Você está na página 1de 204

Leandro Santos Bulhões de Jesus

Franck Pierre Gilbert Ribard


ORGANIZADORES

NA UNIVERSIDADE
Negros, indígenas e quilombolas
entre negociações, afirmações
e disputas
Nós na universidade
Negros, indígenas e quilombolas
entre negociações, afirmações e disputas
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva

Ministro da Educação
Camilo Sobreira de Santana

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ – UFC


Reitor
Prof. Custódio Luís Silva de Almeida

Vice-Reitora
Profa Diana Cristina Silva de Azevedo

Pró-Reitor de Planejamento e Administração


Prof. João Guilherme Nogueira Matias

Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação


Profa Regina Celia Monteiro de Paula

IMPRENSA UNIVERSITÁRIA
Diretor
Joaquim Melo de Albuquerque

CONSELHO EDITORIAL DA UFC


Presidente
Prof. Paulo Elpídio de Menezes Neto

Conselheiros
Joaquim Melo de Albuquerque
José Edmar da Silva Ribeiro
Felipe Ferreira da Silva
Maria Pinheiro Pessoa de Andrade
Prof.ª Ana Fátima Carvalho Fernandes
Prof. Guilherme Diniz Irffi
Prof. Paulo Rogério Faustino Matos
Prof.ª Sueli Maria de Araújo Cavalcante
Leandro Santos Bulhões de Jesus
Franck Pierre Gilbert Ribard
(Organizadores)

Nós na universidade
Negros, indígenas e quilombolas
entre negociações, afirmações e disputas

Fortaleza
2023
Nós na universidade: negros, indígenas e quilombolas entre negociações,
afirmações e disputas

Copyright © 2023 by Leandro Santos Bulhões de Jesus, Franck Pierre Gilbert Ribard (Organizadores)

Todos os direitos reservados

Publicado no Brasil / Published in Brazil


Imprensa Universitária – Universidade Federal do Ceará
Av. da Universidade, 2932 – Benfica, Fortaleza – Ceará, Brasil

Coordenação editorial
Ivanaldo Maciel de Lima

Revisão de texto
Leidyanne Viana Nogueira

Normalização bibliográfica
Luciane Silva das Selvas

Programação visual
Sandro Vasconcellos /Victor Alencar

Diagramação e tratamento de imagens


Sandro Vasconcellos

Capa
Heron Cruz

Ilustração da capa
Cirulo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Imprensa Universitária – Universidade Federal do Ceará
N897 Nós na Universidade [livro eletrônico] : negros, indígenas e quilombolas entre negocia-
ções, afirmações e disputas / Organizadores, Leandro Santos Bulhões de Jesus e
Franck Pierre Gilbert Ribard. – Fortaleza: Imprensa Universitária, 2023.
3.659 Kb. : il. ; PDF. (Coleção Estudos da Pós-Graduação)

ISBN: 978- 85-7485-450-2

Povos indígenas. 2. Quilombolas - Ceará 3. Indígenas - educação. I. Jesus,


Leandro Santos Bulhões de, org. II. Ribard, Franck Pierre Gilbert, org. III. Título.

CDD 980.41
Elaborada por: Luciane Silva das Selvas – CRB 3/1022
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................. 7

QUILOMBO, TERREIRO, UNIVERSIDADE: o saber de si


Maria Josefa da Conceição (Maria de Tiê) ....................................... 14

CAPITALISMO RACIAL E ALGUMAS OBSERVAÇÕES


SOBRE COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Tshombe Miles .................................................................................... 19

AQUILOMBAMENTOS: lutas quilombolas, educação e


protagonismo feminino no Ceará
Marcelle Carvalho, Joseli do Nascimento Cordeiro .......................... 31

COSMOPERCEPÇÃO QUILOMBOLA: trajetórias e desafios


de casa à universidade
Ana Maria Eugênio da Silva .............................................................. 44

A “RETOMADA DA EDUCAÇÃO”: uma experiência de educação


quilombola no Quilombo Nazaré em Serrano do Maranhão (MA)
Maria da Conceição Pinheiro de Almeida ......................................... 56

TERRA, TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES E BEM-VIVER


NO QUILOMBO DO CUMBE – ARACATI (CE) E NA TERRA
INDÍGENA TREMEMBÉ DA BARRA DO RIO MUNDAÚ –
ITAPIPOCA (CE)
José Luís Joventino do Nascimento (João do Cumbe), Mateus de
Castro Ferreira (Mateus Tremembé) ................................................. 71
POVO INDÍGENA ATIKUM, MEMÓRIA E LUTA
POR DIREITOS
Maria das Graças da Silva (Graça Atikum) ...................................... 81

EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO CEARÁ: lutas,


avanços e desafios
Jonathan Silva Brito .......................................................................... 91

INDÍGENAS NA ANTROPOLOGIA E OS DESAFIOS DA


PESQUISA DENTRO E FORA DAS UNIVERSIDADES
Felipe Sotto Maior Cruz (Felipe Tuxá) ............................................ 103

MUITO ALÉM DO ACESSO: protagonismos, resistências e


difusão de novos saberes de estudantes africanos na universidade
pública brasileira na década de 1960
Viviane de Souza Lima ..................................................................... 125

OS CAMINHOS DE ACESSO À EDUCAÇÃO ESCOLAR


E A VIDA UNIVERSITÁRIA NA GUINÉ-BISSAU
Adilson Victor Oliveira .................................................................... 137

DA ÁFRICA PARA O BRASIL: contribuições da divulgação do


cinema africano na luta antirracista (2007-2022)
Franck Ribard .................................................................................. 152

UNIVERSIDADES, AÇÕES AFIRMATIVAS E


DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS
Elisângela Oliveira de Santana, Leandro Santos Bulhões de Jesus ..... 165

O QUE DIACHO É NECROPOLÍTICA?


Felipe Ricardo Vieira Lopes ............................................................ 179

AS/OS AUTORAS/ES ................................................................... 193


APRESENTAÇÃO

O 1.º Simpósio Nós na Universidade: Povos Tradicionais,


Educação e Políticas Públicas,1 realizado de forma remota de 8 a
10/12/2021, na Universidade Federal do Ceará, foi um sucesso!2 Contou
com uma frequência on-line de cerca de mil pessoas nas rodas de con-
versa e outras dezenas nos minicursos ministrados, revelando um pú-
blico entusiasmado com os temas taratados. As gravações das rodas de
conversa estão disponíveis no canal do YouTube do Programa de Pós-
Graduação em História,3 e, por meio deste livro, ampliamos as possibi-
lidades de desdobramentos dos debates realizados pelos participantes e
organizadoras/es do simpósio. Se nas universidades o conhecimento
por escrito ainda é hegemônico, investimos na sistematização das ideias
também no formato de livro, apostando na sedimentação das questões
importantes abordadas. É coisa feita! E estamos muito felizes em apre-
sentar este e-book, realizado de forma coletiva e com muitas mãos...
negras, indígenas, quilombolas, ciganas, brancas, de professores e estu-
dantes, de lideranças de povos tradicionais, de sacerdotes de religiões
de matrizes africanas...
Este livro é então um mosaico, contando com participações di-
versas que revelam as posições, pesquisas, lutas e experiências daquelas
e daqueles que, interessadas/os de maneiras diferentes pelo tema das
ações afirmativas, se juntaram para pensar e debater a questão da neces-

l Disponível em: https://www.even3.com.br/nosnauniversidade1/


2 O evento foi organizado pelo Grupo de Estudos Caldeirão: Confluências Anticoloniais,
com estudantes do Programa de Pós-Graduação em História, do Mestrado Profissional
em Ensino de História (ProfHistória) e da graduação em História da Universidade
Federal do Ceará e integrantes do Grupo de Estudos Caldeirão e do Nudoc-UFC.
3 Disponível em: https://www.youtube.com/c/ppghufc
sária participação e permanência dos povos tradicionais no âmbito da
universidade pública e da educação superior, em particular. Além disso,
também empreende uma discussão ampla sobre direito à educação,
considerando o papel do Estado no cumprimento de marcos normativos
conquistados, bem como o reconhecimento de soberanias intelectuais,
autonomias e autogestão que os povos têm, apesar das forças de con-
trole do Estado-nação.
Com o título “Nós na universidade”, pretendíamos problematizar
tanto os entraves que historicamente constituem essa instituição, a partir
da imagem de linhas enlaçadas, amarradas, aparentemente encerradas
que o “nó” sugere, quanto os impactos da entrada de novos sujeitos
dentro desses espaços, o “nós”, terceira pessoa do plural, coletivo.
O evento e, agora, este livro são também marcos importantes do
registro da entrada das duas últimas turmas de cotistas negros, indí-
genas e quilombolas4 na Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Ceará. Trata-se de uma política de ação afirmativa ancorada
em lei nacional desde o ano de 2012, mas que ainda hoje carece de um
movimento mais robusto de implementação, associado a políticas de
permanência no Ceará e em outros diferentes lugares do Brasil.
O texto que abre o nosso livro é uma cuidadosa transcrição da
fala de D. Maria Josefa da Conceição, conhecida por mestra Maria de
Tiê. Foi ela quem também fez a abertura do nosso evento, e sua narra-

4 As rodas de conversa e os respectivos participantes foram: Nós na Universidade: mestra


Maria Tiê, Felipe Sotto Maior Cruz – Tuxá, professora e sacerdotisa Patrícia Adjoke,
Rogério Cigano Ribeiro; Comunidades Tradicionais, Educação Básica e Ensino de
História: João do Cumbe, Jonathan Silva Potiguara, Tshombe Miles, Zuleide Queiroz;
Comunidades Tradicionais: Patrimônio e Perspectivas: Ana Eugênia, Antônia Kanindé,
Francisco Phelipe Cunha Paz, Adilson Victor Oliveira. Minicursos ministrados e autoras/
es: “Quilombos, mulheres e as diversas invisibilidades” – Marcelle Danielle de Carvalho
Braga e Joseli do Nascimento Cordeiro; “Terra, território, territorialidades e bem-viver
– João do Cumbe, Mateus de Castro Ferreira (Mateus Tremembé); “Rompendo silencia-
mentos: materiais didáticos e relações interétnicas para uma descolonização do conhe-
cimento” – Natali Mendes de Lima, Michele Soares, Héctor Cândido Oliveira Barreto;
“Slams e saraus: poesia falada e educação” – Natália Pinheiro, Lais Eutália Silva de
Sousa, Má Dame; “Os caminhos de acesso à educação escolar e a vida universitária
na Guiné-Bissau” – Nkanande Ka, Adilson Victor Oliveira; “Capoeira e disputas sociais
pela legitimidade social nos meados do século XX” – Diego Bezerra Belfante. Monitora
do evento: Larissa Maria Alves Santiago.

8
tiva é um convite para reflexões em torno das distâncias e aproxima-
ções entre os chamados conhecimentos tradicionais e acadêmicos;
sobre a necessidade de as universidades públicas ampliarem ações em
diálogo com os povos tradicionais e sobre como a sua trajetória é uma
possibilidade de acessarmos suas estratégias de enfrentamento ao ra-
cismo e de empoderamento. Com ela, aprendemos que o saber de si, a
ancestralidade, a autonomia, a autogestão e a construção e manutenção
das redes são ferramentas mobilizadoras imprescindíveis para a defesa
de projetos de sociedades que têm sido historicamente perseguidos,
como é o caso de sua comunidade, chamada Quilombo dos Souza, lo-
calizada no sítio Vassourinha, em Porteiras-CE, na região carirense, que
também tem terreiro de umbanda.
Seguindo esse fio da discussão sobre quilombos, numa perspec-
tiva histórica, em “Capitalismo racial e algumas observações sobre co-
munidades quilombolas” interessou ao professor Tshombe Miles trazer
à tona as múltiplas experiências de autonomia negra na diáspora como
alternativa ao capitalismo/neo-liberalismo ou ao que ele chama de “ca-
pitalismo racial”, em diálogo com outros autores. Os quilombos e ou-
tras ações de expressão de soberania do povo negro – a despeito dos
projetos escravistas em marcha – ameaçaram ordens estabelecidas e
desafiaram projetos de hegemonia, como é o caso emblemático do
Haiti. De que maneira essas discussões nos ajudam a imaginar possibi-
lidades de autogestão dessas comunidades no presente, considerando as
grandes teias do capitalismo global?
Marcelle Carvalho e Joseli do Nascimento Cordeiro concentram
as suas reflexões sobre a abrangência e a complexidade da problemática
e também do conceito de quilombo. Voltando-se, de maneira privile-
giada, para o contexto cearense, destacam, a partir da fala de várias
mulheres militantes quilombolas, o papel central do protagonismo fe-
minino e da luta cotidiana para o acesso à educação e à educação supe-
rior em particular.
Ana Maria Eugênio da Silva, com seu texto “Cosmopercepção
quilombola: trajetórias e desafios de casa à universidade”, propõe uma
discussão em torno das disputas epistemológicas entre quilombolas e
não quilombolas. Com dados sobre a presença quilombola nas univer-

9
sidades no estado do Ceará, reivindica o direito à educação qualificada
e específica, porém sem perder de vista o poder do entrecruzamento de
saberes. Para além da entrada dos corpos, de que maneira os conheci-
mentos podem ser respeitosamente mobilizados numa relação lá e cá,
“de casa à universidade”?
Depois de nos situar em relação ao contexto nacional da edu-
cação quilombola, do ponto de vista dos determinantes de leis e de-
cretos que interferem na sua definição, pelo menos teoricamente, Maria
da Conceição Pinheiro de Almeida aborda a situação específica do
Maranhão, onde, apesar de certos avanços, a educação quilombola
“ainda está distante de atender ao que estabelecem as Diretrizes da
Educação Quilombola”. A “retomada da educação”, a reapropriação
pelos quilombolas, alunos, professores e moradores da definição dos
conteúdos e dos processos educativos surgem, então, no exemplo do
Quilombo Nazaré (zona rural do município de Serrano do Maranhão/
MA), como soluções originais de autonomização.
José Luís Joventino do Nascimento (João do Cumbe) e Mateus
de Castro Ferreira (Mateus Tremembé) delineiam os contornos da
questão central da luta pela posse dos espaços de convívio das comu-
nidades tradicionais no Brasil. Fazendo dialogar as suas experiências
próprias de quilombola e de indígena oriundos de comunidades litorâ-
neas do Ceará, refletem sobre as implicações ligadas à problemática
territorial que precisa garantir o direito constitucional e permitir a au-
tonomia dessas comunidades, a perenidade das suas experiências, tra-
dições e saberes.
Graça Atikum trilha uma narrativa que apreende, numa perspec-
tiva processual, o momento atual vivido pelos povos originários no
Brasil diante da emergência de novas gerações de militantes, que, ao
lado das lideranças tradicionais, já antigas, mostram-se dispostas a en-
frentar os desafios contemporâneos. Voltando-se para o seu próprio
contexto, o povo Atikum (Sertão de Pernambuco), a autora enfatiza a
importância desse protagonismo dos jovens, ancorados nas suas tradi-
ções, que os leva, cada vez mais, a cursar formações universitárias, tra-
zendo novas perspectivas à educação pública superior e, ao mesmo
tempo, por meio da confluência estabelecida, abrindo novos horizontes

10
para a escrita de uma nova história, na qual os povos originários são
tanto atores como autores, tendo na oralidade um lócus incontornável
de construção e transmissão dos conhecimentos.
Enfocando as lutas dos povos indígenas por educação, Jonathan
Silva Brito faz um recorte específico no texto “Educação escolar indí-
gena no Ceará: lutas, avanços e desafios”. Estudante do curso de
Licenciatura Intercultural Indígena da UFC, o potiguara discute sobre a
educação indígena brasileira com um enfoque nas experiências cea-
renses, abordando a trajetória das lutas numa perspectiva historicizada,
tomando como base os marcos normativos recentes, que vêm trazendo
avanços. Foi depois da publicação da constituição de 1988 que o ce-
nário mudou radicalmente. Entretanto, aponta o autor que a educação
indígena possui muitos entraves para serem resolvidos em diferentes
escalas, do local ao nacional.
A entrada de estudantes indígenas nas universidades é um evento
que representa um grande desafio para os integrantes de grupos histori-
camente excluídos de espaços acadêmicos de produção de conheci-
mento. No texto “Indígenas na antropologia e os desafios da pesquisa
dentro e fora das universidades”, Felipe Sotto Maior Cruz, indígena do
povo Tuxá, tece algumas considerações a partir da própria experiência
enquanto indígena antropólogo sobre a formação de pesquisadores que
visam a desenvolver seus trabalhos em suas próprias comunidades de
origem. Por meio de dois relatos, um na academia e outro em sua comu-
nidade, procura não somente refletir sobre máximas ainda caras ao
fazer antropológico, como distanciamento e neutralidade, mas também
problematizar a relação historicamente instituída entre sujeito cognos-
cente e objeto cognoscível no seio da disciplina.
Viviane de Souza Lima faz dialogar os dados da sua pesquisa de
doutorado sobre o programa de bolsistas africanos que vieram para o
Brasil na década de 1960 – no contexto de independência de numerosos
países no continente – e enfrentaram muitas dificuldades, entre as quais,
casos revelados de racismo, com uma reflexão mais abrangente sobre a
necessidade de ampliação de debates sobre a descolonização da univer-
sidade, na perspectiva da construção de uma educação antirracista e li-
bertadora em todos os níveis de ensino.

11
Envolvendo os leitores nos meandros da realidade histórica e
educacional da Guiné-Bissau (África Ocidental), Adilson Victor
Oliveira analisa, a partir de materiais diversos (capas de livros didá-
ticos, estrutura curricular guineense, experiência própria de docente em
escola pública guineense...), o impacto de questões como a reforma cur-
ricular e a instabilidade política sobre os “caminhos de acesso à edu-
cação pública” num país onde a garantia constitucional de que “Todo o
cidadão tem o direito e o dever da educação” está ainda, em grande
parte, a ser construído.
Franck Ribard, organizador há tempos de uma Mostra de Cinema
Africano (UFC), analisa as condições e as implicações ligadas à re-
cepção no Brasil de um cinema que, além de revelar características e
linguagens próprias, encontra uma dimensão estratégica do ponto de
vista da formação de plateia, mas também na perspectiva educacional
antirracista. A mostra de cinema, nesse contexto, apresenta formatos de
apresentação/debates, favorecendo uma confluência pertinente para o
processo de apropriação das obras africanas e de produção de sentidos
na experiência fílmica.
O texto “Universidades, ações afirmativas e descolonização dos
currículos”, de autoria de Elisângela Oliveira de Santana e Leandro
Santos Bulhões de Jesus, visa a contribuir para o debate acerca das po-
líticas de ação afirmativa, entendidas como mecanismo de restituição
histórica, material e simbólica de indígenas, negros, quilombolas e ou-
tros povos chamados tradicionais. A reflexão gira em torno das mu-
danças epistemológicas como resultado do ingresso de corpos perifé-
ricos no espaço das universidades públicas através do sistema de reserva
de vagas (cotas raciais). Ressalta-se que as reivindicações de descoloni-
zação dos currículos universitários esbarram em uma cultura institu-
cional de origem elitista, colonial e eurocêntrica, cujos signos e sím-
bolos a academia é responsável por salvaguardar. Sem embargo, esse
movimento em prol da justiça cognitiva caminha para a efetivação de
uma educação antirracista, reparando o passado, esperançando o pre-
sente, em compromisso com o devir (Sankofa).
Felipe Ricardo Vieira Lopes, voltando a sua reflexão sobre o con-
ceito de necropolítica, tenta construir uma visão original, de certa forma

12
genealógica, das instâncias em jogo na manutenção da categoria. Busca,
assim, ir além de certas visões enquadradas, comumente encontradas
na academia. Para isso, estabelece um diálogo profícuo com uma série
de outros conceitos fundamentais, necessários a uma compreensão e
problematização do colonialismo. A partir de exemplos e casos diversos
da sociedade brasileira, defende a ideia de “uma busca pela liberdade
universal que questionaria as formas de necropoder”.
Com este material, primeira produção bibliográfica coletiva do
nosso grupo Caldeirão: Confluências Anticoloniais, esperamos contri-
buir para a agenda das lutas antirracistas, qualificando os debates con-
temporâneos em torno da consolidação das políticas de ações afirma-
tivas na educação, em especial nas universidades brasileiras

13
QUILOMBO, TERREIRO, UNIVERSIDADE
O saber de si5

Maria Josefa da Conceição (Maria de Tiê)

S ou Maria Josefa da Conceição, mais conhecida por Maria de


Tiê, mestra da cultura, represento o estado do Ceará, também trabalho
pela universidade, doutora no saber e vivo aqui no quilombo. Desde que
nasci que moro no quilombo, nessa luta junto com os quilombolas.
Eu sou remanescente de quilombo, bisneta de fugitivo, de es-
cravo de Pernambuco... fugiu dos engenhos e, então, viveu aqui. Meu
pai era uma pessoa muito tradicional, muito conhecida na região do
Ceará e do Cariri, filho de Porteiras, Porteiras do Cariri. Então, aqui em
Porteiras, ele nos criou também, nesse território, sítio Vassourinha, mu-
nicípio de Porteiras. Nós temos uma comunidade quilombola tradi-
cional, é uma tradição que veio de quilombo, sou mulher quilombola,
negra e trabalho com as mulheres aqui no quilombo. Trago essa história
de muito, muito tempo, porque é da idade de dez anos que eu tenho
conhecimento dessa tradição que tem aqui no nosso quilombo.

5 Transcrição realizada pela doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em


História (UFC), integrante do grupo Caldeirão, Maria Yasmim Rodrigues do Nascimento
e revisada com o consentimento da autora.
Nos tempos atrás, dos mais velhos, tempo do meu bisavô e do meu
avô, nós não éramos reconhecidos como quilombolas, mas do ano de
2002 pra cá nós somos reconhecidos como uma comunidade quilombola
tradicional, é uma tradição que vem passada de geração pra geração.
Chegar na universidade, trabalhando com estudante, com pro-
fessor da universidade, da URCA,6 trouxe uma fortalidade muito
grande aqui pro quilombo, porque, até eu ter meu título de mestra, ser
conhecida como mestra e trabalhar aqui no quilombo, nós não tínhamos
conhecimento com a universidade. Nós quilombolas não sabíamos
como que a universidade poderia oferecer melhorias, como no caso da
tradição e da cultura. Mas eu entrei na luta tradicional, tive o conheci-
mento pela URCA e também pelo movimento negro do Crato, como o
Grunec,7 que me passaram uma força muito grande pra mim, com o
conhecimento que eu não tinha ainda. Até que eu cheguei no Crato,
através de Jéssica Cariri,8 que me levou até a universidade pra fazer
uma abertura de um evento.
Então, desse dia pra cá, eu sei o que é a universidade, eu sei que
as pessoas da universidade me procuram, tanto os professores quanto os
alunos aqui no meu terreiro. Também tem o evento Artefato Negro, que
todo ano eu participo junto, fazendo abertura inclusive. Já até comecei
a partir do meu terreiro, com o pessoal do Cariri. Daí, eu saio o mês
todo, principalmente quando não tinha a pandemia. Antes desse tempo
eu saía fazendo abertura aqui no terreiro, saía nos quilombos, saía nos
movimentos negros, junto com o povo indígena, povo cigano também,
me encontrei com todos, todos são meus amigos.

6 Universidade Regional do Cariri (URCA).


7 Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec).
8 “Jéssika Cariri é escrevedora, produtora cultural, artesã, artista, brincante, mãe, surda e
rural. Integra o Ponto de Cultura ALDEIAS, MOACPES e a Retomada Kariri. Faz parte
de trabalhos da Banda Sol na Macambira, Forró de Rabeca, Encantados, Reisando,
Zabumbar e Reisado Menino Deus. Está à frente da produtora independente Vivá
Produções e vem resinificando seu caminhar a partir de sua conexão com a floresta”.
Disponível em: https://www.blognegronicolau.com.br/2021/06/jessika-cariri-conversa-
ra-sobre-sua.html

15
E, hoje, eu sou uma pessoa que moro dentro da universidade, não
de corpo, mas de alma. De coração e alma eu tô dentro da universidade,
junto com todos os professores, alunos, diretores, secretários.
Meu povo aqui no quilombo, muitos não têm o conhecimento,
aqueles mais velho, porque eles vêm de uma história muito longe e não
sabe o que é, mas eu sei o que é a história, eu sei o que é a tradição, sei
o território onde moro e por isso eu chego a passar pra todos eles. Faço
reunião com meu povo, abordando temas da cultura. Eu tenho a minha
dança, a dança do coco, apresento a dança do coco, maneiro-pau, que
vem duma tradição, daqui dos mais velho, do meu pai, ele que era uma
pessoa que gostava muito da tradição, e eu passo esse conhecimento
pra meu povo.
Quando eu faço um trabalho aqui em meu terreiro, que é pra eu
trazer o grupo, eu passo pra eles: “ó nós tamo representando a univer-
sidade”. Vocês tão lá na universidade, pode ser aqui do Cariri, aqui
do Ceará, também, como participo também da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, sempre estou trabalhando com a Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Participo também no Sesc9 daqui do re-
gional, por Fortaleza, já trabalhei pelo Sesc do Rio de Janeiro, eu
passo pra eles também que nós estamos indo pra o Rio de Janeiro,
para a universidade federal.
E, então, minha gente, é uma luta que os quilombolas têm que
lutar. Têm que lutar pelo direito, têm que lutar pelo que a gente é; nós
temos que lutar pela cor, também tem que lutar pelo nosso cabelo, é isso
que eu passo pra todos. Porque muitos não aceitam ser negro, muitas
comunidades têm isso, e aqui na minha comunidade tem, mas sempre
eu digo pra eles o seguinte: que ser negro é uma coisa boa, e quem tem
que dá o respeito somos nós, porque, se a gente não der o respeito ao
que a gente é, ninguém vai dar.
Então, o respeito quem tem que passar são eles, somos nós
também, porque eu como mestra e mulher negra quilombola, eu tenho
que me respeitar. Eu tenho que respeitar minha cor, eu tenho que res-

9 Serviço Social do Comércio (Sesc).

16
peitar minha origem, porque, se eu não me respeitar, então, eu não levo
respeito a ninguém. Nunca ninguém vai me respeitar. Através do meu
trabalho, do meu conhecimento que eu tenho no movimento quilom-
bola, no movimento negro, estou junto com os indígenas e com o povo
cigano e eu reconheço que o povo tem muito respeito, quando a gente
anda, muita gente tem respeito pelo que a gente é. Então, eu passo pro
meu povo dizendo: que a gente tem que respeitar o que é, tem que
mostrar o que é, porque eu mostro o que eu sou, eu não vou mostrar o
que eu não sou.
Eu tenho orgulho de ser uma mulher negra. Eu tenho orgulho de,
por todo canto, por eu ser negra, de eu não negar minha cor, respeitar
minha origem e abraçar a todos e é onde também eu sou abraçada, eu
sou respeitada. Antigamente, eu falo pra vocês que o preconceito através
dos negros já existia muito, muito preconceito, até hoje ainda existe,
como vocês sabem, que até hoje existe o preconceito, mas a gente nunca
vai baixar a cabeça pra preconceito de ninguém.
Quanto mais a pessoa tem preconceito com minha cor, quanto
mais a pessoa tem preconceito por eu ser quilombola, por eu ter o ca-
belo ruim, como o povo diz, cabelo ruim, mas não é ruim, é muito
lindo a pessoa do cabelo crespo, né?! Muito lindo, muito bacana, eu
acho lindo... é que a gente tem que se orgulhar. Existe o preconceito
com o negro, existe o preconceito com o povo de terreiro, existe o
preconceito com o povo cigano, porque, quando eu era pequena, me-
nina, garotinha, aqui na comunidade passava muito cigano, passava
muito cigano na comunidade.
Eu lembro muito que chegavam os ciganos na casa da gente, a
gente fechava as portas com medo. Eles chegavam chamando a gente,
pedindo, e ali, muitos atendiam eles, outros não atendiam, com precon-
ceito com os ciganos. Do mesmo jeito que existia preconceito com os
negros quilombola, do mesmo jeito existia preconceito com o povo ci-
gano. Hoje, como eu tenho conhecimento, ando e conheço os ciganos,
eu falo pro meu povo, aqui na comunidade: ó, vocês não andam, vocês
não conhecem. O povo cigano é um povo respeitado. Por quê? Porque
eles se deram o respeito e por isso hoje eles são pessoas procuradas,
reconhecidas na universidade, reconhecidas no estado do Ceará e aonde

17
eu ando, eu me encontro com eles e são amigos, nós somos amigos, nós
nos abraçamos e somos amigos. Por quê? Porque era preconceito que se
tinha, mas como eles não tiveram medo de enfrentar o preconceito, hoje
eles são respeitados.
Como quilombola, se eu tivesse medo de enfrentar o precon-
ceito, hoje nós seríamos mais baixo ainda, mas, como eu não tive
medo de enfrentar o preconceito, hoje eu sou respeitada, e os negros
também são respeitados.
Aqui no quilombo nós temos terreiro de umbanda, nós não
temos terreiro de candomblé. E o presidente do terreiro é o mesmo da
associação, ele é o zelador de orixá aqui do quilombo. E daí, ainda
existe preconceito com os terreiros, mas também é uma coisa que todos
têm que respeitar, porque, se o próprio zelador de orixá não enfrentar
o preconceito, o povo sempre vai ter preconceito com ele, por isso que
o zelador de orixá também tem que enfrentar e não baixar a cabeça, ir
em frente, como eu, como mestre de cultura, mulher negra quilombola,
não tive medo de enfrentar o preconceito.
Eu estou lá na universidade, estou no estado do Ceará com o
meu conhecimento e passando o meu conhecimento também para
todos. Eu passo meu conhecimento para crianças, para os jovens e ado-
lescentes. Também, como aqui em meu terreiro, da mestra Maria de
Tiê, eu recebo os alunos que vêm das escolas enviados pelos seus pro-
fessores pra poder contar sobre o meu conhecimento, pra contar minha
história e eu recebo e passo meu conhecimento com todo amor, com
todo carinho. Deus me deu esse dom, esse saber, pra eu passar para as
pessoas também que queiram participar do meu saber.
O meu saber vem da memória, o meu saber é um dom que
Deus me deu porque eu não faço nada pelo escrito, o que eu sei está
na memória. Não sei ler, também, eu não sei ler, estudei muito pouco
e por isso eu não faço nada por escrito, tudo que eu faço, tudo que eu
falo vem da minha memória, do meu coração e do meu dom que Deus
me deu, e é isso.

18
CAPITALISMO RACIAL E
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE
COMUNIDADES QUILOMBOLAS

Tshombe Miles

Pois as ferramentas do mestre nunca desmontarão a


casa do mestre. Eles podem nos permitir temporaria-
mente vencê-lo em seu próprio jogo, mas nunca nos
permitirão realizar uma mudança genuína.
(Audre Lorde)

E eu disse a ele, você pode chamar de socialismo se


quiser, você pode chamar de keynesianismo de es-
querda, você pode chamar de capitalismo com rosto
humano. Você pode chamá-lo de Teddy Pendergrass,
se quiser.
(Adolph Reed)

N este ensaio, quero despertar nossa imaginação. Quero ex-


plorar como as sociedades quilombolas foram uma alternativa ao capita-
lismo racial. Examinar as reações e respostas que prevaleceram durante o
período colonial, e mesmo durante a recente independência das nações nas
Américas, vis-à-vis à resistência dos povos de ascendência africana em
fazer sociedades quilombolas nos permite ver alternativas ao capitalismo/
neo-liberalismo, ou o que poderíamos chamar de capitalismo racial.
O que é capitalismo racial?

Cedric Robinson, em seu livro magistral Black marxism: the ma-


king of the black radical tradition, mostra como o capitalismo racial e
o capitalismo são basicamente um e o mesmo. Embora teóricos econô-
micos, como Smith (1776), sejam uma das principais fontes sobre como
o capitalismo deveria funcionar, na verdade nunca foi praticado em ne-
nhuma sociedade. Cedric Robinson argumenta que você precisa de raça
para justificar o colonialismo e a subjugação e não pode falar sobre
capitalismo sem falar sobre raça e colonialismo. O colonialismo nas
Américas foi um dos principais motores do capitalismo moderno.
Impérios da Europa Ocidental, que incluíam Espanha, Inglaterra,
França, Portugal, entre outros, ajudaram a construir impérios explícitos
escravizando africanos e desapropriando indígenas de suas terras e, em
muitos casos, coagindo comunidades indígenas em todos os tipos de
arranjos trabalhistas não livres no início do colonialismo na Espanha.
Além disso, embora a branquitude seja associada ao privilégio, a
maioria dos brancos nas Américas estavam em arranjos de trabalhos
não livres porque não possuíam terras e não eram respeitados nessas
sociedades como iguais. Portanto, em uma sociedade hierárquica, na
qual a branquitude é apenas uma variável importante nas sociedades
hierárquicas do “Novo Mundo”, outro símbolo de status era possuir
terra. No entanto, a brancura foi um marcador que foi perseguido por
todas as etnias.10 No império espanhol, os não brancos compravam a
branquitude (TWINAM), e no Brasil havia todo tipo de ditado popular,
como “a pessoa é negra, mas tem alma de branco”. Há o episódio em
que o abolicionista branco Joaquim Nabuco sugere que Machado do
Assis não era realmente um mulato, que na verdade era um grego
(COSTA, 1990, p. 241).

10 Veja The ethnic project: transforming racial fiction into ethnic factions. Stanford, CA:
Stanford University Press, 2013. Ela mostra o que é uma ideia fluida que pessoas de
todos os grupos étnicos historicamente desejaram, porque é uma maneira de ganhar
mobilidade social em uma sociedade racista.

20
Em outras palavras, embora ser branco não fosse uma garantia
necessária para ser rico ou materialmente bem-sucedido, havia uma
vantagem em ser legalmente branco que era flagrante no período co-
lonial, não apenas por causa da escravidão e da desapropriação do
trabalho indígena. Havia um sistema legal de castas que proibia pes-
soas de grupos africanos e indígenas de participar do governo, pa-
gando impostos especiais, de usar certas roupas, além de outras
formas de racismo, mesmo que você fosse “livre” (RUSSELL-
WOOD, 1993), e essa discriminação continuou nas nações indepen-
dentes da América Latina.
Robinson usa a ideia do capitalismo racial da África do Sul,
onde, durante o sistema de apartheid, a elite sul-africana branca desen-
volve um estado de bem-estar para os brancos, enquanto formaliza a
precariedade e limitação de direitos para africanos e não brancos.
Robinson usa essa ideia para aplicar à história do capitalismo moderno.
Ele também argumenta que o racismo e o racialismo precederam o ca-
pitalismo no sistema hierárquico feudal da Europa. Ele desafiou a ideia
marxista de que o capitalismo era uma ruptura revolucionária do feuda-
lismo. De fato, o capitalismo evolui do feudalismo e compartilha muitos
aspectos do feudalismo europeu.
Uma das influências acadêmicas de Robinson, Oliver Cox, ecoa
isso em seu livro Caste, class, and race (1970): a ideia de que o capita-
lismo desenvolveu-se de mãos dadas com os modernos sistemas de or-
ganização social, e, consequentemente, a opressão racial e econômica
não pôde ser desvinculada. “O antagonismo racial é parte integrante
da… luta de classes”, sustentou, “porque se desenvolveu dentro do sis-
tema capitalista como um de seus traços fundamentais”. Os conflitos
raciais também eram inerentemente políticos, inseparáveis ​​da “questão
de quem deve governar o sistema social, os poucos ou os muitos”. A
injustiça racial, insistia Cox, era um problema de sistemas e poder
(GORDON, 2019).
De fato, esse foi um dos pontos principais de Cedric Robinson,
pois ele entendeu que o racismo era parte integrante do sistema capita-
lista real e vivido e esse processo estava em andamento, não começando
nas Américas, mas evoluindo desde o feudalismo na Europa.

21
How the Irish became white (IGNATIEV, 2015) é um livro fa-
moso do falecido Noel Ignatiev, que argumenta: “com o tempo os
europeus se tornam brancos nos Estados Unidos”. Embora a branqui-
tude possa ter se desenvolvido nas Américas, o capitalismo racial não
se desenvolveu. Por exemplo, na Europa os irlandeses foram coloni-
zados de 1536 a 1691, por meio de uma subordinação do país aos
governos baseados em Londres. Os irlandeses foram essencializados
como inferiores por seus conquistadores. Por exemplo, houve a ex-
clusão dos católicos da maioria dos cargos públicos (desde 1607); a
exclusão das profissões jurídicas e do judiciário, revogada, respecti-
vamente, em 1793 e 1829. Houve proibição de casamentos com pro-
testantes, revogada em 1778. Outros grupos europeus como os ju-
deus eram racializados. Por exemplo, sabemos que houve muitos
pogroms na Europa e que os judeus foram forçados a entrar em
guetos, discriminados.
Os europeus ainda se referiam uns aos outros como raças dife-
rentes com capacidades diferentes e se essencializam como raças dife-
rentes. Foi somente após o holocausto da Segunda Guerra Mundial e
seis milhões de judeus mortos que esse tipo de entendimento racial
flagrante entre os europeus foi reavaliado, e isso também marca o
início do fim do colonialismo na África e na Ásia e a ascensão dos
movimentos pelos direitos civis nos EUA e na América Latina.
É somente após o período da Segunda Guerra Mundial que você
vê um declínio do colonialismo na África e na Ásia. Ainda temos colo-
nialismo, escravidão, trabalho não livre, precariedade, ou seja, esses
legados não foram corrigidos. No entanto, sempre houve contradições
na formulação de questões relativas à palavra “liberdade”. White
freedom: the racial history of an idea, livro do falecido Tyler Stovall,
mostra um contexto internacional entre os Estados Unidos e a França e
apresenta como as ideias da democracia liberal não se destinavam a
comunidades de africanos, asiáticos e nativos americanos, enquanto a
França está colonizando partes da África e da Ásia, desapropriando o
povo africano e reorganizando seus recursos para beneficiá-lo. Os
Estados Unidos acabam com a escravidão, mas formalmente estão se
movendo em direção a um apartheid, sistema de segregação no sul e no

22
norte; o oeste e o centro-oeste organizam guetos.11 A maneira pela qual
muitas dessas contradições faziam algum sentido era justificando que
alguns seres humanos não eram iguais a outros com base em motivos
raciais. Muitas vezes, essas justificativas eram baseadas na religião e,
mais tarde, no século XIX, postuladas em termos pseudocientíficos
(RUSSELL-WOOD; STEPANS; SKIDMORE; TWINAM).

Alternativas ao capitalismo racial

Desde o início da escravidão, em 1500, até o seu fim, sempre


existiram comunidades de pessoas escravizadas fugitivas. Essas comu-
nidades existiam em todas as colônias europeias nas Américas, in-
cluindo as espanholas, portuguesas, francesas e inglesas. Em lugares
como as 13 colônias, que mais tarde se tornaram os Estados Unidos,
existiam comunidades quilombolas que tendiam a ser conhecidas como
pequenos quilombos (Aptheker). No entanto, grandes comunidades
quilombolas existiam na Espanha e no império português e mais tarde
no que se tornou o Estado-nação do Brasil.
A razão pela qual essas comunidades quilombolas servem como
alternativas ao capitalismo racial é que muitas vezes estavam produ-
zindo sociedades autônomas no seu melhor e, no caso do Haiti, pro-
duzem uma nação quilombola permanente. O Haiti tornou-se um
Estado-nação moderno. No entanto, para ter sucesso, eles tiveram que
fazer certas concessões ou seriam destruídos.
Por exemplo, em 1570, vários escravizados escaparam de uma
plantação de açúcar no que hoje fica perto de Veracruz, México, nas
montanhas de Orizaba. Em 1630, após uma longa batalha, os espanhóis
perderam muitas tropas para uma comunidade que durava desde 1608.
“A Cidade Livre de San Lorenzo de los Negros” foi fundada perto de
Córdoba (México) e foi reconhecida como uma cidade totalmente negra
no contexto colonial. Depois de muitos anos como fugitivos, a Coroa
aceitou as condições dos quilombolas, e, em 1630, perto de Córdoba,

11 Estados como o Oregon proibiriam a entrada de negros no seu território.

23
foi fundada a “Cidade Livre de San Lorenzo de los Negros”. Os qui-
lombolas assinaram um tratado em que exigiam um plano de 11 pon-
tos.12 Esse plano permitiu que eles ganhassem terra, semiautonomia e
liberdade pessoal. Em troca, o colonizador espanhol manteve o controle
de seu império e, o mais importante, manteve a ordem econômica.
Na ilha da Jamaica, havia vários conjuntos de comunidades qui-
lombolas a partir de 1493-1655, quando o território estava sob domínio
espanhol (JONES, 1976, p. 220-232). Quando os espanhóis foram ex-
pulsos da Jamaica, em 1655, e partiram para Cuba, escravizados recém-
-libertados continuaram a tomar as colinas e logo começaram a se en-
volver em ataques de guerrilha contra os britânicos (JONES, 1976, p.
220-232). Sob o domínio inglês, houve uma escalada da guerra entre
1729 e 1739, que também resultou em tratados. No entanto, haveria
guerras contínuas até o século XIX, quando a escravidão terminou.
Nesse caso, os descendentes da comunidade quilombola continuam a
viver nas mesmas comunidades de seus ancestrais.
Houve várias oportunidades para os africanos e seus descen-
dentes tomarem conta de toda a ilha da Jamaica, particularmente sob o
domínio de Cudjoe (CRATON, 2010, 75-78). Sob sua liderança, em
1739, foi assinado um tratado no qual os quilombolas de sota-vento

12 As condições que os quilombolas desta região pedem, em inglês, o idioma em que o


documento foi escrito: “That all those who fled before last September will be free and
those who flee after that [time] will be returned to their owners/ That they must have
a chief judge who shall not be a mestizo nor criollo nor a letrado but rather be [?] a
warrior/ That no Spaniard will have a house in or stay within the town excepting during
the markets they will have in their town on Mondays and Thursdays/ That they must
have councilmen and a town council/ That the Captain Ñanga, who is their leader, must
be governor and after him his sons and descendants/ That they obligate themselves to
return to their owners the blacks who flee to them from the ports, and for their work the
blacks who track and return the runaways will be paid twelve pesos, until they return the
runaways, they will provide [the owners] with others of their own who will serve them,
and if they do not return them they will pay [the owners] their value/ And within a year
and a half they must be given a charter confirmed by Your Majesty and if not they will
return to their original state/ That their town must be founded between the Rio Blanco
and the estates of Ribadeneira where they indicate/ That they will pay tribute to Your
Majesty like all the rest of the free blacks and mulattos of the Indies/ The last condition
they request is that Franciscan friars and no others minister to them and that the costs of
ornaments for the church be paid for by Your Majesty/ They will present themselves with
their arms every time Your Majesty has need of them to defend the land”.

24
receberam essencialmente soberania e autogoverno, e também grandes
extensões de terra, que foram reconhecidas pelos britânicos. Em troca,
eles teriam que concordar em devolver pessoas escravizadas e ajudar a
combater outras comunidades quilombolas que não foram reconhe-
cidas. Cudjoe concordaria com esses termos e lutaria em nome do go-
verno inglês e até mesmo entraria em guerra contra outros quilombolas
que os britânicos não autorizassem. Ao fazer esse acordo, permitiu a
manutenção da colônia da Jamaica e criou a garantia mútua de manter
o capitalismo racial.
No Brasil, a grande comunidade quilombola foi Palmares, que se
tornou uma república autônoma, ou o que hoje é o estado de Alagoas no
nordeste do Brasil. Durante o período de 1605-1694, foi formada pela
união de dez comunidades separadas de negros autônomos, que haviam
se consolidado em 1630. Palmares devia sua prosperidade às abun-
dantes terras agrícolas irrigadas e ao sequestro de outras pessoas das
plantações portuguesas. Na década de 1690, Palmares contava com
cerca de 20.000 habitantes. Seu líder era Ganga Zumba (“Grande
Senhor”). Eles tinham um governo que alocava propriedades, nomeava
funcionários (geralmente seus próprios parentes) e era sediado em um
enclave real fortificado. Entre 1680 e 1686, seis expedições portuguesas
tentaram conquistar Palmares e falharam. Finalmente, o governador de
Pernambuco Domingos Jorge Velho derrotou uma força palmarista li-
derada por um sobrinho do último dos cinco governantes de Palmares,
em 6 de fevereiro de 1694, pondo fim à república (SILVA, 2010).
Embora o Quilombo de Palmares tenha sido destruído, alguns
dos moradores conseguiram escapar e formar comunidades em outros
lugares, mesmo a maioria tendo sido morta, capturada e escravizada.
Ao contrário do exemplo espanhol de Yanga e do exemplo inglês dos
quilombolas jamaicanos, Palmares acabou sendo destruído, e os portu-
gueses não fariam tratados formais com o quilombo.
Os quilombos existiam antes de Palmares em todo o Brasil e con-
tinuariam no Brasil após a destruição oficial de Palmares. Houve vários
casos de comunidades de africanos em diáspora com autonomia. No
entanto, nenhum quilombo teria o poder e a organização política de
Palmares. De fato, o povo de Palmares representava uma enorme

25
ameaça à ordem colonial e não é difícil acreditar, sob uma ordem mi-
litar mais imperialista, que talvez pudesse ter minado a ordem colonial
portuguesa no Brasil. De fato, as pessoas escravizadas teriam que es-
perar mais de cem anos antes que os africanos eventualmente derru-
bassem uma potência colonial europeia…
Na década de 1740, São Domingos, juntamente com a Jamaica,
tornou-se o principal fornecedor de açúcar do mundo. A produção de
açúcar dependia do extenso trabalho escravo do povo africano. Os fa-
zendeiros brancos que obtinham sua riqueza com a venda de açúcar
sabiam que eram mais de dez para um em número de escravizados e
viviam com medo da rebelião. A população negra na ilha totalizava pelo
menos 500.000 em 1789. A taxa de mortalidade no Caribe excedeu a
taxa de natalidade, então as importações de africanos escravizados eram
cruciais para a economia. As africanas e africanos eram sobrecarre-
gados e tratados pior do que o gado. Era mais lucrativo sobrecarregar o
sujeito e depois comprar outro. Foi sob tais circunstâncias que essas
pessoas fugiram para as montanhas do Haiti e começaram suas próprias
comunidades quilombolas. Com o passar do tempo, algumas dessas
pessoas, principalmente da classe chamada crioula (trabalhavam como
cozinheiros, domésticos e artesãos), ganhavam/conquistavam liberdade
e, em muitos casos, compravam escravos também.13 No entanto, essa
classe também nunca foi aceita pelos brancos, o que ajuda a lançar as
bases de uma revolução bem-sucedida.
De 1791 a 1804, houve uma luta armada em que comunidades
quilombolas, mulatos livres e negros livres mantinham uma aliança in-
cômoda que acabou conseguindo derrubar os franceses. Na verdade, a
única revolta de escravizados bem-sucedida na história foi a do Haiti
em 1804. A contradição do moderno Estado-nação no Haiti era que uma
pequena elite de haitianos queria fazer parte do sistema capitalista ra-
cial moderno. Afinal, negros livres e pessoas de ascendência africana
mista participaram da compra e venda de seus irmãos e irmãs de ascen-

13 No caso brasileiro, existem estudos que indicam que a compra de uma pessoa por outra
da sua mesma raça poderia estar relacionada à proteção e estratégia de uma espécie de
“compra de liberdade” de outrem.

26
dência africana ou foram cúmplices dessa exploração. Historicamente,
eles estavam enredados no capitalismo racial. Após a revolução, a po-
pulação rural autônoma passou a constituir-se de fazendeiros autossufi-
cientes que estavam reformulando, refazendo o capitalismo e, essen-
cialmente, desenvolveram uma nação quilombola. As pessoas da
sociedade africana eram agricultores de subsistência e desfrutavam de
autonomia e liberdade, embora as elites haitianas controlassem os
portos, mas não controlassem a terra (GONZALEZ, 2019; DUBOIS,
2013; CASIMIR e DUBOIS, 2020). A economia política haitiana se
desenvolveu em um sistema menos explorador e foi semelhante em seu
desenvolvimento econômico a outras sociedades quilombolas.
No passado, Eugene Genovese sustentou que “Nunca um modo
de produção independente ou forma de governo, a escravidão nas
Américas constituiu uma formação social e um conjunto particular de
relações sociais de produção dentro de um modo senhorial (feudal) em
declínio e em ascensão capitalista de produção, sob o governo das rela-
ções políticas de propriedade e autoridade que a acompanham”.
Em outras palavras, a autora argumentou que a ordem colonial
era marcada por uma ordem feudal em declínio e estava sendo substi-
tuída por um novo sistema emergente de capitalismo. Robinson basica-
mente contesta esse argumento. O capitalismo não foi uma ruptura, mas
sim uma continuação de um sistema explorador. De fato, os tradicionais
ex-mulatos livres, negros livres da antiga classe de elites de cor traba-
lhariam para minar o controle econômico do Haiti e minar o projeto de
possibilidade de um novo rearranjo econômico no qual a agricultura de
subsistência pudesse prevalecer sem a exploração de uma classe preda-
tória extraindo toda a riqueza.
O Haiti permaneceu o experimento mais interessante porque, em-
bora a elite de cor ressurgisse como o poder dominante, durante grande
parte do século XIX, os camponeses haitianos foram capazes de ter al-
guma agência no desenvolvimento de seu trabalho (GONZALEZ, 2019).
Na verdade, esse também foi o caso das comunidades quilombolas
que conseguiram manter a liberdade. Por exemplo, lugares como Yanga e
quilombolas jamaicanos continuam sendo símbolos de resistência em
favor da liberdade negra, no entanto, a longo prazo, essas estratégias não

27
puderam se desenvolver até a manutenção da equidade material. Essas
comunidades mantiveram a autonomia cultural, mas suas economias po-
líticas ainda estão sujeitas aos caprichos e realidades da ordem mundial
capitalista porque permaneceram dependentes dessa ordem, principal-
mente porque todas elas eventualmente buscariam a paz com o coloni-
zador. Até o Haiti assinaria um tratado obrigando o povo haitiano a pagar
uma indenização à França para ser reconhecido como nação. Essa indeni-
zação desempenhou um grande papel na falência do país.

Conclusões e futuros negros

No final, não devemos ver as comunidades quilombolas como


fracassos ou sucessos, mas como experimentos com os quais podemos
aprender. Essas comunidades precisam ser estudadas no contexto das
formações de suas economias políticas. Por exemplo, estudiosos como
Laurent Dubois e Jean Casimir nos mostram que desenvolver uma eco-
nomia política de economia de subsistência era a abordagem correta
para desenvolver uma economia moderna. Infelizmente, essas econo-
mias foram desenvolvidas em grande parte isoladas, e, de certa forma,
a história de sucesso mais importante do Haiti não foi sustentável como
bem-sucedida porque estava participando de um sistema que se baseava
na ideia de que a agricultura de subsistência era a abordagem errada
para o desenvolvimento.
Um futuro sustentável certamente não se integrava a um sistema
capitalista que se baseava na exploração das massas negras e indí-
genas. Não havia futuro nisso. Eugene Genovese estava errado em sua
avaliação de que os africanos escravizados (genoveses, XIX-XXI) du-
rante a era colonial não eram revolucionários? De fato, esses projetos
quilombolas se baseavam em fazer as pazes com o inimigo e basica-
mente em integrar ou recuar localmente do sistema e, em muitos casos,
cooperar a ponto de lutar ao lado dos espanhóis ou ingleses e até re-
tornar à condição de escravos.
Abolir o racismo e a hierarquia racial em seu âmago só aconte-
cerá a partir de novos modos internacionais de economia política que
buscam abolir esses modos de produção de uma perspectiva interna-

28
cional. As lutas podem ser locais, mas a luta é internacional. No final, a
resposta não será necessariamente capitalista ou marxista. Em outras
palavras, não será das ferramentas dos mestres. A sociedade do senhor
de escravos não servia às sociedades quilombolas; de fato, a coope-
ração das sociedades quilombolas com as potências coloniais ajuda a
fortalecer o capitalismo racial, por um lado, embora, por outro, suas
atitudes rebeldes e o senso de independência também nos permitem ver
alternativas ao capitalismo racial. Teremos que reimaginar como é a
economia política. Isso significa aproveitar os exemplos dessas comu-
nidades com uma lente crítica que vai além da adoração de heróis, ao
mesmo tempo que reconhece suas conquistas notáveis.

Referências

APTHEKER, H. Maroons within the present limits of the United


States. The Journal of Negro History, v. 24, n. 2, p.167-184, 1939.
CASIMIR, J.; DUBOIS, L. The Haitians: a decolonial history. [S. l.]:
University of North Carolina Press, 2020.
COSTA, E. V. The Brazilian empire: myths and histories. USA:
University of North Carolina Press, 2000.
COX, O. C.; COX, O. C. Caste, class, and race: a study in social
dynamics. New York: Monthly Review Press, 1970.
CRATON, M. Testing the chains: resistance to slavery in the British
West Indies. New York: Cornell University Press, 2010.
CRUZ-CARRETERO, S. Yanga and the black origins of Mexico. The
Review of Black Political Economy, v. 33, n. 1, p. 73-77, 2005.
DUBOIS, L. Haiti: the aftershocks of history. New York: Picador;
Metropolitan Books, 2013.
GENOVESE, E. D. From rebellion to revolution: Afro-American
slave revolts in the making of the modern world. Los Angeles:
Louisiana State University Press, 2006.

29
GONZALEZ, J. H. Maroon nation: a history of revolutionary Haiti.
New York: Yale University Press, 2019.
GORDON, L. “Caste, class, and race” @70. Public Books. 2019.
Disponível em: https://www.publicbooks.org/caste-class-and-race-70/.
Acesso em: 22 dez. 2022.
IGNATIEV, N. How the Irish became white. London: Routledge;
Taylor and Francis Group, 2015.
JONES, R. S. White settlers, black rebels: Jamaica in the era of the
First Maroon War, 1655-1738 (dissertation). 1976.
ROBINSON, C. J. Black marxism: the making of the black radical
tradition. London: Penguin Books, 2021.
RUSSELL-WOOD, A. J. The black man in slavery and freedom in
colonial Brazil. London: Macmillan, 1993.
SILVA, L. G. Palmares and Zumbi: quilombo resistance to colonial
slavery. Oxford Research, Encyclopedia of Latin American History, 2020.
SMITH, A. An inquiry into the nature and causes of the wealth of
nations, 1776. Disponível em: https://oll.libertyfund.org/title/smith-
an-inquiry-into-the-nature-and-causes-of-the-wealth-of-nations-
cannan-ed-vol-2. Acesso em: 8 out. 2022.

30
AQUILOMBAMENTOS
Lutas quilombolas, educação e protagonismo
feminino no Ceará

Marcelle Carvalho
Joseli do Nascimento Cordeiro

Introdução

N o período colonial, as fugas de pessoas escravizadas e sua


organização em lugares separados da propriedade escravista foram am-
plamente registradas nas Américas. No império português, ficaram co-
nhecidas como quilombos; nas terras de domínio espanhol, como pa-
lenques ou cumbes; na América inglesa, como maroons; na francesa,
como grand marronage (sendo que a petit marronage caracterizava as
fugas individuais).
No que se refere à definição do termo, ainda há controvérsias.
Em 1740, na América portuguesa, o conselho ultramarino definia como
“quilombo” qualquer grupo de cinco ou mais escravizados fugidos.
Assim, tal referência dizia respeito a uma história oficial, com intuito
de registro para controle, vigia e ataque à população negra pelas tropas
da Coroa. Ao longo do século XX, intelectuais negros reivindicavam
em obras acadêmicas outros sentidos para o termo, focando em sua ca-
pacidade social organizativa, de modo a ultrapassar um aspecto pura-
mente militar. Beatriz Nascimento, por exemplo, reivindicava pensar o
fenômeno como condição social, como união e focar nos períodos de
paz quilombola (NASCIMENTO, 2018, p. 126).
A historiografia tem problematizado também a ideia dos qui-
lombos como espaços separados da sociedade colonial e tem percebido
maior diversidade em sua composição, bem como contatos e fluxos
entre as cidades e os quilombolas. Atualmente reconhece-se a diversi-
dade étnica que compunha os assentamentos, com a existência de fu-
gidos da escravidão e de pessoas libertas ou nascidas livres, oriundas de
regiões diversas da África ou nascidas nas Américas, além da presença
de indígenas e, inclusive, de homens brancos pobres (NASCIMENTO,
2018; CARVALHO, 2007). Essa complexidade é compreensível dentro
de um quadro de relações de solidariedade e de convivência que criava
formas possíveis de sobrevivência e resistência dentro de um sistema
opressivo. Estudos também apontam relações econômicas que alicer-
çaram a oferta de alimentos e produtos nas cidades, através da produção
quilombola (comércio perceptível ainda na atualidade) (GOMES, 2015).
Somado a tais críticas, é interessante lembrar o apontamento de
bell hooks, que destacou um apagamento histórico das relações entre os
diversos grupos não brancos, sendo que “as construções supremacistas
brancas da história apagaram efetivamente da memória cultural pública
o reconhecimento da solidariedade e da comunhão entre indígenas, afri-
canos e afro-americanos” (HOOKS, 2019, p. 321). Isso não significa a
inexistência de tais relações, mas a ausência de parte fundamental da
história do continente, que ainda é escrito de um ponto de vista coloni-
zador, em sua grande maioria. Assim como hooks apontava para os
Estados Unidos, no Brasil também tem sido necessário grande esforço
para que os descendentes de africanos e indígenas consigam adentrar o
espaço acadêmico e produzir bibliografia diferenciada, a partir de ou-
tras documentações (principalmente orais) e interpretações (HOOKS,
2019, p. 322). No Brasil, as cotas para universidade pública, na gra-
duação e pós-graduação, são fundamentais para essa mudança, que
ainda está em curso.

32
Dessa forma, atualmente, a historiografia concebe maior diversi-
dade em relação à história e configuração das comunidades remanescentes
de quilombos, bem como das motivações de suas formações, pois cada
quilombo possui seu próprio passado, alguns surgiram da fuga de escravi-
zados, outros de insurreições, outros de concessões de terras a um ou mais
indivíduos emancipados, outros de ocupações de terras por indivíduos ou
famílias livres ou emancipadas etc. Atualmente também se destaca a di-
versidade de suas localizações, podendo ser rurais ou urbanas.
Desde o período escravocrata, os quilombos permitiram alterna-
tivas de solidariedade negra. Atualmente, estão presentes em todo terri-
tório nacional, lutando pelo reconhecimento e posse legal de suas terras,
legados e demais direitos. Nesse texto, cabe pensar as experiências pró-
prias dos quilombos atuais e o protagonismo das mulheres quilombolas,
que foram, continuamente, invisibilizadas pela produção acadêmica,
apesar de desempenharem papeis múltiplos e ativos em suas comuni-
dades. Propomos ressaltar a riqueza cultural, as articulações políticas e
os impactos das ações afirmativas nessas comunidades. Dessa forma,
assentamo-nos na pesquisa bibliográfica e em entrevistas desenvol-
vidas com mulheres quilombolas de comunidades assentadas no estado
do Ceará. Assim, buscamos contribuir para o fomento das pesquisas em
relação à questão quilombola, valorizando uma abordagem sensível e
humanizante, refletindo acerca de outras epistemologias e problemá-
ticas, trazendo as vozes das próprias mulheres sobre sua percepção do
protagonismo feminino e das conquistas educacionais. Dessa forma, os
relatos seguem o formato original concedido pelas fontes, respeitando
sua coloquialidade, territorialidade e outras marcas de linguagem com
valor social e histórico.

Acesso à educação

Em março de 2022, o Brasil possuía 2.839 comunidades rema-


nescentes de quilombos reconhecidas pela Fundação Palmares, sendo a
maioria localizada no Nordeste, com 1.739 comunidades certificadas;
seguida do Sudeste, com 461; Norte, com 300; Sul, com 191; e Centro-
Oeste, com 151. Esses números representam somente a parte certificada

33
das comunidades existentes no país, que conseguiram finalizar um pro-
cesso moroso e burocrático. Inúmeros outros seguem aguardando certi-
ficação ou sequer iniciaram seu pedido, devido a dificuldades finan-
ceiras, documentais, organizacionais, entre outras.
Apesar das dificuldades de reconhecimento social e governa-
mental, os quilombos seguem como espaços dotados de saberes e habi-
lidades, com conhecimentos passados de geração em geração, para a
valorização da memória coletiva, da alimentação saudável, da agricul-
tura sustentável. As habilidades desenvolvidas pelas comunidades são
diversas e fazem convergir várias áreas de conhecimento. Porém, tais
conhecimentos, muitas vezes, não participavam do ensino formal, das
escolas, institutos e universidades. Ou seja, a marginalização continuou
após o período de criminalização e perseguição colonial e imperial.
Além da barreira epistemológica, o próprio acesso à educação formal é
repleto de desafios, como, por exemplo, a distância espacial, visto que
muitos encontram-se longe das escolas e com difícil acesso a transporte
público, sendo frequentemente localizados na zona rural.
De forma organizada e estruturada, desde a década de 1980, os
remanescentes quilombolas lutam para o diálogo com seus saberes e
valores no currículo formal, bem como para a ampliação do acesso à
educação. Dessa forma, conseguiram direcionar propostas para uma
Educação Escolar Quilombola, justificando suas demandas e urgências
para a criação de escolas quilombolas, instaladas em seus territórios,
que deveriam empregar um currículo valorizando vivências pedagó-
gicas que favorecessem sua memória, sua relação com a terra, com a
coletividade e demais estruturas culturais e sociais, reconhecendo a
história de luta por reconhecimento de sua herança africana e afro-bra-
sileira. Assim, os(as) remanescentes quilombolas lutavam por espaços
de acolhimento em uma educação formal. Em 2012, tal estrutura foi
regulamentada com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola, que se assentou sobre a Lei n.º
10.639/2003, que dispõe sobre o ensino de história da África e cultura
afro-brasileira no ensino básico, bem como da Lei n.º 11.645/2008,
que a complementava, tornando obrigatório o estudo da história e cul-
tura indígena (CAMPOS; GALLINARI, 2017).

34
Em 2022, ainda são poucas as escolas quilombolas realmente
instaladas no Brasil, sendo que no Ceará há apenas uma, a Escola
Quilombola Luzia Maria da Conceição, no município de Croatá. As
poucas escolas quilombolas já iniciadas em todo o Brasil ainda sofrem
com estrutura e funcionamento precários e, com a pandemia da covid-
19, com a falta de acesso à internet e de materiais de informática. Tudo
isso tem contribuído para o agravamento da vulnerabilidade social
dessas crianças, jovens e adultos.
A dificuldade de formação no nível da educação básica também
repercute nos baixos números de quilombolas com acesso ao Ensino
Superior. Ao longo do século XXI, as ações afirmativas foram empre-
gadas a fim de compensar os grupos historicamente marginalizados e
aumentar o número de formados no nível técnico e superior, bem como
o acesso a cargos públicos, com vagas destinadas a cotas. Em 2005, a
Universidade Federal da Bahia (UFBA) foi pioneira na criação de cotas
para remanescentes quilombolas. Em 2012, foi aprovada a Lei n.º
12.711, para ser implementada no ano seguinte, criando cotas em insti-
tutos e universidades para egressos das escolas públicas (não necessa-
riamente cotas raciais). Desde então as universidades públicas brasi-
leiras vêm adotando, individualmente, cotas semelhantes.
Apesar das conquistas no nível político e legislativo, o Grupo de
Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMA), da Univer­
sidade do Estado do Rio de Janeiro, apontou inúmeras falhas na concre-
tização das cotas para atingir quilombolas no Brasil, demonstrando, em
2019, um avanço ainda muito insatisfatório. O grupo afirmava que a
falta de coesão nacional para encaminhamento da ação afirmativa difi-
cultava a divulgação e implementação da política, fazendo com que
cada universidade tivesse seu próprio modelo de implementação e os
jovens não conseguissem acessar as informações necessárias para a ins-
crição (VENTURA, 2021).

Invisibilidade das mulheres quilombolas

Na atualidade, as mulheres quilombolas ainda são invisibilizadas


pela sociedade e pelas bibliografias de cursos de graduação e pós-gra-

35
duação pelo país, apesar de assumirem diversos papéis (sociais, polí-
ticos e econômicos) dentro das comunidades remanescentes de qui-
lombos. Além de não serem reconhecidas nos meios externos às
comunidades, elas ainda enfrentam diversos tipos de discriminação.
Segundo Lelia Gonzalez, a mulher negra no Brasil sofre discrimi-
nação tríplice, ou seja, social, racial e sexual (GONZALEZ, 2018, p.
117). No caso quilombola, outras vulnerabilidades se sobrepõem a
essas, seja pela territorialidade, incompreensão dos órgãos públicos
acerca de suas demandas e especificidades, não reconhecimento de
seus direitos e avanço violento de posseiros e agricultores. Além
dessas, ainda se somam relatos sobre a cobrança social de que compo-
nham um “tipo racial puro”, ou seja, de que possuam estética e cultura
que remetem diretamente a ideais de africanidade e, consequente-
mente, se diferenciam das características tidas como brasileiras para
serem dignas dos direitos que reclamam. Em relação a essa cobrança,
Beatriz Nascimento escreve que:

Não existem mais “bons selvagens” como não existem mais “negros
puros” que saibam seu ramo africano no Brasil. Depois de nos explorar
e tirar as melhores coisas, depois de nos reprimir, a ideologia dominante
quer nos “descobrir” (como costumam dizer alguns dos paladinos em
favor do negro) “puros”, “ricos culturalmente”, “conscientes de nossa
raça”. Não entendem que esses ideais de pureza, beleza, virilidade, for-
taleza que querem nos inculcar, são conceitos seus, impregnados de sua
cultura; quanto à nossa consciência de nós só pode sair de nós mesmos
e a partir de uma consciência do dominador (NASCIMENTO, 1974
apud RATTS, 2007, p. 100).

Maria Aparecida Mendes, mulher quilombola de Conceição das


Crioulas (PE) e assistente social, percebe que essas mulheres tendem a
convergir para criar estruturas (psicológicas, emocionais e estratégicas)
para superação de suas dificuldades, fenômeno semelhante ao obser-
vado por Julieta Paredes, ao analisar os povos tradicionais da Bolívia.
Paredes cunhou o conceito “feminismo comunitário”, identificado
como “um feminismo que se pretende ser de qualquer mulher, em qual-
quer luta que ela desenvolva, dentro da sua condição, para se contrapor
ao patriarcado” (MENDES, 2020, p. 55).

36
Protagonismo feminino no Ceará

No Ceará, o avanço do protagonismo feminino nos espaços de


tomada de decisão entre as(os) remanescentes quilombolas vem se
mostrando constante e significativo. Em 2019, dos 87 quilombos do
estado (incluindo comunidades ainda não certificadas pela Fundação
Palmares), 35 eram liderados por mulheres, distribuídas no litoral,
serra, sertão e na região metropolitana (SOUZA, 2019).
Dentro dos quilombos, as mulheres são responsáveis por inú-
meras atividades essenciais para sua existência, por exemplo, o repasse
das histórias de seus ancestrais, como na comunidade remanescente de
quilombo Sítio Veiga, em que se atribui à senhora Mãe Veia a chegada
no território como também o legado de tradições passadas às demais
gerações de mulheres (SILVA, 2021); e como no quilombo de Batoque,
onde o repasse da história também é atribuído à quilombola conhecida
como Mãe Paz (CORDEIRO, 2016).
Em conjunto com as narrativas sobre os antepassados, essas mu-
lheres transmitem os demais saberes às novas gerações dos quilombos, que
foram ressignificados. Pacheco e Sampaio destacaram que, “das várias co-
munidades quilombolas reconhecidas no Brasil, em boa parte delas, a pre-
sença das mulheres griôs é de grande relevância na organização comuni-
tária, na sustentação familiar e na transmissão da história e cultura africana
e afro-brasileiras e indígenas” (PACHECO; SAMPAIO, 2015, p. 55).
Lembrando ainda que as mulheres quilombolas, principalmente as mais
velhas, exercem diversas funções, seja como rezadeiras, curandeiras, ren-
deiras, parteiras ou mães de santo (PACHECO; SAMPAIO, 2015).
Alexsandra Amaral, da comunidade Alto Alegre, no município de Horizonte
(CE), complementa essa discussão mostrando a diversidade dos papéis as-
sumidos pelas mulheres na sua comunidade remanescente de quilombo:

As mulheres na minha comunidade são vistas como referência de resis-


tência e representatividade, muitas vezes desenvolvendo papéis múlti-
plos de líder comunitária, de educadoras e empreendedoras.
Vemos desde pequenas os exemplos dessas mulheres à frente dos
movimentos sociais e como formadora de conhecimento no nosso
espaço territorial.

37
Desde as conversas informais no nosso cotidiano, a espaços profis-
sionais, hoje com exemplo concretos nos espaços públicos. Toda essa
representatividade, feita através de muitas reivindicações e luta, nos
fortalece como quilombola e como mulher de fibra e resistência.
Nossos primeiros exemplos na educação superior nos faz acreditarmos
em outras possibilidades e concretiza sonhos de nossos mais velhos,
de estarmos preparado para esses espaços com as nossas formações.
Por isso, a educação sempre foi vista por nós como essencial ao nosso
crescimento profissional e pessoal. Nos fortalecendo para reivindicar
nossos direitos e ocupar espaços, antes visto por nós como algo distante.

Essas mulheres precisam desenvolver o trabalho de cuidado do


lar e das crianças juntamente a trabalhos para a comunidade e o mer-
cado de trabalho. Em um relato oral, a liderança quilombola e assistente
social Ana Maria Eugênio da Silva, da comunidade Sítio Veiga, de-
monstra a importância e a multiplicidade de papéis sociais que as mu-
lheres assumem:

A presença da mulher dentro dos territórios quilombolas é muito forte.


São as mulheres que estão na organização da casa, na grande maioria
dos quilombos que eu conheço, [...] elas estão na organização da co-
munidade, elas estão na organização da igreja, seja ela evangélica ou
católica…[...] e, muitas vezes, também, nas de matriz africana. São elas
que são as benzedeiras, as rezadeiras, as raizeiras, são as mulheres que
são as guardiãs das sementes, as mulheres que têm uma preocupação de
levar os filhos para a escola e assistir reunião. Então, [...] a presença das
mulheres nos territórios é muito forte. Sem as mulheres, os territórios
quilombolas não seriam essa potência que ele é [...].

É possível perceber em sua fala a importância das mulheres nos


cuidados das novas gerações e na manutenção da comunidade. Segundo
Maria Laís Cordeiro do Nascimento, da comunidade remanescente do
quilombo de Batoque, as atividades desenvolvidas pelas mulheres são
fonte de força e resiliência para as mais jovens:

Observar as mulheres do quilombo hoje é ver as mudanças que o tempo


traz, é ver o empoderamento que construímos à base de sangue e suor.
Acredito que hoje somos protagonista dos sonhos do quilombo como
um todo, somos aquelas que cuidam da casa e ainda assim encontramos
tempo para nos dedicar às movimentações do quilombo, aos estudos,

38
família e cuidar de nós mesma. Creio que aqui onde moro seja o papel
que a gente tem é de suma importância para outras meninas negras,
porque conseguimos a muito custo um pensamento crítico sobre a nossa
realidade, e assim nos tornamos os agentes principais da nossa própria
história [...].

Em sua maioria, as mulheres quilombolas tiveram sua formação


crítica constituída a partir de experiências nas próprias comunidades e da
relação, muitas vezes conflituosa, com a sociedade ao redor. Quando
inseridas nos institutos e universidades, tais mulheres não necessaria-
mente se enquadraram no corpo teórico oferecido pelos docentes. Muitas
delas se sentiram impelidas a buscar representatividade, seja na biblio-
grafia, seja nas professoras pretas que dispunham de um olhar mais dire-
cionado para suas realidades e suas demandas. Segundo Maria Laís:

No que se refere à graduação, não me recordo de ver muitas citações


de mulheres negras, pois em sua maioria ainda vemos muitos textos
escritos por homens e, quando não, são por mulheres brancas. Acho que
a literatura sobre feminismo negro foi mais por conta própria. Porém
ser uma universitária quilombola, foi um grande passo para que hoje eu
adquirisse um olhar crítico sobre os textos acadêmicos e questionar o
papel do negro. Também foi na graduação que encontrei referências de
professoras negras que almejo seguir em futuro próximo, foi olhar para
elas e perceber que eu poderia fazer da universidade um local nosso,
perceber que eram poucas mulheres negras naquele ambiente me mo-
tiva a querer estar lá.

O acesso ao nível superior ainda é difícil e, para muitos quilom-


bolas, sequer é visto como uma possibilidade. As lutas por democrati-
zação da educação (que inclui a defesa das cotas raciais) devem enfrentar
o processo histórico de marginalização desses grupos e a elitização das
universidades e institutos. Alexsandra, que também é graduanda no
curso de Bacharelado em Humanidades na Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), demonstra que a
experiência desse acesso ultrapassa a conquista individual e carrega inú-
meros significados para sua comunidade, enquanto coletivo:

Vivemos as primeiras experiência de estarmos cursando o Ensino


Superior e somos os primeiros exemplos para nossa comunidades.

39
Estamos com a missão de representar uma comunidade inteira, e de
lutarmos para garantir o acesso e a permanência dos outros que virão.
Fazê-los acreditar que esse espaço também é pra eles, nos traz um peso
e uma responsabilidade.
Por isso acredito que nunca estaremos sós, nas nossas lutas.
E que cada um que conseguir chegar ao Ensino Superior e permanecer,
já é uma vitória nossa.
Eu acreditava que esse espaço não era pra mim e muitas vezes nem
cheguei a sonhar com ele.
Hoje eu vejo os meus lá, como eu estou. Isso me dá esperança de termos
mais de nós nesses espaços e sonho com os frutos que irão retornar para
a comunidade.
Não vejo minha luta como algo solitário. Estou aí por mim, por elas e
por nós. E por isso desistir não está nos meus planos.
Esse espaço acadêmico é muito caro pra nós e sempre levarei o nome
da minha comunidade onde eu estiver.

O depoimento de Alexsandra aponta as responsabilidades que


as(os) quilombolas carregam em seus corpos ao acessarem espaços que
lhes foram historicamente negados, alimentando um misto de esperança
e pressão para tirar o maior proveito possível dos estudos, pois resultam
de um longo caminho de lutas por direitos. O sentimento de coletivi-
dade a fortalece e a faz desejar ter outros com ela, sabendo que não
basta lutar para entrar, é necessário também que haja condições dis-
postas por políticas públicas que tornem possível a manutenção e a con-
clusão dos estudantes em seus cursos.

Considerações finais
Tanto a educação escolar quanto a de nível superior enfrentam
inúmeras dificuldades, principalmente pela grande quantidade de litera-
tura acadêmica de perspectiva eurocêntrica, pelos equívocos e estereó-
tipos reproduzidos na grande mídia e nos materiais didáticos, além do
baixo número de profissionais qualificados. Assim, desde o início do
século XXI, as universidades e institutos federais têm a obrigatoriedade
de contribuir para a produção de recursos humanos e bibliográficos que
forneçam uma perspectiva diferenciada, que fujam da lógica escravista
e colonial, percebendo a história e os conhecimentos dessas populações
como heranças positivas.

40
As universidades têm muito a aprender com as comunidades tra-
dicionais, e o diálogo entre elas vem trazendo novas fontes, novos pro-
blemas e novas formas de interpretar e lidar com o mundo. Os seus sa-
beres vêm sendo reconhecidos pelas universidades brasileiras nos
últimos anos, com líderes comunitários convidados(as) a participar de
eventos acadêmicos, a contribuir com relatos em diversos tipos de ati-
vidades acadêmicas, colaborando em projetos de extensão, de pesquisa
e de ensino e sendo agraciados com títulos de doutor(a) honoris causa.
Porém, o acesso à educação superior ainda é uma conquista em anda-
mento, com baixos números de ingressantes e egressos. Eles e elas
estão saindo do lugar de somente objetos de pesquisa e assumindo a
posição de pesquisadores/as, reivindicando assim um espaço que
também é seu na produção acadêmica.

Referências

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Escolar


Quilombola. Brasília: MEC; CEB, 2012.
BRASIL. Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei n.º
9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de
ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira”, e dá outras providências. Diário Oficial da União,
Brasília, 10 jan. 2003.
BRASIL. Lei n.º 11.645. Altera a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de
1996, modificada pela Lei n.º 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da
República Federativa do Brasil, Brasília, 2008.
BRASIL. Lei n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o
ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de

41
ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 30 ago. 2012.
CAETANO, J. O.; CASTRO, H. C. Dandara dos Palmares: uma
proposta para introduzir uma heroína negra no ambiente escolar.
REHR, Dourados, v. 14, n. 27, p. 153-179, jan./ jun. 2020.
CAMPOS, M. C.; GALLINARI, T. S. A educação escolar quilombola
e as escolas quilombolas no Brasil. Revista NERA, Presidente
Prudente, v. 20, n. 35, jan./abr. 2017.
CARVALHO, M. J. M. A mata atlântica: sertões de Pernambuco e
Alagoas, sécs. XVII-XIX. CLIO., v. 25, p. 249-266, 2007. Série
História do Nordeste (UFPE).
CORDEIRO, J. do N. Comunidade quilombola de Batoque: entre
identidades e memórias, conta-se a história. Memórias que contam
história. Sobral 2016. 34p.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES. Certidões expedidas às
comunidades remanescentes de quilombos (CRQs). Diário Oficial da
União, Brasília, 20 jan 2022. Disponível em: https://www.palmares.
gov.br/?page_id=37551. Acesso em: 29 dez. 2022.
GOMES, F. dos S. Mocambos e quilombos. São Paulo: Claro Enigma, 2015.
GONZALEZ, L. Primavera para rosas negras: Lélia Gonzalez em
primeira pessoa. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
HOOKS, bell. Olhares negros, raça e representação. São Paulo:
Elefante, 2019.
LACERDA, T. de C. Tereza de Benguela: identidade e
representatividade negra. Revista de Estudos Acadêmicos de Letras,
Mato Grosso, v. 12, n. 2, 2019. Disponível em: https://periodicos.
unemat.br/index.php/reacl/article/view/4113. Acesso em: 3 mar. 2023.
MENDES, M. A. “Saindo do quarto escuro”: violência doméstica e a luta
comunitária de mulheres quilombolas em Conceição das Crioulas. In:
DEALDINA, S. dos S. Mulheres quilombolas. São Paulo: Jandaíra, 2020.

42
NASCIMENTO, B. Quilombola e intelectual. Possibilidades em dias de
destruição. São Paulo: Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.
NASCIMENTO, B. Uma história feita por mãos negras. Rio de
Janeiro: Zahar, 2021.
PACHECO, A. C. L.; SAMPAIO, A. C. Mulheres griôs quilombolas:
um estudo inicial sobre identidade de gênero e identidade étnica.
Alagoinhas – Bahia. Pontos de Interrogação: Revista de Crítica
Cultural, v. 5, n. 2, jul./dez. 2015.
RATTS, A. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz
Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza; Imprensa Oficial, 2007.
SANTOS, V. Zeferina: o conto de um quilombola. Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia. Relatório da produção do material
didático apresentado ao programa de Mestrado Profissional em
História da África, 2019.
SILVA, A. M. E. da. As quilombolas do Sítio Veiga e a dança de São
Gonçalo em Quixadá-CE. 2021. Dissertação (Mestrado em Humani­
dades) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Humanidades, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro Brasileira, Redenção, 2021.
SOUZA, R. Força ancestral: dos 87 quilombos cearenses, 35 são
liderados por mulheres. Diário do Nordeste, Fortaleza, 19 nov. 2019.  
VENTURA, L. A. S. Pesquisa destaca exclusão de quilombolas em
universidades públicas. Estadão. Fortaleza, 16 ago. 2021.

43
COSMOPERCEPÇÃO QUILOMBOLA
Trajetórias e desafios de casa à universidade

Ana Maria Eugênio da Silva

[...] Nossa fé é imensurável e transforma dor em motivação pra supe-


ração, tanta humilhação
Atravessar o oceano para trampar na sua plantação.
Café, algodão, cana, escravidão
Alforriaram nosso corpo, mas deixaram as mentes na prisão
Não! Abre logo a porra do cofre
Não tô falando de dinheiro, eu falo de conhecimento
Eu não quero estudar mais na sua escola
Que não conta a minha história, na verdade me mata por dentro
[...] Mas se tem uma coisa que a escola não me ensinou
É que o amor é indispensável em qualquer lugar que eu for [...].
Pedagoginga (Part. Sant e KMKZ) – Thiago Elninõ

S ou Ana Eugênio, mulher negra e quilombola, mãe, cotista,


feminista, antirracista, militante do movimento quilombola do Ceará,
dançadeira de São Gonçalo do Quilombo do Sítio Veiga, em Quixadá-CE.
Referência no enfrentamento ao câncer de mama, servindo de inspi-
ração para diversas obras cinematográficas, tais como: As passarinhas
(2018) e Eu, semente – 70 olhares sobre direitos humanos (2021).
Bacharela em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará
(Uece) em 2018. Atualmente, estou graduanda em Antropologia, mestra
interdisciplinar em Humanidades pela Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e doutoranda em
História pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membra da atual
gestão do Diretório Central de Estudantes da Unilab, discuto e pesquiso
temas como: saúde da população quilombola, relações étnico-raciais,
políticas públicas e gênero.
Buscando tomar posse da mesma ousadia ensinada por Grada
Kilomba, busco em meus trabalhos acadêmicos “tornar-se sujeito”
(KILOMBA, 2019), construtora das minhas próprias narrativas e agente
de mudanças sociopolíticas. Nossos passos e (com)passos vêm de
longe, muito longe e sempre foram marcados e demarcados por resis-
tências e tensões ao longo do processo sócio-histórico. A luta pela ga-
rantia de direitos, entre eles, o acesso à educação, sempre foi uma ban-
deira de resistência e resiliência do povo negro. A educação foi criada e
pensada para atender as demandas coloniais e, apropriada nos dias de
hoje pelas necessidades da burguesia, deixa de fora as camadas empo-
brecidas e excluídas da sociedade.
Assim, os caminhos de dentro e por dentro do quilombo rumo à
universidade é um debate urgente e necessário para o aprimoramento
dos conhecimentos de ambas as partes, pois os territórios quilombolas
são também universidades vivas e atuantes, dado que são produtores de
saberes e fazeres, transmitidos através das gerações, imprescindíveis
para a manutenção da vida individual e/ou coletiva nos territórios.
Foram bases para a realização deste trabalho as vivências ances-
trais transmitidas de modo geracional das minhas mais velhas com as
mais novas, dentro e fora dos territórios pelos quais transito, além da
minha participação no 1.º Simpósio Nós na Universidade: Povos
Tradicionais, Educação e Políticas Públicas, organizado pelo Programa
de Pós-Graduação em História da UFC, no dia 10 de dezembro de 2021,
das 14 às 16 horas, na mesa de número 3, com o tema “Comunidades
tradicionais: patrimônio e perspectivas”.
A quilombola Selma dos Santos Dealdina afirma que “em termos
de construção diária dos hábitos e costumes locais, o patrimônio cul-

45
tural quilombola está presente na gastronomia à base dos derivados de
mandioca, nas brincadeiras de roda, nas manifestações culturais[...]”,
(DEALDINA, 2020 p. 17). Assim sendo, os territórios quilombolas são
espaços educacionais, onde o modo de ser e de viver das famílias é
passado pelas gerações através da oralidade.
A luta pelo reconhecimento de nossa existência, produção e repro-
dução de nossos conhecimentos sempre esteve em evidência nas lutas de
ontem e de hoje de nossa população, em particular do movimento negro,
como aponta Djamila Ribeiro, no Pequeno manual antirracista:

[...] a população negra criou estratégias ao longo de sua hstória para


superar essa marginalização. O conhecido movimento Panteras Negras,
do qual a ativista e filósofa Ângela Davis fez parte, além de lutar contra
a segregação racial nos Estados Unidos e pela emancipação do povo
negro, tinha também em suas bases a valorização da estética negra
[...]. No campo das artes, temos experiências notáveis realizadas pela
população negra no Brasil, mas, infelizmente, ainda pouco conhe-
cidas. O Teatro Experimental do Negro (TEN), criado por Abdias do
Nascimento em 1944, buscou valorizar a cultura afro-brasileira por
meio da educação e da arte, formulando uma estética própria para além
da reprodução da experiência de outros países e visando ao protago-
nismo do povo negro (RIBEIRO, 2019, p. 27-29).

Desse modo, o povo negro sempre buscou mecanismos para


romper as iniquidades, sobretudo as barreiras de acesso à educação,
como forma de enfrentar as desigualdades socioeducacionais.
Confrontar tais obstáculos educacionais é de suma importância, pois,
além de ser uma forma de ascensão sociorracial, é também um meca-
nismo de conhecer e trazer para o debate social as epistemologias pro-
duzidas pelo povo negro nos diversos espaços de inserção, seja nos
campos, nas águas, nas florestas, nas periferias.
Assim sendo, os territórios quilombolas são permeados de expe-
riências, costumes, vivências individuais/coletivas, valores culturais e
tradições. É por meio da subjetividade e da história oral que se pode
perceber de forma grandiosa a imensa contribuição ofertada e parti-
lhada por esses povos dentro de seus territórios, através dos conheci-
mentos das plantas, das práticas medicinais, do uso do território como

46
espaço coletivo, dos quintais produtivos, das sementes crioulas e das
tradições culturais, tais como as danças e as cantigas.
Por meio de uma visão crítica e um olhar multifacetado, é pos-
sível enxergar as diversas realidades contributivas para a formação so-
cial, cultural, política e econômica da população brasileira. Enxergar
esses fatos é de suma relevância para visibilizar uma população que
fora sócio-historicamente invisibilizada, a população quilombola.
As tentativas de apagamento dos corpos negros e de suas produ-
ções de conhecimentos continuam acentuadamente atuantes, embora
tenhamos tido alguns avanços significativos, como a lei de cotas raciais
nas universidades (Lei n.°12.711/12), o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (Pronera), o Programa Universidade para Todos
(Prouni) e os editais específicos para indígenas e quilombolas.
Essas conquistas são frutos de décadas de luta, de resistência, de
resiliência, de sangue e suor derramados, para que corpos negros pu-
dessem e possam ingressar nas universidades para partilhar, produzir e
fortalecer seus próprios conhecimentos.
As reflexões sobre a ausência/negação dos conhecimentos pro-
duzidos pelos povos tradicionais, em particular dos quilombolas, nas
universidades são evidentes e trazem vários questionamentos, entre
eles: por que há tanta dificuldade em (re)conhecer/respeitar/valorizar os
conhecimentos ancestrais dessa população? Por que ignoram a grandio-
sidade de “nós” na universidade? Muitas das vezes se torna cansativo
repetir a mesma lição (que tais corporeidades [re]existem e são per-
meadas por uma cosmopercepção quilombola). Busco o uso do termo
cosmopercepção, em contraponto ao viés ocidental de cosmovisão, a
partir da perspectiva de Oyewumi (1997).
Lima Barreto, em seu livro intitulado O triste fim de Policarpo
Quaresma, descreve que:

Além do que, penso que todo este nosso sacrifício tem sido inútil. Tudo
o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que der-
ramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados,
foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados
em prol de uma tolice política qualquer... Ninguém compreende o que
quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco

47
e a vida se vai fazendo inexoravelmente com sua brutalidade e fealdade
(BARRETO, 2015, p. 109).

No trecho acima, o autor destaca as intensas lutas travadas com a


sociedade, na tentativa de verbalizar sua existência e seus conheci-
mentos e a sua frustação ao perceber que, mesmo diante das tentativas,
seus desejos e anseios não são levados em consideração, causando-lhe
intensos dissabores. Dessa forma, os territórios quilombolas são es-
paços sagrados de memória, solidariedade, coletividade, ancestrali-
dade, contação de histórias, produção e reprodução dos conhecimentos.
O ajuntamento da cosmopercepção quilombola e dos conhecimentos
produzidos nas universidades é primordial para o fortalecimento de
ambos, sendo, portanto, indispensável para uma reparação histórica da
negrada, historicamente negada.

Acesso de estudantes quilombolas às universidades


e sua permanência

Oh, que caminhos tão longes (2x)


Oh, que área, tão quente (2x)
Se não fosse São Gonçalo (2x)
Aqui, não tinha essa gente (2x).
(Trecho da cantiga de São Gonçalo, do Quilombo Sítio Veiga –
Quixadá-CE) (SILVA, 2021, p. 131).

O trecho apresentado acima é parte de um conhecimento ances-


tral. Esse patrimônio cultural é cantado e dançado pelas/os dança-
deiras/os de São Gonçalo do Quilombo Sítio Veiga há mais de um
século. A tradição cultural foi herdada pela família fundadora do ter-
ritório quilombola, de Maria Fernandes, popularmente conhecida
como “Mãe Veia”, e de seu esposo Chiquinho Ribeiro, conhecido
como “Pai Xigano”.
A estrofe mostra em suas linhas e entrelinhas as dificuldades dos
quilombolas em acessarem seus direitos, entre eles, o ingresso à edu-
cação superior, que continua sendo uma utopia para grande parcela dessa

48
população. A areia ainda insiste em queimar nossos pés calejados, mas
que não se cansam de lutar para ocupar o lugar que é nosso por direito.
Nesse sentido, a entrada de estudantes quilombolas nas universi-
dades continua sendo um grande desafio, pois, até o momento, o número
de instituições de nível superior no Ceará que criam mecanismos de acesso
e permanência com base na singularidade desses sujeitos é quase inexis-
tente. O estado do Ceará tem 84 quilombos, segundo o movimento deno-
minado de Comissão Estadual dos Quilombolas do Ceará (CequirCE).
Esse movimento reconhece que há ainda muito mais comunidades qui-
lombolas que continuam no anonimato no estado e para o estado.
As experiências aqui mencionadas são de duas universidades
cearenses: a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab-CE).
Destaco mais uma vez que a presença do povo quilombola nesses es-
paços é fruto de intensas lutas ancestrais. Na UFC, atualmente, temos
matriculados apenas quatro quilombolas, uma em Educação, cuja en-
trada ocorreu através da ampla concorrência, outra no mestrado em
História Social e outras duas no doutorado, também em História.
Em relação ao curso de História, tais estudantes quilombolas
ingressaram através de um edital específico para indígenas e quilom-
bolas, levando em consideração o princípio da equidade. Esses estu-
dantes também receberam e recebem uma bolsa de estudos como ga-
rantia de permanência na universidade e de continuidade na produção
de conhecimentos.
Aqui cabe alguns outros questionamentos: entre a comunidade
estudantil quilombola que está atualmente nessa instituição, por que o
número (mesmo ainda minúsculo) é maior no curso de História? Qual a
importância de se pensar em outras formas de inclusão com ênfase na
particularidade dos sujeitos? O que a UFC tem feito ao longo de seus 64
anos de existência para diminuir as desigualdades causadas pelo pro-
cesso sócio-histórico e para o enfretamento do racismo que continua a
cimentar e estruturar as relações sociais?
Além dos questionamentos realizados sobre a referida universi-
dade, destaco que o curso de História até o presente momento tem sido
o único a caminhar na contramão dos demais cursos ao implementar e

49
experimentar outras formas de acesso e permanência, neste caso, o
edital específico para indígenas e quilombolas.
As universidades, de modo geral, e em particular as do Ceará,
têm uma dívida sócio-histórica com essa população. Assim, já é pas-
sada a hora de pensar estratégias de inclusão em todos os cursos a fim
de que outras corporeidades (indígenas, quilombolas, povos de terreiro,
ciganos, refugiados, pessoas com deficiência, pessoas com identidade
trans, travestis e não binárias) tenham oportunidade de ingressar com
dignidade na academia.
Na Unilab-CE, até 2016, havia somente uma estudante quilom-
bola, cuja entrada se deu por meio do Sistema de Seleção Utilizando os
Resultados do Enem (Sisure). Em 2017, aconteceu no Quilombo Sítio
Veiga, em Quixadá (CE), o 17.° Encontro Estadual das Comunidades
Rurais Quilombolas, do qual participaram diversas lideranças, juven-
tude de vários territórios e docentes e discentes de diversas universi-
dades, com o objetivo de debater a Educação Escolar Quilombola e os
caminhos de acesso à educação superior e de permanência.
Os intensos debates foram de suma importância para alavancar e
fortalecer a necessidade de pensar formas de ingresso. Foi com a força
da ancestralidade do povo quilombola e com a resistência dos partici-
pantes do encontro que se fez nascer o edital específico para indígena e
quilombola na Unilab. Entre esses participantes, destacam-se os do-
centes da Unilab: Eliane Costa Santos, Jacqueline Silva Costa e Ivan
Costa Lima; e os discentes da mesma instituição: o estudante guineense
Samora Caetano e o quilombola Geovane Ferreira.
Foram esses docentes e discentes que, ao retornarem para a refe-
rida universidade, puseram em prática o clamor da juventude, de ho-
mens e mulheres participantes do encontro, sob o solo sagrado do terri-
tório quilombola do Sítio Veiga. O curso de Pedagogia foi o primeiro a
enxergar e ouvir a voz dos quilombolas, ofertando de início 11 vagas,
sendo 6 para quilombolas e 5 para indígenas.
Começara ali a intensa e dolorosa caminhada de casa para romper
com os muros da universidade. Inicialmente, o edital contemplava so-
mente discentes do Ceará e, a partir do segundo, foi estendido para o
campus do Malês, em São Francisco do Conde, na Bahia.

50
Depois de muitos esforços, os demais cursos foram aderindo e
ampliando o número de vagas. Ainda assim, houve cursos que taparam
seus ouvidos diante dos nossos gritos, e que tapavam seus olhos recu-
sando enxergar as nossas corporeidades, desrespeitando nossa cosmo-
percepção quilombola. Estes não sabem, e nem saberão, o tamanho de
suas perdas ao ignorarem o nosso direito de fortalecer, partilhar, pro-
duzir e absorver conhecimentos. No livro intitulado Mulheres quilom-
bolas: territórios de existências negras femininas, Dealdina (2019)
afirma que:

São imperativos esse diálogo e essa combinação de saberes para a mo-


bilização de grupos aliados e dos órgãos oficiais do Estado, visibili-
zando a comunidade e suas lutas políticas, construídos novos meios e
articulações para conquistar e assegurar direitos do povo quilombola
(DEALDINA, 2019, p. 89).

O edital supracitado teve apenas dois anos de duração. Durante


esse tempo, ingressaram mais de 300 indígenas e quilombolas nos
campi do Ceará e da Bahia. Em 2019, por força do desgoverno e dos
intensos ataques à educação, mais uma vez, a universidade reergueu
seus muros e fechou as suas portas para os povos tradicionais, ficando
apenas uma estreita vereda e um muro alto a ser escalado, ignorando
completamente a especificidade desse grupo.
Depois da não continuidade do edital específico na Unilab, a en-
trada de estudantes quilombolas foi extremamente reduzida para aproxi-
madamente 10 quilombolas na Unilab – Ceará, de 2019 a 2021. Dessa
forma, o resultado do edital específico demonstra a importância do olhar
com ênfase na particularidade desses sujeitos e a urgência de pensar
políticas que de fato garantam o ingresso e a permanência de corporei-
dades que continuam à margem e excluídas dos espaços universitários.
Foi nesse sentido que, após a não continuidade do edital espe-
cífico, ainda em 2019, os coletivos denominados de Coletivo dos
Estudantes Indígenas (Coesi) e Coletivo dos Estudantes Kilombolas
da Unilab – Ceará (Cekuce) viram a necessidade de criar mecanismos
visando a elaborar uma proposta para institucionalizar uma política
de ação afirmativa, de modo que corporeidades historicamente ne-

51
gadas tenham a oportunidade de ingressar e permanecer com digni-
dade na universidade.
Assim, foi criado o Grupo de Estudos (GT), com representantes
dos diversos segmentos que compõem a universidade, inicialmente com
indígenas, quilombolas e docentes do edital específico. Depois houve a
necessidade de ampliar para que mais grupos pudessem contribuir na
construção da proposta de forma inclusiva. Desse modo, o GT foi com-
posto por: indígenas, quilombolas, povos de terreiro, ciganos, população
LGBTQIA+, docentes e técnicas/os sensíveis à causa. A ideia era dis-
cutir uma proposta de políticas afirmativas de forma institucionalizada.
Reunimo-nos por aproximadamente um ano, ouvindo e bus-
cando experiências de políticas de ações afirmativas de outras univer-
sidades, a fim de somar com a experiência do edital específico de in-
dígenas e quilombolas. Destaco que, durante os dois anos de existência
do edital, os dois coletivos supracitados mobilizaram diversos de-
bates, objetivando discussões acerca de ingresso e permanência para
os povos tradicionais.
Em meados de 2021, o GT encaminhou para o Conselho
Universitário (Consuni) a proposta a ser apreciada e votada. Em 20 de
agosto do referido ano, é aprovada a instituição e regulamentação do
Programa de Ações Afirmativas, através da Resolução Consuni/Unilab
n.° 40. Nesta, estão inseridos os grupos listados a seguir:

Art. 1° O Programa de Ações Afirmativas da Universidade da Integração


da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) assegura as Políticas de Ações
Afirmativas para o ensino, a extensão e a pesquisa com a finalidade
de promover o ingresso e a permanência de indígenas, negros, quilom-
bolas, ciganos, povos e comunidades tradicionais, refugiados, pessoas
com deficiência, pessoas com identidades trans e pessoas em situação
de privação de liberdade ou egressas do sistema prisional, ficando re-
gulado por esta Resolução e pela legislação vigente (UNIVERSIDADE
DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA LUSOFONIA AFRO-
BRASILEIRA, 2021).

Até o presente momento, a política de ação afirmativa não foi


implementada, por ausência de vontade política das/dos que compõem
a atual gestão da Unilab, que a todo momento criam barreiras impe-

52
dindo sua implementação efetiva. Depois de muitos desgastes, tensio-
namentos e resistência, nós, representantes dos diversos segmentos,
defendemos que tudo o que diz respeito à política de ações afirmativas
na Unilab deve ser apresentado e apreciado anteriormente pelo Capaf,
para que o processo seja de fato democrático, pois sem a participação
discente não há formada democracia!
O comitê é formado por representantes dos diversos segmentos da
instituição do Ceará e da Bahia, denominado Comitê de Acompanhamento
das Políticas de Ação Afirmativa (Capaf), designado pela Portaria
Reitoria/Unilab n.° 32, de 3 de fevereiro de 2021, visando ao acompa-
nhamento e implementação da referida política na instituição.
A morosidade na implementação da referida política ocorre
porque os processos estão acontecendo sem nossa participação.
Muitas das vezes, as decisões chegam apenas como informes, vio-
lando nosso direito de participação nas tomadas de decisão. Esses fa-
tores vêm causando intensos conflitos e adoecimentos. Como forma
de repudiar a violação dos direitos de nosso povo, nós, representantes
dos diversos segmentos, realizamos reuniões, assembleias e duas
notas de repúdio, por compreendermos que a democracia deve ser
sempre a base no caminhar de casa à universidade. Portanto, a partir
da afirmativa de que nossas vozes devem ser consideradas e merecem
ser respeitadas, exigimos participação popular. Como dito inicial-
mente, nossos passos e compassos vêm de longe, e longe chegaremos,
visto que nada foi dado, sempre foi fruto de luta. “Nunca” foi sorte/
esmola, sempre foi força ancestral.
Nossa luta e resistência continuam latentes, nosso desejo é
que a política seja discutida, construída e implementada de forma
coletiva. Almejamos que nossas práticas tradicionais, saberes, fa-
zeres e corporeidades sejam também contabilizados como produ-
toras/res de saberes.
Queremos que nossos conhecimentos sejam cruzados do qui-
lombo à universidade, sem que haja prejuízos para nenhuma das partes.
Nossos territórios quilombolas são símbolos de resistência, com orga-
nização social peculiar, mantenedora de ligação com a história e traje-
tória ancestral quilombola, preservando, produzindo e partilhando co-

53
nhecimentos herdados de nossos antepassados e repassados para as
gerações futuras do quilombo à universidade.

Referências

BARRETO, L. Triste fim de Policarpo Quaresma. 17. ed. São Paulo:


Ática, 2015.
BRASIL. Lei n.º 12711, de 29 de agosto de 2012. Sanciona que as
instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério
da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso
nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50%
(cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham
cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. DF:
Diário Oficial da União, 2012. Disponível em: http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm
Acesso em: 9 mar. 2022.
DEALDINA, S. dos S. (org.). Mulheres quilombolas: territórios de
existências negras femininas. São Paulo: Sueli Carneiro: Jandaíra, 2020.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
OYEWUMI, O. Visualizing the body: western theories and African
subjects. In: OYEWUMI, O. The invention of woman: makin an African
sense of western gender discourses. Minneapoles: University of
Minnesota, 1997.
UNIVERSIDADE DA INTEGRAÇÃO INTERNACIONAL DA
LUSOFONIA AFRO-BRASILEIRA. Resolução n.º 40/2021, de 20
ago. 2021. Aprova a instituição e regulamentação do Programa de
Ações Afirmativas da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab). Unilab: Conselho Universitário,
2021. Disponível em: https://unilab.edu.br/wp-content/
uploads/2021/08 /Acoes-afirmativas1.pdf. Acesso em: 9 mar. 2022.

54
RIBERO, D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
SILVA, A. M. E. da. As quilombolas do Sítio Veiga e a dança de
São Gonçalo em Quixadá-CE. 2021. Dissertação (Mestrado em
Huma­nidades) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Hu­­­ma­nidades, Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, 2021.

55
A “RETOMADA DA EDUCAÇÃO”
Uma experiência de educação quilombola no
Quilombo Nazaré em Serrano do Maranhão (MA)

Maria da Conceição Pinheiro de Almeida

Introdução

O presente artigo resulta de uma apresentação feita no XXX


Simpósio Nacional de História realizado pela ANPUH na Universidade
Federal de Pernambuco, no ano de 2019, que não resultou em publi-
cação nos anais do evento.
O nosso objetivo é apresentar uma experiência de educação qui-
lombola desenvolvida no Quilombo Nazaré, localizado no município
de Serrano do Maranhão, litoral norte do Maranhão, quando os inte-
grantes dessa comunidade, resistindo à tentativa de fechamento da es-
cola local, tomaram para si a responsabilidade da educação das crianças
da educação infantil até o 9º ano do Ensino Fundamental.
A partir de então, implantaram o que pode ser chamada de uma
“educação quilombola”, valorizando a cultura local com suas tradições,
seus costumes, seus modos de viver, a fim de reforçar o sentimento de
pertencimento, sobretudo, das gerações mais jovens da comunidade.
Essa iniciativa foi “batizada” pelos membros da comunidade como “a
retomada da educação” e se configura como um ato de resistência de
duplo sentido: ao fechamento da escola pela prefeitura municipal e aos
conteúdos oficiais que não contemplavam os valores da comunidade.
Esse fato representou uma resposta da comunidade à falta de con-
cretude dos diversos atos legais que regulamentam a educação quilom-
bola no Brasil, os quais ainda não surtiram os efeitos esperados pela po-
pulação quilombola. Esta continua submetida a um sistema educacional
que não contempla suas especificidades, situação que não atinge apenas
a população quilombola, mas toda a população negra do país.

A construção “legal” da educação quilombola no Brasil

A trajetória da população negra no Brasil é marcada pela luta


constante para conquistar seu espaço na sociedade, tornando-se, por-
tanto, protagonista de todos os direitos alcançados, desde a abolição do
trabalho escravo até os mais recentes, como o direito a uma educação
diferenciada para os ocupantes das comunidades quilombolas.
Resultante de todo esse processo de luta, o Estado brasileiro é
forçado a dar uma resposta, e isso, na perspectiva de Arruti (2017,
p. 114), se inicia com a “reforma educacional” introduzida pela Lei de
Diretrizes e Bases da Educação (Lei n.º 9.394/1996), a qual estabelecia
que o ensino de História do Brasil levasse em consideração as contri-
buições das diversas etnias para a formação do povo brasileiro, em es-
pecial da europeia, da africana e da indígena.
A Constituição de 1988, ao inserir o art. 68 nos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias, garantiu, “oficialmente”, aos
remanescentes das comunidades dos quilombos que estivessem ocu-
pando suas terras o direito à propriedade definitiva, assim como no-
meou o Estado como responsável por fazer valer esse direito. Desse
modo, a partir de então, as comunidades quilombolas foram respaldadas
para reivindicar, além da regulamentação de suas terras, outras políticas
públicas que proporcionassem condições dignas de sobrevivência em
seus territórios, incluindo aí a oferta de uma educação que valorizasse
suas formas de viver, sua cultura, sua história: uma educação quilom-
bola, propriamente dita.

57
A leitura que fazemos do processo de implantação dessa edu-
cação quilombola nas comunidades quilombolas, assim como de outras
políticas públicas, é de um lento caminhar, desde 1988 até os dias atuais,
apesar de que, segundo Arruti (2017, p. 114-115), os primeiros passos
para uma educação quilombola foram dados por ocasião da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, assi-
nada no ano de 1969. Conforme esse autor, por essa convenção, o Brasil
incorporou “a diretriz que destacava o papel da educação para a ga-
rantia do respeito aos direitos, incluindo a análise das causas e das con-
sequências do racismo”.
Outro passo não menos importante foi a edição da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação no Brasil (Lei n.º 9.394/1996), como
já falamos acima, uma vez que nela foram inclusas importantes mu-
danças na educação, entre elas (importante no que se refere à edu-
cação quilombola), a necessidade de contemplar no ensino da História
do Brasil as contribuições das diferentes culturas e etnias para a for-
mação do povo brasileiro, sobretudo as de origens indígena, africana
e europeia. Estamos reiterando aqui para mostrar uma cronologia
desse processo.
Lembramos que essa determinação funcionou e funciona, so-
bretudo, em relação à cultura europeia, o que já vinha sendo cum-
prido desde sempre. Africanos e indígenas continuaram no ostra-
cismo sob diversas e distintas alegações, entre elas, a falta de
preparo de professores.
Isso é verdade na medida em que os currículos dos Cursos de
História das universidades brasileiras, até bem pouco tempo, não con-
templavam em suas grades curriculares a disciplina História da África
ou um aprofundamento da importância do continente africano para a
história geral das sociedades, muito menos conteúdo sobre os povos
indígenas, a não ser no contexto do trabalho compulsório de ambas as
etnias. Essa situação está muito evidente nos livros didáticos da disci-
plina de História, os quais ainda hoje privilegiam a história europeia em
detrimento da de outros povos.
Para tentar corrigir essa situação, a Lei n.º 10.639 foi editada
em 2003, introduzindo “a obrigatoriedade da inclusão, no currículo

58
oficial das redes de ensino, públicas e particulares, da temática
‘História e Cultura Afro-Brasileira’”. Ao lado dessa determinação
legal, foram criadas pelo governo federal a Secretaria Especial da
Promoção da Igualdade Racial (Sepir) e a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), sendo a primeira
responsável pelo Programa Brasil Quilombola, e a segunda, pela im-
plementação da Lei n.º 10.639. De acordo com Arruti (2017), a
questão a ser levada em consideração até esse ponto é a inserção da
população negra do Brasil na pauta da educação, já que até então a
demanda girava em torno do acesso à terra.
Fazendo pela primeira vez uma referência direta às comuni-
dades quilombolas, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), sendo
aquelas o público de interesse, apesar de não o específico (ARRUTI,
2017, p. 115).
As pressões do movimento negro, do movimento quilombola e
de outras organizações da sociedade civil levaram a Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação a aprovar as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
(DCNEEQEB),14 por meio da Resolução n.º 8, de 20 de novembro de
2012, tendo como objetivo “orientar os sistemas de ensino para que eles
colocassem em prática a Educação Escolar Quilombola, mantendo um
diálogo com a realidade sociocultural e política das comunidades e do
movimento quilombola” (BRASIL, 2012, p. 1). O texto assegurava às
comunidades quilombolas o direito a uma educação que priorizasse os
valores que são caros para cada comunidade quilombola.
No artigo 59 está estabelecido que: “É de responsabilidade do
Estado cumprir a Educação Escolar Quilombola tal como previsto no
art. 208 da Constituição Federal”. Ou seja, o Estado, qualquer que seja
sua esfera (municipal, estadual ou federal), deveria, a partir de então,
oferecer educação quilombola, da mesma forma ofertada para os de-

14 A partir daqui utilizaremos essa sigla para falarmos das diretrizes curriculares da edu-
cação quilombola.

59
mais segmentos da sociedade. Na análise de Carril (2017, p. 544 ), isso
se faz necessário a fim de “[...] salvaguardar e reforçar a identidade
cultural em ambientes escolares que, explicitamente ou não, podem vir
a manifestar formas de preconceito e racismo e repensar processos edu-
cacionais”, visto que estes devem abarcar “[...] as comunidades quilom-
bolas como elemento central de seus projetos”.
Apesar dessa determinação, até os dias atuais, a educação qui-
lombola ainda está longe de ser efetivada nas comunidades quilom-
bolas no Brasil, salvo alguns casos isolados, em que os próprios qui-
lombolas tomam para si a responsabilidade, a despeito das autoridades
públicas, pela implementação da educação quilombola em seus territó-
rios, como é o caso do Quilombo Nazaré, no município de Serrano do
Maranhão (MA), do qual falaremos mais adiante neste artigo.

A educação quilombola no Maranhão: um breve relato

Na nossa compreensão, estados e municípios são os responsáveis


por fazer valer as determinações legais a respeito da educação, por
exemplo. Sabemos também que essa, como a saúde, a segurança, o sa-
neamento, compõe os discursos eleitoreiros em todos os pleitos. Desse
modo, a educação quilombola também vem sendo inserida nesses dis-
cursos, o que obriga os eleitos a darem algum tipo de resposta a essa
parcela da população.
O estado do Maranhão, como sabemos, possui a terceira maior
população negra do país, atrás apenas da Bahia e do Pará, ao mesmo
tempo que ocupa a terceira posição no número de comunidades quilom-
bolas reconhecidas, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, atualizado até o ano de 2019. Nesse ano o estado regis-
trava em torno de 682 comunidades quilombolas, e a Baixada Ocidental
Maranhense, onde está localizado o município de Serrano do Maranhão,
contava com 476 comunidades quilombolas certificadas, conforme
dados da Fundação Cultural Palmares.

60
No que se refere à “educação quilombola”15 no Maranhão, o
Censo Escolar do ano de 2016 registou um total de 56.603 matrículas
quilombolas, em 716 escolas de educação básica, com um total de 3.910
professores atuando em escolas quilombolas. O Governo do Estado
também firmou convênio de cooperação técnico-científica com a
Universidade Federal do Maranhão, a qual implantou em 2015 o curso
de Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, no sentido de
qualificar professores para atuar na educação quilombola no estado.16
Por meio do Programa Escola Digna, o governo estadual tem auxi-
liado municípios na reforma de escolas de educação básica instaladas em
comunidades quilombolas (também),17 assim como na compra de equi-
pamentos e móveis para essas escolas, como foi o caso da Escola Nossa
Senhora de Nazaré, no Quilombo Nazaré, conforme declaração do atual
secretário de Educação, senhor Felipe Camarão.18 Algumas escolas, qui-
lombolas ou não, construídas pelo Programa Escola Digna parecem obe-
decer a um modelo padrão, como demonstram as Figuras 1 e 2.

15 Ponho educação quilombola entre aspas, neste caso, tendo em vista esta resumir-se,
sobretudo, a prédios e denominações, sem a introdução nas escolas locais do ensino
quilombola propriamente dito.
16 Disponível em: www.educacao.ma.gov.br (consultado em 26 de junho de 2019).
17 O Programa Escola Digna faz parte da macropolítica para a educação do atual Governo do
Estado, voltado prioritariamente para o Ensino Médio, que é de responsabilidade do estado,
mas também contribuindo com os municípios, com o objetivo de melhoria da educação.
18 Disponível em: www.igualdaderacial.ma.gov.br (consultado em 26 de junho de 2019).

61
Figura 1 – Escola quilombola em fase de acabamento na comunidade quilombola
de Damásio, em Guimarães (MA)

Fonte: http://www.educacao.ma.gov.br/

Figura 2 – Alicerces da construção de uma Escola Digna na comunidade quilombola


de Charco, no município de São Vicente de Ferrer (MA)

Fonte: foto de Maria Almeida.

62
As escolas ditas “quilombolas” construídas pelo governo esta-
dual estão voltadas para atender a alunos do Ensino Médio, cuja respon-
sabilidade compete à esfera estadual, porém algumas escolas quilom-
bolas do Ensino Fundamental da rede municipal estão sendo incluídas
no Programa Escola Digna, por meio da parceria entre estado e muni-
cípios, como é o caso da reforma efetuada na Escola Municipal Nossa
Senhora de Nazaré, do Quilombo Nazaré.

Figura 3 – Escola quilombola Nossa Senhora de Nazaré no Quilombo Nazaré, em


Serrano (MA), reformada através do Programa Escola Digna do governo estadual
em parceria com a Prefeitura de Serrano do Maranhão

Fonte: foto de Maria Almeida.

Essas e outras iniciativas tomadas por autoridades nos estados e


municípios, e mesmo pelo governo federal, ainda não atendem de ma-
neira satisfatória às expectativas dos movimentos sociais negros, espe-
cialmente o movimento quilombola.
Desse modo, apesar de alguns avanços no sentido da construção
e/ou melhorias em algumas escolas localizadas em comunidades qui-
lombolas, oferta de formação para professores da rede estadual/muni-

63
cipal, e até mesmo convênios com instituições públicas do Ensino
Superior, a educação quilombola, como estabelecem as Diretrizes da
Educação Quilombola, ainda se restringe ao papel.
Na opinião de uma integrante do Projeto Vida de Negro (PVN)
do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN):

[...] essas escolas quilombolas nas comunidades quilombolas, na ver-


dade, não existem. O que existe são as diretrizes trabalhadas que a gente
de fato brigou por isso. Então em 2012 ela saiu do papel, e só isso
assim. O que tem são questões muito incipientes mesmo, de iniciativa
própria de professores, às vezes de gestor, né, diretor de escola. Mas,
de fato, a implementação da educação escolar quilombola, ela ainda
não acontece.19

Ainda sobre as ações do Estado em relação à educação quilom-


bola, ela prossegue enfatizando que:

Hoje o estado do Maranhão diz que tem uma política de educação


escolar quilombola, isso pra nível médio, mas na verdade é mais na
questão de pintar um prédio, botar um nome e dizer: bom, isso aqui é
uma escola quilombola e pronto. Botar lá o nome “Escola quilombola
fulana de tal”, mas que, de fato, né, a educação, a metodologia, todos
os aspectos, assim, que se discute nas diretrizes não é implementado,
meramente, uma comemoração 20 de novembro, 13 de maio, não sei o
quê, que já vem se fazendo, que alguns professores já tomaram a ini-
ciativa de fazer. Então pra isso acham que isso é educação quilombola.

Analisando as ações do Governo do Estado do Maranhão e a


avaliação que faz essa integrante de movimento negro no estado, perce-
bemos que o que é oferecido como “educação quilombola” ainda está
distante do que determinam as diretrizes instituídas em 2012 e que até
os dias atuais a educação quilombola só acontece quando as comuni-
dades quilombolas tomam para si a responsabilidade de assumir a edu-
cação em seus territórios, como é o caso do Quilombo Nazaré, em
Serrano do Maranhão.

19 Entrevista concedida por Célia, integrante do Projeto Vida de Negro, em 15 de março


de 2019.

64
A “retomada da educação” em Serrano
do Maranhão (MA)

De acordo com Lima (2017, p. 46), “a educação tem sido apon-


tada como uma das grandes preocupações” do Movimento Negro no
Brasil, visto ser “[...] uma das políticas públicas indispensáveis para a
organização dos setores marginalizados”. Essa educação precisa estar
alinhada com os interesses dos grupos que irão recebê-la, assim, a

[...] escola deve ser considerada não apenas o espaço para a apropriação
do saber sistematizado, [...] mas, também o espaço de reapropriação da
cultura produzida pelos grupos sociais étnicos excluídos [...] a escola
deve deixar de ser o espaço de negação dos saberes para enfatizar a afir-
mação da diferença, num processo em que os indivíduos e grupos sejam
aceitos e valorizados pelas suas singularidades, ao invés de buscar a
igualdade pela tentativa de anulação e inferiorização das diferenças
(LOPES, 1997, p. 25, apud LIMA, 2017, p. 47).

As autoridades da educação tendem a uniformizar as propostas pe-


dagógicas sem levar em consideração as especificidades do público onde
elas vão ser postas em prática. De acordo com Carril (2017, p. 542), “a
questão suscita a pensar processos educacionais que construam ações de
reconhecimento [...] dos sujeitos que protagonizam a vida nos territórios
quilombolas, buscando pedagogias significativas que articulem [...] o en-
raizamento, a revelação do que somos e de como somos e não como de-
veríamos ser no horizonte da educação para a libertação”.
Nesse contexto, embora exista uma legislação que coloca como
obrigatória a inclusão dos conteúdos sobre a história da África e da
cultura afro-brasileira nas aulas, no caso, a Lei n.º 10.639, assim como
a Resolução n.º 8/2012, da Câmara de Educação Básica do Conselho
Nacional de Educação, que estabelece os parâmetros da educação qui-
lombola, pouco ou nada de seus conteúdos é contemplado na elabo-
ração dos currículos para as comunidades quilombolas, aliás, pratica-
mente não existe a elaboração de currículos específicos para essa
parcela populacional.
Diante desse quadro, agravado por questões de infraestrutura
municipal no que concerne à educação no município, a comunidade

65
do Quilombo Nazaré se organizou para assumir o controle da escola
local e das práticas pedagógicas a serem trabalhadas na Escola Nossa
Senhora de Nazaré.
Antes de falarmos da “retomada da educação” no Quilombo
Nazaré, é importante apresentá-lo aos leitores. Ele está localizado na
zona rural do município de Serrano do Maranhão (MA), a 43 km da
sede desse município, na microrregião Litoral Ocidental Maranhense, a
187 km da capital São Luís, emancipado em 1994, quando foi desmem-
brado do município de Cururupu (MA).
Possui uma população de 10.914 habitantes, segundo dados do
IBGE/Censo 2010, composta por 99% de negros e negras, com 94%
desses habitantes autorreconhecendo-se como quilombolas.
O Quilombo Nazaré é uma entre as doze comunidades quilom-
bolas que compõem o território Mariano dos Campos. No “dizer” dos
moradores locais, o Quilombo Nazaré é a primeira comunidade do
“nascer do sol”, em relação ao território, isto é, fica na extremidade do
território tomando como base o nascente.
A ação denominada pelos quilombolas do local como a “retomada
da educação” teve início em 2004 precipitada pela tentativa da Secretaria
de Educação do Município de desativar a escola da comunidade que
atendia a alunos da educação infantil ao 9.º ano do Ensino Fundamental,
alegando número insuficiente de alunos. Nessa oportunidade, Dona Ana
e seus filhos Gil e Lidiane, os quais possuíam a formação em Educação
do Campo, tomaram a frente do processo. Ou seja, a educação nessa
comunidade, no que diz respeito à coordenação e ensino, tornou-se um
trabalho familiar. As falas abaixo apontam para a questão que move e
sempre moveu a população negra no Brasil: a resistência.

A gente já consegue... conseguiu retomar a educação, trazer a educação


pra um nível, é, onde que, onde o que vai ser ensinado na sala de aula
é algo que vem beneficiar a comunidade (Gil, líder quilombola, em
15.02.2019).
Pra gente ter uma retomada da educação, isso não é fácil, tem que
ter peito e resistência, e rebeldia, porque se não for, por vontade
deles, eles não te dão não... eles não acham bom essa maneira que
a gente trabalha... (Dona Ana, professora no Quilombo Nazaré, em
15.02.2019).

66
As práticas pedagógicas desenvolvidas nessa perspectiva de “re-
tomada da educação” consistem num diálogo entre professores, alunos
e demais membros da comunidade, cujos conhecimentos são levados
em consideração no processo ensino/aprendizagem. As atividades de
sala de aula, conforme informou Dona Ana, são pautadas em projetos
pedagógicos envolvendo professores, alunos e moradores da comuni-
dade com saberes específicos.
As aulas consistem em conteúdo do currículo oficial, valorizando
a cultura afro-brasileira e os valores específicos vivenciados dentro da
comunidade, visando a fortalecer o sentimento de pertencimento nas
crianças e adolescentes da comunidade. Desse modo, os moradores fre-
quentemente são convidados para participar de oficinas onde repassam
seus saberes específicos, geralmente relacionados a um objeto ou a uma
prática que faz parte do cotidiano da comunidade.
Os docentes que atuam na escola são moradores da comunidade,
sobretudo Dona Ana e seus filhos Gil e Lidiane, ou ainda professores de
comunidades vizinhas, engajadas no movimento quilombola.
A comunidade, por outro lado, apesar de manter o controle do
processo educativo em seu território, por questões burocráticas e para
que esse processo tenha legitimidade nas instâncias legais, recorre à
Secretaria de Educação do Município a fim de que a escola seja inserida
no censo escolar anual. As demais interferências do poder público nas
ações educativas na comunidade contam com a anuência de seus mem-
bros para serem ou não postas em prática.

Figura 4 – Alguns produtos das práticas pedagógicas realizadas na escola da comunidade

Protótipo das casas Forno a lenha Protótipo da organização das


construções
Fontes: fotos de Maria Almeida

67
A prefeitura municipal de Serrano vez por outra faz incursões na
comunidade na tentativa de impor suas diretrizes dentro da escola, seja
pelo envio de professores de outras localidades, inclusive da sede, seja
pelo atraso na entrega da escola reformada com a ajuda do governo do
Estado. Em 2019, quando visitamos essa comunidade, a escola estava
com a reforma concluída, equipada com móveis e eletrodomésticos,
porém não havia sido oficialmente entregue aos moradores. No en-
tanto, diante da necessidade que tinham os alunos de frequentarem as
aulas, a comunidade adentrou a escola, utilizando apenas as salas de
aula e realizando as atividades pedagógicas, porém sem utilizar os ele-
trodomésticos, como geladeira, fogão e outros. Estivemos em feve-
reiro de 2019 na escola, que só foi entregue, oficialmente, em de-
zembro de 2020.

Algumas considerações

Uma primeira questão diz respeito à indisposição do poder pú-


blico em garantir o cumprimento das leis que ele mesmo protagoniza.
Às vezes costumamos ouvir que o Brasil é um país “sem leis”. Discordo.
O problema não está na ausência de leis, mas na inaplicabilidade das
leis, e é por essa “peculiaridade” do Estado brasileiro que os grupos
populacionais têm se mobilizado e buscado soluções para os problemas
que os afetam, por vezes, à sua maneira.
No caso das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Quilombola, trata-se de uma resolução que alcança, basicamente, todas
as aspirações educacionais da população quilombola, porém está res-
trita ao papel, pois, se funcionasse, não haveria necessidade de uma
intervenção radical da comunidade, até porque o trabalho seria parti-
lhado entre poder público e comunidade
Outra questão que merece ser destacada, é a capacidade de mobi-
lização de grupos marginalizados, mesmo diante dos desafios, que
partem do Estado e da iniciativa privada, na defesa de seus direitos,
seus interesses. O poder do Estado ou de grupos econômicos não os
amedronta. Entendemos não ser possível antever se a situação atual da
educação na comunidade será mantida ou não, porém, até o momento,

68
está dando resultados positivos, especialmente para crianças e adoles-
centes, os quais adquiriram desenvoltura no falar, no apresentar sua co-
munidade a outras comunidades, pois, segundo Dona Ana, alguns
alunos têm se deslocado para falar de suas experiências em outros lu-
gares, fora dos limites da Baixada Ocidental Maranhense.
Outra questão importante é que a experiência da “retomada da
educação” iniciada no Quilombo Nazaré tem chegado a outras comuni-
dades quilombolas do município, mas também a outros municípios,
como é o caso de Santa Helena, vizinha de Serrano do Maranhão.
Apesar dos bons resultados da experiência, o Quilombo Nazaré
ainda enfrenta um problema sério envolvendo os alunos que concluem
o ensino fundamental. Após o 9.º ano, alguns alunos ficam sem estudar
se não tiverem uma casa na cidade, ou de algum parente, tendo em vista
que a prefeitura só disponibiliza transporte até o encerramento das ati-
vidades nas escolas municipais, e, geralmente, as aulas nas escolas da
rede estadual de ensino, que oferece o Ensino Médio, encerram suas
atividades bem mais tarde, e os alunos do quilombo nelas matriculados
ficam reprovados por não concluírem o ano letivo. Na ocasião em que
visitamos a comunidade, havia uma promessa da Secretaria Estadual de
Educação de criar uma sala da 1ª série do Ensino Médio na comunidade
ou em outra localidade mais próxima a fim de resolver essa situação.

Referências
ARRUTI, J. M. Conceitos, normas e números: uma introdução à
Educação Escolar Quilombola. Revista Contemporânea de Educação,
v. 12, n. 23, jan./ abr. 2017.
BRASIL. Resolução n.º 8, de 20 de novembro de 2012. Define
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
na Educação Básica. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 nov. 2012. Seção 1, p. 26.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola: algumas informações. Brasília: Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação, 2011.

69
CARRIL, L. de F. B. Os desafios da educação quilombola no Brasil: o
território como contexto e texto. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
rbedu/a/L9vwgCcgBY6sF4KwMpdYcfK/?format=html#. Acesso em:
31 mar. 2022.
GONÇALVES, D. P. Da escola no quilombo à escola do quilombo: as
propostas pedagógicas como possibilidade de diversificar o currículo das
escolas quilombolas de Ensino Fundamental no município de Bequimão
(MA). 2019. Dissertação (Mestrado em Gestão de Ensino da Educação
Básica) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2019.
LIMA, I. C. História da educação do negro(a) no Brasil: pedagogia
interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo. Curitiba:
Appris, 2017.

Entrevistas
Entrevista realizada com Célia, integrante do Projeto Vida de Negro,
em 15 de março de 2019.
Entrevista realizada com Gil, liderança quilombola do Quilombo
Nazaré, em 15 de fevereiro de 2019.
Entrevista com Dona Ana, mãe de Gil e Lidiane em 15 de fevereiro
de 2019.

Sites
www.educacao.ma.gov.br
www.igualdaderacial.ma.gov.br

70
TERRA, TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES
E BEM-VIVER NO
QUILOMBO DO CUMBE – ARACATI (CE)
E NA TERRA INDÍGENA TREMEMBÉ DA
BARRA DO RIO MUNDAÚ – ITAPIPOCA (CE)

João Luís Joventino do Nascimento (João do Cumbe)


Mateus de Castro Ferreira (Mateus Tremembé)

O presente artigo nasce da realização do minicurso sobre a te-


mática Terra, Território, Territorialidades e Bem-Viver, realizado durante
o 1.º Simpósio Nós na Universidade: Povos Tradicionais, Educação e
Políticas Públicas, pelo grupo de estudos Caldeirão: Confluências
Anticoloniais, do Programa de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Ceará – UFC. O objetivo do minicurso foi dis-
cutir a importância e a relação territorial para os povos e comunidades
tradicionais, especialmente a partir da experiência de luta de duas comuni-
dades tradicionais do Ceará, o Quilombo do Cumbe – Aracati (CE) e a
Terra Indígena dos Tremembé da Barra do Rio Mundaú – Itapipoca (CE),
tendo como facilitadores um estudante quilombola e outro indígena.

Introdução

A luta dos povos e comunidades tradicionais do Ceará e do


Brasil pela defesa e regularização fundiária dos seus territórios de uso
comunitário é uma longa jornada que atravessa mais de cinco séculos,
desde a invasão dos colonizadores europeus em solo brasileiro. Na
atualidade, a invasão aos nossos territórios tradicionais por atividades
econômicas, apoiadas e financiadas pelos governos, tem aumentado os
conflitos socioambientais e fundiários, gerado violações de direitos e a
criminalização das pessoas que estão à frente dos processos de luta.
Por outro lado, temos nossas comunidades rurais compromis-
sadas com a defesa do nosso território e preocupadas com as territoria-
lidades que estabelecemos com o ambiente natural, que determina
nosso modo de vida e bem-viver. Dessa forma, exigem-se de nós, co-
munitários, diferentes estratégias de reexistências no sentido de asse-
gurar direitos garantidos constitucionalmente, que vêm sendo descum-
pridos pelos governos e instituições públicas que atuam (ou deveriam
atuar) na proteção e defesa dos povos e comunidades tradicionais, es-
pecialmente as comunidades quilombolas e indígenas.
No Ceará, as coisas não são diferentes das demais regiões do Brasil,
sobretudo quando se trata do direito à terra e ao território de uso comum às
nossas comunidades e aos nossos povos que vivem secularmente ocu-
pando seus espaços de reprodução social, econômica, política e cultural.
Para início de conversa, vamos conhecer um pouco da realidade
vivida em duas comunidades tradicionais do Ceará, uma quilombola e a
outra indígena, ambas comunidades litorâneas, uma situada no litoral
leste e a outra no litoral oeste do estado, onde vivenciam constantes dis-
putas pelo direito à terra e ao território tradicional. Vamos começar pelo
Quilombo do Cumbe, no município do Aracati, que, desde os anos de
1996, resiste e luta contra os empreendimentos econômicos que inva-
diram o território quilombola causando diversos conflitos socioambien-
tais, perda e privatização dos espaços de uso comunitário, conflito interno
entre quilombolas e não quilombolas, além de diversos casos de injustiça,
racismo estrutural, institucional e ambiental.

Quilombo do Cumbe – Aracati (CE): em defesa da


identidade quilombola pesqueira e do bem-viver

O Quilombo do Cumbe está situado no município de Aracati, li-


toral leste do Ceará, a aproximadamente 180 km da capital, Fortaleza, e

72
a 12 km da sede do município. Localizado na margem direita do rio
Jaguaribe, próximo à foz, é circundado por áreas de carnaubais e man-
guezais, campo de dunas móveis, lagoas temporárias, sítios arqueoló-
gicos e faixa de praia. O povoado é formado por cerca de 170 famílias,
das quais 111 se autodefinem como quilombolas, tendo no ecossistema
manguezal e no estuário do rio Jaguaribe seu principal meio de vida.
Foi certificado pela Fundação Cultural Palmares, órgão federal respon-
sável pela identificação e certificação das comunidades remanescentes
de quilombos, em dezembro de 2014.
Sobre a origem do nome Cumbe, alguns autores assim definem:

Cumbe, palavra de origem africana ou afro-brasileira que significa qui-


lombo. Cumbe é o nome que, na Venezuela, se dá aos quilombos – co-
munidades formadas por negros no período escravista. Mucambo ou
mocambo tem o mesmo sentido (RATTS, 2009, p. 67).

Conclui-se que a palavra “cumbe” é sinônimo de quilombo


também em alguns países sul-americanos, demarcando uma ancestrali-
dade de origem africana presente em várias regiões do mundo. Marcelo
D’Salete nos apresenta outros significados para a palavra. Vejamos o
que diz o autor:

Nas línguas congo/angola tem os sentidos de sol, dia, luz, fogo e força
trançada ao poder dos reis e à forma de elaborar e compreender a vida e a
história. Para Nei Lopes, a origem da palavra vem do “quimbundo kumbi,
correspondente ao umbundo ekumbi, sol” (D’SALETE, 2014, p. 171).

Podemos assim afirmar que qualquer que seja o significado ou a


origem da palavra “cumbe”, ela sempre vai remeter à ancestralidade
africana e quilombola, a uma herança que vem dos nossos antepassados
que habitaram diferentes regiões do Brasil, inclusive o Cumbe. Segundo
o professor Alex Ratts, a região jaguaribana, onde se situa o Cumbe,
possui diversos lugares com referência africana ou afro-brasileira, onde
a diversidade racial e cultural pode ser percebida em diversas situações,
tais como: na arquitetura – construções das casas de taipa e cercas; na
agricultura – o plantio nos roçados; e também na culinária, festas, cele-
brações, histórias, língua e na música (RATTS, 2009).

73
Embora algumas pesquisas e fontes documentais apontem ele-
mentos da cultura africana ou afro-brasileira em diferentes regiões do
estado, verificamos que parte da população local e a sociedade, de
modo geral, apresentam um ranço em afirmar e reconhecer a população
afrodescendente como importante para a diversidade cultural do estado,
embora muitos contem histórias e memórias orais dos nossos antepas-
sados de maioria negra. Essa negação da presença negra ou africana em
solo cearense, está ligada a fortes processos negativos construídos ao
longo dos anos, como também à ideia de superioridade de um grupo
social em detrimento de outro.
Na contemporaneidade, a noção de quilombo ou de comunidade
quilombola é bastante diferente do quilombo histórico, descrito nos do-
cumentos escravocratas da época. Assim diz o professor Henrique
Cunha Júnior:

Hoje, quando chamamos determinadas comunidades de quilombos,


estamos querendo dizer que estas são comunidades que apresentam
características culturais específicas, seja no modo de tratar a terra –
lavoura, forma de roçar, de caçar, de pescar – seja no modo de se rela-
cionar, de viver de forma coletiva, de criar regras sociais internas, seja
nas manifestações culturais e religiosas, e o principal ponto em comum
entre estas comunidades é o fato de possuírem ancestralidade africana,
ou seja, os antepassados das pessoas que formam hoje estas comuni-
dades eram africanos ou descendentes de africanos e se reportam a uma
origem comum (CUNHA, 2005, p. 10).

Portanto, a nossa luta é por autonomia e pelo direito de gerenciar


nosso território de uso comum, que se encontra ameaçado por projetos
econômicos que visam exclusivamente ao lucro, desconsiderando nossa
existência e ancestralidade.
A data da formação do povoado do Cumbe se compara com a
ocupação do Jaguaribe pela margem direita a partir das últimas décadas
do século XVIII. Formam-se ali várias oficinas de carne seca ou carne
do Ceará, como ficou conhecida a indústria do charque (DANTAS,
2009). Nesse período, a vila do Aracati se destaca como principal porto
de comercialização da província do Ceará com outras regiões, ficando
conhecida como o berço das charqueadas.

74
A região do Aracati produzia carne seca e couro e o lugar, uma zona
portuária, era estratégico para comercialização destes produtos com
Recife, Salvador e o Rio de Janeiro. Entre 1740 e 1790, uma média
de trinta embarcações comercializou, anualmente, o couro e a carne
do Ceará no Porto da Vila de Santa Cruz do Aracati (JUCÁ NETO,
2012, p. 331).

Como podemos verificar, a historiografia do estado em momento


algum diz quem eram as pessoas que trabalhavam na produção e pre-
paro da carne seca. Vale destacar que os estudos contemporâneos já
apontam para a necessidade de uma revisão historiográfica, especial-
mente do Ceará, onde algumas pesquisas realizadas no passado deram
importância ou privilegiaram questões e temáticas típicas da branqui-
tude, não dando o devido valor aos demais grupos sociais que compõem
a população brasileira e cearense.
A partir dos anos de 1976, com a chegada da Companhia de Água
e Esgoto do Ceará (Cagece), o território do Cumbe passa a ser invadido
por atividades econômicas incompatíveis com as práticas culturais lo-
cais, iniciando o processo de disputa pelos usos da terra e do território.
Em 1995, a criação de camarão em cativeiro (carcinicultura), atividade
extensiva responsável pela destruição e privatização das áreas de man-
guezais, inicia um impacto negativo na cadeia produtiva da pesca arte-
sanal. Já em 2009 é a vez das usinas eólicas para geração de energia a
partir dos ventos, que, privatizando campos de dunas e faixas de praia,
reduzem o território quilombola do Cumbe e a relação que os comunitá-
rios mantêm com os espaços comuns, o que ameaça nosso bem-viver.
Portanto, a territorialidade que nós quilombolas estabelecemos
com os elementos naturais se encontra ameaçada pelo discurso desen-
volvimentista que transforma tudo em mercadoria, não levando em
consideração o significado da terra e do território para nós povos e co-
munidades tradicionais. Ouçamos o que diz o geógrafo Milton Santos:

Por território entende-se geralmente a extensão apropriada e usada. Mas


o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer àquilo
que nos pertence ... esse sentimento de exclusividade e limite ultrapassa
a raça humana e prescinde da existência de Estado. Assim, essa ideia de
territorialidade se estende aos próprios animais, como sinônimo de área

75
de vivência e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe
também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que,
entre os seres vivos, é privilégio do homem (SANTOS, 2006, p. 19).

Nesse sentido, a territorialidade que mantemos com os espaços


naturais se encontram ameaçadas pelas atividades econômicas im-
postas à nossa comunidade, o que repercute no desmantelamento das
nossas práticas culturais e em violações de direitos, divisão da comu-
nidade, aumento dos conflitos socioambientais, criminalização das li-
deranças e aprofundamento do racismo estrutural, institucional e am-
biental. Além disso, há um impacto negativo nos nossos processos
organizativos e na luta pela regularização fundiária do território qui-
lombola do Cumbe.

Desta forma, a luta da comunidade é reforçada para que suas memórias


e histórias não sejam destruídas pelo modelo de desenvolvimento capi-
talista, e possam encontrar meios de resistências ao atual modelo, que
não precisem destruir o meio ambiente e a história local, onde cada um
possa ser sujeito de sua própria história (NASCIMENTO; BARROS;
LIMA, 2013, p. 979).

Como forma de denunciar os crimes e injustiças ambientais co-


metidos por essas atividades econômicas que invadiram nossa comuni-
dade e território, nós quilombolas, organizados/as pela Associação
Quilombola do Cumbe, viemos construindo diferentes estratégias de
luta e resistências, frente ao projeto de morte que chega com a falácia
de desenvolvimento e geração de renda, destruindo nosso modo de vida
e a relação com os sistemas ambientais presentes no território, definidor
da nossa identidade quilombola pesqueira e do nosso bem-viver.

A valorização da cultura e do meio ambiente local, a conquista da


cidadania, a participação popular em diversos espaços, o desenvolvi-
mento comunitário, o turismo comunitário solidário, o respeito às di-
versas manifestações culturais e a educação ambiental informal, cons-
tituem elementos de valorização das histórias e memórias coletivas.
[...] a importância das histórias e memórias coletivas da comunidade
do Cumbe/Aracati, no enfrentamento dos diversos projetos que se
instalam no seu território comunitário (NASCIMENTO; BARROS;
LIMA, 2013, p. 979).

76
Dessa forma, as ações desenvolvidas por nós, quilombolas do
Cumbe, são importantes para o nosso processo organizativo, o fortale-
cimento da nossa identidade, a defesa do território e para a valorização
dos nossos saberes e modos de fazer. Em cooperação com nossos par-
ceiros e grupos de pesquisas universitárias, estamos construindo nossos
mapas sociais, ou cartografia social, desenvolvendo o turismo comuni-
tário e a museologia social, entendendo e compreendendo o território
como um museu a céu aberto, trabalhando as festas, celebrações e lu-
gares de memórias como importante patrimônio cultural que deve ser
salvaguardado para as presentes e futuras gerações.
Avançar com o processo de regularização fundiária do território
quilombola do Cumbe é uma demanda urgente e necessária, uma das
bandeiras de luta também defendida pelos povos originários do Ceará,
especialmente da Terra Indígena da Barra do Rio Mundaú, em Itapipoca,
litoral oeste do Ceará.

Terra Indígena da Barra do Rio Mundaú – Itapipoca (CE):


bem-viver e luta política

A Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú está localizada


no distrito de Marinheiros, no município de Itapipoca (CE), litoral
oeste, onde estão situadas as aldeias São José, Munguba, Buriti do
Meio e Buriti de Baixo. Atualmente, essas aldeias contam com aproxi-
madamente 160 famílias, que lutam por seus direitos garantidos por
lei, mais especificamente pela demarcação de seu território sagrado.
Do ponto de vista ambiental, o território indígena Tremembé
localiza-se no litoral cearense, com uma extensão territorial de 3.580
hectares e com um importante estoque hídrico, como lagoas, cór-
regos e nascentes, além de dunas móveis e fixas, reprodução de espé-
cies nos manguezais e conservação de plantas nativas. Do ponto de
vista social, o povo Tremembé se organiza na luta em defesa do ter-
ritório, fortalecendo a cultura e a tradição com a participação de
todas as gerações, buscando sempre fazer a transmissão de conheci-
mentos de forma intergeracional, em que os “troncos velhos” são os
nossos livros abertos.

77
O conhecimento tradicional, também denominado etnoconhecimento
ou saber local, diz respeito a conjuntos de conhecimentos construídos
e reconstruídos no seio de dada população tradicional. O conhecimento
tradicional é um ponto presente na discussão acerca da reprodução cul-
tural de grupos étnicos. Esse patrimônio imaterial, expresso nos conhe-
cimentos, distingue os grupos e faz parte de sua identidade cultural. A
relação íntima com o território e os recursos naturais disponíveis criam
as bases para a construção de um conhecimento intimamente ligado
com a identidade desses grupos, que dependem de suas terras para a
sua sobrevivência e sua constituição identitária (PINTO, 2016, p. 17).

O povo indígena Tremembé acredita que fortalecer a relação


entre as gerações com o território, no tocante à gestão dos conheci-
mentos, saberes e sabores, costumes e tradições, representa manter a
memória e a cultura vivas. Assim, acredita-se que o preparo de ali-
mentos na cultura indígena significa manter preservados os costumes e
tradições alimentares do povo, além de fortalecer a relação de pertença
com a Mãe Terra que produz o alimento sagrado e que nos cura.
Portanto, para os Tremembé da Barra do Mundaú, o território, a
territorialidade e o bem-viver são representados pela identidade e a co-
nexão com os saberes ancestrais, costumes e tradições que se transmitem
de geração para geração, de modo intergeracional, em que crianças, jo-
vens, mulheres, agricultores/as, pescadores/as, lideranças e troncos ve-
lhos dialogam e mantêm a resistência e a defesa do território vivas.

Conclusão

A partir do diálogo realizado no 1.º Simpósio Nós na Universidade:


Povos Tradicionais, Educação e Políticas Públicas, realizado pelo grupo
de estudos Caldeirão: Confluências Anticoloniais, do Programa de Pós-
Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará – UFC,
com a realização do minicurso, os participantes puderam entender os sen-
tidos e significados que a terra e o território têm para nós povos e comu-
nidades tradicionais. A territorialidade, estabelecida com os sistemas am-
bientais, é a base para a continuidade das nossas práticas sociais.
Assegurar nossos direitos constitucionais é tarefa de todos e
todas, além de contribuir para o fim do racismo estrutural, institucional

78
e ambiental que recai fortemente contra nós quilombolas e povos origi-
nários quando nos posicionamos contrários às políticas econômicas de-
senvolvimentistas, defendidas e financiadas pelos governos, que não
levam em consideração a relação que estabelecemos com os sistemas
ambientais presentes nos nossos territórios tradicionais, demarcadores
das nossas identidades.
O Quilombo do Cumbe no município do Aracati e a Terra
Indígena da Barra do Rio Mundaú em Itapipoca, ambas comunidades
na zona costeira do Ceará, precisam urgentemente ter seus territórios de
vida e bem-viver regularizados, evitando, dessa forma, sua invasão e
destruição por atividades econômicas que não respeitam nossa forma de
reprodução social, cultural e política. Cabe ao nosso povo buscar estra-
tégias que nos assegure autonomia para gerenciar nosso território, pro-
duzir alimentos saudáveis, criando, dessa forma, territórios livres dos
projetos de morte e de toda forma de injustiça e desigualdade social.

Referências

CUNHA JÚNIOR, H. História e cultura africanas e os elementos para


uma organização curricular. Revista Temas para Educação, João
Pessoa, v. 14, n. 3, 2005.
D’SALETE, M. Cumbe. São Paulo: Veneta, 2014.
DANTAS, S. M. S. Memórias e histórias de quilombos no Ceará.
2009. Tese (Doutorado em Educação Brasileira) – Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2009.
JUCÁ NETO, C. R. Primórdios da urbanização no Ceará. Fortaleza:
Edições UFC: Editora Banco do Nordeste do Brasil, 2012.
NASCIMENTO, J. L. J. do. et al. ENCONTRO CEARENSE DE
HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 12; ENCONTRO NACIONAL DO
NÚCLEO DE HISTÓRIA E MEMÓRIA DA EDUCAÇÃO, I2., 2013.
Anais [...]. FIALHO, L. M. F.; SANTANA, J. R.; VASCONCELOS,
K. C. (org.). Fortaleza: Gráfica LCR, 2013.

79
PINTO, A. L. A. Na nossa terra tem murici e batiputá: o conheci-
mento etnobotânico dos Tremembé sobre as frutas nativas. 2016. 116f.
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e
Tecnologias Sustentáveis) – Curso de, Instituto de Engenharias e
Desenvolvimento Sustentável, Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, 2016.
RATTS, A. Traços étnicos: espacialidade e culturas negras e indígenas
no Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará: Secult, 2009.
SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI.
9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.

80
POVO INDÍGENA ATIKUM,
MEMÓRIA E LUTA POR DIREITOS
Maria das Graças da Silva (Graça Atikum)

O s povos originários durante um longo período histórico


foram sistematicamente excluídos. Hoje essas nações constroem suas
narrativas com base no protagonismo, na pluralidade dos campos e sa-
beres e continuam fazendo história. No Brasil, segundo o IBGE (2010),
a população indígena é de 896,9 mil indivíduos pertencentes a mais de
305 etnias, com aproximadamente 180 línguas faladas. Essas nações
estão distribuídas em todo o território nacional, fazendo-se presentes
nos diversos estados e/ou confederações com saberes e fazeres cole-
tivos e, de maneira diferenciada, detentores de uma enorme diversidade
sociocultural desenvolvida pelos membros que as integram.
O artigo que ora se apresenta busca refletir sobre os processos de
lutas destacados pelos próprios indígenas, os desdobramentos culturais
e as espacialidades. Permite criar novas oportunidades de interpretação
e entender que o conhecimento se faz também por meio das histórias
elaboradas por essas sociedades. Elas se encontram no tempo, oportu-
nizando reflexões sobre o passado e o presente, relacionadas a suas
culturas ou a outros aspectos.
Sabemos que as mais diversas sociedades, cada qual com as suas
especificidades, desempenham papéis que são importantíssimos na vida
de qualquer ser humano, no âmbito cultural, político ou social. É o caso
da nação indígena Atikum, do estado de Pernambuco, povo que sempre
conviveu em meio a um palco de conflitos marcados pelas disputas ter-
ritoriais na região. Cobranças de impostos indevidas, trabalho nas fa-
zendas de gado, mortes de lideranças, inclusive de caciques, adaptações
a outros espaços geográficos fizeram esses indivíduos procurarem ou-
tros lugares que serviram de refúgio para sua sobrevivência. Tantas difi-
culdades deixaram esses sujeitos mais fortalecidos, e, com muita sabe-
doria, resistem às diversas tentativas de silenciamento. Compreender
como são as dinâmicas das relações entre esses indivíduos é um dos
pontos cruciais da história, tendo em vista que são múltiplas as narra-
tivas desempenhadas por esse grupo, o qual, na sua plenitude, constrói e
se reconstrói no tempo e no espaço à medida que seus descendentes vão
também se tornando protagonistas da sua própria história.
Entre as inúmeras nações indígenas existentes no nosso país que
difundem a sua diversidade e protagonismo está o povo Atikum. Essa
etnia indígena está localizada no Sertão Central, Sertão de Itaparica e
Sertão do São Francisco, num contexto geográfico entre serras, a saber:
a Serra Grande, também conhecida como Serra das Crioulas, e a Serra
Umã, no estado de Pernambuco, região Nordeste. Tem seu território de
33.000 hectares de extensão, dos quais 16.290 foram demarcados em
janeiro de 1996. Distancia-se aproximadamente 522 km da capital
Recife, abrangendo os municípios de Salgueiro, Mirandiba, Belém do
São Francisco e Carnaubeira da Penha. Estima-se que sua população
seja de 5.288 índios aldeados, segundo a Funai (Fundação Nacional do
Índio), todavia, segundo as lideranças, essa estimativa chega a 8.000
mil indígenas que estão localizados em 48 aldeias.
O povo Atikum mantem suas formas de convivências ligadas ao
processo de oralidade, lutas por direitos e espacialidades e à perma-
nência nos seus territórios de origem. Por meio desse aspecto, as di-
versas etnias conseguem reelaborar suas dinâmicas baseadas nas histó-
rias e culturas perpassadas de geração em geração.

As culturas indígenas são concretas, como concretos são os que dão a


vida a elas. Os índios conservam suas línguas, suas experiências e sua
relação com a natureza e com a sociedade. Eles mantêm a tradição oral
e os rituais como manifestação artística e maneira de vinculação com a

82
natureza e o sobrenatural. Mantêm o papel socializador e educador da
família, aplicam os sábios conhecimentos milenares e praticam o res-
peito à natureza. Com isso, as culturas indígenas seguem manifestando
sua personalidade coletiva e de alteridade, seja no trabalho ou na festa,
e por isso são democráticas e populares (BANIWÁ, p. 2006, p. 50).

É inegável que a harmonia existente no solo sagrado Atikum


advém das forças encantadas, assim famílias inteiras convivem com-
partilhando suas histórias, praticando suas culturas e transmitindo para
crianças, adolescentes e jovens. Dessa maneira, elas perpetuam esses
saberes. Nota-se que os indivíduos, mesmo vivendo em temporalidades
diferentes, mantinham relações intergeracionais que podem ser compa-
radas e vivenciadas na atualidade. Podemos afirmar que o tempo sempre
foi e é um grande aliado do povo Atikum.

Os saberes do povo Atikum estão atrelados ao tempo que determina


cada ação para ser realizada; tempo de organizar e realizar reuniões e
tratar de assuntos relacionados a toda comunidade, desejos, problemas,
necessidades ligadas à agricultura [...] e à escola para o fortalecimento
e desenvolvimento do nosso povo (CENTRO DE CULTURA LUIZ
FREIRE, 2006, p. 25).20

Entendemos, então, que todos os desdobramentos se regem


pelo tempo e podemos comprovar através das práticas tradicionais, cos-
tumes, hábitos e crenças herdadas dos seus ancestrais, que atravessam
gerações e consolidam o seu ato de pertença étnica. Esses saberes
contam com a participação direta, principalmente, dos mais velhos,
também chamados de anciãos. São eles e elas os guardiões e guardiãs
de todo conhecimento oriundo das gerações passadas e as transmitem
às gerações presentes por meio da oralidade, protagonizando uma his-
tória única desse povo. Segundo Silva (2000), “por meio da memória

20 O Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF) está localizado em Olinda, no estado de


Pernambuco. A entidade é uma organização não governamental de direitos humanos,
que surge em 1972, a partir de um grupo que buscava a restauração da democracia,
através de atividades culturais e projetos de desenvolvimento comunitário. Durante o
período da ditadura militar brasileira, o órgão realiza atividades como assessorias jurí-
dicas em organizações de movimentos populares.

83
oral, vários povos conseguiram resistir às pressões em ‘sítios’ mais
afastados e de difícil acesso”. Alessandro Portelli (1998) confirma que

[...] as fontes orais revelam as intenções dos feitos, suas crenças, men-
talidades, imaginário e pensamentos referentes às experiências vividas.
Ela se impõe como primordial para compreensão e estudos do tempo
presente, pois só através dela podemos conhecer os sonhos, anseios,
crenças e lembranças do passado de pessoas anônimas, simples, sem
nenhum status político ou econômico, mas que viveram os aconteci-
mentos de sua época (PORTELLI, 1998, p. 57).

Diante do exposto, as colocações dos pensadores corroboram a


realidade do povo Atikum. Para Delgado (2006, p.135), “a memória é
uma construção sobre o passado, atualizada e renovada no tempo pre-
sente”. Sendo assim, ela consiste na conservação histórica de tradições
culturais e outras vivências que são significativas para a identidade de
um povo, são, portanto, legados que atravessam gerações e fortalecem
suas histórias até os dias atuais.

Protagonismo juvenil Atikum e espacialidades:


ocupar para resistir

Está cada vez mais frequente a presença das novas gerações nos
debates dentro das organizações internas das suas comunidades. No co-
tidiano, os jovens Atikum se destacam pelo seu protagonismo e atuação.
De maneira ampla, eles vêm pautando demandas e alcançando con-
quistas, sem abandonar a sabedoria dos seus ancestrais. Com o advento
da Constituição Federal de 1988, os indígenas vêm cada vez mais ocu-
pando os espaços dentro e fora dos seus territórios. Segundo Oliveira
(1999), “ao invés de desaparecerem, eles se fortalecem politicamente,
exercendo considerável influência na sociedade”.
Essa juventude tem habilidades relevantes por manter, ao longo
desses anos, a força dos seus integrantes presente em diversas situações
e ações afirmativas dentro e fora do território. Hoje esses jovens, além
de difundirem a história do seu povo mundo afora, fazem parte de al-
gumas organizações na esfera estadual e nacional, como a Cojipe
(Comissão de Juventude Indígena de Pernambuco). A organização

84
reúne jovens de todas as etnias indígenas de Pernambuco que lutam
constantemente por políticas afirmativas e pela efetivação dos seus di-
reitos já garantidos por lei. O artigo 231 da Constituição Federal ga-
rante o respeito à “organização social, aos usos, costumes e tradições”
dos povos indígenas.

Os jovens indígenas têm assumido cada vez mais o papel de protago-


nistas no processo de construção das políticas indigenistas pensadas a
partir das organizações indígenas dos seus povos. Cabe lembrar que a
execução de projetos que foram desenvolvidos por organizações indí-
genas, com apoio da cooperação internacional e governamental, pos-
sibilitou a ampliação da luta pelos direitos indígenas. Hoje, podemos
afirmar que a juventude indígena está qualificada e ciente de que pode
edificar políticas públicas de juventude que estejam de acordo com
um estado de direito, que garanta a luta social referenciada em uma
cultura política que abrange vários povos e várias culturas indígenas
(OLIVEIRA; RANGEL, 2017, p. 149-150).

Ancorados sempre na força dos encantos e nos ensinamentos re-


passados pelos mais velhos, é notável que, mesmo passando por um
longo período de negação por parte da sociedade envolvente, esses jo-
vens assumem um papel de autoafirmação da identidade étnica por
meio da sua cultura. São politicamente ativos como detentores de con-
teúdo político-ideológico que revela os laços de identidade do povo ao
qual pertencem, motivando-os nas tomadas de decisões coletivas, e ele-
vando a visibilidade da nação Atikum a outro patamar.

É crucial entender o processo de mobilização político organizacional de


determinados segmentos de jovens indígenas como movimentação que
busca, na sua intenção e na sua ação, abarcar as demandas e as realidades
da totalidade dessas expressões, como porta-vozes, nos espaços públicos,
da “juventude indígena” no sentido de representação política da coleti-
vidade geracional para legitimação dos discursos e das ações em prol da
reivindicação de direitos (OLIVEIRA; RANGEL, 2017, p. 59).

O oxigênio para a ocupação dos espaços nas organizações in-


ternas por esses guerreiros foi justamente o incentivo dos anciãos, que
sempre comunicavam estar cansados e conclamavam a necessidade de
aproximação da luta pelas novas gerações, para que estas pudessem

85
receber os ensinamentos necessários e, assim, darem continuidade à
história. Nossos mais velhos detêm importantes saberes e nós temos
que ouvi-los para poder pôr em prática. A história repassada por eles
mantém viva a cultura vivenciada na comunidade.

[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da me-
mória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a
realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a me-
mória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória
do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibili-
tando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992, p. 17).

Os saberes, experiências e vivências repassadas pelos mais ve-


lhos são importantes nesse contexto, porque foi por meio deles que
esses guerreiros e guerreiras se encorajaram e ocuparam vários espaços
na comunidade, inspirados nas histórias passadas: na educação (conse-
lhos escolares), na saúde (conselheiros e conselheiras de saúde indí-
gena), nas associações indígenas (presidentas, conselheiras locais), na
organização política do povo. Atuando como lideranças jovens, eles
dão continuidade à luta mantendo as inter-relações dentro do solo sa-
grado Atikum.

Juventude indígena Atikum e o encontro


com a universidade

Vários autores e autoras traçam narrativas sobre a inserção de


jovens indígenas nos centros universitários localizados pelo país. Ao
adentrarem este universo, as rodas de diálogos giram em torno das iden-
tidades coletivas, lutas por direitos, espaços, reconhecimento e respeito.
Mesmo com tantos momentos de debate, há muito que se discutir de
maneira mais aprofundada, frente a outras dimensões, na qualidade de
povos historicamente invisíveis aos olhos da nação. Ao ocupar um es-
paço que lhe é de direito em uma universidade, o indígena passa a ser o
protagonista da história do seu povo. A partir daí, ele irá escrever os
próximos capítulos do livro baseado nos ensinamentos que foram e são
vivenciados nos seus territórios. As narrativas, crenças, mitos, lendas,

86
hábitos, tradições, costumes e simbologias que antes eram vivenciados
somente nos locais sagrados, nas comunidades, nas matas, nos terreiros
de toré, também adentram esses espaços e passam a fazer parte dele, o
que vai desencadear novas interpretações, ganhando mais visibilidade.
Segundo Graça Graúna,
Reconhecer a propriedade intelectual indígena, implica respeitar as
várias faces de sua manifestação. Isso quer dizer que a noção de cole-
tivo não está dissociada do livro individual de autoria indígena; nunca
esteve, muito menos agora com a força do pensamento indígena con-
figurando diferenciadas (os) estantes e instantes da palavra. Ao tomar
o rumo da escrita no formato de livro, os mitos de origem não perdem
a função nem o sentido, pois continuam sendo transmitidos de geração
em geração, em variados caminhos: no porantim, no traçado das esteiras
e dos cestos, na feitura do barro, na pintura corporal, nas contas de um
colar, na poesia, na contação de histórias e outros fazeres identitários
que os Filhos e as Filhas da Terra utilizam como legítimas expressões
artísticas, ligando-as também ao sagrado (GRAÚNA, 2013, p. 172).

Nesse sentido, dialogando com a opinião de Graça Graúna, os


saberes ligados ao sagrado juntam-se aos outros formando o encontro
das culturas, que muitas vezes só é possível conhecer quando buscamos
esses ambientes. Os jovens Atikum se misturam aos inúmeros univer-
sitários, permeando graduações e pós-graduações nas áreas de: edu-
cação, saúde, engenharia, direito, meio ambiente, entre outros. Os
avanços são notáveis, contudo surgem vários desafios, como “a de-
manda por política de permanência, as experiências de racismo no coti-
diano institucional e a implementação das Leis 10.639/03 e 12.645/08”
(CRUZ, 2017; BULHÕES, 2018). A chegada nesses espaços muitas
vezes é regada de estranhamentos e preconceitos, “fruto das práticas
coloniais” (BULHÕES, 2013). Em consonância com este comentário,
podemos afirmar que esses espaços educacionais, mesmo operando
com mecanismos refinados, deixam muito a desejar, quando permitem
que atitudes repugnáveis que vêm desde o período colonial, como o
preconceito e o racismo, estejam presentes nos seus entornos. Todavia,
ressaltamos a coragem dos povos originários e tradicionais que ocupam
as universidades com uma imensa bagagem, levando consigo seus an-
seios, narrativas, culturas diferenciadas e subjetividades.

87
[...] nós, povos contra colonizadores, temos demonstrado em muitos
momentos da história a nossa capacidade de compreender e até de con-
viver com a complexidade das questões que esses processos têm nos
apresentado. Por exemplo: as sucessivas ressignificações das nossas
identidades em meio aos mais perversos contextos de racismo, dis-
criminação e estigmas; a readaptação dos nossos modos de vida em
territórios retalhados, descaracterizados e degradados; a interlocução
das nossas linguagens orais com a linguagem escrita dos colonizadores
(SANTOS, 2015, p. 97).

Nessa perspectiva, o olhar indígena de dentro da universidade


se torna imprescindível, pois, como detalhou Santos (2015), esses
povos ressignificam suas narrativas com vista às confluências e ao seu
protagonismo. Pensar a ocupação desses espaços, é mostrar para a
sociedade envolvente que somos copesquisadores de uma história por
muito tempo mantida no anonimato pela elite dominante e que hoje,
graças aos esforços das lideranças e com a força dos “encantados de
luz”, nos apresentamos como sujeitos donos das nossas realizações.

Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BULHÕES, L. Ensino das histórias e culturas africanas, afro-
brasileiras e indígenas entrecruzadas: paradigma da contribuição,
pedagogia do evento e emancipações na educação básica. Revista da
ABPN, v. 10, p. 22-38, maio 2018. (Caderno Temático: História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira – Lei n.º 10.639/03 na escola).
BULHÕES, L. Imagens de Angola, imagens da memória: cinemas,
marcas e descobertas (tempos das lutas coloniais, tempos das lutas
anticoloniais). 2013. 333 f. Tese (Doutorado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade de Brasília, Brasília, 2013.
CENTRO DE CULTURA LUIZ FREIRE. Caderno do Tempo:
Professores e Professoras Indígenas em Pernambuco, Belo Horizonte,
fev. 2006.

88
CRUZ, F. Indígenas antropólogos e o espetáculo da alteridade.
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 11, n. 2,
p. 93-108, 2017.
DELGADO, L. de A. N. História oral: memória, tempo, identidades.
Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
FERNANDES, F. R. Protagonismo indígena no tempo presente:
aspectos da educação escolar específica e diferenciada. Revista
Amazônida: Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Amazonas, v. 3, n. 1, p. 65-79, 2018.
GRAÚNA, G. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no
Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Censo brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2010.
JESUS, L. S. B. de; BARROS, M. de; FILICE, R. C. G. (org.).
Tecendo redes antirracistas II: contracolonização e soberania
intelectual. For­taleza: Imprensa Universitária, 2020.
LUCIANO, G. dos S. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre
os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação:
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade:
LACED: Museu Nacional, 2006. (Coleção Educação Para Todos).
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares.
Projeto História. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de
História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
OLIVEIRA, A. da C.; RANGEL, L. H. Juventudes indígenas: estudos
interdisciplinares, saberes interculturais: conexões entre Brasil e
México. Rio de Janeiro: E - papers, 2017.
OLIVEIRA, J. P. de. Uma etnologia dos “índios misturados”: situação
colonial, territorialização e fluxos culturais. In: OLIVEIRA, J. P. de
(org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural
no Nordeste indígena. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1999.

89
PORTELLI, A. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e
significado nas memórias e nas fontes orais. Revista Tempo, v. 1, n.2,
p. 59-72, 1996.
PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de
junho de 1944): mito, política, luta e senso comum. In: FERREIRA,
M. M.; AMADO, J. (org.). Usos e abusos da história oral. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
ROCHA, A. S. da.; SILVA, E. Xucuru-Kariri. Revista Espacialidades,
v. 15, n. 2, p. 114-132, 16 abr. 2020.
SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos: modos e significados.
Brasília: INCTI, 2015.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO. Departamento Nacional.
Culturas indígenas, diversidade e educação. Rio de Janeiro: Sesc:
Departamento Nacional, 2019. (Educação em Rede, v. 7).
SILVA, E. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do
Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988. 2008. Tese (Doutorado em
História Social) – Universidade de Campinas, Campinas, 2008.
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1992.

90
EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO CEARÁ
Lutas, avanços e desafios

Jonathan Silva de Brito

O presente texto tem como principal objetivo discutir sobre


a educação indígena brasileira com um enfoque nas experiências cea-
renses, por meio de sua trajetória, tomando como base relatos e leis que
vêm trazendo diversos avanços no decorrer do tempo.
Podemos definir o Brasil como um país de ampla diversidade,
étnica, cultural e social. Essa enorme diversidade, porém, nem sempre
foi reconhecida pelas entidades governamentais do nosso país. Obser­
vando do ponto de vista educacional, as políticas públicas nunca tinham
chegado até nós indígenas, até pouco tempo atrás. Pelo menos, não a
partir da nossa participação ativa sobre o que entendemos por educação
e sobre o que queremos.
Até os anos 80, nós indígenas não éramos considerados rele-
vantes dentro da sociedade e éramos objetos do Estado. É depois da
Constituinte que, do ponto de vista político, a partir de novos marcos
normativos, o movimento indígena avança numa série de lutas, entre
elas, a luta por uma educação específica. Veremos como se desdobram
tais ações no contexto do estado do Ceará.
Histórico da educação indígena: educação cearense

Para discutir sobre a educação indígena cearense, penso que é pre-


ciso historicizar a educação indígena brasileira como um todo. Daí, po-
demos citar dois eventos que nos atrasaram bastante, que foram a inter-
venção colonial e a catequese jesuíta iniciada quando os portugueses
chegaram em nossas terras em 1500. Esses dois eventos estão ligados
de maneira direta nas diversas modificações dentro dos meios sociais e
culturais dos povos indígenas brasileiros. O principal objetivo dessas
intervenções seria a dominação dos povos nativos para serviços pes-
soais das famílias invasoras. Podemos identificar o primeiro processo
de escolarização indígena na colonização forçada dos nossos territórios,
ocasião em que os jesuítas pretenderam impor sua linguagem e sua
aprendizagem entre todos os povos e, assim em diante, foram procu-
rando dar fim de modo geral à cultura dos povos. É interessante res-
saltar que, dentro desse processo, muitas vidas foram perdidas por resis-
tência, assim como uma grande maioria dos povos foi escravizada no
decorrer do tempo para benefício da corte portuguesa.
Dando um salto no tempo e focando no estado do Ceará, aqui
o processo da educação indígena se iniciou em 1990, com a luta de
diversas etnias por esse direito. Atualmente, existem diversas polí-
ticas públicas que abordam a educação indígena, conquistadas no de-
correr de anos de luta e resistência. O estado conta com 38 escolas
indígenas na rede estadual, distribuídas em 15 cidades com diferentes
etnias, e outras municipais distribuídas por todo o estado, que abordam
o Ensino Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio com um en-
sino diferenciado.
De acordo com a Secretaria de Educação do Ceará,

A Educação Escolar Indígena é assegurada na Constituição Federal


Brasileira de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(Lei 9.394/96) que assegura às comunidades indígenas o direito à edu-
cação diferenciada, específica e bilíngue. Outro documento importante é
a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre
Povos Indígenas e Tribais, promulgada no Brasil por meio do Decreto nº
5.051/2004, bem como a Declaração Universal dos Direitos Humanos

92
de 1948 da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração das
Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas de 2007.

Ao refletirmos um pouco sobre o movimento indígena dentro do


estado, nos deparamos com diversos caminhos que os povos nativos
percorreram a fim de garantir direitos através de mobilizações/manifes-
tações frequentes. Esse processo reforça a necessidade de uma educação
diferenciada que aborde as especificidades dos povos. A seguir, po-
demos visualizar informações recentes, extraídas do site da Secretaria
de Educação do Ceará, com o número de escolas com o ensino diferen-
ciado, divididas por municípios e etnias presentes em cada região.

Tabela 1 – Escolas indígenas

NÚMERO DE
MUNICÍPIOS ETNIAS
ESCOLAS

Anacé, Tapeba,
Aquiraz, Maracanaú, Pacatuba e Caucaia 14
Pitaguary, Jenipapo Kanindé

Itapipoca Tremembé 1
Acaraú Tremembé 2
Itarema Tremembé 7
São Benedito Tapuia Kariri 1
Aratuba Kanindé 1
Canindé Kanindé 1

Potiguara, Tabajara, Kalabaça,


Crateús, Monsenhor Tabosa, Novo
Tupiba Tapuia,Gavião, Tupinambá, 10
Oriente, Poranga, Tamboril, São Benedito
Kariri

Quiterianópolis Tabajara 1

Fonte: Site da Secretaria de Educação do Ceará.

A legislação e o ensino indígena

No Brasil, podemos destacar que, até pouco antes do final do


século XX, os programas destinados à educação indígena foram le-
vados aos nossos povos com um objetivo ainda de catequizar e integrar

93
de maneira forçada os índios dentro de uma sociedade construída com
o suor e sangue dos povos. As legislações que vieram anteriormente,
vigentes naquele tempo, colocavam como obrigatória a união dos ín-
dios à sociedade, porém não abordava pontos primordiais para acon-
tecer de maneira honesta com os povos nativos. Dentro do processo de
renovação de uma legislação para a outra, a educação indígena passou
por mudanças importantes, porém sempre marcadas com o intuito de
imposição dos valores dos colonizadores e de negação das culturas na-
tivas, fenômeno que perdurou por muito tempo.
Após muita luta e resistência, os governantes brasileiros come-
çaram a reconhecer a rica diversidade dos grupos étnicos, assim como a
sua autonomia. Daí em diante a legislação abrangia toda essa diversi-
dade, possibilitando acesso e manuseio das suas peculiaridades cultu-
rais, como história e língua, influenciando nas políticas governamentais
em relação à educação diferenciada. Importante reforçar que tudo
ocorreu entre órgãos governamentais e não governamentais, que origi-
naram diversas entidades de apoio às comunidades indígenas. Até hoje,
essas entidades são responsáveis por articulações estratégicas para con-
seguir mais direitos e exigir mudanças dentro do processo de cultura,
língua e educação.
Para relatar a educação e o seu processo dentro da sociedade,
devemos relembrar que o índio só pode ser de fato índio com sua cultura
e suas peculiaridades a partir da elaboração da Constituição de 1988.
Após isso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi um dos
pilares da sociedade que passou por mudanças para atender melhor os
indígenas. Essa lei abordou o direito dos povos indígenas a uma edu-
cação diferenciada, pautada pelo uso das línguas indígenas, pela valori-
zação dos conhecimentos e saberes milenares e pela formação dos pró-
prios índios para atuarem como docentes em suas comunidades.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada no
ano de 1996, funciona da seguinte forma: ela estabelece as normas
para o sistema educacional do país, trazendo assim para nós, educa-
dores e educandos, direitos e deveres que vão da educação infantil à
educação superior. Apesar de essas leis estarem abaixo da Constituição
Brasileira, elas atuam de maneira importante para a organização edu-

94
cacional. A nova LDB traz de maneira explícita a educação escolar para
os povos indígenas, aborda pontos importantes que possibilitam uma
reflexão. O seu artigo 26, por exemplo, estabelece que os currículos do
Ensino Fundamental e Médio devem ter uma base nacional comum, a
ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento es-
colar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regio-
nais e locais da sociedade, da cultura, da economiae da clientela. Dentro
desses aspectos, é necessário observar como foi dada liberdade para
manusear o ensino de acordo com os propósitos da escola indígena,
respeitando sempre a base nacional comum do ensino proposto na
LDB. Ao mesmo tempo, os artigos 78 e 79 relatam que o Estado deve
oferecer uma educação indígena diferenciada intercultural e bilíngue,
ou seja, que envolva a cultura dos colonizadores com a dos povos ori-
ginários do país, facilitando a esses povos que fortaleçam e recuperem
suas memórias dos antepassados, reafirmando histórias e proporcio-
nando uma cultura justa e livre. Artigos como esses ainda intencionam
proporcionar e garantir acesso às comunidades e povos, acesso às in-
formações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional
e demais sociedades indígenas e não indígenas, além de proporcionar
aos índios, suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias
históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de
suas línguas e ciências.
Para que tais expectativas possam ser realizadas, a LDB deve
promover a articulação dos sistemas de ensino com sistemas de pesquisa
para que possam envolver comunidades e povos de diversas etnias
dentro da educação. Isso é necessário, pois tudo envolve um currículo
que necessita ser conduzido, construído e discutido de maneira particu-
larizada para levar o conhecimento ao aluno. É necessário abordar
dentro desse currículo educacional os meios culturais que envolvam
cada comunidade considerando onde é localizada. Esses artigos
apresentados anteriormente nos levam a ver como a LDB orienta a edu-
cação diferenciada, e como o ensino é diferente das demais escolas e
dos demais sistemas de ensino. Dessa forma, o artigo 79 da Lei
n.º 9.394/96, estabelece que os demais sistemas de ensino devam com-
partilhar as responsabilidades com a União e determina o apoio técnico

95
e financeiro para o provimento da Educação Escolar Indígena, afir-
mando que os programas serão planejados com a participação das co-
munidades indígenas.
Dentro dos aspectos educacionais dessa educação diferenciada
encontramos o Plano Nacional de Educação, que também auxilia
dentro da legislação para organizar e comandar o ensino nas escolas
indígenas. O PNE deve seguir os direitos estabelecidos na LDB e na
Constituição Federal. Nós da educação indígena temos um documento
denominado de Plano Nacional de Educação Escolar Indígena, o qual
leva o mesmo conceito do PNE. O PNEEI, portanto, é um método de
fazer o planejamento de modo intergovernamental das escolas indí-
genas, no qual temos o objetivo de incluir propostas com o intuito de
fortalecer o regime de colaboração entre os entes federados, a partici-
pação social, a transparência das ações e a gestão por resultados,
constituindo-se em instrumento de monitoramento, avaliação e con-
trole social da educação indígena. O Plano Nacional de Educação
prevê ainda a criação de programas específicos para atender às escolas
indígenas, bem como a criação de linhas de financiamento para a
implementação dos programas de educação em áreas indígenas.
Estabelece-se que a União, em colaboração com os estados, deve
equipar as escolas indígenas com recursos didático-pedagógicos bá-
sicos, incluindo bibliotecas, videotecas e outros materiais de apoio,
bem como adaptar os programas já existentes hoje no Ministério da
Educação em termos de auxílio ao desenvolvimento da educação es-
colar indígena em nosso país.

As dificuldades e os desafios da educação indígena

Dentro dos termos das leis brasileiras, a Constituição de 1988 re-


gistra que o Ensino Fundamental regular deve ser ministrado em língua
portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização
de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Essa
afirmação colocada anteriormente é trazida mais ainda à tona pela LDB
e, apesar de termos essa conquista desde 1988, vale ressaltar que ainda
existem diversas dificuldades, que serão descritas a seguir.

96
Iniciamos pela questão do atraso histórico dentro da educação
diferenciada, afinal hoje temos problemas relativos, por exemplo, à in-
fraestrutura das escolas; aos materiais didáticos – há uma enorme diver-
sidade de conteúdos nos livros disponibilizados, mas, na maioria das
vezes, o que é considerado relevante em relação à interculturalidade é
bastante escasso, isso, quando o material necessário para trabalhar
é recebido pela escola. É essencial, assim, no tocante aos conteúdos e
materiais didáticos, um equilíbrio no currículo escolar obrigatório que
possa de uma maneira melhor atender aos alunos e aos educadores.
Cabe destacar que a articulação com outros órgãos responsáveis
pelas políticas indigenistas, como os gestores dos programas de atenção
à saúde indígena, proteção do meio ambiente, desenvolvimento susten-
tável etc., serve para melhor implementar as ações de educação escolar
indígena, em particular o ensino técnico, a ser desenvolvido em har-
monia com os projetos de futuro de cada povo. Essa também é uma
grande dificuldade em nosso meio. A escassez de projetos inclusivos e
ativos nos deixam de mãos atadas diante do processo de ensino-aprendi-
zagem. Esse ponto nos traz muita preocupação, pois nós, como atuantes
dentro do movimento indígena, dependemos de articulações como essas
para a produção de materiais didáticos que reflitam as realidades so-
ciolinguísticas, a oralidade e os conhecimentos dos povos indígenas.
Então, podemos deduzir que, quanto mais entidades, programas e arti-
culações de movimentações pelo meio, maiores são as chances de rea-
lizar os projetos.
O último ponto, e não menos importante, é em relação à for-
mação de professores indígenas dentro do sistema de ensino brasileiro.
A formação de professores indígenas, visando ao fortalecimento das
identidades, línguas e culturas indígenas, tem sido a política central do
atual trabalho do MEC. É uma ação que pode espelhar e conter as inú-
meras sutilezas da extraordinária sociodiversidade indígena no Brasil.
A legislação brasileira tem observações preciosas a respeito de como
deve ser desenvolvida a formação de professores das respectivas etnias
indígenas. Porém, muitas vezes, existem exceções exorbitantes dentro
da formação do profissional indígena da educação, pois ainda é pos-
sível encontrar projetos de formação adaptados de contextos não indí-

97
genas, com uma vasta proposta curricular totalmente fragmentada e
contextualizada sob o ponto de vista dos órgãos públicos, e, em outros
casos, têm-se projetos compostos por docentes sem a mínima prepa-
ração e experiência com as questões indígenas.
Essas não são as únicas dificuldades, porém elas assolam o en-
sino diferenciado indígena, muitas vezes nos deixando impossibilitados
de fazer algo. A partir desse momento, as políticas públicas do Estado
devem realizar planejamentos a fim de que nós professores entremos
em ação para levar o conhecimento até nossos alunos. Posteriormente,
por meio de imagens, veremos um dos principais problemas citados
dentro desse tópico, no comparativo de como eram as escolas e como
ficaram depois de muita luta pelas políticas públicas necessárias para
melhorar o ensino diferenciado.

Escola Indígena Francisco Gonçalves de Sousa


e Escola Indígena Joaquim Ugena

Tive a oportunidade de acompanhar presencialmente uma parte


da história de algumas das escolas que serão citadas e, a respeito de
outras, tomei conhecimento por pessoas mais velhas, que me contaram
um pouco mais da história de maneira detalhada. As lideranças indí-
genas têm clareza da importância estratégica da educação escolar para
seus povos, em particular para sua juventude, como possibilidade de
um futuro mais promissor. Por tudo isso, as demandas indígenas por uma
educação escolar adequada e desenvolvida em harmonia com seus pro-
jetos societários de futuro crescem em quantidade e complexidade, tra-
zendo novos desafios aos sistemas de ensino. Partindo dessa introdução,
podemos observar a relação do ensino diferenciado com o ensino de
vida disposto de nossos membros mais velhos da aldeia, que trazem
marcas históricas a serem repassadas para nós.
Dentro de instituições como essa, o cuidado em relação ao trata-
mento de culturas diferentes e formas de transmissão dos conheci-
mentos é essencial na educação indígena, sempre levando em conta que
são distintos os preceitos epistemológicos que dão suporte à tradição
oral – um processo dinâmico de circulação de saberes contextualizados

98
– e os que dão suporte à tradição escrita – de apropriação individual e
competitiva –, os quais, na escola, quase sempre se apresentam como
saberes compartimentados.
A Escola Indígena Joaquim Ugena fica localizada na zona rural
de Monsenhor Tabosa (CE). Ela é pertencente ao povo Potiguara, que
ali está localizado, e foi criada pela necessidade dos alunos, principal-
mente dos mais velhos, de aprender a ler e escrever. Sua primeira turma
foi de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que foi concedida pela
professora Maria Silva Sampaio (Marlúcia Potiguara). Hoje a escola
tem um prédio próprio e um quadro de professores formados, os quais
se empenham ao máximo, dentro do possível, para dar continuidade
ao processo de ensino-aprendizagem do aluno. Anexadas ao trabalho,
teremos fotos demonstrativas da escola e de alguns profissionais res-
ponsáveis pela instituição.
A Escola Indígena Francisco Gonçalves de Sousa foi criada pela
comunidade indígena Tapuya Kariri no ano de 2007 e pelo Governo do
Estado do Ceará, em 2010. Através do Diário Oficial do Estado, pelo
Decreto n.º 30.257, com código Inep n.º 23545461, ficou estabelecida
como Instituição de Ensino Específico, Intercultural e Comunitário, lo-
calizada na Aldeia Indígena Gameleira do Povo Tapuya Kariri – São
Benedito (CE). Sua finalidade, assim como de outras instituições, é ofe-
recer a educação básica aos níveis, proporcionar a interculturalidade
dentro das escolas de ensino diferenciado e assim ofertar o ensino ne-
cessário. Anexadas, teremos fotos demonstrativas de como ela era no
início e de como ela está atualmente.
É necessário sempre estar informado de tudo que ocorre no que
compete à educação indígena e no tocante à legislação. É crucial
também sermos resistência e lutarmos por mais direitos como povos
originários deste país. Por meio disso, tal como dito anteriormente, é
primordial sempre uma junção da educação própria com a educação
que nossos ancestrais trazem de muito tempo. A preservação da Escola
Francisco Gonçalves de Sousa é um exemplo básico, assim como a
Escola Joaquim Ugena. São exemplos claros da valorização do espaço,
da língua, da interculturalidade vivida naquele espaço que traz experiên-
cias únicas dentro de cada comunidade.

99
Considerações finais

Este texto consistiu em uma pesquisa bibliográfica no tocante à


educação indígena desde os primeiros tempos até os dias atuais, com
foco na legislação que mantém os nossos direitos e deveres como povos
nativos deste país.
Passados mais de dez anos da promulgação da atual Constituição
brasileira, é possível afirmar que o direito dos povos indígenas no Brasil
a uma educação diferenciada e de qualidade, ali inscrito pela primeira
vez, encontrou amplo respaldo e detalhamento na legislação subse-
quente. Desde a Constituição de 1988, as leis que carregam nossa edu-
cação diferenciada, como a LDB e o PNE, têm abordado o direito dos
povos indígenas a uma educação diferenciada, pautada pelo uso das
línguas indígenas, pela valorização dos conhecimentos e saberes mile-
nares desses povos e pela formação dos próprios índios para atuarem
como docentes em suas comunidades.
Por fim, à medida que os professores indígenas e suas comuni-
dades conheçam os direitos que a legislação lhes assegura, estaremos
caminhando para que eles se tornem realidade. É com esse intuito que
este texto foi criado, disponibilizando assim um leque de informações
referentes à legislação vigente em nosso país.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro


de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.1996.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/lei9394_
ldbn1.pdf. Acesso em: 12 dez. 2022.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: SEF;
MEC, 1998.

100
Anexos
ESCOLA INDÍGENA JOAQUIM UGENA

101
ESCOLA INDÍGENA FRANCISCO GONÇALVES DE SOUSA

102
INDÍGENAS NA ANTROPOLOGIA
E OS DESAFIOS DA PESQUISA
DENTRO E FORA DAS UNIVERSIDADES21

Felipe Sotto Maior Cruz (Felipe Tuxá)

A entrada de estudantes indígenas em pós-graduações de


Antropologia é um processo recente no Brasil, tendo sido em 2011 a
primeira tese defendida por um indígena nesse campo disciplinar, por
Gersem Luciano, da etnia Baniwa (2013).22 Esse processo foi acele-
rado na medida em que as políticas de ações afirmativas foram sendo
consolidadas e asseguraram a entrada de pesquisadores indígenas em
diferentes universidades no país, tanto na graduação como na pós-
-graduação.23 Um passo importante para o avanço dessa discussão

21 Este artigo foi publicado em espanhol, no periódico Anales de Antropología, no México,


em 2018. Ver: J Cruz, F. S. M. 2018. Entre la academía y la aldea: algunas reflexiones
sobre la formación de indígenas antropólogos en Brasil (julho-dezembro). Anales de
Antropologia, v. 52, n. 2, p. 25-33
22 Gersem Luciano é indígena Baniwa do Alto Rio Negro e fez sua pós-graduação em
Antropologia Social na Universidade de Brasília. Sua tese pode ser encontrada em:
http://www.dan.unb.br/images/doc/Tese_103.pdf (acesso: 18/10/2016).
23 Cabe mencionar o pioneirismo dos programas de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ e da Universidade de Brasília que, respectivamente,
desde 2013 e 2014, ofertam editais diferenciados para a entrada de indígenas em sua
composição discente.
foi a criação da Lei n.º 12.711, de 29 de agosto de 2012, também
conhecida por Lei de Cotas,24 que regulamenta a reserva de vagas
para indígenas e negros no Ensino Superior em instituições federais.
Na conquista dessa política, cabe ressaltar o papel importante desem-
penhado pelo movimento indígena e pelo movimento negro, que há
muito tempo vêm pres­sionando as instâncias governamentais por
medidas nas universidades públicas que reconheçam suas demandas
étnicas e raciais, respectivamente.
Lima (2008, p. 97) situa historicamente dois movimentos poste-
riores à Constituição Federal de 1988 que levaram à crescente busca
por parte desses povos pelo Ensino Superior. O primeiro resulta da de-
manda por uma formação de professores indígenas para que atuem em
escolas das comunidades, enquanto que o segundo movimento estaria
associado à formação de indígenas para atuarem como gestores de seus
territórios, advogados, agrônomos etc. Além disso, parte da importância
de acessar o Ensino Superior estaria associada à constatação de que
“era necesario que se formasen indígenas en las universidades, que adi-
quiriesen los conocimientos de los ‘blancos’ para lidiar con los blancos”
(LIMA, 2008, p. 97).
Tendo em vista essa conjuntura, ao acessar um curso de Ciências
Sociais em 2011, fazendo uso de uma dessas políticas, me deparei com
um cenário bastante curioso no qual indígenas entram nas universi-
dades com o intuito de deixarem de ser “laboratório” em pesquisas con-
duzidas por não indígenas. Percebo que vários estudantes indígenas
procuram não somente dominar os conhecimentos dos brancos como
também ocupar lugares estratégicos dentro da academia, como meio de
romper práticas tutelares25 enraizadas que contradizem o protagonismo
tão desejado. Desse modo, neste artigo, reflito sobre o encontro que
acontece entre indígenas e não indígenas no campo da Antropologia,

24 Na página do governo nacional brasileiro, é possível conhecer melhor a Lei de Cotas.


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm (acesso em:
17 out. 2016).
25 Por práticas tutelares me refiro a um conjunto de mecanismos estatais que utilizavam
da retórica de que os povos indígenas eram “relativamente incapazes”, e, a partir disso,
estes eram juridicamente inaptos a responderem por si próprios.

104
área em que atualmente conduzo meus estudos de mestrado. Considero
importante sistematizar minhas primeiras impressões sobre essa temá-
tica por dois motivos: o primeiro diz respeito à percepção de que, em-
bora os etnólogos estejam acostumados a pesquisar e falar sobre indí-
genas no Brasil, ter um indígena em sala de aula é uma situação nova,
que pode muitas vezes originar desencontros e mal-entendidos entre
ambas as partes. Considerando que existe uma grande produção sobre
povos indígenas que foi escrita sem necessariamente levar em conside-
ração que esse material viesse a ser lido por membros das realidades
descritas, a presença de indígenas antropólogos em sala de aula propor-
ciona novas questões e lança diferentes possibilidades de diálogos sobre
os quais precisamos refletir.
O segundo motivo que me move na escrita deste artigo é a cons-
ciência do quão difícil foi encontrar material disponível em português
que me ajudasse a compreender a particularidade que envolve a for-
mação de indígenas em Antropologia e que me preparasse tanto para a
especificidade de ser indígena dentro da universidade, como também
para realizar pesquisas em minha aldeia. A dificuldade em encontrar
textos endereçados a pesquisadores indígenas reflete a verdadeira ine-
xistência desses materiais, sejam escritos por indígenas ou não indí-
genas. Lentamente, esse processo vem se alterando e, com o aumento
de indígenas cursando Antropologia, essa discussão vem ganhando es-
paço dentro da academia. Um passo importante nesse cenário foi a pu-
blicação da tese de doutorado de Gersem Luciano (2013) e da disser-
tação de mestrado do indígena Guarani Tonico Benites.26
Para o presente objetivo, lançarei mão de duas situações que
vivi ao longo de minha ainda curta trajetória acadêmica e que foram
muito produtivas no sentido de proporcionar indagações sobre o que

26 Tonico Benites é indígena do povo Guarani-Kaiowá e realizou a sua pós-graduação em


Antropologia Social no Museu Nacional/UFRJ. Sua tese pode ser encontrada no link:
http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/documentos-e-publicacoes/artigos/docs/
artigos/docs_artigos/rojeroky-hina-ha-roike-jevy-tekohape-rezando-e-lutando (acesso
em: 18 out. 2016).

105
seria um indígena antropólogo27 e quais tensões podemos encontrar ao
fazer Antropologia. A primeira situação diz respeito a uma experiência
em sala de aula e traz à tona questões acerca de como as imagens e
discursos elaborados a respeito dos povos indígenas contêm uma carga
de exotismo muito desconfortável, e, às vezes, são os próprios antro-
pólogos que incorrem em generalizações e em visões puristas sobre
esses povos.
No segundo relato, descrevo uma entrevista que realizei com um
líder espiritual de minha comunidade do povo Tuxá do norte da Bahia.
Foi uma situação que me proporcionou reflexões sobre discussões ine-
rentes ao fazer antropológico: a ideia do distanciamento e da familiari-
dade, bem como da objetividade e da neutralidade. Se, no primeiro re-
lato, abordo as imagens de índios predominantes na sociedade nacional,
no segundo, tento mostrar como essas imagens afetam as formas como
nós, indígenas, percebemos a nós mesmos, gerando confusão, afetando
tradições e autoestima.

Por falar em pensamento indígena...

Um dos grandes desafios que estudantes indígenas enfrentam


cotidianamente está relacionado à falta de informação por parte da so-
ciedade brasileira no que tange à realidade de vida desses povos. Mais
do que falta de informação, existe um conjunto de estereótipos e ima-
gens folclorizadas que habitam o imaginário social. Esses estereótipos
são em si bastante preconceituosos e superficiais, sobretudo porque,
como no Orientalismo descrito por Edward Said (2007), são discursos
e imagens que veiculam elementos que falam mais sobre como aqueles
que neles creem querem pensar a si mesmos enquanto povos supe-
riores, civilizados e cultos, do que sobre aqueles a quem presu­
midamente remetem.

27 Sobre essa temática, ler as importantes contribuições de Gersem Baniwa (2015), em


Os indígenas antropólogos. Desafios e perspectivas, e de Tonico Benites (2015), em Os
antropólogos indígenas. Desafios e perspectivas.

106
Durante a minha graduação, tive a oportunidade de me matri-
cular em um curso intitulado “Pensadores e cineastas indígenas”, que
indicava uma temática ainda pouco explorada em nossa grade curri-
cular. A oportunidade de ler e conhecer a produção de intelectuais indí-
genas deixou não somente a mim como também aos outros colegas bas-
tante animados com a proposta que o curso nos sugeria. Na aula
inaugural, durante a apresentação do programa, o professor, etnólogo
de longa experiência etnográfica, nos falou sobre a crescente produção
audiovisual conduzida por indígenas e nos comunicou que esse seria o
foco de nossas aulas. Em seguida, presenciei o seguinte diálogo:

Aluno – Professor, gostaria de saber se também leremos textos escritos


por indígenas.
Professor – Bem, na verdade, até existem alguns textos escritos por
indígenas, mas que não servem para a nossa proposta. Falam mais de
política indigenista e outras questões. Para o que nos interessa, daremos
maior atenção à produção audiovisual, isto porque o pensamento indí-
gena tende a se perder quando passado para o papel.

Ficamos eu e outro colega indígena em sala de aula abismados e


justamente contrariados com aquela afirmação. Mas a ideia de que há
algo denominado “pensamento indígena” e que pode ser perdido quando
transposto para o papel não é isolada. Ela poderia inclusive ser mapeada
no sentido de situá-la dentro de perspectivas teóricas ao longo da his-
tória da Antropologia. Muitos antropólogos teorizaram em torno da
mentalidade nativa, explorando sobre seus traços particulares (LEVY-
BRUHL, 2008), suas diferenças em relação à racionalidade ocidental
(LEVI-STRAUSS, 1976) e descrevendo seu modus operandi (RADIN,
1960). O tema da mentalidade, racionalidade e intelecto nativo tem sido
um tema caro aos antropólogos, e os estudos que mencionei podem
apresentar divergências entre si quanto ao conteúdo e tratamento dado
à temática, mas são semelhantes no sentido de que resultam em uma
classificação e homogeneização da “mente” do outro.
Porém, o que me interessa aqui é usar a declaração acima feita
pelo professor de maneira relacional, de forma a apontar que ela está
associada a um edifício muito mais complexo, que é o das visões e ima-

107
gens difundidas sobre os povos indígenas. Trata-se menos de tentar
compreender o que poderia embasar a afirmação de que o pensamento
indígena é algo que se perde ao ser escrito, e mais de tentar elucidar as
consequências e implicações que derivam de tal visão dentro do atual
contexto de vida dos povos indígenas.
Muitos povos indígenas se lançaram em uma corrida emergen-
cial pelo domínio da escrita e, mais atualmente, na busca pelo acesso às
universidades, o que é plenamente compreensível se levarmos em con-
sideração o local que a escrita e a ciência ocupam dentro de uma visão
eurocêntrica, a partir da qual o conhecimento letrado é mais válido que
as tradições orais. Existe uma “História” (a história com “H”) eurocên-
trica (GOODY, 2015) que clama para si o monopólio para a enunciação
de discursos amparados em regime de verdade, quais sejam, os dis-
cursos respaldados pelo aparato cientificista. Para Foucault (1999, p.
9), esse é um processo por vezes violento, uma vez que a dinâmica de
conformação de determinado regime discursivo como verdadeiro é
sempre caracterizada por processos de interdição e exclusão, isto é, de
silenciamento de outras vozes e formas de ver o mundo.
Esse advento científico-positivista faz parte do processo da cons-
tituição da autoimagem europeia centrada nos elementos de uma pre-
tensa superioridade, pautada, por exemplo, nos ideais da civilização e
do progresso da humanidade. Sendo assim, as relações estabelecidas a
partir do colonialismo com a alteridade foram marcadas pela desumani-
zação e exploração, situando-as sempre em uma relação assimétrica. As
consequências desse etnocentrismo são as que já bem conhecemos: ra-
cismo, escravidão, xenofobia, genocídio etc. Na conquista do conti-
nente americano, os povos aqui encontrados foram tidos como humanos
– tinham alma – mas sempre com as devidas ressalvas. A condição
desses povos enquanto “índios” tinha os dias contados. Seriam conver-
tidos e civilizados, só assim alcançariam a condição plena de humano.
Aos que recusassem e resistissem a essa empreitada, poderia se declarar
uma guerra “justa”, de modo a serem exterminados.
O motivo que me leva a fazer essas considerações é simples: no
imaginário brasileiro, a condição indígena foi também vista desde os
primórdios da colonização como uma condição temporária. Nós pode-

108
ríamos ser amansados, catequizados e convertidos, civilizados e, por
fim, integrados e assimilados à sociedade.28 Este seria um processo ine-
vitável, no qual o tempo e a ação civilizatória eram os grandes vetores.
Foi somente na Constituição Federal de 1988 que o país promulgou o
fim de uma política indigenista assimilacionista, e, pela primeira vez,
foi reconhecida aos povos indígenas a possibilidade de permanecerem
indígenas (LIMA, 2008, p. 85).
Se essa visão de que a alteridade se dissolveria é algo fortemente
presente no senso comum, podemos, talvez, estabelecer algumas conti-
nuidades entre ela e as considerações que, por muito tempo, influen-
ciaram as ideias e as preocupações de antropólogos. Concordando com
a afirmação de Lévi-Strauss (1993, p. 38) de que, “se a sociedade está
na antropologia, a antropologia, ela própria, está na sociedade”, po-
demos de fato perceber continuidades entre o discurso antropológico e
muitas das ideias que habitam o senso comum sobre os povos indí-
genas. Para tal, precisamos apenas pensar como a teoria da aculturação
se associava de forma curiosa aos discursos assimilacionistas da polí-
tica indigenista oficial do século XX.29
Antropólogos têm a sua participação nesse processo com as suas
teorias evolucionistas e modelos de aculturação (que aliás configura um
dos termos do jargão antropológico que mais penetrou no imaginário
nacional). Eles também acreditaram em um processo em curso no qual
indígenas estivessem perdendo o seu caráter distintivo. Todavia, qual
era o tom então com que percebiam esse processo?

28 A aposta na dissolução dos “índios” sempre esteve presente no imaginário dos brancos
sob as mais diferentes formas. Já na “Carta do Achamento”, o escrivão Pero Vaz de
Caminha relata para a Coroa portuguesa a importância de converter e amansar os povos
nativos na terra recém-conquistada. A condição do “índio” foi vista como uma exis-
tência sobre a qual se devia intervir, e o projeto era claro: transformar e dissolver o
outro. A prática missionária jesuítica visou à catequização e conversão (Baêta Neves,
1978); as práticas administrativas do Serviço de Proteção Índio: pacificar, civilizar e
integrar (Souza Lima, 1995); tal visão também encontra respaldo jurídico [como está
presente] no Estatuto do Índio e no modelo antropológico da transfiguração étnica de
Darcy Ribeiro (1977).
29 O exemplo maior disso é, sem dúvida, a participação do antropólogo Darcy Ribeiro no
Serviço de Proteção do Índio e o seu modelo teórico da transfiguração étnica (1977).

109
Malinowski (1978), um dos mais proeminentes antropólogos,
alertou os futuros etnógrafos sobre uma triste realidade da disciplina em
sua famosa obra Argonautas do Pacífico Ocidental, quando, ao retratar
o seu método de trabalho de campo lamenta que “agora, numa época
em que os métodos e os objetivos da etnologia científica parecem ter se
delineado; em que um pessoal adequadamente treinado para a pesquisa
científica está começando a empreender viagem às regiões selvagens e
a estudar seus habitantes, estes estão desaparecendo ante nossos olhos”
(MALINOWSKI, 1978, p. 11). Franz Boas, por sua vez, retrata nos
povos que estudou algo que chama de “caráter etnológico”, a partir do
qual é possível perceber que:

Como a maioria dos antropólogos do período, Boas dirigia seu estudo


mais para o passado que para o presente. Podia-se rejeitar o pressuposto
evolucionista de que o selvagem era o fóssil vivo de um estágio cultural
anterior, mas, mesmo assim, parecia claro que o “caráter etnológico”
dos índios estava rapidamente desaparecendo em face do avanço da
civilização branca (STOCKING JÚNIOR, 2004, 114).

Aparentemente, a distintividade cultural seria uma questão de


tempo e estaria em vias de desaparecimento diante da expansão e con-
sequente homogeneização ocidental. Para esses antropólogos, para
quem a premissa da “variabilidade cultural” era condição do fazer an-
tropológico, isso seria um problema. Na declaração acima de meu pro-
fessor, a ideia de que o pensamento se perde quando escrito me remete
a essa preocupação, frente à ameaça da perda do que seria o caráter
antropologicamente relevante dos povos indígenas. Por que quando in-
telectuais indígenas escrevem sobre questões indígenas isso não seria
“pensamento indígena”? Parece-me que o poder da escrita seria tão
grande que teria, inclusive, o potencial de desagregar e causar desordem
quando indígenas a ela têm acesso. A afirmação de que o pensamento
indígena é algo que se perde quando escrito está tão enraizada, por-
tanto, que, quando temos em mente o longo processo de construção da
retórica da superioridade ocidental, pode ser vista como uma atuali-
zação de velhas práticas de distanciamento e exotização. Negar a escrita
como algo que pode ser parte dos processos indígenas de autodetermi-

110
nação acaba por ter uma forte carga preconceituosa que, em última ins-
tância, reproduz obstáculos para a construção de diálogos menos assi-
métricos com a sociedade não indígena.
Durante muito tempo, nós, indígenas no Brasil, fomos legalmente
enquadrados na categoria jurídica de “relativamente incapazes”, o que
implica a inaptidão de falar por nós mesmos e de responder legalmente
por nossas ações (LIMA, 1993; 2008; 2015). Negar a escrita em nome
de algo denominado “pensamento indígena” é um sofisma que acaba por
bloquear consideravelmente o acesso a uma ferramenta crucial por meio
da qual indígenas procuram estabelecer diálogos horizontais com a so-
ciedade dominante. A escrita é a linguagem do poder, não podendo, por-
tanto, estar ausente dos projetos indígenas na busca por maior autonomia
e dignidade. Ela representa um dos maiores desafios para nós, indígenas,
uma vez que é a linguagem da sociedade dominante.
Outro desafio que a escrita coloca é toda a problemática que en-
volve a tradução de realidades que estiveram estruturadas, sobretudo,
na oralidade, para regimes textualizados. A tradução pode de fato trans-
formar o conteúdo em algo diferente, mas isso não precisa ser um pro-
blema. Configura antes um desafio, um desafio que os povos indígenas
já tomaram para si há muito tempo; são apenas os essencialistas que
temem que transformação signifique perda.
A situação de negação que recordei acima é semelhante a outra
vivida pelo antropólogo indígena Gersem Luciano da etnia Baniwa
(2011), em seus tempos de estudante, à qual ele faz referência em sua
tese de doutorado:

O episódio a que me refiro envolveu uma professora de Filosofia que


à época publicou em um jornal de Manaus um artigo sobre sua ex-
periência de docência com alunos indígenas, no qual afirmou que o
problema dos índios era a incapacidade de abstração, característica do
pensamento ocidental. A afirmação deixou os alunos, na sua grande
maioria indígena, perplexa e exigiram uma retratação da professora na
Universidade (BANIWA, 2011, p. 37).

Embora o relato de Gersem envolva uma professora de Filosofia


e não de Antropologia, ambas as situações implicam um tipo de visão
essencialista que, levada às últimas consequências, conduz os indígenas

111
do mundo inteiro a se depararem com questionamentos acerca da ideia
de autenticidade. Reproduz um abismo entre nós e eles que, dentro do
campo intersocietário das relações interétnicas brasileiras, tem recaído
na inferiorização dos povos indígenas. No caso da escrita, o seu do-
mínio passa a ser negado como um atributo do pensamento indígena
apenas porque ela nunca foi uma prática autenticamente indígena. No
centro de colocações desse tipo “está a crença de que a cultura indígena
não pode mudar, não pode se recriar e ainda se afirmar como indígena”
(SMITH, 1999, p. 74). Negar a escrita aos povos indígenas é também
demarcar uma fronteira entre os que podem escrever com propriedade
e os que não podem.
Posições como essas implicam barreiras para os processos indí-
genas de busca por maior autonomia e estão muitas vezes também as-
sociadas à ideia de “cultura” que, possuindo uma miríade de signifi-
cados, tornou-se também uma camisa de força. Isso porque danças,
histórias, cantos e tantas outras práticas se tornaram um verdadeiro
atestado de indianidade a partir, justamente, de um pseudopurismo cuja
ideia de autenticidade constrange os povos indígenas enquanto sujeitos
históricos. Os estigmas se tornaram emblemas de uma alteridade cari-
caturada que os brancos reproduzem, perpetuando preconceitos. Para
ver esse processo em prática, basta ir a uma escola primária no dia 19
de abril, Dia do Índio, e ver as crianças pintadas brincando de ser ín-
dios. Enquanto isso, os índios de “verdade” estão sendo assassinados
em conflitos fundiários ou são deixados à miséria, confinados em mi-
núsculas reservas.
A forma como as realidades indígenas são retratadas em dife-
rentes discursos encontra um substrato comum que está difundido em
canções, literatura, cinema e, também, dentro da própria universidade.30
Ao serem reproduzidos dentro do espaço acadêmico, encontramos dis-
cursos que estão embasados no aparato cientificista, o que os reveste de
efeitos bastante particulares. Quando são os antropólogos que falam de
índios de forma a generalizar atributos inerentes a um pensamento indí-

30 Ver artigo de Alcida Ramos (2011a) no qual a autora aborda comparativamente o tema
das imagéticas nacionais em torno dos povos indígenas no Brasil, Colômbia e Argentina.

112
gena, as consequências têm outro alcance. A Antropologia se conso-
lidou enquanto ciência ocupando, precisamente, o local em que o co-
nhecimento sobre a alteridade é produzido. É sobre os diferentes povos
que a disciplina possui legitimidade para falar. O relato que mencionei
pode parecer um fato isolado, restrito a uma situação específica que
vivenciei, mas acredito que ele é relevante para pensar a dificuldade de
romper com certas imagens que, embora pareçam hoje “superadas”,
podem voltar à tona com uma nova roupagem, pelo simples fato de que
as ideias socialmente compartilhadas custam a se alterar.
Ainda hoje parece existir uma preocupação de que os indígenas,
ao acessarem as universidades, estariam deixando de ser indígenas,
ou, para os antropólogos, de que viessem a perder o caráter etnológico
a eles tão caro. Novamente, Gersem Baniwa (2015, p. 241) presen-
ciou situações semelhantes entre antropólogos que considerariam a
universidade como fonte de perdição para os indígenas, não devendo
estes, portanto, acessá-las. Ele relata que certa vez ouviu de um antro-
pólogo: “Gersem, é só você que quer o diploma da universidade. Os
outros indígenas não querem isso, não precisam disso. O que querem
é continuar com seus conhecimentos tradicionais e seus modos pró-
prios de vida em suas aldeias”. A busca por uma formação universi-
tária tem que ser incompatível com conhecimentos tradicionais e
modos próprios de vida? Essas ideias são problemáticas e podem, por
vezes, encontrar embasamentos teóricos muito diferentes, mas cami-
nham numa mesma direção, que é a da negação das coletividades in-
dígenas como sujeitos plenos que podem falar por si, seja oralmente,
visualmente, enquanto antropólogos indígenas, cientistas, nas univer-
sidades ou nas aldeias.
Considero necessário combater as práticas que reproduzem ima-
gens sobre as realidades indígenas definindo uma grande multiplici-
dade de povos como algo homogêneo e congelado no tempo. Este é um
grande desafio, mas acredito que a presença indígena nos espaços uni-
versitários pode problematizar e contribuir para sua desconstrução.
Sobretudo, porque um dos elementos que caracteriza esse “índio” é o
seu distanciamento: o índio está sempre distante. E a melhor forma de
combater essa ideia é se fazendo presente.

113
O meu intuito nesta discussão foi mostrar que, muitas vezes,
os próprios pesquisadores que conhecem as realidades indígenas
podem acabar reproduzindo ideias que, embora bem intencionadas,
acabam por gerar mal-entendidos interétnicos prejudiciais aos indí-
genas. A seguir, abordo outro movimento, que é o de como o longo
processo de colonização e submissão forçada pôde, através de
muitos anos, levar os próprios indígenas a internalizar as formas
como têm sido retratados.

Pronto para a pesquisa: gravadores e cadernos de campo

A primeira experiência de pesquisa que tive em minha comuni-


dade foi em 2012, quando, através de um programa institucional na
Universidade Federal de Minas Gerais, fui selecionado com mais 11
estudantes indígenas de diferentes áreas para compor um quadro de
pesquisadores nativos.31 O programa previa que cada um dos inte-
grantes conduzisse uma pesquisa em sua comunidade de origem ao
longo de três anos. Realizei uma pesquisa com meu povo Tuxá sobre
a Ilha da Viúva, território indígena que foi inundado no final da dé-
cada de 1980 pela construção de uma hidrelétrica. O objetivo era co-
letar narrativas e memórias sobre a Ilha da Viúva, e, para tal, realizei
várias entrevistas com os anciãos de minha comunidade.
Uma das primeiras pessoas com quem conversei é o maior líder
espiritual do meu povo, o pajé. Em sua casa, fui recebido por ele e sua
esposa, que também é minha prima. Expliquei o caráter de minha pes-
quisa, ressaltando a importância de registrar as memórias do nosso
povo sobre o território perdido. Todavia, antes que pudéssemos conti-
nuar com a conversa, o pajé interveio e me falou de um pesquisador não
indígena com quem havia trabalhado no passado. Contou-me sobre esse
jornalista que se mostrou muito interessado em conhecer e registrar a

31 Sobre os Programas de Educação Tutorial (PETs) ver: FREITAS, Ana Elisa de Castro.
(org.). Intelectuais indígenas e a construção da universidade pluriétnica no Brasil. Rio
de Janeiro: E-papers, p. 9-18, 2015. Disponível em: http://laced.etc.br/site/arquivos/
LIICUPBR001.pdf. Acesso em: 16 out. 2016.

114
vida dos índios Tuxá. Ele também demonstrou curiosidade em conhecer
os aspectos rituais do nosso povo, sobretudo o culto da jurema.32 O pajé
permitiu que ele o acompanhasse à mata para presenciar a retirada da
jurema, não sem antes explicar o caráter sagrado e secreto daquele pro-
cedimento, pedindo que ele não incluísse aquela parte no produto final
de seu trabalho. Contou-me, então, que, anos depois, quando o docu-
mentário final ficou disponível, viu que o jornalista não havia honrado
sua palavra, tendo inserido a filmagem que mostrava a coleta da ju-
rema. Foi uma situação muito complicada que até hoje gera muita re-
volta em minha comunidade, marcada pelo abuso e postura antiética
entre pesquisador e grupo pesquisado.33
Com o intuito de registrar minhas entrevistas, eu havia adqui-
rido um gravador bem pequeno e discreto que eu poderia pendurar no
pescoço por dentro da camisa. Quando o pajé me relatou esse epi-
sódio, me senti deveras constrangido e não mencionei o gravador,
dando continuidade à conversa normalmente. Só quando sua esposa
me indagou sobre como iria guardar toda a informação, já que não
estava anotando, informei que meu intuito inicial era registrar a con-
versa no gravador. Pedi para iniciar o registro, o que ambos pronta-
mente consentiram. Quando a conversa entrou em assuntos políticos
conflituosos dentro da comunidade, sua esposa novamente interveio,
lembrando: “Ei, não se esqueça que está sendo gravado!”. Ironicamente,
após a entrevista, em minha casa, ao começar a transcrever o áudio,
descobri que o gravador tinha dado uma “pane” e não havia funcio-

32 A jurema (Mimosa hostilis) é uma planta muito usada no complexo ritual do Toré entre
os índios do Nordeste do Brasil. Possui diversas propriedades ritualísticas e ocupa um
lugar central entre as práticas rituais do povo Tuxá. As técnicas de busca, coleta e pre-
paro que ocorrem na mata são consideradas sagradas e secretas para nós.
33 Essa é uma queixa muito comum entre indígenas da América do Norte. Encontramos,
por exemplo, depoimentos como este: “Pesquisadores que estão a par de detalhes ín-
timos da vida tribal devem ser discretos quando escrevem para não revelar informações
que a tribo considera privada ou sagrada. Os transgressores podem sofrer sérias conse-
quências, tanto os não indígenas que usam dados sensíveis e os informantes indígenas
de quem se espera que não divulguem informações religiosas e culturais do grupo”
(MIHESUAH, 1998, p. 4).

115
nado, de modo que nada havia sido registrado, o que, confesso, me
causou mais alívio do que preocupação.
Tendo chegado ao fim do período de campo, percebi que os pro-
fessores envolvidos no projeto estavam muito animados ao verem indí-
genas pesquisando em suas próprias comunidades. É um tipo de inicia-
tiva que representa um passo enorme para a presença de estudantes
indígenas nas universidades e, enquanto pesquisa etnográfica, é atípica
em vários níveis, principalmente, quando pensamos na facilidade de
acesso que temos para transitar “em campo”, ou do conhecimento
prévio de toda uma vida. Todavia, ao fim das pesquisas, pude constatar
com os outros bolsistas do projeto que todos haviam sentido que a fa-
miliaridade era uma questão delicada em suas pesquisas. O problema
não estava, como poderia ser argumentado, em ser a familiaridade res-
ponsável por perda de critério ou de objetividade, como normalmente
aparece em discussões metodológicas nos casos de antropólogos que
pesquisam em suas próprias sociedades, e sim em ocupar o lugar de
pesquisador dentro de “casa” e nas consequências disso.
Sobre essa temática, Paladino (2016) elaborou uma análise geral
da produção acadêmica indígena no Brasil, se debruçando sobre 47 dis-
sertações e teses, na qual comenta sobre como nesses trabalhos foi re-
tratada pelos intelectuais indígenas a especificidade de ocupar o lugar
de pesquisador em suas comunidades:

[...] os autores dos trabalhos são membros do próprio grupo estudado,


mas o fato de desenvolverem uma atividade de pesquisa – o que en-
volve uma série de atividades e práticas que costumam ser diferentes
das da maioria das pessoas nas comunidades – já os coloca num pa-
tamar diferenciado. Sendo assim, eles vivenciam uma experiência
de alteridade significativa (por realizarem uma atividade estranha ao
grupo, como é a atividade de pesquisa; por terem de dialogar com clãs
e facções que não os dos grupos de parentesco; por terem de explicar
costumes e regras que para eles enquanto nativos seriam naturalizadas,
mas que, como pesquisadores, devem questionar [...] De fato, em
muitos dos textos analisados, os autores mencionam que, ao longo do
trabalho de campo, foram interpelados pelos membros de sua comu-
nidade ou grupo de parentesco, por seguirem as mesmas rotinas que
os pesquisadores não indígenas. Em muitas situações, lhes era pergun-
tado se fariam o mesmo que estes últimos ao concluírem o trabalho:

116
ir embora e dar pouco ou nenhum retorno a respeito dos resultados de
seus estudos (PALADINO, 2016, p. 111-112).

Ao tentar ocupar o lugar de pesquisador em minha comunidade, a


familiaridade que existia entre mim e as pessoas que tentava “pesquisar”
foi problemática, uma vez que o nosso reconhecimento mútuo enquanto
parentes e indígenas contrariava a forma como a atividade de pesquisa
foi conformada entre nós ao longo de muitos anos. Repassei a situação
que narrei acima várias vezes comigo mesmo, tentando entender o
porquê de me sentir constrangido em mostrar o gravador. Tenho cons-
ciência de que a relação entre indígenas e pesquisadores de fora pode
gerar muitos desencontros, mas, naquela situação, eu estava ali como
indígena e, ao mesmo tempo, como pesquisador; não era um estranho,
mas fazia coisas estranhas a um parente. Hoje vejo o constrangimento
em mostrar o gravador como uma forma de recusa de ser associado ao
que esse objeto representa. Gravadores, cadernos de campo, filmadoras
costumam simbolizar a autoridade do pesquisador de fora que investiga
e coleta dados. Esses objetos combinados com uma determinada postura
compõem o habitus (BOURDIEU, 2004; 2006) do pesquisador acadê-
mico não indígena, e eu não queria me ver associado a ele.
Muitos indígenas estão acostumados com a figura dos pesquisa-
dores não indígenas, mas esse não é e nem foi um lugar historicamente
ocupado por eles mesmos. A maneira como a separação entre objeto
cognoscível e sujeito cognoscente foi instituída e apreendida parece re-
sistir à figura do indígena como condutor da pesquisa. Realizar pes-
quisa é um ato de poder, sobretudo porque pesquisar evoca o poder de
nomear, definir e classificar, atos que nunca estiveram associados aos
povos indígenas ao longo do processo de colonização. É como se, ao
ocuparem esse lugar, os indígenas desafiassem a própria lógica das re-
lações sociais características do processo de colonização e das práticas
tutelares, o que gera, a princípio, um estranhamento, que modifica dras-
ticamente o modo de se fazer pesquisa e de se relacionar com os ditos
interlocutores em campo.
Ao fazer pesquisa em minha comunidade, o problema da familia-
ridade não foi, portanto, o mesmo de situações em que um pesquisador

117
não indígena investiga a sua própria sociedade. No meu caso, a familia-
ridade implicava um reconhecimento mútuo que contrariava as expec-
tativas, tanto sobre ser “autenticamente” indígena (pesquisador e indí-
gena seriam posições incompatíveis), como sobre a prática de pesquisa
(ou se é pesquisador, ou se é pesquisado). Vejamos: existe um registro
social em torno do ato de pesquisar que o associa à figura da pessoa de
fora, do não indígena, de modo que a existência de indígenas como
condutores de pesquisa gera estranhamento e até desconfiança, o que
requer uma reconceitualização de práticas de poder fortemente estrutu-
radas, excludentes, que precisam ser ressignificadas para se conformar
ao novo cenário que inclui o indígena pesquisador.
Quanto à familiaridade nos termos da proximidade como algo
problemático, minha experiência me mostrou um conflito entre muitas
coisas que aprendi na antropologia e a forma como penso a minha re-
lação com o meu povo. Aprendemos na antropologia que há uma neces-
sidade de estabelecer um distanciamento, o que no passado foi visto
como sinônimo de não se implicar naquilo que se está a estudar. Nesse
sentido, a familiaridade que ocorre entre os temas estudados e o indí-
gena pesquisador poderia ser percebida negativamente como um in-
dício de parcialidade. Parte do desafio que percebo na atividade de pes-
quisa está em ressignificar o imaginário em torno desse distanciamento,
e pensar em quais termos o trunfo da pesquisa conduzida por indígenas
venha a ser justamente essa familiariadade.34
Há, desde o início, um envolvimento político que está no cerne
do movimento que leva os indígenas a se aventurarem nas universi-
dades. Longe de ser um ponto negativo, ele precisa ser enaltecido, so-
bretudo porque é a falta de envolvimento de pesquisadores de fora, en-
quanto pesquisadores, que tem sido o grande problema denunciado pelo
movimento indígena. Embora tenha havido bastante engajamento polí-

34 Muitos autores de diferentes áreas vêm falando sobre a importância e potencial de en-
riquecimento que podem advir dos relatos de primeira mão daqueles que vivem e co-
nhecem uma determinada realidade. Alguns exemplos são a parceria estabelecida entre
Kopenawa e Albert (2015) e também a proposta de uma antropologia ecumênica por
Ramos (2001).

118
tico por parte de pesquisadores não indígenas, o problema é saber de-
sengajar-se e deixar o indígena falar.35
Em sua maioria, os etnólogos são comprometidos com a causa
indígena, mas esse compromisso é quase sempre limitado a esferas não
acadêmicas. Militância extra-acadêmica é muito comum entre etnó-
logos, mas considerações políticas sobre a atual situação de dominação
na teorização etnológica não são tão comuns assim. Pelo contrário, para
alguns etnólogos são duas esferas bem diferentes que não se devem
misturar. Cabe ressaltar que não se posicionar politicamente já implica
um posicionamento, porque toda pesquisa tem consequências muitas
vezes adversas e dificilmente previstas em sua totalidade.
Enquanto pesquisador indígena, acredito que a finalidade e o com-
promisso do antropólogo não devem ser apenas com a matriz disciplinar,
nem somente com os avanços da ciência, e sim com a melhora das condi-
ções de vida das comunidades. E isso é também um desafio para os indí-
genas que pesquisam, pois é preciso romper com barreiras, de modo a
mostrar que o conhecimento que nós queremos produzir enquanto su-
jeitos comprometidos com o futuro de nossas comunidades não é um
conhecimento enviesado, o que faria dele uma antropologia menor.
A ciência e o ato de pesquisar fazem parte da retórica de superio-
ridade da sociedade dominante, e é importante que as imagens em torno
dessa prática se transformem, de maneira a comportar os pesquisadores
indígenas. Essa nova presença na universidade é muito importante para
esse processo que só avança na medida em que é posto em prática, pois
é crucial que sejam os próprios indígenas a participarem da ressignifi-
cação e reestruturação do fazer antropológico e da proposição de meto-
dologias que respeitem seus modos de viver, pensar e fazer história.

Considerações finais

Ao reler este texto, percebo que as questões que abordei corres-


pondem a desdobramentos de velhos temas devidamente atualizados,

35 Ver Ramos (2007).

119
pois estou tratando da problemática inerente às relações interétnicas. Os
desencontros que narrei surgem como produtos de interações entre
grupos que acontecem em um plano bastante assimétrico, como o do
Brasil, marcado historicamente por um longo processo de colonização.
Tentei mostrar como que as representações em torno dos povos
indígenas podem contrariar a sua presença nas universidades. As ideias
que atribuem características inerentes a essas coletividades descreven-
do-as como estáticas acabam por negar a historicidade por trás das ex-
periências e trajetórias particulares de cada grupo.36
Uma vez que essa imagética informa a maneira como somos tra-
tados ao nos relacionarmos com a sociedade envolvente, ela também
nos afeta intensamente, gerando muitas vezes a naturalização da resig-
nação. Entrar nas universidades significa se insubordinar e negar o pre-
conceito com o qual muitas vezes somos retratados.
Quando indígenas passam a produzir conhecimento de dentro da
universidade, velhas práticas e velhos discursos são acionados como
manifestações reacionárias de um longo movimento inercial, tanto por
indígenas como por não indígenas. Esse encontro nas universidades
gera reflexões e incita debates que, nessa arena de produção de conhe-
cimento, podem potencialmente produzir novos espaços de interações
que valorizem e reconheçam a fala indígena. Um desses espaços é o
importante Encontro Nacional de Estudantes Indígenas que, em 2016,
teve sua quarta edição em Santarém, no Pará. Conduzido e organizado
por indígenas, reúne estudantes de diferentes povos de todas as regiões
do país, proporcionando intensa troca de experiências e vivências. Em
um desses encontros, pude ter certeza de que as situações que presen-
ciei em minha trajetória acadêmica eram semelhantes às de tantos ou-
tros. A criação de espaços nos quais podemos falar torna possível a
criação de estratégias coletivas que, baseadas em experiências particu-
lares, podem alterar muito da dinâmica, não somente dentro das univer-
sidades, mas também fora dela.

36 Consultar Johannes Fabian, Time and the Other (2013).

120
A antropologia ocupa nesse cenário um lugar importante, uma
vez que ela sempre esteve aberta para a alteridade de forma única entre
as práticas científicas. A disciplina está inclusive em débito com os
povos que tanto foram usados como matéria-prima para a construção de
seus grandes edifícios teóricos. Resta agora que os antropólogos acadê-
micos tenham a sensatez e grandeza de receber os intelectuais indígenas
pelas portas da frente da disciplina, sem condescendência, de modo a
estabelecer trocas de conhecimentos que só são possíveis ao se reco-
nhecer que a alteridade não é apenas “objeto” de pesquisas, mas, acima
de tudo, interlocutora em igualdade de condições intelectuais.

Referências

BAÊTA NEVES, L. F. O combate dos soldados de Cristo na terra


dos papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1978.
BANIWA, G. Os indígenas antropólogos: desafios e perspectivas.
Disponível em: http://novosdebates.abant.org.br/index.php/numero-
atual/139-v2-n1/opiniao/210-os-indigenas-antropologos-desafios-e-
perspectivas. Acesso em: 17 out. 2016.
BENITES, T. Os antropólogos indígenas. Desafios e perspectivas.
Disponível em: http://novosdebates.abant.org.br/index.php/numero-
atual/139-v2-n1/opiniao/195-os-antropologos-indigenas-desafios-e-
perspectivas. Acesso em: 17 out. 2016.
BOURDIEU, P. O campo intelectual: um mundo à parte. In:
BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo, Brasiliense, 2004.
BOURDIEU, P. O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e
Política, Curitiba, v. 26, p. 83-92, jun. 2006.
LÉVY-BRUHL, L. A mentalidade primitiva. São Paulo: Paulus, 2008.
FABIAN, J. Time and the other: how anthropology makes its object.
Nova York: Columbia University Press, 2013.

121
FOUCAULT, M. A ordem do discurso. (Aula inaugural no Collège de
France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970) São Paulo: Edições
Loyola, 1996.
FREITAS, A E de C. (org.). Intelectuais indígenas e a construção da
universidade pluriétnica no Brasil. Rio de Janeiro: E-papers.
Disponível em: http://laced.etc.br/site/arquivos/LIICUPBR001.pdf.
Acesso em: 16 out. 2016.
GOODY, J. O roubo da história. São Paulo: Contexto, 2015.
KOPENAWA, D.; BRUCE, A. A queda do céu: palavras de um xamã
Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015
LÉVI-STRAUSS, C. A ciência do concreto. In: LÉVI-STRAUSS, C.
O pensamento selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1993.
LUCIANO, G. (Baniwa). Educação para manejo e domesticação do
mundo: entre a escola ideal e a escola real, os dilemas da educação
escolar indígena no Alto Rio Negro. 2011. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) – Departamento de Antropologia, Universidade
de Brasília, Brasília, 2011
LUCIANO, G. (Baniwa). Educação para manejo do mundo: entre a
escola ideal e a escola real no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Contra
Capa; Laced, 2013.
MALINOWSKI, B. K. Argonautas do Pacífico Ocidental: relato do
empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova
Guiné melanésia. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
MIHESUAH, D. A. (Coord.). Natives and academics: researching
and writing about American Indians. Lincoln: University of Nebraska
Press, 1998.
OLIVEIRA, J. P. de. A problemática dos “índios misturados” e os
limites dos estudos americanistas: um encontro entre antropologia e

122
história. In: OLIVEIRA, J. P. de. Ensaios de Antropologia Histórica.
Rio de Janeiro: Editora Universidade Federal de Rio de Janeiro, 1999.
PALADINO, M. Uma análise da produção acadêmica de autoria indígena
no Brasil. In: SOUZA LIMA, A. C. de. (org.). A educação superior de
indígenas no Brasil: balanços e perspectivas. Rio de Janeiro, 2016.
Disponível em: http://laced.etc.br/site/acervo/livros/ a-educacao-superior-
de-indigenas-no-brasil-balancos-e-perspectivas/. Acesso em: 16 out. 2016.
RADIN, P. El homen primitivo como filósofo. Buenos Aires: Editora
Universitária de Buenos Aires, 1960.
RAMOS, A. Por una antropología ecuménica. In: GRIMSON, A.
MERESON, S.; NOREL, G. Antropología ahora: debates sobre la
alteridad. Buenos Aires, 2001. p. 97-124.
RAMOS, A. R. Do engajamento ao desprendimento. Brasília:
Departamento de Antropología de la Universidad de Brasilia, 2007.
v. 414. (Série Antropologia).
RAMOS, A. R. Indigenismo: um orientalismo americano. Anuário
Antropológico, Brasília, v. 37, n. 1, p. 27-48, jul. 2012. Disponível em:
http://www.dan.unb.br/images/pdf/anuario_antropologico/
Separatas%202011_I/Indigenismo,%20um%20orientalismo%20
Americano.pdf. Acesso em: 14 dez. 2022.
RAMOS, A. R. The politics of perspectivism. The Annual Review of
Anthropology, v. 41, 2011b.
RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a integração das populações
indígenas no Brasil moderno. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1977. 1977
SAID, E. Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São
Paulo: Cia das Letras, 2007.
SMITH, L. T. Decolonizing methodologies: research and indigenous
people. New York: Zed Books, 1999.
SOUZA LIMA, A. C. de. Um grande cerco de paz: poder tutelar,
indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1995.

123
SOUZA LIMA, A. C. de. Educación superior para indígenas en el
Brasil: más allá del sistema de cupos. Vibrant, Florianópolis, v. 1,
p. 83-110, 2008.
STOCKING JÚNIOR, G. W. Franz Boas: a formação da antropologia
americana: 1883-1911. Rio de Janeiro: Contraponto; UFRJ, 2004.

124
MUITO ALÉM DO ACESSO
Protagonismos, resistências e difusão de novos
saberes de estudantes africanos na universidade
pública brasileira na década de 1960

Viviane de Souza Lima

A implementação de cotas raciais e sociais nos últimos anos


nas universidades públicas brasileiras simboliza uma conquista de su-
jeitos historicamente excluídos desses espaços. O acesso de quilom-
bolas, indígenas, ciganos à universidade coloca em disputa a produção,
a circulação e o consumo de conhecimentos dentro da academia. Ao
chegarem à universidade, esses novos sujeitos levam suas demandas,
saberes e experiências que são um caminho para uma educação antirra-
cista e para a descolonização do saber no Ensino Superior.
O desafio de fazer pesquisa na academia, historicamente de elite,
racista e branca, que ainda hoje prioriza o conhecimento ocidental, foi
um dos temas debatidos durante o 1.º Simpósio Nós na Universidade:
Povos Tradicionais, Educação e Políticas Públicas, realizado nos dias 8,
9 e 10 de dezembro de 2021, pelo Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal do Ceará (PPGH-UFC) e pelo Núcleo
de Documentação e Laboratório de Pesquisa Histórica (Nudoc/UFC).
O simpósio foi organizado pelo grupo de estudos Caldeirão:
Confluências Anticoloniais, do qual participam estudantes da primeira
turma de pós-graduação com vagas específicas para indígenas e quilom-
bolas no PPGH-UFC, iniciada em 2021, estudantes africanos que estão
no Brasil fazendo pós-graduação, entre outros pós-graduandos. A partici-
pação na organização do evento nos possibilitou discutir a importância
sobre a manutenção e a ampliação das ações afirmativas nas universidades
públicas e sobre estratégias para tornar as universidades espaços mais
abertos aos saberes e às experiências dos chamados povos tradicionais.
O acesso de negros, indígenas e ciganos às universidades pú-
blicas representa, sem dúvida, a materialização de uma forma de resis-
tência e de contestação da soberania intelectual ainda presente nesses
espaços. Esse processo vem se construindo ao longo de anos a partir da
luta dos movimentos representativos desses grupos e das trajetórias in-
dividuais de novos sujeitos que, após alcançarem uma vaga na univer-
sidade, abriram caminhos para os que hoje estão chegando lá.
Contudo, durante os debates do 1.º Simpósio Nós na Univer­
sidade, ficou evidenciado que, além do acesso ao Ensino Superior, é
necessário discutir sobre a implementação de ações de incentivo à
permanência desses jovens na universidade e sobre o enfrentamento
de questões que acompanham historicamente a presença desses novos
sujeitos nesse espaço.
Em minha pesquisa de doutorado, intitulada Trajetórias atlânticas:
caminhos de história na vinda dos estudantes africanos bolsistas do
Itamaraty para o Brasil (1961-1969), problematizo como as experiências
desses jovens africanos são atravessadas por questões que ainda hoje difi-
cultam o acesso e a permanência de negros nas universidades públicas. A
proposta deste artigo é refletir, mesmo que brevemente, sobre três as-
pectos: os usos políticos da presença de negros e de outros grupos histori-
camente excluídos do Ensino Superior; as dificuldades de deslegitimação
dos saberes e para o reconhecimento desses novos sujeitos como produ-
tores de conhecimento; e o racismo dentro e fora das universidades.

Uso político da vinda dos estudantes africanos ao Brasil

Entre 1961 e 1962, 22 jovens africanos desembarcaram no Brasil


como bolsistas patrocinados pelo governo brasileiro. O primeiro grupo

126
de estudantes africanos, que desembarcou no Brasil no final de 1961,
era composto por 15 jovens provenientes de seis diferentes territórios:
Nigéria, Gana, Senegal, República dos Camarões, Cabo Verde e Guiné
Bissau.37 O segundo grupo de estudantes africanos chegou à Bahia no
segundo semestre de 1962 e era composto por seis jovens nascidos em
Gana (3) e na Nigéria (3).
O programa de intercâmbio acadêmico foi o primeiro ato con-
creto de aproximação cultural do governo brasileiro do continente afri-
cano. Em meio à Guerra Fria, os governos de Jânio Quadros (janeiro a
agosto de 1961) e de seu sucessor, João Goulart (1961-1964), tentaram
implementar uma nova política de inserção internacional do Brasil,
buscando distanciar o país da interferência direta dos EUA por meio da
cooperação com países do hemisfério sul – da América, da África e da
Ásia. A inédita política africana era umas das diretrizes da chamada
Política Externa Independente (PEI).
Os movimentos de independências que estavam no auge na dé-
cada de 1960 transformaram países africanos em potenciais aliados po-
líticos e futuros mercados para produtos industrializados brasileiros
(SARAIVA, 2012, p. 35). O governo brasileiro anunciou a oferta de
bolsas de estudos para jovens africanos como estratégia de cortejar os
novos líderes de seus respectivos países, que necessitavam capacitar
quadros próprios para gerir suas máquinas administrativas.
O programa de bolsas de estudos para africanos e outros projetos
da então inédita política africana foram legitimados por um discurso
oficial amparado nas relações históricas e culturais entre Brasil e África.
Na mensagem enviada por Jânio Quadros ao Congresso Nacional na
abertura da sessão legislativa de 1961, o presidente inaugurou o dis-
curso da “dívida histórica”38 com o continente africano para defender a
política africana.

37 O programa brasileiro de bolsas de estudos para africanos não se destinava a territórios


não autônomos como Cabo Verde e Guiné-Bissau. Os dois estudantes desses territórios
vieram ao Brasil com passaportes do Senegal.
38 O discurso da dívida histórica com a África seria usado anos depois pelo presidente Luiz
Inácio Lula da Silva (2003-2022) para justificar uma maior importância das relações
diplomáticas do Brasil com o continente africano.

127
O nosso esforço em África, por mais intenso que venha a ser, não po-
derá senão constituir uma modesta retribuição, um pequeno pagamento
da imensa dívida que o Brasil tem para com o povo africano. Essa razão,
de ordem moral, justificaria por si só a importância que este Govêrno
empresta à sua política de aproximação com a África (QUADROS
apud, MUNIZ, 2010, p. 24).

A contribuição do povo africano para a formação do Brasil – me-


diante o trânsito involuntário durante o período do tráfico transatlântico
de escravos ao longo dos séculos XVI e XIX – foi usado por Quadros e
seus apoiadores para atualizar a ligação entre os dois lados do Atlântico.
Nesse novo contexto, o Brasil se apresentava como um líder “natural”
diante dos países africanos recém-independentes por conta do passado
de ex-colônia que estava em busca de desenvolvimento.

Queremos ajudar a criar, no Hemisfério Sul, um clima de perfeito en-


tendimento e compreensão em todos os planos político e cultural, uma
verdadeira identidade espiritual. Se bem que em fases diversas de desen-
volvimento, os problemas que nos confrontam, de um e de outro lado do
Atlântico, são semelhantes, possibilitando, destarte, o aproveitamento
das soluções encontradas (QUADROS apud, MUNIZ, 2010, p. 24).

O discurso da suposta “africanidade” brasileira pautou toda a


propaganda oficial apresentada aos estudantes africanos que aqui che-
garam como bolsistas. Os governantes, intelectuais e imprensa entu-
siastas do programa de bolsas para africanos se esforçavam para propa-
gandear que no Brasil esses jovens não se sentiriam estranhos, pois
compartilhavam com os brasileiros a mesma ancestralidade. Uma
curiosa matéria publicada na revista Fatos e Fotos, na edição de 20 de
janeiro de 1962, sobre a chegada do primeiro grupo de bolsistas à Bahia
tem como título “África volta à Bahia”.39

39 Salvador foi o primeiro local para onde os estudantes africanos foram enviados. Ao
longo de três meses, em 1962, eles tiveram, aulas de português e de realidade brasileira
no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade (Federal) da Bahia. O
fundador do CEAO, Agostinho da Silva, teve importante participação na formatação do
programa de bolsas de estudos do Itamaraty. Na década de 1960, Salvador vivenciava
um contexto particular de afirmação do seu legado africano associado sobretudo às tra-
dições religiosas yorubanas. Antenados com esse movimento, pesquisadores do CEAO
realizavam pesquisas sobre temas afro-brasileiros.

128
Mas a vivência no Brasil tratou de contradizer a afinidade “na-
tural” entre o Brasil e os países africanos dos quais eles eram originá-
rios. Os dois grupos de estudantes que vieram ao Brasil pertenciam a
países (ou territórios) bem diferentes em suas realidades. Eles eram
originários de Gana, Nigéria, Senegal e Camarões, países já indepen-
dentes; e de dois territórios ainda ocupados por Portugal, Cabo Verde
e Guiné Bissau.
Na maior parte dos discursos e também das opiniões publicadas
na imprensa dos diplomatas e intelectuais brasileiros favoráveis à polí-
tica africana, os bolsistas eram taxados como um todo homogêneo, sob
a denominação de “africanos”. Eles também representavam uma África
idealizada, homogênea e una: “[...] um lugar imaginário que se refletia
na cultura brasileira, em seu passado, em seu futuro e em seu relaciona-
mento com o mundo” (DÁVILA, 2011, p. 15).
Os diplomatas e intelectuais entusiastas da aproximação do
Brasil com a África, na década de 1960, olhavam o continente africano
e seu povo a partir de uma lente que projetava nela o Brasil. “Na África,
eles projetavam os significados que davam à escravidão e à presença de
negros na cultura e na sociedade brasileira” (DÁVILA, 2011, p. 15).

Pluralidade de saberes e de experiências

As ligações entre o Brasil e o continente africano remontam a um


passado de intensa circularidade de pessoas e ideias. Os deslocamentos
forçados durante o período do tráfico transatlântico de escravos propor-
cionaram trocas e deixaram marcas na cultura brasileira. O fim do trá-
fico e, posteriormente, o colonialismo europeu na África reduziram40 os
contatos diretos entre as duas margens do Atlântico. No início dos anos

40 Intelectuais e líderes religiosos africanos defendiam, no início da década de 1950, a


existência contínua de laços contemporâneos fortes entre a Bahia e a África Ocidental.
Muitos deles, por exemplo, mantiveram conexões com agudás até a Segunda Guerra
Mundial e renovaram esses laços na década de 1950. Eles reivindicavam a Bahia como
a capital de uma celebrada africanidade brasileira. ALBERTO, Paulina L. Para africano
ver: intercâmbios africano-baianos na reinvenção da democracia racial (1961-1963).
Revista Afro-Ásia, n. 22, 2011, p. 97-150, p. 145. Disponível em: http://www.afroasia.
ufba.br/pdf/AA_44_PLAlbero.pdf. Acesso em: 1 dez. 2016.

129
de 1960, o continente africano estava em ebulição por conta dos movi-
mentos emancipatórios. Apesar disso, no Brasil, pouco se sabia de uma
África contemporânea e efervescente da qual eram originários os estu-
dantes africanos bolsistas do Itamaraty.
O tom de política assistencialista do programa brasileiro de bolsas
de estudos acabava por invisibilizar as experiências anteriores e os sa-
beres que esses jovens carregavam em suas vivências. A diversidade do
perfil dos estudantes africanos pode ser evidenciada a partir de suas fi-
chas no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade
(Federal) da Bahia. Em Salvador, os bolsistas tiveram, ao longo de três
meses, em 1962, aulas de português e de realidade brasileira.
Nos registros feitos por eles mesmos, a maioria dos estudantes
relatou experiências anteriores de estudos em instituições de ensino eu-
ropeias e revelaram ter o domínio de pelo menos duas línguas. Além
das línguas ocidentais de origem das colonizações de seus respectivos
países, eles falavam as chamadas línguas nacionais. Todos os estudantes
bolsistas da Nigéria eram iorubás e falavam, além de inglês, a língua de
sua etnia. Os ganenses falavam inglês e suas línguas nacionais como o
gã, o twi e o fanti.
A surpresa em relação ao desconhecimento sobre a África e sua
população, é manifestado pelo estudante de Gana, Samuel Gobbold, em
entrevista ao jornal A Tarde, de Salvador, em 1965. O bolsista, que es-
tava então no último ano do curso de Odontologia na Universidade
(Federal) da Bahia, reiterou que no Brasil ainda pouco se conhecia
sobre o continente africano.

Durante esses quatro anos, tenho notado que os conhecimentos sobre a


África são poucos. Os brasileiros pouco nos conhecem e pouco sabem
do nosso desenvolvimento político, industrial, de nossa agricultura, co-
municação, saúde e educação – que eu notei através de minhas con-
versas com pessoas de diversas classes (grifo nosso).41

41 “Gobbold – força de vontade resultou num diploma”. A Tarde, 04/12/1965. Acervo


Hemeroteca do CEAO.

130
Ao enfatizar em sua entrevista a desinformação no Brasil acerca
do desenvolvimento de Gana, podemos cogitar que ele estivesse se con-
trapondo aos estereótipos atribuídos no Brasil à África e ao seu povo,
associados à imagem de pobreza, barbárie e exotismo.
Outro estudante ganense, Benjamin Clottey, atualmente com 85
anos, faz questão de enfatizar em entrevista à autora deste artigo que os
estudantes de Gana e da Nigéria que vieram ao Brasil tinham condições
de estar em qualquer universidade do mundo.42 No início de década de
1960, em Gana já existiam duas universidades: Universidade de Gana e
Universidade de Ciência e Tecnologia Kwame Nkrumah. Benjamin
Clottey havia sido enviado ao Brasil pelo governo de Gana para
aprender português, visto que era funcionário da Ghana Broadcasting
Corporation, responsável pela Rádio de Gana, que transmitia sua pro-
gramação em vários idiomas.

Os requisitos mínimos de entrada (Na Universidade de Gana e


Universidade de Ciência e Tecnologia Kwame Nkrumah) são seme-
lhantes aos das melhores Universidades do mundo – Londres, Oxford,
Harvard etc. Uma observação é que o português como Programa de
Licenciatura não estava disponível nas universidades do Gana [...]. Os
estudantes africanos que foram selecionados de Gana e Nigéria (ambos
os países estavam sob a tutela britânica) e, nesse caso, nossos colegas
franceses, estavam qualificados para ingressar em universidades para
uma educação superior.43

Com sua declaração, Clottey reforça o protagonismo dos estu-


dantes africanos que escolheram vir ao Brasil para estudar e não como
agentes passivos e merecedores de qualquer tipo de assistencialismo.
No Brasil, Clottey se formou no curso de Licenciatura em Língua
Portuguesa na UFRJ. Clottey não recebeu bolsa do Itamaraty, visto que
o governo de Gana custeava seus estudos. Já o governo brasileiro ficou
responsável por gastos com hospedagem, alimentação e transporte.

42 Mesmo sem ser solicitado, Benjamin Clottey enviou à autora uma cópia de uma decla-
ração da Universidade de Londres, datada de 13 de abril de 1964, atestando a apro-
vação de sua submissão a um curso de bacharelado em Artes (B.A. Degree).
43 Entrevista à autora, 20/10/2020.

131
Práticas de racismo contra os estudantes africanos

Apesar de a universidade ser um espaço que historicamente re-


mete à ideia de pluralidade e de integração, estudantes negros que in-
gressam no Ensino Superior, hoje ou no passado, enfrentam(ram) várias
formas de racismo. Maria Aparecida Silva Bento chama de pacto narcí-
sico da branquitude uma forma silenciosa, mas bem perceptível, que
impede que negros e negras ascendam a postos hierárquicos superiores
nas organizações privadas e no poder público. “Um pacto que visa pre-
servar, conservar a manutenção de privilégios e de interesses” (BENTO,
2002, p. 105-106).
A inteligência negra na academia passa a disputar um espaço que
historicamente foi “naturalizado” como pertencente aos brancos. De
acordo com o sociólogo Lourenço Cardoso (2012, p. 119), diante da
iminência de um prejuízo econômico e de prestígio, os brancos se pro-
tegem e atuam para manter seus privilégios. “[...] as academias brasi-
leiras, de modo geral, possuem ainda uma mentalidade hegemonica-
mente branca. Quanto a ‘onisciência branca’, isto é, o ‘saber’ de ‘tudo’,
o ‘falar de tudo’ ocorre em virtude de procurar reservar o espaço de
‘poder’ e ‘saber’ científico para si” (ibidem, p. 157 e 158).
Na década de 1960, estudantes africanos negros bolsistas do
Itamaraty foram vítimas do chamado racismo à brasileira, prática que
se contrapunha radicalmente à imagem oficial projetada à época do
Brasil como sendo uma democracia racial.44 O ganense Francis Ayikwei
Quaye (já falecido), bolsista do Itamaraty e acadêmico de Medicina, foi
uma das vítimas. Werner Zimmermann, colega de turma no curso de

44 O sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987) é considerado o principal propagador da ideia


de “democracia racial” no Brasil, embora ele nunca tenha usado o termo em sua obra,
mas uma expressão sinônima, “democracia étnica”. De acordo com Antonio Sérgio
Alfredo Guimarães, o termo “democracia racial” aparece nas pesquisas empreendidas
por Roger Bastide no nordeste brasileiro, influenciado pela leitura de Gilberto Freyre.
Segundo Guimarães, Bastide usa pela primeira vez o termo democracia racial ao refletir
sobre a ordem social que era própria à ideia de democracia brasileira, ideologia que se
baseia na ausência de distinções rígidas entre brancos e negros, divulgada como uma
forma original de cultura miscigenada, livre e festiva (GUIMARÃES, 2002).

132
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde Quaye se
formou, recorda de dois episódios relatados pelo amigo.

Uma vez ele me contou que havia iniciado o curso de Medicina em São
Paulo, na USP. Acho que ele era o único negro na turma e me relatou
que na aula de anatomia o professor não passava os instrumentos para
ele trabalhar. Ele se sentia preterido diante dos outros alunos (brancos).
Ele não era de se queixar, mas me contou que foi falar com uma se-
nhora do Itamaraty, que era responsável pelos bolsistas em São Paulo,
e disse: “daqui eu só saio quando a senhora me transferir”. Em outro
momento, já no Rio, ele me disse que saiu com uma moça e foi levá-la
para pegar o ônibus na Praça da Bandeira e um sujeito saiu gritando em
sua direção: “Ladrão, ladrão, ladrão!”. Francis me disse que chegou um
policial e viu que não era nada daquilo. Ele ficou muito aborrecido com
aquilo e disse: “Puxa vida, só porque eu sou negro”.45

Ao ser vítima de racismo no Brasil, Francis Quaye vivenciou si-


tuações de racismo por que passa cotidianamente a população negra no
Brasil. Descobrir-se dolorosamente negro no Brasil também colocou
em xeque outra mensagem disseminada por autoridades brasileiras no
período e direcionada aos jovens líderes africanos: que o Brasil era um
país acolhedor a todos os estrangeiros. Mas as práticas xenófobas esco-
lhiam os africanos de cor negra como alvo.
Apesar da propaganda oficial projetar o Brasil como um país em
harmonia racial, intelectuais do CEAO responsáveis pelo acolhimento
dos estudantes africanos em Salvador manifestaram preocupação em
preservá-los de situações de racismo. O antropólogo Vivaldo da Costa
Lima, em correspondência, de 27 de novembro de 1961, ao então di-
retor do CEAO, Waldir Oliveira, orientou sobre quais lugares os estu-
dantes deveriam evitar na cidade: “convém evitar lançamentos no
‘society’ por enquanto nem afetações neo-racistas dos falsos brancos da
Bahia... Nada de levar os rapazes aonde eles não iriam se não fossem
‘estudantes africanos’... Nada, sobretudo, de Associação Atlética, onde
há segura discriminação contra pretos”.46

45 Entrevista à autora por Skype, em 21/09/2020


46 Carta enviada por Vivaldo da Costa Lima ao diretor do CEAO, Waldir, em 27 de no-
vembro de 1961. Acervo do CEAO.

133
O racismo contra outros três bolsistas do Itamaraty ganhou reper-
cussão na imprensa. Uma matéria do Correio da Manhã, de 21 de julho
de 1962, intitulada “Preconceito racial em hotel de BH”, relatou que o
estudante cabo-verdiano, Christóvão Morais, a senegalesa Collete
Diallo e o guineense Fidelis Cabral, todos negros, haviam sido impe-
didos de se hospedar no Brasil Palace Hotel, em Belo Horizonte, mesmo
tendo um apartamento reservado pelo Itamaraty.47 A situação provocou
a revolta dos intercambistas que, na matéria, pediam que o Itamaraty
tomasse providências para enquadrar os responsáveis pelo estabeleci-
mento na Lei Afonso Arinos.48
Um outro caso de discriminação contra estudantes africanos re-
percutiu na imprensa carioca e paulista. No dia 27 de abril, dois estu-
dantes foram impedidos de entrar em duas boates em Copacabana, zona
sul carioca. O dono teria alegado que não havia mais espaço nos locais.
Diante da repercussão do caso, o Itamaraty enviou cópia da Lei Afonso
Arinos, “fazendo-se sentir a consideração que merecem esses como
quaisquer outros estudantes estrangeiros que estejam no Brasil”.49
Na edição do jornal Diário Carioca, do dia 28 de abril, o caso foi
relatado, e Abdias do Nascimento, importante ativista contra o racismo
no Brasil, fez no jornal duras críticas ao Itamaraty, acusando o órgão de
perpetuar em sua estrutura o racismo, pois quase não existiam diplo-
matas negros àquela época. “Por mais paradoxal que pareça, sempre
houve racismo no Brasil. E a coisa vem de dentro do próprio Itamarati,
onde homem de cor não entra, por melhor que seja”. Nascimento atestou
que a notícia de que os bolsistas estrangeiros estavam vivendo pro-
blemas de discriminação “num país que se diz amigo é horrível”, po-
deria criar “sérios problemas para o nosso governo”.50

47 “Preconceito racial em hotel de BH”. Correio da Manhã, em 21 de julho de 1962,


1o caderno, p. 15.
48 A legislação, aprovada 10 anos antes, no dia 3 de julho de 1951, foi a primeira a tornar
contravenção penal a discriminação racial no Brasil. A lei era de autoria do então de-
putado federal pela UDN, Afonso Arinos de Melo Franco, que se tornou o primeiro
ministro das Relações Exteriores do governo Jânio Quadros.
49 Itamarati combate discriminação. Avisa a “boites” que racismo é proibido. Diário
Carioca. 28/04/1962.
50 Idem.

134
Por uma universidade que integre todos os
saberes e conhecimentos

Muito ainda se teria a dizer sobre as trajetórias, saberes e conhe-


cimentos dos estudantes africanos que participaram do programa de
intercâmbio acadêmico Brasil-África na década de 1960. Neste breve
artigo, pretendemos refletir sobre como essas e outras experiências de
acesso de negros ao Ensino Superior têm contribuído para a ampliação
dos debates sobre a descolonização da universidade. Precisamos
avançar no debate de como a integração desses novos sujeitos à univer-
sidade permite a construção de uma educação antirracista e libertadora
em todos os níveis de ensino.

Referências
ALBERTO, P. L. Para africano ver: intercâmbios africano-baianos na
reinvenção da democracia racial (1961-1963). Revista Afro-Ásia,
n. 22, p. 97-150, 2011. Disponível em: http://www.afroasia.ufba.br/
pdf/AA_44_PLAlbero.pdf. Acesso em: 1 dez. 2016.
BENTO, M. A. S.; CARONE, I. Pactos narcísicos no racismo:
branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público.
São Paulo: Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
CARDOSO, L. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a
branquitude no Brasil. 2014. 290f. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho,
Faculdade de Ciências e Letras, Araraquara, 2014. Disponível em:
http://hdl.handle.net/11449/115710. Acesso em: 19 maio 2019.
DÁVILA, J. Hotel Trópico: o Brasil e o desafio da descolonização
africana: 1950-1980. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
GUIMARÃES, A. S. A. Classes, raças e democracia. São Paulo:
Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 2002.
MUNIZ, C. B. de A. M. (org.). Mensagem ao Congresso Nacional
remetida pelo presidente da república na abertura da sessão

135
legislativa de 1961. Discursos selecionados do presidente Jânio
Quadros Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2010. 24 p.
SARAIVA, J. F. S. África parceira do Brasil atlântico – relações
internacionais do Brasil e da África no início do século XXI. Belo
Horizonte: Fino Traço, 2012.

136
OS CAMINHOS DE ACESSO À
EDUCAÇÃO ESCOLAR E A
VIDA UNIVERSITÁRIA NA GUINÉ-BISSAU

Adilson Victor Oliveira

Introdução

E ste texto surge a partir do minicurso que eu e Nkanande Ka


ministramos durante evento do grupo de estudos Caldeirão: Confluências
Anticoloniais, do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Ceará, do qual também fazemos parte. O 1.º
Simpósio Nós na Universidade: Povos Tradicionais, Educação e
Políticas Públicas ocorreu nos dias 8, 9 e 10 de dezembro de 2021. O
tema do minicurso que oferecemos era: “os caminhos de acesso à edu-
cação escolar e a vida universitária na Guiné-Bissau”.
A ideia era apresentar um panorama geral de como o sistema
educativo funciona em Guiné-Bissau e, por meio disso, discutir as pro-
blemáticas de acesso à educação e a vida universitária no país. Durante
dois dias, juntamente com os nossos inscritos, debatemos os temas do
minicurso e, é a partir disso, que irei apresentar minha visão neste texto.
Muitos brasileiros nunca ouviram falar de Guiné-Bissau, mas é
provável que todos saibam da existência de um lugar no planeta cujo
nome é África. Quero, em poucas palavras, apresentar esse país para os
leitores e convidá-los a pesquisarem mais a respeito dele, pois há muitas
informações que podem servir para os estudos atuais nas ciências hu-
manas e, particularmente, no que refere às culturas brasileiras.
A Guiné-Bissau é um país na costa da África ocidental, cuja língua
majoritariamente falada é o crioulo guineense, depois, as línguas étnicas e
o português. Este último tem o estatuto de língua oficial, adotada após a
independência. A Guiné-Bissau foi colonizada por Portugal até a sua inde-
pendência, em 1973, depois de guerra que durou 11 anos (PARTIDO
AFRICANO PARA A INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ E CABO VERDE,
1974). Faz fronteira com o Senegal ao norte e com a Guiné-Conacri ao sul.
Para desenvolver esta reflexão, é preciso saber como esse país
formou seu sistema educativo após a independência, em 1973. Para
isso, é necessário trazer alguns dados que poderão facilitar a com-
preensão do texto.
A Guiné-Bissau possui um território de 36.125 km2, dividida
em três províncias, norte, leste e sul, tendo oito regiões administra-
tivas, Quinara, Tombali, Biombo, Cacheu, Bafata, Bolama, Oio e
Gabu. As regiões são divididas em 36 sectores, e, por sua vez, os sec-
tores, em secções.

Mapa 1 - Mapa da república da Guiné-Bissau

Fonte: https://rotasdeviagem.com.br/guine-bissau-bandeira-mapa/. Acesso em: 19 jul. 2022.

138
Após a sua independência, o país organizou seu sistema educa-
tivo a partir de um tipo de currículo que enaltecia os valores nacionais,
os feitos da guerra de libertação, os grandes combatentes, os comba-
tentes africanos, as culturas e tradições étnicas etc. Esse fato foi impor-
tante ao longo do período do partido único, entre os anos de 1973 a
1990 (SEMEDO, 2009). Com a abertura democrática, nos anos 90,
houve reforma no modelo curricular vigente, deste modo, permitindo a
“despartirização” do currículo escolar guineense, que, segundo algumas
vozes críticas ao regime do partido único, consideravam o modelo do
currículo como currículo do partido PAIGC (Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde). Importante ressaltar que foi
esse partido que conduziu a luta armada contra o poder colonial até a
independência, em 1973, liderado pelo agrônomo e pai da nacionali-
dade da Guiné-Bissau e Cabo Verde, Amílcar Lopes Cabral.
Os livros cujas capas apresentamos a seguir, apesar de não anali-
sarmos seus conteúdos, são de muita importância para a história na-
cional, nossa cultura, nossa identidade. Tratavam dos combatentes da
liberdade da pátria, mas, infelizmente, com as reformas, nunca mais se
ouviu falar dessas pessoas nas escolas. Ou seja, a reforma acabou com
a história dos combatentes.
A seguir, capas de livros de 1.º, 3.º e 4.º anos da escolaridade
guineense (edição de Mecd-Indi, 1988, de autoria de Maria Deodata
Medina, Paulo Pereira e Maria de Lourdes Benício).

Figura 1 – Capas dos


livros da escolari-
dade guineense
Fonte: Memória de
África e Oriente.
Disponível em:
http://memoria-a-
frica.ua.pt/Library/
LivrosEscolaresPos
Coloniais.aspx.
Acesso em: 8 mar.
2023.

139
Na outra capa de 3.º ano, vemos uma fotografia de combatentes
com armamento, uma bandeira e uma criança com um livro na mão. A
bandeira simbolizava a força dos combatentes, que durante 11 anos en-
frentaram o colonialismo, e, acima de tudo, simbolizava a esperança de
um povo que assumiu seu destino após anos de escravidão, assassi-
natos, massacres (SEMEDO, 2009; MONTEIRO, 2013).
Estas e outras imagens atualmente disponíveis para consulta no
site da memória da África e Oriente51 são materiais importantes para os
pesquisadores compreenderem quais fatores levaram à catástrofe da
educação em Guiné-Bissau.

Figura 2 – Capas dos livros da escolaridade guineense

Fonte: Memória de África e Oriente. Disponível em: http://memoria-africa.ua.pt/Library/


ShowImage.aspx?q=/Geral/L-00000043&p=1. Acesso em: 8 mar. 2023.

A primeira leitura do livro de 1.º ano é a mais popular do país,


pois era conhecida e sabida por todos. “O pato nada” era uma leitura

51 Antigos livros didáticos da Guiné-Bissau. Disponível em: http://memoria-africa.ua.pt/


Library/LivrosEscolaresPosColoniais.aspx. Acesso em: 14 mar. 2022.

140
fácil para as crianças do primeiro ano e tornou-se leitura popular de-
vido à sua facilidade, pois era ensinada tanto para as crianças como
para os adultos das escolas de alfabetização de jovens e adultos. Era
também a forma como as crianças brincavam em casa com a leitura em
forma de música.

Figura 3 – Página da leitura de “O pato nada”

Fonte: Memória de África e Oriente. Disponível em: http://memoria-africa.


ua.pt/Library/ShowImage.aspx?q=/Geral/L-00000043&p=6. Acesso em: 8
mar. 2023.

Após essas constatações, nossa análise começará a partir da re-


forma curricular como um marco importante para a educação guineense,
pois permitiu a inclusão de vozes que a repudiavam e a consideravam
paigecista (INDJALÁ, 2022).
O sistema educativo guineense está organizado da seguinte ma-
neira: jardim, que abrange crianças de 1 a 6 anos; ensino básico ele-
mentar, que inclui primeiro e segundo ciclo (I ciclo – do 1.º ano de es-
colaridade ao 4.º ano; II ciclo – 5.º ano e 6.º ano); III ciclo – ensino
secundário (7.º a 9.º); ensino complementar (10.º a 12.º); ensino profis-

141
sionalizante e escolas de alfabetização de jovens e adultos; a fase pré-
universitária52 e universitária.

Instabilidade política

A Guiné-Bissau é um país que vive em constante instabilidade


política, um país com muita incerteza em termos da estabilização e se-
gurança das pessoas. Frequentemente, acontecem golpes e tentativas de
golpes de Estado, assassinatos de políticos e militares, perseguições,
sequestros de pessoas, asilos de cidadãos, derrubes dos governos eleitos,
criação de governos livres da unidade nacional, que, muitas vezes, re-
sultam na divisão de pastas ministeriais, como também na divisão dos
recursos públicos para os cofres dos partidos, para assim participarem
nas próximas eleições.
Desse modo, muitas instituições, incluindo a da educação, não
funcionam como deveriam. O país vive sob greves no sector do ensino.
As escolas públicas passam maior parte de tempo fechadas devido à
falta de pagamento dos professores ou devido à instabilidade no país.
Essas situações vão influenciando negativamente no sistema de ensino
guineense. Segundo os dados divulgados no Plano Nacional de Ação
Educação para Todos, a Guiné-Bissau de 2003 apresenta índice baixo
de educação. Pode-se resumir que o mal está nas instabilidades polí-
ticas. Essas situações mexem negativamente com os processos de en-
sino e aprendizagem, tanto que, nos últimos anos, muitos pais têm pre-
ferido as escolas privadas para seus filhos. Para Letícia Monteiro Djonu,
“Assim como a escola Betel, outras instituições de ensino privadas
foram criadas nos últimos anos como consequência das constantes pa-

52 Na Guiné-Bissau, existe essa ideia de fase pré-universitária, ou seja, as pessoas que


tiveram ou concluíram o ensino complementar, só o 11.º ano de escolaridade, ao en-
trarem na universidade, precisam passar pela fase pré-universitária. Aprovada em maio
de 2010, a Lei de Bases do Sistema Educativo dá suporte legal às ações educativas e
suprimiu as lacunas que existiam no nível legislativo. Propôs alterações consideráveis
no sistema, entre as quais, a introdução do 12.º ano de escolaridade. Disponível em:
https://books.openedition.org/cei/653#:~:text=Prop%C3%B4s%20altera%C3%A7%-
C3%B5es%20consider%C3%A1veis%20no%20sistema,e%20literatura%20e%20ci%-
C3%AAncias%20sociais. Acesso em: 23 fev. 2022.

142
ralizações no sistema de educação pública da Guiné-Bissau, o que con-
sequentemente provoca fracasso escolar” (DJONU, 2018).
Em Guiné-Bissau, as escolas privadas são as únicas que fun-
cionam o ano todo, desse modo, são as únicas que oferecem ensino.
Para Sonia Mari Shima Barroco, as questões que se referem ao fracasso
escolar guineense têm uma longa história, podendo-se, assim, afirmar
que, desde o período da colonização, a questão da educação sempre
fracassou (BARROCO, 2015). Para alguns autores, como Celisa
Carvalho, no que refere à educação e à saúde, o estado guineense prati-
camente não existe (CARVALHO, 2014). Ou seja, a máquina pública
não funciona, escolas, hospitais, serviços básicos para os cidadãos não
funcionam e praticamente não existem.
No que tange às escolas privadas, o problema é que maior parte
da população não tem condição de pagar as mensalidades. Começam e
não terminam o ano letivo devido à falta de pagamento. Outras escolas
funcionam sem mínimas condições necessárias para aprendizagem,
aproveitam do fracasso do Estado/governo para criar escolas privadas,
mas sem mínimas condições de funcionamento. Também, muitas dessas
escolas não são legalizadas e nem possuem edifícios adequados para
ensino. Fazem isso praticamente para ganhar dinheiro, ato frequente em
Guiné-Bissau.

Escolas de formação de professores

Assim, no período que se seguiu à independência, surgiram es-


colas de formação em diferentes regiões do país, principalmente na
capital Bissau. As escolas surgiram, primeiramente, para formar pro-
fessores para o ensino básico e secundário, exemplo da escola Tchico
Té. Segundo o seu site,53 o nome da escola é uma homenagem ao an-
tigo primeiro-ministro da Guiné-Bissau entre 1973-1978, falecido
num acidente de carro no leste do país, Francisco Mendes, com codi-
nome Tchico Té.

53 Disponível em: https://tchicote.gw/. Acesso em: 8 mar. 2022.

143
54AEscola Normal Superior Tchico Té (ENSTT) nos anos 70 era uma
instituição pública, criada em 28 de novembro de 1979, sob a desig-
nação de Destacamento de Vanguarda Tchico Té; em 1985, passou a
designar-se Escola Normal Superior Tchico Té em 2015 pelo decreto
nº Despacho nº do conselho dos ministros fundou as escolas de for-
mação dos professores a nível nacional onde foi dado nome das Escolas
Superiores de Educação (ESE). Então será chamada Unidade Tchico
Té, tendo esta mudança correspondido a uma alteração do perfil de en-
trada, da duração do curso, do diploma atribuído e do nível de ensino
de que passou a fazer parte, o ensino superior, ficando a depender, em
consequência, da Direção-geral do Ensino Superior.54

A escola de formação Tchico Té é umas das referências no ensino


no país, ou seja, foi ela que assegurou o ensino no país, apesar da falta
de investimento do governo no setor da educação. Eu estudei na escola
Tchico Té, fiz bacharelado em Língua Portuguesa entre 2010 e 2013.

Figura 4 – Logotipo e edifício da Unidade Escolar Tchico Té

Fonte: Escola Superior de Educação Tchico Té. Disponível em: https://tchicote.gw/. Acesso
em: 8 mar. 2023.

Em 1974, o país sentiu a necessidade e a urgência de formar pes-


soal na área da saúde. Criou-se a Escola Nacional de Saúde,55 estatuaria-
mente reconhecida pelo decreto-lei 62-B só em 1992, depois de muitos
anos de funcionamento e formação de técnicos. Com o tempo vão sendo

54 Percebemos que a informação está incompleta, sem número de decreto e despacho.


55 Informações disponíveis no site da Escola Nacional da Saúde da Guiné-Bissau.
Disponível em: https://ens-bissau.gw/sobre/. Acesso em: 9 dez. 2021.

144
implementados novos cursos, como farmácia, enfermagem geral, medi-
cina e outras especialidades, além dos polos criados nas regiões.
Em 1975, foi fundada a Escola de Formação de Professores
Amílcar Cabral, em Bolama, zona insular do país. Essa escola teve/tem
papel importante na formação de professores para ensino básico, pri-
meiro e segundo ciclo. Nos dias atuais, sua infraestrutura está precária
por falta de reformas, pois todas essas escolas, exceto a Escola Nacional
de Saúde, não gozam de autonomia financeira. Dependem do governo
central em termos de recursos para seu funcionamento, já que parte do
dinheiro que cobram da matrícula é repartida entre as direções das es-
colas e o Ministério da Educação Nacional.
Nos anos 80, criou-se a Escola Normal 17 de Fevereiro, também
destinada à formação de professores para ensino básico. Situada na ca-
pital, essa escola tem formado professores para atuar nas escolas pú-
blicas. Ou seja, tem os mesmos objetivos que a Escola Amílcar Cabral,
em Bolama. Assim, o governo, em parceria com outras instituições, vai
criando outras escolas, como a Escola Nacional de Administração
Pública; a Faculdade de Direito de Bissau; a Escola Agrícola de Bissorã
ADPP; a Escola Nacional da Educação Física, além das novas escolas
de formação de professores criadas nas regiões de Bafata (leste), Cacheu
(norte), Catió e Buba (sul).

Universidade pública em Guiné-Bissau


Em relação às universidades públicas, a Guiné-Bissau tem uma
só universidade pública, situada em Bissau, mas não é gratuita, os
alunos pagam mensalidades. A Universidade Amílcar Cabral foi fun-
dada em 1999, mas, ao longo da sua história, teve várias interrupções
devido a fatores já apontados neste texto, questões da instabilidade no
país e falta de investimento no sector de ensino.

As escolas e universidades privadas

As escolas privadas em Guiné-Bissau são várias, e muitas fun-


cionam sem a mínima condição. Após o conflito político-militar de
1998 (OLIVEIRA, 2020), surgiram várias escolas de iniciativa privada,

145
tanto na capital Bissau, quanto nas regiões. Algumas têm melhores edi-
fícios, contratam professores formados e têm currículos escolares
muitas vezes diferentes das escolas públicas, como são os casos das
escolas João XXIII, Escola Católica, Escola Solidariedade, Escola Por­
tuguesa, São José, Casa Emmanuel e outras. Por questões de ética, pre-
ferimos não citar nomes das escolas em péssimas condições, mas é im-
portante realçar que muitas delas funcionam sem condições e sem
edifícios próprios.
Atualmente, o país conta com algumas universidades privadas,
como a Universidade Colinas de Boé, Universidade Lusófona de
Guiné, Universidade Católica, Universidade Jean Piaget, Universidade
Binhoblo e outras, além das faculdades e centros de formações.
Muitas dessas instituições estão na fase inicial, funcionam com
muitas dificuldades em relação a recursos humanos, equipamentos de
laboratórios, bibliotecas, salas informáticas e outros materiais.

Caminhos de acesso à educação pública

A Guiné-Bissau sempre teve dificuldade no que refere a seu sis-


tema de educação, implementação dos projetos pedagógicos, reformas
e continuidade da educação no país. Como já frisamos nos parágrafos
anteriores, os fatores de instabilidade condicionam a realização de qual-
quer que seja o plano de desenvolvimento para um país. Contudo, no
artigo 49, ponto 1, da Constituição da República da Guiné-Bissau, de-
clara-se o seguinte: “Todo o cidadão tem o direito e o dever da edu-
cação” (GUINÉ-BISSAU, 2012, p. 23). Constata-se que isso se vê só
no papel, mas não funciona na prática. O Estado da Guiné-Bissau nunca
se comprometeu com a educação pública. A maior parte dos alunos que
estudam nas escolas públicas são filhos da classe mais pobre da socie-
dade, pois os filhos dos políticos, dos empresários, ou seja, das classes
médias da sociedade guineense, estudam nas escolas privadas com me-
lhores condições. O ponto 2 do mesmo artigo estabelece que “O Estado
promove gradualmente a gratuitidade e a igual possibilidade de acesso
de todos os cidadãos aos diversos graus de ensino” (GUINÉ-BISSAU,
2012, p. 23). O Estado da Guiné-Bissau anuncia leis, decretos-leis, re-

146
soluções, mas, na prática, isso não se vê. As escolas não são gratuitas,
mesmo para os níveis do 1.º ao 6.º ano. Largamente anunciada a sua
gratuidade, algumas escolas cobram um certo valor para os pais encar-
regados da educação, cobram uniformes escolares, cobram provas.
Esses fatores contrariam a constituição e negam o direito à educação à
maioria da população pobre.
De 7 a 12 anos, os alunos pagam mensalidade nas escolas pú-
blicas. Esse valor é convertido em trimestre, o aluno paga de três em
três meses. Caso contrário, é expulso da escola e perde o ano letivo.
Sem uniforme escolar, o aluno é proibido de ter acesso à sala
de aula. As apostilas são vendidas por preços elevados; muitas
vezes, alunos são expulsos da sala de aula por falta da apostila que
o professor vende. O sector de ensino na Guiné-Bissau não conta
com apoio do Estado, pois ele é o primeiro a violar as leis que ele
mesmo criou.
No ponto 3 do mesmo artigo da Constituição da Guiné-Bissau,
encontra-se o seguinte: “É garantido o direito de criação de escolas
privadas e cooperativas” (CRGB, 2012, p. 23). Na Guiné-Bissau, as
escolas privadas funcionam plenamente, diferentemente das escolas
públicas. Nessas escolas privadas e universidades, escolas de auto-
gestão, os pais contribuem com parte do dinheiro através de mensali-
dade. São elas que mantêm a educação no país.
Diante dessas constatações, pode-se dizer que o caminho de
acesso à educação em Guiné-Bissau depende de dois fatores: fatores
econômicos e fatores da estabilidade.
Em relação aos fatores econômicos está o fato de que, para ter
acesso à educação, independentemente de ser pública ou privada, é pre-
ciso ter dinheiro para pagar as mensalidades, comprar uniformes, livros
e pagar por provas, cobrança autorizada pelos professores ou pelas dire-
ções das escolas. Fatores de estabilidade se referem às condições polí-
ticas, sociais e culturais que permitem as escolas funcionarem. A Guiné,
supreendentemente, vive sob instabilidade política desde sua indepen-
dência, mas a guerra de 1998 foi que desestruturou o país até os dias de
hoje (OLIVEIRA, 2020). Nessa perspectiva, o caminho de acesso à edu-
cação é um calcanhar de Aquiles para os guineenses. A educação con-

147
tinua fora das prioridades dos sucessivos governos, de modo que o nível
de aproveitamento dos alunos é fraco nas escolas públicas.

Acesso às universidades

No início do século XXI, começaram a ser criadas universidades


privadas no país. Nos dias atuais, são várias delas, entre as quais se
destacam os centros de formações técnicas e tecnológicas, faculdades
de medicina, de direito, administração e outras áreas afins. Muitos gui-
neenses são formados no exterior, já que o país não possuía nenhuma
universidade que funcionava em plenitude e nem havia universidade
que oferecia cursos de pós-graduações. Ou seja, ainda hoje não há uni-
versidade que oferece curso para pós-graduações, desse modo, é pre-
ciso sair fora do país para cursar. Esses formados voltam ao país para
trabalhar como contratados nessas universidades. Muitos deles estu-
daram no Brasil, contudo não temos dados precisos sobre os números.
Conheço muitos colegas que estudaram na Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e fizeram pós-gra-
duações em outras universidades. Eles estão tendo papel importante na
formação de quadros para o país.
Nos dias atuais, os jovens estão sendo formados em diferentes
áreas de acordo com os interesses. Infelizmente, o Estado continua au-
sente no que se refere à regulamentação dos cursos oferecidos no país.
Cada universidade, faculdade ou centro de formação cria cursos sem
estudo do mercado e com ausência do governo em relação a isso. Isso
levou a que muitos guineenses considerem: “Ika bali pena bu paga
skola tok bu forma, bu kaba bu ka otcha tarbadju”. Ou seja, não adianta
pagar faculdade e se formar, para depois ficar em casa sem emprego ou
sem área de emprego de acordo com a formação acadêmica. Essa preo-
cupação levou à suspensão56 de quase todas as universidades, facul-
dades e centros de formação em 2015 por um governo que inspecionou

56 Informações a respeito das suspensões das universidades devido à falta de condições


disponíveis em: https://www.voaportugues.com/a/governo-guine-bissau-suspende-uni-
versidade-lusofona/2599401.html. Acesso em: 9 mar. 2022.

148
essas universidades e concluiu que muitas funcionavam e ofereciam
cursos superiores sem mínimas condições.57

Considerações finais

Quando fui convidado para trabalhar com um colega em um re-


sumo a respeito do tema “os caminhos de acesso à educação escolar e a
vida universitária na Guiné-Bissau”, senti-me desafiado, pois há pouca
bibliografia a respeito do tema. Por isso, tudo é baseado na minha expe-
riência enquanto guineense e professor. Como disse na introdução, fui
professor em Guiné-Bissau, pois quem estuda na Escola Superior da
Educação Tchico Té forma-se para ser professor/a. Então, no meu caso,
ao terminar, fui colocado numa escola pública num dos bairros perifé-
ricos da capital Bissau. Por isso, minha experiência foi importante para
preparar o resumo do minicurso. Foi isto que aconteceu: fiz minhas
análises a respeito do tema, desenvolvi e questionei a mim mesmo, ao
mesmo tempo que os participantes também questionavam a respeito
das coisas que apresentei ao longo dos dias de minicurso. Voltarei a
discutir esse tema com mais propriedade, pois, depois da minha apre-
sentação, pude perceber que temos muita coisa para discutir no que re-
fere à educação guineense.
O minicurso me trouxe novas reflexões a partir das falas dos par-
ticipantes que, de modo desafiador, me colocavam na posição de querer
ouvir mais deles e querer trazer mais para eles. É a partir disso que me
senti motivado a dedicar os próximos tempos à procura de referências,
buscar refletir sobre o tema da educação em Guiné-Bissau.
Portanto, o 1.º Simpósio Nós na Universidade: Povos Tradicionais,
Educação e Políticas Públicas, acordou em mim o sentimento de querer
aprender mais a respeito da educação na Guiné-Bissau e atualizar meus
dados no que se refere à forma como a educação é conduzida no país.

57 Suspensão de cursos e braço de ferro entre essas escolas e o governo. Disponível em:
https://www.dw.com/pt-002/suspens%C3%A3o-de-cursos-em-bissau-sem-fim-%-
C3%A0-vista/a-18268174. Acesso em: 9 mar. 2022.

149
Referências

BARROCO, S. S. Fracasso escolar na Guiné-Bissau: contribuições


da educação e da psicologia brasileira. Florianópolis: UFSC, 2015.
CARVALHO, C. dos S. P. de. Guiné-Bissau: a instabilidade como
regra. 2014. Dissertação (Mestrado em Ciências Políticas) –
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Departamento
de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais, Lisboa, 2014.
GUINÉ-BISSAU. Constituição da República da Guiné-Bissau.
Bissau: INACEP, 2012.
DJONU, L. M. Diversidade cultural: ensino e convívio na Unilab.
2018. 28 f. Monografia (Graduação em Humanidades (BHU) –
Instituto de Humanidades e Letras (IH), Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Redenção, 2018.
INDJALA, S. Sistema educativo e formação de professores na Guiné-
Bissau. In: CONGRESSO NACIONAL DE FORMAÇÃO DE
PROFESSORES/ XIV CONGRESSO ESTADUAL PAULISTA
SOBRE A FORMAÇÃO DE EDUCADORES, 4., 2018, Águas de
Lindóia. Anais [...]. São Paulo: Águas de Lindoia, 2018. 101 p.
Disponível em: https://bityli.com/zRPWJ. Acesso em: 15 mar 2022.
MONTEIRO, A. O. C. A importância dos partidos políticos na
construção do Estado nação na África. In: MONTEIRO, A. O. C. A.
Guiné-Bissau: da luta armada à construção do estado nacional:
conexões entre o discurso de unidade nacional e diversidade étnica
(1959-1994). 2013. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) –
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. p. 58-74.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO NACIONAL DA GUINÉ-BISSAU.
Plano Nacional de Ação Educação para Todos. Bissau, fev. 2003.
OLIVEIRA, A V. A infância perdida: conflito político militar de 7 de
junho de 1998 na Guiné-Bissau. Revista África Africanidades, n. 34,
maio, 2020.

150
PARTIDO AFRICANO PARA A INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ E
CABO VERDE. História da Guiné e ilhas de Cabo Verde. Porto:
afrontamento, 1974.
SEMEDO, R. J. da C. G. PAIGC: a fase de monopartidarismo na
Guiné-Bissau (1974-1990). Dissertação (Mestrado em Ciência
Política) – Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, 2009.

151
DA ÁFRICA PARA O BRASIL
Contribuições da divulgação do
cinema africano na luta antirracista
(2007-2022)

Franck Ribard

A África, berço da humanidade, apresenta-se, de forma mais


recente, como um continente de onde partiram, a partir do sec. XVI –
forçados pelos mecanismos infames do tráfico escravagista atlântico,
base do processo europeu de colonização americana –, contingentes
enormes de populações africanas escravizadas que formaram as ma-
trizes populacionais dominantes nos processos de formação social, par-
ticularmente do Brasil, onde a população afrodescendente, preta e
parda, constitui-se, desde 2010, segundo dados do IBGE baseados na
autodefinição, como maioria neste país.
Esse preâmbulo genérico, que configura internacionalmente o
Brasil como histórica, demográfica e culturalmente negro, entra em
choque com outro elemento de realidade que pode parecer surpreen-
dente: de forma geral e por razões diversas, no Brasil se sabe muito
pouco sobre o continente africano, a sua geografia, a diversidade dos
seus povos, nações, línguas e culturas, a sua história e geopolítica. Essa
condição, que pode ser associada à abrangência do preconceito e da
preeminência de imagens negativas sobre o “continente escuro”, como
era chamado no século XIX (HOBSBAWN, 1982, p. 65), articula-se e
desdobra-se com o próprio racismo, marco em torno do qual se desen-
volveu a nação brasileira e que estrutura, em grande parte – mas, como
dizia James Baldwin (2018, p. 27), “a maior parte dos homens” não
significa todos os homens –, o convívio e a hierarquização social pre-
sente no país.
Nesse panorama geral brasileiro, onde paira um imaginário so-
cial dominante – sobretudo nas classes sociais privilegiadas e na elite,
valorizando as referências e os modelos oriundos das sociedades oci-
dentais e brancas – característico de um pensamento colonial,58 não há
de estranhar o fato de que um movimento artístico de repercussão inter-
nacional, tal como a produção dinâmica e original do cinema africano,
tenha passado quase despercebida.
O presente trabalho pretende analisar as implicações e as condi-
ções da recepção do cinema africano no Brasil, levando em conta o
contexto nacional, mas sobretudo à luz dos 11 anos de experiência da
Mostra de Cinema Africano (UFC). Partindo de uma leitura das produ-
ções contemporâneas africanas, várias delas adaptações de romances,
busca-se problematizar as dificuldades e os desafios, mas também a
natureza dos elementos em jogo na apreensão e na recepção desse ci-
nema pelo público brasileiro em eventos específicos, sempre fora da
mainstream, nestes tempos recentes de retrocesso político e de demoni-
zação da herança e da cultura negro-africana no panorama da expressão
política. Minha proposta, enquanto docente branco de origem europeia,
pesquisador do cinema africano e curador da mostra referenciada, visa
a contribuir à reflexão apresentada no 1.º Simpósio Nós na Universidade:
Povos Tradicionais, Educação e Políticas Públicas,59 realizado de forma
remota de 8 a 10 de dezembro de 2021 (PPGHistória/Grupo de Estudos
Caldeirão/Nudoc/UFC), pensando, em particular, a contribuição do ci-
nema africano na perspectiva das políticas de ações afirmativas.

58 Entre outros exemplos, ver KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo


quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019.
59 https://www.even3.com.br/nosnauniversidade1/.

153
Nesse sentido, o primeiro passo, antes de abordar a questão da
recepção desse cinema no Brasil, reside na necessidade de pensar o que
chamamos de “cinema africano”. Em seguida, tentarei compreender os
termos que definem a experiência da sua recepção no Brasil através da
atuação dos festivais, pensando a natureza desses espaços de “recepção
transnacional e transcultural” (BAMBA, 2013) do cinema africano, lu-
gares de leituras e de interpretações das obras cinematográficas fora dos
seus contextos socioculturais de produção de origem. Enfim, poderemos
refletir sobre o sentido/legitimidade/interesse da existência de tal Mostra
de Cinema Africano no Brasil, em particular apreendendo os objetivos
iniciais que norteiam a organização desses eventos em relação à questão
mais geral das políticas de ações afirmativas e focando as experiências
específicas da nossa Mostra de Cinema Africano de Fortaleza.

O que é o cinema africano?

Em primeiro lugar, podemos observar que a categoria “cinema


africano” se refere ao conjunto das produções cinematográficas de dire-
tores africanos (entre os quais, muitos oriundos de países como o Egito,
Argélia, Mali, África do Sul...). O dicionário dos cineastas africanos de
longas-metragens (ARMES, 2008, p. 21), já um pouco antigo, reper-
toria 5.400 longas-metragens realizados por uma média de 1.250 dire-
tores distribuídos em 37 países. Ao longo de mais de 60 anos de exis-
tência, que configuram várias gerações de diretores e de obras, o cinema
africano revelou, à imagem do continente, a sua extrema diversidade, a
variabilidade constante, em termo de linguagem cinematográfica, de
línguas, de problemáticas abordadas, de produção e de montagem dos
filmes. A multiplicidade de trajetórias e de processos de formação dos
diretores, em particular, explica a existência de muitas maneiras de
filmar e de pensar o cinema, as sensibilidades extremamente diferentes
que podem ser percebidas nas obras cinematográficas africanas.
Nesse sentido, a categoria “cinema africano” só pode ser perce-
bida como uma construção, uma categoria generalizante e artificial – tal
como a categoria “cinema europeu” –, utilizada por convenção, que
visaria a designar o que seria melhor entender como “cinemas afri-

154
canos”. Essa categoria redutora, no entanto, serve para ilustrar a des-
crição rápida de tendências gerais, homogeneizadoras mas tendo como
base apoiar nosso raciocínio.
Dessa forma, e já adentrando uma qualificação mais fina da
maioria dos filmes africanos, apesar de genérica também, mesmo se
existem tradições cinematográficas nacionais, percebe-se que eles re-
velam uma dimensão transnacional associada, entre outros fatores, à
globalização, aos fluxos do capital global e ao fato de os filmes afri-
canos, muitas vezes, serem coproduções europeias e destinados, pela
carência de salas de cinema na África, em prioridade, a um público, a
festivais, europeus e ocidentais. Este último elemento, em particular,
encontra uma importância certa do ponto de vista das linguagens e da
necessidade de os filmes serem vistos e entendidos por públicos que
não necessariamente possuam os códigos culturais originais.
Na mesma linha, é relevante sublinhar que a maioria dos dire-
tores africanos apresenta currículos de formação e trajetórias artísticas
genuínas, marcadas pelos necessários deslocamentos geográficos e cul-
turais ligados à aprendizagem e aos processos de sobrevida na pro-
fissão. Por isso, o cinema africano pode ser rotulado de “cinema de
autor”, realizado por diretores, por vezes migrantes e em situação de
diáspora, que reivindicam alguma forma de particularismo, realizando
obras às vezes autobiográficas60 ou adaptações de romances61 ou
mesmo os dois.62
Longe de certas obras do cinema ocidental que se pretendem e se
apresentam como universais e sem sotaques, o cinema africano é mar-
cado, “com sotaque” (NAFICY, 2010), conforme aos diretores, atores,
lugares e culturas abordadas, mas também às preocupações e problemá-
ticas sensíveis e particulares que abordam o convívio social nas dife-
rentes nações, regiões e sub-regiões africanas.

60 O “Ká ‘nossa casa’”, de Souleymane Cissé (Mali, 2017), sobretudo nos documentários:
“Contos cruéis de Guerra”, de Ibea Atondi, Karim Miské (Congo/Mauritânia, 2002)
61 Ousmane Sembene que adaptava os seus próprios textos: “A Negra de...” (Senegal,
1966); Joao Ribeiro, “O último voo do flamingo” (Moçambique, 2010).
62 “Sambizanga”, de Sarah Maldoror (Angola/República do Congo, 1972).

155
Por todos esses elementos, as obras cinematográficas africanas
são “locais”, ancoradas nas suas realidades próximas, buscando sempre
levantar questões e provocar reflexões sobre problemas reais, buscando
abrir, às vezes na forma de um cinema engajado, as consciências. Ao
mesmo tempo, são globais por seus mecanismos de produção e pela
necessidade que elas têm de poder viajar e ser apreendidas fora do seu
contexto, permitindo a públicos, em particular ocidentais, se apropriar
das mensagens e dos discursos produzidos.
Essa tendência se confirma pelo reconhecimento, conquistado a
partir das primeiras gerações de cineastas africanos e sobretudo da
década de 1970, de um cinema que se estruturou, no continente e fora
dele, através da constituição de uma rede mundial de festivais de ci-
nema africano, da distribuição em salas de cinemas “alternativos” e,
posteriormente, pelas difusões dos filmes em canais culturais de TV.
Mesmo assim: “O destino econômico de um filme africano perma-
nece a maior parte do tempo imprevisível. Nos países onde as televi-
sões não se implicam no processo de produção, os festivais viram,
logicamente, os atores incontornáveis para a difusão das obras”
(LELIÈVRE, 2011, p. 126).63
Fora do continente africano, o público sensível ao cinema afri-
cano, aquele interessado e mobilizado no altermundialismo, encontra
nos festivais especializados presentes da Polônia (Festival AfryKamera,
2006) ao México (Festival Africala, 2007), e na maior parte dos países
ocidentais (América e Europa),64 espaços de sociabilidade, de debate,

63 "Le destin économique d’un film africain reste la plus part du temps imprévisible. Dans
les pays où les télévisions ne s’impliquent pas dans le processus de production, les
festivals deviennent très logiquement des acteurs incontournables pour la diffusion des
oeuvres" (LELIEVRE, 2011, p. 1).
64 Entre os principais festivais que se especializaram no cinema africano fora do conti-
nente: “le festival international du film d’Amiens (1980), le Festival di Cinema Africano
di Verona (1980), le festival Vues d’Afrique à Montréal (1984), les Rencontres médias
Nord-Sud en Suisse et dans le domaine de la télévision (1985), le Black International
Cinema à Berlin et aux États-Unis (1986), le festival Africa in the Picture à Amsterdam
(1987), le festival Cinemafrica à Zurich (1987), les Rencontres cinéma de Manosque
(1987) ou l’International Film Festival of Rotterdam avec le fonds Hubert Bals mis en
place en 1988... le New York African Film Festival (1990), le festival Black Movie à
Genève (1990), l’African, Asian and Latin American Film Festival de Milan (1991), le

156
onde podem desenvolver “leituras” e interpretações privilegiadas das
obras, às vezes subsidiadas pelo diálogo com os diretores, produzindo
significados e sentidos, frutos das experiências desses encontros, que
atestam da mundialização do cinema africano.
Essa dinâmica no mundo ocidental articula-se e alimenta-se da
riqueza proposta pelos festivais do próprio continente africano,65 cujo
número e diversidade das propostas cresceram depois da emergência,
já antiga, e da institucionalização dos grandes eventos de referência
mundial, que são: Journées Cinématographiques de Carthage (1966)66
e Festival Panafricain du Cinéma et de Télévision de Ouagadougou –
FESPACO (1969).67 Este último, que em 2019, na sua 26.ª edição,
comemorou 50 anos de festival, encarna um centro nevrálgico da pu-
blicização do cinema africano e do encontro entre todos os profissio-
nais, ocidentais e africanos, envolvidos na área. A observação da lista
dos filmes premiados em Ouagadougou (Burkina Faso) e dos dire-
tores que receberam o Etalon de Ouro de Yennenga68 leva à cons-

festival Film fra Sør à Oslo (1991), les Rencontres cinéma de Gindou (1991), le festival
Jenseits von Europa à Cologne (1992), le festival Cinémas d’Afrique à Angers (1992), le
Pan African Film Festival à Los Angeles (1992), l’African Diaspora Film Festival à New
York (1993), l’Afrika Filmfestival de Leuven (1996), ou le CinemAfrica Film Festival en
Suède (1998)... le festival des cinémas d’Afrique du Pays d’Apt (2003), le festival de cinéma
africain de Tarifa en Espagne (2004), l’Images of Black Women Film Festival à Londres
(2005), le festival Afrique taille XL à Bruxelles (2005)" (LELIEVRE, 2011, p. 126-128).
65 Os principais festivais de cinema na África: “le Cairo International Film Festival (1976), le
festival de cinema africano de Khouribga (1977) ou le Durban International Film Festival
(1979) [...] les Rencontres cinématographiques de Dakar (de 1990 à 1997, puis après 2002),
les Écrans noirs au Cameroun (1995), le Zanzibar International Film Festival (1997), le
Zimbabwe International Film Festival (1998), le festival Encounters en Afrique du Sud (1999),
le festival du film d’Amazigh en Algérie (1999), ou le Festival du film de quartier à Dakar
(1999) [...] le Tricontinental Film Festival (2003), l’Africa on Screen Film Festival (2006), le
Cape Winelands Film Festival (2008), tous les trois en África do Sul, le festival international
du film de Dakar (2008), ou les Journées cinématographiques d’Alger (2009) [...] le festival
Cinéma et migrations d’Agadir (2003), le festival Ciné droit libre em Ouagadougou (2005),
ou encore l’Environmental Film Festival of Accra au Ghana (2005) [...] les Rencontres du film
court à Madagascar (2006), le Bafundi Film and Television Festival à Johannesburg (2007),
les Images That Matter à Addis-Abeba (2010), le Afrikabok à Dakar (2009)” (LELIÈVRE, 2011,
p. 126-128); o Festival of Films Africa de Accra (Ghana, 2012).
66 https://www.jcctunisie.org/
67 https://fespaco.bf/
68 Garanhão de Ouro de Yennenga (princesa muito popular na tradição oral dos mossis,
uma das etnias principais do Burkina Faso).

157
ciência do papel crucial desse evento como trampolim para artistas
hoje consagrados e obras que pertencem ao patrimônio do cinema
mundial, certas delas tendo, além do Fespaco, conseguido prêmios
prestigiosos do cinema internacional.69
Como tentamos mostrar, o cinema africano, apesar de dificul-
dades crônicas em termo de produção, de rentabilização e de difusão das
obras, encontrou um lugar especial no panorama cinematográfico mun-
dial e, por suas qualidades de grande humanidade, ganhou uma atenção
e um interesse cada vez mais fortes por parte do público ocidental. Resta
que, no Brasil, apesar da sua ligação histórica e orgânica com o conti-
nente africano, este cinema não teve vez e até hoje é pouquíssimo apre-
sentado ao público, como podemos observar em seguida.

Historicizando o cinema africano no Brasil

Muito pouco presente nas redes tradicionais de distribuição co-


mercial, o cinema africano quase que não foi projetado nos canais de
TVs comerciais e nas salas de cinema brasileiros,70 e, quando o conti-
nente era retratado, era sobretudo através de filmes estadunidenses ou
europeus sobre a África.71 Esse panorama geral mudou progressiva-
mente a partir da promulgação da Lei n.º 10.639, de 2003, e da conse-
quente dinâmica de abertura em relação à “história e cultura afro-brasi-
leira e africana” (DCN, 2004). Esse período correspondeu também à
generalização do suporte midiático digital (DVD) e à crescente me-
lhoria do acesso aos filmes via internet (sites especializados, redes de

69 “‘Heremanoko’. Esperando a felicidade”, de Abderrahmane Sissako (Mauritânia), que


ganhou o prêmio “un certain regard” no Festival de Cannes de 2002 e o Garanhão
de Ouro de Yennenga em 2003; “Um homem que grita”, de Mahamat Haroun Saleh
(Tchad), que ganhou o Prêmio do Jury no Festival de Cannes em 2010 e o Garanhão de
Prata de Yennenga em 2011; “Tilaï”, de Idrissa Ouédraogo (Burkina Faso), que ganhou
o Grande Prêmio no Festival de Cannes de 1990 e o Garanhão de Ouro de Yennenga e
o Grande Prêmio do Fespaco em 1991.
70 Alguma exceção: “Timbuktu” (2014), de Abderrahmane Sissako.
71 “Out of Africa” (1985), de Sydney Pollack, “Gorilas na Bruma” (1988), de Michael
Apted, “Falcão negro em perigo” (2001), de Ridley Scott, “Beast of no nation” (2015),
de Cary Joji Fukunaga....

158
compartilhamento de arquivos, contatos com produtoras, distribuidoras,
diretores, YouTube...), que representaram fatores importantes de acesso
à informação, permitindo a emergência de espaços voltados para a te-
mática dos cinemas africanos.
Se, sobretudo mais recentemente, alguns canais de TV culturais
tentaram abordar esse cinema,72 encontramos no Brasil tendências já
iniciadas no passado e presenciadas no restante do mundo ocidental
relativas à preeminência dos festivais e das mostras de cinema, organi-
zados por ONGs, coletivos, associações culturais ou universitárias ou
mesmo instituições, como vetores principais de projeção e de mobili-
zação em torno da divulgação e da apreensão coletiva das obras cine-
matográficas africanas.

Os festivais e mostras de cinema africano no Brasil

Podem ser observadas várias experiências, festivais consolidados


ou microespaços, nas diferentes regiões do país, que, a partir dos anos
2000, se interessaram pelo cinema africano, configurando uma recepção
das obras, buscando desvendar esse cinema original, explorando possi-
bilidades interpretativas, procurando e negociando sentidos relacio-
nados aos filmes e a uma certa ideia da África. Sem pretender ser exaus-
tivo, podem ser citados: o Festival de Cinema Panafricano (Salvador);73
Espelho Atlântico: Mostra de Cinema da África e da Diáspora (Rio de
Janeiro);74 Mostra Malembe-Malembe (Florianópolis e Manaus);
Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África, Caribe

72 Em formato, muitas vezes, de ciclos deste cinema. Ver, entres outros: http://tvbrasil.ebc.
com.br/noticia/2015-07-31-ciclo-de-cinema-africano-entra-na-programacao-da-tv-bra-
sil-a-partir-desta-segunda.
73 Trabalhando com a ideia de formação, mas parou em 2006 por questões financeiras.
74 Aconteceram três edições sob a coordenação da cineasta negra Lilian Solá Santiago.

159
(Rio de Janeiro);75 Mostra de Cinema Africano (Fortaleza);76 mais re-
centemente, Mostra de Cinema Africano – Espelhos d’África
(Salvador);77 e Mostra de Cinemas Africanos (Itinerante).78 Além disso,
encontramos vários mostras incluídas em eventos universitários como
as Semanas (ou Dias) da África.79
Buscando características comuns a esses eventos, para analisar a
natureza das experiências propostas, aparecem algumas tendências que
precisamos abordar. Por exemplo, a pouca durabilidade observada, con-
figurando eventos que, na maior parte das vezes, conseguem se manter
apenas algumas edições,80 o que informa sobre as dificuldades encon-
tradas; o difícil acesso a filmes que, por serem, em geral, oriundos de
universos não lusófonos e não terem sidos distribuídos no Brasil, pre-
cisam ser legendados em português; a dificuldade de encontrar finan-
ciamentos perenes capazes de estabilizar os eventos; o problema de
conseguir e fidelizar um público que, em relação ao cinema africano,
em regra geral, mesmo manifestando interesse e simpatia, sente dificul-
dade em se deslocar e prestigiar de forma presencial os eventos. Esses
são alguns dos problemas encontrados que ajudam a compreender a
curta duração de vida, na maioria dos casos, dos festivais e mostras de
cinema africano no Brasil.

75 Criado pelo grande ator e diretor Zózimo Bulbul, falecido em 2013, e, desde 2014, com
curadoria de Joel Zito Araújo. Esse evento, um dos mais emblemáticos no país, acon-
teceu em outubro 2019, sendo a 12.ª edição (https://www.afrocariocadecinema.com/
programacao?fbclid=IwAR2OmpcmB4Tq5abLzhPcaSNoUvz4VwFK9krL92FCsbh1lEx-
jm0LH7DmaYac). Está associado ao Centro Afro Carioca de Cinema (http://afrocarioca-
decinema.org.br/), que propõe atividades ao longo do ano.
76 Na sua 12.ª edição em 2020.
77 http://mostraespelhos.com/#
78 Mostra Itinerante – Salvador, em novembro de 2018, passou, em seguida, por Porto
Alegre, Aracaju e São Paulo (SESC São Paulo. Julho de 2019). Contando com a curadoria
de Ana Camila Esteves e Beatriz Leal Riesco, volta-se para “filmes recentes produzidos
na África nos últimos anos” (https://www.facebook.com/mostradecinemasafricanos/).
79 https://www.portal.ufpa.br/index.php/ultimas-noticias2/10174-semana-de-cinema-
-africano-comemora-o-dia-da-africa; http://www.ufrgs.br/deds/noticias/identidades-
-ancestrais-no-cinema-africano; https://www.uemasul.edu.br/wordpress/2018/11/23/
uemasul-realiza-3a-semana-do-cinema-africano/.
80 O que não é o caso do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe
(Rio de Janeiro).

160
Observa-se que, pelo fato de os filmes africanos, mesmo em
geral destinados a um público ocidental, apresentarem códigos cultu-
rais, de narrativa e de linguagem cinematográfica específicos, o pú-
blico é muitas vezes composto de cinéfilos, de pessoas interessadas
nas temáticas afro-brasileiras e que já têm uma certa experiência com
o cinema “não hollywoodiano”. Certamente por essa razão, outra ten-
dência observada reside no fato de os eventos caminharem em direção
a formatos do tipo “festivais de filmes africanos e diaspóricos” ou “ci-
nemas negros”.81 Nesses numerosos eventos, os filmes africanos são
apresentados como partes de um grande conjunto, o cinema negro, e
aparecem nas programações ao lado de outras produções, curtas, lon-
gas-metragens e documentários voltados para a temática ampla da ne-
gritude e da cultura afro. Esse movimento é encontrado, por exem-
plo,82 na magnífica MIMB – Mostra Itinerante de Cinemas Negros
Mahomed Bamba (Salvador) –, que trabalha fundamentalmente com
curtas e médias-metragens brasileiros afrocentrados e com algumas
obras africanas, projetados em vários bairros da cidade, com oficinas,
shows, masterclasses, premiação dos melhores filmes e atividades re-
gulares durante o ano todo. Com o objetivo de “ampliar as janelas de
reprodução dos conteúdos nacionais e internacionais produzidos por
realizadores negros”,83 essa mostra dinâmica nasceu inspirada no tra-
balho pioneiro do prof. Mahomed Bamba (Facom-UFBA)84 e leva o
nome dele como forma de homenagem. Abordando temas como sus-
tentabilidade, gênero, juventude, trabalha, como outras mostras do
tipo, a partir de premissas que podem parecer como pan-africanistas e
baseadas num recorte que seria o mundo negro. A justaposição de
obras africanas e brasileiras, de certa forma, postula uma confluência e
uma homologia entre os universos brasileiros e africanos, diminuindo
as diferenças em prol da emergência de uma categoria, o “cinema

81 Seguindo a lógica do world cinema.


82 Pode ser citado também, entre vários outros, o Encontro de Cinema Negro Zózimo
Bulbul – Brasil, África, Caribe e Outras Diásporas (Rio de Janeiro).
83 https://www.facebook.com/events/455973761799106/
84 Falecido em 2015 (ver o belo site de homenagem a ele e à sua obra: http://mahomed-
bamba.com/), que inspira também parte deste trabalho.

161
negro”, pensada como suscetível de reunir as produções cinematográ-
ficas africanas e da diáspora. Mesmo assim, não podemos deixar de
citar a atuação de novos pesquisadores que se concentram na divul-
gação e na análise do cinema africano contemporâneo. Em parceria
com o Sesc, as curadorias de Ana Camila Esteves e Beatriz Leal
Riesco, desde 2018, seguindo no período da pandemia, dão lugar a
diversas atividades (Mostra de Cinemas Africanos, cineclube Ciné
África, cursos sobre cinema africano etc.), que trazem para o público
brasileiro “filmes de curta e de longa-metragem das cinematografias
africanas contemporâneas, muitos inéditos no Brasil”.85

Por que o cinema africano no Brasil?

Indubitavelmente, o cinema africano, no meio das referências es-


tereotipadas que, na mídia generalista e na opinião pública brasileiras,86
continuam a pairar sobre o continente, constitui-se enquanto uma ver-
dadeira janela aberta sobre os povos, sociedades, nações, línguas, pai-
sagens, culturas... africanos. Permite, na sua multiplicidade acima des-
crita, conexões diretas, portas de entradas de universos que, se objetos
de pesquisas, de livros e de artigos universitárias sérios, muitas vezes
traduzidos para o português, carecem de referências imagéticas “verda-
deiras”, ancoradas nas realidades e experiências vividas e não nas re-
presentações eurocentradas, amplamente colonizadas que povoam a
mídia – em particular a TV – brasileira.87 Por isso, envolve o espectador
em tramas e linguagens que apresentam, pelo que nos interessa aqui,
uma humanidade, certo diferente, mas que se contrapõe às imagens fan-
tasiadas dos africanos que compõem o imaginário social dominante.
Nesse sentido, o reconhecimento do africano como um “outro-mesmo”
constitui uma (re)descoberta que reveste implicações diversas para o
espectador. Dentro dessas, uma abertura para reconsiderar o valor e a

85 https://mostradecinemasafricanos.com/sobre/
86 Rompendo silêncio....
87 A distribuição cinematográfica, por sua vez, como já evocado, não deu espaço ao ci-
nema africano no Brasil.

162
abrangência dos mundos negros, da negritude e, por via de conse-
quência, da afrodescendência, primeiros passos em direção a uma visão
antirracista da sociedade.
Os filmes africanos, então, enquanto narrativas, são estruturados
em torno de códigos culturais e linguísticos de difícil acesso, sobretudo
na ausência de referências sobre os contextos e universos envolvendo
cada obra, podendo complicar a compreensão e o processo de subjeti-
vação da experiência fílmica. Esse elemento configura forte legitimi-
dade ao formato de apresentação dos filmes africanos no âmbito dos
festivais, nos quais existe uma mediação fundamental (curadoria temá-
tica, catálogos de apresentação, debatedores especializados, debates
pós-filmes), garantindo um acompanhamento e um diálogo profícuos
na perspectiva da apropriação dos filmes e da produção de sentidos em
torno deles. Assim, para Bamba (2016, p. 80):

Ao criarem um quadro comunicativo que caracterize o festival, os or-


ganizadores e os espectadores se engajam numa experiência estética e
cinematográfica em que eles atuam como actantes/protagonistas de um
mesmo processo de negociação dos efeitos e dos sentidos, da memória
diaspórica e dos assuntos de identidades e de cultura veiculadas pelas
narrativas fílmicas.

Adendo

Saindo, aos poucos, da fase de pandemia, retornando para a uni-


versidade e às atividades de aulas e de reuniões do grupo de pesquisa
Caldeirão: Confluências Anticoloniais (História/UFC), vislumbramos a
possibilidade de dar continuidade à nossa atividade extensionista intitu-
lada Mostra de Cinema Africano (UFC), na realização presencial da sua
12.ª edição, que não pôde acontecer, como inicialmente previsto, no 1.º
Simpósio Nós na Universidade: Povos Tradicionais, Educação e
Políticas Públicas”,88 realizado de forma remota de 8 a 10/12/2021
(PPGHistória/Grupo de Estudos Caldeirão/Nudoc/UFC). Objetivando
propor à comunidade acadêmica e à sociedade em geral, numa perspec-

88 https://www.even3.com.br/nosnauniversidade1/

163
tiva educacional antirracista, espaços de encontros e de interação em
torno dos cinemas africanos (filmes – de diretores africanos – de ficção
e documentários, longas, médias e curtas, antigos e mais recentes),
apostamos que será um momento notável, fiel aos anseios de educação
anticolonial do grupo Caldeirão.

Referências

ARMES, R. Dictionnaire des cineastes africains de long metrage.


Paris: Khartala, 2008.
BAMBA, M. Os espaços de recepção transnacional dos filmes:
propostas para uma abordagem semiopragmática. Crítica Cultural
(Critic), Palhoça, SC, v. 8, n. 2, p. 219-237, jul./dez. 2013.
BAMBA, M. A recepção do cinema africano no Brasil: os micro-
espaços de renegociação dos sentidos dos filmes africanos. Revista da
Semana da África da UFRGS: imaginações africanas: literatura, música
e cinema. Porto Alegre, v. 3 n. 1, p. 72-81, maio 2016.
BALDWIN, J. La prochaine fois, le feu. Paris: Folio Gallimard, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2004.
HOBSBAWN, E. J. A era do capital (1848-1875). Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1982.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo
quotidiano. Lisboa: Orfeu Negro, 2019.
LELIÈVRE, S. Les festivals, acteurs incontournables de la diffusion
du cinéma africain. In: Afrique contemporaine. De Boeck Supérieur.
n. 238, 2011-2012. p. 126-128.
NAFICY, H. An accented cinema: exilic and diasporic filmmaking.
New Jersey: Princeton University Press, 2001.

164
UNIVERSIDADES, AÇÕES AFIRMATIVAS E
DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS

Elisângela Oliveira de Santana


Leandro Santos Bulhões de Jesus

A implementação dos cursos superiores no Brasil está histori-


camente vinculada a uma perspectiva epistêmica ocidental, de raciona-
lidade iluminista e cartesiana, por isso tem reproduzido um modelo
epistemológico monocultural, neocolonial e eurocêntrico, assentado
em hierarquias raciais, sociais, regionais e de classe, reverberado na
produção de currículos acadêmicos direcionados para a formação inte-
lectual das classes dirigentes.
A instituição universidade fez parte de uma engenharia social
criada por pessoas preocupadas em defender e legitimar seus projetos
de sociedade baseados em ideias de supremacias de raça e de civili-
zação. Foram os povos brancos, beneficiários do regime colonial e do
escravismo, os pioneiros na implementação desses espaços, com de-
bates registrados desde a Assembleia Constituinte do Império, em
1823 (CHACON, 1974). Na mesma época, consolidavam-se na
Alemanha e na França modelos distintos de Ensino Superior, que de-
pois tiveram grande influência no Brasil, tanto sobre a concepção
quanto na estrutura:
O padrão francês napoleônico influenciou as universidades tradi-
cionais da América Espanhola e inspirou a formação tardia das pri-
meiras faculdades profissionais no Brasil, no século XIX. A universi-
dade propriamente dita, no Brasil, se formou na primeira metade do
século XX, sob influência dos modelos francês e alemão, como foi o
caso da Universidade do Rio de Janeiro (URJ), criada em 1920 e da
Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934, embora antes ti-
vessem sido criadas universidades privadas efêmeras, tais como a de
Manaus, surgida em 1909 e extinta em 1926, a de São Paulo, originada
em 1911 e extinta em 1917 e a do Paraná, criada em 1912 e extinta em
1915 (PAULA, 2009, p. 72).

Enquanto os povos brancos portugueses e seus descendentes en-


contravam caminhos de instalação das suas escolas e universidades
olhando para seus ancestrais europeus – reais ou desejados –,89 os povos
negros, indígenas e quilombolas mobilizavam seus conhecimentos para
sobreviver aos horrores do escravismo, desterro, ausência de direitos
básicos e naturalização das violências e das vulnerabilidades dos seus
corpos. Mas também fizeram uso de complexas tecnologias de cultivo,
mineração, proteção, cura e subversões, criando e ampliando repertórios
de experiências coletivas em festas, terreiros, aldeias, quilombos e de-
pois nas favelas. Muito antes de serem levantados os primeiros muros
das universidades por trabalhadores da construção civil no pós-abolição,
portanto, já havia referências sofisticadas de criação, de salvaguarda e de
transmissão de conhecimentos interdisciplinares em espaços não for-
mais, como também são os terreiros de candomblés, cujas ações per-
sistem até hoje. No que se refere especialmente à história da educação e
escolarização dos povos negros e indígenas, Cruz explica que:

89 O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2008, 231-2) explica que, na geo­
política europeia, o seu povo teve uma série de dificuldades de se perceber enquanto
pertencente àquela comunidade, em complexos movimentos de estranhamentos e de
distanciamentos. Em meio ao imperialismo francês e inglês, os portugueses viviam
numa condição semiperiférica em relação aos seus mais próximos. Esse complexo de
inferioridade certamente agia em diferentes escalas quando pensamos nos brancos nas-
cidos na colônia com desejos de supremacia e de inclusão no panteão da civilização
autoproclamada superior.

166
[...] têm sido esquecidos os temas e as fontes históricas que poderiam
nos ensinar sobre as experiências educativas, escolares ou não, dos
indígenas e dos afro-brasileiros. O estudo, por exemplo, da conquista
da alfabetização por esse grupo; dos detalhes sobre a exclusão desses
setores das instituições escolares oficiais; dos mecanismos criados
para alcançar a escolarização oficial; da educação nos quilombos; da
criação de escolas alternativas; da emergência de uma classe média
negra escolarizada no Brasil; ou das vivências escolares nas primeiras
escolas oficiais que aceitaram negros são temas que, além de terem
sido desconsiderados nos relatos da história oficial da educação, estão
sujeitos ao desaparecimento (CRUZ, 2005, p. 22-3).

A experiência colonial-escravagista de quase quatrocentos anos


pela qual o Brasil passou, somada aos projetos republicanos de cida-
dania elaborados de forma eficiente em garantir a manutenção dos pri-
vilégios de alguns e não da cidadania plena, deixou marcas persistentes
em nosso presente, de modo que aos corpos negros e indígenas estão
associadas ideias de passividade, incompetência, violência, tutela e de
negação de suas capacidades de autogestão e de exercício de suas sobe-
ranias (JESUS; SAMPAIO, 2017). Vejamos que:

Especificamente, ao pensarmos nos elementos advindos do conti-


nente africano, tendemos a imaginar a força de trabalho gerada pelo
processo de escravização, como se apenas esta fosse a contribuição de
africanas e africanos a nosso país. Não percebemos que as pessoas do
velho continente negro traziam, ao modo de especificidades próprias,
suas maneiras de conceber o mundo, seus valores, crenças, saberes e
práticas que as caracterizavam exatamente como pertencentes a povos,
com características particulares que as posicionam singularmente
como sujeitos de direitos (mesmo quando estes lhes foram negados)
(NASCIMENTO; BOTELHO, 2020, p. 260).

Na história da educação formal no Brasil, vários marcadores de


exclusão fizeram parte da sua gestão, porém com transformações condi-
cionadas aos interesses econômicos e elitistas, bem como aos tensiona-
mentos gerados pelos movimentos sociais. Nos primórdios do século
XX, em consequência das reivindicações sociais e da necessidade de
formar mão de obra para atender às demandas do mercado capitalista e da
incipiente industrialização brasileira, foi permitido ao povo o acesso à

167
educação, de caráter instrumental, voltada exclusivamente para o desen-
volvimento profissional de funções (BOTTONI; SARDANO; COSTA
FILHO, 2013). Desse fenômeno deriva a dualidade estrutural da edu-
cação brasileira, visto que, se a formação superior sempre esteve direcio-
nada para as elites na manutenção de seus privilégios, as desigualdades
são mantidas e reiteradas pela oposição estabelecida entre o trabalho in-
telectual e braçal, este, historicamente marginalizado e mal pago.
A interseccionalidade entre a exclusão social e étnico-racial do
sistema educacional ocorre desde a interdição dos corpos negros e indí-
genas ao direito de aprender, quando os escravizados eram cerceados ao
domínio da leitura e da escrita, até os seus descendentes, que precisaram
conquistar o direito ao acesso à instrução formal e, mais tarde, a demo-
cratização do Ensino Superior, reivindicado pelos movimentos sociais
negros, indígenas e quilombolas. Na trajetória das lutas por direito à
educação no Brasil, exige-se que reconheçamos a pluralidade de su-
jeitos, perspectivas, cosmovisões e cosmopercepções. Demanda-se
ainda que sejamos capazes de superar o “paradigma da contribuição”
(BULHÕES, 2018), que é a ideia amplamente veiculada de que os povos
brancos são os responsáveis e os principais protagonistas na “história da
civilização”, sem os quais os povos sob sua tutela viveriam ainda em
estado de selvageria e barbárie, sendo capazes apenas de “contribuírem”
com a nação por meio de danças, comidas, algumas palavras e gestos.
A despeito da invisibilização ou da objetificação promovida pelo
discurso científico, por séculos, povos indígenas, negros, quilombolas e
outros povos chamados tradicionais produziram interpretações, regis-
tros e enunciados em múltiplas linguagens sobre suas experiências no
mundo, “cujas vozes foram e continuam sendo desautorizadas em uma
verdadeira guerra de visões de mundo” (CRUZ; JESUS; LEMOS,
2020, p. 238-9).

Uma leitura apressada do projeto desses povos em adentrar universi-


dades poderia nos levar a pensar que essa busca se trataria apenas de
uma reificação desses espaços, mas nos interessa discutir e argumentar
justamente o contrário. As práticas e as vivências dessas pessoas pa-
recem caminhar na direção de traçar trajetórias intelectuais pautadas
em um empreendimento político social de subversão e transformação

168
de estruturas históricas de exclusão. As nossas experiências têm nos
mostrado que, em vez de gerar fragmentação com as nossas realidades
de origem, a vivência acadêmica tem potencializado estratégias para
que esses sujeitos (docentes e discentes) levem consigo para as univer-
sidades as suas bagagens culturais/civilizacionais e seus legados ances-
trais (CRUZ, JESUS, LEMOS, 2020, p. 238-9).

É nesse contexto de intensas disputas que se insere a demanda


por políticas de ingresso e de permanência em universidades públicas:
como mais uma possibilidade de qualificação de experiências democrá-
ticas, de geração de políticas públicas e de ações afirmativas que bus-
quem não reproduzir desigualdades historicamente construídas.

Ações afirmativas – corporeidades, ontologias e


epistemologias plurais nos espaços da universidade

A universidade brasileira “está sendo chamada a participar da


correção dos erros de 500 anos de colonialismo, escravidão, extermínio
físico, psicológico, simbólico de povos indígenas, bem como dos ne-
gros africanos e de seus descendentes” (SILVA, 2003, p. 48). Visando à
superação das desigualdades, injustiça simbólica, cognitiva e econô-
mica, às quais as populações que sofreram as violências coloniais vêm
sendo submetidas no Brasil ao longo dos séculos, as políticas afirma-
tivas oferecem um tratamento diferenciado aos grupos discriminados e
excluídos socialmente, com a finalidade de compensar as desvantagens
impostas pelo racismo e de promover oportunidades de inclusão e mo-
bilidade social (MUNANGA, 2003).
Silva (2003) declara que a reserva de vagas, enquanto política
institucional adotada pelas universidades, consiste no reconhecimento
da diversidade étnico-racial brasileira. Dessa maneira, a universidade
precisa reconhecer a participação ativa, embora assimétrica, dos povos
originários, dos antigos escravizados africanos e de seus descendentes
para a formação da sociedade brasileira, compreendendo os conheci-
mentos, tecnologias e práticas produzidos por esses sujeitos.

Neste sentido, busca-se descolonizar as ciências, retomando visões de


mundo, conteúdos e metodologias de que a ciência ocidental se apro-

169
priou, acumulou e a partir deles criou os seus próprios, deixando de
mencionar aqueles. São pouco difundidas as bases africanas, árabes,
chinesas, entre outras, a partir das quais foram gerados os funda-
mentos das ciências e filosofias atuais. Como bem sublinha Ramahi
(2001, p. 594), a racionalidade cartesiana funda a lógica europeia e,
esta, o empreendimento científico eurocêntrico que esconde o quanto
herdou das grandes civilizações da África, Ásia e das Américas
(SILVA, 2003, p. 49).

Portanto, a universidade passaria a produzir conhecimentos plu-


rais entrecruzados, enfatizando as dimensões históricas, identitárias,
socioculturais e de lutas dos grupos silenciados, contribuindo para a
ruptura do domínio intelectual, da homogeneidade de uma única visão
de mundo e da pretensa superioridade dos conhecimentos concebidos
na Europa e nos Estados Unidos (SILVA, 2003, p. 51).
Em 2003, apenas 2% dos estudantes universitários eram negros,
frente ao contingente branco de 97% e 1% de orientais (MUNANGA,
2003). Nesse cenário, pensadores como Kabengele Munanga, Petronilha
Beatriz, Wilson Roberto de Mattos defendiam as políticas afirmativas,
especialmente o sistema de cotas, advertindo sobre a urgência dessas me-
didas compensatórias. Embora algumas universidades tenham se anteci-
pado na adoção de uma política pública de inclusão no Ensino Superior,
tais como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Universidade do
Estado da Bahia ou a Universidade de Brasília, pioneiras ao reservarem
vagas no vestibular para afrodescendentes (MATTOS, 2003), somente
em 2012 foi sancionada a lei federal de cotas.
Quase duas décadas mais tarde, a pesquisa “Desigualdades so-
ciais por cor ou raça no Brasil”, realizada pelo IBGE, em 2019, constata
que, pela primeira vez, o índice de alunos negros (pretos e pardos) ma-
triculados em universidades públicas brasileiras suplantou o quantita-
tivo de alunos brancos, alcançando 50,3%. Esses índices corroboram a
relevância da adoção do sistema de cotas preconizada por esses autores.
Mas também são dados que precisam ser qualificados, uma vez que
existem muitas subnotificações, resultado da ausência de dispositivos
de controle do ingresso de beneficiários em várias dessas instituições.
As fraudes no sistema de cotas étnico-raciais precisam ser enfrentadas

170
e um dos mecanismos orientados pelos movimentos sociais tem sido a
composição de bancas de heteroidentificação.
A inclusão de grupos historicamente excluídos do Ensino Superior
promoveu a crítica ao modelo epistemológico eurocêntrico e o debate
sobre a descolonização dos currículos. Nesse processo, as/os estudantes
imprimem sua corporeidade aos espaços educacionais, questionam os
roteiros tradicionais, exigem e fazem parte da construção de propostas
emancipatórias. No Departamento de História da Universidade Federal
do Ceará, em dezembro de 2018, o Fórum de Negras e Negros do curso
fez uma nota-manifesto exigindo o cumprimento de alguns marcos nor-
mativos associados com os avanços da educação para as relações étnico-
-raciais. Com efeito, desde a circulação desse documento, a disciplina
Educação para as Relações Étnico-Raciais foi criada e integrada ao cur-
rículo como obrigatória, e as cotas étnico-raciais, implementadas na
Pós-Graduação de História e no Mestrado Profissional em Ensino de
História, reiterando a ideia de que somente a publicação das leis não
basta para que as culturas organizacionais mudem. É preciso mobili-
zação e participação de órgãos de controle, como o Ministério Público.

NOTA-MANIFESTO DO FÓRUM DE NEGROS E NEGRAS


DO CURSO DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO CEARÁ
Nós, do Fórum de Negros e Negras da História/UFC, em atividades
auto-organizadas desde novembro de 2017, com reuniões quinzenais,
viemos por meio dessa nota manifestar exigências ao Departamento
de História da Universidade Federal do Ceará. Em nossas reuniões,
discutimos e debatemos diversos aspectos que dizem respeito à his-
tória e à cultura afro-brasileira: intelectualidade negra, religiosidade e
ancestralidade, experiências cotidianas no curso, racismo estrutural e
institucional, oralidade e literaturas.
Diante disso, consideramos que é importante socializar e agir sobre tais
discussões, visto que o nosso presente urge por novas perspectivas de
conhecimento, epistemologias e abordagens. Observamos que o curso de
história tem carências teórico-metodológicas, uma vez que o atual cur-
rículo que condiciona nossa formação é composto majoritariamente por
estudos de homens, brancos, europeus e restritos a epistemologias que
não contemplam a pluralidade que deveria habitar nossa universidade.

171
Não estamos sós. Acreditamos na reinvenção de nós mesmos e da
História. Inúmeros escritores e escritoras já apontaram para a necessi-
dade de descolonização dos currículos, como elaborado pela pedagoga
Nilma Lino Gomes, ou seja, da relevância de todas as áreas do conhe-
cimento trabalharem com perspectivas outras.
Portanto, reivindicamos ao Departamento de História, o cumprimento
da Lei n° 10.639/03 que implementa obrigatoriamente o ensino da his-
tória e da cultura africana e afro-brasileira nos currículos de ensino bá-
sico e superior. Considerando que as atuais disciplinas de História da
África e África Contemporânea ofertadas pelo departamento não dão
conta da nossa formação para o cumprimento desta Lei, é importante
que todas as disciplinas deste departamento tragam em suas ementas as
ferramentas necessárias para pensarmos essas novas abordagens.
Não obstante, reivindicamos também a implementação da Lei de Cotas
n° 2.711/2012, que implementa a obrigatoriedade de reserva de vagas
para pessoas autodeclaradas pretas (negras e pardas) e indígenas, pes-
soas que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas e com
renda per capita de até 1,5 salários e pessoas com deficiência, para a
pós-graduação em História na Universidade Federal do Ceará.
Essas leis são fruto de muita luta do Movimento Negro há muito tempo
e, visto que essa lei já é implementada para o ingresso na graduação em
História, é justo que também seja cumprida no âmbito da pós-gradu-
ação para que de fato, esse programa seja democrático e plural.
Fórum de Negros e Negras da História/UFC.
11/12/2018

De fato, a professora Nilma Lino Gomes, citada na nota-mani-


festo, tem publicado vários trabalhos conexos acerca das relações étni-
co-raciais na educação brasileira, descolonização dos currículos e im-
plementação das leis n.º 10.639/03 e n.º 11.645/08. Para ela, a
contemporaneidade apresenta um debate intenso no plano mundial
acerca da diversidade epistemológica, principalmente nas ciências hu-
manas e sociais, impulsionando mudanças curriculares significativas. A
luta contra o racismo e pela restauração social, histórica e cognitiva
realizada pelos movimentos negros tem grande contributo nesse pro-
cesso, pois as reivindicações de reconhecimento de participação ativa
das populações negras na construção nacional, valorização e represen-
tação positiva de suas identidades configuram-se em uma perspectiva

172
“que busca e coloca outras narrativas no campo do conhecimento e do
currículo, que dá legitimidade aos saberes acadêmicos, políticos, iden-
titários e estético-corpóreos negros. É aquela que dá relevância aos sa-
beres e às práticas afro-brasileiras emaranhados em todos nós”
(GOMES, 2019, p. 245).
A produção intelectual realizada por acadêmicos negros no Brasil
é obliterada pela denominada “política do esquecimento”, consideran-
do-se que as obras de autoria negra raramente estão presentes nas bi-
bliografias dos cursos ministrados na academia. Realça-se, também, a
ausência ou a baixa porcentagem de professores negros das universi-
dades públicas. Em resultado, durante muito tempo, acadêmicos
brancos detinham a cátedra dos “estudos das relações raciais” no Brasil
e ignoravam as hierarquias raciais, reforçando o mito de uma suposta
horizontalidade entre os grupos racialmente diferenciados
(FIGUEIREDO, GROSFOGUEL; 2007).
Ainda consoante Figueiredo e Grosfoguel (2007), a epistemo-
logia hegemônica eurocêntrica nega a existência de seu próprio ponto
de vista por estar alicerçada em uma pretensa neutralidade, imparciali-
dade e universalidade, concepção a qual o filósofo colombiano Santiago
Castro-Gómez designou de epistemologia do “ponto zero”. A contra-
pelo, outras vertentes epistemológicas problematizam a corporeidade e
a posicionalidade do sujeito na produção do conhecimento:

[...] As feministas negras têm denominado essa perspectiva da episte-


mologia de “ponto de vista afro-centrado”. Entretanto, o filósofo da li-
beração latino-americano Enrique Dussel, desde os anos 1970, a define
como “geopolítica do conhecimento”. Seguindo o pensador afro-cari-
benho Frantz Fanon e a feminista chicana Gloria Anzaldua, deveríamos
falar também da “corpo-política do conhecimento” (FIGUEIREDO,
GROSFOGUEL, 2007, p. 38).

O etnocentrismo epistemológico, “crença de que cientifica-


mente não há nada a aprender com ‘eles’, a menos que já seja ‘nosso’
ou venha de nós” (MUDIMBE, 1988, p.26), se estende aos dois lados
do Atlântico negro, visto que, em todo território colonizado empreen-
deu-se a cosmofobia, como nos ensina o quilombola Mestre Nego
Bispo (2015), culminando na imposição da língua, cultura e cosmo-

173
visão do colonizador. Constituindo-se em violência ontológica, preva-
lece – como pretensão – uma única racionalidade, cosmologia e forma
de viver e existir, com vistas à aniquilação do outro e da diferença –
altericídio (MBEMBE, 2014).
Salienta-se que os danos causados pelo colonialismo, assimetrias
e injustiças multidimensionais, continuam na chamada modernidade,
operadas pelo racismo, por meio de estratégias de assujeitamento, com
a inferiorização intelectual dos grupos “dominados”, ao passo que se
legitimam os signos da supremacia intelectual da racialidade branca
(CARNEIRO, 2005). No entanto, a entrada de novos corpos nos es-
paços da universidade, diplomados, inclusive, no nível de mestrado e
doutorado, tem ajudado a promover a descolonização epistêmica
quando estes repudiam o epistemicídio e reivindicam a adoção de epis-
temologias antirracistas, em que se valorizem suas experiências e suas
subjetividades, na condição de sujeitos pedagógicos (ARROYO, 2013),
agentes cognitivos e produtores de conhecimento.

Considerações finais

A universidade é um recinto de disputa e de desejo, pois, além de


ser mecanismo de ascensão social, ou de manutenção de privilégios,
“atesta” a capacidade intelectual daqueles que conseguem adentrar seu
universo simbólico. Enquanto espaço formal de conhecimento, a uni-
versidade é o expoente máximo da racionalidade científica ocidental,
legitimadora dos discursos hegemônicos que se apresentavam como
verdades absolutas e incontestes. Portanto, tem sua parcela de culpa na
empreitada colonial por reproduzir lógicas excludentes de fragmen-
tação, objetificação e desumanização dos povos não europeus (CRUZ;
JESUS; LEMOS, 2010, p. 237).
As políticas de ações afirmativas, mais especificamente o sis-
tema de reserva de vagas (cotas raciais), são uma forma de correção e
de restituição histórica, por isso é uma ferramenta de enfrentamento ao
racismo, de combate às diversas desigualdades que são heranças colo-
niais e de qualificação da produção de conhecimentos. Portanto, as uni-
versidades devem assumir o compromisso ético de reparação histórica

174
e se posicionar contrárias às desigualdades raciais, socioeconômicas,
cognitivas, de gênero, ao promoverem uma educação antirracista e an-
tissexista em que privilegiem a pluralidade de ontologias, epistemolo-
gias e corpos, respeitando a diversidade e a singularidade na produção
de conhecimento, bem como as soberanias (territoriais, intelectuais,
religiosas, alimentares etc.) dos povos indígenas e negros e seus papéis
ativos no que podemos chamar de formação social brasileira.
No ano de 2012, foi promulgada a Lei n.º 12.711, que dispõe sobre
a reserva de vagas para estudantes negros nas instituições federais de en-
sino, reverberando em leis complementares. Nesse decênio, houve au-
mento significativo de estudantes negras(os) e indígenas nas universi-
dades, ressoando a intersecção das desigualdades raciais e sociais com
esse ingresso e estampando as dificuldades de permanência de estudantes
no curso superior por estarem em condição de vulnerabilidade social.
Consequentemente, medidas estão sendo tomadas, mas precisam ser for-
talecidas. Reiteramos nossa corporeidade de estudantes negros, indígenas,
quilombolas, homossexuais, pobres, mulheres, nordestinos, transexuais,
travestis, ciganos, dos interiores do país, dos sertões, das águas, dos ter-
reiros, entre outros que têm ocupado os espaços da universidade pública e
a agenda antirracista e antissexista de descolonização do pensamento e de
justiça social, também como um compromisso geracional inadiável.
Apostamos que nunca as academias brasileiras foram tão plurais
e potentes no exercício de fazer a “universidade”. Foi a política das
cotas raciais – conquistada pelos movimentos negros –, cerca de vinte
anos atrás, que ampliou os debates sobre inclusão, numa perspectiva de
política pública, perpassando depois por dimensões de gênero, etnia,
classe, a partir de ações estratégicas por dentro da engenharia do Estado.
Ora, se agentes do Estado naturalizaram ou criaram deliberadamente as
desigualdades ou se foram cúmplices, que sejam eles a desfazê-las
também. Não é exagero dizer que as universidades precisam muito
mais desses sujeitos historicamente excluídos do que o contrário, con-
siderando que os espaços de produção, circulação e consumo de conhe-
cimento são plurais, não se restringindo apenas aos rituais formais con-
sagrados nessa instituição. Mas, se ela é um direito e interessa aos
sujeitos, cumpra-se!

175
Referências

ARROYO, M. G. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2013
BOTTONI, A.; SARDANO, E. de J.; COSTA FILHO, G. B da. Uma
breve história da universidade no Brasil: de Dom João a Lula e os de-
safios atuais. Gestão universitária: os caminhos para a excelência.
Porto Alegre: Penso, 2013.
BULHÕES, L. Ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileira
e indígena entrecruzadas: paradigma da contribuição, pedagogia do
evento e emancipações na educação básica. Revista da Associação
Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S. l.], v. 10, n. Ed.
Especial, p. 22-38, jun. 2018.
CHACON, V. As primeiras universidades brasileiras. RSP, Brasília,
1974. Disponível em: https://revista.enap.gov.br/index.php/RSP/ar-
ticle/view/2369/1264.
CRUZ, M. Uma abordagem sobre a história da educação dos negros.
In: ROMÃO, J. (org.). História da educação do negro e outras histó-
rias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
CRUZ, F. S. M.; JESUS, L. S. B.; LEMOS, G. O. Contracolonização e
soberanias intelectuais de povos indígenas e negros quilombolas. In:
CRUZ, F. S. M.; JESUS, L. S. B.; LEMOS, G. O Tecendo redes antir-
racistas II: contracolonização e soberania intelectual. Fortaleza:
Imprensa Universitária, 2020.
FIGUEIREDO, A. GROSFOGUEL, R. Por que não Guerreiro
Ramos? Novos desafios a serem enfrentados pelas universidades pú-
blicas brasileiras. Cienc. Cult., 2007, v. 59, n. 2, p. 36-41.
GOMES, N. Relações étnico-raciais, educação e descolonização
dos currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 1, p. 98-109,
jan./abr. 2012.

176
GOMES, N. O movimento negro e a intelectualidade negra descolo-
nizando os currículos. In: BERNARDINO-COSTA, J.;
MALDONADO-TORRES, R. G. (org.). Decolonialidade e pensa-
mento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.
Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro:
IBGE, 2019.
JESUS, L. B.; SAMPAIO, L. G. A história, o pós-colônia e os “novos”
sujeitos na produção dos conhecimentos: reflexões com Achille
Mbembe. Cadernos de Ciências Sociais da UFRPE. Recife, v. 2,
n. 11, ago./dez, 2017.
MATTOS, W. Ação afirmativa na Universidade do Estado da Bahia:
razões e desafios de uma experiência pioneira. In: SILVA, P. B. G.;
SILVÉRIO, R. (org.). Educação e ações afirmativas: entre a injustiça
simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto Nacional de Es­
tudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003
MBEMBE, A. Crítica da razão negra. Lisboa: Editora Antígona, 2014.
MUDIMBE, V-Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do co-
nhecimento. Tradução de Leonor Pires Martins. Lisboa: Mangualde, 2013.
MUNANGA, K. Políticas de ação afirmativa em benefício da popu-
lação negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. In:
SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, R. (org.). Educação e ações afirmativas:
entre a injustiça simbólica e a injustiça econômica. Brasília: Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2003.
NASCIMENTO, W. F.; BOTELHO, D. láti educação e resistência
nos candomblés. Educação e cultura contemporânea, v. 17, n. 48,
p. 408-425, 2020.
PAULA, M. de F. de. A formação universitária no Brasil: concepções e
influências. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior,
Campinas, v. 14, n. 1, p. 714-84, mar. 2019. Disponível em: https://
doi.org/10.1590/S1414-40772009000100005. Acesso em: 9 abr. 2022.

177
SANTOS, B. A gramática do tempo: para uma nova cultura política.
2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
SANTOS, A. B. dos. Colonização, quilombos, modos e significações.
Brasília: INCTI: UnB, 2015.
SILVA, P. B. G. Negros na universidade e produção do conhecimento.
In: Educação e ações afirmativas: entre a injustiça simbólica e a injus-
tiça econômica. SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, R. (org.). Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, 2003.

178
O QUE DIACHO É NECROPOLÍTICA?90

Felipe Ricardo Vieira Lopes

O meu sonho?
Estudar, ter uma casa, uma família
Se eu fosse mágico?
Não existia droga, nem fome e nem polícia.91

E ntrou na cena acadêmica, militante e política brasileira nos


últimos anos o conceito de necropolítica, que vem sendo usado exaus-
tivamente para falar sobre as mais variadas formas de violência come-
tidas nos diversos âmbitos da sociedade. Porém, nessa vulgarização – e
aqui ser vulgar não quer dizer algo ruim –, se perderam algumas ques-
tões que penso serem necessárias a esse conceito. Em vista disso, ten-
tarei circular o termo por meio de outros conceitos do autor Achille
Mbembe, em diálogos com Frantz Fanon e Aimé Césaire, que são cru-
ciais na sua formulação. Cabe salientar que muitos são os outros cami-

90 Tentativa de formulação de um ensaio sobre a necropolítica que saia um pouco do eixo


comum da leitura desse conceito, estimulado pelo uso às vezes abusivo e esvaziado do
termo nos dias atuais. Então, pretensiosamente, lanço meu olhar sobre o conceito de
forma livre, solta, porém de forma criteriosa e provocativa.
91 Racionais Mc’s. Sobrevivendo no inferno. Cosa Nostra, 1997, Faixa 10: Mágico de Oz. CD.
nhos que podem circundar esse conceito, mas, como em toda escrita se
faz uma escolha, aqui não é diferente.
Muito se tem lido o conceito pelas lentes já enquadradas92 da
academia. Esse olhar acaba perdendo dimensões diferentes, que com-
põem outras formas de ler, já que a visão é localizada a enxergar aquilo
que lhe foi ensinado, ou melhor, o próprio olhar possui uma dimensão
colonizadora nas suas possibilidades do ver, do não ver e do fingir não
enxergar.93 Então, começo esse escrito com uma obra que eu considero
crucial para entender o Brasil, as músicas do Racionais Mc’s, pois nelas
é possível enxergar a guerra às drogas, a fome, o uso das forças poli-
ciais, entre outras, quase todas tecnologias atualizadas do momento co-
lonial e a expressão plena de que o colonialismo ainda mantém perma-
nências profundas na sociedade brasileira.
No trecho que dá início a este texto, narrado por uma criança na
música “Mágico de Oz” do Racionais, ela afirma que seus sonhos são
ter acesso à educação, à família e à moradia, ao mesmo tempo que re-
chaça a droga, a fome e a polícia. O ano foi 1997, quando ocorreu o
lançamento do disco Sobrevivendo no inferno. No Brasil, havia sido
promulgada a constituição cidadã alguns anos antes, e foi “vencida” a
ditadura civil-militar; passava-se, então, por um momento de ampliação
da cidadania, porém, como vemos, esta não alcança certas pessoas.
Voltemos, então, ao início do mesmo século, correndo o risco dos ana-
cronismos. Em 1902, circulava na região de Porto Alegre um jornal de
nome O Exemplo; é também nesse mesmo ano que os escritores desse
periódico escreveram um quadro de nome “Nossa escola”,94 no qual
defenderam a criação de uma escola noturna que possibilitasse a am-
pliação dos horários das aulas e do público que poderia frequentá-las.

92 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e
Terra, 2019.
93 “...O poder da colônia consiste portanto fundamentalmente no poder de ver ou não ver,
de ser indiferente, de tornar invisível aquilo que não podemos ver. E se é certo que o
<<o mundo é isto que vemos>>, podemos então dizer que, na colônia, quem decide do
que é visível e do que deve ficar invisível, manda”. MBEMBE, Achile. A crítica da razão
negra. Lisboa: Antígona, 2014.
94 Jornal O Exemplo. Nossa escola, 12 de outubro de 1902

180
Como não acredito em coincidência na história, é melhor perguntar quais
as proximidades entre 1997 e 1902? Entre um jornal e uma banda de rap?
Aqui não se tem a pretensão de igualar presente ao passado,
muito menos afirmar que isso é uma repetição, só que tanto O Exemplo
quanto o Racionais lançam questões sobre a situação em que se encon-
travam as pessoas negras e empobrecidas no Brasil em momentos dis-
tintos. O que os aproxima é apenas o problema que lançam em sua
escrita. Os rappers e os/as escritores/as do jornal se encontram questio-
nando a noção de cidadania e as suas possibilidades. Dessa encruzi-
lhada conceitual, em cujo centro estão as tecnologias colonialistas, é
que quero partir, em virtude de acreditar que, para entender necropoder,
é preciso saber o que é o colonialismo.
No final do século XIX, se iniciou a fase republicana brasileira
com as promessas de ampliação de direitos a todas e a todos. O que
vemos é que essas promessas nunca alcançaram as/os subalternizadas/
os, como afirmam Flávio Gomes e Olívia Cunha, que, ao falarem sobre
a cidadania, criam o termo “quase-cidadão”.95 Percebo que, mesmo de-
pois de um século, essa cidadania ainda parece não ter chegado e esse
conceito ainda se faz necessário ao falarmos do Brasil, mesmo sabendo
que existe uma grande diferenciação e que houve ganhos do fim do sé-
culo XIX e início do século XX aos dias atuais.
Usamos o termo para indagar a quem pertencem os ideais de
cidadania e por quê. Esse conceito pode nos contar sobre as perma-
nências coloniais e as suas formas de se atualizar. Estamos falando de
uma sociedade que hierarquizou as pessoas que compunham sua po-
pulação, pessoas que nunca foram tidas como iguais, fizeram parte
dos bens semoventes, coisificados e desumanizados. Logo, não seria
uma mudança da forma de governo que daria possibilidades de igual-
dade, ainda mais numa república nos moldes de um pensamento ilu-
minista de base francesa e seu humanismo fajuto, como já bem des-

95 GOMES, F. dos Sant; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase cidadão? Retóricas da
igualdade, cotidiano da diferença. In: GOMES, Flavio dos Santos; CUNHA, Olívia
Maria Gomes da (org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação
no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 7-19.

181
trinchado por Aimé Césaire, afirmando que eram ideais formados por
uma sociedade doente.96
O adoecimento dessas sociedades passa abertamente pela coloni-
zação, pois:

[...] a colonização, repito, desumaniza até o homem mais civilizado;


que a ação colonial, o empreendimento colonial, a conquista colonial
fundada no desprezo pelo homem nativo e justificada por esse des-
prezo, tende a modificar a pessoa que o empreende; que o colonizador,
ao acostumar-se a ver o outro como animal, ao treinar-se para tratá-lo
como um animal, tende objetivamente, para tirar o peso da consciência,
a se transformar, ele próprio, em um animal.97

Nas bases de todo ato colonizador, mesmo este se escondendo


por detrás de movimentos “civilizacionais”, está a violência devasta-
dora da desumanização, que liga intimamente colonizador e coloni-
zado. Essas heranças coloniais e suas dores não vão ser simplesmente
esquecidas, seja por quem as proferiu ou por quem foi vítima, é como
afirma Grada Kilomba: “O colonialismo é uma ferida que nunca foi
tratada, uma ferida que dói sempre, por vezes infecta e outras sangra”.98
Caminhamos para encontrar umas das características do necropoder,
pois a eliminação altericida99 passa primeiro por dinâmicas de sustar a
humanidade daquele/a ao/à qual quero destinar a violência, eliminando
assim “o peso da consciência”, ou melhor, evitando qualquer forma de
empatia e reciprocidade.100 Pensando em empatia e reciprocidade:

96 CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020


97 CÉSAIRE, 2020, p. 23.
98 KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.
99 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
100 MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151. dez. 2006.

182
Figura 1 – Notícia “Cadaver Insepulto”

Fonte: O Exemplo, 28 de agosto de 1904.

Essa notícia é de um Brasil já republicano, no qual, mesmo de-


pois da morte, uma mulher negra é abandonada em um cemitério, um
corpo sem nome e sem memória, sem o direito de ter velada a sua morte.
Essa é uma das faces da necropolítica, porque não é apenas decidir
quem vive e quem morre, é, no fazer morrer, apagar o sujeito, assim
tendo sua existência vilipendiada a ponto de sua morte não ter signifi-
cado, é ser um farrapo humano...101 Assim, aquela mulher negra nem
ao menos fazia parte da humanidade para aqueles que enviaram o seu
corpo para o cemitério, nem para os funcionários que trabalhavam no
local, ou mesmo para os transeuntes que se deslocavam durante os seis
dias em que o corpo ficou exposto ao ar livre. É preciso perguntar o que
permite tamanha violência?
O colonialismo urge como uma arma potente na invenção da­
quele/a que vai ser violentado e é nessa criação de um outro que as vio-
lências passam a ser autorizadas. É notável que essa outrificação102 de-
sumaniza as pessoas que tem como alvo. Porém, seria uma ingenuidade
considerar que as bases colonialistas se sustentam apenas em uma domi-
nação geográfica; a colonização é também uma conquista psicológica,

101 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
102 KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.

183
científica e linguística. Sendo assim, para se livrar do domínio colonial,
não é suficiente apenas a liberdade geográfica. É necessário estar atento
às permanências da ideologia colonialista.
Vale destacar uma das tecnologias usadas para a perpetuação e
manutenção da outrificação103 e do domínio característico do colonia-
lismo: a ciência. Quero destacar a criminologia criada no fim do século
XIX, que se fez presente tanto nos círculos acadêmicos europeus,
quanto nas ruas brasileiras. Essa foi baseada nos estudos que tinham
como pretensão afirmar, por meio de características biológicas, se al-
guém estava mais propenso ou não a cometer um crime, narrativa que
foi utilizada para fazer a manutenção da ideia de superioridade das pes-
soas brancas. A criminologia foi apenas uma das maneiras pelas quais
se tentou perpetuar ideais colonialistas que buscam fazer a manutenção
das clausuras,104 das delimitações raciais dos complexos de superiori-
dade e inferioridade.
É aqui que a linguagem ganha um papel central, pois, como já
dito, o colonialismo inventa sujeitos. Foi assim que se criaram negros/
as e indígenas, categorias fabricadas para definir um número gigantesco
de populações às quais foram destinadas as mais brutas violências.
Nessa fabulação pela palavra se fixam o eu e o outro, o bem e o mal, o
civilizado e o primitivo, quem coloniza e quem deve ser colonizado.
Essa dualidade se faz presente não só na linguagem, mas também na
vida, como cantou o Racionais:

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram


violência policial; A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são
negras; Nas universidade brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros;
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São
Paulo; Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.105

103 KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:


Cobogó, 2019.
104 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 200
105 Racionais Mc’s. Sobrevivendo no inferno. Cosa Nostra, 1997, Faixa 3: Mágico de Oz. CD.

184
A continuidade do colonialismo aparece na forma da violência
policial que alimenta o racismo herdado desde a pseudociência da cri-
minologia. Lembra do pedido da criança no prefácio deste texto? Ela
queria que não existisse polícia, pois, na sua visão, esta funciona como
uma máquina de produzir violência, um dos muitos mecanismos da ne-
cropolítica. Assim, “Atribuímos uma importância fundamental ao fenô-
meno da linguagem... Uma vez que falar é existir completamente para
o outro”,106 uma existência passa pela linguagem, pois “A linguagem,
efetivamente, não é apenas o lugar das formas. É o próprio sistema da
vida.”107 Aquilo que foi efabulado, ou seja, a invenção do outro em
linguagem é crucial para as necropolíticas, é o ponto em que ela sai do
campo semântico e se torna real, fazendo com que a imagem criada
transponha a visão e faça com que o outro seja a representação de tudo
que deve ser combatido. Nesse jogo dos olhares, continuamente prati-
cado pelas mãos do Estado, seja em 1904, em 1997, até mesmo nos dias
atuais, cria-se um alvo, um inimigo, alguém a ser combatido.
Percebem-se, com as leituras de Aimé Césaire, Frantz Fanon e de
Achille Mbembe, as vias que possibilitam olhar o funcionamento dos
fenômenos necropolíticos. Essas definições feitas aqui dialogam com o
conceito de soberania apresentada por Mbembe:

Soberania é, portanto, como um duplo processo de “autoconstituição”


e “autolimitação” (fixando em si os próprios limites para si mesmo).
O exercício da soberania, por sua vez, consiste na capacidade da so-
ciedade para a autocriação pelo recurso às instituições inspirado por
significações específicas sociais e imaginárias.108

Constitui-se aqui uma definição de soberania em contato direto


com as experiências coloniais, demonstrando a importância desse termo
para a interpretação do conceito de necropoder, porém é preciso avançar.
Esse poder soberano aparece nas colônias como a forma primordial da
morte, do medo e do terror,109 já que o colonialismo é a violência em seu

106 Ibidem. p. 29.


107 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p.101.
108 MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. p.10.
109 Ibidem.

185
estado bruto, ao mesmo tempo que é uma máquina produtora de de­
sejos.110 Vale salientar ainda que, como diz Aimé Césaire, “E isso, vejam,
não tem nada de exceção”,111 ao analisar as formas como são tratadas as
sociedades colonizadas, aquilo que foi chamado de exceção, outra carac-
terística do necropoder, na verdade foi uma regra durante séculos.
Porém, como defende Mbembe, as necropolíticas no século XX
e XXI já não se voltam apenas aos corpos de pessoas negras. Essas se
ampliaram de forma inédita, seja no apartheid, no Holocausto ou no
conflito na Palestina. Todos/as aqueles/as tidos/as como subalternos/as
agora tornam-se alvos, são todas vidas passíveis de morte. Para en-
tender como foi possível o rompimento dessa fronteira, tem que se
pensar o conceito de devir negro no mundo, obra do capitalismo e das
atualizações das tecnologias colonialistas já citadas.

Agora o ciclo do capital caminha de imagem em imagem, esta se


tornou um fator de aceleração das energias pulsionais. Da fusão poten-
cial entre o capitalismo e o animismo resultam algumas consequências
determinantes para a nossa futura compreensão da raça e do racismo.
Desde logo, os riscos sistemáticos aos quais os escravos negros foram
expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a
norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas.112

Usando das tecnologias de produção do outro, o capitalismo


passa agora a fabular identidades passíveis de violência, a condição de
homem-coisa-moeda-mercadoria não é apenas do sujeito que havia
sido escravizado nos séculos anteriores. Cabe salientar, para que não
haja confusão, o devir negro não é o vir a ser negro. Os/as subalterni-
zados/as estão agora passíveis de uma violência que transborda das an-
tigas senzalas e dos porões dos negreiros, sendo esse transbordo uma
fração daquela violência. Podemos dizer que há um avizinhamento,
uma aproximação daquelas condições.
Uma das primeiras experimentações do colonialismo fora das co-
lônias e ex-colônias foi o Holocausto, sem dúvidas uma das experi­

110 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
111 CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020. p. 35.
112 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 11.

186
ências mais aterradoras da humanidade, só que, como vimos, ele faz
parte desse avizinhamento postulado aqui. Esse crime só foi condenável
quando feito em solo europeu, como afirma Césaire: o crime de Hitler
é ter violentado pessoas no “velho” continente.113 Aqui, se demonstram
os limites da reciprocidade, porém não se pode negar tamanha violência
e ainda mais uma industrialização da morte:

Segundo Enzo Travesso, as câmaras de gás e os fornos foram o ponto


culminante de um longo processo de desumanização e de industriali-
zação da morte […] Esse processo foi, em parte, facilitado pelos este-
reótipos racistas e pelo florescimento de um racismo de classe que, ao
traduzir os conflitos sociais do mundo industrial em termos racistas,
acabou comparando as classes trabalhadoras e o “povo apátrida” do
mundo industrial aos “selvagens” do mundo colonial.114

Temos um panorama dos conceitos-chaves que usei para pensar o


necropoder: colonialismo, efabulação, devir negro, altericídio, clausura,
todos de alguma forma constituem dimensões que ajudam na apropriação
desse conceito. Para finalizar, duas categorias podem demonstrar as bre-
chas na necropolítica, são elas: devir negro e avizinhamento.
Com o avanço e aumento dos corpos passíveis de violência, o
mundo está a experimentar uma aproximação entre os/as subalterni-
zados/as. Essa violência que estava destinada a um grupo específico
se amplia e faz com que cada vez mais pessoas estejam a par das atro-
cidades cometidas pelo capitalismo. Não é à toa que começamos
nosso texto afirmando que a necropolítica está na boca de todas/os,
pois seus alvos são pessoas pobres, mulheres, gays, lésbicas, pessoas
trans, negras/os, islâmicos/as, palestinos/as, povos indígenas, povos
de terreiro, quilombolas, trabalhadores/as etc. Todos/as esses/as estão
submetidos/as ao avanço necropolítico praticado pelo neoliberalismo,
ou seja, este forma uma grande prisão onde as celas do terror se avizi-
nham, sendo que muitos estão em mais de uma cela e há mais tempo
presos nessas clausuras.

113 CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria de Sá da Costa, 1978.


114 MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 21.

187
Como encontrar as ditas brechas? Primeiro, mesmo sendo re-
duzidas durante muito tempo a homem-coisa-moeda-mercadoria, as
pessoas negras criaram potências, linguagens, experimentaram com
o corpo para além daquilo que lhes foi imposto pela invenção; e
povos indígenas e de terreiro mantiveram manifestações de sua cul-
tura vivas mesmo com toda a violência destinada a eles. Só que isso
não quer dizer “tornar-se prisioneiro da história”,115 ou buscar uma
essência que dê significado ao hoje. Essa afirmação vale para saber
que existem a história e, mesmo com todo o extermínio, as formas
de existir. É aqui que o avizinhamento ganha força, já que, ao mesmo
tempo que o número de alvos da necropolítica é ampliado, também
aumentam as interligações do sensível; as empatias e reciprocidades,
não possibilitadas anteriormente, agora tornam-se a arma possível a
ser empunhada.
Essa potência dos que estão se tornando vizinhos é possibilitada
pelo devir negro. Temos que perceber que significações tem o negro
desse devir:

Produto de um maquinário social e técnico indissociável do capita-


lismo, de sua emergência e globalização, esse termo foi inventado para
significar a exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite
sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente deson-
rado, o negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos
cuja carne foi transformada em coisa e o espírito em mercadoria – a
cripta viva do capital. Porém – e esta é sua patente dualidade –, numa
reviravolta espetacular, tornou-se símbolo de um desejo consciente de
vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada no ato de
criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias histórias
simultaneamente.116

Se a necropolítica propaga o devir negro, as suas capacidades de


vida também são multiplicadas, logo não são somente as atrocidades
que estão sendo espalhadas, estão se aumentando as possibilidades de

115 FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.


116 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 21.

188
encontro e da diferença radical.117 Aquele homem farrapo, citado ante-
riormente, agora pode ser o homem plástico118 que, ao entrar em com-
bustão, se remodela, foge da fixidez de suas determinações, caminha
em zigue-zagues e faz slackline no fio da navalha.119
Para finalizar, queremos apresentar um último trecho do jornal
O Exemplo, que fala sobre a liberdade das mulheres no início do século XX:

Figura 2 – Recorte da matéria “Carta aberta”

Fonte: O Exemplo. Carta aberta. 02 de dezembro de 1902.

Aqui os jornalistas de O Exemplo fazem uma afirmação que


lembra a de Aimé Césaire, a constatação de que ambos viviam em uma
sociedade adoecida. A diferença de tempo e espaço das escritas não é
impeditivo para promover esse diálogo. Na análise dos dois, ocorre esse
diagnóstico de adoecimento da sociedade no geral. Para Césaire, isso se

117 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
118 Ibidem.
119 MÁ DAME. No fio da navalha. Frieza Records, 2020, Faixa 06: No fio da navalha. EP

189
dá pelo colonialismo; já no periódico, aponta-se um sintoma, a exclusão
das mulheres da vida política brasileira durante a Primeira República.
A analogia apresentada é de que a sociedade é um corpo. As mu-
lheres são metade funcional desse corpo e, sendo impossibilitadas da
sua participação na vida política da nação, haveria o mal funcionamento
dessa estrutura. Assim, pode-se perceber que os jornalistas tiveram uma
noção “inclusiva”, pois, se um dos sintomas é a ausência das mulheres,
o seu “remédio” seria permitir que estas fizessem parte da estrutura
social da qual estavam sendo escanteadas. Então, colocam-se a ques-
tionar, em suas páginas, o fato de não ser permitida a atuação na vida
política para as mulheres, defendendo que se deveria subverter essa
“ordem social hodienda” que permitia tal coisa, em busca de uma “li-
berdade mais ampla”.120
Desse modo, a palavra liberdade, ao meu ver, não aparece sem
intenções, na verdade ela é muito bem utilizada. A negação de direitos
às mulheres impedia que as próprias jornalistas, como Carmém
D’Aguiar e Pepita,121 que foram companheiras de redação desses jorna-
listas, as mulheres das suas famílias, conhecidas, como Dona Maria do
Brochado,122 fossem podadas de seus direitos. Mais do que isso, ao
longo do tempo que tenho acompanhado o jornal percebo que as mu-
lheres não foram figuras secundárias para a luta que empreendiam; pes-
soas como Andradina de Oliveira123 eram inspirações para eles e es-
tavam presentes na sua escrita.
Ao trazer para o centro da discussão os direitos políticos das mu-
lheres, O Exemplo está produzindo sua visão de liberdade. Para aqueles
que escreveram a folha, mais da metade de seus “órgãos” não poderiam
ter uma das suas principais funções limitada. O jornal de imprensa

120 Jornal O Exemplo, Carta Aberta. Porto Alegre: 02 de Dezembro de 1902.


121 As duas, sob o pseudônimo Uma Democrata, escreveram matérias e poemas publicados
no jornal em mais de uma edição.
122 Moradora da Rua Fernando Machado, número 94. Aparece em uma matéria de nome
“Batida Nogenta”, publicada em 1902, parecendo ser uma pessoa admirada pelos
jornalistas.
123 Escritora, jornalista e fundadora da revista O Escrínio, que foi contemporânea do
O Exemplo.

190
negra, ao fazer a defesa aberta e franca por uma liberdade política das
mulheres, coloca-se ao lado também da população negra, pois são inú-
meras as mulheres negras que estavam sendo limitadas por esse adoeci-
mento. Pode-se pensar que se mobiliza uma tática124 que, ao falar de
mulheres, busca o benefício das que pertenciam às “pessoas de cor”,
porém quero ir mais afundo. Até que ponto isso não é uma prática do
que Mbembe chamou de desejo de abolição,125 uma busca pela liber-
dade universal que questionaria as formas de necropoder?
Ao se avizinhar da luta das mulheres, os jornalistas estariam per-
cebendo que a sua liberdade só seria possível se ela fosse para todos/as.
Logo, eles pedem uma “liberdade mais ampla”, em virtude de saberem
que, naquele momento em que viviam, estavam construindo suas pró-
prias interpretações de liberdade, sociedade e cidadania, e esse caso
escrito na sua Carta Aberta parece revelar um pouco da leitura que eles
faziam da sociedade em que viveram.
Então, este escrito é uma tentativa de construir o meu olhar sobre
necropolítica em solo brasileiro. O que diacho é esse conceito? É uma
forma de continuidade das tecnologias coloniais, atualizadas constante-
mente no século XX e XXI, uma maneira de multiplicar ainda mais os
corpos passíveis de violência. Porém, talvez num otimismo poético, o
avanço desenfreado dessas violências sobre um número cada vez maior
de pessoas vá possibilitar a aproximação dos que sofrem diariamente
com essa prática e, desse avizinhamento, faça surgir “...um desejo cons-
ciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada
no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias
histórias simultaneamente”.126

124 Partimos da definição de Certeau, como uma ação calculada pela ausência de poder,
usando o espaço do outro para prever suas saídas. In: CERTEAU, M. de. A invenção do
cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014. p. 93-94.
125 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 298.
126 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 21.

191
Referências

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed.


Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Livraria de Sá
da Costa, 1978.
CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edufba, 2008.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: São
Paulo: Paz e Terra, 2019.
GARCÍA MÁRQUEZ, G. Cem anos de solidão. Tradução: Eric
Nepomuceno. 102. ed.; São Paulo: Record, 2018.
GOMES, F. dos S.; CUNHA, O. M. G. da. Quase cidadão? Retóricas
da igualdade, cotidiano da diferença. In: GOMES, F. dos S.; CUNHA,
O. M. G. da (org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-
emancipação no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 7-19.
JORNAL O EXEMPLO, Carta Aberta. Porto Alegre: 2 de dezembro
de 1902.
JORNAL O EXEMPLO, Cadáver insepulto. Porto Alegre: 28 de
agosto de 1904.
KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo
cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MÁ DAME. No fio da navalha. Frieza Records, 2020, Faixa 06: No
fio da navalha. EP
MBEMBE, A. A crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32,
p. 122-151. dez. 2006.

192
AS/OS AUTORAS/ES

Adilson Victor Oliveira


Guineense (Guiné-Bissau, África ocidental), da
etnia Brame. Atualmente, é doutorando no
Programa da Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Ceará – UFC. É bachare-
lado em Língua Portuguesa pela Escola Normal
Superior Tchico Té – Guiné-Bissau; bacharelado
em Humanidades, licenciado em História e mestre
no Programa da Pós-Graduação Interdisciplinar
em Humanidades na Universidade Federal da Integração Internacional
da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab. É membro permanente do
Núcleo de Estudos África Islâmica/Grupo de Estudos do Mundo
Islâmico (Gremis) – Unilab e do Grupo de Estudos Caldeirão:
Confluências Anticoloniais da Universidade Federal do Ceará.
Dedica-se aos estudos das etnias na África ocidental, das questões das
migrações internas e externas e das problemáticas contemporâneas
entre as lideranças étnicas e os Estados pós-coloniais na África oci-
dental. Interessa-se também pelos estudos étnicos-raciais numa relação
África-Brasil.
Ana Maria Eugênio da Silva
Mulher negra, quilombola, mãe, cotista, feminista,
antirracista, militante do Movimento Quilombola do
Ceará e dançandeira de São Gonçalo do Quilombo
do Sítio Veiga, Quixadá (CE). Referência no enfren-
tamento e superação do câncer de mama, vindo a
inspirar a produção dos seguintes filmes: As
Passarinhas (2018) e Eu, Semente – 70 Olhares
sobre Direitos Humanos (2021). Bacharela em Serviço Social pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE, 2018), mestra em Humanidades
pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
brasileira (Unilab-CE). Graduanda em Antropologia e representante
dos discentes quilombolas no Capaf (Comitê de Acompanhamento de
Políticas de Ações Afirmativas) pela mesma instituição. Discute e pes-
quisa temas voltados para a população quilombola, como: relações ét-
nico-raciais, educação escolar quilombola, saúde e gênero e políticas
públicas. Participa do grupo de pesquisa e extensão Amandla (política
pública de questões de gênero, étnico-raciais, desenvolvimento e terri-
torialidade) e é doutoranda em História Social pela UFC (Universidade
Federal do Ceará).

Elisângela Oliveira de Santana


Doutoranda do Programa Multidisciplinar de
Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos
(Pós-Afro) da Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Mestra em Cultura, Memória e Desen­
volvimento Regional pela Universidade do
Estado da Bahia (UNEB). Professora efetiva da
Secretaria Estadual de Educação do Estado da
Bahia e da Prefeitura Municipal de Lauro de Freitas (BA). Áreas de
interesse: narrativas autobiográficas; anticolonialismo; escravidão
contemporânea; educação antirracista.

194
Felipe Ricardo Vieira Lopes
Mestrando em História Social no Programa de
Pós-Graduação em História (UFC), graduado em
História na Universidade Federal do Ceará e inte-
grante do Grupo de Estudos Caldeirão, do Fórum
de Discentes Negras e Negros do curso de História
(UFC). Articulador do Slam da Okupa, compe-
tição de poesia falada que aconteceu em Fortaleza de 2018-2020, tendo
rodado por inúmeros bairros da cidade e participado de eventos como
Maloca Dragão (2018) e XII Bienal Internacional do Livro do Ceará
(2019). Poeta e participante do Movimento de Saraus da Periferia de
Fortaleza, compondo atividades no Sarau Okupação desde 2017, so-
mando também na Biblioteca Comunitária Okupação, de 2018-2019.

Felipe Sotto Maior Cruz


Indígena do povo Tuxá – Bahia, é doutor em
Antropologia Social pela Universidade de
Brasília. Professor na Universidade do Estado da
Bahia, no curso de Licenciatura Intercultural em
Educação Escolar Indígena (Campus VIII).
Pesquisador visitante em Oxford, Reino Unido,
na School Of Anthropology and Museum
Ethnography (2022-2024). Tem experiência na
área de etnologia indígena e indigenismo, atuando nos temas: violações
de direitos indígenas no Nordeste do país, agenciamentos e protago-
nismo indígenas, territorialidades, memória e oralidade, educação indí-
gena, violências anti-indígenas e desdobramentos de mega-empreendi-
mentos em terras indígenas. É pesquisador do Opará Etnicidades,
Movimentos Sociais e Educação. Membro cofundador da ABIA –
Articulação de Antropólogues Indígenas. Membro da Associação
Brasileira de Antropologia, integrando o Comitê de Assuntos Indígenas
(CAI); Comitê de Antropólogues Indígenas e Comitê de Relações
Internacionais. Membro da Associação Nacional de Ação Indigenista
(ANAÍ). Membro da Associação dos Acadêmicos Indígenas da
Universidade de Brasília (AAIUnB).

195
Franck Pierre Gilbert Ribard
Possui graduação em Sociologia – Université de
Toulouse-Le Mirail (França,1992), mestrado em
Antropologia Social e Histórica da Europa – École
des Hautes Études en Sciences Sociales (França,
1993), doutorado em História – Université de
Paris IV – Sorbonne (França, 1997). Pós-doutorado
na Université Toulouse – Jean Jaurès (2013-2014,
França). Atualmente, é professor associado da
Universidade Federal do Ceará. Tem experiência na área de História,
com ênfase em Antropologia Histórica, atuando principalmente nos se-
guintes temas: relações interétnicas, negro, memória da escravidão,
festa, relações atlânticas, história da África, cinema africano.

João Luís Joventino do Nascimento (João do


Cumbe)
Quilombola do Quilombo do Cumbe/Aracati –
CE, educador popular, defensor de direitos hu-
manos, ambientalista, militante do Movimento
Quilombola do Ceará, Movimento de Pescadores/
as Artesanais do Ceará, Organização Popular
(OPA) e articulador da Teia dos Povos do Ceará.
Faz parte da Associação Quilombola do Cumbe,
na qual é agente cultural no Ponto de Cultura Chama Maré. É douto-
rando em História pela Universidade Federal do Ceará – UFC, mestre
em Educação Brasileira pela Faculdade de Educação – Faced/UFC,
graduado em História pela Universidade Estadual do Vale do Acaraú –
UVA. Desde 1996, junto dos quilombolas do Cumbe, luta pela defesa
do território quilombola do Cumbe de uso comunitário, importante para
nosso bem-viver.

196
Jonathan Silva
Indígena da etnia potiguara, professor na Escola
Indígena Francisco Gonçalves de Sousa do povo
Tapuia Kariri, município de São Benedito (CE).
Membro do grupo Força Jovem Indígena, inte-
grante do grupo Universos Kariri, umbandista no
C.E.U. Caboclo Cobra Coral. É aluno da licencia-
tura intercultural indígena kuaba da UFC.
Militante indígena.

Joseli do Nascimento Cordeiro


Quilombola de Batoque, mulher negra, sindica-
lista, educadora popular da EFA e Enfoc, agente
da Comissão Pastoral da Terra – CPT, membra da
Comissão Estadual de Comunidades Quilombolas
Rurais do Ceará – CerquirCE; do Conselho
Estadual de Educação Escolar Quilombola e do
Grupo de Estudos Caldeirão: Confluências
Anticolonias (UFC). Graduada em História pela
Universidade Estadual Vale do Acaraú e atual-
mente mestranda em História Social pela
Universidade Federal do Ceará – UFC, com financiamento de bolsa
CNPQ. Sua trajetória estudantil e acadêmica somente foi possível de-
vido ao apoio e incentivo do seu povo e do acesso a políticas públicas.
Pesquisa, lê e escreve sobre as seguintes temáticas: quilombos, povos
pretos, África, mulheres, saberes tradicionais.

Leandro Santos Bulhões de Jesus


Historiador, de Santo Antônio de Jesus, Recôncavo
Baiano. Foi coordenador do Núcleo de Docu­
mentação e Laboratório de Pesquisa Histórica do
Departamento de História da Universidade Federal
do Ceará – Nudoc (2018/2022), onde é professor
da graduação, do Programa de Pós-Graduação em
História e do Mestrado Profissional em Ensino de

197
História. Pesquisa temas que versam sobre teorias contra-hegemônicas
e contracoloniais, com interesse nas questões de luta por território, me-
mória e educação de povos indígenas e quilombolas; ações afirmativas,
Leis n.º 10.639/03, n.º 11.645/08 e cinemas africanos. É colíder dos
Grupos de Estudos: Caldeirão: Confluências Anticoloniais (UFC) e do
GEPPHERG – Políticas Públicas, História, Educação das Relações
Étnico-Raciais e de Gênero (FE – UnB/UFC). Integra a equipe interna-
cional de pesquisadores do Tecendo Redes Antirracistas e da Rede de
Historiadoras/es Negras/os. É bolsista do Programa Cientista Chefe da
Cultura Funcap/Secult – Ceará e é o atual coordenador do GT de
História e Cultura Visual da ANPUH-Bahia.

Marcelle D. de Carvalho Braga


Mulher negra, mãe, nascida e criada em Minas
Gerais, cearense de coração há 5 anos. Atualmente,
é doutoranda em História Social pela Univer­sidade
Federal do Ceará (UFC). Mestra, bacharela e licen-
ciada em História pela Universidade Federal de
Ouro Preto (UFOP). Foi professora na Universidade
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira (Unilab), no Instituto Federal de Alagoas
(IFAL) e na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem interesse
em pesquisas nas áreas de história atlântica, história do Brasil, história da
África, história dos Estados Unidos, relações étnico-raciais. Fruto e defen-
sora da universidade pública, do SUS e da democracia.

Maria da Conceição Pinheiro de Almeida


Assistente em Administração na Universidade
Federal do Maranhão, professora no Ensino
Básico entre 2002 e 2018 na Secretaria de Estado
de Educação do Maranhão, pesquisadora das po-
pulações quilombolas na baixada ocidental ma-
ranhense. Licenciada em História e especialista
em Saúde da Mulher Negra pela Universidade
Federal do Maranhão; mestre em História do

198
Norte e Nordeste pela Universidade Federal de Pernambuco e douto-
randa em História Social na Universidade Federal do Ceará. Atua na
área de história da saúde (saúde e pobreza em São Luís na Primeira
República e saúde da mulher negra) e trabalha com as populações qui-
lombolas na baixada ocidental maranhense, Maranhão.

Maria das Graças da Silva (Graça Atikum)


Indígena Atikum, liderança tradicional, conse-
lheira local de saúde indígena e ativista do movi-
mento de juventude em Pernambuco. Graduada
em História pela Faculdade de Ciências Humanas
do Sertão Central (FACHUSC), Salgueiro (PE).
Possui pós-graduação lato sensu em História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena pelo Centro
Universitário Internacional (Uninter). É mes-
tranda em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
integrante do grupo de pesquisa Caldeirão: Confluências Anticoloniais
da Universidade Federal do Ceará. Atualmente, é professora na Escola
Estadual Indígena José Pedro Pereira, município de Salgueiro (PE).

Maria Josefa da Conceição


Mestra Maria de Tiê é um dos ícones da cultura
tradicional popular cearense. Tesouro vivo do
Ceará, com título de Notório Saber em Cultura
Popular pela Secult-CE e UECE. Nasceu em
18/09/1958, em Porteiras-CE, é liderança comu-
nitária e mestra responsável por manter viva a
dança do coco e o maneiro-pau na Comunidade
Quilombola dos Souza, localizada no sítio Vas­
sou­rinha, em Porteiras (CE). Remanescente de quilombolas, vive em
constante luta por melhorias e valorização do seu povo.

199
Mateus de Castro Ferreira (Mateus Tremembé)
Indígena da Terra Indígena Tremembé da Barra
do Mundaú, Itapipoca (CE). Agricultor agroeco-
lógico, agente ambiental Tremembé, militante do
movimento indígena do Ceará, produtor cultural
da festa do murici e batiputá, festa de yemanjá e
ritual do alimento ancestral, educador popular, ar-
tista e artesão. Pesquisador da cultura alimentar
Tremembé, coordenador de cultura do Ponto de
Cultura Recanto dos Encantados, coordenador técnico do Projeto
Cultura de Alimentar a Aldeia na TI Tremembé. Graduando do curso de
Bacharelado em Agronomia pela Universidade da Integração
Internacional e da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab.

Tshombe Miles
Professor Associado de Estudos Negros e Latinos.
Pesquisa sobre a história da raça, classe e etnia na
América Latina, especificamente no Brasil. Seu
trabalho está particularmente interessado na diás-
pora negra no mundo atlântico. É membro da
Association for the Study of the Worldwide
African Diaspora e da Associação Nacional de
História (no Brasil). Apresentou trabalhos na
University of Texas Austin, University of North Carolina Chapel Hill,
New York University, convidado para o City College e apresentou tra-
balhos em conferências na França, Itália, Espanha, e tem apresentado
regularmente no Brasil. Publicou dois livros e vários artigos. Além
disso, escreveu artigos para meios on-line populares como o Root e a
African-American Intellectual Society. Ele também escreveu vários ar-
tigos de opinião para o jornal O Povo, um jornal popular do Nordeste
do Brasil. Ele se formou no City College de Nova York e fez doutorado
na Universidade de Brown.

200
Viviane de Souza Lima
Mestre em História pela UFMG e doutoranda em
História pela UFC. Desenvolve a pesquisa de
doutoramento intitulada “Trajetórias atlânticas:
caminhos de história na vinda dos estudantes afri-
canos bolsistas do Itamaraty para o Brasil (1961-
1969)”. Bolsista Funcap. Graduada em Comu­
nicação Social – Jornalismo (UFC). Áreas de
interesse e pesquisa: África, luta de libertação
nacional na África, colonialismo, mobilidade so-
ciocultural Brasil – África, transnacionalidades, relações internacionais
Brasil – África – Portugal. Colaboradora da ONG Instituto do Patrimônio
Histórico, Cultural e Natural de Quixeramobim (IPHANAQ). Integra o
Coletivo @Casinha Criações (pesquisa e artes).

201
Visite nosso site:
www.imprensa.ufc.br

Av. da Universidade, 2932 – Benfica, CEP. 60020-181


Fortaleza – Ceará, Brasil
Fone: (85) 3366.7485 / 7486
imprensa@proplad.ufc.br

Você também pode gostar