira et al. (2012), a atenção básica define-se
por um conjunto de ações que buscam, em níveis individuais e
coletivos, proteção, promoção, diagnóstico, tratamento, reabilitação
e manutenção da saúde. Ela apresenta-se como a porta de entrada,
o primeiro contato dos sujeitos ao serviço de saúde, e no caso das
comunidades quilombolas, o equipamento de saúde mais utilizado e
de maior potencial para acompanhamento e a manutenção da saúde
nessas comunidades.
Como afirmam Marques et. al (2010), a ampliação da
Política de Atenção Básica nos territórios quilombolas não é a
garantia que o direito à saúde dessa população esteja assegurado,
já que essa política, por vezes, instaura-se de forma precária: sem
o quadro de profissionais necessários, com falta de infraestrutura
para funcionamento e com práticas de saúde que atuam alheias à
realidade local, o que reverbera no fortalecimento do racismo e
da violência. A incapacidade de analisar e estruturar estratégias de
saúde condizentes com as especificidades presentes nos territórios
negros rurais passa a ser um empecilho para que a equidade possa se
efetivar nos serviços de saúde presentes nos quilombos.

133
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

5. POSSIBILIDADES DE IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA


PÚBLICA DE SAÚDE NOS QUILOMBOS

A entrada de um modelo de saúde alheio à realidade dos


quilombos, substanciado por uma ideologia racialmente hierarquizada,
vem atuar como processo de neocolonização de saberes, ou seja, a inserção
dos conhecimentos dos especialistas, como aqueles que carregam consigo
a legitimidade do saber científico, atuam como campos de verdade sobre
o modo de viver do outro, operando um poder que ora produz, ora
controla os corpos e o cotidiano das populações negras rurais.
Como afirmam Silva et al. (2015), as desigualdades sociais
expressam-se nos corpos da população negra, que refletem as
disponibilidades dos recursos, serviços sociais e de saúde públicos
acessíveis em seu cotidiano. A trajetória do acesso aos serviços de saúde
passa pelo acesso à educação, informação, conhecimento e redes de
apoio que irão orientar a capacidade que os sujeitos e seus coletivos
dispõem à promoção e ao cuidado em saúde.

6. REFERÊNCIAS

ARAÚJO, E. M. e SILVA H. P. Apresentação dossiê “Saúde da população


negra”. Revista da ABPN Vol.7, n. 16 mar-jun, p.12-15, 2015.

ARRUTI, J. M. Políticas públicas para quilombos: terra, saúde e educação


(p.75-109). In: Paula, M. e Heringer, R. (Orgs.). Caminhos convergentes:
Estado e sociedade na superação das desigualdades raciais. Rio de Janeiro:
Fundação Heinrich Boll, 2009.

FERREIRA, H. S., LAMENHA, M. L. D., XAVIER JÚNIOR, A. F. S.,


CAVALCANTE, J. C. e Santos, A. M. Nutrição e saúde das crianças das
comunidades remanescentes dos quilombos no Estado de Alagoas, Brasil.
Rev. Panam Salud Publica 30(01), p. 50-57, 2011.

134
VESTÍGIOS EM MOSAICO

MARQUES, A. S.; CALDEIRA, A. P.; SOUZA, L. R.; ZUCCHI, P. e


CARDOSO, W. D. A. População quilombola no norte de Minas Gerais:
invisibilidade, desigualdades, e negação de acesso ao sistema público de
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MELO, M. F. T. e SILVA, H. P. Doenças crônicas e os determinantes sociais


da saúde em comunidades quilombolas do Pará, Amazônia, Brasil. Revista
ABPN v. 7, n 16, mar-jun, p. 168-189, 2015

OLIVEIRA, S. K. M.; SILVEIRA, J. C. S.; PEREIRA, M. M. e FREITAS,


D. A. Saúde em comunidade rural quilombola: relato de experiência sob o
prisma dos atributos da atenção primária à saúde. Motricidade. Vol.8, n2,
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OSHAI, C. M. A. e SILVA H. P. A PNAB e o acesso à saúde em populações


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Belém; 12:1426, 2013.

PINHO, L., DIAS R. L., CRUZ L. M. A. e VELLOSO N. A. Condições


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PEREIRA, L. L.; SILVA, H. P. e SANTOS, L. M. P. Projeto mais médicos


para o Brasil: estudo de caso em comunidades quilombolas. Revista da ABPN
v.7, n. 16 Mar-Jun, p. 38-51, 2015.

RISCADO, J. L. e OLIVEIRA M. A. B. Quilombolas, guerreiros Alagoanos:


aids, prevenção e vulnerabilidades. Maceió: EDUFAL, 2011.

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portaldaigualdade.gov.br/copy_of_acoes

SILVA, L. A. V.; SANTOS, M. e DOURADO, I. Entre idas e vindas:


histórias de homens sobre seus itinerários aos serviços de saúde para

135
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diagnóstico e tratamento de HIV/Aids. Physis Revista de saúde coletiva. Rio


de Janeiro, 25[3]: 951-973, 2015.

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uma comunidade quilombola do Estado da Paraíba. Rev. Saúde Soc. São
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VIEIRA, A. B. D. e MONTEIRO, P. S. Comunidade quilombola: análise


do problema persistente do acesso à saúde, sob o enfoque da bioética de
intervenção. Saúde em debate. Rio de Janeiro, v.37, n.99 out/dez, p. 610-
618, 2013.

136
8
A RECONSTRUÇÃO DE LIMA BARRETO
NA ESCRITA DE CEMITÉRIO DOS VIVOS:
QUANDO A OBRA É, AO MESMO TEMPO,
FRUTO DE EXCLUSÃO E ENFRENTAMENTO
Anne Karolina Fernandes Cavalcante Maia

1. INTRODUÇÃO

A vida e obra de Lima Barreto têm sido estudada na Literatura


a partir da discussão sobre identidade nacional, marginalidade,
modernidade, racismo (SILVA, 2013; DINIZ, 2010, ARANTES,
2010) e loucura (HIDALGO, 2008; SILVA, 2008; SOUSA, 2011).
Lima Barreto é considerado um cidadão e escritor revolucionário da sua
época, precursor do movimento modernista e uma figura importante
que teceu críticas ao Brasil da República Velha – um país marcado pela
reprodução de modelos estéticos e funcionais na dinâmica cotidiana
das metrópoles europeias do século XIX. Em 1919, foi internado pela
última vez no Hospital Nacional dos Alienados, produzindo, durante
poucos meses em que lá esteve, conteúdo autobiográfico para a produção
de Cemitério dos Vivos.
Aspectos da biografia de Lima Barreto permitem que se
compreenda o fundamento central de sua obra: a verdade por trás dos
romances, o que diferencia ficção de realidade. Além disso, garante-
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

nos analisar quais foram as principais motivações para a escrita da


obra, identificar relações com o modo de vida da sociedade da época
e tecer possíveis críticas. Não obstante, as perdas, alegrias e tristezas,
traumas e expectativas do autor, experiências antigas, recentes e atuais
possibilitam aprofundar e identificar possíveis motivações para a escrita
de uma obra. Ancorado nessa perspectiva, o artigo tenciona contribuir
para a compreensão da obra Cemitério dos Vivos, identificando relações
entre a biografia do autor com foco nas estratégias que esse desenvolveu
para lidar com as contradições da sociedade e a produção lapidada do
romance após sua última internação no hospício, em 1919.

2. VIDA E OBRA DE LIMA BARRETO

Mulato e de origem pobre, Afonso Henriques de Lima Barreto


nasceu em 13 de maio de 1881, na cidade do Rio de Janeiro. Seus pais,
João Henriques de Lima Barreto e Amália Augusta Barreto, sempre
tiveram uma vida difícil, influenciada pelo não reconhecimento, o
preconceito racial e uma sociedade que não conseguia adaptar-se muito
bem aos anseios de jovens negros. Aos sete anos de idade, tornou-se órfão
de mãe e logo o pai passou a ter surtos psicóticos. No mesmo ano em que
foi abolida a escravidão, ao ser acusado de furto, Lima Barreto escreveu
em seu diário o desejo pelo suicídio. Moisés Gicovante, ao detalhar
fatos da vida do autor no livro Lima Barreto: uma vida atormentada,
relata que a falta da presença materna, para Lima, influenciara sua vida
a ponto de se enxerga produto de sua ausência: “talvez fosse menos
rebelde, menos sombrio e desconfiado, mais contente com a vida, se ela
vivesse” (GICOVANTE, 1952, p. 12).
Lima Barreto estudou no Liceu Popular Niteroiense,
custeado pelo padrinho de batismo, Visconde de Ouro Preto. Após
a revolta da armada, o pai mudara para o Engenho da Pedra, no

138
VESTÍGIOS EM MOSAICO

litoral da Penha. Com impressões dolorosas do governo da época,


Lima nutria, desde pequeno, revolta à república ditadora que pouco
se importara com sua gente.
Em 1885, aos 14 anos, o jovem prestava exame para o Ginásio
Nacional; sempre dedicado, um ano depois matriculou-se no Colégio
Paula Freitas. Mantendo seu comportamento de afastamento, recolhia-
se às leituras e exercício da intelectualidade. Tão jovem, já discutira
questões existenciais e filosóficas. O ano de 1897 foi o ano em que
se preparava para entrar na Escola Politécnica. Nela, o convívio com
a elite branca fazia crescer seu complexo pela cor; passava por tantos
momentos em que era satirizado por ser mulato que chegou a se
lamentar com tom de conformação, no Diário Íntimo: “É triste não ser
branco” (GICOVANTE, 1952, p. 19).
Antes dos 21 anos, em 1902, João Henriques, com medo de
ser acusado de um roubo, cujo motivo jamais existira na realidade,
tem uma crise psicótica, modificando radicalmente o dia a dia familiar.
Lima Barreto passa a cuidar dos irmãos e do pai, que se aposenta. Ao
trabalhar de amanuense na Secretaria da Guerra, Lima passou a viver no
subúrbio do Rio de Janeiro, com o pai considerado louco.
Funcionário público, Lima era considerado responsável,
exemplar. O Rio de Janeiro estava sendo remodelada e higienizada
esteticamente. Aquelas características camponesas da grande cidade
eram esquecidas e a ânsia pelo desenvolvimento do país preparava a
literatura, arquitetura e a beleza do Rio de Janeiro do século XX. A
tradição da nobreza, porém, manteve-se, assim como as tradições de
produção literária. A cópia da burguesia europeia intensificava-se e Lima
satirizava o apego fiel e passivo à Tradição. Passou a frequentar cafés
boêmios e a escrever em revistas de sucesso. O jornalismo seria, talvez,
um lugar de expressão e possibilidade de auxílio financeiro. Francisco
de Assis Barbosa, biógrafo, historiador, ensaísta e membro da Academia
Brasileira de Letras, foi um grande estudioso da obra de Lima Barreto

139
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

e relata o contexto sócio-político em que viveu o autor, influenciando


diretamente sua obra:
Como um vasto painel que se desdobra em sucessivos
quadros, lá estão os episódios culminantes da
insurreição antiflorianista, a campanha contra a febre
amarela, a ação de Rio Branco no Itamarati, a política
da valorização do café, o governo do Marechal Hermes
da Fonseca, a participação do Brasil na primeira guerra
mundial, o advento do feminismo, as primeiras greves
operárias, a semana de Arte Moderna, o delírio do
futebol e do jogo-do-bicho, tudo isso de mistura com
os nossos ridículos e as nossas misérias, mas também
sem esquecer a grandeza e a doçura do nosso povo; a
mania de ostentação, o vazio intelectual e a ganância
dos políticos; em sua, toda a crise das classes dirigentes,
que se agravaria de modo alarmante com a queda do
Império, isso de um lado; do outro, a bondade inata do
brasileiro, a coragem do funcionário público humilde
que luta por educar os filhos, o milagre da sobrevivência
de população pobre do subúrbio carioca, que, em meio
da miséria, canta e ri (BARBOSA, 2005, p. 15).

Diante de tantos acontecimentos, em 1907, além dos contos,


Lima lança a revista “Floreal” com estética e conteúdo pré-moderno,
influenciado pelas ideias revolucionárias e libertárias que já passeavam
entre os simpatizantes da época. A tentativa era nobre, mas não
alcançou quantidade suficiente de leitores para que a revista continuasse
sendo publicada, tendo apenas 4 edições. Aos 27 anos, abatia-se após
se perceber fracassado em obter o reconhecimento literário na época.
Alvo de inúmeras críticas pelo caráter autobiográfico de Recordações
do Escrivão Isaías Caminha, sua carreira como escritor e funcionário
público passou a desandar.
Entre 1911 e 1914, escreveu Triste Fim de Policarpo Quaresma
(publicado apenas em 1915 com recursos próprios) e Vida e Morte de

140
VESTÍGIOS EM MOSAICO

M. J. Gonzaga de Sá; no entanto, parecia que sua vida não tinha mais
jeito: já não suportava mais a burocracia do Estado, as alucinações do
pai, a incompreensão de sua literatura que tinha o objetivo de, acima
de tudo, dizer a verdade e ser sincera. Foi internado pela primeira
vez em 1914 com alucinações alcoólicas. Entregava-se à bebida e em
5 anos fora novamente internado no hospício. Durante esse período,
estudou e publicou em jornais contra o regime de Hermes da Fonseca,
apresentando incansavelmente ideias revolucionárias sobre fatos
nacionais e internacionais. Aposentou-se em 1919 e tentou um lugar à
Academia Brasileira de Letras, sem sucesso, após a publicação de Vida e
Morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Internado em 1919 com o mesmo motivo de sua primeira
internação, permaneceu alguns dias na Seção Pinel e depois na Seção
Calmeil. Ao escrever Diário do Hospício, sob a colaboração do Dr.
Humberto Gatuzzo, médico que deixara expressar conflitos e memórias
que o abalariam durante a estadia no Hospital Nacional dos Alienados,
na praia vermelha. Cemitério dos Vivos foi publicado apenas depois
de sua morte, com um capítulo impresso na Revista Souza Cruz, em
janeiro de 1921. Escreveu sobre o “Destino da Literatura”, publicado
em novembro de 1921 na mesma revista, como que um testemunho,
um testamento. No ano de sua morte, 1922, o Brasil comemorava o
centenário da independência, vivenciava a Semana de Arte Moderna
e a eleição de Artur Bernardes para presidente. Escreveu apenas dois
capítulos de Cemitério dos Vivos. Isolado, morreu no dia 1º de novembro
de 1922 de colapso cardíaco em sua casa.
Escreveu cinco romances em vida, duas sátiras, dois contos,
inúmeros artigos para jornais, além de Diário íntimo, Cemitério dos
Vivos, Impressões de Leitura e Correspondência ativa e passiva. Foi um
escritor que ansiava pela autenticidade e militância. Homem infeliz,
católico devoto, não se via entre a elite hipócrita de sua época, tampouco
sentia-se à vontade na comunidade mulata ou humildade da cidade.

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Entregou-se à bebida e essa seria a causa dos delírios que o levaram às


internações em 1914 e 1919. Sob tutela do Estado, com o apoio da
polícia e vigiado pelo poder psiquiátrico, Lima Barreto escreveu Diário
do Hospício, escritos que inspirariam a escrita do romance inacabado
de apenas dois capítulos, Cemitério dos Vivos. Esse poderia ser mais um
relato de indignação e crítica à sociedade, mas foi além. A instituição
psiquiátrica foi, antes de mais nada, a causa, o espaço, a condição sine
qua non de escrita do Diário. Cemitério dos Vivos, elaborado após sua
saída do hospital, carrega emoções lapidadas da experiência de Lima
Barreto no hospício.
Caberia, a esta altura, levantar o seguinte questionamento:
existe algum aspecto próprio da condição de internamento no
hospital psiquiátrico que teria condicionado a elaboração da narrativa
de si sofrida, confusa, cheia de arrependimentos e estranhamentos
apresentada em Cemitério dos Vivos? Teria a própria vida de Lima Barreto
gerado os dramas, pavores, conflitos e questões existenciais levantadas
insistentemente durante sua internação no Hospital Nacional dos
Alienados? Ou Cemitério dos Vivos seria produto, exclusivamente, de
sua internação no hospício? Por fim, qual o real papel do hospício no
relato de sofrimento e na produção de questionamentos existenciais
vividos por Lima?
Além de uma literatura da urgência, do indizível, da situação
– limite, como sugere Luciana Hidalgo (2008) ao dizer que Lima
Barreto teria escrito uma literatura que o salvara sob condições de
despersonalização; a escrita tornara-se seu lugar de fuga, afastando-se
do relacionamento com a instituição que todo o tempo lhe retirava
a autonomia. O álcool pode ter sido a causa dos delírios e talvez
intensificado seu próprio estranhamento com a sociedade brasileira da
época, mas Lima, apesar de estar em abstinência, permaneceu sóbrio
e lúcido num hospício que sintetizou as mazelas de todo o propósito
da instituição e do governo brasileiro na Belle Époque. Diante das

142
VESTÍGIOS EM MOSAICO

considerações expostas, a elucidação dada a esse problema consiste na


hipótese de que a experiência da internação na instituição psiquiátrica,
lúcida e violenta, foi crucial para que Lima Barreto relatasse, em
Cemitério dos Vivos, momentos de pavor, despersonalização, sentimento
de ausência de autonomia e cidadania, retirada de si, sofrimento de um
eu esquecido pela instituição, mas jamais abandonado pela Literatura:
“Ah, a literatura: Ou me mata ou me dá o que peço dela!” (BARRETO,
2010, p.46).

3. A ELABORAÇÃO DE CEMITÉRIO DOS VIVOS

Cemitério dos Vivos é um romance inacabado escrito por Lima


Barreto e publicado apenas em 1952 pelo biógrafo Francisco de
Assis Barbosa, o mais referenciado estudioso da vida e obra do autor.
Publicado inicialmente no volume Cemitério dos Vivos, teve sua primeira
parte constituída pelo Diário do Hospício e a segunda pelo romance
inacabado de cinco capítulos. Considerada obra de autoficção ou
romance autobiográfico – escrita que combina estórias reais e fictícias
em sua narrativa – o primeiro capítulo de O Cemitério dos Vivos chegou
a ser publicado na revista Souza Cruz (RJ), em 1921, um ano antes
da morte de Lima Barreto e da Semana de Arte Moderna. Sob o véu
da ficção, Lima Barreto condensa e refina os escritos de seu Diário do
Hospício, escrevendo um romance sobre a própria internação no HNA
entre 25 de dezembro de 1919 e 1921.
Por ser inacabado, o manuscrito apresenta vários nomes
cogitados por Lima Barreto para nomear o protagonista-narrador.
Optou-se aqui por utilizar o nome Vicente Mascarenhas, sugestão que
aparece em maior frequência no manuscrito e é utilizado no livro Diário
do Hospício e O Cemitério dos Vivos da editora Cosac Naify, publicado
em 2010.

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

No primeiro capítulo, Vicente Mascarenhas relata sobre as


frustrações de seu casamento, a saudade de sua mulher já falecida e
sua relação com a literatura, de tudo o que culminou, segundo ele, nos
motivos para sua internação. Curiosamente, além de fazer crítica aos
academicismos e aos títulos de “doutor” que as pessoas de sua época
conseguiam mais pelo prestígio de pertencer a uma família nobre da
Belle Époque carioca, do que pelo nível de conhecimento, Lima descreve
um Vicente Mascarenhas muito semelhante a si: inadaptado, antissocial,
negro e anti-intelectual.
Semelhante a Lima, os sonhos de Vicente eram tão fantásticos
a ponto de não os expressar à sua mulher e ao mundo por medo de ser
ridicularizado ou, no mínimo, de não ser compreendido. As frustrações
de um casamento arranjado com Efigênia, filha da dona da pensão
na qual passara alguns anos, bem como o abandono de seus estudos
literários e na composição de sua obra e a dedicação em produzir artigos
“vulgares” para revistas apenas para conseguir algum tipo de prestígio
social e preparar o público para sua obra, culminaram na experiência de
sua segunda internação, cuja convivência com a loucura o fizera sentir
ora esperançoso, ora melancólico, nostálgico e deprimente.
Ao relatar sua estadia no hospício, não só o contato com a
arquitetura e a dinâmica do hospício (que chegava, em alguns momentos,
a admirar) o inquietava, mas a presença da loucura o incomodava, cujo
mistério e interrogação nenhum título poderia decifrar, ainda que
tentasse. Aos loucos, no entanto, não tratava com desprezo; apenas se
isolava, para preservar a sua subjetividade, sua integralidade, para não se
perder na confusão existencial que abalava seus princípios morais, suas
aprendizagens mais íntimas.
O enigma da Loucura e suas causas é recorrente em O Cemitério
dos Vivos, tanto pela observação e contato no cotidiano dos loucos,
quanto pelo conhecimento que havia guardado sobre descobertas
científicas da época acerca da alienação mental, vícios e paixões. Vicente

144
VESTÍGIOS EM MOSAICO

questiona se é a hereditariedade uma das causas da loucura e mesmo


conclui: não seria possível, pois todos estaríamos loucos com a imensa
possibilidade de diagnósticos sintomáticos e morais sobre a alienação
mental. Fora internado por delírios em decorrência do uso de bebidas
alcoólicas alguns anos após a morte de sua mulher, Efigênia, e o fracasso
no meio jornalístico e na literatura. Não acreditava, porém, que era
vítima da loucura assim como se manifestava nos loucos, a perda total
do “juízo”, da “verdade de si”, da própria identidade. A convivência
com os loucos, porém, o afetava substancialmente: sentia horror ao
mutismo dos loucos ou de seus gritos desacerbados, sem nexo. O
hospício, definitivamente, não era o lugar de reconstrução, mas de
manutenção de qualquer que fosse o transtorno, espaço onde ecoa o
grito dos excluídos ou silêncio das subjetividades negadas.
Michel Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica,
evidencia que o nascimento do hospício se deu a partir da necessidade
de higienização moral nas grandes cidades europeias e o predomínio do
saber científico no domínio do fenômeno da Loucura. Já não era a Igreja
ou a religião que de alguma forma necessitava tratar dos loucos, havia
aí um saber institucionalizado para essa demanda. A “casa” /instituição
dos loucos, um dia, já fora dos leprosos e dos portadores de doenças
venéreas (Século XIV, XV).
O principal a se destacar é que o interno, segundo Foucault,
era diagnosticado principalmente por critérios morais (ou seja, que
dependiam do que a sociedade convencional julgava nobre ou impuro, e
aí mantinha-se a influência religiosa) aliados a diagnósticos cientificistas
da época. Ou seja, aí eram inclusos pobres, improdutivos, estrangeiros,
viciados, e, no Brasil do século XX, a maioria desses eram negros.
Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo
do século XIX – isolamento, interrogatório particular ou
público, tratamentos-punições como a ducha, pregações
morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa, relações


preferenciais entre o médico e alguns de seus doentes,
relações de vassalagem, de posse, de domesticidade e às
vezes de servidão entre doente e médico – tudo isto tinha
por função fazer do personagem do médico o “mestra da
loucura”; aquele que a faz se manifestar em sua verdade
quando ela se esconde, quando permanece soterrada e
silenciosa, e aquele que a domina, a calma e absorve de
a ter sabiamente desencadeado (FOUCAULT, 1988, p.
122 apud HIDALGO, 2008, p. 31).

Esse contexto institucional que mantinha o hospício sinônimo


de exclusão e negação da verdade, da Loucura propiciou experiência,
matéria-prima para a escrita de Diário do Hospício e Cemitério dos
Vivos. Luciana Hidalgo, jornalista e doutora em Literatura Comparada
pela UFRJ, analisou as obras de Lima Barreto, interpretando-as como
Literatura da Urgência, ou seja, produzidas sob a ótica da situação-
limite, emergencial, durante a vida de Barreto e principalmente em
sua internação que originou Diário do Hospício romanceado em o
Cemitério dos Vivos. Essa narrativa, segundo a autora, foi produzida
sob o limite do extremo, de aflição, contradição e inadaptação de Lima
no contexto institucional com o qual sempre travou críticas e farpas.
Eterno inadaptado, foi no hospício que essa literatura atingiu seu ápice,
escrevendo sobre suas experiências com a loucura institucionalizada e
reconstruindo a própria identidade.
A partir dessa perspectiva, é interessante identificar que
o hospício, se não é a única causa da produção do Diário – e,
consequentemente de O Cemitério dos Vivos –, é o agente disparador
dessa escrita bruta, melancólica e íntima. Aqui, Lima não escreveu
apenas por hábito ou para sair de sufoco do ócio e do silêncio da
loucura, mas para reconstruir a si mesmo em suas experiências
dolorosas da internação e de sua inadaptação, analisar talvez as
experiências de um modo diferente, como aconteceu na escrita de O

146
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Cemitério dos Vivos, cujos trechos são quase idênticos aos do Diário,
mudando apenas personagens ou locais. Foi para conseguir driblar a
vigilância e o caos silencioso da instituição por excelência que retirava
sua autonomia e liberdade de ser. Essa experiência dá subsídios para a
análise crítica e sarcástica de Lima em O Cemitério dos Vivos, descrita
por Alfredo Bosi como testemunho e ficção:

É provável que, sofrendo em carne e osso a experiência


de passar por insano, mas bem consciente de que
não o era (“De mim para mim, tenho certeza que
não sou louco”), o intelectual Lima Barreto estivesse
alcançando uma percepção nítida do caráter toscamente
discriminatório de certa psiquiatria determinista do
século XIX, cujas explicações, como ele mesmo aponta,
resumiam-se a nomenclaturas e terminologias, isto
é, a classes e palavras. Daí vem o mordente da sua
crítica às instituições manicomiais que, na sua lógica
perversa, pareciam compensar, pela sinistra igualdade
de uma espécie de morte em vida (que é o sequestro),
as diferenças de classe que os jazigos e as covas rasas
perpetuam nos cemitérios… (BOSI, 2007, p. 8)

O espaço da loucura era o espaço dos improdutivos, inadaptados,


daqueles que, como Vicente, eram destituídos de seus direitos e entregues
à impotência da Instituição. O Brasil daquela época definitivamente
não estava disposto a acolhê-los. Lima comenta:

O terrível nessa coisa de hospital é ter-se de receber


um médico que nos é imposto e muitas vezes não é
da nossa confiança. Além disso, o médico que tem
em sua frente um doente, de que a polícia é tutor e a
impersonalidade da lei, curador, por melhor que seja,
não o tem mais em conta de gente, é um náufrago, um
rebotalho da sociedade, a sua infelicidade e desgraça
podem ainda ser úteis à salvação dos outros, e a sua
teima em não querer prestar esse serviço aparece aos

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

olhos do facultativo como revolta de um detento, em


nome da Constituição, aos olhos de um delegado de
polícia (BARRETO, 2010, 245).

Além da denúncia à invasão da instituição polícia e hospício,


Lima/Vicente carregam, ambos, frustrações idênticas de não se sentirem
realizados em suas aspirações mais íntimas, revelando, novamente, o
caráter autobiográfico da obra. Silva (2008), em A experiência literária
da loucura em Lima Barreto, visa demonstrar o modo pelo qual a
produção literatura de Lima está imbricada a existência, ansiedades,
desejos e frustrações de Lima Barreto, refletindo uma crítica à sociedade
brasileira do século XX. A angústia gerada pela solidão e confinamento
durante sua estadia no hospício o impulsiona, mais do que nunca, a
escrever sobre a própria sociedade que o rotula e o estigmatiza. Não só
através da descrição dos loucos com quem convive, de suas dificuldades
de adaptação e também de suas memórias, Vicente/Lima reencontram,
através da literatura, a possibilidade de fazer a crítica à sociedade que
exclui os marginalizados, à prepotência científica onipresente em boa
parte dos médicos de sua época (apesar de Vicente relatar episódio
de estima a um psiquiatra), repudiando qualquer excesso ideológico
que corrompesse o homem de valores como autonomia, liberdade e
sinceridade. Dessa forma,

É assim que o hospício, até mesmo pelo seu aspecto


físico, é um espaço que dá visibilidade não apenas
à miséria e pobreza da maior parte da população
brasileira acometida de transtornos psíquicos, mas
funciona como um espelho da sociedade, no qual
se podem mirar representantes das distintas classes
sociais, igualadas pela insânia […] Assim, em O
cemitério dos vivos, Lima Barreto acaba por narrar o
fracasso de um esforço de modernização que resulta
em barbárie e mostra o descompasso entre o acelerado
desenvolvimento científico e tecnológico europeu

148
VESTÍGIOS EM MOSAICO

ocorrido em todos os domínios do conhecimento (e


que propiciou a criação das novas ciências humanas,
como a psicologia, a antropologia, a sociologia), e
a insuficiência desse aparato da modernidade para
solucionar, como se esperava, as mazelas humanas
(SILVA, 2008, p. 130; 152).

Durante sua estadia no hospício, ao passar pelo pavilhão de


observação, seguido da Seção Pinel – a dos indigentes – e, dias depois,
transferido para Seção Calmeil – pavilhão dos pensionistas –, Lima
passa a registrar, a partir do dia 04 de janeiro de 1914, seu cotidiano no
Hospício até sua saída, em 02 de fevereiro de 1920. Jaguaribe (1992)
faz uma interessante análise da obra e identifica semelhanças entre a
cidade normativa e a “anticidade” que o hospício representa. Enquanto
a cidade normativa se configura pelos que desejam ascensão social, o
hospício é justamente a ironia e a paródia dessa cidade, pois mesmo os
loucos apresentam comportamentos de distanciamento pela origem ou
classe social, a começar da divisão por Seções. Apesar de se solidarizar
com o drama existencial dos loucos, Vicente tinha medo de contágio
de doenças e mesmo desdenhava da condição de conviver com alguns
dos internos que não tinham possibilidade de trocar o mínimo possível
de conversas racionais, ainda que os escutasse com paciência. O trecho
a seguir resume bem a relação de Lima com a loucura, causa de seu
estranhamento e isolamento no Hospício:

Um dos horrores de qualquer reclusão é nunca se poder


estar só. No meio daquela multidão, há sempre um que
nos vem falar isto ou aquilo. No Hospício, eu ressenti
esse incômodo que só pode ser compreendido por quem
já se viu recolhido a qualquer prisão; lá, porém, é pior
do que em outra qualquer, sobretudo quando se está
perfeitamente lúcido, como eu estava, e não pode, por
piedade, tratar com mau humor os outros companheiros,
que são doentes (BARRETO, 2010, p. 236).

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4. A OBRA ENQUANTO RECONSTRUÇÃO DA VIDA A PARTIR


DO NÃO PERTENCIMENTO E DA AFIRMAÇÃO EXISTENCIAL

Entre a convivência, ora pacífica ora angustiante de Lima/


Vicente no Hospício, essas experiências descritas permeavam não só a
crítica à pretensão cientificista de determinar o destino do louco lúcido,
como da dificuldade própria do autor-personagem em conviver ele
mesmo num ambiente anormal. No entanto, Lima/Vicente não deixam
de fazer crítica à instituição policial e psiquiátrica que “tem mania de
generalizar tudo” e de achar que toda pessoa em estado de delírios deve
ser levada a força para qualquer lugar, bem como a ser enclausurada ou
passar por estados de subserviência braçal, humilhações morais como
tomar banho nu com todos os outros internos e vestir roupas indignas.
Três dias antes de sair do HNA, em 30 de janeiro de 1920, Lima concede
uma entrevista ao jornal A Folha, revelando a intenção de publicar um
romance que descreve suas percepções e experiências no hospício.
Tenho coligido observações interessantíssimas para
escrever um livro sobre a vida interna dos hospitais de
loucos. Leia O cemitério dos vivos. Nessas páginas
contarei, com fartura de pormenores, as cenas mais
jocosas e as mais dolorosas que se passam dentre
destas paredes inexpugnáveis. Tenho visto coisas
interessantíssimas (BARBOSA, 2002, p. 313).

Tais relatos, além dos diversos trechos semelhantes entre Diário


do Hospício e Cemitério dos Vivos, percebe-se, por fim, que Lima
vivenciou uma internação que encaminhou a escrita de Cemitério
dos Vivos de forma intencional na tentativa de superar os limites do
diário, romanceando, assim como havia feito em Triste Fim de Policarpo
Quaresma e Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, a crítica social que sempre
fez parte de sua vida de escritor inadaptado, mas que se intensificou no

150
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Cemitério dos Vivos, quando a instituição o sequestrara de sua vida pela


última vez produzindo marcas irreparáveis. O período no hospício o
fizera entrar, por vezes, em profunda angústia e niilismo existencial,
tomando o diário e o romance como tentativas de reconstrução ou fuga
de si mesmo, mantendo o senso crítico sobre a pretensão cientificista
da época, resistindo ao processo de institucionalização e controle do
próprio corpo, enfim, escrevendo, fazendo aquilo que ele mesmo
considerava função da literatura: falar do meio, expressar conteúdo,
dizer o que tem de ser dito.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lima Barreto foi, de fato, um escritor subversivo para


sua época. Sua arte não era estética, mas vivencial, sincera, pura,
crua – o que o fazia amá-la. Uma história de vida marcada por
particularidades, perdas e dores aliadas ao não reconhecimento
oficial enquanto escritor foram bases subjetivas para vivenciar a
loucura institucionalizada, objetivada em seu corpo cujo controle lhe
foi retirado. Não é surpreendente observar, inclusive, que a escrita
lapidada de Cemitério dos Vivos, mesmo após sua saída do hospital,
contém marcas e transcrições quase idênticas de relatos descritos
do Diário do Hospício. Esse estranhamento, embora lhe fosse
constante, chegou ao limite na institucionalização da sua subversão,
causando-lhe intenso sofrimento. As estratégias de enfrentamento
teriam chegado ao limite da instituição? Há possibilidade de pensar
justamente o inverso: a escrita teria sido um modo de resistência,
como sempre foi a Literatura para Lima. Cabe-nos refletir o porquê
de a escrita ter se tornado a via principal de resistência à perda da
autonomia, reconhecimento enquanto um sujeito de possibilidades
não reduzido aos sintomas aparentes. Seria a instituição, por meio

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

dos hospícios, da polícia, ou o próprio governo, esse agente que


também restringe o poder da resistência? Que, em certo grau, a esgota
até que o sujeito sobreviva em condições extremas de sofrimento?
Certamente, sim; é uma possibilidade, e a história de Lima Barreto
nos leva a comprová-la.

6. REFERÊNCIAS

BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto. Rio de Janeiro:


José Olympio, 2002.

BARRETO, Lima. Diário do Hospício/O cemitério dos vivos. Prefácio de


Alfredo Bosi. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

BOSI, Alfredo. ENSAIOS O CEMITÉRIO DOS VIVOS.


TESTEMUNHO E FICÇÃO.  Literatura e Sociedade, 2007 – revistas.
usp.br Universidade de São Paulo. www.journals.usp.br/ls/article/
download/23606/25642

DINIZ, J. Identidade negra e modernidade na obra de Lima Barreto.


2010. 113 f. Dissertação (Mestrado de Literatura e Interculturalidade) –
Departamento de Letras e Artes, Universidade Estadual da Paraíba, Campina
Grande. 2010. Disponível em: <http://goo.gl/xfUvzF>. Acesso em: 09 ago
2016.

GICOVATE, M. Lima Barreto: uma vida atormentada. Grandes vultos das


letras. N. 10. São Paulo: edições melhoramentos, s/d.

HIDALGO, L. Literatura da urgência: Lima Barreto no domínio da


loucura. São Paulo: Annablume, 2008.

SILVA, P. S. da. Afonso Henriques de Lima Barreto e o mito da


identidade nacional. 1. ed. São Paulo: edição do autor, 2013. Disponível
em: <http://goo.gl/ssWOAH>. Acesso em: 01 ago. 2016.

152
VESTÍGIOS EM MOSAICO

SILVA, G. M. B. L. F. da. A experiência Literária da Loucura em Lima


Barreto. In: Interdisciplinar, Sergipe, v.5, p. 125-154, 2008. Disponível em:
<http://goo.gl/6E9Wgj>. Acesso em: 02. ago. 2016.

SOUSA, W. A. de. A modernidade O cemitério dos vivos, enquanto voz da


loucura. In: CEPPG, Catalão, v.24, n.2, p. 27-43. Disponível em: <http://
goo.gl/sjSFLC>. Acesso em: 01. ago. 2016.

153
9
DO EMOCIONAL AO ELETRÔNICO:
OS MÚLTIPLOS SUPORTES EM
CUIDE DE VOCÊ, DE SOPHIE CALLE
Virginia da Silva Santos Amaral e Gilda Vilela Brandão

Recebi uma carta de rompimento.


E não soube respondê-la.
Era como se ela não me fosse destinada.
Ela terminava com as seguintes palavras: “Cuide de você”.
Levei essa recomendação ao pé da letra.
Convidei 107 mulheres, escolhidas de acordo com a
profissão, para interpretar a carta.
Analisá-la, comentá-la, dançá-la, cantá-la. Esgotá-la.
Entendê-la em meu lugar. Responder por mim.
Era uma maneira de ganhar tempo antes de romper.
Uma maneira de cuidar de mim.
Sophie Calle

1. SOPHIE CALLE, A MARCEL DUCHAMP DA ROUPA SUJA


EMOCIONAL1

Conhecida por suas obras que atravessam as fronteiras entre


a ficção e a realidade, Sophie Calle produz obras que se encontram

1
“Marcel Duchamp da roupa suja emocional” foi o termo utilizado pela jornalista Angelique Chrisafis
no artigo He loves me not publicado no jornal The Guardian em 16 de junho de 2007. Disponível em:
http://www.theguardian.com/world/2007/jun/16/artnews.art
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

entre o público e o privado, entre a arte e a vida. Nascida em Paris em


1953, Calle não tem formação em nenhum campo específico, já tendo
sido perseguidora de pessoas na rua e também stripper. Suas obras ora
nascem da curiosidade sobre o outro, trazendo um caráter voyeurístico,
ora de suas próprias experiências. Outro traço característico das obras de
Sophie é a necessidade de regras para a execução de sua obra, remetendo
aos ideais do Oulipo2. Em suas primeiras obras, reunidas em uma edição
chamada Le Dubles-Jeux3, a escritora deixa uma advertência na página
anterior ao início da obra, intitulada “A rega do jogo”:

La règle du jeu:

Dans le livre Léviathan, paru aux éditions Actes Sud,


l’auteur, Paul Auster, me remercie de l’avoir autorisé
à mêler la réalité à la fiction. Il s’est en effet servi
de certains épisodes de ma vie pour créer, entre
pages 84 et 93 de son récit, un personnage de fiction
prénommé Maria, qui ensuite me quitte pour vivre
sa propre histoire.

2
« Dans les annés 1960, à une époque où les recherches formalistes irriguent la littérature comme les
arts (théâtre, musique, peinture, sculpture…), des écrivains, des intellectuels, des poètes et même des
mathématiciens, unis par des intérêts communs autour d’une certaine conception de l’écriture, ont
l’idée de créer « l’Ouvroir de littérature potentielle » (en abrégé Oulipo). Mais qu’est-ce que l’Oulipo ?
Ni un mouvement littéraire – il ne vise pas à promouvoir des oeuvres particulières – ni une académie,
ni même un groupe de recherche scientifique. Il s’agit de la réunion, autour de nouvelles règles et
jeux d’écriture, d’écrivains comme François Le Lionnais, Raymond Queneau, Italo Calvino, Jacques
Roubaud ou encore Georges Perec et Marcel Bénabou. Les créateurs de l’Oulipo s’adonnent ainsi à une
exploration méthodique des potentialités de la langue, pour la sortir de son fonctionnement routinier
et en révéler les ressources cachées. » (LE PAPE, 2017, p. 1).
[Durante os anos de 1960, em uma época que os pesquisadores formalistas irrigavam a literatura
como as artes (teatro, música, pintura, escultura...), os escritores, os intelectuais, os poetas e mesmo os
matemáticos, unidos pelos interesses comuns ao redor de uma certa concepção de escritura, tiveram
a ideia de criar “l’Ouvroir de littérature pontentielle” (abreviado em Oulipo). Mas o que é o Oulipo?
Nem um movimento literário – ele não visa promover obras particulares – nem acadêmico, nem
mesmo um grupo de pesquisas cientificas. Ele gira em torna uma reunião ao redor de novas regras e
jogos de escritura, de escritores como François Le Lionnais, Raymond Queneau, Ítalo Calvino, Jaques
Roubaud ou ainda Georges Perec e Marcel Bénabou. Os criadores do Oulipo se entregaram, assim, a
uma exploração metodológica dos potencias da língua, para tirar a linguagem de seu funcionamento
rotineiro e revelar seus recursos escondidos – tradução nossa]
3
Nessa edição, estão reunidas as seguintes obras: De l’obéissance, Le rituel d’anniversaire, Les Panoplies, A
suivre..., L’Hôtel, Le carnet d’adresses, Gotham Handbook.

156
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Séduite par ce double, j’ai décidé de jouer avec le Roman


de Paul Auster et de mêler, à mon tour et à ma façon,
réalité et fiction (CALLE, 1998, s/p)4.

É, então, jogando entre a realidade e a ficção que seus trabalhos


iniciais, como Suite vénitienne (1979), Les Dormeurs (1980) e L’hôtel
(1981), se baseavam na observação do comportamento e ações de
conhecidos ou estranhos, procurando, assim, informações para construir
suas identidades. Um desses primeiros trabalhos de Calle foi bastante
controverso. Le Carnet d’adress (1983) foi publicado em 28 artigos no
jornal Libération e consistia na transcrição de conversas telefônicas com
desconhecidos sobre o dono de um caderno de endereços em que eles
se encontravam e que Calle encontrou por acaso na rua. Adicionado à
transcrição das conversas, Sophie Calle adicionou fotos das atividades
favoritas do dono do caderno, construindo o retrato de um homem que
ela jamais viu.
Já os últimos trabalhos de Calle estão mais relacionados a
suas próprias experiências, como no sex last night (1992), Le Rituel
d’anniversaire (1980-1993), Douleur Exquise (2003) e Cuide de você
(Prenez soin de vous) (2007). Estas duas últimas obras trabalham a questão
do rompimento amoroso. Em Doueleur Exquise, Sophie Calle, após ter
recebido um “fora” por telefone, decide enfrentar sua dor pedindo para
que pessoas contem suas mais dolorosas experiências. Já em Prenez Soin
de vous, Sophie Calle novamente enfrenta um rompimento mediado por
um aparelho de comunicação. Após ter recebido um e-mail em que o
amante terminava o relacionamento, Calle entrega a carta para que 107
mulheres responderem a X de acordo com a profissão que desempenham.
4
A regra do jogo:
Em seu livro Léviathan, publicado pela editora Actes Sud, o autor, Paul Auster, me agradeceu por lhe
ter autorizado a misturar realidade e ficção. Ele realmente se serviu de alguns episódios de minha vida
para criar, entre as páginas 84 e 93 de sua história, uma personagem de ficção nomeada Maria, que em
seguida me deixa para viver sua própria história.
Seduzida por esse duplo, eu decidi jogar com o romance de Paul Auster e o misturar, a minha maneira,
realidade e ficção [ Tradução nossa]

157
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Sophie Calle também explorou sua arte em vários campos e


gêneros: livro, cinema, fotografia, intervenção, instalação, textos em
série para um jornal diário. Obras de difícil classificação, elas sempre
expõem a vulnerabilidade humana. Sophie Calle passeia entre as
imagens e as palavras, construindo com elas narrativas que transitam
entre a realidade e a ficção.

2. UMA CARTA. 107 LEITORAS. 107 RESPOSTAS.

Após receber um e-mail de rompimento (Anexo 1), a rejeitada


convoca um exército de mulheres para analisar o texto escrito pelo senhor
X. Assim poderia ser resumida a proposta de Sophie Calle em Cuide de
você. A regra do jogo era simples: analisar a carta profissionalmente.
A proposta de Calle era de que as mulheres analisassem o e-mail de
maneira técnica, e não que expressassem os sentimentos de Sophie em
seu lugar.

Papagaia Brenda – Cuide de você5

5
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qXPnkQFWPsQ Acesso em 2 de maio de 2017.

158
VESTÍGIOS EM MOSAICO

São 104 mulheres, uma papagaia e duas marionetes, que


participam do trabalho. Algumas interpretam a carta de maneira
estritamente profissional; outras a interpretam sobrepondo as suas
observações; já outras criam músicas, cenas, personagens, danças a partir
do e-mail. O “fora” ganha, então, diversos tons: desde o dramático até
o ridículo. A pluralidade que esse e-mail produziu lembra aquilo que
disse Paul Zumthor em Performance, recepção, leitura6:

O eu só importa pelo que ele denota: a saber, que


o encontro da obra e de seu leitor é por natureza
estritamente individual, mesmo se houver uma
pluralidade de leitores no espaço e no tempo
(ZUMTHOR, 2007, p. 54).

As leituras da carta de X em Cuide de você são várias, indo desde a


leitura literal da carta, até reformulações e transformações desse mesmo texto.

3. LEITURA COMO EXPERIÊNCIA

“A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que


nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca. A cada
dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada
nos acontece” (LARROSA, 2002, p. 21). Eis a definição do que é
experiência para Jorge Larrosa Bondía. Pensando sobre essa definição de
experiência e sobre a obra Cuide de você, percebemos que todas aquelas
que participaram do jogo proposto por Calle experimentaram algo, ou


6
Temos consciência de que Zumthor, ao falar de performance, se refere a performance não veiculada
por algum tipo de mídia, seja sonora ou visual, porém, o próprio autor afirma que a tecnologia em
nada interfere na natureza da performance em si: “É verdade que a tecnologia de nosso século de algum
modo perturbou o esquema que eu esboço assim: a introdução dos meios auditivos e audiovisuais, do
disco à televisão, modificou consideravelmente as condições de performance. Mas eu não creio que
essas modificações tenham tocado na natureza própria desta” (ZUMTHOR, 2007, p. 51). Sendo
assim, compreendemos que podemos fazer uso das propostas de Zumthor neste artigo, mesmo se
tratando de performances que são veiculadas através de mídias visuais, não tendo sido vistas ao vivo.

159
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

seja, se sentiram tocados. Entre os participantes do jogo, incluímos não


só aqueles que participaram da instalação, mas a todos os que entraram
no jogo, inclusive nós mesmas.
Quando Larrosa diz que muitas coisas se passam, mas que quase
nada nos passa, pensamos em quantos e-mails, cartas, recados, SMS são
enviados com o intuito de terminar um relacionamento, porém todos
eles passam e não tocam, nem mesmo aquele com quem foi terminada a
relação. Sophie Calle poderia ter respondido o e-mail ou talvez pudesse
ignorá-lo completamente, mas ao invés disso, ela permitiu que aquele
e-mail a tocasse e tocasse a outras pessoas.
Em Cuide de você, Sophie Calle parou. Ao invés de se deixar
agir pelo instantâneo, o fugaz, para ser, em seguida, agitada por um
outro estímulo, Sophie Calle e as 104 mulheres pararam. Para haver a
experiência, é preciso parar:

[...] parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar,
pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-
se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e
os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a
lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço
(LARROSA, 2002, p. 24).

É preciso, porém, deixar claro que ao se deixar passar pela


experiência, não significa ser passivo a ela. Apesar de o sujeito da
experiência ser um sujeito sofredor, receptivo, aceitante; ele também
tem sua força, “[...] e essa força se expressa produtivamente em forma
de saber e em forma de práxis” (Ibidem, p. 26). Em Cuide de você, a
força de Sophie Calle se expressa na resposta dada por cada mulher, e a
de cada mulher se expressa na resposta que deram.

160
VESTÍGIOS EM MOSAICO

4. LEITURA SILENCIOSA. UM CORPO QUE GRITA.

Para ler, é preciso usar o corpo. Não apenas os olhos para ver as
palavras, ou as mãos para segurar o papel (ou para tatear os caracteres,
como no braile). Para ler, é preciso usar o corpo todo, mesmo que
seja uma leitura silenciosa. Mesmo lendo de uma maneira totalmente
imóvel, o meu corpo se mexe ao inalar e exalar o ar e ao bombear sangue
para todo o meu corpo. Essa ideia de ler com o corpo é proposta por
Paul Zumthor:

A posição do seu corpo no ato da leitura é determinada,


em grande medida, pela pesquisa de uma capacidade
máxima de percepção. Você pode ler não importa
o que, em que posição, e os ritmos sanguíneos são
afetados. É verdade que mal conceberíamos que, lendo
em seu quarto, você se ponha a dançar e, no entanto,
a dança é o resultado normal da audição poética! A
diferença, porém, aqui é apenas de grau (ZUMTHOR,
2007, p. 32,33).

O filme de Rodolfo Barreto, Équilibre, apesar de não ter


composto a instalação de Sophie Calle, também interpreta o e-mail
enviado por X. No vídeo em questão, uma mulher lê o e-mail sozinha
em uma mesa de um restaurante/bar. Sua leitura é silenciosa, já que
ela mantém os lábios imóveis durante todo o vídeo, porém há o áudio
de sua leitura, na tentativa de simular a voz que temos dentro de nós
durante uma leitura silenciosa.

161
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Équilibre, de Rodolfo Barreto7

Durante toda a leitura, enquanto os lábios se mantêm imóveis,


seu corpo se mantém inquieto. A mão que ora está sobre a boca, corre
para os cabelos, desliza para a têmpora... os olhos, ora fixos no papel,
depois ficam presos no horizonte ao ler determinado trecho. O corpo
na cadeira, tenta achar uma posição mais cômoda a cada vez que ela lê
um trecho do e-mail que a perturba. Em Équilibre, “o texto vibra; o
leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então é ele que
vibra, de corpo e alma” (Ibidem, p. 53).

5. LEITURA EM VIVA VOZ. LEITURA EM VIVO CORPO

No momento em que um texto é transmitido oralmente, ele


deixa de ser autônomo, de significar apenas por aquilo que está disposto
7
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5HwjTyPVJeQ Acesso em 2 de maio de 2017.

162
VESTÍGIOS EM MOSAICO

graficamente no papel, sofrendo modificações vindas do jogo entre o


intérprete e o texto, o público, o cenário, etc. É o que vemos nos vídeos
Madelon e no da comediante italiana Luciana Littizzetto.
Em Madelon temos uma representação diferente do e-mail que
Sophie Calle recebeu. Enquanto em todos os outros vídeos a leitura da
carta é feita a partir da perspectiva de quem recebeu, em Madelon temos
a perspectiva de quem enviou e de quem recebeu. Temos, nesse vídeo,
um teatro de marionetes apresentado para crianças.

Madelon8

Na primeira cena, aparece uma marionete que lê em voz alta


aquilo que está escrevendo. Já na segunda cena, temos uma marionete
que lê em voz alta a carta que recebeu. Nesta leitura do e-mail temos
um desencontro entre o que está escrito no texto e a maneira como esse
mesmo texto está sendo lido e interpretado. A marionete que escreve a
carta parecia, no início do vídeo, bastante decidida, mas é exatamente


8
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=fQ18SyG6PrY Acesso em 2 de maio de 2017.

163
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

no momento em que no texto conotariam decisão, certeza (“Uma


espécie de angústia terrível, contra a qual não posso fazer grande coisa,
senão seguir adiante para tentar superá-la, como sempre fiz”), a ação
da marionete é diferente, já que ela foge correndo, demonstrando sua
covardia. A cena seguinte é a continuação da carta, mas sendo lida pela
marionete Sophie que lê a carta de maneira bastante dramática, porém
é de uma dramaticidade tal que beira ao cômico. A leitura do e-mail em
Madelon tem oscilações, indo do cômico até o dramático.
A leitura do e-mail feita por essas marionetes traz outros sentidos
para aquilo que antes estava disposto graficamente, diminuindo a
autonomia do texto, como afirma Zumthor ao abordar as peculiaridades
da transmissão do texto literário pela voz:

Com efeito, nas obras poéticas transmitidas pela voz


(ainda que elas tenham sido previamente compostas
por escrito), a autonomia relativa do texto, em relação à
obra, diminui muito: podemos supor que, no extremo,
o efeito textual desapareceria e que todo o lugar da obra
se investiria dos elementos performáticos, não textuais,
como a pessoa e o jogo do intérprete, o auditório, as
circunstâncias, o ambiente cultural e, em profundidade,
as relações intersubjetivas, as relações entre a representação
e o vivido (ZUMTHOR, 2007, p. 17,18).

No vídeo da comediante Luciana Littizzetto, temos uma leitura


repleta de superposições, repleta de camadas, tal qual a cebola que ela
corta enquanto lê o e-mail. Essas colagens, superposições, camadas
são sentidas nas variações do seu tom de voz, que é um quando lê o
e-mail e torna-se outro quando faz suas observações. Sobreposto a
sua leitura estão as suas ações: a faca que aponta para o papel e depois
corta agressivamente a cebola, a interrupção abrupta da leitura para se
levantar e lavar o rosto ou buscar algum objeto.... Na leitura de Luciana
Littizzetto, o e-mail tem seu sentido atualizado ao mesmo tempo que

164
VESTÍGIOS EM MOSAICO

sofre modificações (inclusive físicas quando é usado como lenço para


assoar o nariz).

Prenez soin de vous, de Luciana Littizzetto.9

A performance de Littizzetto, assim como Madelon e Équilibre


são únicas, mesmo quando todas elas trazem a leitura integral do
mesmo texto, pois, como afirma Zumthor: “Cada performance nova
coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a
cada nova performance ela se transmuda” (ZUMTHOR, 2007, p.
33). Cada performance é única, não só pela mudança de cenário e
personagens participantes, mas também pela mudança da entonação,
das pausas durante a leitura da carta (ou a quase ausência delas, como
na de Littizzetto), a presença ou não de interferências nessas leituras,
entre outros detalhes. As performances não apenas comunicam o
texto de X, como também o marcam, respondendo, dessa maneira,
ao e-mail, mesmo aquelas performances que estão mais coladas ao
correio recebido.
Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=qoO1F1lhPEQ. Acesso em 2 de maio de 2017.
9

165
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Cuide de você, os papéis se invertem, o autor deixa de estar


no centro dos holofotes para dar lugar ao leitor que, até então, estava na
penumbra. É uma obra que tem como objetivo esmiuçar até a exaustão
o e-mail escrito por X (o escritor Grégoire Bouillier 10), mas que mesmo
tendo sido lida por 104 mulheres, uma ave e duas marionetes, não pôde
esgotar tudo aquilo que o texto suscita. Ao ganhar essa pluralidade e
amplitude, Cuide de você não mais tem a ver com Sophie Calle, como
própria artista reconhece: “Não é de minha vida que se trata, não sou
o tema principal”11, mas sim com todos aqueles que se identificam e se
sentem provocados pelo desafio proposto por Calle.
Diante da obra Cuide de você senttimos que fomos tocadas,
passadas, transpassadas, atingidas, abaladas, estremecidas. Cuide de
você se abre mais para os questionamentos do que para as conclusões.
É como uma enguia. Quando pensamos ter conseguido agarrá-la, ela
escorrega e escapa entre os nossos dedos. É uma obra que se abre e
nos abre para a experiência, permitindo que o leitor pare, sinta, escute,
suspenda a opinião e se demore nos detalhes. Em seu jogo, Cuide de
você amplia nosso horizonte fazendo-nos perceber como a leitura de
um texto pode ser feita de diferentes maneiras que não se reduzem
apenas ao tom de voz, mas a escolha de outras formas de expressão:
música, dança, fotografia... Cuide de você permite que a experiência seja
transformada em arte.

10
Grégoire Bouillier e Sophie Calle se conheceram em umas das festas de aniversário que a autora fez e
que se tornaram material para a sua obra Le rituel d’anniversaire. Outro fato interessante é que não foi
apenas Bouillier que serviu de “inspiração” para a obra de Calle, pois O convidado surpresa (2004), obra
de Grégoire, narra o encontro do autor com a artista francesa.
11
Essa afirmativa da autora está presente no artigo de Camila Molina para o jornal O Estadão de São
Paulo. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,carta-de-ex-namorado-motiva-
exposicao-de-sophie-calle-em-sp,400772 Acesso em 2 de maio de 2017.

166
VESTÍGIOS EM MOSAICO

7. REFERÊNCIAS:

BARRETO, Rodolfo. Équilibre. Disponível em: https://www.youtube.com/


watch?v=5HwjTyPVJeQ Acesso em 2 de maio de 2017.

BRENDA. Prenez soin de vous. Disponível em : https://www.youtube.


com/watch?v=qXPnkQFWPsQ Acesso em 2 de maio de 2017.

CALLE, Sophie. Cuide de você. Disponível em: http://www.videobrasil.


org.br/sophiecalle/ Acesso em Acesso em 2 de maio de 2017.

CHRISAFIS, Angelique. He loves me not. The guardian, Londres, 16 jun.


2007. Disponível em: http://www.theguardian.com/world/2007/jun/16/
artnews.art. Acesso em 2 de maio de 2017.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber da experiência.


Revista Brasileira de Educação, Campinas, n 19, p. 20-28, 2002.

LITTIZZETTO, Luciana. Prenez soin de vous. Disponível em: http://


www.youtube.com/watch?v=qoO1F1lhPEQ. Acesso em 2 de maio de 2017.

MADELON. Disponível em: http://www.youtube.com/


watch?v=fQ18SyG6PrY Acesso em Acesso em 2 de maio de 2017.

MOLINA, Camila. Carta de ex-namorado motiva exposição de Sophie


Calle em SP. Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/
geral,carta-de-ex-namorado-motiva-exposicao-de-sophie-calle-em-sp,400772
Acesso em 2 de maior de 2017.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2 ed. São Paulo: Cosac


Naify, 2007.

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ANEXO
Anexo 1:
Sophie,
Há algum tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu
último e-mail. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor conversar com você
e dizer o que tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito.
Como você pôde ver, não tenho estado bem ultimamente. É
como se não me reconhecesse na minha própria existência. Uma espécie
de angústia terrível, contra a qual não posso fazer grande coisa, senão
seguir adiante para tentar superá-la, como sempre fiz. Quando nos
conhecemos, você impôs uma condição: não ser ver as “outras”, não
achando obviamente um meio de vê-las, sem fazer de você uma delas.
Achei que isso bastasse; achei que amar você e o seu amor seriam suficientes
para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizontes
e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e
“generoso”, se aquietasse com o seu contato e na certeza de que o amor
que você tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico
que jamais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio,
que meu “desassossego” se dissolveria nela para encontrar você. Mas não.
Estou pior ainda; não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em
que me encontro. Então, esta semana, comecei a procurar as “outras”.
E sei bem o que isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou
entrando. Jamais menti para você e não é agora que vou começar. Houve
uma outra regra que você impôs no início de nossa história: no dia em
que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para você me ver
novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa, injusta
(já que você ainda vê B., R.…) e compreensível (obviamente…); com
isso, jamais poderia me tornar seu amigo. Mas hoje, você pode avaliar a
importância da minha decisão, uma vez que estou disposto a me curvar
diante da sua vontade, pois deixar de ver você e de falar com você, de

168
VESTÍGIOS EM MOSAICO

apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres e a doçura com a qual você
me trata são coisas das quais sentirei uma saudade infinita. Aconteça o
que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da maneira que
sempre amei, desde que nos conhecemos, e esse amor se estenderá em
mim e, tenho certeza, jamais morrerá. Mas hoje, seria a pior das farsas
manter uma situação que você sabe tão bem quanto eu ter se tornado
irremediável, mesmo com todo o amor que sentimos um pelo outro. E é
justamente esse amor que me obriga a ser honesto com você mais uma
vez como última prova do que houve entre nós e que permanecerá único.
Gostaria que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.
Cuide de você.
X

169
10
OUTRA FORMA
DE COMPREENDER O TDAH:
UM OLHAR ANALÍTICO-
COMPORTAMENTAL
Lucas Costa Neves Rocha.

1. INTRODUÇÃO

A medicalização da aprendizagem tem se configurado como um


dos grandes problemas da hodiernidade. Problemáticas na escolarização,
seja no que tange ao ajustamento do indivíduo ao ambiente escolar
ou em relação ao processo de aprendizagem, tem sido “resolvida”
eminentemente através da administração indiscriminada de fármacos, o
que tem produzido um aumento exponencial no consumo de remédios
por parte de crianças escolarizadas.
A medicalização se configura como uma tendência a reduzir
problemáticas sociais a termos médicos, buscando na biologia a origem
delas. Desta forma, faz com que questões sociais sejam transformadas
por meio de operações discursivas, em problemas de origem e solução
no campo médico. Cria-se, nessa perspectiva, uma ampla demanda por
serviços de ordem médica.
Este artigo não almeja problematizar a existência do Transtorno
por Deficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), o que afasta esse
empreendimento de perspectivas que afirmam que o TDAH e outros
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

transtornos são apenas comportamentos que destoam dos padrões


hegemônicos, ou seja, perspectivas que se limitam a problematizar o
comportamento verbal de médicos e neurocientistas e a própria existência do
transtorno, mas problematizará a restrição às intervenções medicamentosas.
O aspecto mais relevante dessa proposta é a tentativa de
apresentar evidências de que a ótica analítico-comportamental pode
contribuir para o desenvolvimento e a aplicação de estratégias menos
onerosas e nocivas para lidar com o transtorno.

2. TDAH: UM PANORAMA GERAL ACERCA DO TRANSTORNO

2.1. Um breve resgate de investigações

Segundo Benczik (2010), alguns dos sintomas característicos


do TDAH vêm sendo estudados desde o final do século XIX. Em
meados de 1890, médicos realizavam intervenções junto a pacientes
que apresentavam sintomas de desatenção, impaciência e inquietação
decorrentes de danos cerebrais, bem como com indivíduos retardados
sem histórico de trauma que apresentavam sintomas similares.
A autora destaca que no século XX houve a contribuição do
pediatra G. F. Still (1868 - 1941), que em 1902 descreveu casos de
crianças que apresentavam dificuldades para internalizar regras e limites,
além de apresentarem manifestações de sintomas de inquietação,
desatenção e impaciência. Louzã Neto et al. (2010) afirmam que o
trabalho publicado por Still no Lancet em 1902 é considerado como a
primeira descrição médica detalhada do TDAH.
Segundo Louzã Neto et al. (2010), os primeiros experimentos
acerca da utilização de anfetaminas no controle de distúrbios
comportamentais em crianças datam do final da década de 30.

172
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Esse breve histórico busca evidenciar que apesar da denominação


TDAH para identificação de um quadro sintomatológico que envolve
sintomas de desatenção, hiperatividade e impulsividade ser recente,
datando de 1994, com a publicação da quarta edição do Manual
Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-IV), o
quadro sintomatológico e os prejuízos dele decorrentes já são objetos de
pesquisa e alvo de intervenção há mais de um século.

2.2. Uma perspectiva segundo o modelo médico

Segundo o DSM-IV (2002), o TDAH é caracterizado por um


padrão persistente de desatenção com ou sem sintomas de hiperatividade-
impulsividade, mais frequente e intenso do que o comumente observado
em indivíduos de mesmo nível de desenvolvimento.
O diagnóstico do transtorno é fundamentalmente clínico
e balizado segundo os critérios diagnósticos definidos no DSM-
IV. Entretanto, alguns autores sugerem procedimentos adicionais
para a definição do diagnóstico. Martins et al. (2003) destacam
o encaminhamento, para as escolas, de escalas objetivas para
avaliação de desatenção, hiperatividade e impulsividade que possam
ser facilmente preenchidas pelos professores, além da realização
de avaliações neurológica, neuropsicológica e psicopedagógica.
Os autores salientam, entretanto, que a clínica é soberana para o
diagnóstico do transtorno.
Quanto à etiologia do TDAH, sabe-se que ela se tornou objeto
de pesquisa no final do século passado, tendo existido uma produção
científica mais densa no início da década de 90 em decorrência do
avanço técnico e conceitual das neurociências. Entretanto, apesar dos
avanços existentes em tais pesquisas e do grande número de estudos já
realizados, as causas do TDAH ainda não são bem definidas.

173
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

Diversos autores (MUSZKAT, 2011; ROMAN et al, 2003)


apontam, além de variáveis ambientais, a influência de fatores genéticos
e neuroquímicos para o desenvolvimento do transtorno. Entretanto,
vale frisar que genes e/ou condições bioquímicas específicas não parecem
ser responsáveis pelo transtorno em si, mas por uma predisposição ou
suscetibilidade orgânica ao seu desenvolvimento. A instalação e manutenção
dos sintomas associados ao TDAH é produto desta suscetibilidade acrescida
de condições ambientais específicas para o desenvolvimento do quadro.

2.3. Tratamento Hegemônico: a soberania da intervenção


medicamentosa

Gomes et al. (2007) apresentam em um estudo descritivo o


panorama do conhecimento e percepções acerca do TDAH no Brasil,
tal estudo fora tecido a partir dos dados coletados pelo Instituto
Datafolha através de entrevistas junto a quatro grupos distintos. O
estudo buscou investigar o nível de informação de leigos, médicos,
psicólogos e educadores brasileiros acerca de alguns atributos clínicos,
do diagnóstico e do manejo do TDAH, bem como do tratamento
oferecido aos indivíduos diagnosticados.
Os resultados apresentados por Gomes et al. (2007) evidenciam
que a maior parte dos médicos e psicólogos entrevistados são favoráveis
à intervenção medicamentosa. A pesquisa aponta também que
94% dos 190 médicos entrevistados que afirmaram tratar pacientes
diagnosticados com TDAH prescrevem medicamentos, enquanto 86%
indicam terapia psicológica. Os principais medicamentos prescritos
foram Ritalina® (82%), Concerta® (41%) e Ritalina LA® (37%).
Apesar do uso destes medicamentos apresentarem risco
considerável, tem-se observado um aumento exponencial no uso de
psicofármacos por crianças escolarizadas. Segundo dados de pesquisa

174
VESTÍGIOS EM MOSAICO

realizada pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade


(2011), acerca da compra e dispensação do medicamento cloridrato
de metilfenidato pelos municípios paulistas, observa-se, nos últimos
cinco anos, uma tendência crescente na compra e dispensação deste
medicamento pelos órgãos públicos, tendo aumentado de cerca de
29.000 comprimidos para 419.000.
Tais dados evidenciam uma problemática atual densa, a saber: a
medicalização indiscriminada de crianças em idade escolar. A medicalização
se configura como uma tendência a reduzir problemáticas sociais, o que
exigiria atentar para aspectos econômicos, políticos e culturais, a termos
médicos, buscando na biologia a origem das mesmas. Segundo Moysés e
Collares (2012), o ideário da medicalização faz com que questões sociais
sejam transformadas, por meio de operações discursivas, em problemas
de origem e solução no campo médico. Cria-se, nessa perspectiva, uma
ampla demanda por serviços de ordem médica.
Acredita-se, portanto, que tal configuração é decorrente do
poder ideológico da ciência médica. Questioná-la, é uma tarefa árdua,
uma vez que outras categorias profissionais por vezes legitimam o
discurso diferido pela categoria médica. Dados apresentados acima
apontam que comumente a categoria dos profissionais de Psicologia
é uma delas. Tentar-se-á, entretanto, apresentar outra possibilidade de
compreensão acerca do TDAH.

3. TDAH E ANÁLISE DO COMPORTAMENTO: OUTRA


FORMA DE COMPREENDER O TRANSTORNO

3.1. Alguns pressupostos da Análise do Comportamento

A Análise do Comportamento (AC) se configura em uma


orientação teórico-metodológica em Psicologia, baseada principalmente

175
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

na produção filosófica e científica de B. F. Skinner (1904-1990).


Tourinho (2003 apud TOURINHO; SÉRIO, 2010) interpreta a
AC como um campo do saber formatado em resposta às demandas
comumente dirigidas à Psicologia que define o comportamento como
objeto de estudo dessa ciência.
O comportamento é compreendido como produto da interação
organismo e ambiente. Neste sentido, o comportamento é descrito como a
relação entre classes de respostas e estímulos antecedentes (comportamento
respondente) ou classes de respostas relacionadas às consequências que
produzem e que retroagem sobre o organismo, configurando-se em uma
unidade de comportamento (comportamento operante).
A AC apresenta ainda três níveis de variação e seleção como
determinantes do comportamento. Sendo eles: filogênese, ontogênese
e sociogênese. O nível ontogenético definirá o que a AC denomina
como repertório discriminativo. Para compreendermos esse conceito,
entretanto, faz-se necessário primeiramente apontarmos outro
conceito, o de contingências de reforço. Esse último se refere às relações
estabelecidas entre três elementos constitutivos, a saber: estímulos
discriminativos, resposta e consequências.
Segundo pressupostos analítico-comportamentais, entende-
se que nenhum indivíduo se comporta aleatoriamente, mas sim, que
todo comportamento apresentado por um indivíduo compõe seu
repertório discriminativo. Este repertório é emitido em função de
uma circunstância específica e é selecionado e mantido a depender
da forma como for consequenciado. Isso não implica afirmar que os
comportamentos apresentados por um sujeito não tenham variáveis
genéticas que possam influenciar, mas reitera o fato de que também são
modulados pelo ambiente.
Além dos pressupostos supramencionados, vale ressaltar a
concepção monista de homem adotada pela AC. Tal concepção parte

176
VESTÍGIOS EM MOSAICO

do princípio de que o homem, bem como qualquer outro organismo,


é composto por uma única substância, a matéria. A concepção monista
se contrapõe à dualista, segundo a qual o homem seria composto por
uma substância material e outra imaterial. Para o monismo analítico-
comportamental, entretanto, o indivíduo é indivisível (MARÇAL,
2010). Sendo assim, qualquer tentativa de analisar processos psicológicos
ou transtornos específicos com base na AC deve refutar concepções
dualistas (corpo/mente).
Neste sentido, entende-se que o indivíduo em interação
com o ambiente opera sobre o este, modificando-o. As modificações
decorrentes da ação do indivíduo retroagirão sobre ele, aumentando
ou reduzindo a probabilidade de emissão das respostas que produziram
tais modificações. Tal compreensão se afasta de perspectivas que adotam
causalidades internas para explicar problemas comportamentais, desta
forma, afasta-se de compreensões que entendem o TDAH apenas
como um transtorno de ordem endógena. O TDAH passa a ser
entendido simplesmente como um conjunto de operantes agrupados e
categorizados como tal.

3.2. A psicopatologia e o TDAH segundo o olhar Analítico-


Comportamental

Na segunda sessão, o TDAH foi apresentado com base no modelo


médico. Entretanto, segundo Banaco et al. (2012), a AC, ao abordar
os comportamentos psicopatológicos, deparou-se com divergências em
relação ao modelo médico. Os autores destacam alguns aspectos que
acarretam em tal divergência.
O primeiro aspecto destacado se relaciona à fenomenologia
da psicopatologia, ou seja, a ênfase dada pelo modelo médico, em
uma descrição minuciosamente detalhada da forma de ocorrência do

177
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

comportamento psicopatológico. Segundo os autores, este não é o


dado mais relevante a ser observado, devendo, portanto, atentar para a
função que o comportamento adquire na relação do indivíduo com o
seu ambiente.
O segundo aspecto elencado pelos autores se relaciona à
procura, empreendida pela medicina, de causas que justifiquem o
transtorno em anormalidades orgânicas. Enquanto que a AC busca
explicar e descrever a frequência, a intensidade e a probabilidade
com a qual comportamentos, sejam eles ditos patológicos ou não, se
apresentam. Outro aspecto destacado envolve o esforço, empreendido
pela psiquiatria, em descrever o curso ou o desenvolvimento de uma
“doença mental”, ao passo que a AC busca identificar as condições
mantenedoras dos comportamentos comumente atribuídos a uma
“doença mental”.
O quarto aspecto diz respeito à relação de causalidade que
justifica os comportamentos ditos psicopatológicos. Para a ciência
psiquiátrica, tais comportamentos são frutos de uma “doença mental”,
atribuindo, assim, um caráter intrínseco ou endógeno ao transtorno.
Para o saber analítico-comportamental, entretanto, são produtos de um
processo denominado seleção por consequências.
Tal processo postula que aquele comportamento que produz
consequências que tenham valor de sobrevivência será mais provável
de se repetir no futuro, diante de condições similares. Esta afirmativa,
entretanto, traz consigo uma questão: como um comportamento
psicopatológico, que produz prejuízos para o sujeito que o emite, bem
como para sujeitos próximos, pode ser mantido?
Uma análise descuidada dessa relação pode atribuir algum caráter
de anormalidade ao indivíduo que o emite. Entretanto, acredita-se que
uma análise com bases nos pressupostos analítico-comportamentais
garantiria a identificação não só de eventos aversivos produzidos pelo

178
VESTÍGIOS EM MOSAICO

comportamento psicopatológico, mas também a identificação de


eventos reforçadores consequentes a ele, o que acabaria por garantir
a manutenção desses. Observa-se, então, a existência de contingências
conflitantes que competem na determinação da probabilidade de
ocorrência de um comportamento.
O quinto e último aspecto de divergência elencado por
Banaco et al. (2012) refere-se à tentativa da psiquiatria em descrever o
comportamento normal para se postular o anormal. Enquanto que a AC
busca descrever as leis gerais do comportamento, seja ele denominado
arbitrariamente como normal ou anormal.
Com bases nos aspectos destacados por Banaco et al. (2012),
percebe-se que a AC compreende a psicopatologia apenas como um
prejuízo decorrente de um excesso ou de um deficit comportamental,
bem como que o processo pelo qual se constitui um repertório
deficitário ou excessivo pode ser compreendido a partir do modelo de
seleção por consequências.
A partir dessa compreensão se buscou analisar o TDAH, isto
é, buscou-se elencar subsídios que possibilitem que o transtorno seja
compreendido não como uma patologia em si, mas como um déficit
no repertório discriminativo de um sujeito, quando se refere aos
comportamentos relacionados à desatenção, ou como o exagero de
respostas específicas, no caso dos comportamentos de hiperatividade-
impulsividade. Sendo assim, passível de ser modificado a partir de
arranjos contingenciais específicos.
Partindo dessa ótica, pode-se compreender o TDAH como
um conjunto de operantes submetidos a contingências distintas,
agrupados e categorizados como um transtorno específico por uma
comunidade verbal.
Dificilmente se encontrará uma definição específica do TDAH
segundo a AC. Encontrar-se-á, entretanto, a tentativa de analisar

179
Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

respostas específicas comumente associadas ao transtorno, dentre elas,


destaca-se a resposta de “prestar atenção”.
Segundo Skinner (2003), tradicionalmente se trata o controle
exercido por um estímulo discriminativo com base no conceito de
atenção. Tal conceito, entretanto, traz consigo uma compreensão
destoante dos pressupostos da AC acerca do fenômeno comumente
denominado como “prestar atenção”. Skinner (2003) afirma que o
conceito atenção inverte a direção de ação deste fenômeno, uma vez que
este conceito sugere que não é uma estimulação específica que controla
o comportamento do observador, e sim que o observador atenta para a
estimulação, controlando-a.
Para Skinner (2003), o fenômeno denominado atenção não é
uma forma de comportamento, mas sim uma relação de controle de
estímulos. Em outras palavras, refere-se ao controle exercido por um
estímulo discriminativo sobre uma resposta específica. Sendo assim,
deve ser compreendido enquanto uma operação comportamental.
Analisar o fenômeno, a partir desse prisma, permite-nos
compreender porque respondemos frente a algumas características
específicas do ambiente em detrimento de outras. As causas dessa
configuração (responder a alguns estímulos e a outros não) são
encontradas em nossa história de reforçamento passada, ou seja,
acredita-se que um organismo responderá, nesta discussão em
específico, atentará, para estímulos diante dos quais o responder, ou
atentar, fora reforçado.
Sendo assim, um aluno que “não atenta”, ou melhor, não
permanece sob controle da estimulação proveniente da exposição do
educador, não escolheu ignorá-la voluntariamente, simplesmente não
fora submetido a circunstâncias contingenciais que fortalecessem a
relação entre a exposição do educador e respostas do tipo “olhar na
direção do educador”.

180
VESTÍGIOS EM MOSAICO

Essa compreensão nos garante maior autonomia interventiva


diante de respostas de distração ou de desatenção, uma vez que permite
controlar, em certa medida, a “atenção” de um organismo. Para isso,
basta que manipulemos os estímulos que já se tornaram discriminativos,
inserindo-os ou retirando-os do ambiente, ou que estabeleçamos ou
fortaleçamos uma discriminação, no intuito de garantir que um estímulo
produzirá dado efeito quando apresentado (SKINNER, 2003).
Desta forma, estímulos identificados como estímulos que
aumentam a probabilidade de um aluno se distrair e que concorrem
com a estimulação proveniente da explanação do educador podem ser
suprimidos, reduzindo, assim, a probabilidade de distração. Ao passo
que uma estimulação específica apresentada pelo professor e que tem
pouco impacto sobre o comportamento do aluno pode ser fortalecida a
partir do reforçamento diferencial do responder adequadamente deste
aluno diante da mesma estimulação.
O comportamento hiperativo-impulsivo, entretanto, não possui
uma configuração singular de análise. Comumente se observa uma
restrição em analisar funcionalmente as respostas categorizadas como
hiperativas e impulsivas.
Domingos e Risso (2000 apud ROBERT, 2005) afirmam
que o tratamento comportamental fundamentado na modificação de
padrões específicos de comportamento tem sido o mais indicado para o
controle do TDAH. Tal tratamento deve envolver o sujeito que emite os
comportamentos inadequados, os responsáveis e os educadores, quando
se refere ao tratamento com crianças, uma vez que responsáveis e
educadores se configuram, por vezes, como ambiente social mantenedor
dos comportamentos disruptivos.
Os programas de tratamento comportamental comumente
incluem a utilização de tecnologias específicas, dentre elas se destacam:
economia de fichas, reforçamento diferencial de comportamentos

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Maria Ester Ferreira da silva Viegas, Saulo Luders Fernandes, Virginia da Silva Santos, Cicero Ferreira de Albuquerque (Organizadores)

adequados, tutoria individual, manejo de contingências realizado por


educadores e responsáveis com base em instruções específicas dadas
pelos analistas do comportamento e manejo de contingências realizado
pelos próprios analistas.
Tais programas de tratamento evidenciam um caráter heterogêneo
na forma de lidar com o transtorno. Pesquisas e intervenções de base
analítico-comportamental para o TDAH buscam analisar cada caso a
nível molecular, isso significa identificar quais são as respostas-alvo em
questão e a condição mantenedora de cada uma, além de definir as
respostas alternativas a serem instaladas.
Esta compreensão põe em xeque a possibilidade de definir uma
linha de ação única diante do transtorno, bem como a contribuição
dos manuais diagnósticos tradicionais para elaboração de uma proposta
interventiva. Uma vez que o diagnóstico médico de TDAH não
oferece informações suficientes para a elaboração de uma proposta
interventiva adequada, em outras palavras, saber que um indivíduo
fora diagnosticado com TDAH não oferece os dados necessários para
determinar quais procedimentos devem ser utilizados na intervenção.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O olhar analítico-comportamental acerca do TDAH e as


intervenções desenvolvidas a partir desta perspectiva colocam em
questão a hegemonia de intervenções medicamentosas e a adoção da
administração do metilfenidato como medida de primeira escolha para
o tratamento.
Avalia-se que a intervenção medicamentosa não é a mais
adequada para o tratamento do quadro, uma vez que não contribui
para o desenvolvimento de repertórios adequados, ou seja, repertórios
que não produzam prejuízos. Ela tem caráter tópico, sendo assim,

182
VESTÍGIOS EM MOSAICO

as modificações decorrentes dela se limitam ao período de ação do


medicamento no organismo, tornando-o seu “prisioneiro”.
Intervenções balizadas por um olhar analítico-comportamental
visam, entretanto, modificar condições ambientais no intuito de instalar
novos repertórios comportamentais em um indivíduo, sendo assim,
podem garantir mudanças duradouras, mudanças que se perpetuarão
enquanto as modificações realizadas no ambiente forem preservadas.

5. REFERÊNCIAS

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investigações históricas, conceituais e aplicadas. São Paulo: Roca, 2010. p.
01-13.

184
Formato: 155mm x 213mm
Tipologia: texto Adobe Garamond Pro, títulos Museo Sans
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Papel capa: Cartão Supremo 250g/m²
Tiragem: 100 exemplares
Impresso em 2019.

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