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NA UNIVERSIDADE
Negros, indígenas e quilombolas
entre negociações, afirmações
e disputas
Nós na universidade
Negros, indígenas e quilombolas
entre negociações, afirmações e disputas
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro da Educação
Camilo Sobreira de Santana
Vice-Reitora
Profa Diana Cristina Silva de Azevedo
IMPRENSA UNIVERSITÁRIA
Diretor
Joaquim Melo de Albuquerque
Conselheiros
Joaquim Melo de Albuquerque
José Edmar da Silva Ribeiro
Felipe Ferreira da Silva
Maria Pinheiro Pessoa de Andrade
Prof.ª Ana Fátima Carvalho Fernandes
Prof. Guilherme Diniz Irffi
Prof. Paulo Rogério Faustino Matos
Prof.ª Sueli Maria de Araújo Cavalcante
Leandro Santos Bulhões de Jesus
Franck Pierre Gilbert Ribard
(Organizadores)
Nós na universidade
Negros, indígenas e quilombolas
entre negociações, afirmações e disputas
Fortaleza
2023
Nós na universidade: negros, indígenas e quilombolas entre negociações,
afirmações e disputas
Copyright © 2023 by Leandro Santos Bulhões de Jesus, Franck Pierre Gilbert Ribard (Organizadores)
Coordenação editorial
Ivanaldo Maciel de Lima
Revisão de texto
Leidyanne Viana Nogueira
Normalização bibliográfica
Luciane Silva das Selvas
Programação visual
Sandro Vasconcellos /Victor Alencar
Capa
Heron Cruz
Ilustração da capa
Cirulo
CDD 980.41
Elaborada por: Luciane Silva das Selvas – CRB 3/1022
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ............................................................................. 7
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tiva é um convite para reflexões em torno das distâncias e aproxima-
ções entre os chamados conhecimentos tradicionais e acadêmicos;
sobre a necessidade de as universidades públicas ampliarem ações em
diálogo com os povos tradicionais e sobre como a sua trajetória é uma
possibilidade de acessarmos suas estratégias de enfrentamento ao ra-
cismo e de empoderamento. Com ela, aprendemos que o saber de si, a
ancestralidade, a autonomia, a autogestão e a construção e manutenção
das redes são ferramentas mobilizadoras imprescindíveis para a defesa
de projetos de sociedades que têm sido historicamente perseguidos,
como é o caso de sua comunidade, chamada Quilombo dos Souza, lo-
calizada no sítio Vassourinha, em Porteiras-CE, na região carirense, que
também tem terreiro de umbanda.
Seguindo esse fio da discussão sobre quilombos, numa perspec-
tiva histórica, em “Capitalismo racial e algumas observações sobre co-
munidades quilombolas” interessou ao professor Tshombe Miles trazer
à tona as múltiplas experiências de autonomia negra na diáspora como
alternativa ao capitalismo/neo-liberalismo ou ao que ele chama de “ca-
pitalismo racial”, em diálogo com outros autores. Os quilombos e ou-
tras ações de expressão de soberania do povo negro – a despeito dos
projetos escravistas em marcha – ameaçaram ordens estabelecidas e
desafiaram projetos de hegemonia, como é o caso emblemático do
Haiti. De que maneira essas discussões nos ajudam a imaginar possibi-
lidades de autogestão dessas comunidades no presente, considerando as
grandes teias do capitalismo global?
Marcelle Carvalho e Joseli do Nascimento Cordeiro concentram
as suas reflexões sobre a abrangência e a complexidade da problemática
e também do conceito de quilombo. Voltando-se, de maneira privile-
giada, para o contexto cearense, destacam, a partir da fala de várias
mulheres militantes quilombolas, o papel central do protagonismo fe-
minino e da luta cotidiana para o acesso à educação e à educação supe-
rior em particular.
Ana Maria Eugênio da Silva, com seu texto “Cosmopercepção
quilombola: trajetórias e desafios de casa à universidade”, propõe uma
discussão em torno das disputas epistemológicas entre quilombolas e
não quilombolas. Com dados sobre a presença quilombola nas univer-
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sidades no estado do Ceará, reivindica o direito à educação qualificada
e específica, porém sem perder de vista o poder do entrecruzamento de
saberes. Para além da entrada dos corpos, de que maneira os conheci-
mentos podem ser respeitosamente mobilizados numa relação lá e cá,
“de casa à universidade”?
Depois de nos situar em relação ao contexto nacional da edu-
cação quilombola, do ponto de vista dos determinantes de leis e de-
cretos que interferem na sua definição, pelo menos teoricamente, Maria
da Conceição Pinheiro de Almeida aborda a situação específica do
Maranhão, onde, apesar de certos avanços, a educação quilombola
“ainda está distante de atender ao que estabelecem as Diretrizes da
Educação Quilombola”. A “retomada da educação”, a reapropriação
pelos quilombolas, alunos, professores e moradores da definição dos
conteúdos e dos processos educativos surgem, então, no exemplo do
Quilombo Nazaré (zona rural do município de Serrano do Maranhão/
MA), como soluções originais de autonomização.
José Luís Joventino do Nascimento (João do Cumbe) e Mateus
de Castro Ferreira (Mateus Tremembé) delineiam os contornos da
questão central da luta pela posse dos espaços de convívio das comu-
nidades tradicionais no Brasil. Fazendo dialogar as suas experiências
próprias de quilombola e de indígena oriundos de comunidades litorâ-
neas do Ceará, refletem sobre as implicações ligadas à problemática
territorial que precisa garantir o direito constitucional e permitir a au-
tonomia dessas comunidades, a perenidade das suas experiências, tra-
dições e saberes.
Graça Atikum trilha uma narrativa que apreende, numa perspec-
tiva processual, o momento atual vivido pelos povos originários no
Brasil diante da emergência de novas gerações de militantes, que, ao
lado das lideranças tradicionais, já antigas, mostram-se dispostas a en-
frentar os desafios contemporâneos. Voltando-se para o seu próprio
contexto, o povo Atikum (Sertão de Pernambuco), a autora enfatiza a
importância desse protagonismo dos jovens, ancorados nas suas tradi-
ções, que os leva, cada vez mais, a cursar formações universitárias, tra-
zendo novas perspectivas à educação pública superior e, ao mesmo
tempo, por meio da confluência estabelecida, abrindo novos horizontes
10
para a escrita de uma nova história, na qual os povos originários são
tanto atores como autores, tendo na oralidade um lócus incontornável
de construção e transmissão dos conhecimentos.
Enfocando as lutas dos povos indígenas por educação, Jonathan
Silva Brito faz um recorte específico no texto “Educação escolar indí-
gena no Ceará: lutas, avanços e desafios”. Estudante do curso de
Licenciatura Intercultural Indígena da UFC, o potiguara discute sobre a
educação indígena brasileira com um enfoque nas experiências cea-
renses, abordando a trajetória das lutas numa perspectiva historicizada,
tomando como base os marcos normativos recentes, que vêm trazendo
avanços. Foi depois da publicação da constituição de 1988 que o ce-
nário mudou radicalmente. Entretanto, aponta o autor que a educação
indígena possui muitos entraves para serem resolvidos em diferentes
escalas, do local ao nacional.
A entrada de estudantes indígenas nas universidades é um evento
que representa um grande desafio para os integrantes de grupos histori-
camente excluídos de espaços acadêmicos de produção de conheci-
mento. No texto “Indígenas na antropologia e os desafios da pesquisa
dentro e fora das universidades”, Felipe Sotto Maior Cruz, indígena do
povo Tuxá, tece algumas considerações a partir da própria experiência
enquanto indígena antropólogo sobre a formação de pesquisadores que
visam a desenvolver seus trabalhos em suas próprias comunidades de
origem. Por meio de dois relatos, um na academia e outro em sua comu-
nidade, procura não somente refletir sobre máximas ainda caras ao
fazer antropológico, como distanciamento e neutralidade, mas também
problematizar a relação historicamente instituída entre sujeito cognos-
cente e objeto cognoscível no seio da disciplina.
Viviane de Souza Lima faz dialogar os dados da sua pesquisa de
doutorado sobre o programa de bolsistas africanos que vieram para o
Brasil na década de 1960 – no contexto de independência de numerosos
países no continente – e enfrentaram muitas dificuldades, entre as quais,
casos revelados de racismo, com uma reflexão mais abrangente sobre a
necessidade de ampliação de debates sobre a descolonização da univer-
sidade, na perspectiva da construção de uma educação antirracista e li-
bertadora em todos os níveis de ensino.
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Envolvendo os leitores nos meandros da realidade histórica e
educacional da Guiné-Bissau (África Ocidental), Adilson Victor
Oliveira analisa, a partir de materiais diversos (capas de livros didá-
ticos, estrutura curricular guineense, experiência própria de docente em
escola pública guineense...), o impacto de questões como a reforma cur-
ricular e a instabilidade política sobre os “caminhos de acesso à edu-
cação pública” num país onde a garantia constitucional de que “Todo o
cidadão tem o direito e o dever da educação” está ainda, em grande
parte, a ser construído.
Franck Ribard, organizador há tempos de uma Mostra de Cinema
Africano (UFC), analisa as condições e as implicações ligadas à re-
cepção no Brasil de um cinema que, além de revelar características e
linguagens próprias, encontra uma dimensão estratégica do ponto de
vista da formação de plateia, mas também na perspectiva educacional
antirracista. A mostra de cinema, nesse contexto, apresenta formatos de
apresentação/debates, favorecendo uma confluência pertinente para o
processo de apropriação das obras africanas e de produção de sentidos
na experiência fílmica.
O texto “Universidades, ações afirmativas e descolonização dos
currículos”, de autoria de Elisângela Oliveira de Santana e Leandro
Santos Bulhões de Jesus, visa a contribuir para o debate acerca das po-
líticas de ação afirmativa, entendidas como mecanismo de restituição
histórica, material e simbólica de indígenas, negros, quilombolas e ou-
tros povos chamados tradicionais. A reflexão gira em torno das mu-
danças epistemológicas como resultado do ingresso de corpos perifé-
ricos no espaço das universidades públicas através do sistema de reserva
de vagas (cotas raciais). Ressalta-se que as reivindicações de descoloni-
zação dos currículos universitários esbarram em uma cultura institu-
cional de origem elitista, colonial e eurocêntrica, cujos signos e sím-
bolos a academia é responsável por salvaguardar. Sem embargo, esse
movimento em prol da justiça cognitiva caminha para a efetivação de
uma educação antirracista, reparando o passado, esperançando o pre-
sente, em compromisso com o devir (Sankofa).
Felipe Ricardo Vieira Lopes, voltando a sua reflexão sobre o con-
ceito de necropolítica, tenta construir uma visão original, de certa forma
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genealógica, das instâncias em jogo na manutenção da categoria. Busca,
assim, ir além de certas visões enquadradas, comumente encontradas
na academia. Para isso, estabelece um diálogo profícuo com uma série
de outros conceitos fundamentais, necessários a uma compreensão e
problematização do colonialismo. A partir de exemplos e casos diversos
da sociedade brasileira, defende a ideia de “uma busca pela liberdade
universal que questionaria as formas de necropoder”.
Com este material, primeira produção bibliográfica coletiva do
nosso grupo Caldeirão: Confluências Anticoloniais, esperamos contri-
buir para a agenda das lutas antirracistas, qualificando os debates con-
temporâneos em torno da consolidação das políticas de ações afirma-
tivas na educação, em especial nas universidades brasileiras
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QUILOMBO, TERREIRO, UNIVERSIDADE
O saber de si5
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E, hoje, eu sou uma pessoa que moro dentro da universidade, não
de corpo, mas de alma. De coração e alma eu tô dentro da universidade,
junto com todos os professores, alunos, diretores, secretários.
Meu povo aqui no quilombo, muitos não têm o conhecimento,
aqueles mais velho, porque eles vêm de uma história muito longe e não
sabe o que é, mas eu sei o que é a história, eu sei o que é a tradição, sei
o território onde moro e por isso eu chego a passar pra todos eles. Faço
reunião com meu povo, abordando temas da cultura. Eu tenho a minha
dança, a dança do coco, apresento a dança do coco, maneiro-pau, que
vem duma tradição, daqui dos mais velho, do meu pai, ele que era uma
pessoa que gostava muito da tradição, e eu passo esse conhecimento
pra meu povo.
Quando eu faço um trabalho aqui em meu terreiro, que é pra eu
trazer o grupo, eu passo pra eles: “ó nós tamo representando a univer-
sidade”. Vocês tão lá na universidade, pode ser aqui do Cariri, aqui
do Ceará, também, como participo também da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, sempre estou trabalhando com a Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Participo também no Sesc9 daqui do re-
gional, por Fortaleza, já trabalhei pelo Sesc do Rio de Janeiro, eu
passo pra eles também que nós estamos indo pra o Rio de Janeiro,
para a universidade federal.
E, então, minha gente, é uma luta que os quilombolas têm que
lutar. Têm que lutar pelo direito, têm que lutar pelo que a gente é; nós
temos que lutar pela cor, também tem que lutar pelo nosso cabelo, é isso
que eu passo pra todos. Porque muitos não aceitam ser negro, muitas
comunidades têm isso, e aqui na minha comunidade tem, mas sempre
eu digo pra eles o seguinte: que ser negro é uma coisa boa, e quem tem
que dá o respeito somos nós, porque, se a gente não der o respeito ao
que a gente é, ninguém vai dar.
Então, o respeito quem tem que passar são eles, somos nós
também, porque eu como mestra e mulher negra quilombola, eu tenho
que me respeitar. Eu tenho que respeitar minha cor, eu tenho que res-
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peitar minha origem, porque, se eu não me respeitar, então, eu não levo
respeito a ninguém. Nunca ninguém vai me respeitar. Através do meu
trabalho, do meu conhecimento que eu tenho no movimento quilom-
bola, no movimento negro, estou junto com os indígenas e com o povo
cigano e eu reconheço que o povo tem muito respeito, quando a gente
anda, muita gente tem respeito pelo que a gente é. Então, eu passo pro
meu povo dizendo: que a gente tem que respeitar o que é, tem que
mostrar o que é, porque eu mostro o que eu sou, eu não vou mostrar o
que eu não sou.
Eu tenho orgulho de ser uma mulher negra. Eu tenho orgulho de,
por todo canto, por eu ser negra, de eu não negar minha cor, respeitar
minha origem e abraçar a todos e é onde também eu sou abraçada, eu
sou respeitada. Antigamente, eu falo pra vocês que o preconceito através
dos negros já existia muito, muito preconceito, até hoje ainda existe,
como vocês sabem, que até hoje existe o preconceito, mas a gente nunca
vai baixar a cabeça pra preconceito de ninguém.
Quanto mais a pessoa tem preconceito com minha cor, quanto
mais a pessoa tem preconceito por eu ser quilombola, por eu ter o ca-
belo ruim, como o povo diz, cabelo ruim, mas não é ruim, é muito
lindo a pessoa do cabelo crespo, né?! Muito lindo, muito bacana, eu
acho lindo... é que a gente tem que se orgulhar. Existe o preconceito
com o negro, existe o preconceito com o povo de terreiro, existe o
preconceito com o povo cigano, porque, quando eu era pequena, me-
nina, garotinha, aqui na comunidade passava muito cigano, passava
muito cigano na comunidade.
Eu lembro muito que chegavam os ciganos na casa da gente, a
gente fechava as portas com medo. Eles chegavam chamando a gente,
pedindo, e ali, muitos atendiam eles, outros não atendiam, com precon-
ceito com os ciganos. Do mesmo jeito que existia preconceito com os
negros quilombola, do mesmo jeito existia preconceito com o povo ci-
gano. Hoje, como eu tenho conhecimento, ando e conheço os ciganos,
eu falo pro meu povo, aqui na comunidade: ó, vocês não andam, vocês
não conhecem. O povo cigano é um povo respeitado. Por quê? Porque
eles se deram o respeito e por isso hoje eles são pessoas procuradas,
reconhecidas na universidade, reconhecidas no estado do Ceará e aonde
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eu ando, eu me encontro com eles e são amigos, nós somos amigos, nós
nos abraçamos e somos amigos. Por quê? Porque era preconceito que se
tinha, mas como eles não tiveram medo de enfrentar o preconceito, hoje
eles são respeitados.
Como quilombola, se eu tivesse medo de enfrentar o precon-
ceito, hoje nós seríamos mais baixo ainda, mas, como eu não tive
medo de enfrentar o preconceito, hoje eu sou respeitada, e os negros
também são respeitados.
Aqui no quilombo nós temos terreiro de umbanda, nós não
temos terreiro de candomblé. E o presidente do terreiro é o mesmo da
associação, ele é o zelador de orixá aqui do quilombo. E daí, ainda
existe preconceito com os terreiros, mas também é uma coisa que todos
têm que respeitar, porque, se o próprio zelador de orixá não enfrentar
o preconceito, o povo sempre vai ter preconceito com ele, por isso que
o zelador de orixá também tem que enfrentar e não baixar a cabeça, ir
em frente, como eu, como mestre de cultura, mulher negra quilombola,
não tive medo de enfrentar o preconceito.
Eu estou lá na universidade, estou no estado do Ceará com o
meu conhecimento e passando o meu conhecimento também para
todos. Eu passo meu conhecimento para crianças, para os jovens e ado-
lescentes. Também, como aqui em meu terreiro, da mestra Maria de
Tiê, eu recebo os alunos que vêm das escolas enviados pelos seus pro-
fessores pra poder contar sobre o meu conhecimento, pra contar minha
história e eu recebo e passo meu conhecimento com todo amor, com
todo carinho. Deus me deu esse dom, esse saber, pra eu passar para as
pessoas também que queiram participar do meu saber.
O meu saber vem da memória, o meu saber é um dom que
Deus me deu porque eu não faço nada pelo escrito, o que eu sei está
na memória. Não sei ler, também, eu não sei ler, estudei muito pouco
e por isso eu não faço nada por escrito, tudo que eu faço, tudo que eu
falo vem da minha memória, do meu coração e do meu dom que Deus
me deu, e é isso.
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CAPITALISMO RACIAL E
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE
COMUNIDADES QUILOMBOLAS
Tshombe Miles
10 Veja The ethnic project: transforming racial fiction into ethnic factions. Stanford, CA:
Stanford University Press, 2013. Ela mostra o que é uma ideia fluida que pessoas de
todos os grupos étnicos historicamente desejaram, porque é uma maneira de ganhar
mobilidade social em uma sociedade racista.
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Em outras palavras, embora ser branco não fosse uma garantia
necessária para ser rico ou materialmente bem-sucedido, havia uma
vantagem em ser legalmente branco que era flagrante no período co-
lonial, não apenas por causa da escravidão e da desapropriação do
trabalho indígena. Havia um sistema legal de castas que proibia pes-
soas de grupos africanos e indígenas de participar do governo, pa-
gando impostos especiais, de usar certas roupas, além de outras
formas de racismo, mesmo que você fosse “livre” (RUSSELL-
WOOD, 1993), e essa discriminação continuou nas nações indepen-
dentes da América Latina.
Robinson usa a ideia do capitalismo racial da África do Sul,
onde, durante o sistema de apartheid, a elite sul-africana branca desen-
volve um estado de bem-estar para os brancos, enquanto formaliza a
precariedade e limitação de direitos para africanos e não brancos.
Robinson usa essa ideia para aplicar à história do capitalismo moderno.
Ele também argumenta que o racismo e o racialismo precederam o ca-
pitalismo no sistema hierárquico feudal da Europa. Ele desafiou a ideia
marxista de que o capitalismo era uma ruptura revolucionária do feuda-
lismo. De fato, o capitalismo evolui do feudalismo e compartilha muitos
aspectos do feudalismo europeu.
Uma das influências acadêmicas de Robinson, Oliver Cox, ecoa
isso em seu livro Caste, class, and race (1970): a ideia de que o capita-
lismo desenvolveu-se de mãos dadas com os modernos sistemas de or-
ganização social, e, consequentemente, a opressão racial e econômica
não pôde ser desvinculada. “O antagonismo racial é parte integrante
da… luta de classes”, sustentou, “porque se desenvolveu dentro do sis-
tema capitalista como um de seus traços fundamentais”. Os conflitos
raciais também eram inerentemente políticos, inseparáveis da “questão
de quem deve governar o sistema social, os poucos ou os muitos”. A
injustiça racial, insistia Cox, era um problema de sistemas e poder
(GORDON, 2019).
De fato, esse foi um dos pontos principais de Cedric Robinson,
pois ele entendeu que o racismo era parte integrante do sistema capita-
lista real e vivido e esse processo estava em andamento, não começando
nas Américas, mas evoluindo desde o feudalismo na Europa.
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How the Irish became white (IGNATIEV, 2015) é um livro fa-
moso do falecido Noel Ignatiev, que argumenta: “com o tempo os
europeus se tornam brancos nos Estados Unidos”. Embora a branqui-
tude possa ter se desenvolvido nas Américas, o capitalismo racial não
se desenvolveu. Por exemplo, na Europa os irlandeses foram coloni-
zados de 1536 a 1691, por meio de uma subordinação do país aos
governos baseados em Londres. Os irlandeses foram essencializados
como inferiores por seus conquistadores. Por exemplo, houve a ex-
clusão dos católicos da maioria dos cargos públicos (desde 1607); a
exclusão das profissões jurídicas e do judiciário, revogada, respecti-
vamente, em 1793 e 1829. Houve proibição de casamentos com pro-
testantes, revogada em 1778. Outros grupos europeus como os ju-
deus eram racializados. Por exemplo, sabemos que houve muitos
pogroms na Europa e que os judeus foram forçados a entrar em
guetos, discriminados.
Os europeus ainda se referiam uns aos outros como raças dife-
rentes com capacidades diferentes e se essencializam como raças dife-
rentes. Foi somente após o holocausto da Segunda Guerra Mundial e
seis milhões de judeus mortos que esse tipo de entendimento racial
flagrante entre os europeus foi reavaliado, e isso também marca o
início do fim do colonialismo na África e na Ásia e a ascensão dos
movimentos pelos direitos civis nos EUA e na América Latina.
É somente após o período da Segunda Guerra Mundial que você
vê um declínio do colonialismo na África e na Ásia. Ainda temos colo-
nialismo, escravidão, trabalho não livre, precariedade, ou seja, esses
legados não foram corrigidos. No entanto, sempre houve contradições
na formulação de questões relativas à palavra “liberdade”. White
freedom: the racial history of an idea, livro do falecido Tyler Stovall,
mostra um contexto internacional entre os Estados Unidos e a França e
apresenta como as ideias da democracia liberal não se destinavam a
comunidades de africanos, asiáticos e nativos americanos, enquanto a
França está colonizando partes da África e da Ásia, desapropriando o
povo africano e reorganizando seus recursos para beneficiá-lo. Os
Estados Unidos acabam com a escravidão, mas formalmente estão se
movendo em direção a um apartheid, sistema de segregação no sul e no
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norte; o oeste e o centro-oeste organizam guetos.11 A maneira pela qual
muitas dessas contradições faziam algum sentido era justificando que
alguns seres humanos não eram iguais a outros com base em motivos
raciais. Muitas vezes, essas justificativas eram baseadas na religião e,
mais tarde, no século XIX, postuladas em termos pseudocientíficos
(RUSSELL-WOOD; STEPANS; SKIDMORE; TWINAM).
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foi fundada a “Cidade Livre de San Lorenzo de los Negros”. Os qui-
lombolas assinaram um tratado em que exigiam um plano de 11 pon-
tos.12 Esse plano permitiu que eles ganhassem terra, semiautonomia e
liberdade pessoal. Em troca, o colonizador espanhol manteve o controle
de seu império e, o mais importante, manteve a ordem econômica.
Na ilha da Jamaica, havia vários conjuntos de comunidades qui-
lombolas a partir de 1493-1655, quando o território estava sob domínio
espanhol (JONES, 1976, p. 220-232). Quando os espanhóis foram ex-
pulsos da Jamaica, em 1655, e partiram para Cuba, escravizados recém-
-libertados continuaram a tomar as colinas e logo começaram a se en-
volver em ataques de guerrilha contra os britânicos (JONES, 1976, p.
220-232). Sob o domínio inglês, houve uma escalada da guerra entre
1729 e 1739, que também resultou em tratados. No entanto, haveria
guerras contínuas até o século XIX, quando a escravidão terminou.
Nesse caso, os descendentes da comunidade quilombola continuam a
viver nas mesmas comunidades de seus ancestrais.
Houve várias oportunidades para os africanos e seus descen-
dentes tomarem conta de toda a ilha da Jamaica, particularmente sob o
domínio de Cudjoe (CRATON, 2010, 75-78). Sob sua liderança, em
1739, foi assinado um tratado no qual os quilombolas de sota-vento
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receberam essencialmente soberania e autogoverno, e também grandes
extensões de terra, que foram reconhecidas pelos britânicos. Em troca,
eles teriam que concordar em devolver pessoas escravizadas e ajudar a
combater outras comunidades quilombolas que não foram reconhe-
cidas. Cudjoe concordaria com esses termos e lutaria em nome do go-
verno inglês e até mesmo entraria em guerra contra outros quilombolas
que os britânicos não autorizassem. Ao fazer esse acordo, permitiu a
manutenção da colônia da Jamaica e criou a garantia mútua de manter
o capitalismo racial.
No Brasil, a grande comunidade quilombola foi Palmares, que se
tornou uma república autônoma, ou o que hoje é o estado de Alagoas no
nordeste do Brasil. Durante o período de 1605-1694, foi formada pela
união de dez comunidades separadas de negros autônomos, que haviam
se consolidado em 1630. Palmares devia sua prosperidade às abun-
dantes terras agrícolas irrigadas e ao sequestro de outras pessoas das
plantações portuguesas. Na década de 1690, Palmares contava com
cerca de 20.000 habitantes. Seu líder era Ganga Zumba (“Grande
Senhor”). Eles tinham um governo que alocava propriedades, nomeava
funcionários (geralmente seus próprios parentes) e era sediado em um
enclave real fortificado. Entre 1680 e 1686, seis expedições portuguesas
tentaram conquistar Palmares e falharam. Finalmente, o governador de
Pernambuco Domingos Jorge Velho derrotou uma força palmarista li-
derada por um sobrinho do último dos cinco governantes de Palmares,
em 6 de fevereiro de 1694, pondo fim à república (SILVA, 2010).
Embora o Quilombo de Palmares tenha sido destruído, alguns
dos moradores conseguiram escapar e formar comunidades em outros
lugares, mesmo a maioria tendo sido morta, capturada e escravizada.
Ao contrário do exemplo espanhol de Yanga e do exemplo inglês dos
quilombolas jamaicanos, Palmares acabou sendo destruído, e os portu-
gueses não fariam tratados formais com o quilombo.
Os quilombos existiam antes de Palmares em todo o Brasil e con-
tinuariam no Brasil após a destruição oficial de Palmares. Houve vários
casos de comunidades de africanos em diáspora com autonomia. No
entanto, nenhum quilombo teria o poder e a organização política de
Palmares. De fato, o povo de Palmares representava uma enorme
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ameaça à ordem colonial e não é difícil acreditar, sob uma ordem mi-
litar mais imperialista, que talvez pudesse ter minado a ordem colonial
portuguesa no Brasil. De fato, as pessoas escravizadas teriam que es-
perar mais de cem anos antes que os africanos eventualmente derru-
bassem uma potência colonial europeia…
Na década de 1740, São Domingos, juntamente com a Jamaica,
tornou-se o principal fornecedor de açúcar do mundo. A produção de
açúcar dependia do extenso trabalho escravo do povo africano. Os fa-
zendeiros brancos que obtinham sua riqueza com a venda de açúcar
sabiam que eram mais de dez para um em número de escravizados e
viviam com medo da rebelião. A população negra na ilha totalizava pelo
menos 500.000 em 1789. A taxa de mortalidade no Caribe excedeu a
taxa de natalidade, então as importações de africanos escravizados eram
cruciais para a economia. As africanas e africanos eram sobrecarre-
gados e tratados pior do que o gado. Era mais lucrativo sobrecarregar o
sujeito e depois comprar outro. Foi sob tais circunstâncias que essas
pessoas fugiram para as montanhas do Haiti e começaram suas próprias
comunidades quilombolas. Com o passar do tempo, algumas dessas
pessoas, principalmente da classe chamada crioula (trabalhavam como
cozinheiros, domésticos e artesãos), ganhavam/conquistavam liberdade
e, em muitos casos, compravam escravos também.13 No entanto, essa
classe também nunca foi aceita pelos brancos, o que ajuda a lançar as
bases de uma revolução bem-sucedida.
De 1791 a 1804, houve uma luta armada em que comunidades
quilombolas, mulatos livres e negros livres mantinham uma aliança in-
cômoda que acabou conseguindo derrubar os franceses. Na verdade, a
única revolta de escravizados bem-sucedida na história foi a do Haiti
em 1804. A contradição do moderno Estado-nação no Haiti era que uma
pequena elite de haitianos queria fazer parte do sistema capitalista ra-
cial moderno. Afinal, negros livres e pessoas de ascendência africana
mista participaram da compra e venda de seus irmãos e irmãs de ascen-
13 No caso brasileiro, existem estudos que indicam que a compra de uma pessoa por outra
da sua mesma raça poderia estar relacionada à proteção e estratégia de uma espécie de
“compra de liberdade” de outrem.
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dência africana ou foram cúmplices dessa exploração. Historicamente,
eles estavam enredados no capitalismo racial. Após a revolução, a po-
pulação rural autônoma passou a constituir-se de fazendeiros autossufi-
cientes que estavam reformulando, refazendo o capitalismo e, essen-
cialmente, desenvolveram uma nação quilombola. As pessoas da
sociedade africana eram agricultores de subsistência e desfrutavam de
autonomia e liberdade, embora as elites haitianas controlassem os
portos, mas não controlassem a terra (GONZALEZ, 2019; DUBOIS,
2013; CASIMIR e DUBOIS, 2020). A economia política haitiana se
desenvolveu em um sistema menos explorador e foi semelhante em seu
desenvolvimento econômico a outras sociedades quilombolas.
No passado, Eugene Genovese sustentou que “Nunca um modo
de produção independente ou forma de governo, a escravidão nas
Américas constituiu uma formação social e um conjunto particular de
relações sociais de produção dentro de um modo senhorial (feudal) em
declínio e em ascensão capitalista de produção, sob o governo das rela-
ções políticas de propriedade e autoridade que a acompanham”.
Em outras palavras, a autora argumentou que a ordem colonial
era marcada por uma ordem feudal em declínio e estava sendo substi-
tuída por um novo sistema emergente de capitalismo. Robinson basica-
mente contesta esse argumento. O capitalismo não foi uma ruptura, mas
sim uma continuação de um sistema explorador. De fato, os tradicionais
ex-mulatos livres, negros livres da antiga classe de elites de cor traba-
lhariam para minar o controle econômico do Haiti e minar o projeto de
possibilidade de um novo rearranjo econômico no qual a agricultura de
subsistência pudesse prevalecer sem a exploração de uma classe preda-
tória extraindo toda a riqueza.
O Haiti permaneceu o experimento mais interessante porque, em-
bora a elite de cor ressurgisse como o poder dominante, durante grande
parte do século XIX, os camponeses haitianos foram capazes de ter al-
guma agência no desenvolvimento de seu trabalho (GONZALEZ, 2019).
Na verdade, esse também foi o caso das comunidades quilombolas
que conseguiram manter a liberdade. Por exemplo, lugares como Yanga e
quilombolas jamaicanos continuam sendo símbolos de resistência em
favor da liberdade negra, no entanto, a longo prazo, essas estratégias não
27
puderam se desenvolver até a manutenção da equidade material. Essas
comunidades mantiveram a autonomia cultural, mas suas economias po-
líticas ainda estão sujeitas aos caprichos e realidades da ordem mundial
capitalista porque permaneceram dependentes dessa ordem, principal-
mente porque todas elas eventualmente buscariam a paz com o coloni-
zador. Até o Haiti assinaria um tratado obrigando o povo haitiano a pagar
uma indenização à França para ser reconhecido como nação. Essa indeni-
zação desempenhou um grande papel na falência do país.
28
cional. As lutas podem ser locais, mas a luta é internacional. No final, a
resposta não será necessariamente capitalista ou marxista. Em outras
palavras, não será das ferramentas dos mestres. A sociedade do senhor
de escravos não servia às sociedades quilombolas; de fato, a coope-
ração das sociedades quilombolas com as potências coloniais ajuda a
fortalecer o capitalismo racial, por um lado, embora, por outro, suas
atitudes rebeldes e o senso de independência também nos permitem ver
alternativas ao capitalismo racial. Teremos que reimaginar como é a
economia política. Isso significa aproveitar os exemplos dessas comu-
nidades com uma lente crítica que vai além da adoração de heróis, ao
mesmo tempo que reconhece suas conquistas notáveis.
Referências
29
GONZALEZ, J. H. Maroon nation: a history of revolutionary Haiti.
New York: Yale University Press, 2019.
GORDON, L. “Caste, class, and race” @70. Public Books. 2019.
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an-inquiry-into-the-nature-and-causes-of-the-wealth-of-nations-
cannan-ed-vol-2. Acesso em: 8 out. 2022.
30
AQUILOMBAMENTOS
Lutas quilombolas, educação e protagonismo
feminino no Ceará
Marcelle Carvalho
Joseli do Nascimento Cordeiro
Introdução
32
Dessa forma, atualmente, a historiografia concebe maior diversi-
dade em relação à história e configuração das comunidades remanescentes
de quilombos, bem como das motivações de suas formações, pois cada
quilombo possui seu próprio passado, alguns surgiram da fuga de escravi-
zados, outros de insurreições, outros de concessões de terras a um ou mais
indivíduos emancipados, outros de ocupações de terras por indivíduos ou
famílias livres ou emancipadas etc. Atualmente também se destaca a di-
versidade de suas localizações, podendo ser rurais ou urbanas.
Desde o período escravocrata, os quilombos permitiram alterna-
tivas de solidariedade negra. Atualmente, estão presentes em todo terri-
tório nacional, lutando pelo reconhecimento e posse legal de suas terras,
legados e demais direitos. Nesse texto, cabe pensar as experiências pró-
prias dos quilombos atuais e o protagonismo das mulheres quilombolas,
que foram, continuamente, invisibilizadas pela produção acadêmica,
apesar de desempenharem papeis múltiplos e ativos em suas comuni-
dades. Propomos ressaltar a riqueza cultural, as articulações políticas e
os impactos das ações afirmativas nessas comunidades. Dessa forma,
assentamo-nos na pesquisa bibliográfica e em entrevistas desenvol-
vidas com mulheres quilombolas de comunidades assentadas no estado
do Ceará. Assim, buscamos contribuir para o fomento das pesquisas em
relação à questão quilombola, valorizando uma abordagem sensível e
humanizante, refletindo acerca de outras epistemologias e problemá-
ticas, trazendo as vozes das próprias mulheres sobre sua percepção do
protagonismo feminino e das conquistas educacionais. Dessa forma, os
relatos seguem o formato original concedido pelas fontes, respeitando
sua coloquialidade, territorialidade e outras marcas de linguagem com
valor social e histórico.
Acesso à educação
33
das comunidades existentes no país, que conseguiram finalizar um pro-
cesso moroso e burocrático. Inúmeros outros seguem aguardando certi-
ficação ou sequer iniciaram seu pedido, devido a dificuldades finan-
ceiras, documentais, organizacionais, entre outras.
Apesar das dificuldades de reconhecimento social e governa-
mental, os quilombos seguem como espaços dotados de saberes e habi-
lidades, com conhecimentos passados de geração em geração, para a
valorização da memória coletiva, da alimentação saudável, da agricul-
tura sustentável. As habilidades desenvolvidas pelas comunidades são
diversas e fazem convergir várias áreas de conhecimento. Porém, tais
conhecimentos, muitas vezes, não participavam do ensino formal, das
escolas, institutos e universidades. Ou seja, a marginalização continuou
após o período de criminalização e perseguição colonial e imperial.
Além da barreira epistemológica, o próprio acesso à educação formal é
repleto de desafios, como, por exemplo, a distância espacial, visto que
muitos encontram-se longe das escolas e com difícil acesso a transporte
público, sendo frequentemente localizados na zona rural.
De forma organizada e estruturada, desde a década de 1980, os
remanescentes quilombolas lutam para o diálogo com seus saberes e
valores no currículo formal, bem como para a ampliação do acesso à
educação. Dessa forma, conseguiram direcionar propostas para uma
Educação Escolar Quilombola, justificando suas demandas e urgências
para a criação de escolas quilombolas, instaladas em seus territórios,
que deveriam empregar um currículo valorizando vivências pedagó-
gicas que favorecessem sua memória, sua relação com a terra, com a
coletividade e demais estruturas culturais e sociais, reconhecendo a
história de luta por reconhecimento de sua herança africana e afro-bra-
sileira. Assim, os(as) remanescentes quilombolas lutavam por espaços
de acolhimento em uma educação formal. Em 2012, tal estrutura foi
regulamentada com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola, que se assentou sobre a Lei n.º
10.639/2003, que dispõe sobre o ensino de história da África e cultura
afro-brasileira no ensino básico, bem como da Lei n.º 11.645/2008,
que a complementava, tornando obrigatório o estudo da história e cul-
tura indígena (CAMPOS; GALLINARI, 2017).
34
Em 2022, ainda são poucas as escolas quilombolas realmente
instaladas no Brasil, sendo que no Ceará há apenas uma, a Escola
Quilombola Luzia Maria da Conceição, no município de Croatá. As
poucas escolas quilombolas já iniciadas em todo o Brasil ainda sofrem
com estrutura e funcionamento precários e, com a pandemia da covid-
19, com a falta de acesso à internet e de materiais de informática. Tudo
isso tem contribuído para o agravamento da vulnerabilidade social
dessas crianças, jovens e adultos.
A dificuldade de formação no nível da educação básica também
repercute nos baixos números de quilombolas com acesso ao Ensino
Superior. Ao longo do século XXI, as ações afirmativas foram empre-
gadas a fim de compensar os grupos historicamente marginalizados e
aumentar o número de formados no nível técnico e superior, bem como
o acesso a cargos públicos, com vagas destinadas a cotas. Em 2005, a
Universidade Federal da Bahia (UFBA) foi pioneira na criação de cotas
para remanescentes quilombolas. Em 2012, foi aprovada a Lei n.º
12.711, para ser implementada no ano seguinte, criando cotas em insti-
tutos e universidades para egressos das escolas públicas (não necessa-
riamente cotas raciais). Desde então as universidades públicas brasi-
leiras vêm adotando, individualmente, cotas semelhantes.
Apesar das conquistas no nível político e legislativo, o Grupo de
Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMA), da Univer
sidade do Estado do Rio de Janeiro, apontou inúmeras falhas na concre-
tização das cotas para atingir quilombolas no Brasil, demonstrando, em
2019, um avanço ainda muito insatisfatório. O grupo afirmava que a
falta de coesão nacional para encaminhamento da ação afirmativa difi-
cultava a divulgação e implementação da política, fazendo com que
cada universidade tivesse seu próprio modelo de implementação e os
jovens não conseguissem acessar as informações necessárias para a ins-
crição (VENTURA, 2021).
35
duação pelo país, apesar de assumirem diversos papéis (sociais, polí-
ticos e econômicos) dentro das comunidades remanescentes de qui-
lombos. Além de não serem reconhecidas nos meios externos às
comunidades, elas ainda enfrentam diversos tipos de discriminação.
Segundo Lelia Gonzalez, a mulher negra no Brasil sofre discrimi-
nação tríplice, ou seja, social, racial e sexual (GONZALEZ, 2018, p.
117). No caso quilombola, outras vulnerabilidades se sobrepõem a
essas, seja pela territorialidade, incompreensão dos órgãos públicos
acerca de suas demandas e especificidades, não reconhecimento de
seus direitos e avanço violento de posseiros e agricultores. Além
dessas, ainda se somam relatos sobre a cobrança social de que compo-
nham um “tipo racial puro”, ou seja, de que possuam estética e cultura
que remetem diretamente a ideais de africanidade e, consequente-
mente, se diferenciam das características tidas como brasileiras para
serem dignas dos direitos que reclamam. Em relação a essa cobrança,
Beatriz Nascimento escreve que:
Não existem mais “bons selvagens” como não existem mais “negros
puros” que saibam seu ramo africano no Brasil. Depois de nos explorar
e tirar as melhores coisas, depois de nos reprimir, a ideologia dominante
quer nos “descobrir” (como costumam dizer alguns dos paladinos em
favor do negro) “puros”, “ricos culturalmente”, “conscientes de nossa
raça”. Não entendem que esses ideais de pureza, beleza, virilidade, for-
taleza que querem nos inculcar, são conceitos seus, impregnados de sua
cultura; quanto à nossa consciência de nós só pode sair de nós mesmos
e a partir de uma consciência do dominador (NASCIMENTO, 1974
apud RATTS, 2007, p. 100).
36
Protagonismo feminino no Ceará
37
Desde as conversas informais no nosso cotidiano, a espaços profis-
sionais, hoje com exemplo concretos nos espaços públicos. Toda essa
representatividade, feita através de muitas reivindicações e luta, nos
fortalece como quilombola e como mulher de fibra e resistência.
Nossos primeiros exemplos na educação superior nos faz acreditarmos
em outras possibilidades e concretiza sonhos de nossos mais velhos,
de estarmos preparado para esses espaços com as nossas formações.
Por isso, a educação sempre foi vista por nós como essencial ao nosso
crescimento profissional e pessoal. Nos fortalecendo para reivindicar
nossos direitos e ocupar espaços, antes visto por nós como algo distante.
38
família e cuidar de nós mesma. Creio que aqui onde moro seja o papel
que a gente tem é de suma importância para outras meninas negras,
porque conseguimos a muito custo um pensamento crítico sobre a nossa
realidade, e assim nos tornamos os agentes principais da nossa própria
história [...].
39
Estamos com a missão de representar uma comunidade inteira, e de
lutarmos para garantir o acesso e a permanência dos outros que virão.
Fazê-los acreditar que esse espaço também é pra eles, nos traz um peso
e uma responsabilidade.
Por isso acredito que nunca estaremos sós, nas nossas lutas.
E que cada um que conseguir chegar ao Ensino Superior e permanecer,
já é uma vitória nossa.
Eu acreditava que esse espaço não era pra mim e muitas vezes nem
cheguei a sonhar com ele.
Hoje eu vejo os meus lá, como eu estou. Isso me dá esperança de termos
mais de nós nesses espaços e sonho com os frutos que irão retornar para
a comunidade.
Não vejo minha luta como algo solitário. Estou aí por mim, por elas e
por nós. E por isso desistir não está nos meus planos.
Esse espaço acadêmico é muito caro pra nós e sempre levarei o nome
da minha comunidade onde eu estiver.
Considerações finais
Tanto a educação escolar quanto a de nível superior enfrentam
inúmeras dificuldades, principalmente pela grande quantidade de litera-
tura acadêmica de perspectiva eurocêntrica, pelos equívocos e estereó-
tipos reproduzidos na grande mídia e nos materiais didáticos, além do
baixo número de profissionais qualificados. Assim, desde o início do
século XXI, as universidades e institutos federais têm a obrigatoriedade
de contribuir para a produção de recursos humanos e bibliográficos que
forneçam uma perspectiva diferenciada, que fujam da lógica escravista
e colonial, percebendo a história e os conhecimentos dessas populações
como heranças positivas.
40
As universidades têm muito a aprender com as comunidades tra-
dicionais, e o diálogo entre elas vem trazendo novas fontes, novos pro-
blemas e novas formas de interpretar e lidar com o mundo. Os seus sa-
beres vêm sendo reconhecidos pelas universidades brasileiras nos
últimos anos, com líderes comunitários convidados(as) a participar de
eventos acadêmicos, a contribuir com relatos em diversos tipos de ati-
vidades acadêmicas, colaborando em projetos de extensão, de pesquisa
e de ensino e sendo agraciados com títulos de doutor(a) honoris causa.
Porém, o acesso à educação superior ainda é uma conquista em anda-
mento, com baixos números de ingressantes e egressos. Eles e elas
estão saindo do lugar de somente objetos de pesquisa e assumindo a
posição de pesquisadores/as, reivindicando assim um espaço que
também é seu na produção acadêmica.
Referências
41
ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Diário Oficial
da União, Brasília, 30 ago. 2012.
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42
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43
COSMOPERCEPÇÃO QUILOMBOLA
Trajetórias e desafios de casa à universidade
45
tural quilombola está presente na gastronomia à base dos derivados de
mandioca, nas brincadeiras de roda, nas manifestações culturais[...]”,
(DEALDINA, 2020 p. 17). Assim sendo, os territórios quilombolas são
espaços educacionais, onde o modo de ser e de viver das famílias é
passado pelas gerações através da oralidade.
A luta pelo reconhecimento de nossa existência, produção e repro-
dução de nossos conhecimentos sempre esteve em evidência nas lutas de
ontem e de hoje de nossa população, em particular do movimento negro,
como aponta Djamila Ribeiro, no Pequeno manual antirracista:
46
espaço coletivo, dos quintais produtivos, das sementes crioulas e das
tradições culturais, tais como as danças e as cantigas.
Por meio de uma visão crítica e um olhar multifacetado, é pos-
sível enxergar as diversas realidades contributivas para a formação so-
cial, cultural, política e econômica da população brasileira. Enxergar
esses fatos é de suma relevância para visibilizar uma população que
fora sócio-historicamente invisibilizada, a população quilombola.
As tentativas de apagamento dos corpos negros e de suas produ-
ções de conhecimentos continuam acentuadamente atuantes, embora
tenhamos tido alguns avanços significativos, como a lei de cotas raciais
nas universidades (Lei n.°12.711/12), o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (Pronera), o Programa Universidade para Todos
(Prouni) e os editais específicos para indígenas e quilombolas.
Essas conquistas são frutos de décadas de luta, de resistência, de
resiliência, de sangue e suor derramados, para que corpos negros pu-
dessem e possam ingressar nas universidades para partilhar, produzir e
fortalecer seus próprios conhecimentos.
As reflexões sobre a ausência/negação dos conhecimentos pro-
duzidos pelos povos tradicionais, em particular dos quilombolas, nas
universidades são evidentes e trazem vários questionamentos, entre
eles: por que há tanta dificuldade em (re)conhecer/respeitar/valorizar os
conhecimentos ancestrais dessa população? Por que ignoram a grandio-
sidade de “nós” na universidade? Muitas das vezes se torna cansativo
repetir a mesma lição (que tais corporeidades [re]existem e são per-
meadas por uma cosmopercepção quilombola). Busco o uso do termo
cosmopercepção, em contraponto ao viés ocidental de cosmovisão, a
partir da perspectiva de Oyewumi (1997).
Lima Barreto, em seu livro intitulado O triste fim de Policarpo
Quaresma, descreve que:
Além do que, penso que todo este nosso sacrifício tem sido inútil. Tudo
o que nele pus de pensamento não foi atingido, e o sangue que der-
ramei, e o sofrimento que vou sofrer toda a vida, foram empregados,
foram gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralizados
em prol de uma tolice política qualquer... Ninguém compreende o que
quero, ninguém deseja penetrar e sentir; passo por doido, tolo, maníaco
47
e a vida se vai fazendo inexoravelmente com sua brutalidade e fealdade
(BARRETO, 2015, p. 109).
48
população. A areia ainda insiste em queimar nossos pés calejados, mas
que não se cansam de lutar para ocupar o lugar que é nosso por direito.
Nesse sentido, a entrada de estudantes quilombolas nas universi-
dades continua sendo um grande desafio, pois, até o momento, o número
de instituições de nível superior no Ceará que criam mecanismos de acesso
e permanência com base na singularidade desses sujeitos é quase inexis-
tente. O estado do Ceará tem 84 quilombos, segundo o movimento deno-
minado de Comissão Estadual dos Quilombolas do Ceará (CequirCE).
Esse movimento reconhece que há ainda muito mais comunidades qui-
lombolas que continuam no anonimato no estado e para o estado.
As experiências aqui mencionadas são de duas universidades
cearenses: a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade da
Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab-CE).
Destaco mais uma vez que a presença do povo quilombola nesses es-
paços é fruto de intensas lutas ancestrais. Na UFC, atualmente, temos
matriculados apenas quatro quilombolas, uma em Educação, cuja en-
trada ocorreu através da ampla concorrência, outra no mestrado em
História Social e outras duas no doutorado, também em História.
Em relação ao curso de História, tais estudantes quilombolas
ingressaram através de um edital específico para indígenas e quilom-
bolas, levando em consideração o princípio da equidade. Esses estu-
dantes também receberam e recebem uma bolsa de estudos como ga-
rantia de permanência na universidade e de continuidade na produção
de conhecimentos.
Aqui cabe alguns outros questionamentos: entre a comunidade
estudantil quilombola que está atualmente nessa instituição, por que o
número (mesmo ainda minúsculo) é maior no curso de História? Qual a
importância de se pensar em outras formas de inclusão com ênfase na
particularidade dos sujeitos? O que a UFC tem feito ao longo de seus 64
anos de existência para diminuir as desigualdades causadas pelo pro-
cesso sócio-histórico e para o enfretamento do racismo que continua a
cimentar e estruturar as relações sociais?
Além dos questionamentos realizados sobre a referida universi-
dade, destaco que o curso de História até o presente momento tem sido
o único a caminhar na contramão dos demais cursos ao implementar e
49
experimentar outras formas de acesso e permanência, neste caso, o
edital específico para indígenas e quilombolas.
As universidades, de modo geral, e em particular as do Ceará,
têm uma dívida sócio-histórica com essa população. Assim, já é pas-
sada a hora de pensar estratégias de inclusão em todos os cursos a fim
de que outras corporeidades (indígenas, quilombolas, povos de terreiro,
ciganos, refugiados, pessoas com deficiência, pessoas com identidade
trans, travestis e não binárias) tenham oportunidade de ingressar com
dignidade na academia.
Na Unilab-CE, até 2016, havia somente uma estudante quilom-
bola, cuja entrada se deu por meio do Sistema de Seleção Utilizando os
Resultados do Enem (Sisure). Em 2017, aconteceu no Quilombo Sítio
Veiga, em Quixadá (CE), o 17.° Encontro Estadual das Comunidades
Rurais Quilombolas, do qual participaram diversas lideranças, juven-
tude de vários territórios e docentes e discentes de diversas universi-
dades, com o objetivo de debater a Educação Escolar Quilombola e os
caminhos de acesso à educação superior e de permanência.
Os intensos debates foram de suma importância para alavancar e
fortalecer a necessidade de pensar formas de ingresso. Foi com a força
da ancestralidade do povo quilombola e com a resistência dos partici-
pantes do encontro que se fez nascer o edital específico para indígena e
quilombola na Unilab. Entre esses participantes, destacam-se os do-
centes da Unilab: Eliane Costa Santos, Jacqueline Silva Costa e Ivan
Costa Lima; e os discentes da mesma instituição: o estudante guineense
Samora Caetano e o quilombola Geovane Ferreira.
Foram esses docentes e discentes que, ao retornarem para a refe-
rida universidade, puseram em prática o clamor da juventude, de ho-
mens e mulheres participantes do encontro, sob o solo sagrado do terri-
tório quilombola do Sítio Veiga. O curso de Pedagogia foi o primeiro a
enxergar e ouvir a voz dos quilombolas, ofertando de início 11 vagas,
sendo 6 para quilombolas e 5 para indígenas.
Começara ali a intensa e dolorosa caminhada de casa para romper
com os muros da universidade. Inicialmente, o edital contemplava so-
mente discentes do Ceará e, a partir do segundo, foi estendido para o
campus do Malês, em São Francisco do Conde, na Bahia.
50
Depois de muitos esforços, os demais cursos foram aderindo e
ampliando o número de vagas. Ainda assim, houve cursos que taparam
seus ouvidos diante dos nossos gritos, e que tapavam seus olhos recu-
sando enxergar as nossas corporeidades, desrespeitando nossa cosmo-
percepção quilombola. Estes não sabem, e nem saberão, o tamanho de
suas perdas ao ignorarem o nosso direito de fortalecer, partilhar, pro-
duzir e absorver conhecimentos. No livro intitulado Mulheres quilom-
bolas: territórios de existências negras femininas, Dealdina (2019)
afirma que:
51
gadas tenham a oportunidade de ingressar e permanecer com digni-
dade na universidade.
Assim, foi criado o Grupo de Estudos (GT), com representantes
dos diversos segmentos que compõem a universidade, inicialmente com
indígenas, quilombolas e docentes do edital específico. Depois houve a
necessidade de ampliar para que mais grupos pudessem contribuir na
construção da proposta de forma inclusiva. Desse modo, o GT foi com-
posto por: indígenas, quilombolas, povos de terreiro, ciganos, população
LGBTQIA+, docentes e técnicas/os sensíveis à causa. A ideia era dis-
cutir uma proposta de políticas afirmativas de forma institucionalizada.
Reunimo-nos por aproximadamente um ano, ouvindo e bus-
cando experiências de políticas de ações afirmativas de outras univer-
sidades, a fim de somar com a experiência do edital específico de in-
dígenas e quilombolas. Destaco que, durante os dois anos de existência
do edital, os dois coletivos supracitados mobilizaram diversos de-
bates, objetivando discussões acerca de ingresso e permanência para
os povos tradicionais.
Em meados de 2021, o GT encaminhou para o Conselho
Universitário (Consuni) a proposta a ser apreciada e votada. Em 20 de
agosto do referido ano, é aprovada a instituição e regulamentação do
Programa de Ações Afirmativas, através da Resolução Consuni/Unilab
n.° 40. Nesta, estão inseridos os grupos listados a seguir:
52
dindo sua implementação efetiva. Depois de muitos desgastes, tensio-
namentos e resistência, nós, representantes dos diversos segmentos,
defendemos que tudo o que diz respeito à política de ações afirmativas
na Unilab deve ser apresentado e apreciado anteriormente pelo Capaf,
para que o processo seja de fato democrático, pois sem a participação
discente não há formada democracia!
O comitê é formado por representantes dos diversos segmentos da
instituição do Ceará e da Bahia, denominado Comitê de Acompanhamento
das Políticas de Ação Afirmativa (Capaf), designado pela Portaria
Reitoria/Unilab n.° 32, de 3 de fevereiro de 2021, visando ao acompa-
nhamento e implementação da referida política na instituição.
A morosidade na implementação da referida política ocorre
porque os processos estão acontecendo sem nossa participação.
Muitas das vezes, as decisões chegam apenas como informes, vio-
lando nosso direito de participação nas tomadas de decisão. Esses fa-
tores vêm causando intensos conflitos e adoecimentos. Como forma
de repudiar a violação dos direitos de nosso povo, nós, representantes
dos diversos segmentos, realizamos reuniões, assembleias e duas
notas de repúdio, por compreendermos que a democracia deve ser
sempre a base no caminhar de casa à universidade. Portanto, a partir
da afirmativa de que nossas vozes devem ser consideradas e merecem
ser respeitadas, exigimos participação popular. Como dito inicial-
mente, nossos passos e compassos vêm de longe, e longe chegaremos,
visto que nada foi dado, sempre foi fruto de luta. “Nunca” foi sorte/
esmola, sempre foi força ancestral.
Nossa luta e resistência continuam latentes, nosso desejo é
que a política seja discutida, construída e implementada de forma
coletiva. Almejamos que nossas práticas tradicionais, saberes, fa-
zeres e corporeidades sejam também contabilizados como produ-
toras/res de saberes.
Queremos que nossos conhecimentos sejam cruzados do qui-
lombo à universidade, sem que haja prejuízos para nenhuma das partes.
Nossos territórios quilombolas são símbolos de resistência, com orga-
nização social peculiar, mantenedora de ligação com a história e traje-
tória ancestral quilombola, preservando, produzindo e partilhando co-
53
nhecimentos herdados de nossos antepassados e repassados para as
gerações futuras do quilombo à universidade.
Referências
54
RIBERO, D. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
SILVA, A. M. E. da. As quilombolas do Sítio Veiga e a dança de
São Gonçalo em Quixadá-CE. 2021. Dissertação (Mestrado em
Humanidades) – Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Humanidades, Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, 2021.
55
A “RETOMADA DA EDUCAÇÃO”
Uma experiência de educação quilombola no
Quilombo Nazaré em Serrano do Maranhão (MA)
Introdução
57
A leitura que fazemos do processo de implantação dessa edu-
cação quilombola nas comunidades quilombolas, assim como de outras
políticas públicas, é de um lento caminhar, desde 1988 até os dias atuais,
apesar de que, segundo Arruti (2017, p. 114-115), os primeiros passos
para uma educação quilombola foram dados por ocasião da Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, assi-
nada no ano de 1969. Conforme esse autor, por essa convenção, o Brasil
incorporou “a diretriz que destacava o papel da educação para a ga-
rantia do respeito aos direitos, incluindo a análise das causas e das con-
sequências do racismo”.
Outro passo não menos importante foi a edição da nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação no Brasil (Lei n.º 9.394/1996), como
já falamos acima, uma vez que nela foram inclusas importantes mu-
danças na educação, entre elas (importante no que se refere à edu-
cação quilombola), a necessidade de contemplar no ensino da História
do Brasil as contribuições das diferentes culturas e etnias para a for-
mação do povo brasileiro, sobretudo as de origens indígena, africana
e europeia. Estamos reiterando aqui para mostrar uma cronologia
desse processo.
Lembramos que essa determinação funcionou e funciona, so-
bretudo, em relação à cultura europeia, o que já vinha sendo cum-
prido desde sempre. Africanos e indígenas continuaram no ostra-
cismo sob diversas e distintas alegações, entre elas, a falta de
preparo de professores.
Isso é verdade na medida em que os currículos dos Cursos de
História das universidades brasileiras, até bem pouco tempo, não con-
templavam em suas grades curriculares a disciplina História da África
ou um aprofundamento da importância do continente africano para a
história geral das sociedades, muito menos conteúdo sobre os povos
indígenas, a não ser no contexto do trabalho compulsório de ambas as
etnias. Essa situação está muito evidente nos livros didáticos da disci-
plina de História, os quais ainda hoje privilegiam a história europeia em
detrimento da de outros povos.
Para tentar corrigir essa situação, a Lei n.º 10.639 foi editada
em 2003, introduzindo “a obrigatoriedade da inclusão, no currículo
58
oficial das redes de ensino, públicas e particulares, da temática
‘História e Cultura Afro-Brasileira’”. Ao lado dessa determinação
legal, foram criadas pelo governo federal a Secretaria Especial da
Promoção da Igualdade Racial (Sepir) e a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), sendo a primeira
responsável pelo Programa Brasil Quilombola, e a segunda, pela im-
plementação da Lei n.º 10.639. De acordo com Arruti (2017), a
questão a ser levada em consideração até esse ponto é a inserção da
população negra do Brasil na pauta da educação, já que até então a
demanda girava em torno do acesso à terra.
Fazendo pela primeira vez uma referência direta às comuni-
dades quilombolas, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004), sendo
aquelas o público de interesse, apesar de não o específico (ARRUTI,
2017, p. 115).
As pressões do movimento negro, do movimento quilombola e
de outras organizações da sociedade civil levaram a Câmara de
Educação Básica do Conselho Nacional de Educação a aprovar as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
(DCNEEQEB),14 por meio da Resolução n.º 8, de 20 de novembro de
2012, tendo como objetivo “orientar os sistemas de ensino para que eles
colocassem em prática a Educação Escolar Quilombola, mantendo um
diálogo com a realidade sociocultural e política das comunidades e do
movimento quilombola” (BRASIL, 2012, p. 1). O texto assegurava às
comunidades quilombolas o direito a uma educação que priorizasse os
valores que são caros para cada comunidade quilombola.
No artigo 59 está estabelecido que: “É de responsabilidade do
Estado cumprir a Educação Escolar Quilombola tal como previsto no
art. 208 da Constituição Federal”. Ou seja, o Estado, qualquer que seja
sua esfera (municipal, estadual ou federal), deveria, a partir de então,
oferecer educação quilombola, da mesma forma ofertada para os de-
14 A partir daqui utilizaremos essa sigla para falarmos das diretrizes curriculares da edu-
cação quilombola.
59
mais segmentos da sociedade. Na análise de Carril (2017, p. 544 ), isso
se faz necessário a fim de “[...] salvaguardar e reforçar a identidade
cultural em ambientes escolares que, explicitamente ou não, podem vir
a manifestar formas de preconceito e racismo e repensar processos edu-
cacionais”, visto que estes devem abarcar “[...] as comunidades quilom-
bolas como elemento central de seus projetos”.
Apesar dessa determinação, até os dias atuais, a educação qui-
lombola ainda está longe de ser efetivada nas comunidades quilom-
bolas no Brasil, salvo alguns casos isolados, em que os próprios qui-
lombolas tomam para si a responsabilidade, a despeito das autoridades
públicas, pela implementação da educação quilombola em seus territó-
rios, como é o caso do Quilombo Nazaré, no município de Serrano do
Maranhão (MA), do qual falaremos mais adiante neste artigo.
60
No que se refere à “educação quilombola”15 no Maranhão, o
Censo Escolar do ano de 2016 registou um total de 56.603 matrículas
quilombolas, em 716 escolas de educação básica, com um total de 3.910
professores atuando em escolas quilombolas. O Governo do Estado
também firmou convênio de cooperação técnico-científica com a
Universidade Federal do Maranhão, a qual implantou em 2015 o curso
de Licenciatura em Estudos Africanos e Afro-Brasileiros, no sentido de
qualificar professores para atuar na educação quilombola no estado.16
Por meio do Programa Escola Digna, o governo estadual tem auxi-
liado municípios na reforma de escolas de educação básica instaladas em
comunidades quilombolas (também),17 assim como na compra de equi-
pamentos e móveis para essas escolas, como foi o caso da Escola Nossa
Senhora de Nazaré, no Quilombo Nazaré, conforme declaração do atual
secretário de Educação, senhor Felipe Camarão.18 Algumas escolas, qui-
lombolas ou não, construídas pelo Programa Escola Digna parecem obe-
decer a um modelo padrão, como demonstram as Figuras 1 e 2.
15 Ponho educação quilombola entre aspas, neste caso, tendo em vista esta resumir-se,
sobretudo, a prédios e denominações, sem a introdução nas escolas locais do ensino
quilombola propriamente dito.
16 Disponível em: www.educacao.ma.gov.br (consultado em 26 de junho de 2019).
17 O Programa Escola Digna faz parte da macropolítica para a educação do atual Governo do
Estado, voltado prioritariamente para o Ensino Médio, que é de responsabilidade do estado,
mas também contribuindo com os municípios, com o objetivo de melhoria da educação.
18 Disponível em: www.igualdaderacial.ma.gov.br (consultado em 26 de junho de 2019).
61
Figura 1 – Escola quilombola em fase de acabamento na comunidade quilombola
de Damásio, em Guimarães (MA)
Fonte: http://www.educacao.ma.gov.br/
62
As escolas ditas “quilombolas” construídas pelo governo esta-
dual estão voltadas para atender a alunos do Ensino Médio, cuja respon-
sabilidade compete à esfera estadual, porém algumas escolas quilom-
bolas do Ensino Fundamental da rede municipal estão sendo incluídas
no Programa Escola Digna, por meio da parceria entre estado e muni-
cípios, como é o caso da reforma efetuada na Escola Municipal Nossa
Senhora de Nazaré, do Quilombo Nazaré.
63
cipal, e até mesmo convênios com instituições públicas do Ensino
Superior, a educação quilombola, como estabelecem as Diretrizes da
Educação Quilombola, ainda se restringe ao papel.
Na opinião de uma integrante do Projeto Vida de Negro (PVN)
do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN):
64
A “retomada da educação” em Serrano
do Maranhão (MA)
[...] escola deve ser considerada não apenas o espaço para a apropriação
do saber sistematizado, [...] mas, também o espaço de reapropriação da
cultura produzida pelos grupos sociais étnicos excluídos [...] a escola
deve deixar de ser o espaço de negação dos saberes para enfatizar a afir-
mação da diferença, num processo em que os indivíduos e grupos sejam
aceitos e valorizados pelas suas singularidades, ao invés de buscar a
igualdade pela tentativa de anulação e inferiorização das diferenças
(LOPES, 1997, p. 25, apud LIMA, 2017, p. 47).
65
do Quilombo Nazaré se organizou para assumir o controle da escola
local e das práticas pedagógicas a serem trabalhadas na Escola Nossa
Senhora de Nazaré.
Antes de falarmos da “retomada da educação” no Quilombo
Nazaré, é importante apresentá-lo aos leitores. Ele está localizado na
zona rural do município de Serrano do Maranhão (MA), a 43 km da
sede desse município, na microrregião Litoral Ocidental Maranhense, a
187 km da capital São Luís, emancipado em 1994, quando foi desmem-
brado do município de Cururupu (MA).
Possui uma população de 10.914 habitantes, segundo dados do
IBGE/Censo 2010, composta por 99% de negros e negras, com 94%
desses habitantes autorreconhecendo-se como quilombolas.
O Quilombo Nazaré é uma entre as doze comunidades quilom-
bolas que compõem o território Mariano dos Campos. No “dizer” dos
moradores locais, o Quilombo Nazaré é a primeira comunidade do
“nascer do sol”, em relação ao território, isto é, fica na extremidade do
território tomando como base o nascente.
A ação denominada pelos quilombolas do local como a “retomada
da educação” teve início em 2004 precipitada pela tentativa da Secretaria
de Educação do Município de desativar a escola da comunidade que
atendia a alunos da educação infantil ao 9.º ano do Ensino Fundamental,
alegando número insuficiente de alunos. Nessa oportunidade, Dona Ana
e seus filhos Gil e Lidiane, os quais possuíam a formação em Educação
do Campo, tomaram a frente do processo. Ou seja, a educação nessa
comunidade, no que diz respeito à coordenação e ensino, tornou-se um
trabalho familiar. As falas abaixo apontam para a questão que move e
sempre moveu a população negra no Brasil: a resistência.
66
As práticas pedagógicas desenvolvidas nessa perspectiva de “re-
tomada da educação” consistem num diálogo entre professores, alunos
e demais membros da comunidade, cujos conhecimentos são levados
em consideração no processo ensino/aprendizagem. As atividades de
sala de aula, conforme informou Dona Ana, são pautadas em projetos
pedagógicos envolvendo professores, alunos e moradores da comuni-
dade com saberes específicos.
As aulas consistem em conteúdo do currículo oficial, valorizando
a cultura afro-brasileira e os valores específicos vivenciados dentro da
comunidade, visando a fortalecer o sentimento de pertencimento nas
crianças e adolescentes da comunidade. Desse modo, os moradores fre-
quentemente são convidados para participar de oficinas onde repassam
seus saberes específicos, geralmente relacionados a um objeto ou a uma
prática que faz parte do cotidiano da comunidade.
Os docentes que atuam na escola são moradores da comunidade,
sobretudo Dona Ana e seus filhos Gil e Lidiane, ou ainda professores de
comunidades vizinhas, engajadas no movimento quilombola.
A comunidade, por outro lado, apesar de manter o controle do
processo educativo em seu território, por questões burocráticas e para
que esse processo tenha legitimidade nas instâncias legais, recorre à
Secretaria de Educação do Município a fim de que a escola seja inserida
no censo escolar anual. As demais interferências do poder público nas
ações educativas na comunidade contam com a anuência de seus mem-
bros para serem ou não postas em prática.
67
A prefeitura municipal de Serrano vez por outra faz incursões na
comunidade na tentativa de impor suas diretrizes dentro da escola, seja
pelo envio de professores de outras localidades, inclusive da sede, seja
pelo atraso na entrega da escola reformada com a ajuda do governo do
Estado. Em 2019, quando visitamos essa comunidade, a escola estava
com a reforma concluída, equipada com móveis e eletrodomésticos,
porém não havia sido oficialmente entregue aos moradores. No en-
tanto, diante da necessidade que tinham os alunos de frequentarem as
aulas, a comunidade adentrou a escola, utilizando apenas as salas de
aula e realizando as atividades pedagógicas, porém sem utilizar os ele-
trodomésticos, como geladeira, fogão e outros. Estivemos em feve-
reiro de 2019 na escola, que só foi entregue, oficialmente, em de-
zembro de 2020.
Algumas considerações
68
está dando resultados positivos, especialmente para crianças e adoles-
centes, os quais adquiriram desenvoltura no falar, no apresentar sua co-
munidade a outras comunidades, pois, segundo Dona Ana, alguns
alunos têm se deslocado para falar de suas experiências em outros lu-
gares, fora dos limites da Baixada Ocidental Maranhense.
Outra questão importante é que a experiência da “retomada da
educação” iniciada no Quilombo Nazaré tem chegado a outras comuni-
dades quilombolas do município, mas também a outros municípios,
como é o caso de Santa Helena, vizinha de Serrano do Maranhão.
Apesar dos bons resultados da experiência, o Quilombo Nazaré
ainda enfrenta um problema sério envolvendo os alunos que concluem
o ensino fundamental. Após o 9.º ano, alguns alunos ficam sem estudar
se não tiverem uma casa na cidade, ou de algum parente, tendo em vista
que a prefeitura só disponibiliza transporte até o encerramento das ati-
vidades nas escolas municipais, e, geralmente, as aulas nas escolas da
rede estadual de ensino, que oferece o Ensino Médio, encerram suas
atividades bem mais tarde, e os alunos do quilombo nelas matriculados
ficam reprovados por não concluírem o ano letivo. Na ocasião em que
visitamos a comunidade, havia uma promessa da Secretaria Estadual de
Educação de criar uma sala da 1ª série do Ensino Médio na comunidade
ou em outra localidade mais próxima a fim de resolver essa situação.
Referências
ARRUTI, J. M. Conceitos, normas e números: uma introdução à
Educação Escolar Quilombola. Revista Contemporânea de Educação,
v. 12, n. 23, jan./ abr. 2017.
BRASIL. Resolução n.º 8, de 20 de novembro de 2012. Define
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
na Educação Básica. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 nov. 2012. Seção 1, p. 26.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola: algumas informações. Brasília: Câmara de Educação
Básica do Conselho Nacional de Educação, 2011.
69
CARRIL, L. de F. B. Os desafios da educação quilombola no Brasil: o
território como contexto e texto. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
rbedu/a/L9vwgCcgBY6sF4KwMpdYcfK/?format=html#. Acesso em:
31 mar. 2022.
GONÇALVES, D. P. Da escola no quilombo à escola do quilombo: as
propostas pedagógicas como possibilidade de diversificar o currículo das
escolas quilombolas de Ensino Fundamental no município de Bequimão
(MA). 2019. Dissertação (Mestrado em Gestão de Ensino da Educação
Básica) – Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2019.
LIMA, I. C. História da educação do negro(a) no Brasil: pedagogia
interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo. Curitiba:
Appris, 2017.
Entrevistas
Entrevista realizada com Célia, integrante do Projeto Vida de Negro,
em 15 de março de 2019.
Entrevista realizada com Gil, liderança quilombola do Quilombo
Nazaré, em 15 de fevereiro de 2019.
Entrevista com Dona Ana, mãe de Gil e Lidiane em 15 de fevereiro
de 2019.
Sites
www.educacao.ma.gov.br
www.igualdaderacial.ma.gov.br
70
TERRA, TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES
E BEM-VIVER NO
QUILOMBO DO CUMBE – ARACATI (CE)
E NA TERRA INDÍGENA TREMEMBÉ DA
BARRA DO RIO MUNDAÚ – ITAPIPOCA (CE)
Introdução
72
a 12 km da sede do município. Localizado na margem direita do rio
Jaguaribe, próximo à foz, é circundado por áreas de carnaubais e man-
guezais, campo de dunas móveis, lagoas temporárias, sítios arqueoló-
gicos e faixa de praia. O povoado é formado por cerca de 170 famílias,
das quais 111 se autodefinem como quilombolas, tendo no ecossistema
manguezal e no estuário do rio Jaguaribe seu principal meio de vida.
Foi certificado pela Fundação Cultural Palmares, órgão federal respon-
sável pela identificação e certificação das comunidades remanescentes
de quilombos, em dezembro de 2014.
Sobre a origem do nome Cumbe, alguns autores assim definem:
Nas línguas congo/angola tem os sentidos de sol, dia, luz, fogo e força
trançada ao poder dos reis e à forma de elaborar e compreender a vida e a
história. Para Nei Lopes, a origem da palavra vem do “quimbundo kumbi,
correspondente ao umbundo ekumbi, sol” (D’SALETE, 2014, p. 171).
73
Embora algumas pesquisas e fontes documentais apontem ele-
mentos da cultura africana ou afro-brasileira em diferentes regiões do
estado, verificamos que parte da população local e a sociedade, de
modo geral, apresentam um ranço em afirmar e reconhecer a população
afrodescendente como importante para a diversidade cultural do estado,
embora muitos contem histórias e memórias orais dos nossos antepas-
sados de maioria negra. Essa negação da presença negra ou africana em
solo cearense, está ligada a fortes processos negativos construídos ao
longo dos anos, como também à ideia de superioridade de um grupo
social em detrimento de outro.
Na contemporaneidade, a noção de quilombo ou de comunidade
quilombola é bastante diferente do quilombo histórico, descrito nos do-
cumentos escravocratas da época. Assim diz o professor Henrique
Cunha Júnior:
74
A região do Aracati produzia carne seca e couro e o lugar, uma zona
portuária, era estratégico para comercialização destes produtos com
Recife, Salvador e o Rio de Janeiro. Entre 1740 e 1790, uma média
de trinta embarcações comercializou, anualmente, o couro e a carne
do Ceará no Porto da Vila de Santa Cruz do Aracati (JUCÁ NETO,
2012, p. 331).
75
de vivência e de reprodução. Mas a territorialidade humana pressupõe
também a preocupação com o destino, a construção do futuro, o que,
entre os seres vivos, é privilégio do homem (SANTOS, 2006, p. 19).
76
Dessa forma, as ações desenvolvidas por nós, quilombolas do
Cumbe, são importantes para o nosso processo organizativo, o fortale-
cimento da nossa identidade, a defesa do território e para a valorização
dos nossos saberes e modos de fazer. Em cooperação com nossos par-
ceiros e grupos de pesquisas universitárias, estamos construindo nossos
mapas sociais, ou cartografia social, desenvolvendo o turismo comuni-
tário e a museologia social, entendendo e compreendendo o território
como um museu a céu aberto, trabalhando as festas, celebrações e lu-
gares de memórias como importante patrimônio cultural que deve ser
salvaguardado para as presentes e futuras gerações.
Avançar com o processo de regularização fundiária do território
quilombola do Cumbe é uma demanda urgente e necessária, uma das
bandeiras de luta também defendida pelos povos originários do Ceará,
especialmente da Terra Indígena da Barra do Rio Mundaú, em Itapipoca,
litoral oeste do Ceará.
77
O conhecimento tradicional, também denominado etnoconhecimento
ou saber local, diz respeito a conjuntos de conhecimentos construídos
e reconstruídos no seio de dada população tradicional. O conhecimento
tradicional é um ponto presente na discussão acerca da reprodução cul-
tural de grupos étnicos. Esse patrimônio imaterial, expresso nos conhe-
cimentos, distingue os grupos e faz parte de sua identidade cultural. A
relação íntima com o território e os recursos naturais disponíveis criam
as bases para a construção de um conhecimento intimamente ligado
com a identidade desses grupos, que dependem de suas terras para a
sua sobrevivência e sua constituição identitária (PINTO, 2016, p. 17).
Conclusão
78
e ambiental que recai fortemente contra nós quilombolas e povos origi-
nários quando nos posicionamos contrários às políticas econômicas de-
senvolvimentistas, defendidas e financiadas pelos governos, que não
levam em consideração a relação que estabelecemos com os sistemas
ambientais presentes nos nossos territórios tradicionais, demarcadores
das nossas identidades.
O Quilombo do Cumbe no município do Aracati e a Terra
Indígena da Barra do Rio Mundaú em Itapipoca, ambas comunidades
na zona costeira do Ceará, precisam urgentemente ter seus territórios de
vida e bem-viver regularizados, evitando, dessa forma, sua invasão e
destruição por atividades econômicas que não respeitam nossa forma de
reprodução social, cultural e política. Cabe ao nosso povo buscar estra-
tégias que nos assegure autonomia para gerenciar nosso território, pro-
duzir alimentos saudáveis, criando, dessa forma, territórios livres dos
projetos de morte e de toda forma de injustiça e desigualdade social.
Referências
79
PINTO, A. L. A. Na nossa terra tem murici e batiputá: o conheci-
mento etnobotânico dos Tremembé sobre as frutas nativas. 2016. 116f.
Dissertação (Mestrado Acadêmico em Sociobiodiversidade e
Tecnologias Sustentáveis) – Curso de, Instituto de Engenharias e
Desenvolvimento Sustentável, Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Redenção, 2016.
RATTS, A. Traços étnicos: espacialidade e culturas negras e indígenas
no Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará: Secult, 2009.
SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI.
9. ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
80
POVO INDÍGENA ATIKUM,
MEMÓRIA E LUTA POR DIREITOS
Maria das Graças da Silva (Graça Atikum)
82
natureza e o sobrenatural. Mantêm o papel socializador e educador da
família, aplicam os sábios conhecimentos milenares e praticam o res-
peito à natureza. Com isso, as culturas indígenas seguem manifestando
sua personalidade coletiva e de alteridade, seja no trabalho ou na festa,
e por isso são democráticas e populares (BANIWÁ, p. 2006, p. 50).
83
oral, vários povos conseguiram resistir às pressões em ‘sítios’ mais
afastados e de difícil acesso”. Alessandro Portelli (1998) confirma que
[...] as fontes orais revelam as intenções dos feitos, suas crenças, men-
talidades, imaginário e pensamentos referentes às experiências vividas.
Ela se impõe como primordial para compreensão e estudos do tempo
presente, pois só através dela podemos conhecer os sonhos, anseios,
crenças e lembranças do passado de pessoas anônimas, simples, sem
nenhum status político ou econômico, mas que viveram os aconteci-
mentos de sua época (PORTELLI, 1998, p. 57).
Está cada vez mais frequente a presença das novas gerações nos
debates dentro das organizações internas das suas comunidades. No co-
tidiano, os jovens Atikum se destacam pelo seu protagonismo e atuação.
De maneira ampla, eles vêm pautando demandas e alcançando con-
quistas, sem abandonar a sabedoria dos seus ancestrais. Com o advento
da Constituição Federal de 1988, os indígenas vêm cada vez mais ocu-
pando os espaços dentro e fora dos seus territórios. Segundo Oliveira
(1999), “ao invés de desaparecerem, eles se fortalecem politicamente,
exercendo considerável influência na sociedade”.
Essa juventude tem habilidades relevantes por manter, ao longo
desses anos, a força dos seus integrantes presente em diversas situações
e ações afirmativas dentro e fora do território. Hoje esses jovens, além
de difundirem a história do seu povo mundo afora, fazem parte de al-
gumas organizações na esfera estadual e nacional, como a Cojipe
(Comissão de Juventude Indígena de Pernambuco). A organização
84
reúne jovens de todas as etnias indígenas de Pernambuco que lutam
constantemente por políticas afirmativas e pela efetivação dos seus di-
reitos já garantidos por lei. O artigo 231 da Constituição Federal ga-
rante o respeito à “organização social, aos usos, costumes e tradições”
dos povos indígenas.
85
receber os ensinamentos necessários e, assim, darem continuidade à
história. Nossos mais velhos detêm importantes saberes e nós temos
que ouvi-los para poder pôr em prática. A história repassada por eles
mantém viva a cultura vivenciada na comunidade.
[...] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da me-
mória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a
realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a me-
mória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória
do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibili-
tando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992, p. 17).
86
hábitos, tradições, costumes e simbologias que antes eram vivenciados
somente nos locais sagrados, nas comunidades, nas matas, nos terreiros
de toré, também adentram esses espaços e passam a fazer parte dele, o
que vai desencadear novas interpretações, ganhando mais visibilidade.
Segundo Graça Graúna,
Reconhecer a propriedade intelectual indígena, implica respeitar as
várias faces de sua manifestação. Isso quer dizer que a noção de cole-
tivo não está dissociada do livro individual de autoria indígena; nunca
esteve, muito menos agora com a força do pensamento indígena con-
figurando diferenciadas (os) estantes e instantes da palavra. Ao tomar
o rumo da escrita no formato de livro, os mitos de origem não perdem
a função nem o sentido, pois continuam sendo transmitidos de geração
em geração, em variados caminhos: no porantim, no traçado das esteiras
e dos cestos, na feitura do barro, na pintura corporal, nas contas de um
colar, na poesia, na contação de histórias e outros fazeres identitários
que os Filhos e as Filhas da Terra utilizam como legítimas expressões
artísticas, ligando-as também ao sagrado (GRAÚNA, 2013, p. 172).
87
[...] nós, povos contra colonizadores, temos demonstrado em muitos
momentos da história a nossa capacidade de compreender e até de con-
viver com a complexidade das questões que esses processos têm nos
apresentado. Por exemplo: as sucessivas ressignificações das nossas
identidades em meio aos mais perversos contextos de racismo, dis-
criminação e estigmas; a readaptação dos nossos modos de vida em
territórios retalhados, descaracterizados e degradados; a interlocução
das nossas linguagens orais com a linguagem escrita dos colonizadores
(SANTOS, 2015, p. 97).
Referências
88
CRUZ, F. Indígenas antropólogos e o espetáculo da alteridade.
Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 11, n. 2,
p. 93-108, 2017.
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FERNANDES, F. R. Protagonismo indígena no tempo presente:
aspectos da educação escolar específica e diferenciada. Revista
Amazônida: Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Amazonas, v. 3, n. 1, p. 65-79, 2018.
GRAÚNA, G. Contrapontos da literatura indígena contemporânea no
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LACED: Museu Nacional, 2006. (Coleção Educação Para Todos).
NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares.
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EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO CEARÁ
Lutas, avanços e desafios
92
de 1948 da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Declaração das
Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas de 2007.
NÚMERO DE
MUNICÍPIOS ETNIAS
ESCOLAS
Anacé, Tapeba,
Aquiraz, Maracanaú, Pacatuba e Caucaia 14
Pitaguary, Jenipapo Kanindé
Itapipoca Tremembé 1
Acaraú Tremembé 2
Itarema Tremembé 7
São Benedito Tapuia Kariri 1
Aratuba Kanindé 1
Canindé Kanindé 1
Quiterianópolis Tabajara 1
93
de maneira forçada os índios dentro de uma sociedade construída com
o suor e sangue dos povos. As legislações que vieram anteriormente,
vigentes naquele tempo, colocavam como obrigatória a união dos ín-
dios à sociedade, porém não abordava pontos primordiais para acon-
tecer de maneira honesta com os povos nativos. Dentro do processo de
renovação de uma legislação para a outra, a educação indígena passou
por mudanças importantes, porém sempre marcadas com o intuito de
imposição dos valores dos colonizadores e de negação das culturas na-
tivas, fenômeno que perdurou por muito tempo.
Após muita luta e resistência, os governantes brasileiros come-
çaram a reconhecer a rica diversidade dos grupos étnicos, assim como a
sua autonomia. Daí em diante a legislação abrangia toda essa diversi-
dade, possibilitando acesso e manuseio das suas peculiaridades cultu-
rais, como história e língua, influenciando nas políticas governamentais
em relação à educação diferenciada. Importante reforçar que tudo
ocorreu entre órgãos governamentais e não governamentais, que origi-
naram diversas entidades de apoio às comunidades indígenas. Até hoje,
essas entidades são responsáveis por articulações estratégicas para con-
seguir mais direitos e exigir mudanças dentro do processo de cultura,
língua e educação.
Para relatar a educação e o seu processo dentro da sociedade,
devemos relembrar que o índio só pode ser de fato índio com sua cultura
e suas peculiaridades a partir da elaboração da Constituição de 1988.
Após isso, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional foi um dos
pilares da sociedade que passou por mudanças para atender melhor os
indígenas. Essa lei abordou o direito dos povos indígenas a uma edu-
cação diferenciada, pautada pelo uso das línguas indígenas, pela valori-
zação dos conhecimentos e saberes milenares e pela formação dos pró-
prios índios para atuarem como docentes em suas comunidades.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada no
ano de 1996, funciona da seguinte forma: ela estabelece as normas
para o sistema educacional do país, trazendo assim para nós, educa-
dores e educandos, direitos e deveres que vão da educação infantil à
educação superior. Apesar de essas leis estarem abaixo da Constituição
Brasileira, elas atuam de maneira importante para a organização edu-
94
cacional. A nova LDB traz de maneira explícita a educação escolar para
os povos indígenas, aborda pontos importantes que possibilitam uma
reflexão. O seu artigo 26, por exemplo, estabelece que os currículos do
Ensino Fundamental e Médio devem ter uma base nacional comum, a
ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento es-
colar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regio-
nais e locais da sociedade, da cultura, da economiae da clientela. Dentro
desses aspectos, é necessário observar como foi dada liberdade para
manusear o ensino de acordo com os propósitos da escola indígena,
respeitando sempre a base nacional comum do ensino proposto na
LDB. Ao mesmo tempo, os artigos 78 e 79 relatam que o Estado deve
oferecer uma educação indígena diferenciada intercultural e bilíngue,
ou seja, que envolva a cultura dos colonizadores com a dos povos ori-
ginários do país, facilitando a esses povos que fortaleçam e recuperem
suas memórias dos antepassados, reafirmando histórias e proporcio-
nando uma cultura justa e livre. Artigos como esses ainda intencionam
proporcionar e garantir acesso às comunidades e povos, acesso às in-
formações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional
e demais sociedades indígenas e não indígenas, além de proporcionar
aos índios, suas comunidades e povos a recuperação de suas memórias
históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de
suas línguas e ciências.
Para que tais expectativas possam ser realizadas, a LDB deve
promover a articulação dos sistemas de ensino com sistemas de pesquisa
para que possam envolver comunidades e povos de diversas etnias
dentro da educação. Isso é necessário, pois tudo envolve um currículo
que necessita ser conduzido, construído e discutido de maneira particu-
larizada para levar o conhecimento ao aluno. É necessário abordar
dentro desse currículo educacional os meios culturais que envolvam
cada comunidade considerando onde é localizada. Esses artigos
apresentados anteriormente nos levam a ver como a LDB orienta a edu-
cação diferenciada, e como o ensino é diferente das demais escolas e
dos demais sistemas de ensino. Dessa forma, o artigo 79 da Lei
n.º 9.394/96, estabelece que os demais sistemas de ensino devam com-
partilhar as responsabilidades com a União e determina o apoio técnico
95
e financeiro para o provimento da Educação Escolar Indígena, afir-
mando que os programas serão planejados com a participação das co-
munidades indígenas.
Dentro dos aspectos educacionais dessa educação diferenciada
encontramos o Plano Nacional de Educação, que também auxilia
dentro da legislação para organizar e comandar o ensino nas escolas
indígenas. O PNE deve seguir os direitos estabelecidos na LDB e na
Constituição Federal. Nós da educação indígena temos um documento
denominado de Plano Nacional de Educação Escolar Indígena, o qual
leva o mesmo conceito do PNE. O PNEEI, portanto, é um método de
fazer o planejamento de modo intergovernamental das escolas indí-
genas, no qual temos o objetivo de incluir propostas com o intuito de
fortalecer o regime de colaboração entre os entes federados, a partici-
pação social, a transparência das ações e a gestão por resultados,
constituindo-se em instrumento de monitoramento, avaliação e con-
trole social da educação indígena. O Plano Nacional de Educação
prevê ainda a criação de programas específicos para atender às escolas
indígenas, bem como a criação de linhas de financiamento para a
implementação dos programas de educação em áreas indígenas.
Estabelece-se que a União, em colaboração com os estados, deve
equipar as escolas indígenas com recursos didático-pedagógicos bá-
sicos, incluindo bibliotecas, videotecas e outros materiais de apoio,
bem como adaptar os programas já existentes hoje no Ministério da
Educação em termos de auxílio ao desenvolvimento da educação es-
colar indígena em nosso país.
96
Iniciamos pela questão do atraso histórico dentro da educação
diferenciada, afinal hoje temos problemas relativos, por exemplo, à in-
fraestrutura das escolas; aos materiais didáticos – há uma enorme diver-
sidade de conteúdos nos livros disponibilizados, mas, na maioria das
vezes, o que é considerado relevante em relação à interculturalidade é
bastante escasso, isso, quando o material necessário para trabalhar
é recebido pela escola. É essencial, assim, no tocante aos conteúdos e
materiais didáticos, um equilíbrio no currículo escolar obrigatório que
possa de uma maneira melhor atender aos alunos e aos educadores.
Cabe destacar que a articulação com outros órgãos responsáveis
pelas políticas indigenistas, como os gestores dos programas de atenção
à saúde indígena, proteção do meio ambiente, desenvolvimento susten-
tável etc., serve para melhor implementar as ações de educação escolar
indígena, em particular o ensino técnico, a ser desenvolvido em har-
monia com os projetos de futuro de cada povo. Essa também é uma
grande dificuldade em nosso meio. A escassez de projetos inclusivos e
ativos nos deixam de mãos atadas diante do processo de ensino-aprendi-
zagem. Esse ponto nos traz muita preocupação, pois nós, como atuantes
dentro do movimento indígena, dependemos de articulações como essas
para a produção de materiais didáticos que reflitam as realidades so-
ciolinguísticas, a oralidade e os conhecimentos dos povos indígenas.
Então, podemos deduzir que, quanto mais entidades, programas e arti-
culações de movimentações pelo meio, maiores são as chances de rea-
lizar os projetos.
O último ponto, e não menos importante, é em relação à for-
mação de professores indígenas dentro do sistema de ensino brasileiro.
A formação de professores indígenas, visando ao fortalecimento das
identidades, línguas e culturas indígenas, tem sido a política central do
atual trabalho do MEC. É uma ação que pode espelhar e conter as inú-
meras sutilezas da extraordinária sociodiversidade indígena no Brasil.
A legislação brasileira tem observações preciosas a respeito de como
deve ser desenvolvida a formação de professores das respectivas etnias
indígenas. Porém, muitas vezes, existem exceções exorbitantes dentro
da formação do profissional indígena da educação, pois ainda é pos-
sível encontrar projetos de formação adaptados de contextos não indí-
97
genas, com uma vasta proposta curricular totalmente fragmentada e
contextualizada sob o ponto de vista dos órgãos públicos, e, em outros
casos, têm-se projetos compostos por docentes sem a mínima prepa-
ração e experiência com as questões indígenas.
Essas não são as únicas dificuldades, porém elas assolam o en-
sino diferenciado indígena, muitas vezes nos deixando impossibilitados
de fazer algo. A partir desse momento, as políticas públicas do Estado
devem realizar planejamentos a fim de que nós professores entremos
em ação para levar o conhecimento até nossos alunos. Posteriormente,
por meio de imagens, veremos um dos principais problemas citados
dentro desse tópico, no comparativo de como eram as escolas e como
ficaram depois de muita luta pelas políticas públicas necessárias para
melhorar o ensino diferenciado.
98
– e os que dão suporte à tradição escrita – de apropriação individual e
competitiva –, os quais, na escola, quase sempre se apresentam como
saberes compartimentados.
A Escola Indígena Joaquim Ugena fica localizada na zona rural
de Monsenhor Tabosa (CE). Ela é pertencente ao povo Potiguara, que
ali está localizado, e foi criada pela necessidade dos alunos, principal-
mente dos mais velhos, de aprender a ler e escrever. Sua primeira turma
foi de Educação de Jovens e Adultos (EJA), que foi concedida pela
professora Maria Silva Sampaio (Marlúcia Potiguara). Hoje a escola
tem um prédio próprio e um quadro de professores formados, os quais
se empenham ao máximo, dentro do possível, para dar continuidade
ao processo de ensino-aprendizagem do aluno. Anexadas ao trabalho,
teremos fotos demonstrativas da escola e de alguns profissionais res-
ponsáveis pela instituição.
A Escola Indígena Francisco Gonçalves de Sousa foi criada pela
comunidade indígena Tapuya Kariri no ano de 2007 e pelo Governo do
Estado do Ceará, em 2010. Através do Diário Oficial do Estado, pelo
Decreto n.º 30.257, com código Inep n.º 23545461, ficou estabelecida
como Instituição de Ensino Específico, Intercultural e Comunitário, lo-
calizada na Aldeia Indígena Gameleira do Povo Tapuya Kariri – São
Benedito (CE). Sua finalidade, assim como de outras instituições, é ofe-
recer a educação básica aos níveis, proporcionar a interculturalidade
dentro das escolas de ensino diferenciado e assim ofertar o ensino ne-
cessário. Anexadas, teremos fotos demonstrativas de como ela era no
início e de como ela está atualmente.
É necessário sempre estar informado de tudo que ocorre no que
compete à educação indígena e no tocante à legislação. É crucial
também sermos resistência e lutarmos por mais direitos como povos
originários deste país. Por meio disso, tal como dito anteriormente, é
primordial sempre uma junção da educação própria com a educação
que nossos ancestrais trazem de muito tempo. A preservação da Escola
Francisco Gonçalves de Sousa é um exemplo básico, assim como a
Escola Joaquim Ugena. São exemplos claros da valorização do espaço,
da língua, da interculturalidade vivida naquele espaço que traz experiên-
cias únicas dentro de cada comunidade.
99
Considerações finais
Referências
100
Anexos
ESCOLA INDÍGENA JOAQUIM UGENA
101
ESCOLA INDÍGENA FRANCISCO GONÇALVES DE SOUSA
102
INDÍGENAS NA ANTROPOLOGIA
E OS DESAFIOS DA PESQUISA
DENTRO E FORA DAS UNIVERSIDADES21
104
área em que atualmente conduzo meus estudos de mestrado. Considero
importante sistematizar minhas primeiras impressões sobre essa temá-
tica por dois motivos: o primeiro diz respeito à percepção de que, em-
bora os etnólogos estejam acostumados a pesquisar e falar sobre indí-
genas no Brasil, ter um indígena em sala de aula é uma situação nova,
que pode muitas vezes originar desencontros e mal-entendidos entre
ambas as partes. Considerando que existe uma grande produção sobre
povos indígenas que foi escrita sem necessariamente levar em conside-
ração que esse material viesse a ser lido por membros das realidades
descritas, a presença de indígenas antropólogos em sala de aula propor-
ciona novas questões e lança diferentes possibilidades de diálogos sobre
os quais precisamos refletir.
O segundo motivo que me move na escrita deste artigo é a cons-
ciência do quão difícil foi encontrar material disponível em português
que me ajudasse a compreender a particularidade que envolve a for-
mação de indígenas em Antropologia e que me preparasse tanto para a
especificidade de ser indígena dentro da universidade, como também
para realizar pesquisas em minha aldeia. A dificuldade em encontrar
textos endereçados a pesquisadores indígenas reflete a verdadeira ine-
xistência desses materiais, sejam escritos por indígenas ou não indí-
genas. Lentamente, esse processo vem se alterando e, com o aumento
de indígenas cursando Antropologia, essa discussão vem ganhando es-
paço dentro da academia. Um passo importante nesse cenário foi a pu-
blicação da tese de doutorado de Gersem Luciano (2013) e da disser-
tação de mestrado do indígena Guarani Tonico Benites.26
Para o presente objetivo, lançarei mão de duas situações que
vivi ao longo de minha ainda curta trajetória acadêmica e que foram
muito produtivas no sentido de proporcionar indagações sobre o que
105
seria um indígena antropólogo27 e quais tensões podemos encontrar ao
fazer Antropologia. A primeira situação diz respeito a uma experiência
em sala de aula e traz à tona questões acerca de como as imagens e
discursos elaborados a respeito dos povos indígenas contêm uma carga
de exotismo muito desconfortável, e, às vezes, são os próprios antro-
pólogos que incorrem em generalizações e em visões puristas sobre
esses povos.
No segundo relato, descrevo uma entrevista que realizei com um
líder espiritual de minha comunidade do povo Tuxá do norte da Bahia.
Foi uma situação que me proporcionou reflexões sobre discussões ine-
rentes ao fazer antropológico: a ideia do distanciamento e da familiari-
dade, bem como da objetividade e da neutralidade. Se, no primeiro re-
lato, abordo as imagens de índios predominantes na sociedade nacional,
no segundo, tento mostrar como essas imagens afetam as formas como
nós, indígenas, percebemos a nós mesmos, gerando confusão, afetando
tradições e autoestima.
106
Durante a minha graduação, tive a oportunidade de me matri-
cular em um curso intitulado “Pensadores e cineastas indígenas”, que
indicava uma temática ainda pouco explorada em nossa grade curri-
cular. A oportunidade de ler e conhecer a produção de intelectuais indí-
genas deixou não somente a mim como também aos outros colegas bas-
tante animados com a proposta que o curso nos sugeria. Na aula
inaugural, durante a apresentação do programa, o professor, etnólogo
de longa experiência etnográfica, nos falou sobre a crescente produção
audiovisual conduzida por indígenas e nos comunicou que esse seria o
foco de nossas aulas. Em seguida, presenciei o seguinte diálogo:
107
gens difundidas sobre os povos indígenas. Trata-se menos de tentar
compreender o que poderia embasar a afirmação de que o pensamento
indígena é algo que se perde ao ser escrito, e mais de tentar elucidar as
consequências e implicações que derivam de tal visão dentro do atual
contexto de vida dos povos indígenas.
Muitos povos indígenas se lançaram em uma corrida emergen-
cial pelo domínio da escrita e, mais atualmente, na busca pelo acesso às
universidades, o que é plenamente compreensível se levarmos em con-
sideração o local que a escrita e a ciência ocupam dentro de uma visão
eurocêntrica, a partir da qual o conhecimento letrado é mais válido que
as tradições orais. Existe uma “História” (a história com “H”) eurocên-
trica (GOODY, 2015) que clama para si o monopólio para a enunciação
de discursos amparados em regime de verdade, quais sejam, os dis-
cursos respaldados pelo aparato cientificista. Para Foucault (1999, p.
9), esse é um processo por vezes violento, uma vez que a dinâmica de
conformação de determinado regime discursivo como verdadeiro é
sempre caracterizada por processos de interdição e exclusão, isto é, de
silenciamento de outras vozes e formas de ver o mundo.
Esse advento científico-positivista faz parte do processo da cons-
tituição da autoimagem europeia centrada nos elementos de uma pre-
tensa superioridade, pautada, por exemplo, nos ideais da civilização e
do progresso da humanidade. Sendo assim, as relações estabelecidas a
partir do colonialismo com a alteridade foram marcadas pela desumani-
zação e exploração, situando-as sempre em uma relação assimétrica. As
consequências desse etnocentrismo são as que já bem conhecemos: ra-
cismo, escravidão, xenofobia, genocídio etc. Na conquista do conti-
nente americano, os povos aqui encontrados foram tidos como humanos
– tinham alma – mas sempre com as devidas ressalvas. A condição
desses povos enquanto “índios” tinha os dias contados. Seriam conver-
tidos e civilizados, só assim alcançariam a condição plena de humano.
Aos que recusassem e resistissem a essa empreitada, poderia se declarar
uma guerra “justa”, de modo a serem exterminados.
O motivo que me leva a fazer essas considerações é simples: no
imaginário brasileiro, a condição indígena foi também vista desde os
primórdios da colonização como uma condição temporária. Nós pode-
108
ríamos ser amansados, catequizados e convertidos, civilizados e, por
fim, integrados e assimilados à sociedade.28 Este seria um processo ine-
vitável, no qual o tempo e a ação civilizatória eram os grandes vetores.
Foi somente na Constituição Federal de 1988 que o país promulgou o
fim de uma política indigenista assimilacionista, e, pela primeira vez,
foi reconhecida aos povos indígenas a possibilidade de permanecerem
indígenas (LIMA, 2008, p. 85).
Se essa visão de que a alteridade se dissolveria é algo fortemente
presente no senso comum, podemos, talvez, estabelecer algumas conti-
nuidades entre ela e as considerações que, por muito tempo, influen-
ciaram as ideias e as preocupações de antropólogos. Concordando com
a afirmação de Lévi-Strauss (1993, p. 38) de que, “se a sociedade está
na antropologia, a antropologia, ela própria, está na sociedade”, po-
demos de fato perceber continuidades entre o discurso antropológico e
muitas das ideias que habitam o senso comum sobre os povos indí-
genas. Para tal, precisamos apenas pensar como a teoria da aculturação
se associava de forma curiosa aos discursos assimilacionistas da polí-
tica indigenista oficial do século XX.29
Antropólogos têm a sua participação nesse processo com as suas
teorias evolucionistas e modelos de aculturação (que aliás configura um
dos termos do jargão antropológico que mais penetrou no imaginário
nacional). Eles também acreditaram em um processo em curso no qual
indígenas estivessem perdendo o seu caráter distintivo. Todavia, qual
era o tom então com que percebiam esse processo?
28 A aposta na dissolução dos “índios” sempre esteve presente no imaginário dos brancos
sob as mais diferentes formas. Já na “Carta do Achamento”, o escrivão Pero Vaz de
Caminha relata para a Coroa portuguesa a importância de converter e amansar os povos
nativos na terra recém-conquistada. A condição do “índio” foi vista como uma exis-
tência sobre a qual se devia intervir, e o projeto era claro: transformar e dissolver o
outro. A prática missionária jesuítica visou à catequização e conversão (Baêta Neves,
1978); as práticas administrativas do Serviço de Proteção Índio: pacificar, civilizar e
integrar (Souza Lima, 1995); tal visão também encontra respaldo jurídico [como está
presente] no Estatuto do Índio e no modelo antropológico da transfiguração étnica de
Darcy Ribeiro (1977).
29 O exemplo maior disso é, sem dúvida, a participação do antropólogo Darcy Ribeiro no
Serviço de Proteção do Índio e o seu modelo teórico da transfiguração étnica (1977).
109
Malinowski (1978), um dos mais proeminentes antropólogos,
alertou os futuros etnógrafos sobre uma triste realidade da disciplina em
sua famosa obra Argonautas do Pacífico Ocidental, quando, ao retratar
o seu método de trabalho de campo lamenta que “agora, numa época
em que os métodos e os objetivos da etnologia científica parecem ter se
delineado; em que um pessoal adequadamente treinado para a pesquisa
científica está começando a empreender viagem às regiões selvagens e
a estudar seus habitantes, estes estão desaparecendo ante nossos olhos”
(MALINOWSKI, 1978, p. 11). Franz Boas, por sua vez, retrata nos
povos que estudou algo que chama de “caráter etnológico”, a partir do
qual é possível perceber que:
110
nação acaba por ter uma forte carga preconceituosa que, em última ins-
tância, reproduz obstáculos para a construção de diálogos menos assi-
métricos com a sociedade não indígena.
Durante muito tempo, nós, indígenas no Brasil, fomos legalmente
enquadrados na categoria jurídica de “relativamente incapazes”, o que
implica a inaptidão de falar por nós mesmos e de responder legalmente
por nossas ações (LIMA, 1993; 2008; 2015). Negar a escrita em nome
de algo denominado “pensamento indígena” é um sofisma que acaba por
bloquear consideravelmente o acesso a uma ferramenta crucial por meio
da qual indígenas procuram estabelecer diálogos horizontais com a so-
ciedade dominante. A escrita é a linguagem do poder, não podendo, por-
tanto, estar ausente dos projetos indígenas na busca por maior autonomia
e dignidade. Ela representa um dos maiores desafios para nós, indígenas,
uma vez que é a linguagem da sociedade dominante.
Outro desafio que a escrita coloca é toda a problemática que en-
volve a tradução de realidades que estiveram estruturadas, sobretudo,
na oralidade, para regimes textualizados. A tradução pode de fato trans-
formar o conteúdo em algo diferente, mas isso não precisa ser um pro-
blema. Configura antes um desafio, um desafio que os povos indígenas
já tomaram para si há muito tempo; são apenas os essencialistas que
temem que transformação signifique perda.
A situação de negação que recordei acima é semelhante a outra
vivida pelo antropólogo indígena Gersem Luciano da etnia Baniwa
(2011), em seus tempos de estudante, à qual ele faz referência em sua
tese de doutorado:
111
do mundo inteiro a se depararem com questionamentos acerca da ideia
de autenticidade. Reproduz um abismo entre nós e eles que, dentro do
campo intersocietário das relações interétnicas brasileiras, tem recaído
na inferiorização dos povos indígenas. No caso da escrita, o seu do-
mínio passa a ser negado como um atributo do pensamento indígena
apenas porque ela nunca foi uma prática autenticamente indígena. No
centro de colocações desse tipo “está a crença de que a cultura indígena
não pode mudar, não pode se recriar e ainda se afirmar como indígena”
(SMITH, 1999, p. 74). Negar a escrita aos povos indígenas é também
demarcar uma fronteira entre os que podem escrever com propriedade
e os que não podem.
Posições como essas implicam barreiras para os processos indí-
genas de busca por maior autonomia e estão muitas vezes também as-
sociadas à ideia de “cultura” que, possuindo uma miríade de signifi-
cados, tornou-se também uma camisa de força. Isso porque danças,
histórias, cantos e tantas outras práticas se tornaram um verdadeiro
atestado de indianidade a partir, justamente, de um pseudopurismo cuja
ideia de autenticidade constrange os povos indígenas enquanto sujeitos
históricos. Os estigmas se tornaram emblemas de uma alteridade cari-
caturada que os brancos reproduzem, perpetuando preconceitos. Para
ver esse processo em prática, basta ir a uma escola primária no dia 19
de abril, Dia do Índio, e ver as crianças pintadas brincando de ser ín-
dios. Enquanto isso, os índios de “verdade” estão sendo assassinados
em conflitos fundiários ou são deixados à miséria, confinados em mi-
núsculas reservas.
A forma como as realidades indígenas são retratadas em dife-
rentes discursos encontra um substrato comum que está difundido em
canções, literatura, cinema e, também, dentro da própria universidade.30
Ao serem reproduzidos dentro do espaço acadêmico, encontramos dis-
cursos que estão embasados no aparato cientificista, o que os reveste de
efeitos bastante particulares. Quando são os antropólogos que falam de
índios de forma a generalizar atributos inerentes a um pensamento indí-
30 Ver artigo de Alcida Ramos (2011a) no qual a autora aborda comparativamente o tema
das imagéticas nacionais em torno dos povos indígenas no Brasil, Colômbia e Argentina.
112
gena, as consequências têm outro alcance. A Antropologia se conso-
lidou enquanto ciência ocupando, precisamente, o local em que o co-
nhecimento sobre a alteridade é produzido. É sobre os diferentes povos
que a disciplina possui legitimidade para falar. O relato que mencionei
pode parecer um fato isolado, restrito a uma situação específica que
vivenciei, mas acredito que ele é relevante para pensar a dificuldade de
romper com certas imagens que, embora pareçam hoje “superadas”,
podem voltar à tona com uma nova roupagem, pelo simples fato de que
as ideias socialmente compartilhadas custam a se alterar.
Ainda hoje parece existir uma preocupação de que os indígenas,
ao acessarem as universidades, estariam deixando de ser indígenas,
ou, para os antropólogos, de que viessem a perder o caráter etnológico
a eles tão caro. Novamente, Gersem Baniwa (2015, p. 241) presen-
ciou situações semelhantes entre antropólogos que considerariam a
universidade como fonte de perdição para os indígenas, não devendo
estes, portanto, acessá-las. Ele relata que certa vez ouviu de um antro-
pólogo: “Gersem, é só você que quer o diploma da universidade. Os
outros indígenas não querem isso, não precisam disso. O que querem
é continuar com seus conhecimentos tradicionais e seus modos pró-
prios de vida em suas aldeias”. A busca por uma formação universi-
tária tem que ser incompatível com conhecimentos tradicionais e
modos próprios de vida? Essas ideias são problemáticas e podem, por
vezes, encontrar embasamentos teóricos muito diferentes, mas cami-
nham numa mesma direção, que é a da negação das coletividades in-
dígenas como sujeitos plenos que podem falar por si, seja oralmente,
visualmente, enquanto antropólogos indígenas, cientistas, nas univer-
sidades ou nas aldeias.
Considero necessário combater as práticas que reproduzem ima-
gens sobre as realidades indígenas definindo uma grande multiplici-
dade de povos como algo homogêneo e congelado no tempo. Este é um
grande desafio, mas acredito que a presença indígena nos espaços uni-
versitários pode problematizar e contribuir para sua desconstrução.
Sobretudo, porque um dos elementos que caracteriza esse “índio” é o
seu distanciamento: o índio está sempre distante. E a melhor forma de
combater essa ideia é se fazendo presente.
113
O meu intuito nesta discussão foi mostrar que, muitas vezes,
os próprios pesquisadores que conhecem as realidades indígenas
podem acabar reproduzindo ideias que, embora bem intencionadas,
acabam por gerar mal-entendidos interétnicos prejudiciais aos indí-
genas. A seguir, abordo outro movimento, que é o de como o longo
processo de colonização e submissão forçada pôde, através de
muitos anos, levar os próprios indígenas a internalizar as formas
como têm sido retratados.
31 Sobre os Programas de Educação Tutorial (PETs) ver: FREITAS, Ana Elisa de Castro.
(org.). Intelectuais indígenas e a construção da universidade pluriétnica no Brasil. Rio
de Janeiro: E-papers, p. 9-18, 2015. Disponível em: http://laced.etc.br/site/arquivos/
LIICUPBR001.pdf. Acesso em: 16 out. 2016.
114
vida dos índios Tuxá. Ele também demonstrou curiosidade em conhecer
os aspectos rituais do nosso povo, sobretudo o culto da jurema.32 O pajé
permitiu que ele o acompanhasse à mata para presenciar a retirada da
jurema, não sem antes explicar o caráter sagrado e secreto daquele pro-
cedimento, pedindo que ele não incluísse aquela parte no produto final
de seu trabalho. Contou-me, então, que, anos depois, quando o docu-
mentário final ficou disponível, viu que o jornalista não havia honrado
sua palavra, tendo inserido a filmagem que mostrava a coleta da ju-
rema. Foi uma situação muito complicada que até hoje gera muita re-
volta em minha comunidade, marcada pelo abuso e postura antiética
entre pesquisador e grupo pesquisado.33
Com o intuito de registrar minhas entrevistas, eu havia adqui-
rido um gravador bem pequeno e discreto que eu poderia pendurar no
pescoço por dentro da camisa. Quando o pajé me relatou esse epi-
sódio, me senti deveras constrangido e não mencionei o gravador,
dando continuidade à conversa normalmente. Só quando sua esposa
me indagou sobre como iria guardar toda a informação, já que não
estava anotando, informei que meu intuito inicial era registrar a con-
versa no gravador. Pedi para iniciar o registro, o que ambos pronta-
mente consentiram. Quando a conversa entrou em assuntos políticos
conflituosos dentro da comunidade, sua esposa novamente interveio,
lembrando: “Ei, não se esqueça que está sendo gravado!”. Ironicamente,
após a entrevista, em minha casa, ao começar a transcrever o áudio,
descobri que o gravador tinha dado uma “pane” e não havia funcio-
32 A jurema (Mimosa hostilis) é uma planta muito usada no complexo ritual do Toré entre
os índios do Nordeste do Brasil. Possui diversas propriedades ritualísticas e ocupa um
lugar central entre as práticas rituais do povo Tuxá. As técnicas de busca, coleta e pre-
paro que ocorrem na mata são consideradas sagradas e secretas para nós.
33 Essa é uma queixa muito comum entre indígenas da América do Norte. Encontramos,
por exemplo, depoimentos como este: “Pesquisadores que estão a par de detalhes ín-
timos da vida tribal devem ser discretos quando escrevem para não revelar informações
que a tribo considera privada ou sagrada. Os transgressores podem sofrer sérias conse-
quências, tanto os não indígenas que usam dados sensíveis e os informantes indígenas
de quem se espera que não divulguem informações religiosas e culturais do grupo”
(MIHESUAH, 1998, p. 4).
115
nado, de modo que nada havia sido registrado, o que, confesso, me
causou mais alívio do que preocupação.
Tendo chegado ao fim do período de campo, percebi que os pro-
fessores envolvidos no projeto estavam muito animados ao verem indí-
genas pesquisando em suas próprias comunidades. É um tipo de inicia-
tiva que representa um passo enorme para a presença de estudantes
indígenas nas universidades e, enquanto pesquisa etnográfica, é atípica
em vários níveis, principalmente, quando pensamos na facilidade de
acesso que temos para transitar “em campo”, ou do conhecimento
prévio de toda uma vida. Todavia, ao fim das pesquisas, pude constatar
com os outros bolsistas do projeto que todos haviam sentido que a fa-
miliaridade era uma questão delicada em suas pesquisas. O problema
não estava, como poderia ser argumentado, em ser a familiaridade res-
ponsável por perda de critério ou de objetividade, como normalmente
aparece em discussões metodológicas nos casos de antropólogos que
pesquisam em suas próprias sociedades, e sim em ocupar o lugar de
pesquisador dentro de “casa” e nas consequências disso.
Sobre essa temática, Paladino (2016) elaborou uma análise geral
da produção acadêmica indígena no Brasil, se debruçando sobre 47 dis-
sertações e teses, na qual comenta sobre como nesses trabalhos foi re-
tratada pelos intelectuais indígenas a especificidade de ocupar o lugar
de pesquisador em suas comunidades:
116
ir embora e dar pouco ou nenhum retorno a respeito dos resultados de
seus estudos (PALADINO, 2016, p. 111-112).
117
não indígena investiga a sua própria sociedade. No meu caso, a familia-
ridade implicava um reconhecimento mútuo que contrariava as expec-
tativas, tanto sobre ser “autenticamente” indígena (pesquisador e indí-
gena seriam posições incompatíveis), como sobre a prática de pesquisa
(ou se é pesquisador, ou se é pesquisado). Vejamos: existe um registro
social em torno do ato de pesquisar que o associa à figura da pessoa de
fora, do não indígena, de modo que a existência de indígenas como
condutores de pesquisa gera estranhamento e até desconfiança, o que
requer uma reconceitualização de práticas de poder fortemente estrutu-
radas, excludentes, que precisam ser ressignificadas para se conformar
ao novo cenário que inclui o indígena pesquisador.
Quanto à familiaridade nos termos da proximidade como algo
problemático, minha experiência me mostrou um conflito entre muitas
coisas que aprendi na antropologia e a forma como penso a minha re-
lação com o meu povo. Aprendemos na antropologia que há uma neces-
sidade de estabelecer um distanciamento, o que no passado foi visto
como sinônimo de não se implicar naquilo que se está a estudar. Nesse
sentido, a familiaridade que ocorre entre os temas estudados e o indí-
gena pesquisador poderia ser percebida negativamente como um in-
dício de parcialidade. Parte do desafio que percebo na atividade de pes-
quisa está em ressignificar o imaginário em torno desse distanciamento,
e pensar em quais termos o trunfo da pesquisa conduzida por indígenas
venha a ser justamente essa familiariadade.34
Há, desde o início, um envolvimento político que está no cerne
do movimento que leva os indígenas a se aventurarem nas universi-
dades. Longe de ser um ponto negativo, ele precisa ser enaltecido, so-
bretudo porque é a falta de envolvimento de pesquisadores de fora, en-
quanto pesquisadores, que tem sido o grande problema denunciado pelo
movimento indígena. Embora tenha havido bastante engajamento polí-
34 Muitos autores de diferentes áreas vêm falando sobre a importância e potencial de en-
riquecimento que podem advir dos relatos de primeira mão daqueles que vivem e co-
nhecem uma determinada realidade. Alguns exemplos são a parceria estabelecida entre
Kopenawa e Albert (2015) e também a proposta de uma antropologia ecumênica por
Ramos (2001).
118
tico por parte de pesquisadores não indígenas, o problema é saber de-
sengajar-se e deixar o indígena falar.35
Em sua maioria, os etnólogos são comprometidos com a causa
indígena, mas esse compromisso é quase sempre limitado a esferas não
acadêmicas. Militância extra-acadêmica é muito comum entre etnó-
logos, mas considerações políticas sobre a atual situação de dominação
na teorização etnológica não são tão comuns assim. Pelo contrário, para
alguns etnólogos são duas esferas bem diferentes que não se devem
misturar. Cabe ressaltar que não se posicionar politicamente já implica
um posicionamento, porque toda pesquisa tem consequências muitas
vezes adversas e dificilmente previstas em sua totalidade.
Enquanto pesquisador indígena, acredito que a finalidade e o com-
promisso do antropólogo não devem ser apenas com a matriz disciplinar,
nem somente com os avanços da ciência, e sim com a melhora das condi-
ções de vida das comunidades. E isso é também um desafio para os indí-
genas que pesquisam, pois é preciso romper com barreiras, de modo a
mostrar que o conhecimento que nós queremos produzir enquanto su-
jeitos comprometidos com o futuro de nossas comunidades não é um
conhecimento enviesado, o que faria dele uma antropologia menor.
A ciência e o ato de pesquisar fazem parte da retórica de superio-
ridade da sociedade dominante, e é importante que as imagens em torno
dessa prática se transformem, de maneira a comportar os pesquisadores
indígenas. Essa nova presença na universidade é muito importante para
esse processo que só avança na medida em que é posto em prática, pois
é crucial que sejam os próprios indígenas a participarem da ressignifi-
cação e reestruturação do fazer antropológico e da proposição de meto-
dologias que respeitem seus modos de viver, pensar e fazer história.
Considerações finais
119
pois estou tratando da problemática inerente às relações interétnicas. Os
desencontros que narrei surgem como produtos de interações entre
grupos que acontecem em um plano bastante assimétrico, como o do
Brasil, marcado historicamente por um longo processo de colonização.
Tentei mostrar como que as representações em torno dos povos
indígenas podem contrariar a sua presença nas universidades. As ideias
que atribuem características inerentes a essas coletividades descreven-
do-as como estáticas acabam por negar a historicidade por trás das ex-
periências e trajetórias particulares de cada grupo.36
Uma vez que essa imagética informa a maneira como somos tra-
tados ao nos relacionarmos com a sociedade envolvente, ela também
nos afeta intensamente, gerando muitas vezes a naturalização da resig-
nação. Entrar nas universidades significa se insubordinar e negar o pre-
conceito com o qual muitas vezes somos retratados.
Quando indígenas passam a produzir conhecimento de dentro da
universidade, velhas práticas e velhos discursos são acionados como
manifestações reacionárias de um longo movimento inercial, tanto por
indígenas como por não indígenas. Esse encontro nas universidades
gera reflexões e incita debates que, nessa arena de produção de conhe-
cimento, podem potencialmente produzir novos espaços de interações
que valorizem e reconheçam a fala indígena. Um desses espaços é o
importante Encontro Nacional de Estudantes Indígenas que, em 2016,
teve sua quarta edição em Santarém, no Pará. Conduzido e organizado
por indígenas, reúne estudantes de diferentes povos de todas as regiões
do país, proporcionando intensa troca de experiências e vivências. Em
um desses encontros, pude ter certeza de que as situações que presen-
ciei em minha trajetória acadêmica eram semelhantes às de tantos ou-
tros. A criação de espaços nos quais podemos falar torna possível a
criação de estratégias coletivas que, baseadas em experiências particu-
lares, podem alterar muito da dinâmica, não somente dentro das univer-
sidades, mas também fora dela.
120
A antropologia ocupa nesse cenário um lugar importante, uma
vez que ela sempre esteve aberta para a alteridade de forma única entre
as práticas científicas. A disciplina está inclusive em débito com os
povos que tanto foram usados como matéria-prima para a construção de
seus grandes edifícios teóricos. Resta agora que os antropólogos acadê-
micos tenham a sensatez e grandeza de receber os intelectuais indígenas
pelas portas da frente da disciplina, sem condescendência, de modo a
estabelecer trocas de conhecimentos que só são possíveis ao se reco-
nhecer que a alteridade não é apenas “objeto” de pesquisas, mas, acima
de tudo, interlocutora em igualdade de condições intelectuais.
Referências
121
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124
MUITO ALÉM DO ACESSO
Protagonismos, resistências e difusão de novos
saberes de estudantes africanos na universidade
pública brasileira na década de 1960
126
de estudantes africanos, que desembarcou no Brasil no final de 1961,
era composto por 15 jovens provenientes de seis diferentes territórios:
Nigéria, Gana, Senegal, República dos Camarões, Cabo Verde e Guiné
Bissau.37 O segundo grupo de estudantes africanos chegou à Bahia no
segundo semestre de 1962 e era composto por seis jovens nascidos em
Gana (3) e na Nigéria (3).
O programa de intercâmbio acadêmico foi o primeiro ato con-
creto de aproximação cultural do governo brasileiro do continente afri-
cano. Em meio à Guerra Fria, os governos de Jânio Quadros (janeiro a
agosto de 1961) e de seu sucessor, João Goulart (1961-1964), tentaram
implementar uma nova política de inserção internacional do Brasil,
buscando distanciar o país da interferência direta dos EUA por meio da
cooperação com países do hemisfério sul – da América, da África e da
Ásia. A inédita política africana era umas das diretrizes da chamada
Política Externa Independente (PEI).
Os movimentos de independências que estavam no auge na dé-
cada de 1960 transformaram países africanos em potenciais aliados po-
líticos e futuros mercados para produtos industrializados brasileiros
(SARAIVA, 2012, p. 35). O governo brasileiro anunciou a oferta de
bolsas de estudos para jovens africanos como estratégia de cortejar os
novos líderes de seus respectivos países, que necessitavam capacitar
quadros próprios para gerir suas máquinas administrativas.
O programa de bolsas de estudos para africanos e outros projetos
da então inédita política africana foram legitimados por um discurso
oficial amparado nas relações históricas e culturais entre Brasil e África.
Na mensagem enviada por Jânio Quadros ao Congresso Nacional na
abertura da sessão legislativa de 1961, o presidente inaugurou o dis-
curso da “dívida histórica”38 com o continente africano para defender a
política africana.
127
O nosso esforço em África, por mais intenso que venha a ser, não po-
derá senão constituir uma modesta retribuição, um pequeno pagamento
da imensa dívida que o Brasil tem para com o povo africano. Essa razão,
de ordem moral, justificaria por si só a importância que este Govêrno
empresta à sua política de aproximação com a África (QUADROS
apud, MUNIZ, 2010, p. 24).
39 Salvador foi o primeiro local para onde os estudantes africanos foram enviados. Ao
longo de três meses, em 1962, eles tiveram, aulas de português e de realidade brasileira
no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade (Federal) da Bahia. O
fundador do CEAO, Agostinho da Silva, teve importante participação na formatação do
programa de bolsas de estudos do Itamaraty. Na década de 1960, Salvador vivenciava
um contexto particular de afirmação do seu legado africano associado sobretudo às tra-
dições religiosas yorubanas. Antenados com esse movimento, pesquisadores do CEAO
realizavam pesquisas sobre temas afro-brasileiros.
128
Mas a vivência no Brasil tratou de contradizer a afinidade “na-
tural” entre o Brasil e os países africanos dos quais eles eram originá-
rios. Os dois grupos de estudantes que vieram ao Brasil pertenciam a
países (ou territórios) bem diferentes em suas realidades. Eles eram
originários de Gana, Nigéria, Senegal e Camarões, países já indepen-
dentes; e de dois territórios ainda ocupados por Portugal, Cabo Verde
e Guiné Bissau.
Na maior parte dos discursos e também das opiniões publicadas
na imprensa dos diplomatas e intelectuais brasileiros favoráveis à polí-
tica africana, os bolsistas eram taxados como um todo homogêneo, sob
a denominação de “africanos”. Eles também representavam uma África
idealizada, homogênea e una: “[...] um lugar imaginário que se refletia
na cultura brasileira, em seu passado, em seu futuro e em seu relaciona-
mento com o mundo” (DÁVILA, 2011, p. 15).
Os diplomatas e intelectuais entusiastas da aproximação do
Brasil com a África, na década de 1960, olhavam o continente africano
e seu povo a partir de uma lente que projetava nela o Brasil. “Na África,
eles projetavam os significados que davam à escravidão e à presença de
negros na cultura e na sociedade brasileira” (DÁVILA, 2011, p. 15).
129
de 1960, o continente africano estava em ebulição por conta dos movi-
mentos emancipatórios. Apesar disso, no Brasil, pouco se sabia de uma
África contemporânea e efervescente da qual eram originários os estu-
dantes africanos bolsistas do Itamaraty.
O tom de política assistencialista do programa brasileiro de bolsas
de estudos acabava por invisibilizar as experiências anteriores e os sa-
beres que esses jovens carregavam em suas vivências. A diversidade do
perfil dos estudantes africanos pode ser evidenciada a partir de suas fi-
chas no Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) da Universidade
(Federal) da Bahia. Em Salvador, os bolsistas tiveram, ao longo de três
meses, em 1962, aulas de português e de realidade brasileira.
Nos registros feitos por eles mesmos, a maioria dos estudantes
relatou experiências anteriores de estudos em instituições de ensino eu-
ropeias e revelaram ter o domínio de pelo menos duas línguas. Além
das línguas ocidentais de origem das colonizações de seus respectivos
países, eles falavam as chamadas línguas nacionais. Todos os estudantes
bolsistas da Nigéria eram iorubás e falavam, além de inglês, a língua de
sua etnia. Os ganenses falavam inglês e suas línguas nacionais como o
gã, o twi e o fanti.
A surpresa em relação ao desconhecimento sobre a África e sua
população, é manifestado pelo estudante de Gana, Samuel Gobbold, em
entrevista ao jornal A Tarde, de Salvador, em 1965. O bolsista, que es-
tava então no último ano do curso de Odontologia na Universidade
(Federal) da Bahia, reiterou que no Brasil ainda pouco se conhecia
sobre o continente africano.
130
Ao enfatizar em sua entrevista a desinformação no Brasil acerca
do desenvolvimento de Gana, podemos cogitar que ele estivesse se con-
trapondo aos estereótipos atribuídos no Brasil à África e ao seu povo,
associados à imagem de pobreza, barbárie e exotismo.
Outro estudante ganense, Benjamin Clottey, atualmente com 85
anos, faz questão de enfatizar em entrevista à autora deste artigo que os
estudantes de Gana e da Nigéria que vieram ao Brasil tinham condições
de estar em qualquer universidade do mundo.42 No início de década de
1960, em Gana já existiam duas universidades: Universidade de Gana e
Universidade de Ciência e Tecnologia Kwame Nkrumah. Benjamin
Clottey havia sido enviado ao Brasil pelo governo de Gana para
aprender português, visto que era funcionário da Ghana Broadcasting
Corporation, responsável pela Rádio de Gana, que transmitia sua pro-
gramação em vários idiomas.
42 Mesmo sem ser solicitado, Benjamin Clottey enviou à autora uma cópia de uma decla-
ração da Universidade de Londres, datada de 13 de abril de 1964, atestando a apro-
vação de sua submissão a um curso de bacharelado em Artes (B.A. Degree).
43 Entrevista à autora, 20/10/2020.
131
Práticas de racismo contra os estudantes africanos
132
Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde Quaye se
formou, recorda de dois episódios relatados pelo amigo.
Uma vez ele me contou que havia iniciado o curso de Medicina em São
Paulo, na USP. Acho que ele era o único negro na turma e me relatou
que na aula de anatomia o professor não passava os instrumentos para
ele trabalhar. Ele se sentia preterido diante dos outros alunos (brancos).
Ele não era de se queixar, mas me contou que foi falar com uma se-
nhora do Itamaraty, que era responsável pelos bolsistas em São Paulo,
e disse: “daqui eu só saio quando a senhora me transferir”. Em outro
momento, já no Rio, ele me disse que saiu com uma moça e foi levá-la
para pegar o ônibus na Praça da Bandeira e um sujeito saiu gritando em
sua direção: “Ladrão, ladrão, ladrão!”. Francis me disse que chegou um
policial e viu que não era nada daquilo. Ele ficou muito aborrecido com
aquilo e disse: “Puxa vida, só porque eu sou negro”.45
133
O racismo contra outros três bolsistas do Itamaraty ganhou reper-
cussão na imprensa. Uma matéria do Correio da Manhã, de 21 de julho
de 1962, intitulada “Preconceito racial em hotel de BH”, relatou que o
estudante cabo-verdiano, Christóvão Morais, a senegalesa Collete
Diallo e o guineense Fidelis Cabral, todos negros, haviam sido impe-
didos de se hospedar no Brasil Palace Hotel, em Belo Horizonte, mesmo
tendo um apartamento reservado pelo Itamaraty.47 A situação provocou
a revolta dos intercambistas que, na matéria, pediam que o Itamaraty
tomasse providências para enquadrar os responsáveis pelo estabeleci-
mento na Lei Afonso Arinos.48
Um outro caso de discriminação contra estudantes africanos re-
percutiu na imprensa carioca e paulista. No dia 27 de abril, dois estu-
dantes foram impedidos de entrar em duas boates em Copacabana, zona
sul carioca. O dono teria alegado que não havia mais espaço nos locais.
Diante da repercussão do caso, o Itamaraty enviou cópia da Lei Afonso
Arinos, “fazendo-se sentir a consideração que merecem esses como
quaisquer outros estudantes estrangeiros que estejam no Brasil”.49
Na edição do jornal Diário Carioca, do dia 28 de abril, o caso foi
relatado, e Abdias do Nascimento, importante ativista contra o racismo
no Brasil, fez no jornal duras críticas ao Itamaraty, acusando o órgão de
perpetuar em sua estrutura o racismo, pois quase não existiam diplo-
matas negros àquela época. “Por mais paradoxal que pareça, sempre
houve racismo no Brasil. E a coisa vem de dentro do próprio Itamarati,
onde homem de cor não entra, por melhor que seja”. Nascimento atestou
que a notícia de que os bolsistas estrangeiros estavam vivendo pro-
blemas de discriminação “num país que se diz amigo é horrível”, po-
deria criar “sérios problemas para o nosso governo”.50
134
Por uma universidade que integre todos os
saberes e conhecimentos
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remetida pelo presidente da república na abertura da sessão
135
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SARAIVA, J. F. S. África parceira do Brasil atlântico – relações
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Horizonte: Fino Traço, 2012.
136
OS CAMINHOS DE ACESSO À
EDUCAÇÃO ESCOLAR E A
VIDA UNIVERSITÁRIA NA GUINÉ-BISSAU
Introdução
138
Após a sua independência, o país organizou seu sistema educa-
tivo a partir de um tipo de currículo que enaltecia os valores nacionais,
os feitos da guerra de libertação, os grandes combatentes, os comba-
tentes africanos, as culturas e tradições étnicas etc. Esse fato foi impor-
tante ao longo do período do partido único, entre os anos de 1973 a
1990 (SEMEDO, 2009). Com a abertura democrática, nos anos 90,
houve reforma no modelo curricular vigente, deste modo, permitindo a
“despartirização” do currículo escolar guineense, que, segundo algumas
vozes críticas ao regime do partido único, consideravam o modelo do
currículo como currículo do partido PAIGC (Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde). Importante ressaltar que foi
esse partido que conduziu a luta armada contra o poder colonial até a
independência, em 1973, liderado pelo agrônomo e pai da nacionali-
dade da Guiné-Bissau e Cabo Verde, Amílcar Lopes Cabral.
Os livros cujas capas apresentamos a seguir, apesar de não anali-
sarmos seus conteúdos, são de muita importância para a história na-
cional, nossa cultura, nossa identidade. Tratavam dos combatentes da
liberdade da pátria, mas, infelizmente, com as reformas, nunca mais se
ouviu falar dessas pessoas nas escolas. Ou seja, a reforma acabou com
a história dos combatentes.
A seguir, capas de livros de 1.º, 3.º e 4.º anos da escolaridade
guineense (edição de Mecd-Indi, 1988, de autoria de Maria Deodata
Medina, Paulo Pereira e Maria de Lourdes Benício).
139
Na outra capa de 3.º ano, vemos uma fotografia de combatentes
com armamento, uma bandeira e uma criança com um livro na mão. A
bandeira simbolizava a força dos combatentes, que durante 11 anos en-
frentaram o colonialismo, e, acima de tudo, simbolizava a esperança de
um povo que assumiu seu destino após anos de escravidão, assassi-
natos, massacres (SEMEDO, 2009; MONTEIRO, 2013).
Estas e outras imagens atualmente disponíveis para consulta no
site da memória da África e Oriente51 são materiais importantes para os
pesquisadores compreenderem quais fatores levaram à catástrofe da
educação em Guiné-Bissau.
140
fácil para as crianças do primeiro ano e tornou-se leitura popular de-
vido à sua facilidade, pois era ensinada tanto para as crianças como
para os adultos das escolas de alfabetização de jovens e adultos. Era
também a forma como as crianças brincavam em casa com a leitura em
forma de música.
141
sionalizante e escolas de alfabetização de jovens e adultos; a fase pré-
universitária52 e universitária.
Instabilidade política
142
ralizações no sistema de educação pública da Guiné-Bissau, o que con-
sequentemente provoca fracasso escolar” (DJONU, 2018).
Em Guiné-Bissau, as escolas privadas são as únicas que fun-
cionam o ano todo, desse modo, são as únicas que oferecem ensino.
Para Sonia Mari Shima Barroco, as questões que se referem ao fracasso
escolar guineense têm uma longa história, podendo-se, assim, afirmar
que, desde o período da colonização, a questão da educação sempre
fracassou (BARROCO, 2015). Para alguns autores, como Celisa
Carvalho, no que refere à educação e à saúde, o estado guineense prati-
camente não existe (CARVALHO, 2014). Ou seja, a máquina pública
não funciona, escolas, hospitais, serviços básicos para os cidadãos não
funcionam e praticamente não existem.
No que tange às escolas privadas, o problema é que maior parte
da população não tem condição de pagar as mensalidades. Começam e
não terminam o ano letivo devido à falta de pagamento. Outras escolas
funcionam sem mínimas condições necessárias para aprendizagem,
aproveitam do fracasso do Estado/governo para criar escolas privadas,
mas sem mínimas condições de funcionamento. Também, muitas dessas
escolas não são legalizadas e nem possuem edifícios adequados para
ensino. Fazem isso praticamente para ganhar dinheiro, ato frequente em
Guiné-Bissau.
143
54AEscola Normal Superior Tchico Té (ENSTT) nos anos 70 era uma
instituição pública, criada em 28 de novembro de 1979, sob a desig-
nação de Destacamento de Vanguarda Tchico Té; em 1985, passou a
designar-se Escola Normal Superior Tchico Té em 2015 pelo decreto
nº Despacho nº do conselho dos ministros fundou as escolas de for-
mação dos professores a nível nacional onde foi dado nome das Escolas
Superiores de Educação (ESE). Então será chamada Unidade Tchico
Té, tendo esta mudança correspondido a uma alteração do perfil de en-
trada, da duração do curso, do diploma atribuído e do nível de ensino
de que passou a fazer parte, o ensino superior, ficando a depender, em
consequência, da Direção-geral do Ensino Superior.54
Fonte: Escola Superior de Educação Tchico Té. Disponível em: https://tchicote.gw/. Acesso
em: 8 mar. 2023.
144
implementados novos cursos, como farmácia, enfermagem geral, medi-
cina e outras especialidades, além dos polos criados nas regiões.
Em 1975, foi fundada a Escola de Formação de Professores
Amílcar Cabral, em Bolama, zona insular do país. Essa escola teve/tem
papel importante na formação de professores para ensino básico, pri-
meiro e segundo ciclo. Nos dias atuais, sua infraestrutura está precária
por falta de reformas, pois todas essas escolas, exceto a Escola Nacional
de Saúde, não gozam de autonomia financeira. Dependem do governo
central em termos de recursos para seu funcionamento, já que parte do
dinheiro que cobram da matrícula é repartida entre as direções das es-
colas e o Ministério da Educação Nacional.
Nos anos 80, criou-se a Escola Normal 17 de Fevereiro, também
destinada à formação de professores para ensino básico. Situada na ca-
pital, essa escola tem formado professores para atuar nas escolas pú-
blicas. Ou seja, tem os mesmos objetivos que a Escola Amílcar Cabral,
em Bolama. Assim, o governo, em parceria com outras instituições, vai
criando outras escolas, como a Escola Nacional de Administração
Pública; a Faculdade de Direito de Bissau; a Escola Agrícola de Bissorã
ADPP; a Escola Nacional da Educação Física, além das novas escolas
de formação de professores criadas nas regiões de Bafata (leste), Cacheu
(norte), Catió e Buba (sul).
145
tanto na capital Bissau, quanto nas regiões. Algumas têm melhores edi-
fícios, contratam professores formados e têm currículos escolares
muitas vezes diferentes das escolas públicas, como são os casos das
escolas João XXIII, Escola Católica, Escola Solidariedade, Escola Por
tuguesa, São José, Casa Emmanuel e outras. Por questões de ética, pre-
ferimos não citar nomes das escolas em péssimas condições, mas é im-
portante realçar que muitas delas funcionam sem condições e sem
edifícios próprios.
Atualmente, o país conta com algumas universidades privadas,
como a Universidade Colinas de Boé, Universidade Lusófona de
Guiné, Universidade Católica, Universidade Jean Piaget, Universidade
Binhoblo e outras, além das faculdades e centros de formações.
Muitas dessas instituições estão na fase inicial, funcionam com
muitas dificuldades em relação a recursos humanos, equipamentos de
laboratórios, bibliotecas, salas informáticas e outros materiais.
146
soluções, mas, na prática, isso não se vê. As escolas não são gratuitas,
mesmo para os níveis do 1.º ao 6.º ano. Largamente anunciada a sua
gratuidade, algumas escolas cobram um certo valor para os pais encar-
regados da educação, cobram uniformes escolares, cobram provas.
Esses fatores contrariam a constituição e negam o direito à educação à
maioria da população pobre.
De 7 a 12 anos, os alunos pagam mensalidade nas escolas pú-
blicas. Esse valor é convertido em trimestre, o aluno paga de três em
três meses. Caso contrário, é expulso da escola e perde o ano letivo.
Sem uniforme escolar, o aluno é proibido de ter acesso à sala
de aula. As apostilas são vendidas por preços elevados; muitas
vezes, alunos são expulsos da sala de aula por falta da apostila que
o professor vende. O sector de ensino na Guiné-Bissau não conta
com apoio do Estado, pois ele é o primeiro a violar as leis que ele
mesmo criou.
No ponto 3 do mesmo artigo da Constituição da Guiné-Bissau,
encontra-se o seguinte: “É garantido o direito de criação de escolas
privadas e cooperativas” (CRGB, 2012, p. 23). Na Guiné-Bissau, as
escolas privadas funcionam plenamente, diferentemente das escolas
públicas. Nessas escolas privadas e universidades, escolas de auto-
gestão, os pais contribuem com parte do dinheiro através de mensali-
dade. São elas que mantêm a educação no país.
Diante dessas constatações, pode-se dizer que o caminho de
acesso à educação em Guiné-Bissau depende de dois fatores: fatores
econômicos e fatores da estabilidade.
Em relação aos fatores econômicos está o fato de que, para ter
acesso à educação, independentemente de ser pública ou privada, é pre-
ciso ter dinheiro para pagar as mensalidades, comprar uniformes, livros
e pagar por provas, cobrança autorizada pelos professores ou pelas dire-
ções das escolas. Fatores de estabilidade se referem às condições polí-
ticas, sociais e culturais que permitem as escolas funcionarem. A Guiné,
supreendentemente, vive sob instabilidade política desde sua indepen-
dência, mas a guerra de 1998 foi que desestruturou o país até os dias de
hoje (OLIVEIRA, 2020). Nessa perspectiva, o caminho de acesso à edu-
cação é um calcanhar de Aquiles para os guineenses. A educação con-
147
tinua fora das prioridades dos sucessivos governos, de modo que o nível
de aproveitamento dos alunos é fraco nas escolas públicas.
Acesso às universidades
148
essas universidades e concluiu que muitas funcionavam e ofereciam
cursos superiores sem mínimas condições.57
Considerações finais
57 Suspensão de cursos e braço de ferro entre essas escolas e o governo. Disponível em:
https://www.dw.com/pt-002/suspens%C3%A3o-de-cursos-em-bissau-sem-fim-%-
C3%A0-vista/a-18268174. Acesso em: 9 mar. 2022.
149
Referências
150
PARTIDO AFRICANO PARA A INDEPENDÊNCIA DA GUINÉ E
CABO VERDE. História da Guiné e ilhas de Cabo Verde. Porto:
afrontamento, 1974.
SEMEDO, R. J. da C. G. PAIGC: a fase de monopartidarismo na
Guiné-Bissau (1974-1990). Dissertação (Mestrado em Ciência
Política) – Universidade Federal de São Carlos. São Carlos, SP, 2009.
151
DA ÁFRICA PARA O BRASIL
Contribuições da divulgação do
cinema africano na luta antirracista
(2007-2022)
Franck Ribard
153
Nesse sentido, o primeiro passo, antes de abordar a questão da
recepção desse cinema no Brasil, reside na necessidade de pensar o que
chamamos de “cinema africano”. Em seguida, tentarei compreender os
termos que definem a experiência da sua recepção no Brasil através da
atuação dos festivais, pensando a natureza desses espaços de “recepção
transnacional e transcultural” (BAMBA, 2013) do cinema africano, lu-
gares de leituras e de interpretações das obras cinematográficas fora dos
seus contextos socioculturais de produção de origem. Enfim, poderemos
refletir sobre o sentido/legitimidade/interesse da existência de tal Mostra
de Cinema Africano no Brasil, em particular apreendendo os objetivos
iniciais que norteiam a organização desses eventos em relação à questão
mais geral das políticas de ações afirmativas e focando as experiências
específicas da nossa Mostra de Cinema Africano de Fortaleza.
154
canos”. Essa categoria redutora, no entanto, serve para ilustrar a des-
crição rápida de tendências gerais, homogeneizadoras mas tendo como
base apoiar nosso raciocínio.
Dessa forma, e já adentrando uma qualificação mais fina da
maioria dos filmes africanos, apesar de genérica também, mesmo se
existem tradições cinematográficas nacionais, percebe-se que eles re-
velam uma dimensão transnacional associada, entre outros fatores, à
globalização, aos fluxos do capital global e ao fato de os filmes afri-
canos, muitas vezes, serem coproduções europeias e destinados, pela
carência de salas de cinema na África, em prioridade, a um público, a
festivais, europeus e ocidentais. Este último elemento, em particular,
encontra uma importância certa do ponto de vista das linguagens e da
necessidade de os filmes serem vistos e entendidos por públicos que
não necessariamente possuam os códigos culturais originais.
Na mesma linha, é relevante sublinhar que a maioria dos dire-
tores africanos apresenta currículos de formação e trajetórias artísticas
genuínas, marcadas pelos necessários deslocamentos geográficos e cul-
turais ligados à aprendizagem e aos processos de sobrevida na pro-
fissão. Por isso, o cinema africano pode ser rotulado de “cinema de
autor”, realizado por diretores, por vezes migrantes e em situação de
diáspora, que reivindicam alguma forma de particularismo, realizando
obras às vezes autobiográficas60 ou adaptações de romances61 ou
mesmo os dois.62
Longe de certas obras do cinema ocidental que se pretendem e se
apresentam como universais e sem sotaques, o cinema africano é mar-
cado, “com sotaque” (NAFICY, 2010), conforme aos diretores, atores,
lugares e culturas abordadas, mas também às preocupações e problemá-
ticas sensíveis e particulares que abordam o convívio social nas dife-
rentes nações, regiões e sub-regiões africanas.
60 O “Ká ‘nossa casa’”, de Souleymane Cissé (Mali, 2017), sobretudo nos documentários:
“Contos cruéis de Guerra”, de Ibea Atondi, Karim Miské (Congo/Mauritânia, 2002)
61 Ousmane Sembene que adaptava os seus próprios textos: “A Negra de...” (Senegal,
1966); Joao Ribeiro, “O último voo do flamingo” (Moçambique, 2010).
62 “Sambizanga”, de Sarah Maldoror (Angola/República do Congo, 1972).
155
Por todos esses elementos, as obras cinematográficas africanas
são “locais”, ancoradas nas suas realidades próximas, buscando sempre
levantar questões e provocar reflexões sobre problemas reais, buscando
abrir, às vezes na forma de um cinema engajado, as consciências. Ao
mesmo tempo, são globais por seus mecanismos de produção e pela
necessidade que elas têm de poder viajar e ser apreendidas fora do seu
contexto, permitindo a públicos, em particular ocidentais, se apropriar
das mensagens e dos discursos produzidos.
Essa tendência se confirma pelo reconhecimento, conquistado a
partir das primeiras gerações de cineastas africanos e sobretudo da
década de 1970, de um cinema que se estruturou, no continente e fora
dele, através da constituição de uma rede mundial de festivais de ci-
nema africano, da distribuição em salas de cinemas “alternativos” e,
posteriormente, pelas difusões dos filmes em canais culturais de TV.
Mesmo assim: “O destino econômico de um filme africano perma-
nece a maior parte do tempo imprevisível. Nos países onde as televi-
sões não se implicam no processo de produção, os festivais viram,
logicamente, os atores incontornáveis para a difusão das obras”
(LELIÈVRE, 2011, p. 126).63
Fora do continente africano, o público sensível ao cinema afri-
cano, aquele interessado e mobilizado no altermundialismo, encontra
nos festivais especializados presentes da Polônia (Festival AfryKamera,
2006) ao México (Festival Africala, 2007), e na maior parte dos países
ocidentais (América e Europa),64 espaços de sociabilidade, de debate,
63 "Le destin économique d’un film africain reste la plus part du temps imprévisible. Dans
les pays où les télévisions ne s’impliquent pas dans le processus de production, les
festivals deviennent très logiquement des acteurs incontournables pour la diffusion des
oeuvres" (LELIEVRE, 2011, p. 1).
64 Entre os principais festivais que se especializaram no cinema africano fora do conti-
nente: “le festival international du film d’Amiens (1980), le Festival di Cinema Africano
di Verona (1980), le festival Vues d’Afrique à Montréal (1984), les Rencontres médias
Nord-Sud en Suisse et dans le domaine de la télévision (1985), le Black International
Cinema à Berlin et aux États-Unis (1986), le festival Africa in the Picture à Amsterdam
(1987), le festival Cinemafrica à Zurich (1987), les Rencontres cinéma de Manosque
(1987) ou l’International Film Festival of Rotterdam avec le fonds Hubert Bals mis en
place en 1988... le New York African Film Festival (1990), le festival Black Movie à
Genève (1990), l’African, Asian and Latin American Film Festival de Milan (1991), le
156
onde podem desenvolver “leituras” e interpretações privilegiadas das
obras, às vezes subsidiadas pelo diálogo com os diretores, produzindo
significados e sentidos, frutos das experiências desses encontros, que
atestam da mundialização do cinema africano.
Essa dinâmica no mundo ocidental articula-se e alimenta-se da
riqueza proposta pelos festivais do próprio continente africano,65 cujo
número e diversidade das propostas cresceram depois da emergência,
já antiga, e da institucionalização dos grandes eventos de referência
mundial, que são: Journées Cinématographiques de Carthage (1966)66
e Festival Panafricain du Cinéma et de Télévision de Ouagadougou –
FESPACO (1969).67 Este último, que em 2019, na sua 26.ª edição,
comemorou 50 anos de festival, encarna um centro nevrálgico da pu-
blicização do cinema africano e do encontro entre todos os profissio-
nais, ocidentais e africanos, envolvidos na área. A observação da lista
dos filmes premiados em Ouagadougou (Burkina Faso) e dos dire-
tores que receberam o Etalon de Ouro de Yennenga68 leva à cons-
festival Film fra Sør à Oslo (1991), les Rencontres cinéma de Gindou (1991), le festival
Jenseits von Europa à Cologne (1992), le festival Cinémas d’Afrique à Angers (1992), le
Pan African Film Festival à Los Angeles (1992), l’African Diaspora Film Festival à New
York (1993), l’Afrika Filmfestival de Leuven (1996), ou le CinemAfrica Film Festival en
Suède (1998)... le festival des cinémas d’Afrique du Pays d’Apt (2003), le festival de cinéma
africain de Tarifa en Espagne (2004), l’Images of Black Women Film Festival à Londres
(2005), le festival Afrique taille XL à Bruxelles (2005)" (LELIEVRE, 2011, p. 126-128).
65 Os principais festivais de cinema na África: “le Cairo International Film Festival (1976), le
festival de cinema africano de Khouribga (1977) ou le Durban International Film Festival
(1979) [...] les Rencontres cinématographiques de Dakar (de 1990 à 1997, puis après 2002),
les Écrans noirs au Cameroun (1995), le Zanzibar International Film Festival (1997), le
Zimbabwe International Film Festival (1998), le festival Encounters en Afrique du Sud (1999),
le festival du film d’Amazigh en Algérie (1999), ou le Festival du film de quartier à Dakar
(1999) [...] le Tricontinental Film Festival (2003), l’Africa on Screen Film Festival (2006), le
Cape Winelands Film Festival (2008), tous les trois en África do Sul, le festival international
du film de Dakar (2008), ou les Journées cinématographiques d’Alger (2009) [...] le festival
Cinéma et migrations d’Agadir (2003), le festival Ciné droit libre em Ouagadougou (2005),
ou encore l’Environmental Film Festival of Accra au Ghana (2005) [...] les Rencontres du film
court à Madagascar (2006), le Bafundi Film and Television Festival à Johannesburg (2007),
les Images That Matter à Addis-Abeba (2010), le Afrikabok à Dakar (2009)” (LELIÈVRE, 2011,
p. 126-128); o Festival of Films Africa de Accra (Ghana, 2012).
66 https://www.jcctunisie.org/
67 https://fespaco.bf/
68 Garanhão de Ouro de Yennenga (princesa muito popular na tradição oral dos mossis,
uma das etnias principais do Burkina Faso).
157
ciência do papel crucial desse evento como trampolim para artistas
hoje consagrados e obras que pertencem ao patrimônio do cinema
mundial, certas delas tendo, além do Fespaco, conseguido prêmios
prestigiosos do cinema internacional.69
Como tentamos mostrar, o cinema africano, apesar de dificul-
dades crônicas em termo de produção, de rentabilização e de difusão das
obras, encontrou um lugar especial no panorama cinematográfico mun-
dial e, por suas qualidades de grande humanidade, ganhou uma atenção
e um interesse cada vez mais fortes por parte do público ocidental. Resta
que, no Brasil, apesar da sua ligação histórica e orgânica com o conti-
nente africano, este cinema não teve vez e até hoje é pouquíssimo apre-
sentado ao público, como podemos observar em seguida.
158
compartilhamento de arquivos, contatos com produtoras, distribuidoras,
diretores, YouTube...), que representaram fatores importantes de acesso
à informação, permitindo a emergência de espaços voltados para a te-
mática dos cinemas africanos.
Se, sobretudo mais recentemente, alguns canais de TV culturais
tentaram abordar esse cinema,72 encontramos no Brasil tendências já
iniciadas no passado e presenciadas no restante do mundo ocidental
relativas à preeminência dos festivais e das mostras de cinema, organi-
zados por ONGs, coletivos, associações culturais ou universitárias ou
mesmo instituições, como vetores principais de projeção e de mobili-
zação em torno da divulgação e da apreensão coletiva das obras cine-
matográficas africanas.
72 Em formato, muitas vezes, de ciclos deste cinema. Ver, entres outros: http://tvbrasil.ebc.
com.br/noticia/2015-07-31-ciclo-de-cinema-africano-entra-na-programacao-da-tv-bra-
sil-a-partir-desta-segunda.
73 Trabalhando com a ideia de formação, mas parou em 2006 por questões financeiras.
74 Aconteceram três edições sob a coordenação da cineasta negra Lilian Solá Santiago.
159
(Rio de Janeiro);75 Mostra de Cinema Africano (Fortaleza);76 mais re-
centemente, Mostra de Cinema Africano – Espelhos d’África
(Salvador);77 e Mostra de Cinemas Africanos (Itinerante).78 Além disso,
encontramos vários mostras incluídas em eventos universitários como
as Semanas (ou Dias) da África.79
Buscando características comuns a esses eventos, para analisar a
natureza das experiências propostas, aparecem algumas tendências que
precisamos abordar. Por exemplo, a pouca durabilidade observada, con-
figurando eventos que, na maior parte das vezes, conseguem se manter
apenas algumas edições,80 o que informa sobre as dificuldades encon-
tradas; o difícil acesso a filmes que, por serem, em geral, oriundos de
universos não lusófonos e não terem sidos distribuídos no Brasil, pre-
cisam ser legendados em português; a dificuldade de encontrar finan-
ciamentos perenes capazes de estabilizar os eventos; o problema de
conseguir e fidelizar um público que, em relação ao cinema africano,
em regra geral, mesmo manifestando interesse e simpatia, sente dificul-
dade em se deslocar e prestigiar de forma presencial os eventos. Esses
são alguns dos problemas encontrados que ajudam a compreender a
curta duração de vida, na maioria dos casos, dos festivais e mostras de
cinema africano no Brasil.
75 Criado pelo grande ator e diretor Zózimo Bulbul, falecido em 2013, e, desde 2014, com
curadoria de Joel Zito Araújo. Esse evento, um dos mais emblemáticos no país, acon-
teceu em outubro 2019, sendo a 12.ª edição (https://www.afrocariocadecinema.com/
programacao?fbclid=IwAR2OmpcmB4Tq5abLzhPcaSNoUvz4VwFK9krL92FCsbh1lEx-
jm0LH7DmaYac). Está associado ao Centro Afro Carioca de Cinema (http://afrocarioca-
decinema.org.br/), que propõe atividades ao longo do ano.
76 Na sua 12.ª edição em 2020.
77 http://mostraespelhos.com/#
78 Mostra Itinerante – Salvador, em novembro de 2018, passou, em seguida, por Porto
Alegre, Aracaju e São Paulo (SESC São Paulo. Julho de 2019). Contando com a curadoria
de Ana Camila Esteves e Beatriz Leal Riesco, volta-se para “filmes recentes produzidos
na África nos últimos anos” (https://www.facebook.com/mostradecinemasafricanos/).
79 https://www.portal.ufpa.br/index.php/ultimas-noticias2/10174-semana-de-cinema-
-africano-comemora-o-dia-da-africa; http://www.ufrgs.br/deds/noticias/identidades-
-ancestrais-no-cinema-africano; https://www.uemasul.edu.br/wordpress/2018/11/23/
uemasul-realiza-3a-semana-do-cinema-africano/.
80 O que não é o caso do Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe
(Rio de Janeiro).
160
Observa-se que, pelo fato de os filmes africanos, mesmo em
geral destinados a um público ocidental, apresentarem códigos cultu-
rais, de narrativa e de linguagem cinematográfica específicos, o pú-
blico é muitas vezes composto de cinéfilos, de pessoas interessadas
nas temáticas afro-brasileiras e que já têm uma certa experiência com
o cinema “não hollywoodiano”. Certamente por essa razão, outra ten-
dência observada reside no fato de os eventos caminharem em direção
a formatos do tipo “festivais de filmes africanos e diaspóricos” ou “ci-
nemas negros”.81 Nesses numerosos eventos, os filmes africanos são
apresentados como partes de um grande conjunto, o cinema negro, e
aparecem nas programações ao lado de outras produções, curtas, lon-
gas-metragens e documentários voltados para a temática ampla da ne-
gritude e da cultura afro. Esse movimento é encontrado, por exem-
plo,82 na magnífica MIMB – Mostra Itinerante de Cinemas Negros
Mahomed Bamba (Salvador) –, que trabalha fundamentalmente com
curtas e médias-metragens brasileiros afrocentrados e com algumas
obras africanas, projetados em vários bairros da cidade, com oficinas,
shows, masterclasses, premiação dos melhores filmes e atividades re-
gulares durante o ano todo. Com o objetivo de “ampliar as janelas de
reprodução dos conteúdos nacionais e internacionais produzidos por
realizadores negros”,83 essa mostra dinâmica nasceu inspirada no tra-
balho pioneiro do prof. Mahomed Bamba (Facom-UFBA)84 e leva o
nome dele como forma de homenagem. Abordando temas como sus-
tentabilidade, gênero, juventude, trabalha, como outras mostras do
tipo, a partir de premissas que podem parecer como pan-africanistas e
baseadas num recorte que seria o mundo negro. A justaposição de
obras africanas e brasileiras, de certa forma, postula uma confluência e
uma homologia entre os universos brasileiros e africanos, diminuindo
as diferenças em prol da emergência de uma categoria, o “cinema
161
negro”, pensada como suscetível de reunir as produções cinematográ-
ficas africanas e da diáspora. Mesmo assim, não podemos deixar de
citar a atuação de novos pesquisadores que se concentram na divul-
gação e na análise do cinema africano contemporâneo. Em parceria
com o Sesc, as curadorias de Ana Camila Esteves e Beatriz Leal
Riesco, desde 2018, seguindo no período da pandemia, dão lugar a
diversas atividades (Mostra de Cinemas Africanos, cineclube Ciné
África, cursos sobre cinema africano etc.), que trazem para o público
brasileiro “filmes de curta e de longa-metragem das cinematografias
africanas contemporâneas, muitos inéditos no Brasil”.85
85 https://mostradecinemasafricanos.com/sobre/
86 Rompendo silêncio....
87 A distribuição cinematográfica, por sua vez, como já evocado, não deu espaço ao ci-
nema africano no Brasil.
162
abrangência dos mundos negros, da negritude e, por via de conse-
quência, da afrodescendência, primeiros passos em direção a uma visão
antirracista da sociedade.
Os filmes africanos, então, enquanto narrativas, são estruturados
em torno de códigos culturais e linguísticos de difícil acesso, sobretudo
na ausência de referências sobre os contextos e universos envolvendo
cada obra, podendo complicar a compreensão e o processo de subjeti-
vação da experiência fílmica. Esse elemento configura forte legitimi-
dade ao formato de apresentação dos filmes africanos no âmbito dos
festivais, nos quais existe uma mediação fundamental (curadoria temá-
tica, catálogos de apresentação, debatedores especializados, debates
pós-filmes), garantindo um acompanhamento e um diálogo profícuos
na perspectiva da apropriação dos filmes e da produção de sentidos em
torno deles. Assim, para Bamba (2016, p. 80):
Adendo
88 https://www.even3.com.br/nosnauniversidade1/
163
tiva educacional antirracista, espaços de encontros e de interação em
torno dos cinemas africanos (filmes – de diretores africanos – de ficção
e documentários, longas, médias e curtas, antigos e mais recentes),
apostamos que será um momento notável, fiel aos anseios de educação
anticolonial do grupo Caldeirão.
Referências
164
UNIVERSIDADES, AÇÕES AFIRMATIVAS E
DESCOLONIZAÇÃO DOS CURRÍCULOS
89 O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2008, 231-2) explica que, na geo
política europeia, o seu povo teve uma série de dificuldades de se perceber enquanto
pertencente àquela comunidade, em complexos movimentos de estranhamentos e de
distanciamentos. Em meio ao imperialismo francês e inglês, os portugueses viviam
numa condição semiperiférica em relação aos seus mais próximos. Esse complexo de
inferioridade certamente agia em diferentes escalas quando pensamos nos brancos nas-
cidos na colônia com desejos de supremacia e de inclusão no panteão da civilização
autoproclamada superior.
166
[...] têm sido esquecidos os temas e as fontes históricas que poderiam
nos ensinar sobre as experiências educativas, escolares ou não, dos
indígenas e dos afro-brasileiros. O estudo, por exemplo, da conquista
da alfabetização por esse grupo; dos detalhes sobre a exclusão desses
setores das instituições escolares oficiais; dos mecanismos criados
para alcançar a escolarização oficial; da educação nos quilombos; da
criação de escolas alternativas; da emergência de uma classe média
negra escolarizada no Brasil; ou das vivências escolares nas primeiras
escolas oficiais que aceitaram negros são temas que, além de terem
sido desconsiderados nos relatos da história oficial da educação, estão
sujeitos ao desaparecimento (CRUZ, 2005, p. 22-3).
167
educação, de caráter instrumental, voltada exclusivamente para o desen-
volvimento profissional de funções (BOTTONI; SARDANO; COSTA
FILHO, 2013). Desse fenômeno deriva a dualidade estrutural da edu-
cação brasileira, visto que, se a formação superior sempre esteve direcio-
nada para as elites na manutenção de seus privilégios, as desigualdades
são mantidas e reiteradas pela oposição estabelecida entre o trabalho in-
telectual e braçal, este, historicamente marginalizado e mal pago.
A interseccionalidade entre a exclusão social e étnico-racial do
sistema educacional ocorre desde a interdição dos corpos negros e indí-
genas ao direito de aprender, quando os escravizados eram cerceados ao
domínio da leitura e da escrita, até os seus descendentes, que precisaram
conquistar o direito ao acesso à instrução formal e, mais tarde, a demo-
cratização do Ensino Superior, reivindicado pelos movimentos sociais
negros, indígenas e quilombolas. Na trajetória das lutas por direito à
educação no Brasil, exige-se que reconheçamos a pluralidade de su-
jeitos, perspectivas, cosmovisões e cosmopercepções. Demanda-se
ainda que sejamos capazes de superar o “paradigma da contribuição”
(BULHÕES, 2018), que é a ideia amplamente veiculada de que os povos
brancos são os responsáveis e os principais protagonistas na “história da
civilização”, sem os quais os povos sob sua tutela viveriam ainda em
estado de selvageria e barbárie, sendo capazes apenas de “contribuírem”
com a nação por meio de danças, comidas, algumas palavras e gestos.
A despeito da invisibilização ou da objetificação promovida pelo
discurso científico, por séculos, povos indígenas, negros, quilombolas e
outros povos chamados tradicionais produziram interpretações, regis-
tros e enunciados em múltiplas linguagens sobre suas experiências no
mundo, “cujas vozes foram e continuam sendo desautorizadas em uma
verdadeira guerra de visões de mundo” (CRUZ; JESUS; LEMOS,
2020, p. 238-9).
168
de estruturas históricas de exclusão. As nossas experiências têm nos
mostrado que, em vez de gerar fragmentação com as nossas realidades
de origem, a vivência acadêmica tem potencializado estratégias para
que esses sujeitos (docentes e discentes) levem consigo para as univer-
sidades as suas bagagens culturais/civilizacionais e seus legados ances-
trais (CRUZ, JESUS, LEMOS, 2020, p. 238-9).
169
priou, acumulou e a partir deles criou os seus próprios, deixando de
mencionar aqueles. São pouco difundidas as bases africanas, árabes,
chinesas, entre outras, a partir das quais foram gerados os funda-
mentos das ciências e filosofias atuais. Como bem sublinha Ramahi
(2001, p. 594), a racionalidade cartesiana funda a lógica europeia e,
esta, o empreendimento científico eurocêntrico que esconde o quanto
herdou das grandes civilizações da África, Ásia e das Américas
(SILVA, 2003, p. 49).
170
e um dos mecanismos orientados pelos movimentos sociais tem sido a
composição de bancas de heteroidentificação.
A inclusão de grupos historicamente excluídos do Ensino Superior
promoveu a crítica ao modelo epistemológico eurocêntrico e o debate
sobre a descolonização dos currículos. Nesse processo, as/os estudantes
imprimem sua corporeidade aos espaços educacionais, questionam os
roteiros tradicionais, exigem e fazem parte da construção de propostas
emancipatórias. No Departamento de História da Universidade Federal
do Ceará, em dezembro de 2018, o Fórum de Negras e Negros do curso
fez uma nota-manifesto exigindo o cumprimento de alguns marcos nor-
mativos associados com os avanços da educação para as relações étnico-
-raciais. Com efeito, desde a circulação desse documento, a disciplina
Educação para as Relações Étnico-Raciais foi criada e integrada ao cur-
rículo como obrigatória, e as cotas étnico-raciais, implementadas na
Pós-Graduação de História e no Mestrado Profissional em Ensino de
História, reiterando a ideia de que somente a publicação das leis não
basta para que as culturas organizacionais mudem. É preciso mobili-
zação e participação de órgãos de controle, como o Ministério Público.
171
Não estamos sós. Acreditamos na reinvenção de nós mesmos e da
História. Inúmeros escritores e escritoras já apontaram para a necessi-
dade de descolonização dos currículos, como elaborado pela pedagoga
Nilma Lino Gomes, ou seja, da relevância de todas as áreas do conhe-
cimento trabalharem com perspectivas outras.
Portanto, reivindicamos ao Departamento de História, o cumprimento
da Lei n° 10.639/03 que implementa obrigatoriamente o ensino da his-
tória e da cultura africana e afro-brasileira nos currículos de ensino bá-
sico e superior. Considerando que as atuais disciplinas de História da
África e África Contemporânea ofertadas pelo departamento não dão
conta da nossa formação para o cumprimento desta Lei, é importante
que todas as disciplinas deste departamento tragam em suas ementas as
ferramentas necessárias para pensarmos essas novas abordagens.
Não obstante, reivindicamos também a implementação da Lei de Cotas
n° 2.711/2012, que implementa a obrigatoriedade de reserva de vagas
para pessoas autodeclaradas pretas (negras e pardas) e indígenas, pes-
soas que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas e com
renda per capita de até 1,5 salários e pessoas com deficiência, para a
pós-graduação em História na Universidade Federal do Ceará.
Essas leis são fruto de muita luta do Movimento Negro há muito tempo
e, visto que essa lei já é implementada para o ingresso na graduação em
História, é justo que também seja cumprida no âmbito da pós-gradu-
ação para que de fato, esse programa seja democrático e plural.
Fórum de Negros e Negras da História/UFC.
11/12/2018
172
“que busca e coloca outras narrativas no campo do conhecimento e do
currículo, que dá legitimidade aos saberes acadêmicos, políticos, iden-
titários e estético-corpóreos negros. É aquela que dá relevância aos sa-
beres e às práticas afro-brasileiras emaranhados em todos nós”
(GOMES, 2019, p. 245).
A produção intelectual realizada por acadêmicos negros no Brasil
é obliterada pela denominada “política do esquecimento”, consideran-
do-se que as obras de autoria negra raramente estão presentes nas bi-
bliografias dos cursos ministrados na academia. Realça-se, também, a
ausência ou a baixa porcentagem de professores negros das universi-
dades públicas. Em resultado, durante muito tempo, acadêmicos
brancos detinham a cátedra dos “estudos das relações raciais” no Brasil
e ignoravam as hierarquias raciais, reforçando o mito de uma suposta
horizontalidade entre os grupos racialmente diferenciados
(FIGUEIREDO, GROSFOGUEL; 2007).
Ainda consoante Figueiredo e Grosfoguel (2007), a epistemo-
logia hegemônica eurocêntrica nega a existência de seu próprio ponto
de vista por estar alicerçada em uma pretensa neutralidade, imparciali-
dade e universalidade, concepção a qual o filósofo colombiano Santiago
Castro-Gómez designou de epistemologia do “ponto zero”. A contra-
pelo, outras vertentes epistemológicas problematizam a corporeidade e
a posicionalidade do sujeito na produção do conhecimento:
173
visão do colonizador. Constituindo-se em violência ontológica, preva-
lece – como pretensão – uma única racionalidade, cosmologia e forma
de viver e existir, com vistas à aniquilação do outro e da diferença –
altericídio (MBEMBE, 2014).
Salienta-se que os danos causados pelo colonialismo, assimetrias
e injustiças multidimensionais, continuam na chamada modernidade,
operadas pelo racismo, por meio de estratégias de assujeitamento, com
a inferiorização intelectual dos grupos “dominados”, ao passo que se
legitimam os signos da supremacia intelectual da racialidade branca
(CARNEIRO, 2005). No entanto, a entrada de novos corpos nos es-
paços da universidade, diplomados, inclusive, no nível de mestrado e
doutorado, tem ajudado a promover a descolonização epistêmica
quando estes repudiam o epistemicídio e reivindicam a adoção de epis-
temologias antirracistas, em que se valorizem suas experiências e suas
subjetividades, na condição de sujeitos pedagógicos (ARROYO, 2013),
agentes cognitivos e produtores de conhecimento.
Considerações finais
174
e se posicionar contrárias às desigualdades raciais, socioeconômicas,
cognitivas, de gênero, ao promoverem uma educação antirracista e an-
tissexista em que privilegiem a pluralidade de ontologias, epistemolo-
gias e corpos, respeitando a diversidade e a singularidade na produção
de conhecimento, bem como as soberanias (territoriais, intelectuais,
religiosas, alimentares etc.) dos povos indígenas e negros e seus papéis
ativos no que podemos chamar de formação social brasileira.
No ano de 2012, foi promulgada a Lei n.º 12.711, que dispõe sobre
a reserva de vagas para estudantes negros nas instituições federais de en-
sino, reverberando em leis complementares. Nesse decênio, houve au-
mento significativo de estudantes negras(os) e indígenas nas universi-
dades, ressoando a intersecção das desigualdades raciais e sociais com
esse ingresso e estampando as dificuldades de permanência de estudantes
no curso superior por estarem em condição de vulnerabilidade social.
Consequentemente, medidas estão sendo tomadas, mas precisam ser for-
talecidas. Reiteramos nossa corporeidade de estudantes negros, indígenas,
quilombolas, homossexuais, pobres, mulheres, nordestinos, transexuais,
travestis, ciganos, dos interiores do país, dos sertões, das águas, dos ter-
reiros, entre outros que têm ocupado os espaços da universidade pública e
a agenda antirracista e antissexista de descolonização do pensamento e de
justiça social, também como um compromisso geracional inadiável.
Apostamos que nunca as academias brasileiras foram tão plurais
e potentes no exercício de fazer a “universidade”. Foi a política das
cotas raciais – conquistada pelos movimentos negros –, cerca de vinte
anos atrás, que ampliou os debates sobre inclusão, numa perspectiva de
política pública, perpassando depois por dimensões de gênero, etnia,
classe, a partir de ações estratégicas por dentro da engenharia do Estado.
Ora, se agentes do Estado naturalizaram ou criaram deliberadamente as
desigualdades ou se foram cúmplices, que sejam eles a desfazê-las
também. Não é exagero dizer que as universidades precisam muito
mais desses sujeitos historicamente excluídos do que o contrário, con-
siderando que os espaços de produção, circulação e consumo de conhe-
cimento são plurais, não se restringindo apenas aos rituais formais con-
sagrados nessa instituição. Mas, se ela é um direito e interessa aos
sujeitos, cumpra-se!
175
Referências
176
GOMES, N. O movimento negro e a intelectualidade negra descolo-
nizando os currículos. In: BERNARDINO-COSTA, J.;
MALDONADO-TORRES, R. G. (org.). Decolonialidade e pensa-
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lação negra no Brasil: um ponto de vista em defesa de cotas. In:
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177
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tiça econômica. SILVA, P. B. G.; SILVÉRIO, R. (org.). Brasília:
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, 2003.
178
O QUE DIACHO É NECROPOLÍTICA?90
O meu sonho?
Estudar, ter uma casa, uma família
Se eu fosse mágico?
Não existia droga, nem fome e nem polícia.91
92 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e
Terra, 2019.
93 “...O poder da colônia consiste portanto fundamentalmente no poder de ver ou não ver,
de ser indiferente, de tornar invisível aquilo que não podemos ver. E se é certo que o
<<o mundo é isto que vemos>>, podemos então dizer que, na colônia, quem decide do
que é visível e do que deve ficar invisível, manda”. MBEMBE, Achile. A crítica da razão
negra. Lisboa: Antígona, 2014.
94 Jornal O Exemplo. Nossa escola, 12 de outubro de 1902
180
Como não acredito em coincidência na história, é melhor perguntar quais
as proximidades entre 1997 e 1902? Entre um jornal e uma banda de rap?
Aqui não se tem a pretensão de igualar presente ao passado,
muito menos afirmar que isso é uma repetição, só que tanto O Exemplo
quanto o Racionais lançam questões sobre a situação em que se encon-
travam as pessoas negras e empobrecidas no Brasil em momentos dis-
tintos. O que os aproxima é apenas o problema que lançam em sua
escrita. Os rappers e os/as escritores/as do jornal se encontram questio-
nando a noção de cidadania e as suas possibilidades. Dessa encruzi-
lhada conceitual, em cujo centro estão as tecnologias colonialistas, é
que quero partir, em virtude de acreditar que, para entender necropoder,
é preciso saber o que é o colonialismo.
No final do século XIX, se iniciou a fase republicana brasileira
com as promessas de ampliação de direitos a todas e a todos. O que
vemos é que essas promessas nunca alcançaram as/os subalternizadas/
os, como afirmam Flávio Gomes e Olívia Cunha, que, ao falarem sobre
a cidadania, criam o termo “quase-cidadão”.95 Percebo que, mesmo de-
pois de um século, essa cidadania ainda parece não ter chegado e esse
conceito ainda se faz necessário ao falarmos do Brasil, mesmo sabendo
que existe uma grande diferenciação e que houve ganhos do fim do sé-
culo XIX e início do século XX aos dias atuais.
Usamos o termo para indagar a quem pertencem os ideais de
cidadania e por quê. Esse conceito pode nos contar sobre as perma-
nências coloniais e as suas formas de se atualizar. Estamos falando de
uma sociedade que hierarquizou as pessoas que compunham sua po-
pulação, pessoas que nunca foram tidas como iguais, fizeram parte
dos bens semoventes, coisificados e desumanizados. Logo, não seria
uma mudança da forma de governo que daria possibilidades de igual-
dade, ainda mais numa república nos moldes de um pensamento ilu-
minista de base francesa e seu humanismo fajuto, como já bem des-
95 GOMES, F. dos Sant; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quase cidadão? Retóricas da
igualdade, cotidiano da diferença. In: GOMES, Flavio dos Santos; CUNHA, Olívia
Maria Gomes da (org.). Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação
no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 7-19.
181
trinchado por Aimé Césaire, afirmando que eram ideais formados por
uma sociedade doente.96
O adoecimento dessas sociedades passa abertamente pela coloni-
zação, pois:
182
Figura 1 – Notícia “Cadaver Insepulto”
101 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
102 KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Cobogó, 2019.
183
científica e linguística. Sendo assim, para se livrar do domínio colonial,
não é suficiente apenas a liberdade geográfica. É necessário estar atento
às permanências da ideologia colonialista.
Vale destacar uma das tecnologias usadas para a perpetuação e
manutenção da outrificação103 e do domínio característico do colonia-
lismo: a ciência. Quero destacar a criminologia criada no fim do século
XIX, que se fez presente tanto nos círculos acadêmicos europeus,
quanto nas ruas brasileiras. Essa foi baseada nos estudos que tinham
como pretensão afirmar, por meio de características biológicas, se al-
guém estava mais propenso ou não a cometer um crime, narrativa que
foi utilizada para fazer a manutenção da ideia de superioridade das pes-
soas brancas. A criminologia foi apenas uma das maneiras pelas quais
se tentou perpetuar ideais colonialistas que buscam fazer a manutenção
das clausuras,104 das delimitações raciais dos complexos de superiori-
dade e inferioridade.
É aqui que a linguagem ganha um papel central, pois, como já
dito, o colonialismo inventa sujeitos. Foi assim que se criaram negros/
as e indígenas, categorias fabricadas para definir um número gigantesco
de populações às quais foram destinadas as mais brutas violências.
Nessa fabulação pela palavra se fixam o eu e o outro, o bem e o mal, o
civilizado e o primitivo, quem coloniza e quem deve ser colonizado.
Essa dualidade se faz presente não só na linguagem, mas também na
vida, como cantou o Racionais:
184
A continuidade do colonialismo aparece na forma da violência
policial que alimenta o racismo herdado desde a pseudociência da cri-
minologia. Lembra do pedido da criança no prefácio deste texto? Ela
queria que não existisse polícia, pois, na sua visão, esta funciona como
uma máquina de produzir violência, um dos muitos mecanismos da ne-
cropolítica. Assim, “Atribuímos uma importância fundamental ao fenô-
meno da linguagem... Uma vez que falar é existir completamente para
o outro”,106 uma existência passa pela linguagem, pois “A linguagem,
efetivamente, não é apenas o lugar das formas. É o próprio sistema da
vida.”107 Aquilo que foi efabulado, ou seja, a invenção do outro em
linguagem é crucial para as necropolíticas, é o ponto em que ela sai do
campo semântico e se torna real, fazendo com que a imagem criada
transponha a visão e faça com que o outro seja a representação de tudo
que deve ser combatido. Nesse jogo dos olhares, continuamente prati-
cado pelas mãos do Estado, seja em 1904, em 1997, até mesmo nos dias
atuais, cria-se um alvo, um inimigo, alguém a ser combatido.
Percebem-se, com as leituras de Aimé Césaire, Frantz Fanon e de
Achille Mbembe, as vias que possibilitam olhar o funcionamento dos
fenômenos necropolíticos. Essas definições feitas aqui dialogam com o
conceito de soberania apresentada por Mbembe:
185
estado bruto, ao mesmo tempo que é uma máquina produtora de de
sejos.110 Vale salientar ainda que, como diz Aimé Césaire, “E isso, vejam,
não tem nada de exceção”,111 ao analisar as formas como são tratadas as
sociedades colonizadas, aquilo que foi chamado de exceção, outra carac-
terística do necropoder, na verdade foi uma regra durante séculos.
Porém, como defende Mbembe, as necropolíticas no século XX
e XXI já não se voltam apenas aos corpos de pessoas negras. Essas se
ampliaram de forma inédita, seja no apartheid, no Holocausto ou no
conflito na Palestina. Todos/as aqueles/as tidos/as como subalternos/as
agora tornam-se alvos, são todas vidas passíveis de morte. Para en-
tender como foi possível o rompimento dessa fronteira, tem que se
pensar o conceito de devir negro no mundo, obra do capitalismo e das
atualizações das tecnologias colonialistas já citadas.
110 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
111 CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020. p. 35.
112 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 11.
186
ências mais aterradoras da humanidade, só que, como vimos, ele faz
parte desse avizinhamento postulado aqui. Esse crime só foi condenável
quando feito em solo europeu, como afirma Césaire: o crime de Hitler
é ter violentado pessoas no “velho” continente.113 Aqui, se demonstram
os limites da reciprocidade, porém não se pode negar tamanha violência
e ainda mais uma industrialização da morte:
187
Como encontrar as ditas brechas? Primeiro, mesmo sendo re-
duzidas durante muito tempo a homem-coisa-moeda-mercadoria, as
pessoas negras criaram potências, linguagens, experimentaram com
o corpo para além daquilo que lhes foi imposto pela invenção; e
povos indígenas e de terreiro mantiveram manifestações de sua cul-
tura vivas mesmo com toda a violência destinada a eles. Só que isso
não quer dizer “tornar-se prisioneiro da história”,115 ou buscar uma
essência que dê significado ao hoje. Essa afirmação vale para saber
que existem a história e, mesmo com todo o extermínio, as formas
de existir. É aqui que o avizinhamento ganha força, já que, ao mesmo
tempo que o número de alvos da necropolítica é ampliado, também
aumentam as interligações do sensível; as empatias e reciprocidades,
não possibilitadas anteriormente, agora tornam-se a arma possível a
ser empunhada.
Essa potência dos que estão se tornando vizinhos é possibilitada
pelo devir negro. Temos que perceber que significações tem o negro
desse devir:
188
encontro e da diferença radical.117 Aquele homem farrapo, citado ante-
riormente, agora pode ser o homem plástico118 que, ao entrar em com-
bustão, se remodela, foge da fixidez de suas determinações, caminha
em zigue-zagues e faz slackline no fio da navalha.119
Para finalizar, queremos apresentar um último trecho do jornal
O Exemplo, que fala sobre a liberdade das mulheres no início do século XX:
117 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
118 Ibidem.
119 MÁ DAME. No fio da navalha. Frieza Records, 2020, Faixa 06: No fio da navalha. EP
189
dá pelo colonialismo; já no periódico, aponta-se um sintoma, a exclusão
das mulheres da vida política brasileira durante a Primeira República.
A analogia apresentada é de que a sociedade é um corpo. As mu-
lheres são metade funcional desse corpo e, sendo impossibilitadas da
sua participação na vida política da nação, haveria o mal funcionamento
dessa estrutura. Assim, pode-se perceber que os jornalistas tiveram uma
noção “inclusiva”, pois, se um dos sintomas é a ausência das mulheres,
o seu “remédio” seria permitir que estas fizessem parte da estrutura
social da qual estavam sendo escanteadas. Então, colocam-se a ques-
tionar, em suas páginas, o fato de não ser permitida a atuação na vida
política para as mulheres, defendendo que se deveria subverter essa
“ordem social hodienda” que permitia tal coisa, em busca de uma “li-
berdade mais ampla”.120
Desse modo, a palavra liberdade, ao meu ver, não aparece sem
intenções, na verdade ela é muito bem utilizada. A negação de direitos
às mulheres impedia que as próprias jornalistas, como Carmém
D’Aguiar e Pepita,121 que foram companheiras de redação desses jorna-
listas, as mulheres das suas famílias, conhecidas, como Dona Maria do
Brochado,122 fossem podadas de seus direitos. Mais do que isso, ao
longo do tempo que tenho acompanhado o jornal percebo que as mu-
lheres não foram figuras secundárias para a luta que empreendiam; pes-
soas como Andradina de Oliveira123 eram inspirações para eles e es-
tavam presentes na sua escrita.
Ao trazer para o centro da discussão os direitos políticos das mu-
lheres, O Exemplo está produzindo sua visão de liberdade. Para aqueles
que escreveram a folha, mais da metade de seus “órgãos” não poderiam
ter uma das suas principais funções limitada. O jornal de imprensa
190
negra, ao fazer a defesa aberta e franca por uma liberdade política das
mulheres, coloca-se ao lado também da população negra, pois são inú-
meras as mulheres negras que estavam sendo limitadas por esse adoeci-
mento. Pode-se pensar que se mobiliza uma tática124 que, ao falar de
mulheres, busca o benefício das que pertenciam às “pessoas de cor”,
porém quero ir mais afundo. Até que ponto isso não é uma prática do
que Mbembe chamou de desejo de abolição,125 uma busca pela liber-
dade universal que questionaria as formas de necropoder?
Ao se avizinhar da luta das mulheres, os jornalistas estariam per-
cebendo que a sua liberdade só seria possível se ela fosse para todos/as.
Logo, eles pedem uma “liberdade mais ampla”, em virtude de saberem
que, naquele momento em que viviam, estavam construindo suas pró-
prias interpretações de liberdade, sociedade e cidadania, e esse caso
escrito na sua Carta Aberta parece revelar um pouco da leitura que eles
faziam da sociedade em que viveram.
Então, este escrito é uma tentativa de construir o meu olhar sobre
necropolítica em solo brasileiro. O que diacho é esse conceito? É uma
forma de continuidade das tecnologias coloniais, atualizadas constante-
mente no século XX e XXI, uma maneira de multiplicar ainda mais os
corpos passíveis de violência. Porém, talvez num otimismo poético, o
avanço desenfreado dessas violências sobre um número cada vez maior
de pessoas vá possibilitar a aproximação dos que sofrem diariamente
com essa prática e, desse avizinhamento, faça surgir “...um desejo cons-
ciente de vida, força pujante, flutuante e plástica, plenamente engajada
no ato de criação e até mesmo no ato de viver em vários tempos e várias
histórias simultaneamente”.126
124 Partimos da definição de Certeau, como uma ação calculada pela ausência de poder,
usando o espaço do outro para prever suas saídas. In: CERTEAU, M. de. A invenção do
cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2014. p. 93-94.
125 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 298.
126 MBEMBE, A. A crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018. p. 21.
191
Referências
192
AS/OS AUTORAS/ES
194
Felipe Ricardo Vieira Lopes
Mestrando em História Social no Programa de
Pós-Graduação em História (UFC), graduado em
História na Universidade Federal do Ceará e inte-
grante do Grupo de Estudos Caldeirão, do Fórum
de Discentes Negras e Negros do curso de História
(UFC). Articulador do Slam da Okupa, compe-
tição de poesia falada que aconteceu em Fortaleza de 2018-2020, tendo
rodado por inúmeros bairros da cidade e participado de eventos como
Maloca Dragão (2018) e XII Bienal Internacional do Livro do Ceará
(2019). Poeta e participante do Movimento de Saraus da Periferia de
Fortaleza, compondo atividades no Sarau Okupação desde 2017, so-
mando também na Biblioteca Comunitária Okupação, de 2018-2019.
195
Franck Pierre Gilbert Ribard
Possui graduação em Sociologia – Université de
Toulouse-Le Mirail (França,1992), mestrado em
Antropologia Social e Histórica da Europa – École
des Hautes Études en Sciences Sociales (França,
1993), doutorado em História – Université de
Paris IV – Sorbonne (França, 1997). Pós-doutorado
na Université Toulouse – Jean Jaurès (2013-2014,
França). Atualmente, é professor associado da
Universidade Federal do Ceará. Tem experiência na área de História,
com ênfase em Antropologia Histórica, atuando principalmente nos se-
guintes temas: relações interétnicas, negro, memória da escravidão,
festa, relações atlânticas, história da África, cinema africano.
196
Jonathan Silva
Indígena da etnia potiguara, professor na Escola
Indígena Francisco Gonçalves de Sousa do povo
Tapuia Kariri, município de São Benedito (CE).
Membro do grupo Força Jovem Indígena, inte-
grante do grupo Universos Kariri, umbandista no
C.E.U. Caboclo Cobra Coral. É aluno da licencia-
tura intercultural indígena kuaba da UFC.
Militante indígena.
197
História. Pesquisa temas que versam sobre teorias contra-hegemônicas
e contracoloniais, com interesse nas questões de luta por território, me-
mória e educação de povos indígenas e quilombolas; ações afirmativas,
Leis n.º 10.639/03, n.º 11.645/08 e cinemas africanos. É colíder dos
Grupos de Estudos: Caldeirão: Confluências Anticoloniais (UFC) e do
GEPPHERG – Políticas Públicas, História, Educação das Relações
Étnico-Raciais e de Gênero (FE – UnB/UFC). Integra a equipe interna-
cional de pesquisadores do Tecendo Redes Antirracistas e da Rede de
Historiadoras/es Negras/os. É bolsista do Programa Cientista Chefe da
Cultura Funcap/Secult – Ceará e é o atual coordenador do GT de
História e Cultura Visual da ANPUH-Bahia.
198
Norte e Nordeste pela Universidade Federal de Pernambuco e douto-
randa em História Social na Universidade Federal do Ceará. Atua na
área de história da saúde (saúde e pobreza em São Luís na Primeira
República e saúde da mulher negra) e trabalha com as populações qui-
lombolas na baixada ocidental maranhense, Maranhão.
199
Mateus de Castro Ferreira (Mateus Tremembé)
Indígena da Terra Indígena Tremembé da Barra
do Mundaú, Itapipoca (CE). Agricultor agroeco-
lógico, agente ambiental Tremembé, militante do
movimento indígena do Ceará, produtor cultural
da festa do murici e batiputá, festa de yemanjá e
ritual do alimento ancestral, educador popular, ar-
tista e artesão. Pesquisador da cultura alimentar
Tremembé, coordenador de cultura do Ponto de
Cultura Recanto dos Encantados, coordenador técnico do Projeto
Cultura de Alimentar a Aldeia na TI Tremembé. Graduando do curso de
Bacharelado em Agronomia pela Universidade da Integração
Internacional e da Lusofonia Afro-Brasileira – Unilab.
Tshombe Miles
Professor Associado de Estudos Negros e Latinos.
Pesquisa sobre a história da raça, classe e etnia na
América Latina, especificamente no Brasil. Seu
trabalho está particularmente interessado na diás-
pora negra no mundo atlântico. É membro da
Association for the Study of the Worldwide
African Diaspora e da Associação Nacional de
História (no Brasil). Apresentou trabalhos na
University of Texas Austin, University of North Carolina Chapel Hill,
New York University, convidado para o City College e apresentou tra-
balhos em conferências na França, Itália, Espanha, e tem apresentado
regularmente no Brasil. Publicou dois livros e vários artigos. Além
disso, escreveu artigos para meios on-line populares como o Root e a
African-American Intellectual Society. Ele também escreveu vários ar-
tigos de opinião para o jornal O Povo, um jornal popular do Nordeste
do Brasil. Ele se formou no City College de Nova York e fez doutorado
na Universidade de Brown.
200
Viviane de Souza Lima
Mestre em História pela UFMG e doutoranda em
História pela UFC. Desenvolve a pesquisa de
doutoramento intitulada “Trajetórias atlânticas:
caminhos de história na vinda dos estudantes afri-
canos bolsistas do Itamaraty para o Brasil (1961-
1969)”. Bolsista Funcap. Graduada em Comu
nicação Social – Jornalismo (UFC). Áreas de
interesse e pesquisa: África, luta de libertação
nacional na África, colonialismo, mobilidade so-
ciocultural Brasil – África, transnacionalidades, relações internacionais
Brasil – África – Portugal. Colaboradora da ONG Instituto do Patrimônio
Histórico, Cultural e Natural de Quixeramobim (IPHANAQ). Integra o
Coletivo @Casinha Criações (pesquisa e artes).
201
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