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TEMÁTICAS EM EDUCAÇÃO

Organizadores
Ana Gabriela de Souza Seal
André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Autores
Ana Gabriela de Souza Seal, Gerciane Maria da Costa Oliveira, Linconly
Jesus Alencar Pereira, Maria Rosana da Costa Oliveira, Solange Alves de
Oliveira-Mendes, Nayanne Nayara Torres da Silva, Alexsandro da Silva,
André Victor Cavalcanti Seal da Cunha, Emerson Augusto de Medeiros,
Mário Luan Silva de Medeiros

TEMÁTICAS EM EDUCAÇÃO:
conceitos e perspectivas em prol do ensino na
educação básica

2016
©2016. Direitos Morais reservados aos autores: Ana Gabriela de Souza Seal, André Victor Cavalcanti Seal da Cunha,
Gerciane Maria da Costa Oliveira, Lincoly Jesus Alencar Pereira, Maria Rosana da Costa Oliveira, Solange Alves de
Oliveira-Mendes, Nayanne Nayara Torres da Silva, Alexsandro da Silva, Emerson Augusto de Medeiros e Mário Luan
Silva de Medeiros. Direitos Patrimoniais cedidos à Editora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (EdUFERSA).
Não é permitida a reprodução desta obra podendo incorrer em crime contra a propriedade intelectual previsto no Art.
184 do Código Penal Brasileiro. Fica facultada a utilização da obra para fins educacionais, podendo a mesma ser lida,
citada e referenciada. Editora signatária da Lei n. 10.994, de 14 de dezembro de 2004 que disciplina o Depósito Legal.

Reitor
José de Arimatea de Matos
Vice-Reitor
Francisco Odolberto de Araújo
Pró-Reitor de Extensão e Cultura
Felipe de Azevedo Silva Ribeiro
Coordenador Editorial
Mário Gaudêncio
Conselho Editorial
Mário Gaudêncio, Walter Martins Rodrigues, Francisco Franciné Maia Júnior, Rafael Castelo Guedes Martins,
Keina Cristina S. Sousa, Antonio Ronaldo Gomes Garcia, Auristela Crisanto da Cunha, Janilson Pinheiro de
Assis, Luís Cesar de Aquino Lemos Filho, Rodrigo Silva da Costa e Valquíria Melo Souza Correia.
Revisão ortográfica
Paula Regina da Silva Duarte
Ilustração para capa
Beatriz de Souza Seal
Equipe Técnica
Francisca Nataligeuza Maia de Fontes (Secretária), José Arimateia da Silva (Designer e Diagramador), Mário
Gaudêncio (Bibliotecário) e Nichollas Rennah (Analista de Sistemas).
Comitê Científico de Avaliação Ad Hoc
Avaliação externa, por pares e as cegas (External Evaluation, Peer and Blind).

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)


Editora Universitária (EdUFERSA)
GЕЛЕ Temáticas em educação: conceitos e perspectivas em prol do ensino na
educação básica / organizadores, Ana Gabriela de Souza Seal, André
Victor Cavalcanti Seal da Cunha ; autores, Ana Gabriela de Souza Seal...
[et al]. – Mossoró : EdUFERSA, 2016.
209 p. : il.
ISBN: ЛЙКʊКЗʊЗЙЗЙʊВДЖʊЗ

1. Educação 2. Educação básica. 3. Ensino. I. Seal, Ana Gabriela de Souza.


II. Cunha, André Victor Cavalcanti Seal da. Oliveira, Gerciane Maria da
Costa. III. Pereira, Lincoly Jesus Alencar. IV. Oliveira, Maria Rosana da Costa.
V. Oliveira-Mendes, Solange Alves de. VI. Silva, Nayanne Nayara Torres da.
VII. Silva, Alexsandro da. VIII. Medeiros, Emerson Augusto de. IX. Medeiros,
Mário Luan Silva de. X. Título.

UFERSA/EDUFERSA CDD 370

Editora filiada

Av. Francisco Mota, ЗЙД (Campus Leste, Centro de Convivência) Costa e Silva | Mossoró-RN | ЗЛ.ИДЗʊЛВВ |
+ЗЗ ʱКЖʲ ЕЕГЙʊКДИЙ http://edufersa.ufersa.edu.br | edufersa@ufersa.edu.br
SOBRE OS AUTORES

Ana Gabriela de Souza Seal


Pedagoga e Mestre em Educação pela UFPE, professora do
curso de Licenciatura em Educação do Campo (LEDOC) da
Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

Gerciane Maria da Costa Oliveira


Professora do curso de Licenciatura em Educação do Campo
(LEDOC) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido
(UFERSA) e doutora em Sociologia pela Universidade Federal
do Ceará (UFC).

Linconly Jesus Alencar Pereira


Professor do curso de Licenciatura em Educação do Campo
(LEDOC) da Universidade Federal Rural do Semi-Árido
(UFERSA). Doutorando em Educação pela UFPB, Mestre em
Educação Brasileira pela UFC. Graduado em Pedagogia e
Licenciatura em Física.
Maria Rosana da Costa Oliveira
Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Ceará
(UFC). Licenciada em Geografia pela mesma instituição.

Solange Alves de Oliveira-Mendes


Doutora em Educação pela UFPE. Professora da Faculdade de
Educação da Universidade de Brasília.

Nayanne Nayara Torres da Silva


Mestra em Educação Contemporânea e Doutoranda em
Educação pela Universidade Federal de Pernambuco na linha
de pesquisa Educação e Linguagem.

Alexsandro da Silva
Professor Doutor do Núcleo de Formação Docente e do
Programa de Pós Graduação em Educação Contemporânea
da Universidade Federal de Pernambuco – Centro Acadêmico
do Agreste.

André Victor Cavalcanti Seal da Cunha


Professor do curso de Licenciatura em História da Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) e Doutor em História
pela Universidade Federal do Ceará (UFC).
Emerson Augusto de Medeiros
Doutorando em Educação, pelo Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Estadual do Ceará – PPGE/
UECE. Professor da Universidade Federal Rural do Semi-
Árido – UFERSA. Coordenador do Curso de Licenciatura
Interdisciplinar em Educação do Campo – LEDOC/UFERSA.

Mário Luan Silva de Medeiros


Graduado em Biotecnologia. Mestrando em Bioquímica e
Biologia Molecular pelo Programa Multicêntrico de Pós-
graduação em Bioquímica e Biologia Molecular – SBBQ. Membro
do Grupo de Pesquisa Lectinas com Potencial Biotecnológico,
da Universidade Federal Rural do Semi-Árido – UFERSA.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................ ГЕ

CAPÍTULO Г
O DIÁLOGO EM PAULO FREIRE: CONCEITO E IMPORTÂNCIA NO
PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM. ..................................... 19
Ana Gabriela de Souza Seal

CAPÍTULO Д
NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE GOSTO ARTÍSTICO E EDUCAÇÃO
ESCOLAR EM UMA LEITURA DE PIERRE BOURDIEU ................... 37
Gerciane Maria da Costa Oliveira

CAPÍTULO Е
O ENSINO DE CIÊNCIAS E AS APLICABILIDADES PARA A LEI 10.639
ATRAVÉS DAS LENDAS MITOLÓGICAS DOS ORIXÁS. ................... 55
Linconly Jesus Alencar Pereira

CAPÍTULO Ж
OS IMPACTOS DOS AGROTÓXICOS E O ENSINO DE EDUCAÇÃO
AMBIENTAL NO DISTRITO TOMÉ - QUIXERÉ-CE .......................... 77
Maria Rosana da Costa Oliveira

CAPÍTULO З
PRÁTICAS INTERATIVAS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA NUM
CONTEXTO CICLADO .................................................................. 105
Solange Alves de Oliveira-Mendes
CAPÍTULO И
OS SABERES E AS PRÁTICAS DE UMA PROFESSORA
ALFABETIZADORA: O ATENDIMENTO À HETEROGENEIDADE DE
CONHECIMENTOS ...................................................................... 127
Nayanne Nayara Torres da Silva
Alexsandro da Silva

CAPÍTULO Й
MOVIMENTO DO ENSINO DE HISTÓRIA NO PÓS-1980: UMA
ANÁLISE À LUZ DA TEORIA DA TRANSPOSIÇÃO DIDÁTICA ........ 149
André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

CAPÍTULO К
INTERDISCIPLINARIDADE E CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO
NA CONTEMPORANEIDADE ........................................................ 183
Emerson Augusto de Medeiros
Mário Luan Silva de Medeiros
13

APRESENTAÇÃO

Um General na Biblioteca. Foi assim que Ítalo Calvino nomeou


seu conto acerca da aventura de Fedina, militar de alta pa-
tente escalado para uma árdua missão em meio a um enorme
acervo de objetos considerados perigosos: os livros.

Na Panduria, nação ilustre, uma suspeita insinuou-se


um dia nas mentes dos oficiais superiores: a de que
os livros contivessem opiniões contrárias ao prestígio
militar. De fato, a partir de processos e investigações,
percebeu-se que esse hábito, agora tão difundido, de
considerar os generais como gente que também pode
se enganar e organizar desastres, e as guerras como
algo às vezes diferente das radiosas cavalgadas para
destinos gloriosos, era partilhado por grande quan-
tidade de livros modernos e antigos, pandurianos e
estrangeiros (CALVINO, 2010, p.67).

O general Fedina, “oficial severo e escrupuloso”, indicado


para liderar a comissão encarregada de examinar a maior
biblioteca de sua pátria, estabeleceu uma sistemática de
trabalho baseada na rígida hierarquia militar, organizan-
do uma divisão de tarefas em que aos seus subordinados
caberiam as leituras e a ele a defi nição da aprovação ou
reprovação das obras.
14

Os neoleitores, como era de se esperar, entram em um


turbilhão de novas ideias. Certa feita, Fedina questiona um de
seus subordinados: “Mas como é que você deixou passar este
romance? Aqui a tropa se sai melhor do que os oficiais! É um
autor que não respeita a ordem hierárquica” (CALVINO, ,
p. 70). Seu tenente responde a indagação “citando outros auto-
res, e embrenhando-se em raciocínios históricos, filosóficos e
econômicos” (IDEM, p. 70).
No conto Calvino narra com maestria o processo de
ressignificação das representações a partir da imersão do
grupo militar no universo das letras. Nele o autor tratou da
força transformadora dos livros, dando ênfase sutil ao poder
dos romances. Diante da miríade de descobertas há uma
reinvenção das relações, do estar no mundo. Ao final,

[...] "o espírito de Fedina e seus homens se debatia entre


sentimentos opostos: por um lado, estavam descobrindo
a todo instante novas curiosidades a serem satisfeitas,
estavam tomando gosto por aquelas leituras e aqueles
estudos como nunca antes teriam imaginado; por outro,
não viam a hora de voltar para junto das pessoas, de
retomar contatos com a vida, que agora lhes parecia
muito mais complexa, quase renovada aos olhos deles"
[...] (IBIDEM, p. 67).

Os artigos que compõe esta obra compartilham das


prerrogativas de Calvino. Seus autores e autoras, de forma
15

semelhante a Um general na biblioteca, acreditam na força


dos livros, nessa energia transformadora da leitura. Este
é o ponto de contato e fio condutor dos trabalhos. Aqui,
diferentes abordagens teóricas foram mobilizadas nas
análises de variadas temáticas da Educação. Cientes, como
nos dizia Tomaz de Aquino, que “a união não é a concordância
de mentes, mas a de vontades”, uma convergência nos une:
uma perspectiva emancipatória, um imenso desejo de (re)
invenção das relações humanas.
Assim, a Professora Ana Gabriela de Souza Seal, no primei-
ro capítulo desta obra: “Diálogo em Paulo Freire: conceito e
importância no processo de ensino-aprendizagem” analisa a
retomada do conceito de diálogo, explicitado por Paulo Frei-
re, e seus reflexos no processo de ensino-aprendizagem. Por
meio de um mapeamento das obras: Pedagogia do Oprimido,
Pedagogia da Autonomia e Educação como Prática da Liber-
dade, a autora revela a necessidade de se (re?)estabelecer o
diálogo em prol da melhoria da prática pedagógica, buscando
o respeito às diferenças e a conscientização de que somos
seres em constante estado de aprendizagem.
O segundo capítulo, “Notas sobre a relação entre gosto
artístico e educação escolar em uma leitura de Pierre Bourdieu”,
de autoria da Professora Gerciane Maria da Costa Oliveira,
nos impulsiona a uma fundamental problematização acerca
do ensino das artes na escola. Respaldada em Bourdieu, a
autora ressignifica o processo de inserção e acesso dos alunos
à cultura artística acumulada historicamente.
16

O terceiro capítulo deste livro, “O Ensino de Ciências e


as aplicabilidades para a lei 10.639 através das lendas mi-
tológicas dos Orixás”, de autoria do professor Lincoly Jesus
Alencar Pereira, traz a perspectiva de subsidiar professores e
professoras do ensino fundamental acerca das ações formati-
vas sobre as relações étnico-raciais na disciplina de Ciências
Naturais e suas Tecnologias com o intuito de trabalhar inter-
disciplinarmente e transversalmente a Lei 10.639 que inclui
os conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira
nos currículos escolares explorando as lendas mitológicas dos
Orixás do Candomblé.
Continuando, o capítulo 4 desta obra, intitulado “Os impactos
dos agrotóxicos e o ensino de educação ambiental no distrito
Tomé- Quixeré- CE”, de autoria da professora Maria Rosana
da Costa Oliveira, resgatou a função escolar da disciplina de
Geografia em prol da socialização de saberes acerca dos impactos
ambientais locais e globais, de forma a tomar como objeto de
ensino desta disciplina conteúdos que versem em prol da melhoria
da qualidade de vida.
Os Capítulos 5 e 6 voltam-se para a discussão das revisões
acerca da alfabetização e do ensino da linguagem. O capítulo
5, “Práticas Interativas e Ensino da Língua Portuguesa num
Contexto Ciclado” de autoria da professora Solange Alves
de Oliveira Mendes, buscou investigara presença (ou não)
de cooperação entre as professoras e os alunos, assim como
entre eles, nas diversas proposições de atividades vinculadas
aos eixos de ensino de língua portuguesa.
17

O capítulo 6, de autoria da Professora Nayanne Nayara


Torres da Silva e do Professor Alexsandro da Silva, intitulado
“Os saberes e as práticas de uma professora alfabetizadora: o
atendimento à heterogeneidade de conhecimentos”, aborda os
saberes e práticas mobilizados por uma professora alfabeti-
zadora no tratamento da heterogeneidade de conhecimentos
dos alunos sobre a leitura e escrita.
Dando continuidade, o Professor André Victor Cavalcanti
Seal da Cunha, resgata o “Movimento do Ensino de História
no Pós-1980: uma análise à Luz da Teoria da Transposição
Didática” na composição do capítulo 7. Neste o autor trata
do momento vivido no campo do ensino de História a partir
da década de 1980, nas produções que tomaram o ensino de
História como objeto de estudo para pensar em propostas de
renovação do ensino de História a partir de três eixos: fluxo
de saberes históricos, organização de conteúdos históricos
escolares e proposições de ordem metodológica.
Para finalizar esta obra de perspectiva interdisciplinar, nada
mais fundamental que trazer, por meio dos estudos realizados
pelos professores Emerson Augusto de Medeiros e Mário Luan
Silva de Medeiros, a discussão sobre “Interdisciplinaridade
e Construção do Conhecimento na Contemporaneidade”
no capítulo 8. Os autores apresentam um estudo sobre a
interdisciplinaridade na educação, a origem e o conceito
da interdisciplinaridade, posteriormente aprofundando a
abordagem no que tange aos limites e as possibilidades do
fazer interdisciplinar na formação do saber.
Pretende-se que os leitores que acessem essa obra, se voltem
para as novas perspectivas apontadas frente ao ensino dos
conteúdos na Educação Básica para, por meio delas, compre-
ender e promover um processo educacional emancipatório,
seja no âmbito do fazer docente, seja nas relações educacionais
estabelecidas em diferentes momentos de nosso cotidiano.
19

CAPÍTULO Г

O DIÁLOGO EM PAULO FREIRE: CONCEITO E IMPOR-


TÂNCIA NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM.

Ana Gabriela de Souza Seal

Esta pesquisa, sobre a ideia de diálogo em Paulo Freire, teve


origem em questionamentos levantados sobre o conceito e
desenvolvimento do diálogo a partir de estudos anteriores
em dois de seus livros (Pedagogia da Autonomia e Educação
como Prática da Liberdade) e em três congressos, que tivemos
a oportunidade de participar, nos quais as ideias desenvolvi-
das pelo referido autor foram bastante divulgadas. Além de
estudos oriundos da Didática, História da Educação Brasileira
e Alfabetização nas quais as ideias freireanas ainda são pes-
quisadas e aprofundadas.
Freire trata da condição essencial do diálogo no processo
de ensino-aprendizagem, levando em consideração que para ser
estabelecido é preciso saber escutar, saber respeitar as dife-
renças, possuir humildade, entre tantas outras características
que tornem a ação de educar prazerosa tanto para o docente,
quanto para o discente.
Os questionamentos levantados nesta pesquisa foram:
Qual é o significado da palavra “Diálogo” para Paulo Freire?
Como Freire desenvolve sua ideia de inserção desse diálogo no
20 Ana Gabriela de Souza Seal

processo de ensino-aprendizagem? Quais seriam as principais


repercussões do diálogo dentro deste processo?
Nosso estudo procurou explicitar aos docentes, o con-
ceito de diálogo e a importância deste, dada por Freire na
dinâmica das relações de ensino-aprendizagem a fim de que
todos possam entender a ideia desenvolvida e os argumentos
defendidos pelo autor.
Por fim, que seja compreendida a postura de Freire quando
este defendia ser primordial pôr em prática o diálogo tendo em
vista a melhoria do desempenho do educando no seu processo
de construção do saber e no despertar de sua criticidade.
Diante do exposto, tivemos como objetivos:

• Pesquisar a concepção de diálogo desenvolvida por Paulo


Freire em três de seus livros: Pedagogia do Oprimido, Peda-
gogia da Autonomia e Educação como Prática da Liberdade.

• Pesquisar as ideias do autor sobre as possíveis maneiras de


introduzir o diálogo no processo de ensino-aprendizagem.

• Pesquisar as repercussões da inclusão do diálogo no


processo de ensino-aprendizagem.

Desta forma, inicialmente procuramos abordar quem foi


Paulo Freire, sua vida e suas obras. Em seguida verificaremos
quais as posturas de Freire, nas obras estudadas, ao falar so-
bre o diálogo. Por fim, refletimos acima da importância deste
conceito para o processo de ensino-aprendizagem.
Capítulo 1 21

Freire: o homem e sua obra

Torna-se difícil falar sobre uma personalidade de carreira


extensa, (re)conhecida e respeitada mundialmente. Da mesma
forma que é impossível falar de suas obras tendo-as estudado
sem estar emocionalmente envolvido com sua ideologia, tal-
vez tenhamos perdido nossa profissionalidade, ou talvez não.
Provavelmente nossa profissionalidade estava aguçada a ponto
de nos envolvermos com os problemas sócio-educacionais e
procurarmos nos aprofundar nas obras de um autor por uns
considerado “utópico”, por outros corajoso.
Paulo Freire nasceu no Recife, capital de Pernambuco, em
19 de Setembro de 1921. Não teve origem em “família rica”,
porém conseguiu seguir seus estudos tornando-se professor
de História e Filosofia da Educação da Universidade do Recife,
depois de haver trabalhado no SESI e no Serviço de Extensão
Cultural do Recife.
Continuou “fazendo História” e também Filosofia, desen-
volveu ideias e elaborou um novo método de alfabetização
que foi muito utilizado no Brasil, além de eficiente o método
era baseado em discussões e questionamentos que levavam
os educandos à construção de sua criticidade e à tomada de
uma postura política e libertadora.
Com isso, após o Golpe Militar, Paulo Freire é preso sendo
acusado de subversão contra a ordem instituída e acaba por
se exilar no Chile, local onde encontra um espaço favorável
para dar continuidade aos seus estudos, trabalhos e reflexões,
22 Ana Gabriela de Souza Seal

atuando em programas de educação de adultos durante cinco


anos no Instituto Chileno para a Reforma Agrária. É lá que
Paulo Freire escreve sua principal obra, base desta pesquisa:
Pedagogia do Oprimido.
O reconhecimento de muitas universidades, e outras
instituições, à contribuição freireana tornou-se pública a
partir dos títulos e prêmios destas, dedicados à figura do
grande educador. Foi a ele outorgado o título de Doutor
Honoris Causa por vinte e sete universidades, além também
de receber vários prêmios como “Prêmio Rei Balduíno para
o Desenvolvimento” em 1980.
Em dez de Abril de 1997, Freire lança seu último livro:
Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática edu-
cativa e no dia dois de maio do mesmo ano vem a falecer, em
São Paulo, vítima de um infarto.
As obras freireanas ainda percorrem o mundo e ganham
o reconhecimento na área educacional. A partir delas muitos
outros livros foram produzidos dando continuidade ao pensa-
mento freireano e à sua ideologia, como em O que é Educação
(Brandão, 1999). Grandes autores divulgam as obras de Freire
e as comentam, como Moacir Gadotti, João Francisco de Souza,
entre outros, buscando a evolução do pensamento freireano
e levando novas contribuições para a educação.
Neste mesmo sentido, buscamos, na essência do pensamen-
to freireano, suas concepções de diálogo no que diz respeito
ao processo de ensino-aprendizagem.
Capítulo 1 23

Perspectivas metodológicas

Esta pesquisa foi de cunho qualitativo/ bibliográfico e se


baseou nas ideias de Paulo Freire sobre o diálogo. A obra
tida por base foi Pedagogia do Oprimido, na qual o autor
desenvolve, mais detidamente nos capítulos III e IV, sua
ideia de diálogo. Outras obras foram consultadas no senti-
do de verificar a aplicabilidade do diálogo no processo de
ensino-aprendizagem, como em Pedagogia da Autonomia,
e as ideias primordiais de Freire sobre a dialogicidade, em
Educação como Prática da Liberdade.
Os livros foram mapeados nos capítulos ou pontos que
fizeram referência ao diálogo. A partir do mapeamento fo-
ram feitas análises e sistematizações dos dados colhidos,
construindo então as soluções para os questionamentos que
impulsionaram esta pesquisa.
Desta forma constatamos que, quanto à organização das ideias
de Freire em suas obras, os temas e assuntos tratados não se
restringem a apenas um capítulo, mas percorrem todo o livro. O
autor, a partir deste recurso, muitas vezes inicia o assunto antes
do capítulo que faz referência a ele, introduzindo-o aos poucos
para, ao chegar no capítulo ou item onde é explicitado pelo título,
culminá-lo e engrandecê-lo, colocando-o de uma forma simples
para outra mais complexa, fazendo uma evolução do conteúdo
desde seu conceito até seu ponto chave.
Por tais motivos, decidimos, diferentemente de nossa es-
colha inicial, de restringirmo-nos apenas aos capítulos III e
24 Ana Gabriela de Souza Seal

IV de Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2005), estudar todo o


livro base desta pesquisa para só então mapeá-lo e analisá-lo
juntamente com os dois outros livros anteriormente lidos -
Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 2000) e Educação como
Prática da Liberdade (FREIRE, 1999)- tomando os capítulos
como unidades de análise.
Identificamos, assim, discussões acerca do objeto de
pesquisa escolhido como também dos problemas sociais
atuais, que consideramos serem conteúdos necessários à
prática de todo educador.

O Diálogo: seu conceito, suas características e a sua


função no processo de ensino-aprendizagem.

Antes de mapearmos o conceito de diálogo nas obras de Freire,


encontramos algumas condições necessárias para que o diálogo
se estabeleça. Estas condições aparecem como o respeito às
diferenças e a tomada de consciência do seu inacabamento e
abre-se ao mundo e aos outros.
Estas condições permitirão ao indivíduo a condição, talvez
nova, de saber ouvir, possibilitando a ele não a tolerância das
diferenças, mas o reconhecimento que elas são necessárias
a uma convivência rica de experiências a ambos os lados e a
percepção de que não existe “a verdade”, ou “as verdades”,
mas realidades que se completam.
Capítulo 1 25

E pensando na educação de jovens e adultos, Freire preo-


cupa-se em listar alguns aspectos que devem fazer parte de
uma proposta que possibilite a estes se transferirem da con-
dição de transitividade ingênua a uma transitividade crítica:
método ativo, dialogal, crítico e criticizador que modifique o
conteúdo programático da educação e utilize-se de técnicas
como redução e codificação. E em resposta a um de nossos
questionamentos, no seu livro Educação como Prática da
Liberdade, Freire (1999, p.115) continua tal assunto dizendo:

Somente um método ativo, dialogal, participante,


poderia fazê-la. E o que é diálogo? É uma relação
horizontal de A com B. Nasce de uma matriz crítica
e gera criticidade (Jarspers). Nutre-se do amor, da
humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por isso
só o diálogo comunica. E quando os dois pólos do
diálogo se ligam assim, com amor, com esperança,
com fé, um no outro, se fazem críticos na busca de
algo. Instala-se, então, uma relação de simpatia entre
ambos. Só aí há comunicação.
26 Ana Gabriela de Souza Seal

E, numa nota de rodapé:

Diálogo
COM
A B = Comunicação
Intercomunicação
Relação de “simpatia” entre os pólos, em busca
de algo. Matriz: amor, humildade, esperança,
fé, confiança, criticidade.

Estaria, então respondida à pergunta referente ao conceito


do diálogo feito por nós, anteriormente, se não fosse pelas
inúmeras características citadas pelo autor em Pedagogia do
Oprimido, Freire (2005, p.91):

O diálogo é este encontro dos homens mediatizados pelo


mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto,
na relação eu-tu [...] não é possível o diálogo entre os que
querem a pronúncia do mundo e os que não a querem.
[...] O diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens
ganham significação enquanto homens [...]. O diálogo é
uma exigência existencial [...] ele é o encontro em que se
solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados
ao mundo a ser transformado e humanizado.

Ainda em Pedagogia do Oprimido, Freire (2005), podemos


encontrar a palavra, que pode ser entendida como o diálogo
mesmo, possuindo, esta, duas dimensões: ação e reflexão.
Capítulo 1 27

Não havendo palavra verdadeira que não seja práxis. “Daí


que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo”
(FREIRE, 2005, p. 89). E para quê, neste sentido, serviria o
diálogo? O que se ganha com ele?
Pode ser questionamentos que muitos podem estar se fa-
zendo, como me fiz antes de iniciar este estudo, mas Freire
(2005, p. 91 e 92) não responde, faz refletir: “A conquista
implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos
[...] Conquista do mundo para a libertação dos homens”. Mas,
para que o diálogo exista é preciso que haja um “profundo
amor ao mundo e aos homens”.

Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também di-


álogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos
e que não possa verificar-se na relação de dominação
[...] o ato de amor está em comprometer-se com sua
causa. A causa de sua libertação. Mas, este com-
promisso, porque é amoroso, é dialógico (FREIRE,
2005, p. 92).

Contudo, o amor não resume as outras exigências para


que haja o diálogo: “Não há diálogo se não há humildade [...]
O diálogo, como o encontro dos homens na tarefa comum de
saber agir, se rompe se seus pólos (ou um deles) perdem a
humildade” (IDEM, 2005, p. 92). É importante também observar
que, segundo Freire, “a auto-suficiência é incompatível com
o diálogo” (IBIDEM, p. 93). O indivíduo que se acha auto-
28 Ana Gabriela de Souza Seal

suficiente impossibilita o diálogo visto que não percebe sua


dimensão de coletividade crê que pode viver sem con-viver,
e bloqueia o estabelecimento do eu-tu.

Não há também diálogo, se não há uma intensa fé nos


homens. [...] A fé nos homens é um dado a priori do
diálogo. [...] O homem dialógico tem fé nos homens antes
de encontrar-se frente à frente com eles. Esta, contudo,
não é uma ingênua fé. O homem dialógico, que é crítico,
sabe que se o poder de fazer, de criar, de transformar, é
um poder dos homens, sabe também que podem eles, em
situação concreta, alienados, ter este poder prejudicado.
[...] Se a fé nos homens é um dado a priori do diálogo,
a confiança se instaura com ele. Não existe, tampouco,
diálogo sem esperança. [...] Se o diálogo é o encontro dos
homens para ser mais, não pode fazer-se na desesperança.
[...] Não há diálogo verdadeiro se não nos seus sujeitos
um pensar verdadeiro. Pensar crítico. [...] Este é um
pensar que percebe a realidade como processo [...] para
ele o importante é “a transformação permanente da
realidade, para a permanente humanização dos homens
[...] Somente o diálogo, que implica um pensar crítico,
é capaz, também, de gerá-lo (FREIRE, 2005, p. 93 - 95).

Na mesma obra, Freire diz que deve ser estabelecido um


diálogo crítico e libertador com os oprimidos, variando seu
conteúdo em função do contexto histórico e da percepção da
Capítulo 1 29

realidade dos oprimidos. A fim de que estes conquistem sua


liberdade. E percebendo a responsabilidade desta “educação
dialógica”, dentro da estrutura social estabelecida, reconhece
a dificuldade do educador dialógico quando diz:

Já temos afirmado que a educação reflete a estrutu-


ra do poder, daí a dificuldade que tem um educador
dialógico de atuar coerentemente numa estrutura que
nega o diálogo. Algo fundamental, porém, pode ser
feito: dialogar sobre a negação do próprio diálogo”
(FREIRE, 2005, p. 79).

Esta seria uma melhor maneira de introduzir o discente


no processo de ensino-aprendizagem sem que se rompa com
os propósitos dialógicos. Mas há uma outra condição para
que se exerça o diálogo no processo de ensino-aprendizagem,
pois é impossível exercer a dialogicidade sem a superação da
contradição educador-educando. Para realizar tal superação,
a educação problematizadora deve afirmar a dialogicidade
fazendo-se dialógica e Freire continua dizendo que não se-
ria possível superar a contradição educador-educando fora
do diálogo, pois é a partir dele que se opera essa situação e
cria-se um termo novo não mais educador, educando, mas
educador-educando e educando-educador. “Desta maneira,
o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquan-
to educa é educado, em diálogo com o educando que, ao ser
educado, também educa” (FREIRE, 2005, p. 79).
30 Ana Gabriela de Souza Seal

Mas, quem seria esse educador? Freire diz que se trata


de um sujeito cognoscente, quer quando se prepara, quer
quando se encontra dialogicamente com o educando que
é quando o objeto cognoscível passa a ser a “incidência da
reflexão sua e dos educandos”.

Deste modo, o educador problematizador re-faz, cons-


tantemente, seu ato cognoscente, na cognoscitividade
dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes
dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos,
em diálogo com o educador, investigador crítico tam-
bém (FREIRE, 2005, p. 80).

E nesta relação, a dialogicidade tem início quando o edu-


cador-educando se pergunta sobre o que irá dialogar com os
educandos-educadores e não apenas no encontro daquele com
estes. “Essa preocupação em torno do conteúdo do diálogo é a
inquietação em torno do conteúdo programático da educação”
(FREIRE, 2005, p. 96). Tal conteúdo se busca na realidade
mediatizadora, “O momento desse buscar é o que inaugura o
diálogo da educação como prática da liberdade” (IDEM, 2005,
p. 80), que seria no método Paulo-freireano a investigação dos
temas geradores. “Esta investigação implica, necessariamente,
uma metodologia que não pode contradizer a dialogicidade
da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica”
(IBIDEM, , p. 101).
Capítulo 1 31

[...] na prática problematizadora, dialógica por


excelência”, o conteúdo programático “se organiza
e se constitui na visão de mundo dos educandos, em
que se encontram seus temas geradores [...] A tarefa
do educador dialógico é, trabalhando em equipe
interdisciplinar este universo temático recolhido na
investigação, devolvê-lo, como problema, não como
dissertação, aos homens de quem recebeu [...] e [...]
porque parte e nasce dele (do povo), em diálogo com
os educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí
a investigação temática como ponto de partida do
processo educativo, como ponto de partida de sua
dialogicidade [...] (FREIRE, 2005, p. 119).
A introdução destes temas, de necessidade comprovada,
corresponde, inclusive, à dialogicidade da educação, de
que tanto temos falado. Se a programação educativa é
dialógica, isto significa o direito que também tem os
educadores-educandos de participar dela, incluindo
temas não sugeridos. A estes, por sua função, chamamos
“temas dobradiça” (FREIRE, 2005, p. 134).

Também puderam ser encontradas, nos levantamentos


feitos para sistematização desta pesquisa, as relações dia-
lógicas nas relações opressores X oprimidos e uma visão
macro da dialogicidade como uma ação dialógica que serve
à liberdade. Porém, dada a complexidade das teorias que
foram “descobertas” com a pesquisa e a grande gama de
32 Ana Gabriela de Souza Seal

explanações a serem desenvolvidas a partir deste tema,


guardaremos os demais dados do posterior estudo e siste-
matização em outras pesquisas.

Considerações

É impossível informar, quantitativamente, a importância des-


ta pesquisa para a educação. Porém, não é difícil entender essa
importância tendo em vista a crise educacional que ainda hoje
é enfrentada nas escolas, mas particularmente nas salas de
aula, nas quais professores e alunos lutam, um para “transmi-
tir” outro para “absorver” os conteúdos que devem ser “engo-
lidos” para que ambos tenham um reconhecimento social.
Com Paulo Freire foi possível observar que “depósito” é,
além de ineficiente, alienante, tendo em vista que numa re-
lação onde não existe diálogo é muito difícil que se aprenda.
Os alunos não constroem seu conhecimento. E mais difícil
ainda fica a situação de professores, que não pesquisadores,
apenas reproduzem aquilo que engoliram.
Com o estabelecimento do diálogo, tanto o docente
quanto o discente passam a fazer parte do processo de
construção do saber, porque o que se tem, agora, é um
relacionamento de troca. Docente e discente acabam sendo
condutores do processo de construção do conhecimento
e, muito mais, despertam para sua condição de estar em
constante formação e começam a entender que além de
fazerem parte do processo ensino-aprendizagem, fazem
Capítulo 1 33

a História, não são meros sujeitos passivos dela e nem da


sociedade em que se encontram.
Nossa educação brasileira ainda encontra-se arraigada aos
modelos de “educação bancária” e não conseguem enxergar
o caráter criticizador de uma educação problematizadora,
essencialmente dialógica.
Os professores por sua vez, entendem erroneamente, em
alguns casos, que esta nova proposta de educação seja recheada
de lirismos ou esperanças impossíveis de serem postas em
prática. Consideram que se começarem a “dialogar” com seus
alunos,estes começarão a confundir liberdade com libertinagem
e não podendo o professor exercer, de acordo com a nova
proposta, sua “autoridade”, não será estabelecida a ordem
necessária para que o aluno tenha condições de aprender.
Ora, é preciso sim ter esperança na educação, mas é pre-
ciso primeiro que se deposite a confiança necessária em seu
poder de mudança, do mesmo modo que as elites opressoras
reconhecem e utilizam-na.
Outro ponto a ser discutido é que estabelecer o diálogo não
significa perder a autoridade, pelo contrário, na relação de
ensino-aprendizagem o educador passa a exercer sua autori-
dade sem ser autoritário nem licencioso. Ele entra em diálogo
com seus alunos em busca de criar as relações necessárias
para que a prática pedagógica se torne prazerosa, para isso,
começará então a ouvir seus alunos e entendê-los, aprendendo
com eles, da mesma forma que será ouvido por eles.
34

Numa outra perspectiva, o diálogo vem retomar não uma


ordem, mas uma organização necessária, porque feita em con-
junto, serve para a melhoria da prática pedagógica e o educador
dialógico tem plena consciência disso, pois como o ensino não
mais é de um para o outro e sim com o outro - porque o diálogo
se estabelece não sobre, mas com o outro - da mesma forma
acontece com as demais situações. De modo que as decisões e
iniciativas serão agora em conjunto.
Por isso a importância da ação dialógica na educação,
pois estabelece o respeito às diferenças e à conscientização
de que somos seres em constante estado de aprendizagem.
Daí também a relevância de uma tomada de consciência por
parte dos profissionais da educação, para que estes possam
começar a exercer um fator tão importante para a mudança
de postura de uma sociedade alienada e alienante.
Por fim, a ação dialógica na educação se faz relevante para
o despertar de mentes em busca de sua criticidade de forma
humanizada, através do amor, da humildade, da fé, da união
com os demais e da esperança. E que não seja uma ideologia,
mas uma prática para a liberdade.
35

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 29. ed. São Paulo:


Paz e Terra, 2000.

______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à


prática educativa. 16. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

______. Educação como prática da liberdade. 23. ed. São


Paulo: Paz e Terra, 1999.

MINAYO, Maria C. de S. (Org.). Pesquisa social. 20. ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
37

CAPÍTULO Д

NOTAS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE GOSTO ARTÍSTICO


E EDUCAÇÃO ESCOLAR EM UMA LEITURA DE PIERRE
BOURDIEU

Gerciane Maria da Costa Oliveira

Os estudos de Pierre Bourdieu (1930-2002) sobre o gosto con-


traria a tese kantiana que compreende esta noção a partir da
ideia de naturalidade e universalidade. A sua análise demons-
tra que as escolhas e preferências estéticas, não são meras
expressões da subjetividade individual, mas produtos do
processo educacional, que compreendem a ação relacional e
complementar entre as instâncias: família e escola.
Neste sentido, a correlação entre nível de instrução e
práticas culturais constitui-se como chave explicativa para a
compreensão das motivações que orientam as condutas e
juízos de gosto, que longe de serem ações desinteressadas,
“são função da pertença social, sendo essencialmente gover-
nadas pelo ‘esnobismo’, pela busca de condutas socialmente
distintivas” (HEINICH, 2008, p.77).
38 Gerciane Maria da Costa Oliveira

O autor de A distinção, obra que condensa aspectos de sua


sociologia da educação e da sociologia da cultura, desvela a
misteriosa disposição “gratuita” de determinada fração de
classe em apreciar objetos artísticos pertencentes à dita alta
cultura, ao expor como esta orientação aparentemente natural
é fruto de um longo processo educacional, iniciado em casa e
complementado pela escola.

Gosto se discute: a emergência do campo de estudo


sobre o juízo estético e as práticas culturais

O interesse da sociologia pela observação científica das


preferências estéticas e práticas culturais inscreve-se no
contexto de configuração do campo específico da sociologia
da arte. Disciplina jovem, com um pouco mais de um século de
existência, a sociologia da arte, ao operar a descentralização
das análises dos aspectos meramente internos da obra (estilo,
forma, técnica, linguagem e etc.) para os externos (meio social,
regras, mercado de arte, patronato e outros), recolocam o
fenômeno da cultura sob novo plano de investigação.
A partir da passagem de uma estética sociológica,
profundamente tributária aos domínios da história da
arte, música e literatura, para a sociologia de pesquisa,
os estudos do universo artístico e cultural abandonam
as fontes do passado e focam-se na realidade presente,
inovando em procedimentos metodológicos que se voltam
predominantemente para pesquisas de natureza estatística
Capítulo 2 39

e etnológica, permitindo, assim, a formulação de novas


problemáticas (HEINICH, 2008).
Esta geração, de tradição francesa e americana, apesar
de expressarem relações manifestamente distintas de suas
sociedades com os bens artísticos, sobretudo, no que diz res-
peito ao caráter restritivo ou ampliado da difusão dos objetos
de arte e da formação do público de cultura1, encontram o
lugar comum no interesse pela compreensão da dinâmica e
do modo de funcionamento do universo artístico como socie-
dade, por meio da análise de seus atores, suas instituições e
sua organização interna.
Deste modo, arte e sociedade não se apresentam mais
como dois conceitos que precisam ser interligados ou vistos
dentro de uma lógica reflexiva, mas como realidades consti-
tuídas na mesma cadência, posto que a “arte é uma forma,
entre outras, de atividade social, possuindo suas próprias
características” (IDEM, 2008, p.63).
Esta linha de pesquisa que demarca uma maior autonomia
da disciplina sociológica da arte caracteriza-se fundamental-
mente pela mensuração estatística das práticas culturais. Na
sua emergência, o estudo sobre os públicos frequentadores
de museus de Belas-Artes constituiu o seu principal foco,

1 Em contraposição à esfera social restrita que sustentou a tradição


aristocrática europeia, a nação americana, desde sua origem, pressupunha a
noção de ampliação da esfera pública. A própria ideia de massa – concebida como
aumento de população, ampliação do público, totalidade da nação – já estava
presente nos textos dos federalistas (BUENO, 1999, p.37).
40 Gerciane Maria da Costa Oliveira

inaugurando, assim, uma profícua discussão sobre a relação


entre a detenção de competências estéticas e disposições para
apreciar obras estéticas.
Uma sondagem desta natureza foi realizada por
Paul Lazarsfeld, nos Estados Unidos da década de 1960. O
intuito da aplicação das enquetes era compreender a orientação
das condutas e estilos de vida na sua correlação com as
diferentes variáveis sócio-demográficas de idade, sexo, origem,
meio social, nível de formação, classe econômica e etc.
Pierre Bourdieu juntamente com Alain Darbel e Dominique
Schnapper promovem um estudo similar nos museus da Europa.
Resultado deste levantamento, o livro O amor pela arte: os
museus de arte na Europa e seu “público”(2003) desconstrói
uma série de concepções cristalizadas e naturalizadas acerca
dos juízos estéticos ao expor o peso da origem social e do nível
escolar nas escolhas e disposições artísticas que definem o
gosto e o estilo de vida de determinadas frações de classe.
Sob esta perspectiva, a análise vai de encontro ao caráter
inato das “disposições cultivadas”, dado o papel fundamental
das principais instâncias de socialização cultural, família e
escola, na formação e incorporação destas preferências.
Nestes termos, o acesso ao capital cultural mediado
pelas instituições escolares também se mostra determinante
na definição destas disposições estéticas. Como locus
de reprodução no qual se constitui as “competências” de
apreciação e decodificação dos objetos estéticos legitimados,
“que define pela capacidade de identificar os traços estilísticos
Capítulo 2 41

de uma obra, situá-la em seu universo e perceber a diferença


entre as obras” (FLEURY, 2009, p.78) esses espaços permitem
àqueles que, por sua pertença social, não herdaram da família
o capital cultural objetivo e incorporado, adquiri-lo por meio
dos títulos e credenciais escolares.

O papel da socialização primária na formação cultural


dos indivíduos

A discussão sobre a socialização cultural presente no corpo


da teoria geral de Pierre Bourdieu denotam para a articulação
entre dois, dos seus principais, campos analíticos de interesse,
a sociologia da educação e a sociologia da cultura.
Para Bourdieu, os juízos de gosto se fundamentam na
valorização de códigos incorporados no contexto da sociali-
zação primária, isto é, no processo de transmissão de nor-
mas e valores de um determinado grupo social que ocorre
nas primeiras experiências da infância, no seio do ambiente
familiar e escolar.
Na esteira do pensamento sociológico clássico durkheimiano,
a família e a escola desempenhariam a função de adequar as
novas gerações às exigências impostas pela sociedade, nos que
diz respeito aos seus aspectos morais, religiosos, valorativos e
etc. Neste sentido, resguarda-se, em certa medida, no escopo
da reflexão bourdesiana a formulação conceitual e abrangente
do pensador clássico sobre a educação.
42 Gerciane Maria da Costa Oliveira

[...] a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as


gerações que não se encontram ainda preparadas para
a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver,
na criança, certo número de estados físicos, intelec-
tuais e morais, reclamados pela sociedade política,
no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança,
particularmente, se destine (DURKHEIM, 1975, p.41).

A escola apresenta-se, portanto, como um aparelho de


socialização e locus de aprendizagem do “sistema de esquema
de percepção e apreciação” (BOURDIEU, 2007, p. 10) que se
contrapõem ou reafirmam os juízos de gosto transmitidos
domiciliarmente, intrinsecamente relacionados ao estrato
social particular que o grupo familiar se insere.
Ao apresentar a classificação de autores, gêneros,
movimentos, estilos e etc., a instituição escolar oferece o
repertório necessário para apreender as obras a partir de suas
propriedades restritamente estilísticas, que identifica para
além dos elementos imediatamente perceptíveis e sensíveis ao
olhar, traços distintivos pertencentes à gramática específica
do universo puramente estético, ou seja, relativo à ordem do
formal e estilo, da técnica e linguagem.
Esta exigência de possuir competência cultural para
decifrar e decodificar os aspectos puramente estilísticos
e formais de uma obra legítima, nem sempre claramente
Capítulo 2 43

explícitos e enunciados, isto é, de possuir um olhar “puro”2,


encontra-se imposta pela própria obra, na requisição intrínseca
do modo particular de sua apreciação.
Esta necessidade se cria fundamentalmente em virtude
do processo de constituição de autonomia do campo artístico3
que tem por um de seus efeitos o fechamento das obras em si
mesmas. As produções estéticas tornam-se esotéricas devido
ao imperativo de afi rmação da sua natureza particular,
que no caso das obras plásticas significa a reivindicação
primazia da forma sobre o conteúdo, dos elementos plásticos
sobre a mensagem.
E nesta dinâmica de falar de si mesma, a arte acaba por se
referenciar na sua própria história, que é também a história
de produção do campo. Evocando “a história do gênero que
se encontra objetivada nas obras passadas e registradas, co-
dificadas, canonizadas por todo um corpo de profissionais da

2 “O olhar ‘puro’ é uma invenção histórica correlata da aparição de um campo de


produção artística autônomo, ou seja, capaz de impor suas próprias normas, tanto
na produção, quanto no consumo de seus produtos” (BOURDIEU, 2007, p. 11).
3 “Este processo de autonomização ocorre junto com a formação da categoria
social dos artistas, inclinados a reproduzir as regras constituídas pela tradição
dos seus predecessores. Com o desenvolvimento do campo, vão se constituindo
modos de produção distintos que possuem consumidores distintos. Assim, surge
o campo de produção erudita, direcionado à produção de bens culturais para
o público dos produtores de bens culturais, e o campo da indústria cultural,
direcionado à produção para o grande público. O mercado editorial também
reproduz esta divisão, havendo editoras voltadas para a indústria cultural
(bestsellers) e outras voltadas para o público erudito” (VIANA, 2007, p.51)
44 Gerciane Maria da Costa Oliveira

conservação e da celebração [...]” (BOURDIEU, 1996, p.273),


cada nova obra realizada situa-se, inclusive as de vanguarda,
com relação ao que foi feito anteriormente, sobrepondo-se
nesta justaposição de camadas semântica, inscrevendo-se
nesta linha de continuidade e de cumulatividade do campo.
Sob este prisma, a “legibilidade”4 da obra encontra-se
definida em função da “[...] distância entre o código que a
obra exige e a competência individual definida pelo grau em
que o código social (também ele mais ou menos adequado) foi
incorporado” (BOURDIEU, 1992, p.286). As obras designadas
legítimas exigem competências complexas e refinadas,
passíveis de serem interiorizadas em processos formativos
de curta ou longa duração, institucionalizados ou não.
Sendo assim, a carência das chaves interpretativas que
viabilizam a identificação de estilos, traços pictóricos singulares,
padrões de composição característicos de uma escola ou movimento
e etc., relegam o expectador a acionar repertórios genéricos
provenientes de fontes diversas que podem fornecer bases para uma
apreciação alternativa ao que se impõe enquanto modo legítimo de
fruição de determinado objeto artístico ou indispor completamente
a sua assimilação significativa, levando o expectador a adotar a
postura de desinteresse e indiferença frente à obra.

4 Algumas formas de arte favorecem a leitura mais fácil e claramente do que


outras, embora todo especialista em uma forma de arte pareça acreditar que seu
assunto é mais difícil de ser apreendido desse modo do que outros. Pode parecer
óbvio que obras literárias são ‘lidas’, mas é um desafio tentar ‘ler’ música, pintu-
ra e escultura, arte ou desenho comercial. (ZOLBERG, 2006, p.51-52)
Capítulo 2 45

O reconhecimento das características propriamente


estéticas que denotam a singularidade da obra estaria ainda
atrelado ao ato de reconhecê-la enquanto bem legítimo, isto
é, como objeto digno de ser admirado e contemplado em si
mesmo. Tal patrimônio cognitivo adquirido no espaço escolar
permitiria, nestes termos, distinguir as obras celebradas pelo
cânone escolar (sobretudo as literárias e filosóficas), como
produções não ensinadas nem exigidas pelo seu currículo,
mas que se impõem no universo cultural como legítimas a
partir de outros processos de consagração.
Destarte, a escola forneceria o esquema geral de julgamento
capaz de distinguir, classificar, hierarquizar os produtos
culturais, inclusive aqueles que não são explicitamente
abordados nos conteúdos escolares, por meio do seu
alinhamento, em determinado aspecto, a cultura legítima.
Estes processos explicam porque determinadas práticas
culturais menos legítimas e reconhecidas do ponto de vista
escolar são adotadas conjuntamente a práticas já legitimadas
e consagradas, e como elas se ancoram neste conjunto de
referências cumprindo similarmente o papel de traço distin-
tivo, que demarca no terreno da cultura, as desigualdades e
diferenças sociais de origem classista.
Por esta razão, a correlação entre a apreciação de objetos
estéticos e o nível de instrução escolar mostra-se como funda-
mental para expor de modo inteligível os fatorese orientações
que subsistem as escolhas e preferências estéticas aparente-
mente naturais e deliberadas.
46 Gerciane Maria da Costa Oliveira

O papel da família, por sua vez, neste processo de socialização


cultural da criança é cronologicamente fundamental, visto que
a transmissão de modelos comportamentais e de disposições
variadas ao se realizar de forma não intencional, cotidiana,
afetiva, provoca intenso efeito e repercussão sobre o individuo
ao longo de toda a sua trajetória5.

Quando a família instaura, desde a infância, uma relação


com a cultura, a aquisição dos instrumentos que tornam
possível a familiarização com as obras de arte opera-se
por um longo processo de apropriação, mais continuo
e difuso. Por essas aprendizagens imperceptíveis e
inconscientes, a família pode instituir uma relação
precoce com a cultura (FLEURY, 2009, p. 80).

Logo, as famílias dotadas de certo “capital cultural”


iniciam seus filhos desde muito cedo no universo das práticas
culturais consideradas legítimas, o que imprime sobre eles o
sentimento de herdeiros por direito deste considerado “bem
familiar”. Diante do contato precoce com estes objetos e

5 “Pode-se dizer, entretanto, que essa concepção do papel da família na


socialização das novas gerações não leva em conta o processo real de interação
entre elas, que envolve tanto a concepção de família como um refúgio afetivo
em relação aos conflitos próprios dos relacionamentos competitivos no mercado
quanto os conflitos característicos da interação entre membros da família, que
muitas vezes expressam a resistência dos mais novos às visões e práticas dos
educadores e das gerações mais velhas” (PILETTI, 2010, p.82).
Capítulo 2 47

práticas estéticas, a relação que se estabelece com a cultura


é de naturalidade e familiaridade, relação bem diferente da
encontrada entre aqueles que têm o capital cultural como
fruto de uma aquisição a custa de muito trabalho e esforço.
Neste caso, a cultura torna-se objeto de culto e respeito. São os
livros bem cuidados na estante do centro da sala, que passam
a ser admirados, mas quase nunca lidos.

A relação entre o capital cultural herdado e o capital


escolar na constituição do gosto

A correlação que Bourdieu estabelece entre o capital cultural


herdado e o capital escolar constitui o ponto fulcral de arti-
culação entre as suas sociologias da educação e da cultura. A
tese que embasa os livros Os herdeiros e A reprodução (1975)
sistematizados e escritos conjuntamente com Jean-CalaudePas-
seron, constitui-se como chave explicativa para a compreensão
da ligação entre as hierarquias sociais e culturais.
Para o pensador francês, o sistema escolar ao invés de pro-
mover mobilidade e ascensão social, a partir da democratização
das oportunidades dada pelo acesso ao conhecimento, exerce
ação contrária, contribuindo para a atualização e reprodução
das desigualdades sociais por meio da legitimação e sanção
da transmissão hereditária do capital cultural.
A reflexão proposta por Bourdieu assinala para o peso
do capital cultural herdado sobre a trajetória escolar dos
indivíduos. Não desconsiderando a importância do capital
48 Gerciane Maria da Costa Oliveira

econômico, que sem dúvida encontra-se atrelado aos outros


capitais, cultural e social6. O autor observa que o sucesso
ou fracasso escolar estaria intimamente ligado ao volume
de capital cultural acumulado nas experiências anteriores a
escola. Isto porque, julgando os alunos a partir de critérios
que levam em consideração os conhecimentos adquiridos fora
dela, a instituição de ensino favoreceria, dissimuladamente,
os filhos das elites que já estariam previamente em contato
com estes saberes.
O capital cultural se apresentaria em três estados:
incorporado, objetivado e institucionalizado. O capital
cultural incorporado pressupõe a atividade de interiorização
e assimilação que se expressa corporalmente, na postura,
no gesto, na linguagem e etc. Produto de um investimento
de longa duração, este capital não pode ser imediatamente
transmitido e requer um trabalho pessoal de cultivo contínuo
e processual para torná-lo parte componente do indivíduo.
O capital cultural objetivado refere-se aos objetos
materializados em suportes, por exemplo, as pinturas, escritos,
instrumentos e etc. Passíveis de serem herdados instantaneamente
por sua materialidade, eles assinalam para a relação entre capital
econômico e capital cultural, no sentido de que a aquisição destes
objetos (quadros, livros, dicionários, esculturas e etc.) depende
fundamentalmente do poder econômico.

6 O capital econômico existe enquanto fatores de produção (trabalho, terras,


indústrias) e bens econômicos (dinheiro, patrimônio, bens materiais). O capital
social, por sua vez, refere-se às redes de relações sociais.
Capítulo 2 49

Já o capital institucionalizado diz respeito às credenciais e


diplomas escolares. O reconhecimento institucional que estes
certificados escolares possuem, garantem a conversão destes
títulos em possíveis ganhos sociais e monetários. O retorno
material provável corresponde ao grau de investimento nas
carreiras escolares e ao valor que estes certificados assumem
no dinâmico e flutuante mercado de títulos.
O continuum que se estabelece entre o capital cultural
assegurado pela família e o capital escolar, em que um funciona
como vetor de assimilação e ancoragem para o outro, aponta
para a ação mútua e complementar entre família e escola no
processo de socialização cultural do indivíduo. É a partir da
noção de habitus que esta continuidade se institui.
Conceito escolástico atualizado pela sociologia das práticas
bourdesiana, o habitus é definido como sistema de disposições
duráveis e transferíveis, resultante de práticas significativas
do passado, que funcionam como esquemas organizadores e
fórmulas geradoras de práticas futuras.
Nestes termos, constitui o habitus do agente, as
disposições adquiridas ao longo do seu processo de
socialização primária, sobretudo, a realizada no contexto
das relações familiares. Entretanto, a possibilidade de
acrescentar novas experiências aos esquemas herdados
do passado atenta para a não mecanicidade e dureza desse
sistema, que permite a atualização dos seus conteúdos na
redefi nição de condutas e práticas do agente para a sua
vida individual e social.
50 Gerciane Maria da Costa Oliveira

Como princípio gerador de práticas sociais e culturais,


estaria no habitus a chave inteligível para o entendimento
das predisposições e preferências estéticas, enquanto fator de
mediação entre a estrutura subjetiva do indivíduo e o lugar
social que este indivíduo ocupa, estes esquemas orientariam
as necessidades culturais em conformidade ao pertencimento
social do agente, condicionado e demarcado pelo volume de
capital acumulado no interior dos diferentes campos espe-
cializados (econômico, político, artístico e etc).
Este conceito permite que Bourdieu aborde de modo comple-
xo a associação entre gosto, classe social e instrução escolar.
Sob esta perspectiva, o a autor constrói tipologicamente três
universos culturais que instituem a correspondência entre o
juízo de gosto, a origem social e o nível educacional, seriam
estes o gosto legítimo, o médio e o popular7.
O gosto legítimo, ou seja, o gosto expresso pelas obras
legítimas cresceria com o nível escolar para abranger o mais
elevado estrato das classes ricas. Referenciado na cultura eru-
dita, este universo compreenderia o designado público culti-
vado e especializado das artes, isto é, os espectadores dotados
de alta competência cultural necessária para a apreciação

7 Herbert Gans em estudo similar, também sistematiza os agrupamentos de


“culturas de gosto”, porém “as ‘culturas de gosto’ de Gans abrangem formas e es-
tilos de arte que atravessam o status socioeconômico e a locação geográfica, com
variações regionais – o urbano, o suburbano, o rural – e o grau de proximidade
ou distanciamento em relação à principal corrente cultural” (ZOLBERG, 2006, p.
225-226).
Capítulo 2 51

destas obras, inculcada a partir do processo de socialização


elementar operado pela família e complementado pela escola.
Compartilhado entre os membros da classe média, o gosto
médio englobaria as obras maiores das artes menores e as
obras menores das artes maiores. Balizados nas artes legí-
timas, estes produtos “adaptados”-“intermediários entre as
obras produzidas por referências às normas internas do campo
de produção erudita e as obras diretamente comandadas por
uma representação intuitiva ou cientificamente informada
das expectativas do público mais amplo” (BOURDIEU, 1992,
p. 139-140) responderiam a uma boa vontade cultural, esva-
ziada das competências necessárias para sua prática efetiva,
ao propiciarem a ilusão de ser culturalmente legítimos, ainda
que mais acessíveis economicamente e culturalmente que os
bens legítimos, de fato.
Mais frequente entre as classes populares, o gosto popular
varia de forma diametralmente oposta ao capital escolar.
Formado por obras desprovidas de pretensões estéticas,
amplamente divulgadas e consumidas, este segmento denota
para a existência de uma estética pragmática e funcionalista
comum entre os estratos mais baixos, expressa pela busca de
satisfações mais imediatas e diretas, que interliguem arte e
vida nas produções plásticas ou musicais.
52

Considerações

A máxima “gosto não se discute” expressa o cerco simbó-


lico que envolve este conjunto de princípios de classifica-
ção e diferenciação, pois na medida em que são tratados
como “dons” naturais e inatos, dignos de poucos e nobres
eleitos, escamoteia-se a energia e os mecanismos sociais
que estão por trás desta constituição de juízos de gosto e
preferências estéticas.
Portanto, aparentemente indiferente aos jogos de disputas
de poder, o campo do gosto encontra-se minado pelas lutas
e concorrências entre as classes sociais. Por meio da mobili-
zação dos signos culturais, os grupos sociais expressam no
terreno da arte e dos estilos de vida o conjunto de desigual-
dades sociais, de modo deliberado ou inconsciente (habitus).
A escola, como instituição fundamental da socialização
cultural, opera, conjuntamente à instituição familiar, na
constituição de gostos e escolhas estéticas que expressam e
reproduzem os lugares dos indivíduos nos espaços sociais.
53

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento.


Porto Alegre: EDUSP, 2007.

______. As regras da arte: gênese e estrutura do campo


literário. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.

______. Mercado dos bens simbólicos. In:______. A economia


das trocassimbólicas. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução:


elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1975.

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os


museus de arte na Europa e seu público. Universidade de São
Paulo: Zouk, 2003.

BUENO, Maria Lucia. Artes Plásticas no século XX:


modernidade e globalização. Campinas, SP: Unicamp, 1999.

DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. 10. ed. Tradução


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54

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São Paulo, 2006.
55

CAPÍTULO Е

O ENSINO DE CIÊNCIAS E AS APLICABILIDADES PARA


A LEI 10.639 ATRAVÉS DAS LENDAS MITOLÓGICAS DOS
ORIXÁS.

Linconly Jesus Alencar Pereira

A Lei 10.639/2003 instituiu que todos os estabelecimentos de


ensino fundamental e médio, públicos e particulares, devem
ter além dos conteúdos obrigatórios, trabalhados transversais
em seu currículo. O ensino de história e cultura africana e
afro-brasileira tem como intuito possibilitar aos estudantes o
acesso à história e à contribuição que as sociedades africanas
deram para a formação da população brasileira.
Nos últimos anos, o debate, o questionamento e a valorização
da diversidade étnico-racial brasileira, decorrentes das ações
e de iniciativas do movimento negro e de intelectuais
comprometidos com a busca da implementação dessa lei,
trouxeram um importante desafio à educação em nosso país:
o de abordar de forma adequada e através de práticas
interdisciplinares a história e a cultura provenientes do
continente africano.
56 Linconly Jesus Alencar Pereira

Professores e professoras de todos os componentes cur-


riculares, inclusive, do ensino de Ciências, passaram a se
questionar sobre as formas concretas de promoção do ensino
dos saberes tradicionais africanos e afrobrasileiros. Uma série
de questionamentos vem sendo levantada pelos educadores
no ambiente escolar sobre como abordar as práticas para a
implementação da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003). Dentre eles,
os mais frequentes são: por que ensinar história e cultura
africana e afro-brasileira no ensino de Ciências? Por que é
obrigatório? Como fazer isso se, de forma geral, os professores
não são preparados para tal ação?
Tornam-se necessárias ações que desenvolvam novos cami-
nhos para essa implementação de forma sistemática e efetiva
nas diversas áreas do currículo escolar, como na disciplina
de Ciências Naturais no ensino fundamental II.
Uma abordagem de ensino que considere práticas culturais
de origem africana e afro-brasileira poderia contribuir para
que os estudantes passassem a conhecer e respeitar a diver-
sidade étnico-racial do povo brasileiro e, ao mesmo tempo,
aprender Ciências em uma nova perspectiva de conhecimento
não etnocêntrico. Para tanto, é preciso que os estudantes, as-
sim como seus professores e professoras, vivenciemprocessos
educativos orientados por valores das populações tradicionais
africanas e afro-brasileiras.
A transmissão oral de conhecimentos seculares é um dos
importantes patrimônios da cultura imaterial de origem
africana que podem contribuir diretamente com esses
Capítulo 3 57

processos educativos. Diante dessa forma de transmissão


de cultura e de educação, gêneros textuais como: contos,
provérbios, histórias, fábulas, mitos e lendas de matriz
africana e afro-brasileira, são abordados elementos como
a origem da vida, os fenômenos naturais e atmosféricos, os
animais, as plantas e a etnobotânica, as relações entre formas
vivas, à saúde e a agricultura, os quais são objetos de estudo
das Ciências Naturais e que podem ser pedagogicamente
trabalhados nessa contextualização.
Dessa forma, o professor de Ciências pode se valer de
tais fenômenos e temáticas que serão estudadas, estimulan-
do os estudantes a se apropriarem de conteúdos do âmbito
das Ciências Naturais pela perspectiva cultural africana
e afro-brasileira, o que, provavelmente, irá ampliar suas
possibilidades de aprendizagem.
O desafio de ensinar conhecimentos tradicionais de matriz
africana e afro-brasileira no ensino de Ciências, assim como
nos demais componentes curriculares, tem papel importante na
promoção de relações sociais e na construção de uma identidade
cidadã. Verrangia (2010) nos dá a luz para o esclarecimento
desse desafio quando nos mostra caminhos para o convívio
e o respeito entre as dimensões “científica” e “tradicional”,
de nossa herança cultura e requer que sejam apresentadas e
discutidas, nas aulas de Ciências, diferenças e semelhanças
entre elas. Aprender sobre o conhecimento tradicional pode
ajudar a aprender sobre o sentido, os objetivos e as práticas
das Ciências Naturais.
58 Linconly Jesus Alencar Pereira

Com base nas ideias de Verrangia (2010), abro caminhos


para essa discussão nas atividades que exerço como professor
de Ciências no ensino fundamental II, no município de
Fortaleza, abordando questões que compõem o universo das
africanidades que se referem às raízes da cultura brasileira,
a qual tem origem africana.
Segundo Silva e Gonçalves (2003), são os modos de como
viver, de organizar suas lutas, próprio dos negros brasileiros,
às marcas da cultura africana que, independente da origem
étnica, fazem parte do seu dia-a-dia. Esses fatos são distan-
ciados da formação acadêmica do profissional de Ciências que
vem das áreas de concentração profissional das licenciaturas
em Biologia, Física e Química e tem seus componentes curri-
culares eurocentrados e deficitários de discussões referentes
às relações étnico-raciais. Faço essa afirmação com base em
minha formação acadêmica no curso de licenciatura em Física
na Universidade Federal do Ceará.

Novos dispositivos pedagógicos no ensino de ciên-


cias e a construção de uma educação antirracista.

O desenvolvimento de novos dispositivos pedagógicos contri-


buirão com as ações e os frutos maturados por intelectuais
que já vêm desenvolvendo experiências sistemáticas para a
implementação da Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003), somando
forças com a disciplina de Ciências Naturais.
Capítulo 3 59

A perspectiva é a de intensificar estratégias já desenvolvidas


durante décadas pelo movimento negro brasileiro que, no
decorrer de todo o período pós-abolição aos dias atuais, exige
do Estado brasileiro a reparação às atrocidades realizadas
através do escravismo criminoso, na tentativa de corrigi-las
através das políticas de ações afirmativas8.Por esse viés,
essas políticas se propõem à divulgação e à produção de
conhecimentos antirracistas que sejam capazes de conduzir
à (re)educação das relações entre grupos étnicos diferentes,
à procura do reconhecimento e da valorização da história,
da cultura e das identidades negras, condições essenciais e
indispensáveis para uma educação de qualidade para todos.
As políticas de ações afirmativas estimularam as diversas
atuações que viriam a ser desenvolvidas pelo governo federal,
estadual e municipal nos anos seguintes. Houve a homologação
da Lei 10.639/03 e, posteriormente, o Governo Federal e o
Ministério da Educação, em conjunto com o Conselho Nacional

8 Políticas de reparações e de reconhecimento formarão programas de


ações afirmativas, isto é, conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de
desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado
com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por
estrutura social excludente e discriminatória. Ações afirmativas atendem
ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, bem como a
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de combate
ao racismo e a discriminações, tais como: a Convenção da Unesco, de 1960,
direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino, bem como a
Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Discriminações Correlatas, de 2001.
60 Linconly Jesus Alencar Pereira

de Educação, no dia 17 de junho de2004, homologam o parecer


que dita as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de história e cultura
afro-brasileira e africana, abrindo caminhos para a fiscalização
e a cobrança do movimento negro das diversas ações que seriam
desenvolvidas posteriormente. De posse dessas iniciativas e do
caminho apontado pelo Parecer nº 001/2004, podemos perceber
em seu texto que, quando tange às políticas de reconhecimento
e valorização de ações afirmativas,

A demanda por reparações visa a que o Estado e a


sociedade tomem medidas para ressarcir os descen-
dentes de africanos negros dos danos psicológicos,
materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos sob
o regime escravista, bem como em virtude das políticas
explícitas ou tácitas de branqueamento da população,
de manutenção de privilégios exclusivos para grupos
com poder de governar e de influir na formulação de
políticas, no pós-abolição (BRASIL,2004, p. 3).

As novas pedagogias de combate ao racismo e a discriminações


evidenciam experiências de professores em suas escolas na busca
de elementos que ajudem a empreender a construção de novos
valores, desfazendo os equívocos sedimentados no decorrer da
história pelos livros didáticos e imaginários populares criados
em torno da figura da população negra, de sua cultura e religião.
Capítulo 3 61

Apontar novas temáticas no sentido de trabalhar relações


étnico-raciais em sala de aula é de importância fundamen-
tal para reforçar a identidade e a valorização da autoestima
da população negra. Outra grande relevância dessas ações
é o esclarecimento e a informação da população no senti-
do educativo a respeito das leis . / BRASIL, ,
. / BRASIL, e . / (BRASIL, 1997), que
regulam os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor
e estabelecem as penas aplicáveis aos atos discriminatórios e
preconceituosos, de raça, cor, religião, etnia ou procedência
nacional, tendo em vista que a responsabilidade é de todos,
e não apenas do professor em sala de aula. Exige-se, assim,
um comprometimento solidário dos vários elos do sistema de
ensino brasileiro, que têm o papel articulador e coordenador
da organização da educação nacional.
A cultura africana e afro-brasileira, presente no coti-
diano do Brasil, se expressa e é mantida, transformada nas
manifestações histórico-culturais diretamente vinculadas
a visões do mundo de raiz africana, também chamadas de

9 Lei 7.716/1989 – Promulgada em 5 de janeiro de 1989, essa lei define os cri-


mes resultantes de preconceito de raça ou de cor.
10 Lei 8.081/1990 – Estabelece os crimes e as penas aplicáveis aos atos discri-
minatórios ou de preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional,
praticados pelos meios de comunicação ou por publicação de qualquer natureza.
11 Lei 9.459/1997 – Altera os artigos 1º e 20 da Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de
1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e acrescen-
ta parágrafo no artigo 140 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
62 Linconly Jesus Alencar Pereira

africanidades. Essas visões de mundo estão enraizadas em


jeitos de ser, viver, pensar e de construir existências próprias
do mundo africano – lembrando que o mundo africano inclui
a diáspora. Dessa forma, entendo que, para pensar e ensinar
cultura africana e afro-brasileira é preciso compreender sua
continuidade com conhecimentos e significações que começa-
ram a ser elaborados no continente africano milênios antes
da chegada de povos colonizadores lá.

A ancestralidade está na base da história e das


culturas de raiz africana. Nessa perspectiva, a
conexão entre os afrodescendentes e o continente
africano é mais do que uma idealização, pois é
por meio da diáspora que os afrodescendentes
mantêm conexão com o mundo africano. O ensino
de Ciências, ao assumir o compromisso de abordar
adequadamente a diversidade cultural brasileira,
pode contribuir para valorizar a ancestralidade
presente em formas de ser africana e afrodescendente
(VERRAGIA, 2010,p.8).

Ao analisarmos a legislação educacional vigente, perce-


be-se que essa reeducação vai ao encontro das proposições
mais gerais que circunscrevem o ensino de Ciências e todos
os componentes curriculares ao contexto de formação para a
cidadania. Assim, a lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003) não coloca
uma questão “nova” a educadores, mas sim torna mais eviden-
Capítulo 3 63

tes e objetivas as intenções já presentes na legislação em vigor


antes de 2003, que se refere a uma formação para a cidadania.
Tendo por base essa intenção educativa, recorremos a
Oliveira (2007, p.80) quando fala que a ancestralidade torna-se
o signo de uma resistência afrodescendente, protagonizando
a construção histórico-cultural do negro no Brasil e gestando,
ademais, um novo projeto sociopolítico fundamentado nos
princípios da inclusão social, no respeito às diferenças, na
convivência sustentável do homem com o meio ambiente, no
respeito à experiência dos mais velhos, na complementação
dos gêneros, na diversidade, na resolução dos conflitos, na
vida comunitária, entre outros.
Tributária da experiência tradicional africana, a ances-
tralidade converte-se em categoria analítica para interpre-
tar as várias esferas da vida do negro brasileiro. Oliveira
(2007, p.81) mostra que a ancestralidade é retroalimentada
pela tradição, ela é um signo que perpassa as manifestações
culturais dos negros no Brasil, esparramando sua dinâmica
para qualquer grupo racial que queira assumir os valores
africanos. Passa, assim, a configurar-se como uma episte-
mologia que permite engendrar estruturas sociais capazes
de confrontar o modo único de organizar a vida e a produção
no mundo contemporâneo.
64 Linconly Jesus Alencar Pereira

A questão ambiental e sua abordagem a partir das


mitologias africanas ne ensino fundamental

Na sociedade contemporânea, falar da ancestralidade africana


é necessário para combater a perseguição religiosa contra as
práticas tradicionais afro-brasileiras. Essas religiões possuem
diversas denominações regionais, como Candomblé na Bahia,
Tambor de Mina no Maranhão, Macumba no Rio de Janeiro e
Umbanda, na grande maioria das vezes, espalhada por todo
o território brasileiro.
As referidas perseguições religiosas são transformadas
em medos e essas práticas são difundidas nos ambientes
educacionais e no imaginário popular. Devido às diversas
formas de preconcebê-las, a as perseguições se reproduzem
e a partir delas, criam-se tabus em se falar sobre as religiões
de base africana nos ambientes educacionais. Tratar com
respeito, não implica aderi-las ou com elas pactuar: consiste
em ser democrático e pluralista, respeitando todas as formas
de valores religiosos presentes na sociedade brasileira.
A escola não deve ser proselitista, não buscando abraçar
nenhuma tradição religiosa nem a conversão de novos adeptos
às diversas religiões, mas sim atuar na perspectiva de garantir
um Estado laico e diverso. O Candomblé, assim como as demais
tradições religiosas de matriz africana, deve ser trabalhado
na direção do esclarecimento sobre a importância da cultura
brasileira e africana, no sentido de combater os preconceitos
e o racismo contra a população negra e a sua cultura.
Capítulo 3 65

Segundo Oliveira (2007,p.83) cultura é o relacionamento


da singularidades no plano de imanência, concomitante aos
valores produzidos no plano de transcendência. Para apre-
ender a ação de um povo, é preciso averiguar qual o conceito
produzido pela ação axiomática desse mesmo povo, ou seja,
compreender qual o sentido (ou os sentidos) atribuído às ações
dos sujeitos que produzem suas experiências e interpretações.
Nesse contexto, apontamos um dispositivo pedagógico
de combate ao racismo e às discriminações evidentes em
minha experiência em salas de aulas nas escolas da Prefeitura
Municipal de Fortaleza, na busca de elementos que ajudem
a empreender a construção de novos valores, desfazendo os
equívocos sedimentados no decorrer da história pelos livros
didáticos e imaginários populares criados em torno da figura
da população negra, sua cultura e religião.
Apontar novas temáticas no sentido de trabalhar relações
étnico-raciais em sala de aula é de importância fundamental
para reforçar a identidade e a valorização da autoestima da
população negra nos ambientes educacionais. Dessa forma, o
currículo não se configura apenas como um espaço de domi-
nação e controle, mas também como um espaço de luta, tendo
de ser pensado como território contestador, como lugar de
diferentes grupos sociais, diferentes saberes e experiências
que, segundo Rodrigues (2004), serão instituídos e tomados
como legítimos e verdadeiros.
66 Linconly Jesus Alencar Pereira

Evidenciamos isso muito bem à luz dos escritos de Botelho


(2005), quando a autora fala que a “educação nos abre portas
para buscar ações diversas, pensando em uma inversão
radical ao encontro de valores comunitários, de igualdade e
de inclusão, seja de raça, de credo ou de gênero”.
É no terreiro que está presente a herança coletiva de várias
tradições africanas, que são propagadas por meio de um pro-
cesso educativo baseado na transmissão oral de lendas e mitos
conhecidos sobre os rituais, o uso de folhas e objetos de culto.
Trivelato e Silva (2011) nos falam a respeito do ensino
de Ciências, de Educação Ambiental e da consolidação que
vem exercendo em uma prática educativa integrada, a qual
pode ocorrer em diversos contextos, podendo oferecer uma
contribuição muito grande ao processo educativo em geral
e à formação de cidadãos mais conscientes do seu papel na
sociedade, em relação ao meio ambiente e às contribuições
trazidas pelos africanos que aqui chegaram escravizados:

[...] a flora e a fauna brasileira apresentam um número enorme


de espécimes vindos do continente africano, estes vieram
pela sua utilidade e por fazerem parte do acervo civilizatório
africano no qual se estruturou a sociedade brasileira. O
Brasil, Colônia Império, em seus aspectos tecnológicos,
começa no continente africano e nos conhecimentos trazidos
pela mão de obra africana. Assim, é muito importante
termos conhecimento mínimo das tecnologias africanas
desenvolvidas na história do Brasil (CUNHA JR., 2006, p. 10).
Capítulo 3 67

Com base nessas contribuições trazidas, adotamos como


minha referência territorial o continente africano, por um
lado, e o território brasileiro africanizado, por outro. Assim,
corroboramos com Oliveira (2007), que nos faz refletir sobre
a cultura de matriz africana é o movimento da ancestralidade
(plano de imanência articulado ao plano de transcendência)
comum a esses territórios de referência.
A ancestralidade, inicialmente, seria o princípio que orga-
niza o Candomblé e arregimenta todos os princípios e valores
caros ao povo-de-santo na dinâmica civilizatória africana. Ela
não é, como no início do século XX, uma relação de parentesco
consanguíneo, mas o principal elemento da cosmovisão africa-
na no Brasil. Já não se refere às linhagens de africanos e seus
descendentes: a ancestralidade é um princípio regulador das
práticas e representações do povo-de-santo. Por isso, a ances-
tralidade tornou-se o principal fundamento do Candomblé.
Apontar os elementos presentes nessas interpretações é
também traçar estratégias para a educação das relações étnico-
raciais, que tem por alvo a formação de cidadãos, homens e
mulheres, empenhados em promover condições de igualdade no
exercício de direitos sociais, políticos, econômicos, dos direitos
de ser, viver e pensar próprios aos diferentes pertencimentos
étnico-raciais e sociais, de modo que, tais condições seguem o
objetivo precípuo de desencadear aprendizagens e ensinos em
que se efetive a participação no espaço público.
Devemos ter em vista que o conhecimento trazido pelos
africanos ao Brasil contemplava áreas como agricultura,
68 Linconly Jesus Alencar Pereira

mineração, metalurgia, tecelagem, astronomia, matemática,


botânica, medicina, dentre outras. Caminharemos então no
terreno que concerne referência e articulação as relações
étnico-raciais, a educação ambiental e o ensino de Ciências
na perspectiva de dialogar com a ancestralidade africana e
afro-brasileira presente nos muros dos terreiros, nas lendas,
contos, mitos, na preservação ambiental ensinada pelas reli-
giões de matriz africana e nos diversos fenômenos ambientais
ligados à natureza dos orixás12.
Tem-se a perspectiva de que na escola o multiculturalismo
vem a assumir as lutas e esforços de ressignificar os estereó-
tipos e as representações negativas que são nomeadas como
minorias, conforme menciona Rodrigues (2004).
A Educação Ambiental segundo Trivelato e Silva (2011)
vem se consolidando como prática educativa integrada,
que pode ocorrer em diversos contextos, podendo oferecer
uma contribuição grande ao processo educativo em geral
e à formação de cidadãos mais conscientes do seu papel na
sociedade, e, relação aos outros e ao meio ambiente. Um
pensamento que converge diretamente com as interações entre

12 Segundo Beniste (2010), Òrìsàé força pura, àse imaterial que só se torna
perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles. Esse ser escolhido
pelo Òrìsàé chamado de elegun – aquele que tem o privilégio de ser “montado”,
gún, por ele. Torna-se o veículo que permite ao Òrìsàvoltar à Terra para saudar
e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocam. Essa
descendência é um conceito baseado na ideia de que o Òrìsàé um antepassado
ancestral de clãs e devidamente divinizado.
Capítulo 3 69

o conhecimento ocidental e os conhecimentos tradicionais


de matriz africana e afro-brasileira presentes nos mitos dos
Orixás, mostrando uma estruturação consolidada para a
elaboração de atividades, sob a ótica cultural das populações
tradicionais vindas de África.
Sugerir essas atividades a partir dos itans (lendas mitoló-
gicas dos Orixás) é dialogar diretamente com os paradigmas
atuais em cerne na sociedade, na busca de ampliar o diálogo a
cerca de questões como ecologia, ecocidadania, meio ambiente
sustentável ou sustentabilidade, temáticas que exigem que
o homem estabeleça uma relação com a natureza, não como
uma presença intrusa ou destruidora, mas um agente que
pertence à teia de relações da vida social, natural e cultural
que interage com ela.
Desta forma, a criação de uma mentalidade sustentável
nas pessoas passa, a princípio, pela criação de uma rede que
seja capaz de fornecer a educação ambiental necessária para
o correto entendimento e a criação de uma cultura de susten-
tabilidade que se espalhe por todas as camadas da sociedade.
Iniciar a formação de uma mentalidade sustentável
e fornecer os conhecimentos necessários para isso deve
se iniciar desde a mais tenra infância para que assim, as
crianças consigam compreender os conceitos existentes
por trás deste tema importantíssimo. Isso permitirá que
num futuro próximo, essas crianças se transformem
em multiplicadores e, consequentemente, em adultos
conscientes e competentes para buscar métodos e modelos
70 Linconly Jesus Alencar Pereira

de vida que garantam a sustentabilidade de suas casas e a


sustentabilidade de suas cidades.
Apresentaremos doravante os itans de Ossain que é a
energia mágico/curativa das folhas e por isso divinizada na
forma do senhor das folhas e dos remédios. O interesse de
Ossain pela ciência tornou-o um solitário desde que desceu
do orum (o céu ioruba).Embrenhou-se pelas florestas e vive
para descobrir e se apoderar dos segredos mágicos das folhas.
Alguns mitos dizem que Ossain aprendeu os segredos das
folhas com Aroni, uma espécie de gnomo africano, que tem
uma perna só, e com os pássaros. Ossaim recusa-se a cortar
as ervas miraculosas, diz o mito que Ossain:

[...] era o nome de um escravo que foi vendido a Orumilá13.


Um dia ele foi a floresta e lá conheceu Aroni, que sabia
tudo sobre as plantas. Aroni, o gnomo de uma perna só
ficou amigo de Ossain e ensinou-lhe todo o segredo das
ervas. Um dia, Orumilá, desejoso de fazer uma grande
plantação, ordenou a Ossain que roçasse o mato de
suas terras. Diante de uma planta que curava dores,
Ossain exclamava: “Esta não pode ser cortada, é a erva
que cura as dores”. Diante de uma planta que curava
hemorragias, dizia: “Esta estanca o sangue, não deve ser
cortada”. Em frente de uma planta que curava a febre,

13 Orumilá era um babalaô responsável pelo jogo de Ifá, oráculo sagrado


segundo a cultura yorubá.
Capítulo 3 71

dizia: “Esta também não, porque refresca o corpo”. E


assim por diante. Orumilá, que era um babalaô muito
procurado por doentes, interessou-se entãopelo poder
curativo das plantas e ordenou que Ossain ficasse junto
dele nos momentos de consulta, que o ajudasse a curar
osenfermos com o uso das ervas miraculosas. E assim
Ossain ajudava Orumilá a receitar e acabou conhecido
como o grande médico que é (PRANDI,2001,p.152).

Assim sendo, a folha tem uma importância vital para o


povo do santo, sem ela é impossível realizar qualquer ritual,
por isso existe um termo corriqueiro do povo do santo que
diz: ko si ewe, ko si Orixá, (sem folha não existe Orixá).
Todas as folhas possuem poder, mas algumas têm finalidades
específicas. O seu uso deve ser estritamente recomendado
pelo Babalorixá (sacerdote ou pai-de-santo)ou em comum
acordo com o Babalosaim (sacerdote conhecedor da ação,
reação e consequência do poder das folhas), pois só estes
sabem a polaridade energética, “positiva ou negativa” de
cada uma delas e a necessidade de cada indivíduo. Para sua
utilização nos ritos, deve-se saber as Sasanha (cânticos
específico para folha) e o Ofó (palavras sagradas) que
despertam seu poder e força “axé”.
O itan de Ossain abre caminhos para a construção de uma
identidade ecocidadã, de forma que sugerimos doravante
possibilidades de trabalho com a temática ambiental para
professores possam também desenvolvê-las em sala de aula:
72 Linconly Jesus Alencar Pereira

1. Abordar a importância das ervas e plantas medicinais


explorando seus princípios ativos e o desenvolvimento
de novos medicamentos a partir do conhecimento afro-
-brasileiros e ameríndios. É interessante refletir como
esses princípios podem ser utilizados pela indústria
farmacêutica ou, quiçá, podem ser substituídos pelo
uso da medicina popular.
2. Desenvolver práticas que estimulem a Ecocidadania e
preservação ambiental da flora e fauna local, constru-
ção de uma identidade sustentável nas comunidades;
relações alimentares nos ecossistemas; estratégias de
vida nos ecossistemas.
3. Dialogar com a agricultura sustentável, o esgotamento
do solo e a adubação, a rotação de cultura e deserti-
ficação/extrativismo e manejo adequado de culturas
agrícolas.
4. Estudar temas como a fertilidade do solo, os nutrientes
do solo, desequilíbrio do solo e desmatamento, refle-
tir sobre como o solo sustenta a vida, os tipos de solo
brasileiro e africanos.
5. Repensar o papel das plantas, respiração das plantas
e clorofila. A importância da fotossíntese.
6. Preservação ambiental e qualidade de vida.
7. Instigar a construção de uma horta medicinal.
Capítulo 3 73

Considerações

Consideramos relevante explorarmos ainda mais a densidade


de conteúdos presentes na disciplina de Ciências no Ensino
Fundamental, buscando com um maior enriquecimento de-
senvolver transdisciplinar e interdisciplinar os conteúdos
referentes às culturas e religiões de matriz africana. As temá-
ticas podem ser exploradas de modo que os educandos sejam
desafiados a adentrar em universos desconhecidos, aguçando
a curiosidade, estimulando as descobertas, o raciocínio, o
interesse por experimentos bem como a construção de uma
identidade cidadã.
Os professores e as professoras podem fazer uso de novos
artifícios para conquistar seus educandos, podendo envolver
em suas aulas as mitologias dos Orixás já que todos estão
ligados a elementos presentes na natureza. Partindo dessa
perspectiva poderão traçar metodologias de grupos de tra-
balhos, teatro, fantoches, seminários, o uso de novas tecno-
logias (computadores, celulares, máquinas digitais) para a
construção de novas experiências que fortalecerão o desafio
encontrado em sala de aula e nas comunidades.
Acreditamos que o intuito maior é combater o descompasso
existente entre a prática pedagógica e a realidade dos alunos,
o que pretenderemos aprofundar em pesquisas futuras.
74

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77

CAPÍTULO Ж

OS IMPACTOS DOS AGROTÓXICOS E O ENSINO DE EDU-


CAÇÃO AMBIENTAL NO DISTRITO TOMÉ - QUIXERÉ-CE

Maria Rosana da Costa Oliveira

Nos últimos séculos, um modelo de civilização se impôs trazendo


industrialização. Esse modelo originou nova forma de produção
e organização do trabalho, baseado na extração ilimitada de
recursos naturais e na acumulação contínua de capitais.
A falsa ideia da inesgotabilidade dos recursos facilitou o
processo de degradação do meio ambiente, trazendo dentre
as consequências: desmatamentos acelerados, urbanização
acentuada, poluição dos recursos hídricos e a mecanização da
agricultura, tendo como resultado o processo de concentração
populacional nas cidades sem os devidos serviços básicos
como: saneamento, habitação, transportes dentre outros.
Após a segunda guerra mundial, começou-se a discutir
teorias e explicações que procuravam mostrar a limitação
da natureza e a necessidade de se rever o modelo influente
de desenvolvimento. É nesse contexto que os movimentos
78 Maria Rosana da Costa Oliveira

ambientais entram em evidência, com a proposta de um de-


senvolvimento sustentável14.
O marco do movimento ambientalista a nível mundial
ocorreu na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente, realizada em Estocolmo em 1972. Dentre várias
questões abordadas, a Educação Ambiental foi enfatizada como
proposta multidisciplinar que abrange todos os níveis de ensino,
incluindo o nível não formal, com a finalidade de sensibilizar
a população para os cuidados ambientais emergentes.
No Brasil, o pioneirismo dentro das questões ambientais
aconteceu na conferência Rio/92, reunindo mais de 170 países
que reconheciam o papel da educação ambiental. A Educa-
ção Ambiental no Brasil foi regulamentada como obrigação
nacional pela constituição de 1988, tornando-se um dever a
ser garantido pelo governo federal, estadual e municipal em
todos os níveis de ensino, além da formação pública em geral.
Atualmente, a Educação Ambiental, doravante EA,
é considerada tema transversal no ensino pelos Parâmetros
Curriculares Nacionais, ou seja, pode ser trabalhada de forma
interdisciplinar, pois o meio ambiente sendo um sistema
bastante complexo, não pode ser estudado somente por um viés.
Por ser uma disciplina que trabalha com a relação socie-
dade e natureza, a EA é um ramo presente na maioria dos

14 O conceito de desenvolvimento sustentável tem uma conotação extremamente


positiva. Tanto o Banco Mundial, quanto a UNESCO e outras entidades internacionais
adotaram-no para marcar uma nova filosofia de desenvolvimento que combina eficiên-
cia econômica com justiça social e prudência ecológica (CAVALCANTI, 1994, p. 143).
Capítulo 4 79

conteúdos abordados pela Geografia, aparecendo muitas vezes


como proposta mitigadora dos impactos causados pelo homem.
O desenvolvimento da temática ambiental dentro da ciência
geográfica foi algo que se deu lentamente nas décadas de 70
e 80, principalmente, dentro da Geografia Física. Segundo
Christofolleti (1981), a Geografia Física sempre se preocupou
com as relações entre o homem e a natureza, com o relacio-
namento entre os meios ambientes e a ação antrópica.
Dessa forma, a Geografia como ciência que estuda a relação
sociedade- natureza deve ser uma “parceira” no estudo das
questões ambientais, sendo necessário que ela esteja atenta aos
impactos ambientais tanto locais quanto globais. Aliando a EA às
questões territoriais, trabalhando os problemas específicos de
cada grupo social, principalmente, quando se tem por finalidade
básica a gestão de unidades territoriais demarcadas, sem contudo,
deixar de articular tais problemas as questões macrossociais
em que se inserem e a visão integradora do ambiente.
Assim, a EA tem como finalidade formar alunos, cidadãos
conscientes dos problemas ecológicos e sociais de sua realidade,
indo além dos aspectos naturais, buscando provocar questões,
situações de aprendizagem e desafios para a participação na
resolução de problemas, a fim de articular a escola com os
ambientes locais e regionais onde está inserida.
Neste aspecto, este trabalho buscou analisar de que
forma a Escola (Professores, alunos, direção) Irene Nonato
da Silva localizada no distrito de Tomé, trabalha a EA na
escola. Principalmente problemáticas locais, como os impactos
80 Maria Rosana da Costa Oliveira

socioambientais causados pelo uso de agrotóxicos na região.


A escolha de um ambiente rural também facilitou uma
análise comparativa entre cidade e campo, o que nos levou
a refletir de que forma estes dois ambientes vêm sendo
degradados de formas diferenciadas e como o processo de
modernização do campo vem eximindo a imagem de um
ambiente rico em recursos naturais.
Buscou-se nesta pesquisa, extrapolar os muros da escola
e trabalhar a EA em cima de situações reais, fazendo assim
com que ela se torne uma ação educativa no crescente com-
prometimento com a melhoria da qualidade de vida.

Aspectos históricos do distrito de Tomé

Tomé está localizado no município de Quixeré, faz limites com


as comunidades de Macacos, Cercado do Meio, Carnaúbas e lagoa
da Casca. Atualmente, o distrito conta com uma população de
aproximadamente 3500 habitantes.Conforme o Diagnóstico
Socioeconômico das Comunidades do Entorno das Empresas
de Agronegócio no Perímetro Jaguaribe Apodi (2008).
A população chegou a Tomé, atraída por terras férteis, esse
evento pode ser explicado, pelo fato do distrito está alocado
na Chapada do Apodi, área sedimentar que apresenta poucos
cursos d’água superficiais e solos dotados de fertilidade na-
tural alta, de acordo com Sousa (2007).
Segundo Muniz (2006), a chapada do Apodi era um espaço
de pouco adensamento populacional, sendo área de criação
Capítulo 4 81

de gado, ao contrário do observado na planície aluvial. Esse


quadro mudou a partir da década de 70 em que houve meta-
morfoses no espaço agrário jaguaribano.
As mudanças ocorreram principalmente após a criação de
perímetros públicos de irrigação pelo Departamento Nacional
de Obras contra as Secas (DNOCS) e o Programa de Valori-
zação Rural do Baixo e Médio Jaguaribe (PROMOVALE) na
década de 80, sob a responsabilidade de execução do governo
estadual, conforme Chaves (2006).
O início do projeto irrigação Jaguaribe Apodi, foi apoiado por
inúmeras políticas públicas, fazendo com que o agronegócio se
tornasse o principal vetor de reorganização dos espaços regionais.

Mapa 1 - Localização geográfica do Perímetro Irrigado Jaguaribe-


Apodi-CE

Fonte: UFC (2012).


82 Maria Rosana da Costa Oliveira

Essa reorganização foi responsável tanto por impactos so-


ciais, como, a expropriação de terras dos pequenos produtores,
a subordinação da agricultura familiar à agroindústria como
também impactos ambientais decorrentes do uso intensivo
de defensivos agrícolas.

O município de Quixeré, por exemplo, está ligado a


lógica globalizada de produção e consumo de frutas
tropicais. Dessa forma, além dos dados de instituições
como o IBGE, conforme pudemos confirmar durante
a aula de campo neste município, houve uma queda
da área plantada e da produção de alimentos voltados
para o consumo local. Estes produtos foram substitu-
ídos por frutas para a exportação como o abacaxi, a
banana, a goiaba e, em especial, o melão [...] (ELIAS,
2006, p. 52).

Estudos feitos pelo professor Hildebrando (2008), de-


monstram que houve desigualdade na distribuição das terras
em Tomé após o projeto de irrigação. Foram privilegiados
os grandes produtores de frutas para exportação, e aos pe-
quenos produtores restaram as menores terras. Conforme
Muniz (2006), a parceria, o trabalho alugado, a empreitada,
o assalariamento rural ou urbano e até mesmo a migração
temporária ou definitiva foram estratégias de sobrevivência
adotadas pelas famílias rurais.
Capítulo 4 83

Os impactos da utilização dos agrotóxicos


na região jaguaribana

Segundo dados da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará


(SESA) o consumo de agrotóxicos vem aumentando considera-
velmente no estado, o número de casos de internamento por
intoxicação subiu de 8,1% para 13,7% de 2004 para 2005 e o
índice maior ocorreu na Região Jaguaribana.
Dentre os efeitos causados pelos agrotóxicos podemos
apontar aneurotoxidade retardada, lesões no Sistema Nervoso
Central (SNC), redução de fertilidade, reações alérgicas,
formação de catarata, evidências de mutagenicidade, lesões no
fígado, efeitos teratogênicos, entre outros, compõem o quadro
de morbimortalidade dos expostos ao defensivo químico.
Porém os sintomas mais comuns são reações alérgicas na pele
e sistema respiratório, segundo o Diário (2004).
Não só a aplicação do produto traria problemas, mas a
ingestão de alimentos com excesso de agrotóxicos poderia
causar, após anos de consumo, mudanças no metabolismo do
organismo e no sistema nervoso, o que pode repercutir em
doenças como hepatite e até câncer.
O contato, sob diversas formas, da população do Vale do
Jaguaribe, especialmente Limoeiro do Norte e Quixeré, com
agrotóxicos tem “coincidido” em mudanças no quadro clínico
de muitas delas. No município de Limoeiro, o índice de mor-
talidade por neoplasias, o termo médico para câncer, está
aumentando cerca de 10% ao ano.
84 Maria Rosana da Costa Oliveira

O Médico e mestre em Saúde Comunitária Severino


Alexandre Ferreira, estudante do departamento de saúde
comunitária e integrante da pesquisa “Estudo Epidemiológico
da População da Região do Baixo Jaguaribe exposta à
contaminação ambiental em área de uso de agrotóxicos”,
realizou um estudo em Limoeiro do Norte no qual procura
detectar os principais agravos à saúde dos trabalhadores no
agronegócio do abacaxi. A partir de conversas e da coleta e
análise do sangue dos trabalhadores pôde constatar na sua
pesquisa inúmeros sintomas decorrentes do uso de agrotóxicos,
dentre eles, problemas hepáticos, dores de cabeça crônicos,
problemas respiratórios, alergias, causados na sua maioria
pela exposição dos trabalhadores aos agrotóxicos.
Em Tomé, o uso indiscriminado de agrotóxicos vem com-
prometendo a saúde humana não só na aplicação direta do
produto, mas também indiretamente com pela contaminação
do reservatório de água que abastece a região. A população
afirma que o canal está desprotegido e bastante vulnerável
a contaminação do produto que é pulverizado pelos aviões,
além das embalagens que são jogadas em pleno canal. Apesar
do pedido da comunidade junto ao Ministério Público Federal
nada foi feito ainda para resolver o problema.
Diante da problemática exposta, a pesquisa visa responder
os seguintes questionamentos:
Como as escolas no distrito de Tomé, tomando como re-
ferência a Escola Irene Nonato da Silva trabalha as questões
ambientais, principalmente os impactos provocados pela
Capítulo 4 85

utilização excessiva de defensivos agrícolas? Qual a relação


que eles têm em relação à proposta Educação ambiental?
Quais projetos estão sendo realizados pela escola? Quais as
concepções e práticas dos professores a cerca da EA? Como
os alunos percebem essas questões?

‘Vamos cuidar do Brasil com as escolas’ – Os projetos


ambientais da escola Irene Nonato da Silva

A escola Irene Nonato da Silva desenvolve vários projetos em


EA, a maioria, relacionados ao programa do Ministério da
Educação - MEC denominado “Vamos cuidar do Brasil com
as escolas” (BRASIL, 2007).
Os principais objetivos desse programa seriam: formar a
Comissão de meio ambiente e qualidade de vida (Com-vida)
na escola, organizar projetos voltados a temáticas do meio
ambiente, ressaltando os elementos (terra, fogo, água e ar),
além de construir a agenda 21 local.
A Com-vida consiste em uma comissão formada por
todos que fazem parte da comunidade escolar (estudantes,
professores, funcionários gerais, pais e/ou responsáveis
pelo(a) estudante) com o intuito de desenvolver projetos
na escola relacionados ao meio ambiente e qualidade de
vida da população, através desse programa o MEC pro-
põe-se a construir um processo permanente de educação
ambiental na escola, promovendo um intercambio entre
escola e comunidade.
86 Maria Rosana da Costa Oliveira

Uma das metas da Com-vida foi a elaboração da agenda


21 das escolas. Agenda 21, plano global que resultou em um
documento onde 179 países assumiram um compromisso em
cuidar melhor do planeta. Nas escolas esse documento ser-
ve para aproximar a escola da realidade local, construindo
projetos a partir dessa realidade e planejando o futuro de
forma sustentável.
A maioria dos projetos da escola estão relacionados à
disciplina de Educação Ambiental e Geografia. O que mais
nos chamou atenção foi o fato da EA ser trabalhada como
uma disciplina e não um tema transversal. Percebemos a
dificuldade de muitos professores em discutir a EA em sua
prática, até mesmo uma professora de Geografia se recusou
a responder a um questionário que tratava sobre o assunto
afirmando que ela não abordava EA em sala de aula, nem
mesmo de forma indireta.
Dentre os projetos realizados pela escola podemos citar:
O projeto Compete: Meio ambiente sem lixo, realizado no
ano de 2008. Esse projeto foi realizado em parceria com
a Coelce e focalizado na proposta “Vamos cuidar do Brasil
com as escolas”, o referido projeto teve como intuito fazer
uma conscientização da comunidade em relação ao lixo. As
atividades desenvolvidas foram o mutirão de limpeza, onde os
alunos saiam nas ruas e recolhiam as embalagens de garrafas,
sacos plásticos, e destinavam esses materiais aos recicladores.
Além disso, os alunos eram instigados a construírem poesias
e paródias com o tema.
Capítulo 4 87

Nosso planeta está poluído e desse jeito não faz sentido.


Tão derrubando mata no chão precisamos logo tomar
precaução. As grandes fábricas poluem o ar com fumaça
os agrotóxicos poluem ruas e praças. Já não se pode
respirar ar puro como é que vai ser nosso futuro? É
um vira e mexe você pode crer só estão pensando em
riqueza e poder. Nos rios os peixes se afogam no lixo,
por que a ganância já virou capricho. Está envenenada
a população, tem até veneno na alimentação, na terra o
veneno pulveriza o solo, veneno do alto vem de avião”
(ESCOLA IRENE NONATO DA SILVA, 2007).15

Percebemos que mesmo quando a escola discute um tema


específico, como o lixo, a paródia reafirma outros impactos
também presentes na região, o principal seria as consequências
negativas do uso de agrotóxicos pelas empresas de agronegócio,
talvez diante desses impactos, o lixo seja um problema pequeno.
Outro projeto desenvolvido pela escola também em 2008 foi
“Educação para a convivência com o semi-árido”, esse trabalho
consistiu em incentivar os alunos a conhecerem mais sobre
a região onde moram, os seus aspectos naturais e sociais.
Para isso foram realizadas pesquisas de campo, produção de
textos, exposição de cartazes e a criação do jornal estudantil
o qual abordava temas discutidos na escola.

15 Paródia elaborada pelos alunos.


88 Maria Rosana da Costa Oliveira

Ainda dentro da proposta “Vamos cuidar do Brasil: ter-


ra, fogo, água e ar. A escola realizou um trabalho este ano
sobre os agrotóxicos, nele foram feitas visitas ao canal de
abastecimento da região para verificar se havia presença de
embalagens de agrotóxicos. Foram realizadas também visitas
a pequenas empresas para que os alunos observassem como
funcionam os projetos de irrigação, visualizassem como se
dá a aplicação do produto e os problemas que eles trazem ao
meio ambiente se utilizados de forma exagerada.
Para finalizar esse trabalho, a escola organizou uma feira
sobre a poluição do meio ambiente, destacando a poluição da
água, do ar e do solo. Percebe-se que os projetos desenvol-
vidos pela escola têm uma relação direta com os impactos
causados pelo agrotóxico em Tomé, mesmo quando tratam de
questões como lixo e a água, o tema agrotóxico parece ser o
mais discutido pela escola.
Dentro do projeto foi construído a árvore dos sonhos e
o muro das lamentações, a árvore dos sonhos representa
os pontos positivos, ou seja, benéficos ao meio ambiente
de Tomé, já o muro das lamentações procura retratar os
pontos negativos da região. Entre os pontos positivos foram
destacados: adubação orgânica, frutas sem agrotóxicos,
saúde e paz. Entretanto, sobre os pontos negativos citaram:
desmatamentos, água inadequada para o consumo, excesso
de agrotóxicos, problemas como drogas e corrupção também
foram abordados.
Capítulo 4 89

Em meio a esses projetos, percebe-se o entendimento


do meio ambiente em sua totalidade, não só o ambiente
natural, mas também os aspectos sociais são levados em
conta. Ainda desenvolvido naquele mesmo ano, na época em
fase de conclusão podemos citar o PSE: Programa de Saúde
na Escola e o Agrinho em defesa da cidadania.
O Programa de Saúde na Escola (PSE) refere-se a uma proposta
de discussão sobre a alimentação saudável na escola, mais
uma vez o tema “agrotóxico” foi destacado. O projeto discutiu
a presença dos agrotóxicos nas frutas e verduras, contou com
a participação de uma nutricionista que buscou esclarecer os
malefícios que a alta concentração de agrotóxicos nos alimentos
pode causar a nossa saúde. Os resultados das discussões tidas ao
longo do projeto instrumentalizaram a Escola na participação
do pré-grito, em defesa de um ambiente mais saudável.
O pré-grito ocorreu no dia 16 de agosto na comunidade
Lagoinha, onde os alunos realizaram uma passeata, evento
que mobilizou as escolas Irene Nonato da Silva e a Escola
Raimundo Galdino do distrito de Tomé, além da comunida-
de em geral, no qual se mobilizaram por um ambiente mais
saudável. Segundo a coordenadora Gecilda, a partipação do
pré- grito foi mais focalizada nas escolas, contrário do grito
dos excluídos ocorrido no dia 7, onde segundo a coordenadora
a escola não participou por acreditar que esse movimento é
mais voltado à própria comunidade.
Na ocasião em que estávamos fazendo a pesquisa de
campo, a escola estava trabalhando com o projeto “Agrinho
90 Maria Rosana da Costa Oliveira

em defesa da cidadania”.O Programa Agrinho é um projeto


nacional que começou em 1996 com a preocupação de fornecer
informações que contribuíssem para a saúde da família rural
e a preservação do meio ambiente.
Na época priorizou-se a temática ambiental em decorrência
da necessidade de responder a um problema pontual de
extrema gravidade no meio rural: o da contaminação da
população por agrotóxicos.
Nesses nove anos de atividade o programa cresceu. Iniciou
como projeto piloto em cinco municípios. Hoje em dia são
quatro os temas abordados: Saúde, Meio Ambiente, Cidadania e
Trabalho e Consumo. São temas transversais que os professores
abordam dentro das disciplinas curriculares.
Na escola, esse projeto está inserido na disciplina de
Educação Ambiental da escola, ministrada pela professora
Rozalba Maria da Costa, o subtema escolhido pela escola foi
Educação e cultura na construção da cidadania. Este trabalho
tem como objetivo geral despertar no aluno o interesse
pelo conhecimento, a importância da educação e cultura na
construção da cidadania.
Segundo o projeto da escola, a consciência da cidadania faz
com que os alunos aprendam regras de convivência, saibam
seus direitos e os apliquem na sua comunidade.
Dentre as atividades a serem realizadas, podemos citar o
levantamento de dados dos alunos, visando saber se todos já
possuem documentos básicos como o registro de nascimento,
identidade, CPF e título de eleitor. Propõem-se também trabalhar
Capítulo 4 91

com textos, frases, poesias, paródias, dramatizações, direitos e


deveres presentes na declaração universal dos direitos humanos.
Ao analisarmos os projetos, percebemos um esforço da
escola Irene Nonato da Silva em discutir questões relacio-
nadas ao meio ambiente, discussões que envolvem não só
aspectos naturais, como os impactos decorrentes do uso de
agrotóxico, mas também temas relevantes como a cidadania,
os quais possibilitam aos alunos o conhecimento dos seus
direitos e deveres.

Conhecendo os estudantes de Tomé e as suas


percepções ambientais

Visando conhecer um pouco da realidade dos estudantes


da Escola Irene Nonato da Silva e as percepções diante dos
impactos ambientais encontrados em Tomé, aplicamos um
questionário no qual traziam variáveis como: local de nasci-
mento, localidade onde moram, profissões dos pais, além de
questões mais direcionadas ao conhecimento e percepção dos
alunos sobre os problemas ambientais da região.
Foram aplicados quarenta e seis questionários aos estudantes
das turmas de educação ambiental do turno da tarde. Analisando
os resultados, percebemos que grande parte dos estudantes
nasceu no município de Quixeré (52%), percebemos também
a presença de muitos alunos de outros municípios, dentre eles:
Limoeiro, Jaguaretama, Olho d’água e até mesmo Fortaleza.
92 Maria Rosana da Costa Oliveira

Apesar de muitos estudantes não terem nascido em Qui-


xeré, atualmente a maioria (70%) mora no distrito de Tomé,
somente (30%) moram em outras localidades, Lagoa da Casca,
Sítio Macacos, Carnaúbas, entre outras.
Dessa forma, acreditamos que é possível fazermos a análise
da percepção ambiental dos estudantes, entendendo ela como
sendo uma tomada de consciência do ambiente pelo homem,
ou seja, o ato de perceber o ambiente em que se está inserido,
conforme observa Tuan (1980).
Sobre a profissão dos pais 53% dos estudantes afirmaram
que os seus pais trabalham como agricultores, em plantações
de abacaxi, melão e banana, culturas presentes nas empresas
do agronegócio da região. Os outros 47% trabalham em outras
profissões, estão envolvidos em empregos como: vigilante,
ferreiro, caminhoneiro, auxiliar em depósito de construção,
apicultor e caseiro.
Uma das variáveis que chamou atenção foi à variável “em-
prego das mães”. Somente 22% trabalham como agricultoras,
predominando as donas de casa e profissões como: zeladora,
cozinheira, merendeira. Acreditamos que, vários são os fatores
que podem contribuir para a menor presença das mulheres
na agricultura como, por exemplo,o papel que elas exercem
na família ou talvez a própria aceitação desse gênero pelas
empresas de agronegócio, onde segundo depoimentos da co-
munidade há uma sobrecarga de trabalho que de certa forma
priorizam os homens para essa tarefa.
Capítulo 4 93

Embora mais da metade (52%) dos pais dos alunos traba-


lhem como agricultores, quase 90% dos estudantes relataram
que não ajudam seus pais na “roça”. O próprio termo roça
refere-se a terreno de pouca lavoura, principalmente voltado
a agricultura de subsistência, segundo afirma Ferreira (1989).
Em Tomé sabemos que a realidade não é essa, apesar dos
pais trabalharem como agricultores, a terra não pertence à
família, mas sim a empresa de agronegócio a qual estão su-
bordinados. Dessa forma acreditamos que não pode haver par-
ticipação da família no trato da terra sem haver a posse dela.
Procuramos avaliar como os alunos veem o envolvimento
dos professores, da escola, e o seu próprio envolvimento dian-
te das questões que afetam a região, para isso, perguntamos
aos estudantes se já haviam participado de alguma atividade
relacionada às questões ambientais de Tomé e onde (escola,
igreja, prefeitura ou outra). 84% responderam que já partici-
param de atividades, principalmente organizadas pela escola,
apenas 6% pela Igreja e o restante afirmou que participou de
alguns movimentos organizados pela comunidade.
Perguntamos aos alunos como os professores tratam o
tema agrotóxico em sala de aula, pois acreditamos que esse
tema pode ser relacionado a outros conteúdos que estão sendo
discutidos nas disciplinas de Ciências, Geografia, Educação
Ambiental e outras. Dessa forma, tornaria os debates sobre
“impactos ambientais” mais próximas dos alunos, tornando
as aulas mais participativas e dinâmicas. Nas respostas
os estudantes destacaram o interesse dos professores
94 Maria Rosana da Costa Oliveira

responsáveis pelas disciplinas de educação ambiental e


Geografia em abordar o tema agrotóxico, os perigos que
eles trazem a saúde sejam através dos alimentos, ou pela
pulverização aérea que polui o canal de abastecimento de
água da região. Os alunos também se referiram aos recursos
utilizados pelos professores para a explicação do tema,
citaram o uso de textos, trabalhos e vídeos.
Dentre as questões abordadas, os alunos citaram os proje-
tos desenvolvidos pela escola, além dos movimentos sociais, o
pré-grito, movimento que ocorreu no dia 16 de agosto, contou
com a presença da escola e comunidade, sendo uma anteci-
pação ao grito dos excluídos.
A partir das respostas pudemos observar um esforço da
escola em inserir os alunos nas discussões sobre os problemas
ambientais que enfrenta a região. Percebemos nas conver-
sas com o diretor, coordenadora, professores e alunos que
há um grande envolvimento da escola diante dos problemas
ambientais encontrados em Tomé. A escola organiza projetos
com temas baseados em situações concretas, os professores
afirmam que trabalham em sala de aula com essas questões
e os alunos parecem reconhecer esse esforço.

Analisando a percepção ambiental dos estudantes

Finalizamos o trabalho na Escola Irene Nonato em Tomé,


realizando uma atividade com os estudantes. O principal
objetivo desta atividade foi analisar a percepção ambiental
Capítulo 4 95

dos alunos diante dos problemas ambientais de Tomé. A pro-


posta foi sugerir aos estudantes que fizessem desenhos que
representassem o que eles acreditavam causar mais problemas
ambientais onde eles moram.
Assim, com a aplicação dos questionários identificamos
como os estudantes se relacionam com o seu ambiente, quais
os problemas verificados e a quem eles atribuem à degradação
e proteção do ambiente em que estão inseridos. Portanto, esses
desenhos representarão um diagnóstico sobre o conhecimento
ambiental dos alunos.
Como se tratam de alunos do ensino fundamental, procu-
ramos verificar a percepção ambiental de forma mais lúdica
utilizando materiais como: papel, canetinha, lápis de cor e
giz de cera para que os alunos elaborassem os seus desenhos.
No início alguns alunos fizeram resistência à atividade,
julgando ser muito infantil, desnecessária. Explicamos a im-
portância do poder da “expressão” que os alunos poderiam ter
através dos desenhos, e que eles seriam essenciais na análise
dos problemas ambientais de Tomé. Ao verificar os resultados,
procuramos extrair elementos nos desenhos dos alunos, que
talvez um questionário não pudesse trazer.
Os desenhos nos mostraram que os estudantes atribuem
a maioria dos problemas da região à utilização intensiva de
agrotóxico, seja na sua aplicação direta, trabalhador com o
produto, ou pelo ar, com os aviões. Dos quarenta e seis dese-
nhos, quarenta e cinco abordam problemas relacionados ao
uso de defensivos agrícolas, contaminação da água através
96 Maria Rosana da Costa Oliveira

do ar e das embalagens e o prejuízo à saúde da população de


Tomé pelo consumo da água poluída.
Em meio aos problemas relacionados ao uso dos agrotóxicos,
são abordados também problemas como os desmatamentos,
as queimadas e o lixo. O interessante é que os problemas
aparecem de forma relacionada, não são vistos pelos alunos
como impactos isolados e sim parte de uma cadeia que vem
prejudicando o meio ambiente de Tomé. Eis a seguir alguns
desenhos realizados pelos alunos:

Figura 2 - Percepção dos problemas ambientais da comunidade de tomé.

Fonte: (a) Antonio Mardonio Alves Lima


(b) Leidiane Carla Brito da Silva (2013).
Capítulo 4 97

Figura 3 - Percepção dos problemas ambientais da comunidade de tomé

Fonte: (a) Denilza Abrantes da Costa


(b) Antonio Auricélio Mendes Cunha (2013).

Podemos simplificar a cadeia trazida nos desenhos da


seguinte forma: a aplicação dos agrotóxicos pelos aviões → a
contaminação da água que abastece a região pelo produto e
pelas embalagens que são jogadas no canal → a poluição da
água resultando na mortandade de peixes que ali viviam e o
perigo da contaminação da população pelo uso.
Ao analisarmos os desenhos, percebemos que os estudan-
tes estão bastante informados sobre os impactos ambientais
presentes na região, principalmente o tema “agrotóxico”,
pois demonstraram através de seus desenhos os prejuízos
resultantes da aplicação do produto. Embora quase metade
(47%) dos estudantes não sejam filhos de agricultores, muitos
mostraram um conhecimento significativo sobre o assunto.
98 Maria Rosana da Costa Oliveira

Entendemos que os trabalhos que a escola desenvolve e as


discussões recorrentes na comunidade de Tomé sobre este tema
fazem com que os alunos tenham um conhecimento sobre as
consequências que a utilização abusiva de agrotóxicos pode
ter sobre o meio ambiente.

Considerações

A escola Irene Nonato da Silva é um exemplo de organização,


em meio às dificuldades estruturais, percebemos a forte
preocupação da escola em elaborar projetos, organizar ações
que discutam os problemas ambientais que afetam a região,
sendo na sua maioria relacionada às consequências do uso
do agrotóxico.
O desenvolvimento de projetos aliados à proposta do
Ministério da educação (BRASIL, 2007), “Vamos cuidar do
Brasil com as escolas”, aproxima os alunos das questões
ambientais, e os estudantes reconhecem o trabalho feito
pelos professores e pela escola, sendo um exemplo visível de
uma Educação Ambiental realizada na prática.
Ao ser realizado um intercambio entre escola e comunida-
de, a EA é conduzida verdadeiramente de maneira integrada.
Coadunando as forças sociais locais, a escola deixa de ser uma
instituição “neutra”, passando a ter um papel ativo dentro da
realidade onde ela está inserida. Desse modo, entendemos
que a escola pode e deve se aproximar das discussões feitas
pelos movimentos sociais.
Capítulo 4 99

Realizando uma práxis educativa transformadora e am-


bientalista, como menciona Loureiro (2004), uma vez que a
mesma estabelece uma educação ambiental contextualizada
e crítica, que explicite os problemas estruturais da comuni-
dade e as causas básicas do baixo padrão qualitativo de vida
da população de Tomé.
A educação ambiental na escola deve ser um meio pelo
qual não só os alunos, mas também a própria comunidade
seja conscientizada dos problemas que a região vem tendo,
conscientes não só para entenderem o problema, mas para
agirem contra eles.
Uma maior aproximação da escola com a comunidade
fortaleceria ainda mais a luta do distrito de Tomé contra os
impactos provenientes do agronegócio, consequentemente,
movimentos como grito dos excluídos seriam ainda mais
fortalecidos já que o diretor da escola, o Senhor Moacir, nos
afirmou que a escola não participou, pois o movimento pré-
grito foi mais direcionado as escolas e o grito dos excluídos
aos movimentos sociais.
Neste sentido, entendemos que assim como a Igreja, ONGs,
sindicatos, entre outros segmentos presentes e atuantes no
distrito de Tomé, a escola poderia também atuar como uma
instituição de luta e apoio a comunidade contra os problemas
ambientais decorrentes das empresas de agronegócio insta-
ladas na região. Assim, problemas como poluição do ar, água,
comprometimento da saúde da população seriam denunciados
e discutidos de forma conjunta.
100

Deste modo, concordamos com Gadotti & Gutierrez (1993)


quando afirmam que a escola é um importante motor de mu-
dança e que o seu trabalho deve ir além do espaço escolar,
não deve ser somente próxima dos alunos, mas também deve
está a serviço da comunidade no qual faz parte.
101

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105

CAPÍTULO З

PRÁTICAS INTERATIVAS E ENSINO DE LÍNGUA


PORTUGUESA NUM CONTEXTO CICLADO

Solange Alves de Oliveira-Mendes

Em decorrência do processo de transição do sistema seriado


para o sistema de ciclos de aprendizagem, a partir de 2001, a
Secretaria Municipal de Ensino de Recife (doravante, SMER)
passou a priorizar pressupostos teórico-metodológicos
orientadores de uma prática de ensino que considerasse as
diferentes demandas de aprendizagem dos educandos.
Nesse trabalho, nos propomos a analisar, a partir da lógica
de escolarização por ciclos de aprendizagem, se as práticas
vinham priorizando diferentes formas de interação nas aulas
de língua portuguesa, a fim de assegurar as aprendizagens
esperadas para cada ano do ciclo I.
106 Solange Alves de Oliveira-Mendes

Ciclos de aprendizagem, interação na sala de aula e


ensino de língua: eixos que se entrecruzam

É Sabido que a organização do ensino por ciclos integra uma


série de desdobramentos que culminam em várias propostas
as quais, embora sejam dotadas de determinadas especifi-
cidades, comungam de uma concepção de organização do
ensino que assegure a continuidade das aprendizagens, a
flexibilização do currículo, a ampliação do tempo de apren-
dizagem, entre outros aspectos.
Mainardes (2007b) pontua que foi a partir da década de
1980 que houve uma contribuição mais significativa da litera-
tura acerca da organização dos sistemas de ensino por ciclos
e seus desdobramentos.
De acordo com Fernandes (2009, p. 85), a proposta dos
ciclos “pressupõe a ruptura com a ideia de uma programa-
ção ou planejamento de atividades curriculares anuais, sob
a qual todos os estudantes deveriam ‘dar conta’, ao final de
um único ano letivo, de forma mais ou menos homogênea”.
Entretanto, Mainardes (2007b, p. 117) realça que a “mera
expansão do tempo não significa a solução do problema da
aprendizagem dos alunos e elevação da qualidade da escola”.
O autor segue enfatizando que a implantação dessa propos-
ta precisa ser conjugada com uma mudança, revisão nas
“concepções de conteúdos, metodologias e gestão da escola”
(MAINARDES, 2007b, p. 117).
Capítulo 5 107

Segundo o documento: “Ciclos de aprendizagem e organiza-


ção escolar”, produzido em 2001 (PCR, 2001), a rede municipal
de ensino de Recife fez a escolha pela substituição do ensino
fundamental em séries por sua estruturação em quatro ciclos:
o primeiro com duração de três anos e os subsequentes com
dois anos. Dessa forma, além de ampliar para nove anos de
duração o ensino fundamental, aquela rede, diante do desafio
a que todos os sistemas públicos de ensino estão submetidos,
pretendia enfrentar o quadro alarmante que estava instalado
na educação escolar: a repetência.
Essa e outras experiências, vivenciadas no cenário
brasileiro, nas últimas décadas, apontam para a relevância de
analisarmos a proposta dos ciclos em articulação com formas de
operacionalização do ensino, a fim de apreendermos algumas
das implicações desse modelo nas práticas pedagógicas.
Estariam as práticas favorecendo maior interação na sala de
aula, frente às atividades propostas, objetivando assegurar
as aprendizagens esperadas?
Como já dito anteriormente, um dos desafios postos pela
escolarização ciclada é a inserção dos aprendizes nas situa-
ções de ensino, intentando-se assegurar a aprendizagem de
todos, conforme Mainardes (2009a; 2009b; 2007a; 2007b;
2001) e Lüdke (2001).
Nesse estágio de nossa sistematização, cabe considerar al-
guns aspectos que permitiriam maior alcance daquele objetivo,
recorrendo à discussão da interação professor-aluno na sala de
aula, tomando como referência o que apontam Coll e Solé (1996).
108 Solange Alves de Oliveira-Mendes

De acordo com esses autores, anterior à década de 1950 essa


análise não se constituiu numa prioridade a ser perseguida nem
pelos pesquisadores da área, nem tampouco pelos sujeitos pro-
tagonistas do processo educativo.
Os autores trazem à tona a defesa de conferir atenção
não só para o processo de interação, mas, também, para os
diversos fatores contextuais que convergiriam com essa pers-
pectiva. Passou-se, a partir de então, “a valorizar a atividade
construtiva do aluno, o papel atribuído ao professor e, mais,
a consideração da estrutura comunicativa do discurso edu-
cacional” (COLL; SOLÉ, 1996, p. 287). Com isso, atribuiu-se
maior relevância aos ajustes que o professor precisava lançar
mão no ensino prestado, a fim de minimizar as dificuldades
dos alunos. Esse é, em nossa compreensão, um pressuposto
claramente defendido numa escolarização por ciclos, conforme
sinalizam Alavarse (2009) e Mainardes (2001).
Em se tratando do ensino de língua, sublinhamos que a
partir das décadas de 1980 e 1990, as discussões e concepções
de alfabetização se ampliaram, desencadeando uma reflexão
sobre os usos e práticas da leitura e da escrita na escola.
Segundo Soares (1998, p. 58), migrou-se “do saber ler e escrever
em direção ao ser capaz de fazer uso da leitura e da escrita”.
Com isso, gradativamente, o conceito de alfabetização vem
sendo articulado ao de letramento.
Assumindo a concepção de alfabetizar numa perspectiva
para o letramento, defendemos, no 1º ciclo, a articulação do
ensino e do aprendizado do sistema de notação alfabética
Capítulo 5 109

(SNA) aos eixos de leitura, compreensão e produção textuais.


Conforme apontam Maciel e Lúcio (2008), essa nos parece,
primeiramente, uma opção política.
Ao priorizar, nas aulas de língua, a interpretação e a
produção textual, questões como: “quem escreve e em que
situação escreve? O que se escreve e a quem o texto se dirige?”
são suscitadas, no ato daquelas práticas.
Os encaminhamentos didáticos, bem como as intervenções
realizadas pelas professoras expressam a articulação (ou não)
com as diversas possibilidades de cooperação em sala de aula.
Analisar esse aspecto no contexto do ensino de língua e dos
ciclos de aprendizagem é o objetivo desse trabalho.

Encaminhamentos e instrumentos adotados na pesquisa

Realizamos um estudo transversal, no qual acompanhamos


a prática de nove professoras, dos três anos do 1º ciclo, de
três instituições da Rede Municipal de Ensino de Recife, du-
rante um semestre letivo. Realizamos, em cada turma, oito
observações, totalizando 72 protocolos. Ao final do ano letivo,
entrevistamos cada uma das docentes.
As práticas pedagógicas, ora tratadas, estão ancoradas em
vários eixos de ensino de língua. Para o presente trabalho, nos
propomos a analisar algumas das modalidades de cooperação
adotadas em sala de aula nas atividades de Língua Portuguesa.
Recorremos, para o tratamento de nossos dados, à análise
de conteúdo temática Bardin (1977), utilizando as seguintes
110 Solange Alves de Oliveira-Mendes

etapas sugeridas pela autora: pré-análise, análise do material


(codificação e categorização da informação) e tratamento dos
resultados, inferência e interpretação.

Alguns resultados

Nesse trabalho, priorizamos a discussão da presença (ou não)


de cooperação entre as professoras e os alunos, assim como
entre eles, nas diversas proposições de atividades vinculadas
aos eixos de ensino de língua.
No universo dos dados obtidos, verificamos que houve
predominância de uma prática pautada na cooperação entre
as turmas de primeiro e terceiro anos, se comparadas às do
segundo. Esse trabalho implicou numa visível prioridade à
explicação prévia das atividades propostas. Se, por um lado,
apreendemos um espaço dado pelas mestras às contribuições
dos educandos com e sem dificuldades de aprendizagem,
resguardadas algumas exceções, por outro, não registramos
uma frequência significativa de disputas dos educandos por
participarem efetivamente das aulas.
No conjunto das observações, não registramos uma preo-
cupação das mestras em autorizar a contribuição dos alunos
mais avançados para o aprendizado aos colegas em dificul-
dades. Do mesmo modo, poucas foram as intervenções que
aqueles deram a esses últimos, ao optarem pela transgressão
das normas estabelecidas pelas professoras.
Capítulo 5 111

Considerando o universo das práticas acompanhadas, a


predominância (ou não) de um trabalho cooperativo da mestra
com o grupo-classe, identificamos, de imediato, uma postura
semelhante por parte das professoras do primeiro e terceiro
anos da escola A, no que se refere a esse aspecto.
Em sete das oito aulas observadas, verificamos a presença
de algum tipo de cooperação, no decorrer das atividades
propostas. Vale ressaltar, entretanto, nas duas turmas, que
prevaleceram as interações entre as mestras e o grupo-classe,
se compararmos ao alcance das trocas entre os próprios alunos.
Acreditamos que esse dado estava vinculado, também, ao
que se priorizava, já que, a nosso ver, as atividades pareciam
sinalizar para opções de determinados encaminhamentos
adotados em sala de aula, que privilegiavam aquela modalidade
de interação predominante. A fim de embasar essa hipótese,
salientamos que, nas duas turmas, houve dominância de
tarefas individuais e coletivas, se contrastadas às atividades
em duplas e/ou em pequenos grupos.
A despeito desse assunto, Coll e Colomina (1996, p. 298)
apontam que “a predominância dessas relações estabelecidas
entre professor e alunos desencadeou, por um longo tempo,
um real desinteresse pelas interações entre os alunos, assim
como pelas implicações que essas últimas assumiam quanto
aos resultados dos objetivos educativos”.
Parece coerente apontar que essa modalidade de coopera-
ção (professora-alunos), no exemplo do primeiro ano da escola
anteriormente referida, atingia, de forma mais sistemática,
112 Solange Alves de Oliveira-Mendes

o grupo de aprendizes que se destacava no acompanhamento


das atividades sugeridas pela professora.
Entendemos que a ausência de inserção dos alunos dessa
turma (1º ano da escola A), em sua maioria, na realização da
atividade proposta na quinta observação, cujo enfoque foi
o sistema de notação alfabética, após leitura de texto pela
professora, mobilizou essa profissional a impor outra tarefa
que, do ponto de vista de sua operacionalização, funcionou
como mecanismo de controle, mesmo que provisório, do com-
portamento dos aprendizes: o ditado de palavras. Essa opção
corrobora com o que assinala Perrenoud (1994, p.122) ao
enfatizar que “as tarefas consignadas aos alunos resultam,
essencialmente, de uma lógica de controle”. Embora a pro-
fessora reconhecesse a não-conclusão da tarefa precedente
por parte deles, recorreu a essa alternativa.
Em alguns momentos, os próprios educandos, burlando
as regras da tarefa, ajudavam-se entre si. Essa alternativa
reflete o que Perrenoud (1994, p. 122) sublinhou quanto às
estratégias16 defensivas adotadas pelos educandos, a fim de
“jogarem com e não agirem conforme as regras”. Um exemplo
de ajuda ao colega ocorreu durante a escrita das palavras “anta
e canta” em que um dos alunos admitiu não saber grafá-las e,
de imediato, o outro realizou a partição oral da palavra em
letras, com o intuito de cooperar.

16 O sentido atribuído à “estratégia” aqui se assemelha ao conceito de “tática”


desenvolvido por Certeau (1985).
Capítulo 5 113

O tempo disponibilizado para a conclusão das atividades,


durante as aulas acompanhadas, era insuficiente. Diante das
limitantes condições de produção, os aprendizes costumavam
aguardar o momento da correção, a fim de copiar as palavras,
as respostas, visto que a mestra, habitualmente, corrigia as
atividades no quadro. Ao mesmo tempo em que essa revelou
ser uma tática constante, por parte de alguns aprendizes,
conforme realça Certeau (1994; 1985), a mestra parecia ter
clareza de que /essa realidade estava presente, entretanto, não
demonstrava incômodo em intervir, dada à baixa expectativa
que ela parecia ter quanto à aprendizagem de alguns alunos,
especialmente os que apresentavam dificuldades.
Remetendo-nos à turma do terceiro ano, da mesma insti-
tuição (escola A), assinalamos que, ao contrário do primeiro
ano, a professora buscava encaminhar as atividades objeti-
vando a inserção de todos os aprendizes em sua realização.
Tratava-se de um grupo de alunos com histórico de retenção,
de uma evidente dispersão na sala de aula. Por vezes, reco-
nhecemos o esforço da mestra em inseri-los, mesmo que, para
isso, houvesse uma flexibilidade tal, que comprometesse o
objetivo da tarefa.
Um exemplo desse procedimento ocorreu na primeira
observação de aula em que a mestra enfocou o tema: folclore.
O objetivo inicial, com o uso do dicionário, foi assegurar a
exploração da ordem alfabética, localizando a palavra folclore.
Entretanto, após várias tentativas, a mestra percebeu que
poucos alunos localizaram. Com isso, rompeu com o objetivo
114 Solange Alves de Oliveira-Mendes

inicial e apontou, oralmente, a página em que a palavra se


encontrava. Assim, ficou fácil dar conta da outra etapa da
atividade: copiar no caderno o significado da palavra enfocada.
Reportando-se à ferramenta didática phono voltada ao de-
senvolvimento de competências fonológicas na grande section17,
Goigoux (2003) destaca que é crucial o desenvolvimento de
uma planificação do ensino, ou seja, entre outros critérios, o
autor defende, no planejamento, a antecipação das operações
intelectuais a serem mobilizadas pelos educandos durante a
atividade. Conforme observamos na prática da professora do
terceiro ano da escola A, naquela aula em específico, houve
uma ruptura nesse processo que, na nossa compreensão, com-
prometeu não só o objetivo da atividade, quanto o resultado
alcançado pelos alunos.
Em se tratando da mesma professora, admitimos a rele-
vância de tentar inserir alunos que não tinham autonomia,
ainda, na leitura de textos, enunciados; na atividade men-
cionada anteriormente. Essa foi uma postura mantida ao
longo das observações. Embora recorresse à participação dos
educandos que demonstravam um nível avançado quanto ao
desempenho nas atividades que envolviam os diversos eixos
de ensino de língua, buscava, de início, engajar aqueles que,
visivelmente, tinham dificuldades.
Diferentemente das professoras anteriormente menciona-
das, não verificamos, no caso da mestra do segundo ano da

17 A “grande seção” é o último ano da educação infantil na França.


Capítulo 5 115

escola A, esse trabalho de cooperação, por ocasião das obser-


vações. As atividades sempre eram realizadas com intervalos
curtos e, assim como no caso das professoras do primeiro e
terceiro anos, privilegiou-se a correção coletiva.
No que se refere ao trabalho cooperativo na escola B, realçamos
que houve semelhança com a escola A nas formas de proceder das
professoras do primeiro e terceiro anos. Elas buscavam inserir
os educandos nas atividades, de modo a assegurar a participação
efetiva de todos, em todas as aulas observadas, reconhecendo,
claro, as especificidades dos anos-ciclo.
Ao contrário do primeiro e terceiro anos dessa escola,
identificamos no segundo ano da escola B uma tímida, mas
real diferença de predominância de um trabalho não coope-
rativo em cinco das oito aulas acompanhadas. No caso desse
ano/turma, notamos, de início, uma evidente preocupação em
dar continuidade a um trabalho de reescrita de contos, o qual
já vinha sendo realizado desde o final do primeiro semestre.
Porém, na medida em que avançávamos nas observações,
notamos um “descompromisso”, por parte da professora, em
planejar, inserir os educandos na dinâmica das atividades.
Na Escola C, somente a professora do primeiro ano
conseguiu estabelecer, em todas as aulas observadas, uma
prática de cooperação com os alunos, conforme realçam Coll e
Solé (1996). Em alguns momentos, inclusive, agrupava-os por
níveis de escrita, a fim de melhor propiciar a aprendizagem,
segundo destaca Oliveira (2006; 2004). A atividade de
cruzadinha com e sem o banco de palavras, expressou um
116 Solange Alves de Oliveira-Mendes

pouco essa preocupação da mestra com a inserção de todos


os alunos. Nessa turma, apesar de alguns destaques quanto
à leitura e escrita de palavras e até de textos, nesse último
caso, dominado por um grupo minoritário, em momento
algum a professora sinalizou para um prediletismo para
com alguns dos educandos. Algo curioso, que ocorreu nessa
turma, foram as escassas oportunidades que eles tiveram
de registrar a atividade no caderno, já que, geralmente,
a mestra recorria a tarefas mimeografadas ou fazia as
tarefas oralmente.
Na nossa compreensão, a atitude de explicar previamente as
atividades propostas indicava a preocupação das professoras
em inserir os aprendizes na operacionalização das mesmas.
No conjunto das aulas observadas, apreendemos, majorita-
riamente, um investimento, por parte daquelas profissionais,
nesse aspecto. Esse procedimento tendia a ser conjugado
com a leitura dos enunciados, nos terceiros anos.Apenas nas
turmas do segundo e terceiro anos da escola C, em uma oca-
sião, não verificamos a garantia da explicação das tarefas a
serem realizadas.
Ao analisarmos se as mestras oportunizavam aos alunos
mais avançados darem suas contribuições durante as aulas,
chamou-nos a atenção a ausência dessa preocupação por parte
da professora do segundo ano da escola A. Nessa turma espe-
cífica, o contrário também se aplicou, ou seja, o espaço para
os alunos com dificuldades de aprendizagem participarem da
aula também não foi priorizado.
Capítulo 5 117

Em geral, houve um equilíbrio quanto ao espaço dado


para os alunos com real avanço no aprendizado e aqueles que
tinham dificuldades de participarem das aulas. Apenas nas
turmas de primeiro e segundo anos da escola A, as mestras
não priorizaram a participação daqueles que demonstravam
visíveis dificuldades no aprendizado. No caso da primeira
turma, o “prediletismo” por alguns alunos predominou. Já
no segundo ano, a mestra não contemplou esse procedimento
para nenhum dos grupos de alunos. Costumava direcionar,
monopolizar as leituras e individualizar a compreensão e
produção escrita. Nos raros momentos em que permitia a cola-
boração deles, demonstrou controlar de maneira exacerbada,
a exemplo da leitura alternada. Corrigia-os constantemente,
além de tratá-los de forma pejorativa, chamando-os de “bebê”,
nas ocasiões em que tentavam burlar as regras estabelecidas
por ela, segundo corrobora Certeau (1994).
No conjunto das observações, verificamos uma baixa
frequência de disputas entre os alunos por participarem das
aulas. Em geral, como já fora realçado, esperava-se a resolução
das tarefas pelas mestras ou os aprendizes costumavam
participar da resolução coletivamente. No entanto, a participação
individual era quase que imposta por algumas professoras que
tinham o anseio de assegurar a participação de seus alunos na
aula. Havia, sim, em alguns casos, como na turma da professora
do segundo da escola A, coerção para prender a atenção dos
alunos. Contudo, não havia a preocupação em estimulá-los, por
si próprios, a participarem da aula. O curioso foi que, mesmo
118 Solange Alves de Oliveira-Mendes

com esse traço da professora, verificamos, em duas das oito


aulas observadas, tentativas de disputas entre os aprendizes,
na intenção de se inserirem na aula.
Passando a focar, especificamente, a preocupação das
mestras em oportunizar as interações entre os alunos com
bom nível de aprendizagem e aqueles que estavam em “des-
vantagem” no aprendizado, apontamos que na escola A houve
apenas uma aula em que a professora do primeiro ano via-
bilizou tal procedimento, assim como em três das oito aulas
observadas no terceiro ano da mesma instituição.
No que diz respeito à escola B, localizamos, em duas das
oito aulas observadas no primeiro ano, a autorização da mestra
para dispensar ajuda ao colega em dificuldade; uma aula no
segundo e duas no terceiro ano dessa mesma escola. No caso
da segunda observação do terceiro ano, a mestra solicitou
a escrita de uma propaganda, explorando previamente as
características desse gênero textual. Alguns alunos, espon-
taneamente, organizaram-se em duplas e interagiram entre
si, na presença da professora. A maioria, mesmo organizada
em duplas, produzia individualmente, sem estabelecer trocas.
Mas o que interessa destacar foi o fato de as trocas ocorrerem
com a permissão da professora. No exemplo de uma das aulas
do primeiro ano dessa instituição, no momento da escrita de
uma mensagem para os pais, a mestra autorizou a ajuda entre
os alunos na escrita das palavras “pai ou papai”: “vocês vão
escrever sozinhos, um pode ajudar o outro, mas ajudar não é
fazer pelo outro não”.
Capítulo 5 119

Ao nos remetermos à escola C, localizamos ajuda ao co-


lega com autorização da professora em duas das oito aulas
observadas no primeiro ano; em quatro no segundo e apenas
uma no terceiro ano. Em uma das aulas do segundo ano, o
aluno leu um enunciado referente à compreensão escrita de
um texto, a fim de ajudar seu colega, na presença da pro-
fessora. No caso do terceiro ano, a dúvida foi na escrita da
palavra “jardim”, em que um dos educandos confirmou que
se escrevia com a letra “J”.
É importante destacar, por outro lado, a ausência de uma
atitude sistemática, por parte dos aprendizes, em burlar as
regras, a fi m de ajudar o colega com dificuldade, confor-
me ressaltam Perrenoud (1994) e Certeau (1994; 1985). No
universo das três escolas, não verificamos uma frequência
significativa desse procedimento, apenas no segundo ano da
escola C, os alunos recorreram a essa alternativa em três
das oito aulas acompanhadas.
Em uma das aulas daquela turma, a mestra desenvolvia
um trabalho semelhante ao primeiro ano da mesma escola,
dado que se tratava de um projeto articulado em torno do
tema “frevo”. Enquanto passava uma música, escolhia alguns
trechos e parava. A tarefa dos alunos era circular, identificar
a última palavra e circular. Uma das alunas ajudou seu colega
que estava com dificuldades em identificar a palavra “segura”,
sem que a mestra autorizasse.
A professora do primeiro ano da escola C propôs uma
atividade com “cruzadinha”, agrupando os alunos por níveis
120 Solange Alves de Oliveira-Mendes

de escrita. Os que estavam em estágios mais avançados na


escrita, não tinham como apoio o banco de palavras. A orien-
tação da mestra era de que não ajudassem os colegas, mas os
deixassem refletir individualmente, porém, uma das alunas
prestou ajuda, sem que a mestra percebesse, na grafia da
palavra “anjo”. Esta intervenção corrobora com o que aponta
Perrenoud (1994, p. 122) acerca do “jogar com e não confor-
me as regras”. O problema foi que deu a informação errada,
já que afirmou que “anjo” se escrevia com a letra “g”. Nesse
caso, como a professora não tomou conhecimento, nenhuma
intervenção foi realizada.
Surpreendentemente, em uma das aulas da professora do
segundo ano da escola A, dois alunos conseguiram interagir,
sem que a mestra percebesse. Tratava-se da partição escrita
de algumas palavras em sílabas. Enquanto um dos alunos
afirmou que a palavra “boi” não se separava, o outro declarou
que somente o “i” constituía uma sílaba. Tudo isso transcorreu
sem que a mestra percebesse.
A seguir, algumas pontuações finais.

Considerações

Ao retomarmos os dados reveladores da presença ou au-


sência de uma prática de cooperação nas aulas observadas,
sublinhamos que não houve uma homogeneidade quanto a
esse aspecto no universo das três escolas. Se, por um lado,
as professoras dos primeiro e segundo anos das escolas A e
Capítulo 5 121

B optaram por esse encaminhamento, no caso da escola C,


houve proximidades das turmas de segundo e terceiro anos.
As escolhas didáticas e pedagógicas variavam, como vimos,
ao longo da análise.
Em quatro das nove turmas acompanhadas, resguardadas
as especificidades de cada uma, observamos um tipo de en-
caminhamento que, na nossa compreensão, pouco ajudou os
educandos a desenvolverem uma atitude reflexiva e compro-
missada diante das atividades propostas. Tratou-se das tarefas
aligeiradas como o ditado, em que a maioria dos aprendizes,
que não se ajustava ao ritmo da mestra, esperava as respostas
no quadro. O mais grave foi que esse procedimento ocorreu
com a concordância, não declarada, das professoras. Esse
dado nos ajuda a entender, concretamente, que o atendimento
à diversidade, sem um planejamento específico que atenda às
reais necessidades dos educandos, pode comprometer mais
ainda seu aprendizado.
Ao nos reportarmos à prática de um planejamento prévio,
observamos que quatro das nove professoras demonstravam
planejar sistematicamente. Nas outras turmas, vimos
que essa prática parecia ter sido contemplada algumas
vezes, limitando-se, em alguns casos, à escolha do texto
a ser lido. Essa última opção se distancia da concepção
defendida por Leal (2009).
Por fi m, acreditamos que, em função da predominância
das formas de cooperação terem sido mais presentes partindo
da professora para com o grupo-classe, não verificamos um
122

investimento significativo, por parte das mestras, quanto


às oportunidades de interação entre os alunos com diversos
níveis de aprendizagem. Cremos que, por esse motivo, houve
uma tímida colaboração das crianças com bom ou médio
desempenho no aprendizado dos colegas com dificuldades
de aprendizagem.
123

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127

CAPÍTULO И

OS SABERES E AS PRÁTICAS DE UMA PROFESSORA


ALFABETIZADORA: O ATENDIMENTO À HETEROGE-
NEIDADE DE CONHECIMENTOS

Nayanne Nayara Torres da Silva


Alexsandro da Silva

A presente pesquisa ocorreu no âmbito das discussões sobre


saberes e práticas de professores alfabetizadores, enfocando o
atendimento à heterogeneidade de conhecimentos dos alunos sobre
a leitura e a escrita. Embora a apropriação da leitura e da escrita
comece antes mesmo de a criança entrar no universo da escola,
uma vez que esses processos de aprendizagem têm uma origem
extraescolar, é na escola que ocorre a formação institucionalizada
e o ensino sistemático da leitura e da escrita. É com o domínio da
escrita que o sujeito consegue se incluir de maneira mais plena
na cultura letrada. Nessa perspectiva, destacamos o papel da
escola enquanto formadora de sujeitos capazes de se relacionar
com o mundo letrado de maneira autônoma.
Desse modo, o domínio da escrita alfabética é um aspecto
indispensável para participação efetiva nas práticas de leitura
e escrita desenvolvidas na sociedade em que vivemos. Isso
nos leva a pensar em um ensino pautado na perspectiva do
128 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

alfabetizar letrando, que, conforme defende Soares (2006),


propõe, desde a escolarização inicial, a realização de ativida-
des que enfoquem tanto a apropriação do sistema alfabético
quanto a assimilação dos usos e funções sociais da escrita.
O surgimento dessa perspectiva teve um significativo
impacto no conceito de alfabetização. Não cabia mais a pers-
pectiva de que para ser alfabetizado os sujeitos precisariam
apenas saber ler e escrever em seu sentido mais restrito,
sendo, então, necessário inserir esses sujeitos em práticas
que contemplassem os usos sociais da leitura e da escrita.
Isso nos leva a perceber que o campo da alfabetização vem,
desde a década de 1980, rompendo com a visão associacionis-
ta/empirista de alfabetização, na qual o educando é colocado
na posição de mero receptor de um código, como fazem os
métodos tradicionais de alfabetização.
Contudo, apesar de novas teorias terem passado a perme-
ar o campo da alfabetização, como também ampliado esse
conceito, é possível perceber, nos dias atuais, a tentativa de
volta a alguns métodos tradicionais de alfabetização, com o
argumento de que estes seriam a salvação para o atual fra-
casso vivenciado nessa área.
Em outras palavras, vivemos um período em que convivem,
simultaneamente, as perspectivas do construtivismo e do le-
tramento para a alfabetização e as propostas de retorno aos
métodos tradicionais, especialmente do método fônico. Em
meio a todas essas discussões e conceitualizações, encontra-se
o professor, que (re)inventa os seus saberes e as suas práticas
Capítulo 6 129

alfabetizadoras cotidianamente, com vistas a contemplar as


diferentes necessidades de seus alunos em sala de aula.
É necessário enfatizar que as ações docentes se desenvolvem
em ambientes permeados de heterogeneidade. São múltiplos
os conhecimentos, percursos e níveis de aprendizagem
que se fazem presentes tanto nas turmas de alfabetização,
como também em turmas de qualquer outro nível de ensino,
tendo o professor o desafio de lidar com esses fenômenos,
elaborando procedimentos de ensino que contemplem tal
heterogeneidade. Além disso, a recente implementação da
proposta de ciclos, que, no caso da alfabetização, amplia para
três anos o tempo destinado à apropriação e consolidação
do sistema de escrita alfabética (doravante SEA), prima pelo
atendimento à heterogeneidade.
Por acreditarmos que contemplar esses aspectos nas prá-
ticas de ensino não constitui tarefa fácil, desenvolvemos uma
pesquisa que visou investigar como uma professora do 1º
ano do Ensino Fundamental concebia e praticava o ensino de
alfabetização em meio à heterogeneidade de conhecimentos
sobre a leitura e a escrita apresentada pelos alunos.

Discussão teórica

Ao propormos uma abordagem acerca dos saberes e das práticas


docentes no tratamento da heterogeneidade de conhecimentos
sobre a leitura e a escrita dos alunos, faz-se necessário
traçarmos uma discussão que aponte as possibilidades de
130 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

ações docentes para condução desse fenômeno. Para isso,


traçamos, inicialmente, uma discussão com vistas a elucidar
a relação entre as práticas de alfabetização e a consequente
atenção, ou não, à heterogeneidade de conhecimentos sobre
a leitura e a escrita dos alunos. Em um segundo momento,
discutiremos sobre os saberes docentes e as práticas que são
mobilizados na condução dessas ações.

Concepções e práticas de alfabetização e suas


implicações no tratamento da heterogeneidade de
conhecimentos dos aprendizes

Ao considerarmos que a apropriação da escrita alfabética e


de suas convenções é algo que exige, tanto do alfabetizador
quanto do alfabetizando, o desenvolvimento de um trabalho
sistemático, entendemos que a alfabetização não se processa,
via de regra, de forma espontânea, sendo necessário, portanto,
o desenvolvimento de um ensino contínuo e progressivo
dos princípios do sistema de escrita alfabética. Para isso,
o professor deverá desenvolver práticas adequadas a esse
ensino, escolher e reconstruir, dentre os muitos “modelos”
de alfabetização, aqueles que considera mais pertinentes à
sua turma e ao contexto no qual atua.
No decorrer da história da alfabetização, dois grandes
grupos de métodos apresentaram-se de maneira hegemôni-
ca: os sintéticos (soletração, silabação e método fônico), que
partiam das unidades menores da língua (letra, sílaba ou
Capítulo 6 131

fonema), e os analíticos (palavração, sentenciação e método


de contos), que iniciavam o processo de alfabetização a partir
das análises das unidades maiores (palavra, frase ou texto),
conforme ressalta Carvalho (2008). Embora tivessem pontos
de partida diferentes, esses grupos não se diferenciavam
quanto à maneira de perceber a alfabetização, que era vista
como um código a ser memorizado pelos alunos.
Além desses métodos, outro modelo também se fez presente
no processo histórico da alfabetização. Não se tratava, porém,
de algo totalmente diferente, mas, sim, de uma combinação
entre os métodos já existentes, a qual ficou conhecida como
método misto ou eclético (analítico-sintéticos ou vice-versa).
Entretanto, é notório que a sucessão de métodos não deixou
de tratar a alfabetização enquanto um código e que as mu-
danças que aconteciam se davam essencialmente em relação
à unidade linguística a ser priorizada. Com isso, podemos
inferir que a maneira de compreender o processo de alfabe-
tização continuava a mesma.
Isso nos leva a perceber que os métodos tradicionais
de alfabetização, ao considerarem a escrita enquanto um
código, acreditavam que a memorização seria suficiente para
o aprendiz se alfabetizar, desconsiderando a necessidade de
levá-lo a compreender o funcionamento da escrita alfabética.
Se não há necessidade de refletir sobre o sistema de escrita,
também não haveria, então, necessidade de propor atividades
diferenciadas que considerassem os diferentes conhecimentos
dos aprendizes. Diante disso, a proposição de atividades
132 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

padronizadas, coletivas e com muita repetição bastariam


para levar os alunos, tratados enquanto sujeitos homogêneos,
à memorização do código.
Se essa concepção tradicional de ensino não está preocupada
com a heterogeneidade de conhecimentos dos aprendizes,
podemos dizer que as concepções “mais recentes” de
alfabetização começaram a abrir espaço para percepção desse
fenômeno. Foram, sobretudo com os estudos da Psicogênese
da escrita, de Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1999) que o
alfabetizando passou a ser percebido em sua singularidade.
É no início da década de 1980 que a tradição metodológica
típica dos métodos tradicionais começa a ser questionada,
pois é a época em que começam a se disseminar no cenário
brasileiro os estudos sobre a Psicogênese da escrita. A partir
de então, pensar meramente em métodos de alfabetização
passa ser considerado algo tradicional, e, por esse motivo,
inicia-se uma revolução conceitual acerca da alfabetização,
sendo o foco da investigação transferida, conforme esclarece
Ferreiro (2001), do como se ensina para o como se aprende.
Com essa transferência de foco, o aprendiz vai sendo colocado
numa posição de destaque e as maneiras como aprende, que são as
mais diversas possíveis, assumem um papel central no processo
de alfabetização, uma vez que a aprendizagem do SEA acontece,
conforme evidencia a teoria da Psicogênese, de forma gradativa e
evolutiva. Nessa perspectiva, o professor teria como uma de suas
atribuições a atenção às diferenças entre os alunos, que apresentam
diferentes conhecimentos e percursos de aprendizagem.
Capítulo 6 133

Assim, a diferenciação do ensino entra em cena e as práticas


voltadas a atender as necessidades dos aprendizes ganham uma
atenção especial. Conforme expõe Perrenoud (2001), embora
o professor enfrente diferentes obstáculos nesse processo de
diferenciação, como a limitação do horário escolar, o número
de alunos em cada classe, as dificuldades para desenvolver
atividades de níveis e conteúdos diferentes na sala de aula, a
diferenciação é possível, até porque

nenhum professor, por menos que se preocupe com a


diferenciação, pode oferecer um ensino totalmente uni-
forme: ele não tem o mesmo relacionamento com todos
os alunos, não intervém com cada um pelos mesmos
motivos, de uma maneira idêntica [...] (PERRENOUD,
2001, p. 49).

Os saberes e as práticas dos professores

Em todas as práticas desenvolvidas pelo professor no espaço


da sala de aula, são mobilizados saberes construídos no de-
correr do tempo e da carreira profissional docente. Conforme
esclarece Tardif (2008), tais saberes podem ser oriundos
do seu processo formativo, por meio das contínuas trocas e
interações ocorridas no processo de socialização profissio-
nal e do seu trabalho diário, como também da sua trajetória
pré-profissional.
134 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

As práticas docentes podem estar ancoradas em diferentes


saberes, tais como os provenientes da formação profissional –
que abarcam os saberes das ciências da educação e os saberes
pedagógicos –, os disciplinares, os curriculares e os experienciais.
Segundo Tardif (2008), os saberes profissionais dizem res-
peito àqueles adquiridos por meio das instituições de ensino
destinadas à formação de professores. Nessas instituições, o
docente se depara com os saberes das ciências da educação
e a partir deles vai consolidando seus saberes pedagógicos,
que dizem respeito às concepções provenientes da reflexão
acerca da “[...] prática educativa no sentido amplo do termo,
reflexões racionais e normativas que conduzem a sistemas
mais ou menos coerentes de representação e de orientação
da atividade educativa”. (TARDIF, 2008, p. 37).
Os saberes disciplinares e curriculares se referem àqueles
produzidos e selecionados pelas instituições universitárias e
escolares, respectivamente. Já os saberes experienciais dizem
respeito aos saberes provenientes das experiências dos professo-
res, que são adquiridas por meio de suas práticas cotidianas. Com
isso, esses últimos não se encontram definidos nos currículos e
nem nas instituições de formação, muito menos sistematizados
enquanto teoria e doutrina, conforme defende Tardif (2008).
Diante disso, percebemos o quão plural é o saber docente e
sinalizamos para a possibilidade desses diferentes saberes serem
mobilizados na prática da professora alfabetizadora que analisamos.
Contudo, faz-se necessário esclarecer que, ao falarmos de
saberes, não estamos nos referindo à teoria, uma vez que esses
Capítulo 6 135

dois termos constituem categorias distintas, embora possam


aparecer interligados na ação docente. São nessas ações que os
professores traçam suas estratégias e decidem suas práticas
de acordo com uma pertinência e coerência. Segundo Chartier
(2007), estas podem ser de ordem pragmática, quando as ações
se pautam em uma coerência que busca contemplar aspectos
presentes no cotidiano da sala de aula ou, numa visão teórica,
serem vistas como incoerentes por outros que se encontram
fora desse ambiente e não compartilham as diferentes tramas
nele vivenciadas, haja vista a possibilidade de coexistir nela
perspectivas teóricas diferenciadas.
Diante disso, são nos saberes da ação que o professor esta-
belecerá a sua maneira de ensinar ao reinventar e reformular
as teorias acadêmicas, as prescrições legais, as regras, ou seja,
“as estratégias” e utilizá-las conforme suas necessidades, o que
podemos chamar de “táticas”, conforme esclarece Certeau (1994).

Metodologia

Para atender ao objetivo desta pesquisa, que consistiu em


compreender como uma professora do 1º ano do Ensino Fun-
damental concebia e praticava o ensino de alfabetização com
relação ao atendimento à heterogeneidade de conhecimentos
dos alunos sobre a escrita e a leitura, pautamo-nos em uma
abordagem qualitativa, considerando algumas características
elencadas por André (1995): a ênfase maior no processo que no
produto; o pesquisador como instrumento principal na coleta
136 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

e análise dos dados; a preocupação maior com os significados;


a utilização de dados descritivos, como também da indução.
Para analisar as práticas e os saberes mobilizados no
atendimento à heterogeneidade, escolhemos uma professora
que atuava em uma turma do 1° ano do Ensino Fundamental
de uma escola pública municipal de Caruaru – PE.
Como procedimentos metodológicos, realizamos observa-
ções das práticas de ensino da professora (dez aulas), como
também entrevistas semiestruturadas com vistas a analisar e
compreender os saberes e as práticas mobilizados pela docente
para o tratamento da heterogeneidade de conhecimentos sobre
a leitura e a escrita dos alunos. Tal análise foi desenvolvida
por meio da análise de conteúdo do tipo temática categorial,
envolvendo as etapas sugeridas por Bardin (1977): pré-análise,
análise do material (codificação e categorização da informa-
ção) e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
Antes de apresentarmos a análise dos dados, exporemos
alguns dados relativos ao perfil da professora investigada.
No tocante à sua formação profissional, ela concluiu o curso
normal médio em uma escola da rede pública na cidade de
Caruaru – PE. Na época da pesquisa, realizada em 2013, es-
tava cursando o 4º período do curso de Pedagogia em uma
instituição privada de ensino superior. Quanto à experiência
profissional, a educadora informou que atuava como docente
há 15 (quinze) anos, sendo 10 (dez) dedicados à alfabetização
e 05 (cinco) à rede municipal de ensino de Caruaru.
Capítulo 6 137

Análise dos dados

A partir das observações tecidas no ambiente da sala de aula,


como também das entrevistas realizadas, pudemos perceber
a adesão da professora a métodos mais tradicionais de alfa-
betização, uma vez que ela recorria a elementos dos métodos
da silabação e soletração.
No entanto, em meio a essas práticas, percebemos que
o seu ensino não era totalmente indiferente às necessida-
des de aprendizagem que alguns alunos demonstravam e
que, para atender essas necessidades, a docente mobiliza-
va alguns saberes e práticas. Esses esquemas, que serão
o foco de discussão da presente análise, são os seguintes:
intervenções diferenciadas em situações coletivas e padro-
nizadas de ensino, e realização de atividades diferenciadas
com alguns alunos.

Intervenções diferenciadas em situações coletivas


e padronizadas de ensino

Observamos que os momentos de leitura de palavras, que era uma


atividade realizada no âmbito coletivo da sala, eram as situações
em que a docente intervia de maneira diferenciada com alguns
alunos. Para realizar essa atividade, a professora sempre escre-
via no quadro as palavras que deveriam ser lidas pelos alunos e
solicitava que os aprendizes, individualmente e em seus lugares,
realizassem a leitura da palavra que ela havia indicado.
138 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

Embora a atividade fosse feita coletivamente, percebemos


as intervenções diferenciadas quando a professora conduzia
esses momentos de maneira diferente com alguns alunos, o
que nos mostrava sua percepção sobre os diferentes conhe-
cimentos sobre a leitura e a escrita dos aprendizes. Quando
propunha a leitura individual de palavras, a professora tinha
consciência dos alunos que conseguiriam realizar autonoma-
mente essa atividade e aqueles que não conseguiriam fazê-la,
denotando, assim, o seu conhecimento acerca da heteroge-
neidade de seu grupo.
A intervenção diferenciada acontecia quando a professora
chamava ao quadro aqueles discentes que não conseguiam
realizar a leitura e conduzia esse momento com base nos
conhecimentos que ele já apresentava. Nessas situações, ela
pedia para o aluno ler a palavra e, caso ele não conseguisse,
realizava outro procedimento, que consistia numa interven-
ção direta junto àquele aprendiz. Vejamos, no extrato de aula
abaixo, como os alunos com dificuldades eram conduzidos
nessa atividade:
Capítulo 6 139

P – Gente, agora vamos ver. Presta atenção! (a docente


escolheu alguns alunos para fazerem a leitura individual.
Leandro18 não conseguiu ler a palavra).
P – Que letra é essa, Leandro?
Leandro – A.
P – E essa? (o aluno não soube responder)
P – Essas duas aqui? Hein? Eu quero essas duas. Que som é esse?
Leandro – Z.
P – Z. Leia.
P - Agora vá, que letra é essa?
Leandro – E.
P – E essa?
Leandro – D.
P – E essa?
Leandro – O.
P – Agora leia! Junte agora! A... ZE...
P - Bora, leia a palavra. Que letra é essa?
Leandro – A.
P – E essa?
Leandro – ZE.
P – ZE.E aqui?
P – A... ZE. Eaqui?
Leandro – DO. A/ZE/DO.
P – Muito bem. [...]. (AULA 04. 08/08/2013).

18 O nome desse aluno, assim como os dos demais aprendizes


mencionados em nossa análise, é fictício, a fim de preservar o anonimato
dos sujeitos investigados.
140 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

Diante da dificuldade do aprendiz, que se encontrava


em uma hipótese silábica de escrita e não conseguiria ler
autonomamente a palavra, a docente lançou mão de alguns
procedimentos que levavam ao seu objetivo final, que era a
leitura da palavra pelo aluno. Para isso, a professora inicia sua
intervenção questionando-o sobre as letras, posteriormente
sobre as sílabas, até chegar à leitura da palavra, que ocorreu
com o apoio da retomada das duas primeiras sílabas lidas.
Ressaltamos que essas intervenções aconteciam apenas
com aqueles aprendizes que apresentavam dificuldades,
evidenciando a preocupação da docente em atender os alunos
que necessitavam de ajuda.
Tal prática revela que o fenômeno da heterogeneidade
não passa despercebido às ações da professora e que a aten-
ção a esse aspecto revela aproximações com a perspectiva
pensada pela proposta de ciclos. Segundo Duran (2007, p.
123) “[...] a política do Ciclo Básico, com a construção de uma
nova proposta de alfabetização, representou um momento
de ruptura qualitativa. Por um lado, desencadeou mudan-
ças nas práticas tradicionais em sala de aula e, por outro,
reacendeu resistências.”.
Contudo, sabemos que não é fácil romper com uma pers-
pectiva de ensino, de uma hora para outra, para de repente
instituir um trabalho totalmente inovador. Isso leva tempo,
afinal é testando e tateando que o professor constrói sua
prática. Por isso, ela vai testando procedimentos e tateando
a melhor ação a ser desenvolvida.
Capítulo 6 141

É válido mencionar que as intervenções com vistas a aten-


der à heterogeneidade de conhecimentos dos alunos também
aconteciam nas situações de trabalho coletivo com o livro
didático. Tais intervenções se concretizavam por meio da
mediação que a professora realizava nos momentos de re-
solução da atividade, com vistas a atender às necessidades
de sua turma. Para isso, às vezes adaptava as orientações do
material, realizando, por exemplo, a leitura de pequenos textos
contidos nas atividades que solicitavam a leitura do aprendiz,
com o intuito de contemplar e envolver todos os alunos. Com
isso, a docente organizava suas práticas de acordo com o que
lhe era conveniente, ou seja, retraduzindo aquilo que lhe era
posto, conforme evidencia Certeau (1994).
Apesar de trabalhar com o livro didático numa perspectiva
coletiva, o que poderíamos caracterizar como uma prática
homogeneizadora, além das intervenções e mediações no
uso do livro, outra ação da professora que atentava para a
heterogeneidade de sua turma era a proposição de ativida-
des diferenciadas para alguns alunos, no momento em que o
grande grupo resolvia as atividades do livro.

Realização de atividades diferenciadas com alguns alunos

Embora não tenha sido um procedimento sistemático, obser-


vamos que a docente se preocupava em atender as dificuldades
de dois alunos em especial e com eles sempre desenvolvia uma
atividade diferente da que o grande grupo estava realizando.
142 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

O quadro abaixo evidencia os tipos de atividades que foram


desenvolvidas com o grande grupo e àquelas que foram dife-
renciadas para alguns alunos.

Quadro 1 - Atividades que foram realizadas coletivamente e atividades


diferenciadas para alguns alunos
Aulas Atividades Atividades diferenciadas Alunos
Atividade de lingua- Atividade de matemáti- Karla.
01 gem/língua portugue- ca: numeral cinco.
sa do livro didático.
Cópia da atividade do Atividades envolvendo Karla, Gabriel e
“Para Casa”. vogais: cópia; completar Darlan.
02 palavras com vogais
e circular vogais em
palavras.
Ditado de palavras. Ligar o número ao Karla e Gabriel.
conjunto de imagens
08 correspondente;
Identificação de vogais
em palavras.
Leitura e cópia da ati- Cópia das vogais; Karla e Gabriel.
10 vidade “Para Casa”. Associação de vogais a
imagens.
Fonte: Dados da pesquisa (2013).

É importante esclarecer que, dos três alunos que realizaram


atividades diferenciadas, um (Gabriel) apresentava, segundo a
docente, necessidades educativas especiais, embora a mesma
não soubesse diagnosticá-las. Diante disso, analisamos que a
proposição dessas atividades diferenciadas evidenciava uma
Capítulo 6 143

atenção da docente à heterogeneidade, uma vez que conhecia


as limitações desses aprendizes e sabia da necessidade de
atividades que contemplassem suas dificuldades.
No entanto, observamos que as atividades diferenciadas
que foram propostas a esses alunos não se relacionavam com
as atividades que o restante da turma realizava. Isso não ga-
rantia, portanto, a participação desses alunos no que estava
sendo proposto ao grande grupo. Além disso, a professora
inicialmente atendia ao coletivo para, posteriormente, propor
a atividade diferenciada.
O tempo destinado a atender esses educandos era relati-
vamente menor, em relação ao grande grupo, e se fazia em
momentos pontuais, quando a docente entregava a atividade
ou quando esses alunos com dificuldades solicitavam sua
ajuda. No entanto, a diferenciação acontecia e a atividade
proposta parecia assentar-se nas possibilidades que os edu-
candos apresentavam para resolvê-la.
Nesse sentido, as lógicas utilizadas pela docente para propor
atividades diferenciadas pareciam centrar-se em suas crenças
e maneiras de fazer, dada a sua vasta experiência enquanto
professora alfabetizadora. Contudo, essas lógicas podem, nem
sempre, serem adequadas às necessidades dos alunos.
Percebemos que a proposição das atividades diferencia-
das acontecia sem um planejamento prévio e que a decisão
do tipo de atividade a ser realizada por esses alunos com
dificuldades de aprendizagem acontecia no momento da aula,
pois a docente sempre levava várias atividades xerocadas,
144 Nayanne Nayara Torres da Silva • Alexsandro da Silva

elaboradas por sua irmã, que também era professora e, por


ter se aposentado, ofereceu-as a ela. Com isso, inferimos que
a professora se respaldava em suas percepções, sem se deter
a uma avaliação diagnóstica mais detida.
Essa atenção diferenciada voltada para dois alunos em
especial, refletia as adaptações que a docente realizava em
sua prática, uma vez que passava da homogeneização típica
dos métodos tradicionais, para um atendimento diferencia-
do, ainda que esse atendimento não suprisse totalmente as
necessidades apresentadas por esses alunos.
Entretanto, sabemos, como bem analisa Perrenoud (2001),
que trabalhar rumo a uma pedagogia diferenciada não é fácil e
pode durar vários anos, o que nos leva a pensar que não podemos
[...] "assumir na mesma medida todos os alunos em dificuldade
e todos os tipos de dificuldades." (PERRENOUD, 2001, p. 47).

Considerações

Os dados revelaram que a professora, em meio às práticas


que se apoiavam, no caso, em perspectivas tradicionais de
ensino, tentava atender, em certa medida, a heterogenei-
dade de conhecimentos presente no seu grupo/classe. Para
isso, lançava mão de alguns procedimentos que buscavam
dar conta das dificuldades de alguns aprendizes, como, por
exemplo, as intervenções diferenciadas e a realização de
atividades diferentes.
Capítulo 6 145

Esses dispositivos evidenciaram o rompimento com a ho-


mogeneização e padronização do ensino, típicos da perspectiva
tradicional. A dificuldade da professora em propor um ensino
ajustado às necessidades de aprendizagem dos alunos mostra
que, conforme esclarece Chartier (2000, p. 164), “Antes mesmo
de toda inovação designada como tal, o ordinário da classe
implica os tateamentos incessantes, as adaptações locais, as
modificações provisórias sem as quais não se faz a classe”.
Nesse sentido, acreditamos que a professora tem testado
procedimentos com vistas a contemplar o fenômeno da hete-
rogeneidade de conhecimentos dos aprendizes sobre a leitura
e a escrita. Assim, os tateamentos são usados para se chegar
a práticas de ensino mais coerentes, não do ponto de vista
teórico, mas, sim, do melhor gerenciamento desse fenômeno
no espaço da sua sala de aula.
Diante disso, finalizamos esse estudo com algumas inquie-
tações e apontamos a possibilidade de novas pesquisas que
busquem investigar a relação entre o atendimento à hetero-
geneidade e a adequação das atividades propostas. Ou seja,
até que ponto a atenção à heterogeneidade garante a ajuda
necessária e adequada às necessidades dos aprendizes?
146

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149

CAPÍTULO Й

MOVIMENTO DO ENSINO DE HISTÓRIA NO PÓSʊГЛКВ:


UMA ANÁLISE À LUZ DA TEORIA DA TRANSPOSIÇÃO
DIDÁTICA

André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Este texto trata do momento vivido no campo do ensino de


História a partir da década de 1980. Nossas análises serão
norteadas por noções presentes na teoria da transposição di-
dática. Desta forma, temos como pressuposto que as narrativas
históricas apresentadas pelos professores de História em suas
salas de aula seguem um percurso evolutivo de sucessivas
transformações para poderem tornar-se objetos de ensino.
Através da sua prática pedagógica o docente realiza uma
seleção, uma (re)invenção das narrativas produzidas pelo
campo historiográfico, integrando-as à esfera dos saberes
históricos escolares, estes estando presentes também nos
livros didáticos e paradidáticos, nas propostas curriculares
e nos materiais de apoio.
150 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Assim, nosso texto será dedicado a fornecer uma visão


panorâmica do momento peculiar que a História, enquanto
disciplina escolar, vem atravessando nas últimas décadas,
possibilitando a formulação de um quadro de referência, que
esperamos que se constitua um instrumento útil para futuras
pesquisas na área.
Uma fala “clássica” de Bittencourt (1998, p. 12) sintetiza a
fase vivida no campo do ensino de História, segundo a autora,
a partir da análise de propostas curriculares produzidas no
Brasil entre 1990 e 1995, [...] estamos vivendo um momento
importante no qual conteúdos e métodos estão sendo re-
elaborados conjuntamente”. Ou seja, estaria em curso não uma
revisão pontual de saberes específicos, focada na atualização
de determinado conteúdo, nem apenas a indicação de novos
procedimentos didáticos isoladamente, mas a busca de uma
outra configuração para a disciplina escolar em questão.
Acreditamos poder caracterizar o período vivido no campo
do ensino de História a partir do início dos anos 80 do século
XX como um momento de crise disciplinar. Nele os sujeitos
envolvidos no campo – professores de História, historiadores,
professores de Prática de Ensino de História, pesquisadores
do ensino de História, autores de livros didáticos, autores de
propostas curriculares – procuram construir um novo ensino
de História, deflagrando um amplo processo de reflexão sobre
a disciplina e os saberes escolares nela vigentes.
Seguindo o esforço de síntese, estamos nos propondo
a apresentar um certo mapeamento deste movimento de
Capítulo 7 151

renovação. Como todo processo que busca constituir o “novo”,


às vezes nem tão “novo” assim, temos a crítica sistemática
ao “velho”, temos a negação do que se procura superar.
Encontramos então, uma construção discursiva peculiar,
presente em grande parte das produções sobre o ensino de
História, representando um tipo de consenso, uma espécie de
síntese de tudo o que não se quer para a disciplina escolar
em questão. Temos o que se convencionou chamar de modelo
tradicional do ensino de História.
Esse modelo pode ser sintetizado como um ensino baseado
em uma História linear, causal, evolutiva, política, dos vence-
dores, dos heróis, cuja marca primordial está na memorização
de datas e fatos, fundamentados na construção de um tempo
histórico homogêneo e transmitidos via exposição oral, para
serem reproduzidos pelos alunos através dos “famosos” ques-
tionários, com as respostas fixadas pelo manual do professor
(BITTENCOURT, 1998, p. 23; ROCHA, 1996, p. 56; ROSA, 1984,
p. 130). Algumas expressões poderiam resumir bem a rotina
desse modelo de ensino: linearidade, causalidade, exposição
oral, ditado, cópia, questionário, memorização, monotonia,
tédio (ROCHA, 2002, p. 114).
Segundo Rosa (1984), uma das primeiras formulações
desse “evento discursivo”, em seu relato de experiência,
publicado no início dos anos 80, encontramos uma forte
preocupação com a dinamização da disciplina. Não estando
explicitamente ancorada em nenhuma corrente historiográfica
ou pedagógica, a autoridade de seu discurso vem da satisfação
152 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

dos alunos com a participação nas atividades propostas,


o que levaria à superação da representação corrente sobre a
História-ensinada, vista como "[...] uma matéria enfadonha,
desinteressante, inútil, que apenas exige a memorização de
datas e fatos, com verificações da aprendizagem restritas ao
questionário" (ROSA,1984, p. 130).
Em artigo que analisava as apropriações do construtivismo
na produção sobre o ensino de História (CUNHA, 2004),
afi rmávamos que a ênfase dada nos primórdios da crise
disciplinar na participação nas atividades, bem como na
dinamização da disciplina, possivelmente representava
elementos de permanência do modelo educacional tecnicista.
Mais adiante voltaremos a essa questão quando tratarmos do
uso das chamadas novas linguagens. Por hora, gostaríamos de
ressaltar o fato do relato de Rosa ser um exemplo interessante
que ilustra bem o que foi o início do processo em pauta.
Faricelli (2005, p. 20), apoiada em Cordeiro, nos apresenta
também uma síntese do modelo tradicional do ensino de História,
acrescentando alguns outros elementos ainda não mencionados.

[...] preso ao livro didático, transmissor de uma histó-


ria puramente narrativa, sem nenhuma preocupação
crítica ou relação com a vida vivida pelos envolvidos
no cotidiano escolar. Ao aluno caberia apenas repro-
duzir um conhecimento pronto e acabado, já que a
relação ensino-aprendizagem baseia-se numa relação
autoritária e numa hierarquia de saber ampla, onde
Capítulo 7 153

à Universidade cabe produzir conhecimento, ao livro


didático selecioná-lo e “pedagogizá-lo”, ao professor
transmiti-lo a ao aluno reproduzir um conhecimento
memorizado e apegado à visão factual.

O estudo realizado por Cordeiro mostra que como alternativa


de referência geralmente se vinha apresentando, nas publicações
da área, uma perspectiva renovada de se ensinar História.
Em contraposição ao modelo tradicional teríamos um ensino
de História em que todos são sujeitos. Os alunos e alunas são
concebidos como agentes do conhecimento, suas experiências
de vida, suas subjetividades, seus cotidianos, suas vivências
constituem-se em objeto de estudo e em ponto de partida
obrigatório para a aprendizagem do saber histórico escolar.

No lugar de práticas consideradas desmotivadoras,


como uso de questionários e aulas expositivas no
ensino de História são propostas metodologias
diferenciadas por professores ligados aos três níveis
de ensino – experiências ligadas a práticas didáticas
alternativas e sugestões de pesquisas históricas,
estudo e interpretação de textos, utilização de
diversas linguagens de comunicação além da verbal,
utilização de método retrospectivo, uso de documentos
históricos - foram divulgadas pelas várias publicações
especializadas no período e nos vários encontros de
profissionais da área (FARICELLI, 2005, p. 20-21).
154 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Dessa forma, concluímos que a elaboração discursiva


do modelo tradicional de História, produzida no processo
de crise disciplinar, tornou-se uma referência hegemônica
para se pensar o ensino da disciplina. Não obstante, autoras
como Anhorn (2003) e Faricelli (2005) vêm criticando a
perspectiva dicotômica presente no uso desta formulação,
que se consubstancia na oposição entre o “velho” e o “novo”,
ensino “tradicional” e ensino “renovado”.
Dentro desse exercício de mapeamento, identificamos três
âmbitos para os quais se direcionam as propostas de renovação.
Evidentemente, estes se encontram atrelados, integrando
toda uma rede discursiva que precisa ser pensada de forma
concatenada. No entanto, consideramos útil à inteligibilidade do
processo em estudo apresentá-las separadamente, salientando
que essa forma de apresentação cumpre apenas uma finalidade
“didática”. Assim, pensamos as propostas de renovação do
ensino de História a partir desses três eixos: fluxo de saberes
históricos, organização de conteúdos históricos escolares e
proposições de ordem metodológica.
Com relação ao estabelecimento de novos fluxos de saberes
em direção à história-ensinada, observamos que as mudanças
paradigmáticas na produção historiográfica ampliaram signi-
ficativamente a distância dos saberes históricos escolares com
relação à sua versão especializada. Os agentes participantes do
campo, diante dessa constatação, iniciam uma busca por essa
reaproximação, o que engendrou uma crítica sistemática aos
saberes pertencentes à matriz historiográfica dita positivista.
Capítulo 7 155

Sendo a matriz historiográfica positivista, concebida como


a matriz de referência do modelo tradicional do ensino de
História, seus saberes seriam não mais que “uma sucessão
linear de fatos considerados significativos, predominantemente
de caráter político-institucional, e no qual sobressaíam
os espíritos positivos que conduziriam a História” (LIMA;
FONSECA, 2004, p. 58). Foi a partir desse prisma que as
diversas propostas de renovação – estando incluídos aqui os
documentos curriculares, os artigos científicos, os relatos
de experiência - procuraram introduzir saberes oriundos de
outras matrizes; matrizes essas que alcançavam relevância e
destaque no campo acadêmico, objetivando atualizar o saber
histórico escolar.
Casos ilustrativos do que estamos nos referindo podem
ser encontrados nos documentos curriculares para o ensino
de História dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro, elaborados nas décadas de 1980 e 1990.
Analisando o programa de 1986 de Minas Gerais, Lima e
Fonseca (2004, p. 63) consideram que a matriz marxista é vista
como uma possibilidade de renovação dos saberes históricos
escolares, que deixando de “privilegiar os grandes fatos políticos
e as grandes personagens da história oficial, partiriam das lutas
de classe e das transformações infra-estruturais para explicar a
história, revelando, assim, sua clara fundamentação no marxis-
mo”. Vemos assim, que a opção inicial, presente no documento
curricular, é tomar como referência a matriz marxista.
156 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

O materialismo histórico foi tomado como fundamento


teórico, elegendo-se como conceitos basilares da organização
dos conteúdos referentes às relações sociais como: os modos
de produção, a luta de classes, as classes sociais, a exploração
e o excedente de produção.
Essa proposta, diante do processo de redemocratização da
sociedade brasileira, encontra eco nos profissionais do ensino
de História, alcançando repercussões que transcenderam o
Estado de Minas Gerais, influenciando a produção de docu-
mentos curriculares em todo o país, bem como a produção
de livros didáticos, que ganharam coleções com circulação
nacional, a exemplo da coleção “Os Caminhos do Homem”,
assinada pelos professores Adhemar Marques, Flávio Berutti
e Ricardo Faria, inspirada nesses documentos curriculares.
Entretanto, nos fi nais da década de 1980 e início da
década de 90, a apropriação do marxismo, tendo como eixo
estruturador dos saberes históricos escolares a categoria
“modo de produção”, começa apresentar sinais de desgaste.
Críticas apontavam uma sensível permanência do modelo
anterior, pois “[...] a evolução dos modos de produção acabou
por não romper substancialmente com o princípio etapista
do programa tradicional, apenas abandonando um esquema
fechado em função de outro, igualmente determinado” (LIMA;
FONSECA, 2004, p. 64).
Além disso, a renovação da produção historiográfica se
acentou, com a ampliação das temáticas de pesquisa e a revisão de
antigos pressupostos. Ora, se as mudanças em curso já promoviam
Capítulo 7 157

uma significativa transformação no saber especializado, o que


para alguns representou, inclusive, uma ruptura paradigmática
(REIS, 1996, p. 59-61) com relação ao campo escolar, vemos
aumentar o “mal-estar”, com a percepção do distanciamento
ainda maior entre saber histórico e sua versão para o ensino.
Dessa forma, agentes do campo da disciplina, atuando
ao nível da noosfera, começam a intensificar o “esforço para
incorporar no ensino de História o que Le Goff chamou de
novos objetos, novas abordagens e novos problemas” (NUNES,
2001, p. 19). A proposta produzida em São Paulo se propunha
a uma revisão no ensino de História ancorada na corrente da
História social inglesa (para alguns neomarxista) e princi-
palmente na chamada “Nova História” francesa.

A relação com a Nova História Francesa manifesta-se


na definição dos objetos como construções históricas,
criando possibilidades de investigação de temas sobre
as diversas dimensões do social, temas considerados
marginais podem ser investigados, buscando-se atra-
vés deles analisar os mecanismos de funcionamento
da sociedade (FONSECA, 1995, p. 93).

No que concerne aos livros didáticos e paradidáticos,


verifica-se o surgimento de coleções pautadas nas abordagens
do cotidiano e mentalidades, temáticas vinculadas ao paradigma
dos Annales. Foram coleções como “O cotidiano da História” e
“História - cotidiano e mentalidades”, assinadas por Ricardo
158 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Dreguer e Eliete Toledo. Representavam desde o início dos


anos 90 a possibilidade de inserção, no ensino de História,
de saberes vinculados a uma outra tendência historiográfica.
Tratava-se, portanto, de uma alternativa tanto à História
de viés político-administrativo, com sua ênfase nos feitos dos
grandes homens do estado nacional, quanto àquela que privi-
legiava os aspectos econômicos nas análises dos fenômenos e
processos históricos. Observamos que a inserção dessas temá-
ticas, muitas vezes, é concebida como sinônimo de inovação
e condição de superação do modelo tradicional de ensino de
História. Tal raciocínio pode contribuir para a permanência
de relações hierárquicas entre os campos de saber acadêmico
e escolar, acarretando a consequente falta de percepção das
especificidades que constituem o ensinar História.

Uma relação de simetria se estabelece de forma


mecânica como se novos objetos de pesquisa deveriam
se desdobrar automaticamente em novos objetos de
ensino de história; novos métodos de pesquisa histórica
em novos métodos de pesquisa na sala de aula... Como
uma boneca russa, os saberes escolares (tanto aquele
“a ser ensinado” como o “ensinado”) devem se adaptar,
se encaixar no “saber maior” (o saber acadêmico)
(ANHORN, 2003, p. 245).
Capítulo 7 159

Consideramos que a autora não vem em defesa da permanência


dos saberes relativos a apropriações da corrente dita positivista,
especialmente, quando critica a visão vertical entre os campos
de saber, o que, consequentemente, remete à percepção da
impossibilidade da equação: novos saberes históricos, o que
nos leva a questionar a perspectiva dos enfrentamentos por que
passa o ensino de História, compreendemos, entretanto, que é
necessário mais que uma atualização para transpor novos saberes.
Notamos também, que nesse processo de crise disciplinar
se encontra instalada, no campo do ensino de História, uma
verdadeira guerra de narrativas, como afirma Laville (1999),ou
seja, temos um leque de possibilidades para as apropriações
do saber histórico, sendo estabelecidas disputas discursivas,
quase escolásticas, caracterizando um ponto de conflito, um
debate ainda em aberto. Qual matriz historiográfica servirá
de referência para o ensino de História?
As análises de Anhorn (2003, p. 257) com relação aos
Parâmetros Curriculares Nacionais de História (PCNs) nos
parecem elucidativas. Neles, os autores, integrantes da
noosfera, se situam no debate sob dois vieses. Primeiramente
ocorre uma adoção velada a uma espécie de ecletismo, na
qual se apontam genericamente as várias possibilidades,
sem a tomada específica de uma referência isoladamente. Por
outro lado, temos uma saída metodológica para uma questão
epistemológica. O foco da discussão da apropriação de matrizes
do saber histórico é deslocado para a proposta do ensino de
História por eixos temáticos.
160 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Aqui nos deparamos com o que estamos considerando


didaticamente o segundo âmbito das propostas de renovação
do ensino de História: a organização curricular dos conteú-
dos históricos escolares.
Durante o processo em foco, surgiram duas propostas que
convergem como alternativas à organização dos conteúdos pre-
sentes no modelo tradicional de ensino da disciplina: a História
temática e a História integrada. Ambas se originam da crítica à
estrutura curricular então vigente, apontada como uma seleção
rígida, sendo acusada de ser baseada em uma lógica etapista,
cronológica e linear. Etapista por seguir o esquema quadripartite
francês, com seus segmentos estanques, indo da Pré-História
aos dias atuais, passando pelas Idades Antiga, Media, Moder-
na e Contemporânea, sem falar de sua versão tupiniquim, a
História do Brasil apresentada pela tríade Colônia, Império
e República. Cronológica porque os critérios de organização
dos saberes são marcos temporais, correspondentes a eventos
excepcionais. Linear, justamente porque a ordenação desses
marcos, lançados no esquema etapista, segue uma linearidade,
concatenando os “primórdios” da História ao tempo presente.
Como proposta de ruptura, a chamada História Temática,
encontra eco primeiramente na formulação do documento
curricular do Estado de São Paulo, na década de 80. Ainda
hoje a vemos associada, muitas vezes, à ideia de inovação, no
entanto, formulações sistematizando esse tipo de organização
curricular são raras, muito ventiladas enquanto proposta,
foram pouco verticalizadas enquanto discussão acadêmica.
Capítulo 7 161

Segundo Amorim (2004, p. 131): “[...] o levantamento que


fizemos junto à literatura especializada revelou que a produ-
ção sobre História temática é esparsa e encontra-se em um
estado, hoje, que carece de maior aprofundamento teórico, o
que tem gerado muitas controvérsias e discussões”.
Uma dessas controvérsias nos parece ser a própria adoção
do termo Históriatemática, pois esta vinculada à matriz dos
Annales constituiu-se no campo da historiografia como um
corte epistemológico em que a investigação é realizada a
partir de um determinado tema ou problema.
Adotando-se um corte cronológico mais abrangente,
permitiria à análise perceber os movimentos de permanências
e rupturas. A noção de tempo histórico adquire nova
acepção, aderindo à formulação braudeliana de múltiplas
temporalidades. Essa perspectiva de trabalho historiográfico
é apropriada pelos agentes do campo do ensino de História
para propor uma organização dos conteúdos disciplinares a
partir de temas e não mais de uma cronologia linear.
É importante percebermos a História temática no campo
do ensino não como uma influência da Nova História, mas uma
apropriação. As expressões remetem a movimentos extremamente
diferentes. Influência indica uma concepção do campo educacional
enquanto espaço de prescrição e depósito, de prática sem teoria,
sem saber, sem consistência. A relação é vertical e indica que o
campo de saber, a historiografia, transcendeu suas fronteiras até
o campo da ação: o ensino. Na concepção da apropriação, temos
implicitamente o reconhecimento de uma relação horizontal entre
162 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

campos de saberes articulados, porém distintos, portadores,


portanto, de especificidades.
Nesse caso, os sujeitos não recebem o saber produzido
em outras esferas e apenas o aplicam, mas se reconhece o
movimento criativo de reinvenção, de reelaboração, também
de produção de saberes. A proposta de ensino temático é uma
invenção do campo do ensino de História, não se constituindo
em um equivalente bizarro da História temática oriunda da
historiografia, mas uma reelaboração para o campo do ensino,
o que implica em uma criação peculiar.
Desse modo compreendemos que chamar de História
temática a proposta relativa ao campo do ensino de História
pode não deixar clara a originalidade que lhe caracteriza.
À luz da teoria formulada por Chevallard (1991), poderíamos
entendê-la como um efeito de transposição, diante de sua
peculiaridade, nesse trabalho, trataremos a proposta
formulada no espaço educacional de Ensino temático de
História,diferenciando a perspectiva de trabalho historiográfico
denominada de História Temática.
Amorim (2004, p. 132) faz uma interessante síntese desta
criação didática, segundo ela o ensino temático de História:

[...] é um modo de tratar os conhecimentos históricos


na escola, ligando-os às necessidades do presente e
visando a compressão no mundo local, atual e global
ao mesmo tempo. Parte-se de um tema que aflora na
própria dinâmica da sala de aula, isto é, das discussões
Capítulo 7 163

dos professores com seus educandos e que vai sendo


planejado pelo docente de acordo com os anseios
do grupo. Em outras palavras, esta nova forma de
organizar o ensino explora a história através de temas
específicos, agregando múltiplos tempos. Para recuperar
o processo histórico, compara períodos, hábitos e
costumes verificando as mudanças, as permanências
e as transformações nas diversas sociedades.

Sendo assim, percebemos um elemento da configuração


inicial da proposta quando é referida a definição dos temas a
partir da sala de aula, conferindo para alguns uma autonomia
ao professor que dispensaria a necessidade de tópicos elencan-
do os conteúdos a serem ensinados, comumente presentes nos
documentos curriculares oficiais. Dentro dessa perspectiva,
a rigor, não caberia coerência à existência de livros didáticos
de ensino temático, já que:

a proposta em questão dá uma enorme liberdade, sen-


do que o conteúdo deverá ser organizado conforme
as necessidades de cada sala, podendo, inclusive, so-
frer variações em duas salas da mesma série, mesmo
porque, depende do desenvolvimento das atividades
(JOANILHO, 1996, p. 8).
164 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Ao que parece, essa perspectiva inicial passa por reela-


borações, a noção de eixo temático, presente nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN’s) de História legitima a existên-
cia de coleções didáticas de ensino temático, inclusive estando
presente no documento uma listagem de conteúdos a serem
selecionados pelos docentes.
Segundo Amorim, (2004, p. 134), “os eixos temáticos são
abordagens não cronológicas e, como o próprio nome indica,
são os eixos que irão nortear, a partir das discussões da sala
de aula, os diversos conteúdos ligados direta ou indiretamente
às questões levantadas”. A autora aposta na possibilidade dos
professores selecionarem as temáticas, tendo como norte os
eixos propostos nos PCN’s. Desse modo, tendemos a concordar
com a mesma, não vendo como inconciliáveis as formulações
iniciais com a existência dos eixos temáticos ou mesmo a pro-
dução de coleções didáticas que se propõem a vincular-se à
proposta. Algumas dessas coleções têm sido relativamente bem
sucedidas na avaliação do Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), encontrando, inclusive, convergência nas análises de
pesquisadores, como na recente dissertação de Faricelli (2005).
Contudo, críticas também têm sido direcionadas à propos-
ta de ensino temático. A principal delas nos parece apontar
para uma ruptura com a concatenação lógica que compõe a
estrutura narrativa do saber histórico, o que Anhorn(2003,
p. 294) denominou de “risco da quebra da noção de proces-
so”. Embora Joanilho (1996, p. 9) se contrapõe a essa ideia
argumentando que:
Capítulo 7 165

[...] não que a combinação e o encadeamento lógico para


a compreensão de acontecimentos tenham sido descon-
siderados, muito pelo contrário, eles estão presentes,
porém prescindem em grande parte da divisão clássica,
pois os acontecimentos formam as suas próprias séries,
isto é, podem ser tratados numa correlação temática.

Para além das questões de ordem cognitiva, nossas preocu-


pações voltam-se para o uso da proposta no campo do ensino
de História. Assim sendo, primeiramente, observamos que
muitas vezes o ensino temático é apresentado como sinônimo
do novo ensino de História, bastando sua adoção para ocorrer
a superação do modelo tradicional. Dentro dessa perspectiva
é possível que acabe sendo concebido como panaceia para os
problemas enfrentados.
Também vemos a associação mecânica entre ensino temático
de História e inovações para o ensino da disciplina, como se ao
não aderir ao primeiro, estaríamos automaticamentecontrários
à segunda.Como estamos vendo, a proposta do Ensino
Temático de História é um dos elementos integrantes das
diversas perspectivas de renovação da História-ensinada e,
principalmente, caracteriza-se por ser uma forma diferenciada
de organizar os saberes históricos escolares. Porém ela não foi a
única a surgir durante o processo de crise disciplinar, a chamada
História Integrada veio compor o elenco das novas alternativas.
Presente no documento curricular do Estado de Minas
Gerais formulado em 1986, a proposta de História Integrada
166 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

pretendia ser também uma superação da organização curricular


tradicional, considerada europeizante e antipedagógica, já que
fragmentava o processo histórico, dificultando a percepção da
totalidade por parte dos alunos como, por exemplo, criticava-se
a História do Brasil como apenas um apêndice da História Geral.
Buscou-se desta forma, integrar os conteúdos articulados
a partir do conceito marxista de modo de produção, diga-se
de passagem, as formulações originais dessa proposta advo-
gavam uma fundamentação no marxismo. A integração dos
conteúdos era justificada na noção de totalidade presente
nessa matriz historiográfica.
Acreditamos que hoje podemos considerar a proposta de
História Integrada como hegemônica no que tange à organização
dos conteúdos disciplinares, ao contrário da sua concorrente - a
proposta de ensino temático de História – que ainda luta por
consolidar-se amplamente. Principalmente na última década
expandiu-se significativamente o número de coleções didáticas
que são estruturadas dentro de suas fronteiras. Além disso,
a proposta de História Integrada, pelo menos na forma como
vem sendo apropriada, manteve muitas características da
organização curricular que se propunha a superar, inclusive,
talvez seja esta uma das razões de sua ampla aceitação.
É interessante percebermos que críticas à ênfase dada
à História Geral em detrimento da História Pátria há muito
estão presentes nas reflexões sobre o ensino da disciplina,
por exemplo, a reforma Francisco Campos de 1931, apesar
do viés nacionalista característico do período e de explicitar
Capítulo 7 167

uma preocupação com a História da América e do Brasil,


suscitou muitas queixas dos docentes “Para eles, na prática,
a História do Brasil teve seu espaço reduzido, pois estava
diluída na História da civilização e com sua carga horária di-
minuída” (LIMA; FONSECA, 2004, p. 53). Esse trecho poderia
perfeitamente ser recortado e inserido nas produções atuais,
pois passaria como uma análise recente sobre a proposta de
História Integrada.
OsPCN’s da disciplina engrossam o coro contra a hege-
monia, realizando a opção pelo ensino por eixos temáticos
e acusando a História Integrada de reduzir a um único pro-
cesso, articulando a partir de relações de causalidade toda
a História da humanidade, ignorando as especificidades da
História nacional, mantendo desta forma “traços das matrizes
a serem superadas” (ANHORN, 2003, p. 274).
Posição semelhante encontramos no Guia do Livro didático
- PNLD 2005. Na análise da coleção Tempo e Espaço, assinada
por Flávio Costa Berutti, agora em carreira solo, temos a
advertência de que “os temas relacionados à História do Brasil
são colocados em segundo plano, privilegiando-se a História
européia, utilizada como eixo organizador dos conteúdos”
(BRASIL, 2004, p. 179).
Observamos, assim, que na década de 1990 a proposta de
História Integrada torna-se dominante. Formulada inicialmente
como alternativa de organização dos conteúdos curriculares,
ela perde vitalidade em virtude de sua apropriação não
representar uma ruptura com a proposta anterior.
168 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Desta forma, concomitantemente, a sua larga utilização,


nos parece que já vem apresentando sinais de desgaste na
discussão acadêmica sobre o ensino de História, dito de outra
forma, acreditamos que vem representando um consenso a
compreensão de que a História integrada, pelo menos como
está sendo utilizada, apresenta diversos elementos de perma-
nência da organização curricular tradicional.
Sintetizadas as propostas de renovação para o âmbito da
organização dos conteúdos, falta-nos ainda o terceiro eixo:
o das proposições metodológicas. Talvez seja neste aspecto
que as apropriações referentes às discussões da Nova História
sejam mais recorrentes.
SegundoAnhorn (2003, p. 280), em sua análise dos PCN’s
de História, com relação aos procedimentos didáticos a serem
adotados, “a indefinição a respeito da concepção de História
assumida pelos/as autores/as da proposta é substituída pela
assunção bastante explícita das correntes historiográficas
francesas associadas à ‘Nova História’”. Esta adesão explícita
pode ser explicada se temos em mente que no momento de
crise disciplinar os agentes do campo do ensino de História
buscam uma aproximação com o saber de referência para en-
contrar soluções que permitam a manutenção da legitimidade
e vida dos saberes escolares.
Na década de 80 e principalmente na de 90, a “Nova
História” ocupava a centralidade da cena historiográfica.
Natural que suas concepções tenham servido de suporte para
as apropriações que proponham mudanças, recorrendo a esta
Capítulo 7 169

para fundamentar o discurso inovador. Penetração ainda


maior no âmbito metodológico pode ter ocorrido pelo anseio
de aproximar a prática de ensino da prática de pesquisa do
Historiador. Ora, se neste momento no campo historiográ-
fico estava em curso toda uma reformulação de concepções
epistemológicas referentes à invenção do saber histórico, elas
acabam por integrar as propostas de renovação metodológica
para o ensino da disciplina.

Em relação à transposição didática do procedimento


histórico, o que se procura é algo diferente, ou seja,
a realização na sala de aula da própria atividade do
Historiador, a articulação entre elementos constitu-
tivos do fazer histórico e do fazer pedagógico. Assim,
o objetivo é fazer com que o conhecimento histórico
seja ensinado de tal forma que dê ao aluno condições
de participar do processo do fazer, do construir a His-
tória. Que o aluno possa entender que a apropriação
do conhecimento é uma atividade em que se retorna
ao próprio processo de elaboração do conhecimento
(SCHMIDT, 1998, p. 59).

Trazer para a sala de aula o fazer do Historiador no momen-


to de crise disciplinar remeteu à ancoragem em pressupostos
teórico-metodológicos da “Nova História”, possibilitando o
surgimento de criações discursivas bastante peculiares.
170 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Um dos eixos organizadores dessa matriz historiográfica


é a noção de História-problema. A pesquisa histórica deveria
ser organizada, segundo o grupo de Annales, a partir de um
corte epistemológico que buscasse responder a uma pergun-
ta, se contrapondo desta forma à narrativa tradicional, com
seu encadeamento factual. Essa perspectiva é apropriada no
ensino de História, ocorrendo um efeito de transposição: da
História-problema do campo historiográfico temos a proble-
matização da História no campo do ensino. Esta é uma noção
que tem sido chave nas propostas metodológicas.
O saber histórico para ser aprendido, e mais, para cum-
prir as finalidades da disciplina, precisa ser problematizado.
Este parece ser um procedimento didático pelo qual profes-
sores e alunos se acercam do objeto de estudo por meio de
questões-problema ou problematizadoras, o que permitiria
o desenvolvimento da análise crítica, competência tão alme-
jada quando se trata de justificar a existência da disciplina
no currículo escolar.
Como ilustração, poderíamos citar a obra História e Prática-
pesquisa em sala de aula, nela o autor se propõe a apresentar
uma reflexão sobre o uso da pesquisa histórica no ensino da
disciplina, ancorado no documento curricular elaborado pela
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), órgão
da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.
Desse modo, a pesquisa histórica é inserida como o eixo
estruturador da prática pedagógica, inclusive, de forma sis-
tematizada, a partir de um projeto de investigação, isto é,
Capítulo 7 171

“Ele é um meio para que o professor possa desenvolver o seu


trabalho [...]” (JOANILHO, 1996, p. 80).
Joanilho(1996) indica as vantagens de se trabalhar a
pesquisa histórica de forma semelhante ao que o modismo
educacional chamaria hoje de “pedagogia de projetos”:

O projeto permitirá aos alunos compreenderem todas


as etapas do processo de produção do conhecimento
histórico, além de planejarem as atividades a serem
desenvolvidas durante o ano. Desta forma, um projeto
de pesquisa pode ser dividido em quatro partes:
introdução, objetivos, metodologia e cronograma.
Podemos ainda subdividir, para facilitar os itens
apresentados, como por exemplo os objetivos – objetivos
gerais e específicos - mas isso pode ficar a critérios do
professor. Assim, os alunos estariam participando de
todas as etapas da produção do conhecimento histórico
(IDEM, 1996, p. 82).

Produzir conhecimento histórico na sala de aula através


da “transposição didática” dos métodos de trabalho do his-
toriador: eis o mote da proposta. Por outro viés, vemos que
apropriações neste sentido podem engendrar uma sensível
“academização”, sem levar em consideração as especificidades
formativas do ensino da disciplina, como se ensinar História
fosse fabricarde historiadores mirins.
172 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Pesquisa como instrumento para que o aluno produza


conhecimento histórico é sempre mais interessante se temos
a visibilidade que esta se caracteriza por ser a produção de
saber histórico escolar. Produzir, ou melhor, inventar saber
na escola não é equivalente a inventar saber na academia.
Isto seria o mesmo que negar as especificidades dos dois
campos, o que contribuiria para a manutenção das suas re-
lações hierárquicas. É preciso reconhecer que os saberes são
possuidores de níveis de problematizações diferenciados, o
que não remete ao estabelecimento de relações verticais.
Acreditamos que elementos na proposta citada poderiam dar
margem a distorções.
Referindo-se ao uso da bibliografia utilizada para realização
da investigação (já aqui vemos explicitamente um uso arriscado
de instrumentais acadêmicos) Joanilho (1996, p. 84) orienta:

Dessa forma, o professor, junto com os alunos, ao


levantar os fatores que permitiram a formação do
Bairro “X”, deve fazê-lo tendo por base os autores que
trataram o assunto, por exemplo:
O processo de industrialização do referido período é
entendido pelo fulano de tal, como um processo que
“blá´blá-blá, bláblá, blá-blá...”

Consideramos que uma preocupação com a citação de


autores pode representar um excesso, dando margem a apro-
priações do tipo “academicista”. Ou seja, a um uso abusivo
Capítulo 7 173

do procedimento de pesquisa sem sua devida “didatização”,


como já dissemos, sem a sua devida “adequação” à especi-
ficidade do espaço escolar, mas no âmbito metodológico das
propostas de renovação, acreditamos que a utilização das
diferentes linguagens, e não os procedimentos de pesquisa,
tenha ocupado a centralidade dos debates. Sua inserção foi
ancorada na discussão dos Annales que propõe uma noção
ampliada de documento histórico.
Dentro dessa matriz historiográfica, o documento passa a
ser concebido como toda e qualquer fonte de informação e não
apenas os escritos oficiais. Dessa forma, no bojo da apropria-
ção que os agentes do campo do ensino da disciplina História
realizaram, indo fundamentar-se nos debates ocorridos no
saber de referência, estão a leitura, a análise e a interpreta-
ção de fontes históricas agora extremamente diversificadas.

No decorrer dos últimos 20 anos uma das principais


discussões, na área da metodologia do ensino de
História, tem sido o uso de diferentes linguagens e fontes
de estudo dessa disciplina. Esse debate faz parte do
processo de crítica ao uso exclusivo de livros didáticos
tradicionais, da difusão dos livros paradidáticos, do
avanço tecnológico da indústria cultural brasileira
e sobretudo, do movimento historiográfico que se
caracterizou pela ampliação documental e temática
das pesquisas (FONSECA, 2003, p. 163).
174 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

Assim, nós temos como a grande coqueluche metodológica


das décadas de 80 e 90 o uso de imagens, poemas, obras
literárias, crônicas, cordéis, teatro, filmes, músicas, mapas,
charges, histórias em quadrinhos e tudo mais que a imaginação
criativa possa inventar. Indícios do que estamos falando
podem ser encontrados nas publicações especializadas,
nas quais os exemplos são abundantes, inclusive, contando
com obras focadas especificamente nessa questão, muitas
delas cujo objeto é a reflexão do uso de uma determinada
linguagem exclusivamente (BITTENCOURT, 1998; PAIVA, 2004;
NAPOLITANO, 2004; BELO, 2004; BORGES, 2001; 2004).
Hoje, podemos observar uma significativa expansão na
produção especializada que tem nos docentes de História seu
público alvo privilegiado, sendo colocado à disposição dos
professores um leque de possibilidades, que vai desde a mais
truculenta “receita de bolo” até reflexões consistentes, que
estão para além do apenas “como fazer”. Em contrapartida,
na produção acadêmica relativa ao ensino de História, en-
quanto objeto de sua investigação, as “diferentes linguagens”
vêm sofrendo críticas, dando indícios de certo desgaste no
entendimento de sua possível contribuição na instauração de
um modelo “renovado”.
Inicialmente, a pluralização das linguagens a serem
utilizadas no ensino de História foi apresentada como as
“novas linguagens”.
Capítulo 7 175

Nas investigações realizadas, identifiquei que, por


meio das novas/velhas linguagens, tem-se pretendido
conseguir um ensino de História, que permita o desen-
volvimento de um pensamento crítico, e que seja signi-
ficativo para os alunos e professores. A concepção que
está por trás dessa idéia é a de que, ao utilizar materiais
pedagógicos e linguagens consideradas inovadoras,
tornar-se-á possível construir procedimentos metodo-
lógicos capazes de romper com o tradicionalismo e com
conservadorismo ainda presentes nesse ensino. Esses
novos/velhos recursos seriam suficientes para libertá-
-lo de seus problemas cotidianos, como, por exemplo
o suposto desinteresse dos alunos e dos professores,
assim como da inexistência de abordagens capazes de
permitir a reflexão crítica por parte daqueles que são
objeto e sujeitos desse ensino (NUNES, 2001, p. 20).

Como vemos na fala de Nunes, está presente o questio-


namento do vocábulo “novas”, bem como da forma que estas
estariam sendo concebidas, podendo acarretar uma com-
preensão do uso das diferentes linguagens como uma outra
panaceia que daria conta de todos os enfrentamentos por
que passa o ensino da disciplina. Dentro desta perspectiva
crítica a ênfase excessiva em aspectos metodológicos poderia
obnubilar problemas mais fulcrais.
A História das disciplinas escolares vem corroborar
nesse debate, afirmando que as ditas “novas linguagens” na
176 André Victor Cavalcanti Seal da Cunha

verdade não seriam tão novas assim. Martins (2000, p. 172-


173), analisando os documentos curriculares prescritos pelo
Conselho Federal de Educação (parecer 4833/75 e os Guias
Curriculares propostos para as matérias do núcleo comum do
ensino do 1º grau- 1973), observa a ênfase dada na “variedade
de instrumentos” para a atividade pedagógica, nos quais
estão presentes sugestões de inserção em sala de aula música,
dramatização, filmes, imagens, mapas.
Qualquer semelhança é mera coincidência? Provavelmente
não. Apesar de considerarmos o momento de efervescência
característico da crise disciplinar instaurada a partir da década
de 1980, é inegável que na década anterior já encontramos
indícios do “mal-estar” que detonaria o fluxo mais intensivo
de transposições didáticas. As discussões sobre a disciplina
“Estudos Sociais”, área do ensino que aglutinava a História
e a Geografia, constituem um exemplo eloquente do que
estamos nos referindo. Embora os debates da década de 1970,
já permeavam a busca pela renovação do ensino de História,
sendo provável a ocorrência de apropriações de elementos que
integravam, inclusive, as prescrições oficiais deste período.
Assim, nos parece um equívoco apontar a proposta de uti-
lização das diversas linguagens no ensino de História como
uma permanência linear e literal do tecnicismo. Se nos dois
momentos seu uso está presente, as concepções de História
e de aprendizagem que embasam as mesmas são completa-
mente diferentes, o que engendra propostas de utilização
significativamente díspares.
Capítulo 7 177

Na perspectiva do tecnicismo, como se vê em Martins


(2000) e Faricelli (2005), o convite à diversificação das
atividades pedagógicas se dava no sentido de tornar o
ensino agradável para mobilizar a atenção dos discentes, que
precisavam ser mantidos nas salas de aula. Já na década de
80, com um outro referencial teórico, tanto historiográfico
quanto pedagógico, as diferentes linguagens contribuiriam
para a formação crítica dos alunos, via problematização e
construção do conhecimento. Assim, cogitar a possibilidade
de uma continuidade seria incorrer em um duplo movimento
de reducionismo e anacronismo.
Destacamos que para uma proposta ser considerada uma
“inovação” não necessariamente tem que ser “inédita”, afinal
de contas, a história das disciplinas escolares também nos
aponta a origem da diversificação de linguagens no ensino aqui
no Brasil com o movimento escolanovista da década de 1930,
estando presente, já na reforma Francisco Campos, o estímulo
à utilização de recursos visuais para mobilizar a atenção dos
alunos explorando a sua “curiosidade natural” (LIMA; FONSECA,
2004, p. 53). Porém, pensarmos que a ênfase excessiva nas
diversas linguagens, como âncora exclusiva de um modelo
pretensamente renovado, pode degringolar para um tecnicismo
em novas bases. Uma ditadura do movimento em detrimento
da monotonia da narrativa pode trazer certo esvaziamento da
aprendizagem do saber sistematizado e socialmente construído,
que representa o saber histórico escolar.
178

Como pode ser observado, nesse texto foi desenvolvido o


esforço por sistematizar a complexidade da crise disciplinar,
do momento de efervescência porque passou e ainda passa o
ensino de História. As reflexões apresentadas visaram for-
necer uma síntese dos processos vivenciados no pós-1980
pela História escolar. Nas ideias que teceram sua narrativa
há de forma implícita um convite que agora gostaríamos de
anunciar: o ensino de História representa um campo fértil
de investigações acadêmicas, precisamos, pois, explorá-lo,
porque ainda hoje muitos fenômenos que envolvem as nossas
salas de aula permanecem dentro de caixas pretas.
179

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Paulo: Contexto, 1998.
183

CAPÍTULO К

INTERDISCIPLINARIDADE E CONSTRUÇÃO DO
CONHECIMENTO NA CONTEMPORANEIDADE

Emerson Augusto de Medeiros


Mário Luan Silva de Medeiros

Teorizar sobre a interdisciplinaridade é tarefa essencial no con-


texto atual da educação, visto que as mudanças oriundas dos
processos civilizacionais agudizam uma formação que transcen-
da à fragmentação e ao esfacelamento da consciência humana.
Neste estudo buscamos conceber a interdisciplinaridade,
penetrando nos aspectos epistemológicos que a circunda e
a constitui. Para isso, recorremos a autores como: Fazenda
(2002a), (2008), (1996) e (2010), Japiassu (1976), Santomé
(1998), Nogueira (2007), Lück (2007), dentre outros, que in-
vestigam e buscam diante da temática desenvolver estudos que
ofertem contributos a sua construção no campo da educação.
Assim sendo, o texto que segue tem como objetivo cerne
refletir sobre a interdisciplinaridade e sua relação com a
construção do conhecimento na contemporaneidade. Para
tanto, realizou-se um estudo bibliográfico, destacamos que a
abordagem qualitativa se fez presente em todo o texto, haja
184 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

vista que não pretendemos quantificar conhecimentos e in-


formações, mas sim dialogar acerca da interdisciplinaridade
em suas dimensões múltiplas.
Por esse prisma, iniciamos o texto tecendo sobre a ori-
gem, o conceito e a importância da interdisciplinaridade
para a educação, bem como a sua relação com os saberes a
ensinar ao aluno. Os diálogos presentes nestes pontos per-
mitem construirmos compreensões a respeito da efetivação
da temática no contexto educativo, ampliando horizontes e
redefinindo nossa óptica, no que concerne a sua execução
nos processos de aprendizagem.
Em um segundo momento, discorremos sobre obstáculos e
possibilidades para a concretização da interdisciplinaridade
na esfera educacional. Os termos Multi, Pluri e Transdiscipli-
naridade são os enfoques centrais na discussão.
Esperamos que as ideias eloquentes no corpo deste texto
sirvam de subvenção no entendimento a respeito do fazer
interdisciplinar e sua relação com a construção do conhe-
cimento para ambos os protagonistas da/na educação: pro-
fessor e aluno.

Pensando a interdisciplinaridade: origem e conceito

A educação compreendida como prática social e como um pro-


cesso de vida, objetivando em cada indivíduo desenvolver toda
perfeição de que ele seja capaz, guiando-o na dinâmica e no
curso do qual se constituirá como pessoa humana apresenta
Capítulo 8 185

no cenário contemporâneo, novas exigências a cumprir com


o homem no seu percurso histórico vital.
Brandão (1995) ao discutir o conceito de educação salienta
que a mesma não pode permanecer alheia as novas condi-
ções de seu entorno, que exige dela respostas inovadoras e
criativas permitindo efetivamente formar o cidadão crítico
e participativo, apto para tomada de decisões condizentes as
mutações sociais.
Neste sentido, pensar na construção do ser cidadão como
alguém autônomo, responsável, solidário e consciente das
ações que perpassam no seu contexto é um dos pontos fun-
dantes a ser alcançado no trabalho educativo.
Na busca da formação do ser íntegro e entendedor de si e
do cosmo, da unidade e da diversidade, do uno e do múltiplo,
do cultural e do histórico, pesquisadores europeus desenvol-
veram no início da década de 60 do século passado, pesqui-
sas na educação, enfatizando um ensino onde as disciplinas
não fossem trabalhadas isoladas. Elas deveriam integrar-se
e exercer-se, orientando-se não exclusivamente na sua área
específica, mas valorando conexões com outras áreas do sa-
ber. (FAZENDA, 2002b).
Os estudiosos queriam comprovar que o conhecimento não
se produz de modo dissociado e especializado, que nosso ser
não tem uma verdadeira compreensão frente ao conhecimento,
se não conhece as teias que o une, já que não nascemos ou
nos formamos assim como o saber, de um dado vazio, reco-
nhecendo a partir disso a suposição de que:
186 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

O conhecimento parcelado, compartimentado, meca-


nicista, disjuntivo e reducionista rompe o complexo do
mundo em fragmentos disjuntos, fraciona a compre-
ensão dos problemas, separa o que está unido, torna
unidimensional o multidimensional. É um conheci-
mento míope que acaba por ser normalmente cego.
(MORIN, 2005 p.43).

Para os pesquisadores, a abertura das disciplinas com seus


devidos saberes para outras disciplinas construiriam novas
compreensões, rompendo a hierarquização existente entre
elas, produzindo um entendimento cabal e coletivo. Surge
neste momento, no cenário global, as primeiras tentativas
de se praticar a interdisciplinaridade. (FAZENDA, 2002b).
Etimologicamente, interdisciplinaridade significa, em
sentido geral, relação entre disciplinas. Fundamentando-se
neste conceito, anos depois no Brasil, Hilton Japiassú aborda em
sua dissertação de mestrado intitulada Interdisciplinaridade e
Patologia do saber19, a superação de uma visão linear e cartesiana
do conhecimento por uma visão consciente e globalizadora
da realidade. Na obra o pesquisador apresenta as definições
até então existentes a respeito do termo interdisciplinaridade
e faz uma reflexão acerca da metodologia interdisciplinar.
(FAZENDA 2002a).

19 A produção do autor foi publicada como livro com o mesmo título em 1976,
sendo atualmente um clássico da literatura que discute a Interdisciplinaridade.
Capítulo 8 187

Ao discutir a respeito da importância do fenômeno da


interdisciplinaridade, Japiassú (1976, p. 67) inicialmente, faz
a seguinte afirmação:

Na ciência moderna, eleita a condutora da humanidade


na transição das trevas para a luz, o conhecimen-
to desenvolveu-se pela especialização e passou a ser
considerado mais rigoroso quanto mais restrito seu
objeto de estudo, mais preciso, quanto mais impessoal.
Eliminando o sujeito de seu discurso, deixou de lado a
emoção e o amor, considerados obstáculos à verdade.

Especializado, restrito e fragmentado, o conhecimento


passou a ser disciplinado e segregador. A excessiva discipli-
narização do saber faz do cientista, do professor e do homem,
ignorantes especializados, conhecemos partes efêmeras do
conhecimento, este distante da vida, da essência do viver.
Segundo Japiassú (1976), nós entramos numa época de
crise configurando-se como uma época de rupturas e questio-
namentos. Um tempo no qual somos convidados a pensar em
outras possibilidades, rever antigos conceitos e concepções
com um olhar que acolha múltiplas perspectivas e rejeite as
explicações únicas e inquestionáveis que até agora nortearam
nosso entendimento sobre o que sabemos.
Para esse autor, não podemos continuar educando e fa-
zendo educação sem valorar o quadro delineado precedente.
Surge o desafio da compreensão, da busca das verdades que se
188 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

encontra por trás do conhecimento, surge o desafio de viver


a interdisciplinaridade.
Posteriormente, no final dos anos de 1970, Ivani Fazenda,
publica Integração e Interdisciplinaridade: efetivação ou
ideologia? O livro complementa novas discussões acerca da
interdisciplinaridade, fruto de uma pesquisa desenvolvida
também em sua dissertação de mestrado.
Ao publicar sua obra, Fazenda (2002a) provoca em muitos
educadores do país o desejo de conhecer, pesquisar e exercer
o fazer interdisciplinar. A partir desta década - 1970, vários
programas e projetos educativos, galgam-se na pretensão da
construção de uma pedagogia interdisciplinar.
Contudo, sem uma fundamentação epistemologicamente
definida sobre seu sentido, nos anos 1980 a interdisciplinari-
dade passou a ser confundida como método, caindo no falso
modismo e delimitando suas chances de sucesso e efetivação
na educação.
Mediante o cenário educacional presente na década de 1990,
(marcado por intensas buscas de melhorias para o ensino no país)
após longos períodos de pesquisas e estudos, a interdisciplina-
ridade ganha destaque e concretude nos espaços escolares e nos
cursos de formação de educadores.
Atualmente, é perceptível sua presença em debates e even-
tos nas universidades e nas escolas do Brasil e do mundo,
principalmente quando se discute sobre os problemas e as
melhorias para educação.
Capítulo 8 189

Entretanto, a interdisciplinaridade tem se constituído como


termo polissêmico de estudo, interpretação e ação é o que
afirmam diferentes autores estudados, dentre eles: Fazenda
(2008), (2002a), (1996) e (2010), Morin (2010), Japiassú (1976)
e Santomé (1998), visto que muitos educadores desconhecem
seu sentido e conceito, invalidando sua propagação. O entendi-
mento que se tem sobre ela é limitado, integrar seria o ponto
maior na percepção de alguns professores para efetivá-la.
No tocante a esta questão, Fazenda (2008) acredita que
a integração é importante, porém não é fundamental, uma
vez que a mesma está marcada por um movimento contínuo,
criando ou recriando outros pontos para discussão. Pensar
a interdisciplinaridade apenas como integração ou junção
de conteúdos e disciplinas, pode significar em alguns casos
deturpar as ideias apresentadas pelos autores neste texto.

A interdisciplinaridade é considerada uma nova atitude


diante da questão do conhecimento, de abertura à com-
preensão de aspectos ocultos do ato de aprender e dos
aparentemente expressos, ou seja, uma nova maneira
de olhar as questões de ordem epistemológica, meto-
dológica e axiológica vivenciada pelos professores no
seu cotidiano nas escolas, pois a interdisciplinaridade
é essencialmente um processo que precisa ser vivido
e exercido na sala de aula. (FAZENDA, 2008, p.119).
190 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

Para a autora, a interdisciplinaridade é uma nova atitude20


frente à questão do conhecimento, a qual busca desmistificar
e descobrir os aspectos que se encontram ocultos no modelo
fechado de ensino que se interpenetram na educação atual,
em que o saber que é tratado e colocado como algo imutável
e dissociado da realidade, visto por esse novo viés a perspec-
tiva interdisciplinar ganha uma nova face, apresentando-se
incerta e aberta à reflexão e revisão de seus aspectos.

A interdisciplinaridade não é um caminho de homo-


geneidade, mas de heterogeneidade, um caminho que
envolve ação e por isso precisa ser entendida como
uma atitude [...] sem ter a ilusão de que basta a simples
colocação em contato dos cientistas de disciplinas dife-
rentes para se criar a interdisciplinaridade. (LENOIR,
2008, p.100).

Isto nos permite afirmar que, com a interdisciplinaridade,


a escola tende a se abrir para a sociedade e para si própria,
em um trabalho que requer o envolvimento de todo corpo
que a constitui para que progressivamente aconteça a ação
e a interação do conhecimento com o contexto prático da

20 Fazenda 2008, ao utilizar o termo “atitude” para designar a interdisciplina-


ridade, busca explicitar a não mecanização do ensino. Para ela a palavra atitude
conota um sentido de ação-reflexão-ação, sendo mais relevante nesse processo
não o conhecimento que já é existente, mas o conhecimento que se produz atra-
vés da reflexão.
Capítulo 8 191

vida e com os problemas reais que se apresentam no espaço


planetário. Esta afi rmação tem reforço nas palavras de
Lück (2007, p.60).

O objetivo da interdisciplinaridade é, portanto, o de


promover a superação da visão restrita de mundo e a
compreensão da complexidade da realidade, ao mesmo
tempo resgatando a centralidade do homem na realidade
e na produção do conhecimento, de modo a permitir ao
mesmo tempo uma melhor compreensão da realidade e
do homem como ser determinante e determinado.

O fazer interdisciplinar pressupõe uma desconstrução,


uma ruptura com o tradicional e com o cotidiano tarefeiro
escolar. Exercer a interdisciplinaridade exige, portanto, uma
mudança de mentalidade e de pensar, que supere o individu-
alismo tão peculiar à nossa cultura no âmbito educativo e
tão arraigado no currículo estritamente disciplinar, com seu
conhecimento fragmentado.
Levando em consideração esses aspectos em conjunto e integran-
do-os a outros elementos que constituem o espaço-escola, Nogueira
(2007, p.116), desenvolveu um conceito de interdisciplinaridade:

A interdisciplinaridade é o processo que envolve a in-


tegração e engajamento de educadores e alunos, num
trabalho conjunto, de interação das disciplinas do
currículo escolar entre si e com a realidade, de modo
192 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

a superar a fragmentação do ensino, objetivando a


formação integral dos educandos, a fim de que possam
exercer criticamente a cidadania, mediante uma visão
global do mundo e serem capazes de enfrentar os pro-
blemas complexos, amplos e globais da realidade atual.

Podemos verificar que mais do que uma atitude e ação, o


fenômeno da interdisciplinaridade é um processo contínuo
que se constrói não por um único protagonista, mas por todos
que participam da comunidade escolar.
Assim, resgata-se o entendimento de que o conhecimento
não pode ser dissociado da vida humana e da relação social,
reestabelecendo a circularidade que deve existir na escola,
entre sociedade, vida, homem e saber, em que cada um desses
elementos se explica reciprocamente.
Refletindo sobre os enfoques apresentados neste texto sobre o
fenômeno da interdisciplinaridade chegamos à conclusão de que
ela não possui um conceito em si, estático e absoluto, contudo
todos trazem subentendidos, a ideia de uma nova postura, um
novo comportamento diante do conhecimento, um novo olhar
que permite compreender o cosmo e o mundo, uma busca por
restituir a unidade do saber, em fim uma mudança de atitude não
preconceituosa, na qual todo o homem é igualmente relevante.
Capítulo 8 193

A importância da interdisciplinaridade para a educação

Durante longos períodos a educação se constituiu como for-


ma de transmitir os conhecimentos oriundos das pesquisas
desenvolvidas pelos cientistas. Memorizar, decorar, copiar e
tirar dos livros e da lousa eram atividades que estavam sempre
presentes no fazer pedagógico do educador.
A escola, por sua vez, seria o ambiente responsável para
repassar aos alunos, os saberes considerados como ver-
dadeiros e sem erros, esquecendo-se de ilustrar o destino
multifacetado do ser humano, da terra e de ambos em seus
processos históricos.
Com as discussões em torno da interdisciplinaridade no
espaço educativo (este considerado rígido e descontextual à
realidade do discente) abre-se à reflexão, ao diálogo com o
aluno, com a comunidade.

Uma escola reflexiva é uma comunidade de aprendiza-


gem e é um local onde se produz o conhecimento sobre
educação. Nesta reflexão e no poder que dela retira
toma consciência de que tem o dever de alertar a so-
ciedade e as autoridades para que algumas mudanças
a operar são absolutamente vitais para a formação do
cidadão do século XXI. (ALARCÃO, 2008 p.38).
194 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

No trabalho interdisciplinar não se ensina, nem se aprende.


O objetivo é viver o conhecimento e exercê-lo, utilizando-o
como aporte para construção da cidadania. A responsabilidade
para construção do saber está imbuída de envolvimento, que
diz respeito à ação em si, às pessoas e à instituição que o
propaga. O que caracteriza a atitude interdisciplinar na escola
é a ousadia da busca, é a transformação da insegurança do
aprender num exercício do pensar e posteriormente do agir.
(FAZENDA, 2008).
Sacristán e Gomez (2000) ressaltam que a instituição de
ensino tornou-se palco de desamor. O espírito de solidariedade,
de respeito e de reciprocidade essencial em qualquer
estabelecimento social encontra-se renegado. A falta de
comunicação entre os educadores e entre estes e os discentes,
são traços visíveis que perpassam nas comunidades escolares.
Fazenda (2008) posiciona a questão do diálogo como im-
prescindível numa prática educativa. É preciso que todos
estejam abertos ao diálogo, que sejam capazes de reconhecer
aquilo que lhes falta e que podem ou devem receber dos ou-
tros. Só se adquire essa atitude de abertura para o diálogo na
escola, no decorrer do trabalho em equipe interdisciplinar.
Freire (1997) enfatiza que é necessário estabelecer o
diálogo de forma contínua com as pessoas iguais a nós e
com as diferentes para consolidar a prática de ver, ouvir,
falar e agir, em um exercício permanente do nosso vir a
ser, do nosso tornar-se. Isto contribui para produzir outras
práticas com o intuito de intervir na realidade em que
Capítulo 8 195

vivemos. Não há interdisciplinaridade sem a cooperação


dialógica, sem a comunicação com o outro que também
vem a ser comunicação consigo mesmo.
O diálogo, a parceria, o respeito ao outro, a espera, o ser-
vir útil e ativo deve estar sempre presente em todo percurso
educativo do aluno e do educador sendo estes elementos para
Fazenda (2010), basilares na prática interdisciplinar.
Outro aspecto também encontrado na escola que
dissemina a nossa consciência, impedindo de pensarmos
e conhecermos o que existe nas entrelinhas do saber, diz
respeito ao currículo escolar.
Sacristán e Gomez (2000) observaram que o currículo
trabalhado nas instituições de ensino traz uma grade de con-
teúdos que pouco se apresentam à realidade cultural, social e
histórica do aluno. A seriação dos conhecimentos trabalhados
segue normas e padrões distantes da comunidade a que per-
tencem os discentes. Os problemas locais são tratados com
pouca relevância, o que vale realmente é o cumprimento dos
conteúdos elencados na proposta desenvolvida muitas vezes
não pela escola, mas pelo sistema que rege a instituição.

A concepção ‘seriada’ (aditiva e cumulativa) do currículo


implica opacidade, rigidez e hierarquização, enquanto uma
concepção integrada remete à interatividade permanente,
a uma repartição do poder entre os professores e entre
estes e os alunos, bem como a uma transparência
obrigatória. (SACRISTÁN; GOMEZ, 2000 p.148).
196 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

Sob esse viés, não cabe à educação contemporânea a simples


tarefa de repassar conhecimentos, mas a de formar indivíduos
mais reflexivos que desenvolvam uma responsabilidade ética
com o planeta, com a cultura e com a sociedade. As metas
apresentadas, embora desafiadoras e complexas, buscam ser
frequentemente intentadas em uma proposta interdisciplinar.
Diante de tudo que foi discutido, é pertinente afirmarmos
que, com a efetivação da interdisciplinaridade na educação, a
escola deixará de se definir apenas como espaço de produção
de conhecimento, passando a tornar-se um espaço de socializa-
ção, de cidadania, de congraçamento, de experiências a serem
vivenciadas coletivamente. Da mesma forma, o conhecimento
produzido em sala de aula, deixa de ser quantitativo, medido
e avaliado por critérios estatísticos, pois ele é resgatado sem-
pre e na medida que os educandos os tornam significativos.
Tomando como pressuposto as afirmações aqui apresen-
tadas, é possível pontuar que a superação da fragmentação,
linearidade e artificialização no processo de construção do
conhecimento, bem como o distanciamento do mesmo à rea-
lidade presente na civilização deste século, são vistas como
possível a partir do fazer interdisciplinar.

A interdisciplinaridade e os conhecimentos a ensinar


na contemporaneidade

Ao desenvolver um relatório para a UNESCO, no ano de 2001,


Jacques Delors discorre sobre os quatro pilares à educação
Capítulo 8 197

do século XXI. Para o equilíbrio da civilização planetária a


formação humana deverá ser uma formação multirreferencial,
subsidiando-se no desenvolvimento dos saberes essenciais
à sobrevivência.
Delors (2001) cita que não basta que cada um acumule
no começo da vida uma determinada quantidade de conheci-
mentos de que possa abastecer-se indefinidamente. É antes
necessário estar à altura de aproveitar e explorar, em todos
os momentos os saberes construídos, a fim de acompanhar
as mudanças no mundo.
O saber atual é confundido com informação que nada trans-
cende e pouco transforma. Vazio, distante, frio e artificial o
aglomerado de informações suscita no homem uma formação
desprovida de competências e habilidades essências para seu
progresso humano.

Para poder dar respostas ao conjunto das suas mis-


sões, a educação deve organizar-se em torno de quatro
aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda
vida, serão de algum modo os pilares do conhecimento:
aprender a conhecer, isto é adquirir os instrumentos
da compreensão, aprender a fazer, para poder agir
sobre o meio envolvente, aprender a viver juntos, a
fim de participar e cooperar com os outros em todas
as atividades humanas, finalmente aprender a ser, via
essencial que integra as três precedentes. (DELORS,
2001, p. 90, grifos dos autores).
198 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

O autor atribui à educação a tarefa de trabalhar em uma


perspectiva que englobe aprendizagens que deverão se forta-
lecer durante todo processo de vida. Uma nova concepção de
educação deverá fazer com que o sujeito descubra, reanime,
fortaleça o potencial criativo que está enraizado dentro de si,
exigindo deste modo, que o trabalho educativo pleiteie desde
já, mudanças no seu fazer, e ainda na forma de como concebe
o homem e sua relação com o planeta.
A interdisciplinaridade junto ao conhecimento pretende
contextualizar a realidade, potencializar a sensibilidade do
homem frente a si e ao outro, criando uma intersubjetivida-
de que anula o individualismo. Para Fazenda (2008), saber
conhecer na óptica da interdisciplinaridade é desenvolver a
capacidade de investigação, de construir hipóteses, de obser-
vação, de ver o outro por múltiplos ângulos.
O saber fazer é tratado na prática interdisciplinar como
aprender a utilizar o conhecimento construído em diferen-
tes esferas da vida (na família, na sociedade, no trabalho
e consigo mesmo).
A dimensão do saber conviver com o outro compreende as
relações vividas pelo homem nas diversas áreas em que atua.
A capacidade de fazer e receber críticas, espírito de grupo,
aceitar a diversidade e a abertura ao diálogo, são aspectos a
ser valorados no fazer interdisciplinar.
No saber ser, entendido como o saber que permeia os outros
saberes, é creditado a ética, a responsabilidade, o respeito
ao planeta e tudo que ele engloba, a moral, a solidariedade,
Capítulo 8 199

a reflexão, os valores humanos considerados universais. O


avanço das tecnologias e suas relações com a humanidade
e com a natureza exigem cada vez mais do ser humano os
saberes destacados neste texto.
Concomitante às afirmações, Fazenda (2008) pontua que
o conhecimento verdadeiro não menospreza a sua história
e a sua cultura. Para autora, qualquer sistema de ensino,
instituição escolar e prática educativa que não disponha o
desejo de desenvolver os saberes mencionados até o momento,
serão superficiais no sentido de não estarem beneficiando os
sujeitos implicados no processo educativo.

A efetivação da interdisciplinaridade:
obstáculos e possibilidades

A introdução da interdisciplinaridade na educação implica


simultaneamente uma transformação profunda na pedago-
gia e, consequentemente, no ato de ensinar. Antecedente a
essa transformação, deverá haver uma mudança no modo
de pensar e de conceber o homem e sua relação com a civi-
lização em que vive.
Fazenda (2002a) ao refletir sobre os obstáculos para a
efetivação da interdisciplinaridade destaca quatro pontos que
para ela são extremamente importantes, a saber: institucio-
nais, culturais, metodológicos e epistemológicos.
Do ponto de vista institucional, um obstáculo à interdis-
ciplinaridade diz respeito à forma como estão organizadas as
200 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

disciplinas. Há uma grande valorização no ensino da Língua


materna e também da Matemática, descreditam os valores
existentes em outras áreas do saber (Artes, História, Geografia,
dentre outras), além do mais, os conteúdos a serem trabalhados,
em sua maioria, são pré-estabelecidos conforme orientações
longínquas das necessidades dos alunos (FAZENDA, 2008).
Rompendo a hierarquização construída entre as discipli-
nas, buscando produzir interações entre diferentes áreas do
conhecimento, trabalhando os problemas locais, como também
as necessidades dos discentes, teremos uma possibilidade de
iniciar a efetivação do fazer interdisciplinar na educação.
No entanto, mais difícil do que transformar as estruturas
institucionais é transformar as estruturas mentais; obviamente,
estas seriam um obstáculo cultural a superar. Em geral, existe
um preconceito em aderir à interdisciplinaridade. Por falta de
formação, os educadores, muitas vezes desconhecem seu sentido,
estão acostumados com o modelo vigente atual, no qual o ensino
é desenvolvido quase sempre seguindo parâmetros prontos.
Um terceiro obstáculo é o de confundir a interdiscipli-
naridade com um método. Alguns estudiosos pretendendo
esclarecer aspectos metodológicos frente ao fenômeno, caem
no erro de afirmar que ela é um método. Sobre esse ponto,
Fazenda (2002b, p.24) fala que:

A importância metodológica é indiscutível, porém é


necessário não fazer-se dela um fim, pois a interdisci-
plinaridade não é um método, no fazer interdisciplinar
Capítulo 8 201

não se ensina, nem se aprende, apenas vive-se e, por


isso, exige uma nova pedagogia, a da comunicação.

Outro obstáculo que merece destaque está relacionado aos


aspectos epistemológicos. A interdisciplinaridade é frequen-
temente comparada com os termos multidisciplinaridade,
pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade os quais, pre-
tendemos discutir posteriormente.
O quadro delineado nos oportuniza identificar que muitos
obstáculos existem para impedir sua efetivação, e que
superá-los é uma tarefa difícil. Para Fazenda (2002a), o
que mais dificulta a eliminação dos obstáculos citados é
basicamente o comodismo, logo é mais fácil trabalhar sob
a forma como encontramos o ensino, do que discutir novas
ideias e novas concepções.
Exercer a interdisciplinaridade é uma exigência da
sociedade atual, cuja complexidade, sufoca o ser humano.
Realizar um trabalho com a interdisciplinaridade no ensino
brasileiro tornou-se praticamente necessário, na medida em
que percebemos que com ela poderemos efetivar a educação
emancipatória, esta considerada como utópica por muitos.
Iniciar esta jornada requer, de nós, educadores e pesqui-
sadores, desenvolver a sensibilidade, entendida por Fazenda
(2002b), como primeira condição de efetivação ao fenômeno. A
sensibilidade ao ouvir, ao buscar conhecer, ao olhar o mundo
e sua diversidade, ao pensar sobre os problemas do planeta,
ao rever nossas convicções, ao discursar acerca do outro.
202 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

Multi, pluri, inter ou transdisciplinaridade

Desde a década de 60 do século passado, quando se iniciaram


as primeiras pesquisas e estudos sobre a interdisciplinaridade,
muitos estudiosos não conseguiram diferenciá-la de outras
abordagens científicas; apesar dos grandes avanços sobre sua
diferenciação, ainda existem alguns equívocos.
A interdisciplinaridade ainda é confundida, frequentemente,
com a multidisciplinaridade, com a pluridisciplinaridade e com
a transdisciplinaridade. Ao ser erroneamente interpretada
corre o risco de perder sua característica maior que é a
concepção única do saber. Desse modo, apresentaremos,
segundo alguns autores, ideias que nos ajudarão a compreender
as principais diferenciações entre tais abordagens.
Zabala (2002, apud FAZENDA, 2008) cita que a multidis-
ciplinaridade constitui uma associação de diferentes discipli-
nas, tendo em conta um projeto ou um objeto que lhes sejam
comuns. Muitas escolas, no Brasil, possuem seus currículos
compostos por uma grade de disciplinas que se exercem por
si só, cada uma se limita a trabalhar apenas os conteúdos de
sua área, não procura dialogar, criar elos que ajude a entender
o saber junto à realidade. No trabalho multidisciplinar, as
disciplinas tornam-se isoladas, fragmentadas, elas participam
de uma rede, porém não desenvolvem nenhuma conexão.
Morin (2010) considera a multidisciplinaridade como um
problema para o ensino e para o homem, pois através do tra-
balho multidisciplinar as cadeias cartesianas demonstram
Capítulo 8 203

sua soberania e impedem de conhecermos a verdadeira face


do conhecimento. O conhecimento produzido nas escolas, por
seguirem propostas multidisciplinares, oculta suas dimen-
sões. Não podemos conceber verdadeiramente o saber se não
entendermos o seu todo.
A multidisciplinaridade organiza as disciplinas,
hierarquizando-as, fazendo-as submissas umas as outras tenta
construir o conhecimento, porém o que realmente produz é
uma gama de informações, desenvolvidas por especialistas,
que não conseguem sair de seu campo de atuação.
Os problemas complexos, consequentes do vertiginoso
desenvolvimento da sociedade, não podem ser entendidos
ou solucionados. No plano da complexidade a multidisci-
plinaridade é incapaz de dar contributos que fortalecem a
compreensão do real.
A interdisciplinaridade, ao contrário da multidisciplina-
ridade, trabalha com as disciplinas de maneira harmoniosa;
elas se entrelaçam, comunicam-se, abrem-se uma às outras.
A hierarquização existente entre as diferentes áreas do sa-
ber, no fazer interdisciplinar desaparece, visto que todas
as ciências são importantes, todas podem contribuir na
construção do conhecimento.
De acordo com Japiassú (1976 apud FAZENDA, 2008),
a pluridisciplinaridade é a existência de relações
complementares entre disciplinas mais ou menos afi ns.
É o caso das contribuições mútuas das diferentes áreas
(da arte, da literatura, da linguística etc.), ou das relações
204 Emerson Augusto de Medeiros • Mário Luan Silva de Medeiros

entre as diferentes disciplinas das ciências experimentais


(a matemática, a física e química).
Nas propostas pluridisciplinares as disciplinas comuni-
cam-se; algo que não acontece na multidisciplinaridade; no
entanto essa comunicação não ultrapassa o plano de interesse
de cada área. As disciplinas ao buscarem se relacionar, obje-
tivam apenas tirar o que é essencial para compreenderem o
seu objeto em estudo.
Zabala (2002 apud FA ZENDA, 2008), comenta que a
pluridisciplinaridade traz pontos favoráveis à construção do
saber, contudo por não se dispor completamente ao outro,
fechando-se à grelha de conhecimentos mais próxima de sua
área, exclui as possibilidades de entendimento dos fenômenos
que os constituem.
O fazer pluridisciplinar confina-se a um plano superficial de
assimilação, o seu foco não ultrapassa as fronteiras de referência
de cada disciplina, estuda-se e compreende-se, apenas o essencial,
o que se busca, nas trocas das disciplinas e dos saberes, não se
pretende descobrir o insólito que se esconde e que está oculto.
A interdisciplinaridade diferente da pluridisciplinaridade
institui sempre um novo descobrir, inquieta-se diante do que
se conhece, em cada troca o que se vê é a reciprocidade e o
compromisso com outro, objetivando ambos se fortalecer
mutuamente, encontrando o que é invisível.
Sobre a transdisciplinaridade, Morin (2010) a apresenta
como algo transcendente à interdisciplinaridade, pois ela
trata-se de esquemas frequentemente cognitivos que podem
Capítulo 8 205

atravessar as disciplinas e o conhecimento. A transdiscipli-


naridade não é um fazer prático, uma ação que acontece em
meio a técnicas e procedimentos; ela constitui-se como um
pensar, como um refletir que brota a partir do que se concebe.
É o amadurecimento humano diante do saber, é o reconheci-
mento das partes no todo e do todo nas partes.
A transdisciplinaridade forma-se internamente dentro do
sujeito, não se sucede a processos exteriores frutos de métodos
e aplicações, sua efetivação se faz no pensamento, o qual se
compõe nas relações estabelecidas com a vida, com o mundo
e com o cosmo, neste sentido, o fazer transdisciplinar é algo
que se funde dentro de cada ser humano, ao contrário do que
muitos pensam, a transdisciplinaridade não procura excluir
as disciplinas, ela simplesmente as compreende e consegue
identificar as teias que unifica o conhecimento.
Conforme Fazenda (2002a) a transdisciplinaridade surge a
partir do pensar e do fazer interdisciplinar, representando o desen-
volver da consciência que transcendeu a fragmentação, o trabalho
transdisciplinar também se imbuiria da interdisciplinaridade.
Abstraindo-se dessa breve apresentação dos termos multi,
pluri, inter e transdisciplinaridade, poder-se-ia dizer, como
salienta Japiassú (1976) em Interdisciplinaridade e Patologia
do Saber, que existe uma gradação entre esses conceitos,
gradação essa que se estabelece ao nível de coordenação e
cooperação entre o fazer e o exercer.
Conceituados os termos e tendo como aceita a interdisci-
plinaridade como uma questão de atitude surge à preocupação
206

em verificar e conhecer seus facilitadores e também o que


dificulta sua efetivação na educação.
Diante de tudo que foi discutido, entendemos que a neces-
sidade da interdisciplinaridade frente à construção do conhe-
cimento é algo imprescindível em todas as esferas educativas.
O fazer interdisciplinar apresenta-se como uma realidade
exigida pelas mutações no século em que vivemos. Viver a
interdisciplinaridade é emancipar-se e tornar-se humano no
infinito cosmo.
207

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o currículo integrado. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
Editora Universitária da UFERSA (EdUFERSA)
Av. Francisco Mota, 572
Compl.: Centro de Convivência
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