Você está na página 1de 15

15.

~C

copyrigh,t © 2001 editora zouk (edição brasileira)


copyright © 1972, 1975, 1977 Pierre Bourdieu
estaediçãô é publicada por acordo com a aCtes dela ret:hêitlfê"'éh geJ'l!!J~ ,'UII II ••~.~._'-,,~ .•"'
socÍaJes, paris

capa: alexandre dias


projeto gráfico: alexandre dias si rogério de almeida
revisão: alexandre dias & rogério de almeida
tradüção e ,revisão técnica: guilhermej. de freitas teixeira & maria da graça
jacintho setton

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Departamento Nacional do Livro, Brasil)

Bourdieu, Pierre
A produção da crença: contribuição para uma
MODOS DE,.,
economia dos bens simbólicos / Pierre Bourdieu. --
São Paulo: Zouk, 2002. DOMINAÇAOI
ISBN 85-88840-02-2

1. Sociologia do conhecimento. 2. Cultura - Aspectos


sdciais. L Título.

B769p CDD- 306.4

jaedjção

direitos reservados à /
EDITORA ZOUK

. são paulo - sp
f. I I 5049-0988 5093-5820
e-mail: zoukgaleria@uol.com.br

.1 .._"

-.2002-·
Nas sociedades desprovidas de "mercado auto-regulado" )
(self-regulating market, no sentidO de Karl Polanyi), de sistema de
ensino, de aparelho jurídico e de Estado, ~~çº~~ __
ªe d?!pina~
só podem ser instauradas e mantidas mediante estratégias
indefinidamente renovadas por não estarem reunidas as condições
de uma apropriação mediata e duradoura do trabalho, serviços ou
homenagens de outros agentes. Pelo contrário, a dominação já não
tem necessidade de ser exercida de maneira direta e pessoal quando
está implicada na posse dos meios (capital econômico e cultural) de
se apropriar dos mecanismos do campo de produção econômica e
do campo de produção cultural que tendem a assegurar sua própria
reprodução, através de seu próprio funcionamento e
independentemente de toda intervenção intencional dos agentes. É,
então, 110 grau deobjeti-y:açãodo capital social acumulado que reside
o fundamento de todas as diferenças pertinentes entre os modos de
dominação: isto é, bem esquematicamente, entre os universos sociais
_ em que as relações de dominação se fazem, se desfazem e se refazem
na e pela i!1.t~raçãoentre as pessoas - e as formações sociais em
que, mediatizadas por mecanismos objetivos e institucionalizados,
tais como aqueles que produzem e garantem a distribuição de
diplomas _ nobiliárquicos, monetários ou escolares - têm a opacidade
e a permanência das coisas e escapam à influência da consciência e
do poder individuais. A objetivação garante a permanência e a
cumulatividade das aquisições, tanto materiais como simbólicas,
que podem assim subsistir nas instituições sem que os agentes
precisem recriá-las, de forma contínua e integral, por uma ação
expressa; mas, como os lucros das instituições são objeto de uma
apropriação diferencial, ela assegura também, inseparavelmente, a
reprodução da estrutura da distribuição do capital que, sob suas
diferentes espécies, é a condição desta apropriação e, ao mesmo
tempo,- .... .." -_.,da estrutura
a rep,rºd\l~o li I .•. das
~--_.-:-: _ _ _ .. e_.
rela~ões de dominação
ª~l?~.!l~ência. .. ""'_"",,-_'!F")
f')
o-
...•

Modos de Dominação .
;J
Efeitos da Objetivação a organização da produçãoe ..4? funcionamento da produção, e ,7 'I( -"~'

especialmente os instrumentos de crédito.3 Esta análise é válida, a . ,


fortiori, em relaçãoàGabíHa~i'8ai'"'lue nem dispunha dos mais I

Paradoxalmente, a existência de <::ª"I!ll-ºs


__r:.~lªJivarnente rudimentares ~.strl!-l11entosde uma instituição econômica. As terras
ªlltÔ!l_~mol',funcionando segundo mecanismos rigorosos e capazes eram, de fato, quase totalmente excluídas da circulação - mesmo
de impor aos agentes sua necessidade, fazcom que os detentores se, servindo às vezes de garantia, elas corressem o risco de passar
dos meios de controlar esses mecanismos e de se apropriar dos lucros de um grupo para outro. Os mercados da aldeia ou da tribo ficavam
materiais e/ou simbólicos produzidos pelo seu funcionamento isolado~e,cl.e m.?do algum, podiam seintegrar em um mecanismo
possam fazer a economia das estratégias orientadas expressamente único. A oposição estabelecida pela moral tradicional, encarnada
(oque não quer dizer, antes pelo contrário, de maneira manifesta) e pelo bu niya, entre a "malícia sacrílega" de praxe nas transações do
diretamente (isto é, sem passar pela mediação dos mecanismos) mercado e a boa fé conveniente às trocas entre parentes e familiares'!
para a dominação das pessoas. Trata-se bem de uma economia, _ e que era marcada pela distinção espacial entre o lugar de residência,
porque as estratégias que visam instaurar ou manter relações a aldeia e o lugar das transações, ou seja, o mercado - não deve
duradouras de dependência de pessoa a pessoa são, quase sempre, dissimular a oposição entre o pequeno mercado local que, como diz
extremamente custosas em bens materiais (como o potlatch* ou as Polanyi, fica "Íl;nerso nas r_~_ª~~_~gçiªLs" (embedded in social
ações beneficentes), em serviços ou, simplesmente, em tempo: eis relationships) e o mercado quando este se tornou "omodo dominante
o que, por um paradoxo constitutivo deste modo de dominação, faz de transação" (the dominant transactÍonal mode). 5
com que, além do meio destruir o fim, as ações necessárias para
As estratégias baseadas na honra não são banidas do
assegurar a perpetuação do poder contribuam para sua fragilidade.2
I11ercado:se alguém pode vangloriar-se desta ou daquela manobra
O poder econômico não reside na riqueza, l11aspa relação bem-sucedida à custa de um estrangeiro, pode também se orgulhar
entre a riqueza e um campo de relações econômicas, cuja constituição de ter efetuado uma compra a um preço exorbitante, por motivo de
é inseparáveldo desenvolvimento de um corpo de agentes honra, para "mostrar que podia fazê-Io" ou, ainda, ter conseguido
especializados, dotados de interesses específicos; é nesta relação que concluir um negócio sem desembolsar um centavo, mobilizando um
a riqueza se encontra constituída, como capital - isto é, enquanto certo número de fiadores, ou, melhor ainda, em nome do crédito e
instrumento de apropriação de um equipamento institucional e de
do capital de confiança,decorrente de uma reputação tanto de honra,
mecanismos indispensáveis ao funcionamento deste campo e, ao quanto de riqueza. Os homens a respeito de quem se pode afirmar
mesmo tempo, dos lucros que I ele prodigaliza. Assim, Moses Finley que são "capazes de voltar com todo o mercado, mesmo se saem de
mostra bem que o que fazia falta à economia antiga, não são os casa com os bolsos vazios" estão predispostos a desempenhar o papel
recursos, mas os meios institucionais de "suplantar os limites dos de fiadores - seja em favor do vendedor que garante, diante deles, a
recursos individuais", mobilizando os ,capiJais grivados, isto é, toda
qualidade do animal, seja pelo comprador que, ao não pagar à vista,
compromete-se a quitar pontualmente sua dívida.6 A confiança de
* Trata-se de uma luta de generosidade pela riqueza, praticada pelos indios kwakÍutl
(NO do Canadá, em frente à ilha Vancouver): o mais generoso não é aquele que doa que usufruem e as relações que podem mobilizar permitem-Ihes
mais riquezas do que seu rival, mas quem consegue dilapidar ou destruir suas própri- não só "irao mercado tendo como única moeda seu rosto, seu nome,
as riquezas para mostrar que não se encontra em situação de necessidade. Cf. MARTINS,
Paulo Henrique (org.). A dádÍva entre os modernos. Petrópolis, Editora Vozes, 2002. sua honra", isto é, as únicas coisas que, neste universo, podem

'T '"
o-
,..... I o-
,.....
PÍerre BourdÍeu I Modos de Dominação
substituir a moeda, mas também "apostar (no sentido de empenhar- as estratégias do vendedor, além de que a relação entre os
se) mesmo sem possuírem bens". Além da riqueza e da solvência, responsáveis pela troca preexiste e deve sobreviver a tal operação;
do outro, as estratégias racionais do self-regulatingmarkettornadas
são levadas em consideração as qualidades associadas estritamente
à pessoa a respeito das quais se diz que "não podem ser emprestadas possíveis pela padronização dos produtos e pela necessidade quase
nem tomadas por empréstimo". De fato, mesmo no mercado, a mecânica dos processos. O suq deixou de propor a informação \
informação mútua é suficientemente grande para que a margem tradicional e ainda não oferece as condições da informação racional:
deixada ao embuste, à trapaça e, sobretudo, ao blefe, continue sendo eis a razão pela qual todas as estratégias dos camponeses visam
bastante reduzida. Se, porventura, "aquele que não foi criado para o limitar a insegurança que é correlativa da imprevisibilidade,
mercado" vier a "arriscar-se", será rapidamente chamado à ordem. transformando as relações impessoais, sem passado nem futuro, da
"O mercado, diz-se, julgará": aliás, este designa não as leis do transação comercial em relações duradouras de reciprocidade pelo
mercado que, em qualquer outro universo, sancionam os recurso a fiadores, testemunhas e mediadores; deste modo, entre os
empreendimentos imprudentes, mas o julgamento coletivo que se contratantes, é possível instaurar ou restaurar o equivalente I

funcional de uma rede tradicional de relações.


"

I
forma e se manifesta sobre o mercado. Uma pessoa é ou não "homem
de negócios'" (argaz nasuq), julgamento total sobre o homem total Da mesma forma que a riqueza econômica só pode ~io1l.élJ \ / !i!

que, à semelhança do que acontece em toda sociedade relativamente ~"mosapital na relação com um aparelho econômico, assim também' G
aos julgamentos deste tipo, implica em valores últimos, contidos a competência cultural, sob todas as suas formas, só se constitui
nas taxinomias míticas. A quem pretenda ultrapassar os limites de enquanto capital cultural nas relações objetivas que se estabelecem \

sua "natureza" de. "homem caseiro" (argaz ukhamÍs), é dirigido o entre o sistema econômico de produção e o sistema de produção
seguinte cQmentário: "Já que você não passade um homem do canto dos produtores (constituído, por sua vez, pela relação entre o sistema
da lareira (thakwath, ou seja, o pequeno nicho escavado no muro escolar e a família). As sociedades desprovidas de escrita - .
da casa que serve para esconder os minúsculos objetos, tipicamente circunstância que permite conservar e acumular, sob uma forma
femininos, que não devem ser exibidos em público: colheres, retalhos objetivada, os !"~_cursoscult1jI;:tis.herdadosdo passado - e do sistema
de tecido, instrumentos de tecer, etc.), então permaneça desse jeito". de ensino que dota os agentes de atitudes e disposições
A dualidade emr~ alcieia_~mercado é, sem dúvida, uma indispensáveis para terem a possibilidade de se reapropriarem I
forma de manter, fora do universo das.relações de reciprocidade, as simbolicamente deles s.ºpodeIJLC.9!1~~rva~~t:.1J§.J.~ç.ur§ºs.
.çlll~urais \
disposições calculistas suscetíveis de serem instauradas pelas trocas Ilo estado j~corporadO'.7na seqüência, elas não podem assegurar a
impessoais do mercado. De fato, o suq, quer se trate do pequeno perpetuação. dos recursos culturais destinados a desaparecer ao
mercado tribal ou dos grandes mercados regionais, representa um mesmo tempo em que os agentes seus portadores, senão mediante
modo de transação intermediário entre dois extremos, jamais um trabalho de inculcação que, conforme é demonstrado pelo caso
completamente realizados: de um lado, as trocas do universo familiar, dos bardos, pode ser tão longo como o tempo de utilização. Têm
fundadas na confiança e boa fépermitidas pelo fato de que dispomos sido descritas, copiosamente, as transformações tornadas -~~·~Y"·~"
possíveis
de uma informação quase total sobre os produtos trocados e sobre por um instrumento de comunicação cultural, tal como a escrita:8
_~~parando os recursos culturais dªpessoa, a escrita permite
• No original, homme de marché, literalmente, "homem de mercado". ultrapassar os limites antropológicos - em particular, 05 da memória
l;;
....

Pierre Bourdieu Modos de Dominação'


individual - e libera das opressões implicadas nos meios daquela que garante o direito ao, d_efinir posiçõesperlT}§lJ].e.I1tes
mnemotécnicos, taIs cómoa poesia, ou seja,-âtécnica de conservação independentes dos indivíduos biológicos reivindicados por elas e
por exceI~l1çi;:l,qªUQciedadesdesprovidas de escrita;9 ela permite a suscetíveis de serem ocupadas por agentes biologicamente diferentes,
- acumulação da cultura élté. então conservada ~m estado incorporado embora intercambiáveis, em relação aos diplomas que deverão
e, correlativamente, a acumulação primitiva do capital cultural como possuir. Desde então, ~?.relações de podgr~clep~.1!g~nc.íé1
deixarnc:le
I
//
monopolização total ou parcial dos recursos simbólicos da sociedade ~~s.tª1J~!~ç.~rºiretamenteentrepessoas, mas instauram-se, na
- religião, filosofia, arte, ciência -, através da monopolização dos própria objetividade, entre ins.~it,t.l.Ké5e,s,
isto é, entre diplomas e
instrumentos de apropriação destes recursos (escrita, leitura e outras cargos* - garantidos e definidos, respectivamente, do ponto de vista
técnicas de decodificação), conservados, daqui a diante, em textos e social; e, através deles, entre os mecanismos sociais que produzem
não mais nas memórias.
e garantem o valor social dos diplomas e cargos, por um lado, e, por
outro, a distribuição desses atributos sociais entre os indivíduos
.j... ... .-Mas. os efeito.s..da-objetivaçãotornada possível pela e~qita
'·6iOlogICos.n _-- .._-_._. . __.-_. .
. nada são ao lado daqueles produzidos pelQ.sistema de ensi119. Sem
/ entrar, aqui, em uma análise aprofundada, comentar-nos-emos em O direito limita-se a consagrar simbolicamente, por um
registro que eterniza e universaliza, o estado da relação de forças
lembrar que ~8ip-!9mas escolares são para o capital cultural o que
a moeda é para o capital econômico. 10 Ao atribuir o mesmo valor a entre os grupos e as classes. que produz e garante praticamente o
todos os detentores do mesmo diploma e tornando-os então funcionamento de tais mecanismos. Por exemplo, além da distinção
substituíveis, o sistema de ensino reduz ao máximo os obstáculos à entre a função e a pessoa, entre o poder e seu detentor, ele registra
e legitima a relação estabelecida, em determinado momento do
çirculação do capital cultural que resultam do fato de que ele está
tempo, entre diplomas e cargos (em função do bargaining power
incorporado a um indivíduo singular (sem por isso aniquilar os
dos vendedores e compradores da força qualificada de trabalho, isto
ganhos associados à ideologia carismática da pessoa insubstituível);
é, garantida do ponto de vista escolar) e materializada em
ele permite referir o conjunto dos detentores de diplomas (e também,
determinada distribuição dos ganhos materiais e simbólicos
negativamente, o conjunto daqueles que não têm nenhum diploma) atribuídos aos detentores (ou não detentores) de diplomas. Assim,
a um mesmo padrão, instaurando assim 1Jm mercado llI1ifl..C/l.dode
ele fornece a contribuição de sua própria força, isto é, propriamente
todas as capacidades culturais e garantindo a convertíbilidade em
simbólica, à ação do conjunto dos mecanismos que permitem fazer
moeda do capital cultural adquirido mediante determinado gasto de a economia da reafirmação contínua das relações de força pelo uso
tempo e trabalho. O diploma escolar, ~~semelhança da moeda, tem declarado da força.
um v\!lor <;gnvencional,formal, juridicamente garantido, portanto,
O efeito de legitimação da ordem estabeleci da não incumbe
livre das limitaçõ~s locais (diferentemente do capital cultural não
somente, conforme se vê, aos mecanismos tradicionalmente
certificadôdo ponto de vista escolar) <; das flutuações temporais: o
considerados como pertencentes à ordem da ideologia, como o
capital cultural que, de alguma forma, ele garante de uma vez por
direito. O sistema de produção dos bens simbólicos ou o sistema de
todas não tem necessidade de ser continuamente testado. A
~ .. " objetivação operada_pelo diploma e, mais geralmente, por todas as
formas de poderes (credentials), no sentido de "prova escrita .de • No original, títrese postes, nesta tradução, foram adotados os termos "diplomas" e
"cargos", respectivamente, a fim de ser mantida a terminologia já utilizada na tradução
qualificação que confere crédito ou autoridade", é inseparável de outros textos de P.Bourdieu.

00
0'\
,..... 0'\
0'\
PÍerre Bourdieu Modos de Dominação ,.....

J
produção dos produtores desempenham, também _ isto é, pela lógica
tam~ém para a dissimulação de tais relações - para compreender
mesma de seu funcionamento - funções ideológicas pelo fato de
inteiramente a diferença radical que existe entre os modos de
que se mantêm escondidos os mecanismos pelos quais eles
dominação e as estratégias políticas de conservação características
contribuem para a reprodução da ordem social e para a permanência
ªe (armações sociais, cuja energia social acumulada está objetivada,
das relações de dominação. Não é tanto através das ideologias
produzidas ou inculcadas pelo sistema de ensino (como poderiam de forma desigual, ~_me~~J1i.s.mº.s. De um lado, determinadas
relações sociais que, não tendo em si mesmas o princípio dt; sua
fazer-nos crer aqueles que falam de "aparelho ideológico") que tal
sistema contribui para fornecer à classe dominante uma "teodicéia reprodução, só podem subsistir mediante uma verdadeira criação
contínua; deoutro, um mundo social que, contendo em si mesmo o
de seu próprio privilégio", como disse Max Weber, mas é, sobretudo,
através da justificação prática da ordem estabelecida que tal sistema princípio de sua própria subsistência, dispensa os agentes deste
instaura quando dissimula sob a relação patente, garantida por ele, trabalho incessante e indefinido de instauração ou restauração das
entre diplomas e cargos, a relação que ele registra sub-repticiamente, relações sociais. Esta oposição encontra sua expressão na história
:1

ou pré-história do pensamento social. "Para encontrar o fundamento !,


sob a aparência de igualdade formal, ,~ntre os diplºrnª,~,obtidos eo
capital cultural herdado, ou seja, através da legitimação qu~-f~;néêe natural do ser social" como diz Durkheim,13 foi preciso romper com
assim à transmissão desta forma de herança. Os efeitos ideológicos a propensão de apreender o mundo social como se estivesse fundado I
mais óbvios são aqueles que, para se exercerem, não precisam de no arbitrário das vontades individuais ou, como Hobbes, no arbitrário
palavras, mas do silêncio cúmplice. O mesmo é dizer, de passagem, de uma vontade soberana: "Para Hobbes, escreve Durkheim, é um
que toda análise das ideologias, no sentido restrito do ,di.?cursod_e ato de vontade que dá origem à ordem social e é um ato de vontade
l~gitimação, que não comporte uma ªD-ª1i~~._gº~ .1]1ef?ni~I11os renovado perpetuamente que a sustenta" .14 E tudo parece indicar
institucionais correspondentes, se expõe a ser apenas uma que a ruptura cOmesta visão artificial que é a condição de apreensão i

contribuição suplementar para a eficácia de tais ideologias: é o caso científica não poderia ser operada antes que fossem constituídos,
de todas as análises internas (semiológicas) das ideologias políticas, na realidade, os mecanismos objetivos, tais como o self-reguJatÍng
escolares, religiosas ou artísticas que esquecem que a função política marketque, conforme observa Polanyi, estava bem estabelecido para
dessas ideologias pode reduzir-se, em certos casos, ao efeito de
impor a crença no determinismo. Mas, a realidade social preparava
deslocamento e desvio, de dissimulação e legitimação, produzido
uma última peça à ciência: a existência de mecanismos capazes de
por tais análises ao reproduzirem, por falta ou omissão, em seus
q§S_egt,lrat:aX~P!oduç~()da()rdem política fora de toda intervenção
silêncios - voluntária ou involuntariamente, cúmplices _j os efeitos
dos mecanismos objetivos.12 expressa autoriza reconhecer como políticas apenas aquelas práticas
0E~~!1tadasem direção à aquisição ou conservação do poder que,
tacitamente, excluem da competição legítima pelo poder o controle
Formas Elementares da Dominação dos mecanismos de reprodução. É assim que, tendo como objeto
principal- o que, hoje, chamamos "ciência política" -, ªesfera da

Era preciso, no mínimo, esboçar esta análise da dupla


"
\

I p()lítica legítima, a ciência social retomou, há muito tempo, por sua


conta, o objeto pré-construído queJhe era imposto pela realidade.
,
eficácia dos mecanismos objetivos. •.•que~ontribuem, não somente""
f .Quanto mais a reprodução das relações de dominação estiver
para ajn.sta.ugçãode relações dumgollfª-schuIQminaçito, mas
dependente de
- -mecanismos
"",----.~._, ~ -
objetivos,
- .,: '- .. que servem aos dominantes
. '. _.,

g
Pierre Bourdieu ~
Modos de Dominação'
f
sem que estes tenham necessidade de se servir de tais mecanismos, quinto, com variantes locais) só poderá manter-se pelo~}(:l;r<;~sl()d_a.:\
tanto mais indiretas - e, se podemos dizer, ~rnp~.s,?o~!~
- serão as violênciamaterial ou simbólica diretamente aj)licad9 à própria pessoa
.~.~" ••• -:--... .' ._0 "." ._',C __ .' , •.••.• ,." •••••

. -I" estratégias objetivamente orientadas em direção à reprodução: k ,,~U~mSg.pielende estabel_ec~x~_rn'Cín~~lo.O fazendeiro pode
,il

li escolhendo a melhor aplicação para seu dinheiro ou o melhor segurar seu khammes por llma dívida que o pressiona a renovar seu
!'I:
estabelecimento secundário' para o filho e evitando demonstrar contrato enquanto não encontrar um novo fazendeiro que aceite

I liberalidade, cortesia ou gentileza à faxineira (ou a qualquer outro quitar o montante de sua dívida ao antigo empregador, isto é,
"subordinado") é que o detentor de capital econômico ou cultural indefinidamente. Ele pode também recorrer a m_e..9LCia:;br1.ltai~~
tal -
assegura a perpetuação da relação de dominação que o une como a apropriação da totalidade da colheita para cobrir o montante
li
,I
li objetivamente à sua faxineira e, até mesmo, aos descendentes desta. de seus adiantamentos. Mas cada relação particular é o produto de
Pelo contrário, enquanto não for constituído o sistema dos estratégias complexas, cuja eficácia depende não só da força material
mecanismos que, por seu próprio movimento (apá tu automatu, e simbólica das partes envolvidas, mas também de sua habilidade
como diziam os gregos), venham a assegurar a reprodução da ordem em mobilizar o grupo, suscitando a comiseração ou a indignação. A
estabelecida, não bastará que os dominantes deÍxemfunc!gnar relação de dominação não vale somente pelos gaJ:inos materiais que
displÍCentemente o sÍstel]]a dominad~-,por eles para que se exerça ela proporciona: inúmeros fazendeiros, pouco mais ricos que seus
de forma duradoura sua dominação; pelb contrário, terão necessidade khammesteriam interesse em cultivar suas próprias terras; acontece
de trabalhar de forma direta, cotidiana e pess()al para produzirem e que, ao procederem assim, privar-se-iam do prestígio prodigalizado
reproduzirem as condições sempre incertas da dominação. Não pela posse de. uma" clientela". Mas aquele que pretende ser tratado
podendo se contentar em se apropriarem dos ganhos de uma máquina como maftre deve manifestar as virtudes que convêm a seu status, a
social ainda incapaz de encontrar em si mesma o poder de se começar pela generosidade e pela qigrüdade nas relações com seus
perpetuar, eles estão cS>11.genadpsàs formª-~-(:;lemflJ]fél!5.LSbl "clientes". O pacto que une o fazendeiro a seu khl1"llmesé um acordo
gomÍnação, isto é, à dominação direta de uma pessoa sobre outra, de homem a homem que se limita a esta garantia: a fidelidade exigida
cujo limite é a apropriação pessoal, isto é, a escravidão; não poderão pela honra. Nada de disciplina abstrata. de contrato rigoroso ou
apropriar-se do trabalho, dos serviços, dos bens, das honras, do .~ançõesprecisas. Mas, espera-se dos grandes que eles se mostrem
respeito pelos outros sem os ganharem pessoalmente, sem se dignos de seu status, protegendo material e simbolicamente aqueles
apegarem a eles, enfim, ~~mçriarem urn vínculo.pes$oíJ.l,cl.epe$$ºª que estão sob sua dependência.
<ipessoa. Ainda aí, tudo é questão de estratégia e as relações
É assim que uma relação social tão próxima, na aparência, encantadas do pacto de honra só são freqüentes porque, nesta
de uma simples relação entre o capital e o trabalho como aquela economia, as estratégias de violência sinlbólica são, quase sempre,
que une o fazendeiro* a seu khammes (espécie de meeiro que não mais econômicas que a pura violência econ-ômica (no sentido
recebe senão uma parcela muito reduzida da colheita, em geral, um restrito). De fato, considerando a falta de um ~'erdadeiro mercado
do trabalho e a raridade (portanto, a carest!ia) do dinheiro, o
fazendeiro só consegue servir melhor seus interesses, tecendo dia
• No original, maftre. Em francês, este termo pode significar: o "senhor", em oposição
ao "escravo"; o "amo", em oposição ao "criado"; o "mestre", em oposição ao "discípulo/ após dia, mediante cuidados e atenções incessanres, laços tanto éticos
aluno" - acepções em que se encontra, de forma subjacente, a posição de superiori-tlide.
Nesta tradução, além de "amo", optamos pelo termo "fazendeiro" -considerando o contexto. ~ afetivos, quanto econômicos que o unem de forma duradoura a

~
N
oN
('<)

Pierre Bourdieu Modos de Dominaçiio


na mesma relação:15 pelo fato de que a dominação só pode ser
seu khammes: freqüentem ente, é ele que, para mantê-Io ligado a si,
organiza o casamento de seu khammes (ou do filho deste) e o instala, exercida sOQ§Y'1fQ!mélelementar,jstoé, de pessoa a pessoa, é que
com a família, em sua própria casa: as crianças, criadas juntas na ela nãb'pode consumar-se abertamente e deve se dissimular sob o
comunidade de bens (rebanho, campos, etc.) , só tardiamente tomam véu das relações encantadas das quais as relações entre parentes
conhecimento de sua condição. Não é raro que um dos filhos do fornecem o modelo oficial, em suma, tornar-se desconhecida* para
khammes vá trabalhar na cidade como operário assalariado, ao vir a ser reconhecida.16 Se a economia pré-capitalista ~ o lugar por
mesmo tempo em que um dos filhos do proprietário a quem entrega, ~celência da violência simbólica é porque as relações de dominação
à semelhança do que se passa com o filho, suas economias. Enfim, o só podem ser instauradas, mantidas ou restauradas nesse espaço
fazendeiro só pode obter do khammesuma dedicação duradoura a mediante estratégias que, estando expressamente orientadas para o
seus interesses na medida em que o assocÍa éompletamente a tai~ e~ga.pe.l<:cimentode relações de dependência p~ssoal, devem travestir-
interesses, a P9nto de ocultar, negando-a simbolicamente em todos se, transfigurar-se, em uma palavra, t.u.I~JT}iza~=~e, sob pena de se
os seus comportamentos, a dissimetria da relação que o une ao destruírem, traindo abertamente sua verdade. Por isso, as censuras
empregado. O khammes é aquele a quem se confia seus bens, sua impostas à manifestação aberta da violência -: em particular, sob a
casa, sua honra (como lembra a fórmula: "Conto com você, sócio; fornta brutalmente econômica - pela lógica característica de uma
quanto a mim, vou me associar", utilizada pelo fazendeiro ao deixar economia em que os interesses só podem ser satisfeitos sob a
sua casa para trabalhar na cidade ou na França). É aquele que "trata condição de se dissimularem nas e pelas estratégias que visam
a terra como proprietário" porque nada na conduta de seu amo o satisfazê-losY Portanto, convém evitar ver uma contradição no fato
impede de reconhecer seus direitos sobre a terra que ele trabalha: e
de que a violência simbólica é tanto mais presente quanto mais
não é raro escutar um khammes invocar, muito tempo depois de ter
rnascarada.18 Por não dispor da violência implacável e oculta dos
deixado seu maftre, o suor derramado para colher frutos ou penetrar mecanismos objetivos que levam os dominantes a se contentarem
na propriedade. E da mesma forma que ele ~':lnCa1)~§~nt~ com estratégias _ quase sempre; puramente negativas - de
inteiramente livr~ desuas obrigaç9e.~para com o antigo amo, assim
reprodução, esta economia tem recbrrido simultaneamente a formas
também pode criticá-Io, depois do que ele chama de "reviravolta";
de dominação que, do ponto de vista do observador contemporâneo,
neste caso, a" covardj;:j'consiste em abandonar aquele que ele havia
"adotado". podem parecer, ao mesmo tempo, mais brutais, mais primitivas, mais
bárbaras ou mais brandas, mais humanas, mais respeitosas à
Assim, neste sistema, existem apenas duas maneiras - que,
pessoa.19 psta dualidade dayiolên~ia;lberta,
física ou econômica, e
afinal de contas, formam uma só - de segurar alguém de forma da/violência simbólica mais refinada, ~encontra-se em todas as
\.'.,.~' • '0_' ~ .•~ •. ,_. -," .. -,.,,' '.". "........ .- -.'-.

duradoura: a dádiva ou a dívidÇl, as obrigações abertamente


econômicas da dívida ou as obrigações morais e afetivas criadas e
mantidas pela troca; enfim, a violência aberta (física ou econômica) * No original, méconnaftre, cujo significado é "recusar (-se) a admitir" . No texto, ainda
são encontráveis os vocábulos méconnu/ e, méconnaissablee méconnaissance; nesta
ou a violência simbólica como violêncÍa censurada e eufémizada, tradução, foram adotados os termos" desconhecer", "desconhecido/a".
"desconhecimento" _ além de "incognoscível" correspondente a méconnaissable-
isto é, irreconhecível e reconhecida. É preciso saber perceber uma
tendo em vista a uniformização com a terminologia já utilizada em outros textos
relação inteligível- e.não uma contradição - entreestas,.duu:foxmaa.""~,.._,,,.,,,,,;/ traduzidos de P.Bourdieu (por exemplo. poder simbólico, Portugal-Brasil, Bertrand-
, Difel, 1989; e A economia das trocas lingüÍsdcas, São Paulo, Edusp. 1996).
de violência que coexistem na mesma formação social e, às vezes,
oN
11")

I.
Modos de Dominação'
~
fi
instituições características desta economia e nopróptio âmago de social que, por um lado, podem ser observadas todas as vezes
~ad~relação social: ela está presente tanto na ç!!Y~ga,quanto na,c:ládiva ação direta da violência aberta, física ou
que, apesar de sua oposição aparente, têm em comum ° poder de negativamente sancionada e, por outro, tendem a assegurar a
servir de fundamento tanto à dependência e, até mesmo, à§ervt<iãCl., transmutação do capital econômico em capital simbólico. O
quanto à solidariedade, segundo as estratégias adotadas por elas. desperdício de dinheiro, energia, tempo e engenhosidade, é o
Esta ambigüidade essencial de todas as instituições, consideradas princípio mesmo da eficácia da alquimia social pela qual a relação
tendencialmente pelas taxinomias modernas como econômicas, interesseira se transmuta em relação desinteressada, gratuita, a
testemunha que as estratégias opostas que, à semelhança do que se dominação declarada em dominação desconhecida e reconhecida,
passa na relação entre o fazendeiro e seu khammes, podem coexistir, isto é, Çl11 a.u(Q!Macl~legÍtÜ1Jª,O que está em ação é simplesmente
são meios substituÍveisde desempenhar a mesma função; neste caso, o trabalho, o tempo, o cuidado, a atenção, o conhecimento dos usos
..__.a"escolha" entre a violência aberta e a violência branda e invisível que terão de ser prodigalizados para prQduzirJJmp,reseI1fe l2es~oalt
depende do estado das relações de força entre as duas partes, assim irredutível a seu equivalente em dinheiro, um dom que vale pela
como da integração e integridade ética do grupo que arbitra. Assim, maneira de ser doado. Trata-se da despesa aparentemente gratuita
a violência aberta, a do agiota ou do fazendeiro sem compaixão, não somente de bens ou dinheiro, mas de coisas que são ainda mais
continuará esbarrando na reprovação coletiva20 e correndo o risco pessoais, portanto, mais preciosas; com efeito, como dizem os
de suscitar, seja uma resposta violenta, seja a fuga da vítima, isto é, naturais da Cabília, elas não podem" ser emprestadas, nem tomadas
nos dois casos - por fàlta de qualquer recurso- o aniquilamento da de empréstimo", como o tempo - o que é preciso ter para fazer
própria relação que, em princípio, deveria ser explorada; por sua .coisas "que a gente não esquece" porque são feitas como e quando
vez, a violência simbólica, violência branda, invisível, desconhecida é conveniente, atenções, gestos, gentilezas.2l A violência branda exige .
como tal, tanto escolhida quanto suportada, <!~da"confiança, da daquele que a exerce o cumprimento de seus deveres. A autoridade,
Qbrigação, da fidelidade pessoal, da hospitalidade, da 51ádiva, da carisma, graça - ou, para os naturais da Cabília, sarr - é sempre
dívida, do reconhecimento, da compaixªo, de todas as virtudes às percebida como uma propriedade da pessoa: a fJdes, como lembra
quais, em uma palavra, presta homenagem a moral da honra, impõe- Benveniste, não é a "confiança", mas a "qualidade própria de um ser
se como o modo de dominação mais econômico pOr ser mais que atrai para ele a confiança e se exerce, sob a forma de autoridade
adaptado à economia do sistema. protetora, sobre quem se fia nele". 22 A ilusão que coloca no objeto o
Sempre que for impossível praticá-Ia de maneira direta e princípio dos sentimentos responsáveis por sua representação do
I.
brutal, a exploração do homem pelo homem irá assumir a forma de objeto não é inteiramente ilusória. De fato, "a graça" que reconhece
·1
t.)(ploração branda e larvada. É tão falso identificar esta economia a gratidão é, como lembra Hobbes, o reconhecimento pQr uma
I antecedant grace.
essencialmente dupla à sua verdade oficial (generosidade, ajuda
mútua, etc.), isto é, à forma que deve tomar a exploração para se I
A dominação branda é muito mais custosa para aquele que \
realizar, quanto reduzi-Ia à sua verdade objetiva, ao considerar a a exerce - e não somente do ponto de vista econômico. Os encargos !
ajuda mútua como uma çorvéia, o khammes como um tipo de _ tais como, o de tamen, "responsável" ou "fiador" que representava
escravo, e assim por diante. 9Aorn, a generosidade, a distribuiç~o seu grupo (thakharrubth ou adhrum) nas reuniões da assembléia
ostentatória - cujo limite é 9 potlatch - são operações de alquimia dos homens e em todas as circunstâncias solenes (recebendo, por

~ t-
o
N Pierre Bourdieu N
Modos de Dominação
li!
9S

exemplo, o quinhão de seu grupo por ocasião da thimechret) - não de tomar certas liberdades com relação às normas oficiais e devem

eram disputadas nem desejadas. Além disso, não era raro que as pagar seu suplemento de valor com um acréscimo de conformidade
aoS valores do grupo que é o princípio de todo valor simbólico. De
personagens mais influentes e mais importantes do grupo
recusassem esta função ou pedissem rapidamente para serem fato, enquanto não forem constituídos os mecanismos
institucionalizados que permitem concentrar nas mãos de um agente
substituídas: as tarefas de representação e mediação de que o tamen
estava incumbido exigiam, com efeito, muito tempo e muito singular (chefe de partido ou delegado sindical, administrador de
sacrifício. Aqueles a quem o grupo atribui o nome de "sábios" ou sociedade, membro de uma academia, etc.) ªtotalidadedo capital
"grandes" e que, inclusive, na falta de todo mandato oficial, qu~ Úlnda a existência do grupo e de lhe delegar o poder de exercer
encontram-se investidos de um tipo de delegação tácita da autoridade sobre este capital coletivamente possuído pelo conjunto dos
"acionistas", um poder sem relação estrita com sua própria
do grupo, consideram como seu dever (exprimindo, deste modo, a
obrigação para com eles mesmos o que implica uma elevada idéia a contribuição, cada ~gente participa do capital coletivo, simbolizado
respeito de si mesmos) chamar continuamente a atenção do grupo pelo nome da família ou da linhagem, mas na proporção direta de
para os valores que este reconhece oficialmente, tanto por sua su.a contribuição, isto é, na medida exata em que suas ações, suas
conduta exemplar como por suas intervenções expressas: são eles palavras e sua pessoa prestam homenagem ao grupo.24Este sistema
é feito de tal forma que os dominantes se interessem pela virtude:
que, ao verem duas mulheres de seu grupo em via de brigarem,
devem separá-Ias, até mesmo, espancá-Ias (caso se trate de viúvas eles só podem acumular poder político cumprindo seus deveres e
não somente redistribuindo seu dinheiro e bens; eles devem ter as
ou se os homens que são responsáveis por elas estejam desprovidos
virtudes de seu poder, já que seu poder só poderá apoiar-se na virtude.
de autoridade) ou infligir-Ihes um castigo; são eles que, em caso de
conflito grave entre membros de seu clã, devem fazer lembrar o bom
senso aos envolvidos, o que implica sempre dificuldade e, às vezes, Formalidades e Denegação do Interesse
perigo; são eles que, em todas as situações propícias a criar conflitos
entre os clãs (por exemplo, em caso de crime) se reúnem em
assembléia, com o marabuto, para reconciliar os antagonistas: Parece que as condutas generosas, das quais o potlatch (um
incumbeclhes a tarefa de proteger os interesses dos pobres e dos dos curiosa para antropólogos) é apenas um caso limite, deixam na
clientes, ofertando-Ihes dons por ocasião das coletas tradicionais incerteza, por um lapso de tempo, a lei universal do interesse - toma
(por exemplo, no momento da thimechret) e enviando-Ihes lá, dá cá; nada se dá por nada - e instauram relações que contêm em
alimentos por ocasião das festas, prestar ajuda às viúvas, assegurar si seu próprio fim: falar por falar - e não para dizer alguma coisa -,
o casamento das órfãs, etc. dar por dar, e assim sucessivamente. De fato, estas negações do r
interesse nunca são mais do que denegaçõesprátícas. à maneira da L/
Em suma, por não ter a garantia de uma qelegação
Vemeinungde Freud - discurso que só diz o que diz sob uma forma
oficialmente declarada e institucionalmente garantida,ª.ª:Q!Qrida~
que tende a mostrar que ele não o diz -, elas satisfazem o interesse
p~ssºªl só pode perpetuar-se de forma duradoura através de ações
sob uma forma (desinteressada) que tende a mostrar que elas não o
que, praticamente, a reafirmam por sua conformida4e c:01110s yalore..s
satisfazem. Sabemos que "a maneira de dar vale mais do que o que
reconhecidos
~-,-- , pelo grupO.23O mesmo é dizer que, em tal sistema., os
'(
..

se dá"; que o que separa o dom do simples "toma lá, dá cá" é o


"grandes" têm menos possibilidade do que qualquer outra pessoa

~
Modos de Dominação
o trabalho necessário para utilizar formalidades, para transformar a como diz Malinowski, "um banqueiro tri1?al"que se limita a acumular
",~,.~ •. '.V. .._ ._,~ "." , ."'" " .. 0_, ',_,'"

maneira de agir e as formas exteriores da ação na denegação prática mantimentos para poder distribuí-Ios e, assim, ~ntesQtlraJ:"um~<lp~tal
do conteúdo da ação e, assim, transmutar,simbolicamente a troca de obrigação e dívidªs que serão quitadas sob a forma de
interesseira ou a simples relação de força em uma relação efetuada homenagens, respeito, fidelidade e, em caso eventual, de trabalho e
"por pura formalidade" e "conforme as regras estabelecidas", isto é, serviços, bases possíveis de uma nova acumulação de bens
~ por respeito puro e desinteressado d.c:>.s.!:l§Q~
e cpnvenções materiais,27 Os processos de circulação circular, tais como a
reconhecidos pelo grupo. (Parêntese em obséquio aos estetas: pelo arrecadação de um tributo seguido de uma redistribuição hierárquica
fato de que o tempo e o trabalho dedicados a utilizar formas e colocar e hierarquizante, seriam perfeitamente absurdos se não tivessem
no molde são, neste caso, mais intensos porque a censura da como resultado a transmutação da natureza da relação social entre
expressão direta do interesse pessoal é, igualmente, mais forte, as os agentes ou os grupos diretamente envolvidos. Por toda parte em
sociedades arcaicas oferecem aos amadores de belas formas o que são observados, tE:!?_çic1os4e con~!lC!..afãot~.rp.por função realizar
encantamento de uma arte de viver alçada à ordem da "arte pela a operação funda.r:nentald..? (l.lquirnia social, transformar relações
arte" que tem por base a recusa em reconhecer evidências, tais como arbitrárias em relações legítimas, assim como diferenças de fato em
"negócios são negócios" ou "time is money", sobre as quais se apóia distinções oficialmente reconhecidas. As relações duradouras de
a arte de viver tão pouco artística da harried leisure clas$l5 das dominação legítima e dependência reconhecida encontram seu
sociedades ditas avançadas).
fundamento na circulação circular e!n9-tJgsg ..engtD_clI~.3:_I!!ª!s~Vªliª
Possuímos bens para doá-Ios. Somos "ricos para dar aos ~imbólicaque é a legitimação do poder. Considerando apenas o caso
pobres", como dizem os naturais da Cabília.26forma exemplar de particulardas trocas de bens materiais e/ou simbólicos que visam
denegação: porque nos tornamos possuidores também no ato de legitimar relações de reciprocidade, como faz Lévi-Strauss, corremos
doarmos (uma dádiva que não é restituída cria um vínculo o risco de esq uecer que todas as estruturas de troca inseparavelmente
duradouro, uma obrigação, limitando a liberdade do devedor que material (circulação) e simbólica (comunicação) funcionam como
está condenado a uma atitude pacífica, cooperativa, prudente); máquinas ideológicas, desde o momento em que o estado de fato
porque, na falta de qualquer garantia jurídica e de toda força de que elas tendem a legitimar, transformando uma relação social
coerção externa, uma das únicas maneiras de "segurar alguém" de contingente em relação reconhecida, é uma relação de força
forma duradoura consiste em fà.zer durar uma relação assimétrica, assimétrica.
tal como a dívida; porque a única posse reconhecida, legítima, é A reconversão permaf.lentedo capital econôll1i~o_~I11._c<lpi.Eal
aquela de que nos assenhoreamos ao nos desapossarmos dela, isto ~imlJó1ico,mediante o desperdício de energia social que é a condição
é, a obrigação, o reconhecimento, o prestígio ou a fidelidade pessoal. da permanência da dominação, só pode ter sucesso -com a
A riqueza, base derradeira do poder, só poderá exercer um cumplicidade de todo o grupo: <?!!.9:~alh()d~}enegaçãoque está na
poder - e um poder duradouro - sob as espécies do capital simbólico; (jrigem da alquimia social é, como a magia, um empreendimento
em outras palavras, o capital econômico poderá ser acumulado coletivo. "A própria sociedade se dá por satisfeita com a ilusão de
apenas sob as espécies do capital simbólico, forma transformada, seus devaneios", como dizia Mauss. O desconhecimento coletivo
isto é, incognoscível - portanto, suscetível de ser oficialmente que está na origem da moral da honra, como denegação coletiva da
reconhecida -, pelas outras espécies de capital. O chefe é exatamente, verdade econômica da troca, só é possível porque, neste tipo de

o~
C'1 ~
~
Pierre Bourdjeu lVrodos de Dominação C'1
mentira do grupo para consigo mesmo, nunca existe enganador, nem Se for verdade que a violência simbólica é a forma branda e
enganado: o camponês que trata seu khammescomo um associado, enrustida
",.
.. -
assumida pela violência quando esta não pode manifestar-
porque este é o costume e uma exigência da honra, além de se se ab@rtamente, compreende-se que as formas simbólicas da
enganar- porque só pode obedecer a seu interesse sob a forma dominação tenham-se deteriorado progressivamente à medida que
~ufemizada, assumida pela moral da honra -, engana seu khammes, { se constituíam os mecanismos objetivos que, tornando inútil o
a este só resta pedir para entrar, com a cumplicidade de todo o grupo, trabalho de eufemização, tendiam a produzir as disposições
na ficção interesseira que lhe oferece uma representação honrosa d~sendU1tadas exigidas por seu desenvolvimento.3o Compreende-se
de sua condição. O mesmo é dizer que os mecanismos que asseguram também que a tomada de consciência e a neutralização progressivas
a reprodução dos habitusconformistas fazem, aqui, parte integrante dos efeitos ideológicos e práticos dos mecanismos que asseguram a
de um aparelho de produção que não poderia funcionar sem eles. repr.odução das relações de dominação determinem um retorno a
Os agentes só conseguem segurar-se uns aos outros - não somente JO,rfhas de violência simbólica fundadas também na dissimulação
pais e filhos, mas credor e devedor, fazendeiro e khammes - pelas dos mecanismos de reprodução pela conversão do capital econômico
disposições inculcadas e reforçadas continuamente pelo grupo que em capital simbólico: através da redistribuição legitimadora, pública
tornam impensáveis determinadas práticas que a economia (política" social") ou privada (financiamento de fundações
desencantada do interesse* sem qualquer disfarce fará aparecer como "desinteressadas", donativos a hospitais, instituições escolares e
legítimas ou, até mesmo, como evidentes.28 culturais, etc.), tornada possível por eles, é que se exerce a eficácia
dos mecanismos de reprodução. A estas formas de acumulação
A verdade oficial produzida pelo trabalho coletivo de
eufemização, forma elementar do trabalho de objetivaçãoque legítima, pelas quais os dominantes se assenhoram de um capital
conduzirá à definição jurídica das práticas convenientes não é de "crédito" qt;..~,_~~8!1ndp nada deve à lógi~ada explorªçã(),31é
p<g:e,ce,
preciso acrescentar esta outra forma de acumulação de capital
somente o que permite ao grupo salvar seu "ponto de honra
simbólico: a do entesouramento de bens de luxo que certificam o
espiritualista"; ela tem, igualmente, uma eficácia real porque - no
gosto e a distinção de seu possuidor. A denegação da economia e do
pressuposto de que fosse desmentida por todas as práticas, à maneira
i~teresse econôh;;c~ que, nas sociedad~s pré-capitalistas, se exercia, \,
de uma regra que só teria exceções - continua sendo a verdade das
em primeiro lugar, no terreno do qual foi preciso excluí-Ia para
práticas que pretendem ser convenientes. Cada um carrega a moral
constituir como tal a economia, encontra assim seu refúgio de
da honra sobrecarregada com o peso de todos os outros; além disso,
predileção no domínio da arte e da cultura, lugar do puro consumo,
o desencantamento que conduz ao desvendamento progressivo das de dinheiro, é claro, mas também de tempo não conversível em
significações e funções recalcadas só poderá resultar do dinheiro. Reduto de sagrado que se opõe de maneira sistemática e
desmoronamento das condições sociais da censura cruzada que cada ostensiva ao universo profano e cotidiano da produção, refúgio da
qual suporta com impaciência, sem deixar, no entanto, de impô-Ia
gratuidade e do desinteresse em um universo dominado pelo dinheiro
aos outros.29
7 como, em outros tempos,
e pelo interesse, o Il}Q1l4()<iªJ'lrt~_pr()pº_~
a teologia - uma antropologia imaginária obtida pela denegação de
___"',.•••••
Iii.l.,J;QQii,~~gaÇQǧc#Qpçqlda realmen,te pela ecollolJli,~'
• No original. int6rêt; assinale"se que este termo significa também "juro" (de êàpital
aplicado). -

«)
C'l •....
•.... C'l
C'l Pierre Bourdieu' Dominação _
Notas e Referências Bibliográficas tempo, a mudança da estrutura das obras (GREENE, W C. "The Spoken and the Written
Word" in HarvardStudies in Classical Philology, 9, 1951. p. 24-58). Eric A. Havelock
-·-'~","M':'f:';~;'~;'".'\.~'<:""',,,,;,;;U~~) rnostratambém que os recursos culturais acabam por se transformar, em seu próprio
1. "Les modes de domination" in Actes de la recherche en sdences sodales, junho de ccíiltê'údo,pela transformação da tecnologia de conservação e da transmissão cultural
1976, n° 2/3, p. 122-132. Tradução de Maria da Graça]acintho Setton; revisão técnica (the tecnoJogy ofpreserved communication) e, em particular, pela passagem da mimese
de Guilherme]oão de Freitas Teixeira. - como reativação prática que mobiliza todos os recursos de uma "configuração de
ações organizadas" (partem of organized aetions) com função mnemânica, música,
2. Em várias ocasiões, já tem sido sublinhado que a lógica que faz da redistribuição de
ritmo, palavras faladas, em um atQ de identificação afetiva - para o discurso escrito,
bens a condição da perpetuação do poder tende a frear ou impedir a acumulação
portanto, passível de ser repetido e reversível, separado da situação e predisposto, por
primitiva do capital econômico e o desenvolvimento da divisão em classes (cf., por
sua permanência, a tornar-se objeto de análise, controle, confrontação e reflexão
exemplo, WOLF, E. Sons of the Shaking Earth, Chicago, Chicago University Press,
1959. p. 216). (HAVELOCK,E. A. Preface to Plato, Cambridge, Mass., Harvard U.P., 1963). Enquanto
a linguagem não for objetivada na escrita, a palavra falada permanecerá indissociável
3. FINLEY, Moses r. "Technical Innovation and Economic Progress iri the Andent daquele que fala, de toda a sua pessoa, e só poderá ser manipulada à distância e, em
Word" in The Economic History Review, 18, (1), august 1965. p. 29-45, especialmente sua falta, sob o modo da mimese, o que exclui a análise e a crítica.
p. 37; cf., também, FINLEY,Moses r. "Land Debt, and the Man of PropeayJnClassicaI. __ •..._.~_; ....
Athens" in Political Sdence Quarterly. 68, 1953. p. 249-268 10. Uma história social sobre a noção de diploma - em que o diploma escolar ou o
título nobiliárquico são casos particulares - deveria mostrar as condições sociais e os
4. cf. BOHANNAN, P."Some PrincipIes ofExchange and Investment among the Tiv" efeitos da passagem da autoridade pessoal, que não pode ser delegada nem transmitida
inAmericanAnthropologist, 57, (1), 1955. p. 60-70
hereditariamente (e.g., a gratia, consideração, influência, dos romanos), para o título
5. POLANYI, K. Primitive Archaic and Modem Economics, (George Dalton, ed.) Nova ou, se quisermos, a passagem da honra para o jus honorum assim; por exemplo, em
York, Doubleday and Co, 1968, e The Great Transformation, Nova York, Rinchart, Roma, o uso dos títulos (e.g., eques romanus) que definia uma dignitas, como posição
1944. É paradoxal que, em sua contribuição para uma obra coletiva editada por Karl reconhecida oficialmente no Estado (em oposição a uma simples qualidade pessoal),
Po!anyi, Francisco Benet - por estar demasiado atento à oposição entre o mercado e a acabou progressivamente por ficar submetido - da mesma forma que o uso das insignia
aldeia - praticamente silencia tudo aquilo que faz com que o suq local fique controlado - aos controles minuciosos do uso ou do direito (cf. NlCOLET, CI. I:ordreéquestre à
pelos valores da economia da boa fé (cf. BENEt F. "Explosive Markets: The Berber l'époque républicaJ17e,], Définitions juridiques et structures sociaJes, Paris, ] 966. p.
Highlands"in K. PoÚmyi,C. M. Arensberg e H. W. Pearson, eds, Trade and Market in 236-24]).
the Early Empires, Nova York, the Free Press, 1957).
11. Cf. sobre este ponto, BOURDIEU, P.e BOLTANSKI,L. "Le titre et le poste: rapports
6. O vendedor pouco escrupuloso de animais não conseguirá encontrar um fiador entre le systeme de production et le systeme de reproduction" in Actes de Iarecherche
(nem para a mercadoria que oferece); além disso, não poderá exigir caução do en sciences sodales, no 2, março de 1975. p. 95-107. [NT: Texto já traduzido: "O
comprador.
diploma e o cargo: relações entre o sistema de produção e o sistema de reprodução" in
7. A crença, freqüentemente observada nas religiões iniciáticas, de que o saber pode BOURDIEU, P.Escritos de educação (org. de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani),
Petrópolis, Vozes, 1998.p.127-144]
ser transmitido por diferentes formas de contato mágico - das quais a mais típica é o
beijo - representa um esforço para transcender os limites deste modo de conservação: 12. É o caso, por exemplo, da ideologia carismática (ou meritocrática) que explica,
"Tudo o que vier a aprender, o especialista irá aprendê-Io de outro dukun que é seu pela desigualdade dos dons naturais, as oportunidades diferenciais de acesso aos
guru (mestre); e tudo o que vier a aprender, ele irá designá-Io por seu ilmu (ciência). diplomas, reproduzindo assim o efeito dos mecanismos que dissimulam a relação entre
Por ilmu, entende-se, em geral, um tipo de conhecimento abstrato e uma atitude os diplomas obtidos e o capital cultural herdado.
excepcional, mas os espíritos 'concretos' e um pouco 'ultrapassados' vêem ai, às vezes, 13.DURKHEIM, E.lVIontesquieu et Rousseau précllrsellrs de Ia sociologie, Paris. Riviere
um tipo de poder mágico perfeitamente real que, neste caso, pode ser objeto de uma et Cie, 1953. p. 197
transmissão mais direta que o ensino" (GEERTZ, C. The Religion offava, Nova York, 14. Ibid. p. 195. A analogia com a teoria cartesiana da criação continuada é perfeita. E
The Free Press ofGlencoe, Londres, Collier-Mac Mi!lan Ld., 1960. p. 88). logo que Leibniz, criticando Deus condenado a mover o mundo "como o carpinteiro
8. Cf., em particular, GOODY, ]. e WATI; L "The 'Consequences of Literacy" in manipula seu machado ou como o moleiro dirige sua mó, desviando ou orientando as
Comparative Studies in Society and HistoIy, V; 1962-63. p. 304 ss.; e GOODY,]. (ed.), águas para a roda" (LEI8NIZ, G. W. "De Ipsa Natura" in Opuscula philosophica selecta,
Literacy in TraditionaJSocieties, Cambridge, Cambridge University Press, 1968. Paris, Boivin, 1939. p. 92), opõe ao mundo cartesiano, incapaz de subsistir sem uma
assistência de todos os instantes, um mundo físico dotado de uma vis propria, ele
9. "O poeta é o livro encarnado das tradições orais" (NOTOPOULOS, J. A. "Mnemosyme
anuncia a crítica contra todas as formas da recusa de reconhecer ao mundo social uma
inOral Literature" in Transaetions and Proceedings of the American PhilologicaJ natureza, isto é, uma necessidade imanente, que só muito mais tarde irá encontrar sua
Association, 69, 1938. p. 465-493, especialmente, p. 469). Em um belíssimo artigo.
expressão (isto é, precisamente na introdução aos Principes de IaphjIosophie du droit
Wi!liam C. Greene faz ver como a mudança do modo de acumulação, circulaçãú'e de Hegel).
reprodução da cultura acarreta a mudança da função que lhe compete e, ao mesmo
15. Se os atos de comunicação - trocas de dons, desafios ou palavras, etc. - contêm

-
..q-

N
Pierre Bourdieu
Modos de Dominação
-N
lf)
~
sempre em si a virtualidade do conflito é porque eles encerram sempre a possibilidade implicitamente pelas evocações rousseaunianas dos paraísos originais ou pelas
da dominação. A violência simbólica é, com efeito, esta forma de dominação que, dissenaçóes sobre a "modernização" - é totalmente desprovida de sentido e só pode
ultrapassando a oposição que se estabelece comumente entre as relações de sentido e da,rlugar a debates, por definição, intermináveis sobre as vantagens e os Inconvenientes
as relações de força, entre a comunicação e a dominação, só se realiza através da dó antesedodepois, cujo único interesse consiste em revelar as fantasias sociais do
comunicação sob a qual ela se dissimula. pesquisador, isto é, a relação não analisada que ele mantém com sua própria sociedade.
16.Vemosque não é suficiente observar, como fez Marshall D. Sahlins, que a economia Como em todos os casos em que se trata de comparar um sistema a outro, podemos
pré-capitalista não oferece as condições de um modo de dominação, indireto e opor indefinidamente representações parciais dos dois sistemas (por exemplo,
impessoal, no qual a d'ependência do trabalhador em relação ao patrão é o produto encantamento vel:msdesencantamento), cuja coloração afetiva e conotações éticas
quase automático dos mecanismos do mercado do trabalho, para tornar visível a forma variam somente, para sua consti tuição, do sistema que é tornado como ponto de vista.
"
específlca assumida, nesse caso, pelas relações de dominação (d. SAHLINS, M. D. "
, Os siSTemas considerados enquanto tais constituem o único objeto legítimo de
"Political Power and the Economy in Primitive Society" in G. E. Dole e R. L. Carneiro, comP'llação" o que impede qualquer avaliação diferente daquela que está implicada
Essays in the Science of Culture, Nova York, Thomas Y. Crowell Company, 1960. p. na lógicairnaneme da evolução,
390-415; "Poor Man, Rich Man, Big Man, Chief: Political Types in Melanesia and 20. Alguns agiotas, com medo de se exporem à perda da honra e serem banidos do
Polynesia" in Comparative Studies in Society and Hstory, 5, 1962-63. p. 285-303; grupo" preferem acenar novos prazos (até a colheita das azeitonas) com seus devedores
"On the Sociology ofPrimitive Exchange" in M. Banton ed., The Relevance ofModels a fim de não serem obrigados a vender terras para quitar suas dívidas. Inúmeros
for SociaJAnthropology, London, Tavistock Publications, 1965. p. 139-236). Do mesmo indivíduos que não haviam hesitado a desprezar a opinião da maioria pagaram tal
'''I
modo que estas condições negativas, cuja evocação está plenamente justificada contra desafio - às vezes, com a vida - no decorrer da guerra de libertação [NT:No original,
todas as formas de idealismo e idealização, não são pertinentes em relação à lógica JibératioJ:J: referência à libertação dos territórios ocupados pelas tropas nazistas, por
específicada violência simbólica, assim também a falta de pára-raios ou telégrafo elétrico ~ ocasião da Segunda Guerra Mundial; no jargão jurídico, este termo é utilizado para
evocada por Marx na célebre passagem da Introduetion généraJe à la Critique de • significar quitação ou extinção de dívida ou obrigação.).
i'économie politiquenão é suficiente para justificar a existência de]úpiter ou Hermes, 1
~ 21. Nas economias em que os bens são mais raros que o tempo, a eficáciatransformadora
isto é, a lógica interna da mitologia e arte gregas.
se refere sobretudo ao desperdício de bens e dinheiro; nas formações sociais (ou classes
.i
17. O "olhar" int~.rªçJºnista que, ignorando os mecanismos objetivos e sua eficácia, sociais) em que os bens tendem a tornarcse menos raros que o tempo, que não pode
\'
dedica-se às interações diretas entre os agentes, encontraria seu terreno de eleição ser acumulado (embora possamos nos apropriar do tempo dos outros), é o desperdício
nesse tipo de sociedades, isto é, no caso precisamente em que, em razão da relação que de tempO' que detém a maior eficácia (este é o fundamento do prestígio associado aos
}
une comumente o etnólogo a seu objeto, ele é o mais improvável. Para continuar o consumos culturais que supõem um dispêndio de tempo para o próprio consumo e
º
jogo dos paradoxos, podemos observar que es~ruturalisn1(), no sentido rigoroso do '} para 3l aquisição das condições de acesso ao consumo).
termo, isto é, enquanto ciência das estruturas objetivas do mundo social (e não somente
das representações que os agentes têm a esse respeito), nunca é tão inadequado (ou
! 22. BEt"'VENISTE, E. op. cir. t. 1, p. 117 ss.
menos fecundo) quanto ao ser aplicado a sociedades em que as relações de dominação
) 23. Os marabutos encontram-se em uma situação diferente por disporem de uma
e dependência são o produto de uma verdadeira criação continuada (a menos que não
'"
. delegaçãO' institucional como membros de um corpo respeitado de "funcionários do
queiramos defender - como faz implicitamente o estruturalismo, tal como o entende culto'" to: por manterem um status separado - em particular, uma endogamia muito
Lévi-Strauss - que, neste caso, a estrutura reside na ideologia e que o poder reside na rigorosa. e um conjunto de tradições próprias, como a reclusão de suas mulheres. Ocorre
posse dos instrumentos de apropriação dessas estruturas, isto é, na forma de capital )
f
que aqueles a respeito dos quais se diz que, "semelhantes à torrente, engrossam em
cultural). tempodetempestade", não podem, como sugere o ditado, tirar proveito de sua função
t - quase institucionalizada - de mediadores a não ser que encontrem, em seu
18. A história do vocabulário das instituições indo-européias, escrita por Émile
Benveniste, apreende os referenciais lingüísticos do processo de desvelamenro e 1
j,

Í!
'conherimento das tradições e pessoas, o meio de exercerem uma autoridade simbólica
que só existe por delegação direta do grupo: frequentemente, os marabutos limitam-
desencantamento que conduz da violência física ou simbólica ao direito, do resgate
(do prisioneiro) à compra, do prêmio (por um feito brilhante) ao salário, assim como } se a sa- o álibi objetivo - a "porta", como dizem os naturais da Cabília - que permite
do reconhecimento moral ao reconhecimento de dívidas, da crença ao crédito ou, ainda, aos grupos em conflito chegarem a um acordo sem perderem o prestígio.
da obrigação moral à obrigação executória diante de um tribunal. (BENVENlSTE, É.
Le Vocabulaire des institutions indo-européennes, Paris, Ed. de Minuit, 1969,
especialmente, t. 1, Economie, parenté, société, p. 123-202). E do mesmo modo, Moses
L. Finley mostra que a dívida que, às vezes, era administrada para criar um relação de
i 24. I.IDlVe:rsamente,enquanto a delegação institucionalizada, acompanhada por uma
definiÇioexplícita de responsabilidades, tende a limitar as conseqüências das faltas
individuais, por sua vez, a delegação difusa, correlativa do fato do pertencimento,
assegma a todos os membros do grupo, sem distinção, a caução do capital possuído
servidãopodia também servir para criar relações de solidariedade entre iguais' (FINLEY, coletmmente; no entanto, não os coloca ao abrigo do descrédito que poderá advir da
M. L. "La servitude pour dettes" in Revue d'histoire du droit français et étranger, 4a cond!tJltadeste ou daquele membro, o que explica a preocupação manifestada pelos . ..
••••
_, •••
_•••••••"•••
s••• ê;~~'~'1lm:;jí1íi1m'atr965.p. 159-184).
~""~i
••• "grandes"" ao defenderem a honra coletiva na honra dos membros mais dêspróvi1fós~ ' .1 li) •..
011._'. ."m.",".,".,.,,·
seugmpo.
A questão do vaJorrelativo dos modos de dominação - formulada, pelo menos,

-
\O
N Pierre Bourdieu Modm; t1~Dominação
25. d. LINDER, S. B. The Harried Leisure Class, Nova York e Londres. Columbia . Mifflin Company, 1944). Cf. também GABLE,Richard W. "N.A.M.: Influential Lobby
University Press, 1970. or Kiss of Death?" in The journal of Polities, 15 (2), may 1953. p. 262 (sobre os
26. "Concede-me bens, ó meu Deus, para que eu possa dar" (apenas o santo pode dar diferentes modos de ação da N.A.M., ação sobre o grande público, educadores,
--i···~resiâsticos, líderes de clubes femininos;'líderes agrícolas, etc.) e TURNER, H. A.
sem nada ter). A riqueza é um dom concedido por Deus ao homem para permitir-lhe
atenuar a miséria dos outros. '.'0 generoso é amigo de Alá". Os dois mundos lhe "How Pressure Groups Operate:' in The Annals ofthe Ameriean AcademyofPolitieal
and SocialScience, 319, september 1958. p. 63-72 (sobre a maneira como a organização
pertencem. Quem pretender guardar a riqueza deverá mostrar-se digno dela, mostrando-
eleva-se na estima do público e condiciona as atitudes de modo a criar tal estado da
se generoso; caso contrário, esta lhe será retirada.
opinião pública que o público acolherá com fervor, quase automaticamente, os
27. Convém abstermo-nos de opor ao excesso a simetria da troca dos dons e a assimetria
programas desejados pelo grupo).
da redistribuição ostentatória que se encontra na base da constituição da autoridade
política. Passamos por etapas de uma para outra; à medida que nos afastamos da
reciprocidade perfeita, não cessa de crescer à parte das contraprestações que é
constituída por homenagens, respeito, obrigações e dívidas morais. Aqueles que, como
Polanyi e Sahlins, perceberam perfeitamente a função determinante da redistribuição
na constituição da autoridade política e no funcionamento da economia tribal (o circuito
acumulação-redistribuição desempenha funções análogas às do Estado e das finanças
públicas) não analisaram esta operação como técnica privilegiada de reconversão do
capital econômico em capital simbólico, capaz de produzir relações duradouras de
dependência que - fundadas, do ponto de vista econômico - dissimulam-se sob o véu
das relações moraÍs.
28. Segue-se que o erro objetivista - e, particularmente, o que consiste em ignorar os
efeitos da objetivação do não-objetivado - está mais prenhe de conseqüências em um
universo em que, como aqui, a reprodução da ordem social depende mais da reprodução
incessante dehabitusconformistas do que da reprodução automática das estruturas
capazes de engendrar ou selecionar tais habitus.
29. A urbanização, que aproxima grupos dotados de tradições diferentes e enfraquece
os controles cruzados, ou o simples êxodo das zonas rurais determinado pela
generalização das trocas monetárias e pela introdução do assalariado, provocam a
desmoronamento da ficção coletiva, tecida coletivamente, que era a religião da honra.
É assim; por exemplo, que a confiança foi substituída pelo crédito (talq), antes
amaldiçoado ou desprezado (como é testemunhado pelo insulto: "ó face de crédito" -
semblante de quem, perpetuamente humilhado, deixa de se sentir desonrado-, ou o
fato de'que o repúdio sem restituição, ou seja, a maior ofensa que se possa conceber, se
chama berru natalq). "Na era do crédito, como diz um informante, infelizes são
realmente aqueles que só podem invocar a confiança de que usufruíam seus pais.
Tudo o que conta é o haver imediato. Todo O mundo pretende ser homem de negócios.
Todo o mundo acredita ter direito à confiança, de tal modo que esta deixou de existir."
30. A luta ideológica entre os grupos (faixa etária ou sexo) e as classes sociais pela
definição da realidade opõe a violência simbólica, como violência desconhecida e
reconhecida - portanto, legítima -, e a tomada de consciência do arbitrário que tira
dos dominantes uma parcela de sua força simbólica, abolindo o desconhecimento.
Esta luta ideológica pela definição da realidade faz parte da definição científica da
realidade.

31. Não é o sociólogo, mas um grupo de industriais americanos que, para explicar o
efeito das "relações públicas", forjaram a "teoria da conta bancária" que "exige que
façamos depósitos regulares e freqüentes no Banco da Opinião Pública (BankofPublie
Good- vVi'/l) de maneira a poder descontar cheques desta conta quando'necessário"
(citação feita por KEAN, Dayton Mac. Partyand Pressure Policies,Nova York, Houghton

'O
~
N 00
~ o-
N Pierre BourdÍeu Modos de Dominação C"

Você também pode gostar