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ANDRÉ BUENO · CARLOS COSTA CAMPOS · LUIS BANTIM ASSUMPÇÃO

FALAS NA REDE
Ensino e Pesquisa
em História e Educação
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro

Vice-Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Domenico Mandarino

Edições Especiais Sobre Ontens


Comissão Editorial & Científica
Dulceli Tonet Estacheski [UFMS]
Everton Crema [UNESPAR]
Carla Fernanda da Silva [UFPR]
Carlos Eduardo Costa Campos [UFMS]
Gustavo Durão [UFPI]
José Maria Neto [UPE]
Leandro Hecko [UFMS]
Luis Filipe Bantim [UFRJ]
Maria Elizabeth Bueno de Godoy [UEAP]
Maytê R. Vieira [UFPR]
Nathália Junqueira [UFMS]
Rodrigo Otávio dos Santos [UNINTER]
Thiago Zardini [Saberes]
Vanessa Cristina Chucailo [UNIRIO]
Washington Santos Nascimento [UERJ]

Rede:
www.revistasobreontes.site

APOIO:
CEDERJ/UAB
Pólo Cantagalo

Ficha Catalográfica

BUENO, André; CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa; ASSUMPÇÃO, Luis Filipe


Bantim (org.)
Falas na Rede: Ensino e Pesquisa em História e Educação. 1ª Ed. Rio de
Janeiro: Sobre Ontens/UERJ, 2020. ISBN: 978-65-00-09572-2 194pp.

Ensino; Pesquisa; História; Educação; Formação de Professores

2
SUMÁRIO

PREFÁCIO, 5

O HOMESCHOOLING NO BRASIL PÓS-GOLPE: REPENSANDO A EDUCAÇÃO


FAMILIAR DESESCOLARIZADA
Anabelle Loivos Considera, 7

TRADIÇÕES MÉDICAS CHINESAS E O DESAFIO DA ESCRITA DA HISTÓRIA NA


CONTEMPORANEIDADE
André Bueno, 17

APRENDENDO E ENSINANDO COM AS “COISAS”. A ARQUEOLOGIA E A SALA


DE AULA
Camila Diogo de Souza, 23

FIGURAS E INSCRIÇÕES: EM TORNO A UM FAMOSO ESQUEMA MURAL EM


ÓSTIA
Claudia Beltrão e Patricia Horvat, 35

ENSINO DE HISTÓRIA ESCOLAR: SABERES, PRÁTICAS E ESPECIFICIDADES


Diego Caetano Miranda, 43

RECONSTRUÇÃO E ANÁLISE DE TRAJETÓRIAS DE SERVIÇOS COMO


POSSIBILIDADES DE ESTUDO PARA A PESQUISA COLONIAL: O CASO DE D.
VASCO DE MASCARENHAS [SÉC. XVII]
Érica Lôpo de Araújo, 49

EDUCAÇÃO E CIDADANIA NA ATENAS CLÁSSICA


Fábio de Souza Lessa, 55

ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL E NOS ANOS INICIAIS DO


ENSINO FUNDAMENTAL – BREVES CONSIDERAÇÕES
Luis Filipe Bantim de Assumpção, 63

A DITADURA MILITAR BRASILEIRA NA PERSPECTIVA DAS HISTÓRIAS EM


QUADRINHOS: UM INVENTÁRIO SOBRE AS FORMAS DE NARRAR NA
CULTURA HISTÓRICA DO BRASIL
Marcelo Fronza, 71

A HISTÓRIA ANTIGA GREGA NA CONTEMPORANEIDADE: O ABISMO ENTRE A


PESQUISA E O LIVRO DIDÁTICO
Márcia Cristina Lacerda Ribeiro, 85

O CARRO FALA. UM OLHAR SOBRE A SOCIEDADE OITOCENTISTA POR


INTERMÉDIO DOS MEIOS DE TRANSPORTE [C.1850-1890]
Marcus Vinicius Kelli, 95

ENSINAR HISTÓRIA COMO CONDIÇÃO E SENTIDO PARA AÇÃO DOS SUJEITOS


EM TEMPOS TRAUMÁTICOS: DESAFIOS DA EDUCAÇÃO HISTÓRICA
Marlene Cainelli e Ronaldo Cardoso Alves, 103

3
LIBERDADES PRECARIZADAS: UM ESTUDO SOBRE AS MOVIMENTAÇÕES
INTERNACIONAIS DE FUGA DAS PESSOAS ESCRAVIZADAS NA FRONTERA
OESTE DO BRASIL [1829-1850]
Newman Di Carlo Caldeira, 110

GENEALOGIA FLUMINENSE NA PRIMEIRA REPÚBLICA: OS ARNOLDI BOSISIO


Rafael de Almeida Daltro Bosisio, 118

IDEIAS DE ESCRAVIDÃO
Sheila de Castro Farias, 126

REFLEXÕES SOBRE A DINÂMICA COLONIAL NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA


Sonia Maria Vieira da Silva, 137

A PRIMEIRA MISSÃO DIPLOMÁTICA DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA AOS PAÍSES


BAIXOS [1646]
Thiago Groh, 146

A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO CLÁSSICO COMO ALTERNATIVA PARA


PENSARMOS A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA BNCC
Thiago Brandão Zardini, 151

SER PROFESSOR NO SÉCULO XXI: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E


CULTURAL ATRAVÉS DE HARRY DANIELS
Vivina Dias Sol Queiroz e Carlos Eduardo da Costa Campos, 158

A DEFESA DA EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA SOCIAL E OS PERIGOS DA


IDEOLOGIA DA APRENDIZAGEM
Wendell dos Reis Veloso, 166

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM EAD: A IMPORTÂNCIA DA TUTORIA


PRESENCIAL
Wesley da Silva Gonçalves, 174

NAVEGANDO DIGITALMENTE PELO IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ALÉM MAR:


REINVENÇÕES, NEGOCIAÇÕES E ALIANÇAS NA AMÉRICA PORTUGUESA
Rosiane de Oliveira da Fonseca Santos, 185

4
PREFÁCIO

O aprimoramento acadêmico é fundamental para o magistério e a ciência. Nesse


sentido, esta publicação é o produto de um espaço virtual gerado para debates sobre
ensino e pesquisa científica, assim contribuindo para a democratização do
conhecimento. Afinal, em tempos de pandemia e isolamento social fomos levados –
professores e discentes – a repensar os espaços de estudo, bem como as relações de
ensino-aprendizagem. De fato, os desafios foram muitos e outros tantos ainda virão,
embora não possamos perder o nosso comprometimento com a educação pública e
de qualidade.

Educação aqui poderia vir com letra capital, visto que a sua função social nunca foi tão
importante e, ao mesmo tempo, tão atacada. Ensinar e aprender se tornou um
exercício constante de inovação e combate às desigualdades sociais. Assim, o Iº
Simpósio Eletrônico de História e Educação, que foi sediado polo CEDERJ/UAB
Cantagalo, assegurou o seu compromisso de ensino em meio ao cenário pandêmico,
em prol da qualificação educacional de nossa comunidade estudantil.

Destaca-se que esse empreendimento foi realizado com o auxílio de companheiros de


ofício, docentes dotados de anseios educacionais semelhantes. Tal grupo buscou
construir o Simpósio da forma mais democrática possível e permitindo que todos
pudessem acessar da forma mais prática. Dito isso, a iniciativa do Prof. Dr. André
Bueno (UERJ) em criar, há alguns anos, um evento acadêmico no formato textual se
mostrou singular para a realidade que temos vivenciado. Logo, com a partilha do
formato tecnológico desenvolvido pelo referido docente, o nosso desejo se tornou
realidade.

Vale mencionar que os textos aqui publicados são o resultado do empenho


profissional de professores-pesquisadores que, em função de sua experiência
docente, puderam fomentar e aprimorar mutuamente o conhecimento de todos que
participaram do Simpósio. Os textos desta obra demarcam a importância da Educação
e do Ensino de História para a edificação de uma sociedade consciente, dotada de
cidadãos ativos e responsáveis para com o seu dever e os seus direitos.

Portanto, esperamos que todos se beneficiem com os escritos contidos nesta


coletânea, visto que o conteúdo apresenta debates atualizados e contextualizados
com a fase que vivenciamos no cenário brasileiro. Logo, fazemos votos de uma ótima
leitura.

Rio de Janeiro, 21 de Setembro de 2020

5
6
O HOMESCHOOLING NO BRASIL PÓS-GOLPE: REPENSANDO A
EDUCAÇÃO FAMILIAR DESESCOLARIZADA

Anabelle Loivos Considera

Os vivos debates sobre educação domiciliar no Brasil acompanham as intensas


movimentações mais recentes de determinados grupos sociais, de matiz
antiestatista, cujas compleições inserem anarquistas, liberais e religiosos
fundamentalistas. As manifestações desses grupos se dão tanto no âmbito da
justiça – com dezenas de centenas de querelas entre famílias e redes de
ensino municipais e estaduais – como também no escopo da legislatura – com
a tramitação no Congresso Nacional de vários projetos de lei que têm como
objetivo legalizar e sistematizar a prática do homeschooling. O Supremo
Tribunal Federal [STF] e o Conselho Nacional de Educação [CNE] entendem
que a Lei n.o 9.394 de 1996 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional [LDB]
estabelece que o ensino obrigatório deve ocorrer necessariamente na escola
[Barbosa, 2013], e esta continua a ser a concepção basilar para o oferecimento
da educação para alunos de 4 a 17 anos, que corresponde a todo o ensino
básico. O movimento da homeschooling, entretanto, entende que o Estado, ao
tornar o ensino escolar obrigatório para todos, não deve impor forçosamente
que ele se dê em instituições escolares.

Entende-se por “educação doméstica” a que contempla a prática de ensinar os


filhos diretamente no ambiente doméstico; a expressão “ensino domiciliar”,
nomenclatura comumente usada nos ordenamentos jurídicos, refere-se aos
diversos projetos de lei [PLs] existentes sobre o assunto; finalmente, o leque
discursivo do homeschooling trouxe à baila a expressão “educação na casa”,
diametralmente oposta à “educação na escola”. Como se percebe, não se trata
de uma mera questão semântica: invertendo os polos de negatividade e
positividade discursiva, os teóricos da educação domiciliar usam e abusam das
referenciações à escola, embora não a reconheçam como espaço legítimo e
exclusivo de formação das crianças e jovens [Vasconcelos, 2005, 2011].

Em que pesem os processos discursivos que enredam a necessidade de uma


conceituação para o homeschooling – palavra ainda sem tradução adequada
para a língua portuguesa –, a educação na casa, que não é um fenômeno novo
no contexto brasileiro1, volta à cena como uma possibilidade cada vez mais
próxima e a galope da grita de grupos bem estruturados, que usam de forma
competente as tecnologias da informação e da comunicação, como as redes
sociais, para promover a aquisição de conhecimentos sem a intermediação da
escola. Sob este prisma, a instituição escolar seria não apenas secundarizada,
mas poderia mesmo ser totalmente dispensável, o que sugere novos rumos e
outros contornos para os limites físicos e constitucionais para a concretude do
processo de escolaridade.
1
A Constituição brasileira de 1946, no capítulo sobre educação, já dispunha, em seu artigo
166, que “a educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana” [cf.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm; acesso em 30-05-2019].

7
Para o teórico ultraliberal Auberon Herbert [1978], refletindo nos estertores do
século XIX sobre a obrigatoriedade do ensino massivo, assim como o Estado
não deve interferir na religião dos cidadãos, também não deveria ter o direito
de ditar o tipo de educação a ser dada para todos os cidadãos. Em teoria, uma
educação estatal não beneficiaria a liberdade dos homens, uma vez que se
apresenta como uma espécie de “favor político”. Tal cunho assistencialista, na
opinião do pensador britânico, criaria uma intensa e incontornável relação de
dependência de determinadas camadas sociais, já que as elites, ao pagarem
impostos convertidos para a educação pública, acreditam poder dirigir a
escolarização de toda a população, enquanto o trabalhador comum não veria
sentido ou mesmo validade na educação escolarizada de seus filhos, fadados a
repetirem seu ciclo de vida integralmente exposto à exploração trabalhista
[Herbert, 1978].

Ao tomarmos contato com tais proposições dos teóricos liberais, resta-nos uma
pergunta: como, então, oferecer um sistema nacional de educação sem a
interveniência direta do Estado? A resposta possível nos encaminha para um
confronto entre as ideias do liberalismo com aquelas experiências que revelam
maior ingerência do Estado no domínio econômico e social, calcadas no estado
de bem-estar democrático, nas políticas de proteção social e nas tentativas de
construção do socialismo, após a revolução russa de 1917. Como bem observa
Moraes [2001, p. 4],

o neoliberalismo, de modo semelhante, é a ideologia do capitalismo na era de máxima


financeirização da riqueza, a era da riqueza mais líquida, a era do capital volátil – e um
ataque às formas de regulação econômica do século XX, como o socialismo, o
keynesianismo, o Estado de bem-estar, o terceiromundismo e o desenvolvimentismo
latino-americano.

O Estado contemporâneo, considerado ente de razão e assegurador das


condições para a liberdade e arbítrio do cidadão, torna a educação escolar
obrigatória. E é isso que será contestado de forma contumaz pelo
homeschooling. O ensino domiciliar é contrário à educação obrigatória, por
motivos religiosos, filosóficos, contextuais, especiais ou circunstanciais,
sustentando sua posição na visão de que o Estado deve ater-se ao que lhe
cabe como função inalienável. Mas, em termos de educação ela estaria melhor
se ofertada por particulares: “a adesão reiterada à política de educação
compulsória é totalmente incompatível com os esforços para estabelecer-se a
paz duradoura” [Mises, 2010b, p. 132].

Milton Friedman destacou-se por ter introduzido a ideia do voucher escolar,


tema que se tornou presente em muitos debates de teoria e política
educacional, especialmente nas décadas de 1980 e 1990 nos Estados Unidos,
e talvez se constitua como a principal proposição educacional associada ao
neoliberalismo econômico. Contrário à oferta estatal da educação, Friedman
defende que o Estado deveria subsidiar a educação mediante um programa de
vouchers para estudantes de baixa renda, ainda que a administração das
escolas deva ser totalmente privada. Tal proposição, a seu ver, coaduna-se
com uma ampla e positiva ação do mercado, levando à promoção tanto da

8
liberdade como da igualdade de oportunidades entre os cidadãos. Para levá-la
a cabo, o Estado deveria prover um “mínimo” de educação geral às crianças e
aos jovens [que ele chama de “grau mínimo de alfabetização e conhecimento”],
a fim de contribuir para a aceitação de valores que considera indispensáveis
para uma sociedade estável e democrática, incluindo o make yourself at home
[Friedman, 1962].

A ideia de um Estado mínimo e da valorização do individualismo, própria do


neoliberalismo, está no cerne da proposição da educação domiciliar. A escola,
como aparelho estatal, removeria das crianças qualquer possibilidade de terem
um papel ativo na vida comunitária, sendo essa obnubilada pelo peso da sua
estrutura social burocrática e hierárquica. Ludwig von Mises, por exemplo,
questiona a ideia de que a educação escolar proporcionaria a igualdade de
oportunidades entre os educandos, posto que a desigualdade entre os homens
é um fato, no seu entender, ineludível. E continua: “A educação, qualquer que
seja o seu benefício, é transmissão de doutrinas e valores tradicionais. É, por
necessidade, conservadora; produz imitação e rotina, e não aperfeiçoamento e
progresso” [Mises, 2010a, p. 375]. Ou seja, não existe sistema de cooperação
humana possível para o êxito no âmbito de uma educação massiva e
controlada pelo Estado. Em sua opinião, “Os inovadores e os gênios criadores
não se formam nas escolas. Eles são precisamente aqueles homens que
questionam o que a escola lhes ensinou” [idem].

Observa-se o surgimento de associações de homeschooling, constituindo-se


em organizações específicas, com imensa capacidade de lobby, nos níveis
jurídico e político, e representando diretamente os interesses dos pais, que
trabalham incansavelmente pela regulação de tal prática de ensino –
especialmente, no âmbito de instituições religiosas e privadas. Tais grupos
atuam, ainda, no apoio ao desenvolvimento de materiais pedagógicos e às
estratégias educativas adequadas para essa opção educacional. Na América
do Norte, a maior dessas associações é a Home School Legal Defense
Association [HSLDA] – Associação de Defesa Legal da Educação Domiciliar –,
com atuação desde 1983 a partir do estado da Virgínia [EUA] e presença
constante também junto aos ministros do nosso STF. No Brasil, a principal rede
pró-homeschooling é a Associação Nacional de Educação Domiciliar [ANED],
fundada no ano de 2010, por iniciativa de um grupo de famílias educadoras que
propugnam a causa da autonomia educacional.

Ribeiro e Palhares [2017, p. 79-80] atentam para vários outros aspectos


peculiares ao discurso que positiva a educação domiciliar, uma vez que essa
prática consistiria em garantir: pluriformidade curricular; flexibilidade de horário
e de programação; metodologias dirigidas para o ensino individual, ou no
máximo em pequenos grupos; pluralidade de estilos de aprendizagem; ensino
ao ritmo do aluno; controle centrípeto; maternização do ensino; configuração
variável e adaptável dos espaços; diversidade elevada de meios; refúgio
doméstico; transversalidade e investimento situacional; e recursos de
aprendizagem e avaliação diária.

9
Em suma, as ideias em que se baseia o homeschooling expressaram uma
orientação liberal, humanista e pedagógica, calcada nas híbridas
movimentações sociais da década de 1970. É também nesse momento que os
escritos de Ivan Illich e John Holt, ao contestarem a estrutura escolar e se
posicionarem contra ela, ganham notoriedade e passam a ser utilizados no
contexto de defesa da regulamentação da educação domiciliar, sobretudo nos
EUA. O homeschooling, portanto, se situa no contexto das mudanças das
políticas educacionais na América do Norte, mais especificamente como
consequência da reforma escolar, a partir da década de 1980 e do programa
da school choice. Não nos cabe, aqui, ignorar os méritos do liberalismo, que
evidencia o papel do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e
salienta a necessidade de limitar o poder – ainda que para somente uma
pequena comunidade de privilegiados [Losurdo, 2005]. Mas é preciso atentar
para o fato de que os que insistem em defender que à escola cabe apenas
ensinar currículos, protocolarmente, o fazem com o intuito de destituí-la de seu
papel eminentemente político de socialização e transformação social.

Encaramos, assim, o fenômeno do homeschooling como parte das reformas


neoliberais, indubitavelmente, e como componente importante da agenda de
uma nova gestão pública do presente contexto educacional. Nesse sentido, a
prática de educar na própria casa – malgrado as muitas limitações físicas e
socializantes do ambiente doméstico – constitui-se numa meta de
descentralização do gerenciamento dos sistemas educativos, sem
precedentes, após o advento da escolarização [Paraskeva & Au, 2010; Torres
Santomé et al, 2003]. Qualquer alternativa que rompa com a sua formatação
seria inaceitável, sob a justificativa de que é preciso melhorar a qualidade da
escola, mas, em nenhuma hipótese, desescolarizar a sociedade.

E no contexto brasileiro, como fica a questão do homeschooling e suas


crescentes aporias? O último Censo Escolar realizado pelo MEC/INEP [Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], em 2018,
trouxe números bastante significativos a serem incorporados ao debate mais
amplo sobre educação, escolarização e desescolarização – e, mais
especificamente, ao debate sobre o homeschooling. Os dados demonstram
que houve diminuição do número de estudantes matriculados nas escolas de
educação básica brasileiras: foram registradas 48,5 milhões de matrículas nas
181,9 mil escolas, o que representa uma redução em relação aos 48,6 milhões
de estudantes registrados no censo anterior, de 2017. A maior parte desses
estudantes está na rede pública [cerca de 39,5 milhões, ou 81,44% do total],
sendo 88,7% majoritariamente matriculados em escolas na área urbana.
Apesar da redução do número geral de alunos, a quantidade de matrículas na
educação infantil cresceu cerca de 2,8% em relação a 2017, atingindo 8,7
milhões em 2018. Esse crescimento foi decorrente, principalmente, do aumento
das matrículas em creches [5,3%].

De qualquer forma, persiste o fenômeno de uma maior procura pela escola


pública, já que a escola privada tem perdido matrículas de forma sistemática,
na série histórica de cinco anos para cá – por exemplo, o Censo Escolar de

10
2013 mostrava que, nos 190.706 estabelecimentos de educação básica do
país, estavam matriculados 50.042.448 alunos, sendo que 41.432.416 [82,8%]
em escolas públicas e 8.610.032 [17,2%] em escolas da rede privada. O
levantamento atual do INEP mostra, ainda, que o país tem cerca de 2 milhões
de crianças e adolescentes de 4 a 17 anos fora da escola, idade escolar
obrigatória, e que as maiores concentrações de pessoas excluídas do sistema
de ensino estão na faixa etária de 4 anos de idade – com 341.925 crianças fora
da pré-escola – e aos 17 anos – com 915.455 jovens.

Os números apresentados preocupam justamente porque se revelam num


momento em que o governo central e o MEC estabeleciam como prioridade a
regulamentação do homeschoolling, como uma das metas dos 100 primeiros
dias de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Não é à toa que, privando do
entendimento de que é direito dos pais decidir sobre a educação dos seus
filhos, a equipe de governo acabou deslocando do MEC para o Ministério da
Família, Mulher e Direitos Humanos a apresentação de propostas, projetos de
lei e mesmos medidas provisórias sobre o homeschooling, tratando-o como
uma questão de direitos humanos. Entretanto, cabe perguntar: seria a
educação domiciliar uma panaceia para ajustar as estatísticas decrescentes de
matrículas de crianças e jovens nos espaços de educação formal?

Vale ressaltar que a escolarização tem sido comumente pensada de forma


compulsória no contexto brasileiro, pelos meios acadêmicos e mesmo entre
professores da educação básica, que estão na ponta de lança do processo de
ensinagem e aprendizagem. Ainda que não seja novidade contestar a
compulsoriedade escolar, é mais rara a ideia de contestá-la para ensinar as
crianças em casa. Se a educação é um dever, tanto da família quanto do
Estado, em tese, as famílias poderiam concretizá-lo sem a intervenção da
esfera estatal. Acontece que acompanhamos presentemente um fenômeno
controverso: tais regulações têm sido outorgadas pela sociedade, quase
sempre, a um terceiro elemento – que comparece de maneira decisória ao
palco de questões hodiernas que envolvem a educação – o Judiciário. A
judicialização das demandas educacionais, assim como a judicialização da
vida, em termos gerais, tem aportado com força nos espaços escolares,
delegando à ação da Justiça a regulação das relações escolares, o que resulta
em condenações das mais variadas ordens. Tais relações entre direito e
escola, uma vez firmadas como um pacto pela responsabilidade civil, acabam
por colocar a educação, muitas vezes, sob a tutela do poder judiciário, o que
não nos parece saudável – malgrado a legislação mais atual reconheça a
criança e o adolescente como sujeitos de direitos e a educação como direito
social e público subjetivo.

Em que casos é legalmente possível oferecer educação domiciliar às pessoas


no Brasil? A legislação de suporte para o tema parte desde a Carta
Constitucional de 1988, passando pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e
pela própria Lei n.º 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional –
que, em artigo de larga amplitude, o seu 4.º-A, diz que “É assegurado
atendimento educacional, durante o período de internação, ao aluno da

11
educação básica internado para tratamento de saúde em regime hospitalar ou
domiciliar por tempo prolongado, conforme dispuser o Poder Público em
regulamento, na esfera de sua competência federativa”, dispositivo incluído
pela Lei n.o 13.716, de 24 de setembro de 2018.2 De qualquer forma, o
atendimento pedagógico domiciliar caracteriza-se por ser um serviço
educacional especializado, desenvolvido na residência do aluno que não pode
participar das aulas nos espaços escolares, por tempo determinado pelo
médico, por motivo de impedimento físico que impossibilita sua permanência e
frequência às aulas [BRASIL, 2002, p. 13]3. Os alunos precisam estar
matriculados nos sistemas de ensino e o professor, ao atendê-lo em sua
residência, disponibiliza condições para o acesso ao currículo, a igualdade de
condições para aquisição de conhecimentos e a permanência do aluno na
escola. Não se trata, portanto, de uma forma de homeschooling, como se vem
questionando inclusive nas instâncias do mundo jurídico.

Vale ressaltar um aspecto importante na constituição das redes de apoio à


educação domiciliar, que é a formação de um nicho de mercado bastante
significativo: o homeschooling pode vir a configurar-se como um grande
negócio, uma vez que mobilizará de forma mais efetiva editoras, empresas que
atuam em congressos, venda de materiais na internet etc. Para fazer girar a
roda de publicações, materiais didáticos e formações para pais e educadores
domiciliares, será necessário estratégia empresarial e de marketing, a fim de
gerar grandes lucros. A menina dos olhos da iniciativa privada 4 que,
certamente, estará à frente desses esforços, é o financiamento público das
escolas virtuais, que também deverá ser regulamentado por lei. Especialistas
alertam que, por outro lado, haverá uma tendência a certa “uberização” do
professor, o que precarizará ainda mais as relações trabalhistas na área do
magistério. Segundo Freitas [2019, on-line]:

Criada a possibilidade da educação em casa com uma certa escala, as empresas se


multiplicarão e a conta da “educação em casa” será repassada para o Estado [p. ex.
através de vouchers], diminuindo o financiamento para a escola pública, juntamente
com outros processos de privatização. [...] incentivando processos de
“desescolarização” e ainda pagamento de aulas particulares, aprendizado on-line,
aulas comunitárias, materiais escolares em casa, escolas particulares.5

Temos, assim, uma profunda alteração dos fundamentos da educação, num


cenário já amplamente acolhedor das premissas da educação domiciliar no
Brasil – a própria ANED relata um crescimento impressionante de 2000% entre

2
Cf. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13716.htm#art1; acesso de
03-06-2019.
3
Cf. documento do MEC intitulado “Classe Hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar”,
disponível em: http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/livro9.pdf; acesso em 03-06-2019.
4
A esse respeito, sugerimos a leitura do artigo de Theresa Adrião e Teise Garcia, “Educação a
domicílio: O mercado bate à sua porta”, que analisa a atuação do Grupo Pearson, que
mantém um setor especificamente voltado para a educação doméstica. Cf.
http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/783/pdf; acesso em 06-06-2019.
5
Cf. https://avaliacaoeducacional.com/2019/01/25/o-mercado-por-tras-do-homeschooling/;
acesso em 05-06-2019.

12
2011 e 2018, com cerca de 7.500 famílias praticando o homeschooling,
atualmente, perfazendo um total de 15.000 estudantes entre 4 e 17 anos e com
taxa de aumento de participação na ordem de aproximadamente 55% ao ano. 6
Frente a tal quadro de coisas, é pertinente a formulação de Bruce Arai [1999, p.
9], que toma como referência a formação para a cidadania:

Enquanto que a forma e o conteúdo da educação para a cidadania entre


homeschoolers é claramente diferente [sic] da que as crianças recebem na escola,
não é uma experiência inferior. Em outras palavras, homeschoolers podem ser bons
cidadãos. Aqui, eu argumentei que os homeschoolers, apesar de serem acusados de
não serem bons cidadãos, estão de fato engajados em um processo de definição de
sua própria visão do que significa ser um cidadão. Eles claramente não acreditam que
a escolarização compulsória é um pré-requisito para a adequada formação para a
cidadania e eles preferem afirmar a importância da família e a participação
diretamente em atividades públicas como a base de seu entendimento de boa
cidadania.

De toda a forma, aqui estão explicitados a cisão de certa parcela de pessoas


com o projeto político-pedagógico da escola pública, laica e gratuita, bem como
os efeitos que ela tem causado no escopo da sociedade brasileira. O conflito
latente entre as concepções educacionais que se sustentam na figura do
Estado, em maior ou menor participação, invariavelmente estabelece uma linha
divisória nada desprezível na interpretação das políticas públicas educacionais.

O fenômeno da “escola em casa” repercute, por óbvio, nos discursos contra a


escola pública e em seu tom aguerrido. Acaba por fazer florescer, em
decorrência disso, uma certa campanha [já nem tão subterrânea assim...]
contra o professorado da rede pública, uma vez que, ao nível do senso comum,
prevalece a noção de que tudo o que é público é mau e tudo o que é privado é
bom. Torres Santomé [2003, p. 40], em Ventos de desescolarização – A nova
ameaça à escolarização pública, afirma que o movimento da “escola em casa”
contribuiria, assim, “para reforçar a estratificação social, econômica, política e
cultural, ou seja, incrementaria as desigualdades, além do que ‘as fracturas
sociais’ acabariam ficando mais evidentes”. O autor afirma, ainda, que
aqueles que optam por esse modelo de “escolaridade em casa” seriam,
principalmente, famílias de “muito alto status econômico, cultural e social”,
além de possuírem “valores muito tradicionais”, entre os quais “a mulher
prefere não trabalhar por um salário fora de casa e, fundamentalmente,
crentes” [Torres Santomé, 2003, p. 47].

Cabe ressaltar que a propalada liberdade de escolha das classes dominantes,


amparadas maciçamente pela classe média, pode provocar lacunas que, num
cenário de não interveniência do Estado e de um projeto educativo neoliberal,
permitirão a ascensão de novos espaços de profusão ideológica – os quais, por
sua imprevisibilidade e ainda não ponderável capacidade de afetar o campo
educacional, talvez, se tornem mais difíceis de serem atacados em suas
fragilidades, mais até do que a própria escola já o é.

6
Cf. https://www.aned.org.br/conheca/ed-no-brasil; acesso em 06-06-2019.

13
Outra grande vulnerabilidade apontada por pesquisadores, no âmbito da
educação domiciliar, diz respeito à concepção basilar dos objetivos gerais e
específicos da educação básica, sugerindo um confronto sobre o seu
entendimento filosófico. Em outras palavras, de que forma o processo
educativo deveria ser tomado: como mecanismo para o bem coletivo ou
somente como validador do conhecimento no âmbito individual? É notório que,
no contexto atual, a escola é uma das principais ferramentas que mantêm
crianças em situação de risco fora do contato com o tráfico, com o trabalho
infantil e com a exploração sexual. Dessa forma, valeria a pena questionar os
porquês da defesa do homeschooling, a pretexto de uma política privada de
proteção à infância e à adolescência, num cenário tão belicoso para outras
infâncias e juventudes que o projeto, por sua natureza particular e antimassiva,
não pode contemplar.

Há, ainda, vários aspectos de ordem prática envoltos na proposta do


movimento de educação domiciliar, como a competência dos pais/tutores em
relação à sua formação profissional, no âmbito da pedagogia ou da
licenciatura, ou mesmo o papel do Estado no controle relativo à certificação
dos que vão ensinar em casa. Existe, até mesmo, certa defesa [ainda tímida,
mas já persistente] dentro das faculdades de Pedagogia de que esse seria
mais um campo de trabalho para os pedagogos, que já tiveram sua área de
atuação muito reduzida com as sucessivas reformas do curso. Ademais, seria
preciso categorizar e compreender a atuação dos mais diversos subgrupos que
levariam a cabo a proposta do homeschooling, uma vez que regulamentada por
lei: por seu enfoque liberal-cristão, o exercício do pátrio poder está presente
desde o diagnóstico do nivelamento de ensino dos filhos, além de se espraiar
na transmissão, na exercitação, na consolidação e na avaliação de um saber
pelos pais julgado legítimo, frente a outros tidos como descartáveis [o belicoso
projeto “Escola sem Partido” investe nesse ponto, por exemplo].

Sendo lugar privilegiado de convívio com o “Outro: o negro, o pardo, o não


crente, o pobre, o diferente, enfim”, a escola torna-se “lugar institucional
para se respeitar o outro, meu igual”, segundo Cury [2017, p. 117]. Nesse
sentido, pontua o autor:

Tal isolacionismo, posse de famílias bem representadas na distribuição de renda, pode


se valer de recursos próprios e, com isso, sair-se bem nas provas. Mas os seus filhos
escapam da possibilidade de pôr em situação de compartilhamento os seus recursos
desenvolvidos em casa, em situação de compartilhamento.

Para os defensores do chão da escola, hoje, mais do que nunca, é preciso


clarificar e discutir com a sociedade as razões pelas quais a obrigatoriedade do
ensino escolar deve ser vista como cláusula pétrea no projeto de construção de
um Brasil mais justo e socialmente igualitário. A insistência em que se
cumpram as leis já existentes, frutos de longas décadas de debates no terreno
da educação, e que de certa forma já contemplam formas bastante
diferenciadas de implantação de teorias e práticas educacionais, pode ser a
garantia para que mesmo novos movimentos tenham coexistência pacífica com

14
os de referência, numa perspectiva quiçá colaborativa, desde que dentro das
prerrogativas constitucionais.

De toda a maneira, os movimentos pró-escola7 lutam para dar a devida


visibilidade – o que, antes, parecia algo inequívoco – ao postulado do ensino
obrigatório, nas faixas etárias em que ele é previsto por lei, insistindo no ensino
presencial e plural. Por fim, a manutenção do direito do educando à educação
formal em espaço escolar faz parelha, na prática, com a busca pela
dignificação deste mesmo espaço, bastião do Estado democrático de direito. É
imperioso que busquemos respostas precisas sobre que vertente de cidadania
queremos construir no Brasil, mormente pelo viés educacional: se se trata de
uma cidadania atrelada à manutenção dos direitos individuais e, portanto, do
status quo que se sobrepõe às partilhas cotidianas; ou se se trata de uma
cidadania capaz de acolher as opções subjetivas ou mesmo do campo
doméstico, mas sem deixar de estar articulada com os espações coletivos e
republicanos, nos moldes da educação escolar compulsória.

Referências bibliográficas:
Anabelle Loivos Considera é professora da Faculdade de Educação/UFRJ

ADRIÃO, Theresa e GARCIA, Teise. Educação a domicílio: O mercado bate à


sua porta. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 11, n. 21, p. 433-446,
jul./dez. 2017. Disponível em: http//www.esforce.org.br; acesso em 06-06-2019.
ANED – Associação Nacional de Educação Domiciliar. Cf.
https://www.aned.org.br/conheca/ed-no-brasil; acesso em 06-06-2019.
ARAI, Bruce A. Homeschooling and the Redefinition of Citizenship. Education
Policy Analysis Archives, 7[27], 1999.
BRASIL. Classe Hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar: estratégias e
orientações. MEC/SEESP/DF, 2002.
. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n.º 9394 de 20 de
dezembro de 1996. Brasília: Imprensa Oficial, 1996. Cf.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13716.htm#art1;
acesso de 03-06-2019.
CURY, Carlos Roberto Jamil. Homeschooling: entre dois jusnaturalismos? Pro-
posições, Campinas, v. 28, n.2, mai.-ago. 2017.
FREITAS, Luiz Carlos de. O mercado por trás do homeschooling. [On-line.]
Publicado em 25/01/2019. Disponível em:
https://avaliacaoeducacional.com/2019/01/25/o-mercado-por-tras-do-
homeschooling/; acesso em 05-06-2019.
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. [1962]. Disponível em:
http://www.portalconservador.com/livros/Milton-Friedman-Capitalismo-
eLiberdade.pdf; acesso em 05-05-2019.

7
Citem-se, dentre tais movimentos, a “Campanha Nacional pelo Direito à Educação”,
organizada por Daniel Cara; “Aqui Já Tem Currículo...”, campanha da ANPed [Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação]; Movimento Educação Democrática, um
desdobramento do “Professores contra o Escola sem Partido”, capitaneado pelo professor
Fernando Penna [UFF-RJ]; ou a “Frente Nacional Escola Sem Mordaça”, ligada ao ANDES
[Sindicato Nacional dos Docentes de Instituições de Ensino Superior] – Seção Nacional.

15
HERBERT, Auberon. The right and wrong of compulsion by the state, and other
essays. Indianapolis: Liberty, 1978.
LOSURDO, Domenico. Contra-História do Liberalismo. São Paulo: Ideias &
Letras, 2005.
MISES, Ludwig von. Liberalismo: segundo a tradição clássica. São Paulo:
Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010.
MORAES, Reginaldo. Neoliberalismo: de onde vem, para onde vai? São Paulo:
Ed. Senac, 2001.
PARASKEVA, J. M. & Au, W. [Orgs.] O direito à escolha em educação.
Cheques-ensino, projectos charter e o ensino doméstico. Mangualde, PT:
Edições Pedagogo, 2010.
RIBEIRO, Álvaro Manuel Chaves Ribeiro; PALHARES, José. O homeschooling
e a crítica à escola: hibridismos e [des]continuidades educativas. Pro-posições,
Campinas, v. 28, n.2, mai.-ago. 2017.
TORRES SANTOMÉ, J., PARASKEVA, J. M., & APPLE, M. W. [Orgs.]. Ventos
de desescolarização. A nova ameaça à escolarização pública. Lisboa: Plátano,
2003.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. A casa e os seus mestres: a educação
no Brasil de oitocentos. Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.
. Relatório de estágio pós-doutoral. Relato de investigação apresentado à
Universidade do Minho para a certificação de estudos de pós-
doutoramento, Braga, Portugal, 2011.

16
TRADIÇÕES MÉDICAS CHINESAS E O DESAFIO DA ESCRITA DA
HISTÓRIA NA CONTEMPORANEIDADE

André Bueno

Em 1972, o doutor e professor Changsheng Xu conduziu uma operação


cardiovascular, vastamente documentada e fotografada por uma razão
surpreendente: toda intervenção foi realizada com anestesia feita com
acupuntura, utilizada para sedar diversos pontos do corpo. Segundo consta, o
paciente era alérgico aos anestésicos comummente usados na medicina
ocidental, e a opção pela acupuntura tornou-se indispensável. O procedimento
foi um sucesso absoluto, sendo vastamente divulgado pela mídia, que chegou
a fazer pôsteres comemorativos sobre esse evento [TSUNG, 2011]. A
utilização de agulhas em tratamentos médicos é conhecida pelos chineses há
milênios, sendo descrita de maneira formal e sistematizada, pela primeira vez,
no Neijing [‘Tratado interno’], do século 1 ec. Ou seja: quase dois milênios
depois, um sistema de tratamento médico continua sendo válido e amplamente
utilizável, partido de uma epistemologia científica totalmente distinta da nossa.

Imagem da Operação realizada em 1972; o paciente é operado do coração e mantido


acordado, conversando com a equipe. A sedação é feita por agulhas de acupuntura.
[apud TSUNG, 2011]

Selo comemorativo das cirurgias feitas com acupuntura, lançado em 1975 [apud
TSUNG, 2011]

Avançamos alguns anos no tempo; na década de 1980, a China Maoista já se


encerrara, e o país testemunhava um novo período de prosperidade e abertura.

17
A Rede Manchete de televisão [1983-1999] foi até o país realizar o
documentário China, o império do centro [1987], cobrindo aspectos diversos da
vida cotidiana, da sociedade, e dos movimentos de modernização. Na primeira
parte do documentário, a partir dos minutos 22:30, a equipe visita um hospital,
onde seria feito um procedimento tradicional de Qigong [ou, manipulação de Qi
[energia]]. O paciente, em estado de transe, é controlado a distância, através
de gestos, por um médico que trata suas pernas até então paralisadas. O
paciente consegue readquirir alguns movimentos, e apresenta melhoras, todas
registradas pela equipe televisiva. A cena é tão insólita que beira a mistificação
ou a suposição de embuste. Todavia, centenas de tratamentos desse gênero
são registrados anualmente no país. Tal como a acupuntura, o Qigong é um
método respiratório e bioenergético surgido nas priscas eras da cultura
chinesa, utilizado amplamente no cuidado físico, na prevenção e recuperação
de doenças. Em 1973-4, no sítio arqueológico de Mawangdui, foi descoberta
um tumba contendo imagens que mostravam exercícios diversos de Qigong,
revelando que esse conhecimento já estava relativamente estabelecido em
torno do século 2 aec.

Cena do documentário China, o Império do Centro [1987] disponível em


https://www.youtube.com/watch?v=-FTUaB4c1Hw

Rolo de seda contendo imagens da prática do Qigong ‘Daoyin’, encontrado em


Mawangdui, provavelmente de 168 aec. Disponível em
https://en.wikipedia.org/wiki/Tao_yin#/media/File:Qigong_taiji_meditation.jpg

18
Avançamos agora algumas décadas: em 2019, a cidade de Wuhan detecta
sinais do surgimento de uma pandemia, causada por um novo tipo de vírus,
doravante denominado COVID19. Os chineses correm para tomar as medidas
de controle e prevenção necessárias, realizando a construção de hospitais em
tempo recorde e elaborando um conjunto de orientações para evitar a
proliferação do contágio. Embora todas essas medidas encontrassem suporte
na medicina moderna [leia-se, ‘ocidental’], as ideias de isolamento social para
controle de epidemias já se encontravam prescritas desde a China antiga. No
Hou Hanshu [O ‘Livro da dinastia Han’], relata-se um episódio epidêmico em
que os pacientes são afastados do convívio social para receberem tratamento
adequado, evitando o contágio e recebendo o atendimento apropriado
[ZHENG, 2020]. O já comentado Neijing apresenta vários trechos em que se
recomenda a prevenção contra doenças, incluindo as pandêmicas. Um suporte
significativo para o tratamento de doenças como a COVID19 está na imensa
farmacopeia chinesa, que possui séculos de experiência comprovada no
tratamento das mais diversas afecções, como demonstrado pelo antiquíssimo
livro Shennong Bencaojing [‘Tratado dos Medicamentos de Shennong’]. Não foi
sem assombro que, em meio as notícias da pandemia, os chineses divulgaram
o uso de fórmulas médicas derivadas de sua medicina tradicional, algumas
testadas com bastante sucesso. Não são uma cura para a COVID19, que fique
claro: mas tiveram uma eficácia significativa contra os sintomas principais,
contribuindo para salvar milhares de vidas.

Antigos remédios em nova roupagem: um dos medicamentos fitoterápicos chineses


utilizados no combate a COVID19.
Disponível em: https://www.wingquon.com/products/yang-yin-qing-fei-pills

Por trás desses três episódios, está um sistema de pensamento médico e


científico bastante distinto daquele empregado pela medicina moderna. A
Medicina Chinesa Tradicional se estabeleceu por meio de teorias diferentes
daquelas empregadas no ocidente – embora o exercício da investigação
racional, o método de prova e a avaliação por eficácia estivessem presentes
nas conclusões dos médicos chineses. Séculos de experiências acumuladas,

19
debatidas e exaustivamente testadas, contribuíram para a manutenção da
saúde da população, que não por acaso é hoje a maior do mundo. Obviamente,
esses conhecimentos médicos não impediram o surgimento de pestes
devastadoras na China – e o problema do acesso a um sistema de saúde, além
de mundial, é antiquíssimo, e mesmo os chineses não escaparam disso.
Todavia, o que gostaríamos de ponderar nesse breve texto, é de como os
chineses conseguiram construir um sistema de medicina capaz de prevenir
doenças e se revelar eficaz no combate os mais diversos tipos de
enfermidades que tem uma origem milenar, e cujo desenvolvimento tem sido
contínuo. Conquanto a medicina ocidental se mostre bastante eficaz, confiável,
e tenha ampliado de maneira incalculável os métodos e tratamentos
disponíveis, ela é resultado de diversos conflitos epistemológicos, com
mudanças significativas em suas teorias e perspectivas históricas.

Por outro lado, o fato de a medicina chinesa ser antiga não significa,
necessariamente, que ela seria boa – alguns poderiam afirmar que ela, de fato,
teria se tornado imóvel e estagnada no tempo. De ponto de vista de alguns
cientistas, a medicina tradicional chinesa seria uma pseudociência, ou uma
forma de filosofia religiosa. A complexidade desse debate se ampliou, na
medida em que essa medicina começou a ser abraçada e divulgada, no
ocidente, de maneira muito superficial por praticantes esotéricos. Usualmente,
a maioria desses ‘divulgadores’ era inabilitada, amadores, que misturavam
elementos de suas crenças com parcos conhecimentos as práticas científicas e
médicas chinesas. Isso reforçou atitudes orientalistas excludentes contra os
saberes chineses, estereotipados e refutados como ciência. Somente num
período recente de nossa história essa medicina tem recebido uma atenção
mais séria, e suas descobertas tem sido cientificamente testadas e avaliadas.
Mas aceitar os postulados e conquistas da Medicina chinesa significa, por outro
lado, uma revisão de nossos processos de aquisição de conhecimento e uma
releitura de nossas teorias e métodos científicos [SOUZA; LUZ, 2011;
CONTATORE et alli, 2018].

Para professores e historiadores, essa condição é fundamental. O


conhecimento sobre a China é um ponto crucial na reescrita da história global,
ampliando os papéis das civilizações e modificando a perspectiva com que
estudávamos as sociedades afro- asiáticas. Como bem apontou Robert
Temple, pelo menos metade das invenções que contribuíram para mudar a
história mundial até o século 19 foram produzidas por chineses [2006, p. 11-
14]. André Gunder Frank, em seu livro ReOrient, nos mostra que os chineses
eram responsáveis por quase 30% do PIB mundial até o início do século 19;
Joseph Needham, em sua obra magnífica, Science and Civilization in China,
revela o vasto acervo de conhecimentos científicos desenvolvidos por essa
civilização, e que mudaram radicalmente o desenvolvimento da história
humana; por fim, Jack Goody, em seu O Roubo da História, nos mostra como a
construção da história ocidental se apropriou, deliberadamente, de diversos
avanços do ‘Oriente’ para afirmar-se culturalmente – uma apropriação indébita
de suas tradições, valores e narrativas. Todavia, nossos currículos seguem
ignorando a importância das civilizações orientais, sem as quais as revoluções

20
intelectuais, religiosas e sociais ocorridas no mundo Ocidental não teriam sido
possíveis, como bem apontou Goody.

O caso da Medicina Chinesa é uma das muitas frentes a serem exploradas no


campo da alteridade, da identidade e da diferença. As reivindicações de saber
e de primazia da ciência são desafiadas por outros construtos teóricos capazes
de produzir resultados científicos e históricos amplamente verificáveis pelos
mais diversos tipos de instrumentos. O médico brasileiro José de Paula Souza
foi um dos pioneiros mundiais no reconhecimento da validade desses saberes
[ROLAND; GIANINI, 2013]. Joseph Needham, Nathan Sivin e Paul Unschuld
reconstruíram exaustivamente a trajetória histórica e racionalizada da medicina
chinesa, que representa um aspecto capital da diversidade cultural humana.

Uma introdução histórica sobre a China pode ser feita de várias maneiras.
Usualmente, pensamos em como descrever sua trajetória cronológica,
elencando episódios e personagens que poderiam ilustrar sua milenar
durabilidade. Contudo, um trabalho sobre a Epistemologia da Medicina
Tradicional Chinesa requisita outra forma de abordagem mais específica, que
adentre o pensamento chinês em suas bases racionais e científicas
[JACQUES, 2005].

A China, de fato, merece um olhar mais atento e diferenciado. É uma das mais
antigas civilizações mundiais, que continua a se desenvolver desde a pré-
história até os dias de hoje. Possui, igualmente, a mais antiga tradição
historiográfica existente, que desde períodos ancestrais vem produzindo a
história dessa civilização em um mesmo idioma, e dentro de seu próprio
conceitual teórico.

Em seu Um Estudo sobre a História, o consagrado historiador Arnold Toynbee


afirmava que todas as civilizações passam por períodos de desafio e de crise
interna; e a superação – ou não – desses desafios é que garante sua
continuidade. A China é um exemplo claro nesse sentido. Passados milênios,
ela conseguiu superar todos os desafios que se impuseram, ressurgindo do
mundo antigo como um dos poucos impérios a continuar. Foi no século 19 que,
finalmente, a Europa conseguiu inverter a balança da estrutura econômica,
social e política do mundo. A China, dominada por uma dinastia arcaizante - os
Qing, de origem Manchu -, havia sido lançada em um processo de estagnação
cultural, que gradualmente solapou suas estruturas produtivas e intelectuais,
permitindo o avanço das nações europeias e do Japão sobre seu território.
Todavia, o século 20 revelaria a força da civilização chinesa – século no qual
ela entra em franca decadência, e emerge novamente como uma potência
mundial. Análises como a de Fergunson [2013] tentaram dar conta de explicar
as diferenças entre ‘Ocidente x Oriente’, mas essa missão necessita ainda de
uma analise mais ampla e aprofundada.

Frente a todos os avanços alcançados pela China, e que se refletem


diretamente nessa medicina tradicional, fica nossa provocação, a ser resumida
em três questões básicas, podem nos revelar o quanto somos – ou não – bons

21
profissionais de pesquisa e ensino de história: o quanto sabemos sobre a
China? Compreendemos o papel da China na história mundial? E o que a
história chinesa pode transformar a nossa própria escrita histórica? Ficamos
abertos ao debate!

Referências
André Bueno é sinólogo e prof. Adjunto de História Oriental da UERJ.

CONTATORE, Octávio Augusto; TESSER, Charles Dalcanale; BARROS,


Nelson Filice de. Medicina chinesa/acupuntura: apontamentos históricos sobre
a colonização de um saber. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro,
v. 25, n. 3, p. 841-858, set. 2018
FERGUSON, Niall. Civilização: Oriente x Ocidente. São Paulo: Planeta, 2013.
FRANK, André G. ReORIENT: Global Economy in the Asian Age. Berkeley:
UCP, 1998.
GOODY, Jack. O roubo da História. São Paulo: Contexto, 2008.
JACQUES, Lilian Moreira. As Bases Científicas da Medicina Tradicional
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acupunture & moxa. Cambridge: Cambridge Universtity Press, 1980.
NEEDHAM, Joseph. De la ciencia y la tecnología chinas. Ciudad de México:
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NEEDHAM, Joseph; LU, Gwei, Djen; SIVIN, Nathan. Science and Civilization
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ROLAND, Maria Inês de França; GIANINI, Reinaldo José. Geraldo Horácio de
Paula Souza, a China e a medicina chinesa, 1928-1943. Hist. cienc. saude-
Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 20, n. 3, p. 885-912, Sept. 2013.
SOUZA, Eduardo Frederico Alexander Amaral de; LUZ, Madel Therezinha.
Análise crítica das diretrizes de pesquisa em medicina chinesa. Hist. cienc.
saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 155-174, mar. 2011.
TEMPLE, Robert. The Genius of China. Londres: Carlton, 2006.
TOYNBEE, Arnold. Um estudo da história. São Paulo: Martins Fontes/UNB,
1986.
TSUNG O. Chen, Acupuncture anesthesia for open heart surgery: Past, present
and future, International Journal of Cardiology, vol.150, n.1, p.1-3, 2011.
UNSCHULD, Paul. Medicine in China: a history of ideas. Berkeley: California
University Press, 1985.
ZHENG, Hong. 中国历史上的防疫斗争 [Luta antiepidêmica na história chinesa]
in《求是》17-02-2020, Disponível em:
http://www.hongqipress.com/booksmell/202002/t20200217_11677862.shtml
Acessado em 14-05-2020

22
APRENDENDO E ENSINANDO COM AS “COISAS”. A ARQUEOLOGIA E
A SALA DE AULA

Camila Diogo de Souza

“Arqueologia é a ciência dos artefatos e das relações entre os artefatos, conduzidas em


termos do conceito de cultura” [DUNNELL, 2007, p. 152. Grifo meu].

Apesar de suscinta e historicamente datada, a definição apresentada acima


sobre Arqueologia apresenta uma complexidade de conceitos que revelam
perspectivas historiográficas e abordagens teórico-metodológicos distintas
próprias da disciplina. Robert Dunnell é um ícone da denominada Arqueologia
Processual [ou Nova Arqueologia] [BINFORD, 1968, 1971, 1983; RENFREW,
1984, 1985], que tem suas origens na década de 1960 e constitui um “turning
point” no que diz respeito à identificação da área enquanto ciência e do
tratamento dos artefatos enquanto fontes primárias de conhecimento de uma
determinada cultura. Fundamentada no método dedutivo com a classificação
sistemática dos atributos físicos dos artefatos a partir da descrição detalhada,
da seriação e da análise comparativa e estatística [relação entre os objetos], o
objetivo da Arqueologia, segundo esta linha interpretativa, corresponde ao
levantamento de premissas incontestáveis de padrões e leis gerais de
comportamento humano.

A organização social e os meios de subsistência constituem elementos


determinantes de uma cultura enquanto formas de adaptações ao meio
ambiente e às mudanças tecnológicas. Dessa maneira, a organização social
está diretamente refletida na cultura material [artefatos], ou ainda, a cultura
material reflete diretamente a complexidade da organização social. A
Arqueologia adquire o estatuto de disciplina científica própria, independente,
porém, relacionada em grande medida às ciências naturais e exatas, e
marcada pela objetividade do pesquisador.

Não constitui o objetivo deste breve ensaio discorrer sobre os pressupostos


das correntes interpretativas da Arqueologia, que, atualmente, encontram-se
muito bem estabelecidos e estruturados e são alvo de disciplinas específicas
nos cursos de graduação e pós-graduação na área em diversas universidades
no mundo, sobretudo, na Europa e nos Estados Unidos, e no Brasil.

23
No quadro acadêmico brasileiro, a Arqueologia ainda constitui uma área
institucionalmente recente e incipiente em formação, principalmente na
graduação. Hoje, felizmente, discentes que almejam se formar em Arqueologia
dispõem de alguns cursos de graduação e de pós-graduação stricto sensu
[mestrado e doutorado] em Arqueologia, ou em Antropologia com concentração
em Arqueologia, em universidades públicas espelhadas pelo país, e cursos de
especialização [lato sensu] em algumas universidades privadas. Contudo, a
dificuldade e a deficiência em obter uma formação acadêmica em Arqueologia
no Brasil é somada ao caráter inexistente da disciplina na grade curricular dos
ensinos fundamental e médio.

A Arqueologia é o estudo dos objetos


materiais produzidos pelos seres humanos
em épocas muito remotas. Para recuperar
vestígios de sociedades do passado, os
arqueólogos precisam fazer escavações
cuidadosas para recolher e analisar os
materiais encontrados. O local onde os
arqueólogos pesquisam esses objetos é
denominado de sítio arqueológico.
A Paleontologia é um ramo especializado
da ciência que tem como objeto de estudo
os fósseis animais e vegetais encontrados
em locais onde esses fósseis foram
formados e se encontram preservados.
Após ter apresentado esse conteúdo aos
alunos, faça a seguinte pergunta: um
esqueleto de milhares de anos, como o do
hominídeo Pé Pequeno, encontrado na
África do Sul, é estudado por um
arqueólogo ou por um paleontólogo?
Justifique sua resposta.
Espera-se que eles respondam que um
esqueleto humano pode ser estudado do
ponto de vista social por um arqueólogo, ou
do ponto de vista da Biologia por um
paleontólogo.

Figura 1. VAINFAS et al., 2019, p. 30.

A imagem da Figura 1 demonstra que, ainda hoje, na grande maioria dos livros
didáticos, a Arqueologia ocupa um espaço minúsculo, geralmente em um
pequeno quadro, e aparece como uma disciplina auxiliar à História. O esforço
em diferenciar as duas áreas de conhecimento “do passado”, Arqueologia e
Paleontologia, nesse exemplo de livro didático para 6º ano, deve ser louvado,
uma vez que o senso comum projeta uma imagem esterotipada completamente
equivocada sobre o objeto de estudo das mesmas. Contudo, conforme
podemos perceber na transcrição do texto com as definições de Arqueologia e
Paleontologia e a proposição de um exercício para os discentes, ainda
permanece um equívoco sobre o objeto de estudo de cada uma delas. A

24
resposta considerada como correta à pergunta colocada pelos autores do livro
que o professor deve fazer em sala de aula indica que “um esqueleto humano
pode ser estudado do ponto de vista social por um arqueólogo, ou do ponto de
vista da Biologia por um paleontólogo”. A formação em Paleontologia, que aliás
é inexistente no Brasil, não capacita o especialista na análise osteológica
humana.

Do ponto de vista da Biologia, o esqueleto humano só pode ser analisado pela


denominada Antropologia Biológica [ou Bioantropologia, ou ainda,
denominação antiga e, atualmente, refutada, Antropologia Física] e pela
Bioarqueologia. Estes campos de conhecimento, áreas da Arqueologia
Funerária, buscam compreender as características físico-biológicas do homem,
principalmente suas origens, seu processo evolutivo, sua constituição e
variações físicas, porém a partir de uma perspectiva biocultural, isto é, que
busca a interação entre Biologia e Cultura, ou seja, o estudo das características
físico-biológicas do ser humano dentro de um contexto sociocultural de
populações humanas, tanto antigas [arqueológicas] como modernas [mais
recentes] e atuais, contemporâneas [LARSEN, 2010, 2015, 2018; BUIKSTRA;
BECK, 2006].

A Paleontologia não lida com análises de remanescentes humanos, mas


apenas de animais e cronologicamente muito mais antigos que a própria
existência e ocupação da espécie humana no globo terrestre.

A Arqueologia enquanto ciência de conhecimento das sociedades do passado


tem como objeto de estudo um tipo de registro humano de natureza e com
características peculiares: a cultura material. Esta, enquanto produto da ação
do homem com o mundo ao seu redor e das relações dos homens entre si,
pode assumir diferentes formas de registro; os denominados contextos
arqueológicos.

Neste sentido, a manipulação do próprio corpo humano, enquanto fato


biológico e físico, no momento da morte por meio dos rituais funerários
executados pelos vivos, como o velório, o cortejo fúnebre e o ato de sepultar o
morto, proporciona um tratamento sociocultural ao fato biológico da morte e o
transforma, assim, em um produto físico, material, que media relações
simbólicas e determina comportamentos humanos. “Morrer é um processo
social que negocia uma transição entre diferentes estados do ser por meio de
ações convencionalizadas de vários participantes” [ROBB, 2013, p. 1]. Estudar
a morte a partir da cultura material de natureza funerária para compreender as
práticas humanas nas diferentes sociedades do passado em relação à morte e
ao morrer constitui o objeto de estudo e o objetivo da chamada Arqueologia
Funerária [SOUZA, 2018].

A preservação, a visibilidade e o acesso aos registros arqueológicos, sejam


objetos inorgânicos e orgânicos e os vestígios biológicos dos seres humanos,
dependem, de um lado, de fatores culturais e sociais, enquanto frutos da
escolha, das vontades e aspirações, sanções, idealizações, manipulações e

25
ações humanas, e de outro, são resultantes também das ações de fatores
naturais intrínsecos aos aspectos geográficos e geológicos, como condições do
meio-ambiente [clima, umidade, temperatura, aspectos do solo, por exemplo,
acidez e intempéries em geral] que aumentam ou retardam a velocidade do
processo de decomposição dos materiais orgânicos ou inorgânicos.

A produção do conhecimento arqueológico se dá a partir de etapas que


buscam, em um primeiro momento, a coleta dos objetos, através das
escavações sistemáticas e do trabalho de campo com controle e registro da
retirada do material; seguida da análise dos vestígios por meio do exame
detalhado do material em laboratório; e, finalmente, da proposição das
possíveis “leituras” dos dados com o levantamento de hipóteses interpretativas.

A consideração de tais fundamentos promove a transformação da cultura


material em conhecimento arqueológico, visando alcançar e compreender, em
última instância, os aspectos da sociedade que a produziu.

Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico que é
socialmente apropriado pelo homem. Por apropriação social convém pressupor que o
homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio físico, segundo propósitos e
normas culturais. Essa ação, portanto, não é aleatória, casual, individual, mas se
alinha conforme padrões, entre os quais se incluem os objetivos e projetos. Assim, o
conceito pode tanto abranger artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como
coisas animadas [uma sebe, um animal doméstico], e, também, o próprio corpo, na
medida em que ele é passível desse tipo de manipulação [deformações, mutilações,
sinalações] ou, ainda, os seus arranjos espaciais [um desfile militar, uma cerimônia
litúrgica]” [BEZERRA DE MENEZES, 1983, p. 112].

O estudo da denominada “cultura imaterial” [ou “cultura intangível”]


[PELEGRINI; FUNARI, 2008] pode ser definida como as formas de expressões
culturais e tradições de um grupo ou de uma sociedade relacionadas com sua
ancestralidade, como por exemplo, festas, danças, lendas populares e
“linguagens” [sotaques e expressões regionais], músicas, técnicas, ofícios e
know-how, ritos, etc. A cultura imaterial foi reconhecida como patrimônio pela
UNESCO em 2003 pela Convention for the Safeguarding of the Intangible
Cultural Heritage 2003, Paris, e traduzida para o português pelo Ministério das
Relações Exteriores, Brasília, em 2006: Convenção para a Salvaguarda do
Patrimônio Cultural Imaterial. Atualmente, o IPHAN [Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional] reconhece 40 “bens imateriais”
[http://www.brasil.gov.br/cultura/2017/09/bens-imateriais-tambem-compoem-
patrimonio-cultural-brasileiro].

Contudo, é interessante notar que a imaterialidade está condicionada à


materialidade e, portanto, a cultura imaterial não existe sem os aspectos
materiais e as propriedades físicas que viabilizam sua existência [MILLER,
2005, 2010; LEMONNIER, 2013].

Pensar sobre a materialidade e o mundo das “coisas” nos remete a entender os


artefatos enquanto produto cognitivo humano, marcado por abstração,

26
intencionalidade, necessidades, escolha, conhecimento tecnológico e recursos
materiais, instrumentos, para materializar uma ideia inicial, concretizando sua
existência física e tornando-a manipulável, circulável, funcional e utilizável.
Esse processo constitui as etapas da cadeia operatória dos artefatos, isto é
uma “série de operações envolvidas na transformação das matérias-primas
[incluindo o nosso próprio corpo] pelos seres humanos” [LEMONNIER, 1992, p.
26], que permite reconstruir a biografia das “coisas” [HARDING, 2016].

A “história de vida” dos artefatos é moldada pelas relações entre “coisas” e


pessoas e ela também molda as relações entre as pessoas. As interações
entre as pessoas são modificadas pelos artefatos e pelas características
específicas de uma determinada situação, circunstância e ação humanas em
um determinado tempo e espaço [MILLER, 2009].

Apesar do mundo material estar presente de forma ininterrupta em nossas


vidas, a percepção e consciência da atuação das “coisas” em nossos
comportamentos, ações e reações é feita de forma automática, mecânica,
irreflexiva.

A intenção deste texto é apresentar uma proposta de um exercício de “leitura


arqueológica” de um objeto que possa ser desenvolvido professor de ensino
básico e secundário em sala de aula e adaptado para vários níveis de
aprendizado, a fim de demonstrar para o aluno como é possível produzir
conhecimento histórico por meio das “coisas”, isto é, alcançar interpretações
sobre os usos, funções e significados dos artefatos e sobre as pessoas que se
relacionam entre si e com eles.

A proposta geral parte da análise descritiva de um objeto qualquer selecionado


em sala, sem escolha prévia. Pode ser uma cadeira, uma mesa, um lápis, uma
caneta, um caderno, um livro, uma mochila, um estojo, uma moeda, um objeto
pessoal de algum aluno, como uma pulseira, um chaveiro etc., enfim, qualquer
“coisa” que esteja presente no espaço da sala de aula.

A descrição de um artefato é uma etapa crucial no processo de análise da


cultura material em Arqueologia. Trata-se da observação das características
fenomenológicas do objeto, isto é, todos os elementos físicos que constituem o
objeto observado em um determinando momento e uma determinada situação.
Cada objeto é único, singular e apresenta aspectos constitutivos que define sua
existência física no mundo, mesmo no nosso mundo atual, em que a
industrialização permite a produção em massa das “coisas” semelhantes,
porém jamais idênticas ou 100% iguais. As cadeiras da sala de aula, por
exemplo, na descrição de seus elementos constitutivos, constataremos que há
uma série de aspectos comuns – matéria-prima, forma, decoração e coloração,
presença de encosto, acento, quatro “pernas” etc. – porém, verificaremos
também que, a partir da observação e da descrição de cada uma delas, há
algumas características que particularizam uma cadeira em relação às demais,
como a presença de uma inscrição de marca de uso que um aluno fez [o nome

27
de alguém], um chiclete grudado embaixo do acento, um desgaste em uma
parte específica, uma mancha de tinta ou uma quebra.

Todas essas informações sobre a materialidade do objeto são resultados da


ação humana sobre o mundo material, são consequências das relações entre
as pessoas com as “coisas” e das pessoas entre si em um determinado
contexto histórico, isto é, em uma determinada situação, uma circunstância
social, cultural, espacial e temporal. No nosso exemplo da cadeira, o contexto
diz respeito à sala de aula, um espaço específico de aprendizagem
característico da nossa cultura em que se relacionam indivíduos jovens [os
discentes] e indivíduos adultos [docentes]. A cadeira integra o ambiente de
aprendizagem e ensino.

A descrição, portanto, da materialidade do objeto selecionado deve conter as


seguintes informações:1] Matéria-prima; 2] Processo de produção; 3]
Morfologia; 4] Dimensões; 5] Decoração; 6] Estado de conservação; 7]
Contexto de achado e uso; 8] Contexto de produção; 9] Cronologia; 10]
Percepção sensorial e 11] Funções.

O campo de descrição da matéria-prima refere-se ao[s] elemento[s] ou


substância[s] de que é[são] feito[s] o objeto, por exemplo, madeira, plástico,
metal etc. O processo de produção diz respeito ao tipo de tecnologia, manual,
semi-industrial, industrial e de instrumentos que possam ter sido utilizados para
fabricar o objeto. A morfologia trata da descrição das partes e das formas que
compõem o objeto analisado. As dimensões correspondem a todas as medidas
que compõem as partes e formas do objeto. No item decoração, descreve-se
todo e qualquer elemento que se associa ao aspecto visual, iconográfico do
objeto. O estado de conservação diz respeito ao desgaste do objeto e,
portanto, deve-se descrever toda e qualquer evidência que possa sugerir
marcas de usos. O contexto de achado e uso refere-se ao local onde o objeto
está, onde foi encontrado que pode, ou não, ser o mesmo do contexto de
produção, pois tomando a cadeira novamente como exemplo, seu contexto de
achado e uso – a sala de aula – com certeza, é distinto de seu contexto de
produção – por exemplo, feita por uma empresa privada qualquer situada no
Brasil. A cronologia diz respeito a algum elemento presente no objeto que
permita identificar quando ele foi fabricado e utilizado, como a presença de
uma data específica ou, em associação com a matéria-prima e o processo de
produção, pode-se inferir que ele pertence a uma determinada época. A
utilização do plástico e um objeto industrializado indicam uma cronologia
recente, pós Revolução Industrial e apenas após o advento do plástico. Deve-
se propor aos alunos para observarem também aspectos que se referem à
percepção sensorial dos objetos, como por exemplo, barulhos, peso, textura e
cheiro do objeto, elementos que também auxiliam e interferem nos usos,
funções e significados dos artefatos pelas pessoas. Finalmente, as funções do
objeto só podem ser inferidas a partir da associação de todos os elementos
descritos anteriormente.

28
Algumas dessas características constitutivas da materialidade das “coisas”
podem não ser identificadas no exercício dependendo do objeto selecionado
para a descrição. Além disso, uma ficha tão técnica deve ser adaptada de
acordo com a idade dos discentes que se está sendo aplicado o exercício. Por
exemplo, o docente pode modificar a ficha proposta abaixo segundo seu
público:

Proposta de ficha de análise descritiva de um objeto.


De que material é feito o objeto? Quais substâncias? Quais
1) Matéria-prima
elementos? São todos extraídos da natureza?
Como é feito o objeto? Manualmente, apenas com o uso das mãos,
2) Processo de com auxílio de moldes ou com o auxílio de instrumentos e
produção máquinas? É possível identificar quais instrumentos, quais
máquinas?
Quantas partes têm o objeto? É uma peça só ou várias peças
3) Morfologia fixadas? Quais são as formas de cada uma delas? Quadrado,
cilindro?
4) Dimensões Quais as medidas do objeto como um todo? E de suas partes?
Há algum desenho, pintura, ornamento? Qual a cor do objeto e
5) Decoração
suas partes? Quais as imagens que o objeto possui?
6) Estado de O objeto está completo, inteiro ou quebrado? Está desgastado em
conservação alguma parte? Apresenta alguma marca de uso?
7) Contexto de Onde foi encontrado o objeto? O local em que foi encontrado é o
achado e uso mesmo que foi utilizado?
8) Contexto de Onde foi feito o objeto? Há alguma indicação de “made in...” ou
produção “feito no...”?
9) Cronologia Há alguma data no objeto? O objeto é recente ou muito antigo?
O objeto faz barulho? É macio, duro, resistente, poroso? É pesado,
10) Sentidos
leve? Oco? Tem algum cheiro em especial?
Com os dados e informações observadas é possível levantar quais
11) Funções
são os possíveis usos do objeto?

É importante ressaltar que se trata de um exercício de análise interpretativa e,


portanto, ele apresenta alcances limitados, pois não há elementos
comparativos, associações entre objetos semelhantes e diferentes que
viabilizam o levantamento de hipóteses de usos e significados mais plausíveis
e verificáveis e da compreensão de processos históricos, por exemplo,
mudanças em relação às funções e aos significados das “coisas”.

As comparações constituem uma outra etapa fundamental na produção de


conhecimento arqueológico e de análise da cultura material. Levantar
interpretações sobre um único objeto é uma tarefa extremamente árdua e
questionável, pois, é evidente, que nem todos os usos, funções e, sobretudo,
significados simbólicos dos objetos estão contemplados nas características
físicas dos objetos. As pessoas transformam os usos e atribuem significados às
“coisas” que podem ser independentes de suas condições físicas. É
exatamente por isso que na Arqueologia necessitamos de um estudo exaustivo
sobre uma grande quantidade de objetos. Quanto maior a amostragem e a
quantidade de objetos, mais preciso e acurado será o processo de identificação
das recorrências, das semelhanças e, ao mesmo tempo, das diferenças entre
os objetos a fim de compreender melhor sua biografia, sua “história de vida”.

29
Dessa forma, enquanto exercício, é importante mostrar também para os alunos
o que é possível ou não de ser alcançado por meio da descrição do objeto.
Dependendo do objeto selecionado, o exercício ficará restrito a uma descrição
técnica, tornando-se mais difícil alcançar interpretações sobre seus usos e
significados sem que haja comparações com outros objetos. Isto não é um
problema, pelo contrário, trata-se, em qualquer área e disciplina, do processo
dinâmico da pesquisa e de construção do conhecimento.

A intenção do exercício também é mostrar que inclusive as ausências e as


hipóteses excludentes nos auxiliam também a entender as “coisas” e as
relações humanas que definem os usos, funções e significados das “coisas”.

Finalmente, gostaríamos de deixar algumas dicas a serem exploradas pelos


professores no momento atual em que as aulas remotas correspondem ao
padrão de ensino devido à pandemia da Covid-19. Há vários sites que
fornecem várias atividades interativas educativas sobre a cultura material. O
Museu Ure de Arqueologia Grega da Universidade de Reading, no Reino
Unido, desenvolve:

programas educacionais intimamente ligados às pedagogias de aprendizagem ativa e


experiencial. Essas metodologias veem o engajamento prático com o objeto de estudo
como uma chave para a criação de significado pessoal e a retenção de ideias a longo
prazo. A aprendizagem baseada em objetos tem se mostrado útil para facilitar a
compreensão de um assunto e o desenvolvimento de habilidades acadêmicas e
transferíveis, como trabalho em equipe e comunicação, pensamento lateral,
observação prática e habilidades de desenho. Essa pedagogia tem efeito e relação
duradoura com a memória, provavelmente devido à sua abordagem multissensorial,
podendo também desencadear temas de reflexões inovadores quando aplicada à
Arqueologia [https://collections.reading.ac.uk/ure-museum/learn/. Tradução nossa].

Como podemos observar na Figura 2, as atividades online do Museu


constituem em jogos interativos [https://collections.reading.ac.uk/ure-
museum/learn/online-games/] como, por exemplo, montagem de quebra-
cabeças das peças que fazem parte da coleção do Museu. Há vídeos e
atividades para colorir objetos arqueológicos
[https://collections.reading.ac.uk/ure-museum/learn/activity-sheets/].

30
Figura 2. Print do site com as opções de quebra-cabeças e do jogo interativo com a
montagem de um dos quebra-cabeças com contagem do tempo.

Um outro site bastante interessante para ser utilizado em atividades didáticas é


o Panoply Projeto de Animação dos Vasos :
[http://www.panoply.org.uk/index.html]:

Este site reúne nossas animações com informações confiáveis sobre a cultura antiga e
novas ideias e recursos para sessões de ensino sobre civilização clássica, arte e
escrita criativa. Professores, palestrantes e alunos, sintam-se à vontade para usar e
citar o site do Panoply Projeto de Animação dos Vasos [tradução nossa].

O docente pode escolher vários temas como os hoplitas em guerra, diferentes


modalidades de jogos olímpicos, danças e simpósios nos vasos gregos antigos
e ver as animações feitas pelos coordenadores do projeto, o desenhista Steve
K. Simons e a arqueóloga Sonya Nevin
[https://roehampton.academia.edu/SonyaNevin;
https://www.facebook.com/panoplyvaseanimation;
https://twitter.com/SonyaNevin.

Não poderíamos deixar de indicar projetos deste tipo realizados por


pesquisadores brasileiros em português como, por exemplo, o ARISE
[Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas – site:
http://www.arise.mae.usp.br/], coordenado pelos Professores doutores Alex
Martire e Vagner Carvalheiro Porto [MAE/USP]:

31
O Grupo de Pesquisa ARISE – Arqueologia Interativa e Simulações Eletrônicas –
surgiu no âmbito acadêmico do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, em 2017.
[...] Percebendo, então, que essa temática da cultura material digital é pouca
explorada no meio acadêmico brasileiro, resolvemos formalizar um Grupo de Pesquisa
junto ao CNPq para tornar nossas atividades oficiais dentro do MAE-USP. [...] Somos
um grupo de pesquisadoras e pesquisadores que têm por objetivo central a análise de
jogos eletrônicos a partir do viés arqueológico e, além disso, também desenvolver
aplicações interativas e eletrônicas que auxiliem nos campos da Educação e
Museologia. Mas, acima de tudo, somos apaixonados por aquilo com o que temos
contato antes mesmo de nos tornarmos arqueólogos: os jogos de videogame!
[http://www.arise.mae.usp.br/nossa-proposta/].

O professor dos ensinos fundamental e médio dispõe de um “jogo eletrônico,


com missões e conversas com personagens e, principalmente, que fosse
ambientado em tempos passados, reproduzindo a paisagem sambaquieira de
cerca de três mil anos atrás” [Sambaquis – Uma História Antes do Brasil –
http://www.arise.mae.usp.br/sambaquis-apresentacao/].

Concluindo este breve ensaio, esperamos ter contribuído de forma positiva com
algumas ideias e reflexões com a proposição de um exercício didático sobre a
leitura das “coisas” para a construção de conhecimento das pessoas e suas
relações socioculturais e com o mundo material que as cercam em um
determinado contexto histórico. Nossa intenção é ressaltar a importância da
Arqueologia enquanto uma área de conhecimento fundamental na construção
de memórias e identidades, inclusive de minorias e grupos sociais excluídos,
por meio da conscientização e da valorização do patrimônio
arqueológico/histórico. A prática didática da Arqueologia em sala de aula
contribui para diminuir o estereótipo da disciplina enquanto expressão
ideológica da classe média, mediada pelos interesses de grupos e
condicionada à disponibilidade de recursos financeiros [Trigger, 2004] e possui
uma contribuição efetiva no processo de conscientização social e política da
nossa própria sociedade.

Referências biográficas.
Camila Diogo de Souza possui bacharelado em História pela Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
[FFLCH/USP], mestrado, doutorado e pós-doutorado em Arqueologia do
Mediterrâneo Antigo pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
de São Paulo [MAE–USP], pós-doutorado em Proto-histoire Égéenne na
Maison René Ginouvès [Archéologie et Ethnologie] da Université Paris-
Nanterre, França. Foi professora visitante do Centro de Antropologia e
Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo [CAAF/UNIFESP]
[2017-2019]. É pesquisadora da École Française d’Athènes [EfA] e
coordenadora do Grupo de Pesquisas em Práticas Mortuárias no Mediterrâneo
Antigo [TAPHOS-CNPq] e do Laboratório de Estudos sobre a Cerâmica Antiga
da Universidade Federal de Pelotas [LECA-UFPel]. Atualmente, é pós-
doutoranda sênior/pesquisadora visitante do Instituto de História da
Universidade Federal Fluminense [UFF].

32
Bibliografia
BINFORD, L.R. Archaeology as Anthropology. AmerAnt 28.2, 1968, p. 217-25.
. “Mortuary Practices: their study and their potential”. In: Memoirs of the
Society for the American Archaeology. No. 25, BROWN, J. Approaches to the
social dimension of mortuary practices. AmerAnt 36, p. 6-29, 1971.
. In Pursuit of the Past: Decoding the Archaeological Record. New York:
Thames and Hudson, 1983.
BUIKSTRA, J.E.; BECK, L.A. [Eds.]. Bioarchaeology: The Contextual Study of
Human Remains. Burlingtion: Academic Press, 2006.
DUNNELL, R.C. Classificação em Arqueologia. Trad. Astolfo G. M. Araújo.
São Paulo: EDUSP, 2007.
FUNARI, P.P.A. Arqueologia. São Paulo: Ed. Contexto, 2003.
HARDING, A. Introduction. Biography of things. In: ALBERY, H.; LOHMANN,
P.; ZURHAKE, L. [Eds.]. Distant Worlds Journal [DWJ] 1: Continuities and
Changes of Meaning. Heidelberg: Universität Heidelberg, 2016, p. 5-10.
LARSEN, C.S. [ed.]. A companion to Biological Anthropology. West Sussex:
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communication non verbale. Journal de la Société des océanistes, nos. 136-
137, 2013, p. 16-25.
MENESES, U.T.B. Cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista
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SOUZA, C.D. de. A morte lhe cai bem. Reconsiderando o significado do
mobiliário funerário na construção do prestígio social. In: RODRIGUES, C.;
NASCIMENTO, M.R. do [eds.]. Arqueologia Funerária, Performance, Morte e
Corpo. REVISTA M. – Dossiê 6: v. 3, n. 6, jul. /dez. UNIRIO, 2018, p. 263-187.
TRIGGER, B. G. História do pensamento arqueológico. Trad. Ordep
Trindade Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2004.

33
VAINFAS, R.; FERREIRA, J.; FARIA, S. de C.; CALAINHO, D.B. História.doc.
6º ano. Ensino Fundamental. São Paulo: Editora Saraiva Didáticos, 3ª Edição,
2019.

34
FIGURAS E INSCRIÇÕES: EM TORNO A UM FAMOSO ESQUEMA MURAL
EM ÓSTIA

Claudia Beltrão e Patricia Horvat

Obras de arte e imagens em geral vêm se tornando parte integral da


documentação de historiadores e, como ocorre com outros tipos de evidências,
há uma grande diversidade de critérios, premissas e modelos explicativos para
o tratamento da obra visual. Se há pouco tempo a análise de obras de arte era
reservada a especialistas, como o historiador da arte, esse quadro mudou
radicalmente. A história da arte também ampliou, nas últimas décadas, seu
olhar e suas preocupações na lide com a obra de arte, abrindo a possibilidade
de se pensar artistas e obras não apenas em relação uns com os outros, mas
em relação à sua cultura e à sua sociedade. Contudo, a linguagem própria à
obra de arte deve ser considerada com atenção, o que, muitas vezes, é
esquecido por historiadores, arqueólogos e outros especialistas que fazem
correlações simples e diretas entre a obra de arte e seu contexto.

Quando vemos uma pintura antiga, até certo ponto estamos diante do mesmo
objeto que os contemporâneos de sua produção viram, salvo o desgaste do
material causado pela passagem dos séculos e, eventualmente, restaurações
posteriores. É certo que a análise de obras de arte remete a algum grau de
abstração geométrica, e é possível, no âmbito da abstração, interpretar uma
obra visual de qualquer tempo de modo análogo à interpretação de outras
obras de arte independentemente do seu hinc et nunc. Do mesmo modo, as
regras de figuração e de apreensão de imagens são inerentes à capacidade
perceptiva humana, o que nos permite a apreciação de obras de todo tempo e
lugar. Uma reta, por exemplo, é desenhada da mesma maneira e percebida do
mesmo modo, seja na antiguidade, seja na atualidade. Mas, isso pode ser
enganoso e gerar interpretações anacrônicas, pois há sempre o risco de
introduzirmos questões estéticas, intelectuais e modos de percepção atuais,
alheios às questões e modos de percepção do mundo antigo, pois nossa
cultura e nosso olhar são diferentes e distantes do olhar, do conhecimento e da
percepção dos artistas, patrocinadores e espectadores antigos.

Classicistas em geral costumam concordar em ter havido uma mudança radical


entre os modos clássico e helenístico-romano de conceituar palavras e
imagens, com base em uma suposta nova consciência sobre a relação entre
leitura e visualização na estética helenística. Este é um tema muito complexo
que não teremos tempo de discutir aqui, mas podemos aceitar o que Jeremy
Tanner chamou de "racionalização cultural da arte" na antiguidade greco-
romana. Sobre este ponto, basta observar o jogo reflexivo das obras de arte
helenísticas e romanas que apresentam textos contra figurações e vice-versa.
Embora artistas e espectadores pareçam ter sido muito sensíveis às formas
que podiam resultar da combinação de palavras e figuras, o tema do “ler
imagens” é bastante comum entre escritores helenísticos e romanos. Não
houve, porém, apenas esse fenômeno textual – geralmente reunido sob a
rubrica da ekphrasis –, que foi parte integrante da produção e do consumo de

35
obras visuais nos mundos helenístico e romano, sugerindo uma
correspondência estreita entre textos e obras visuais, não apenas para
confirmar um ao outro, mas também para problematizar, abortar e refutar
qualquer interpretação fácil. Nosso argumento aqui é que esse pano de fundo
helenístico-romano, que criou formas renovadas de se negociar a função quase
simultânea de textos e imagens visuais em obras de arte, pode ser uma boa
maneira de entender os modos romanos de perceber e conceitualizar imagens
e textos em outros contextos além do literário.

Esta apresentação tratará de apenas um tópico desse tema complexo: apesar


das distinções geográficas ou sociais, até que ponto as práticas eruditas
romanas de organizar inscrições contra imagens foram adotadas e adaptadas
nos municípios romanos e até nas províncias distantes. No caso das
províncias, os mosaicos com inscrições são um excelente laboratório para esta
análise. Não estamos falando da redundância de muitas inscrições latinas e
gregas em mosaicos em todo o território romano, pois a escrita certamente é
um marcador cultural em si, mas, como Mireille Corbier [1995, p. 153] apontou,
o pequeno número de textos nessas obras sugere que a os elementos visuais
parecem ter sido suficientes para seu público. Contudo, a adição da escrita era
algo significativo. O emparelhamento de imagens e textos deve ser
cuidadosamente observado, especialmente porque não é incomum que essa
união amplie o escopo referencial da composição com figuras e textos.

Trataremos aqui somente de um caso pontual, em um muito famoso esquema


mural em Óstia, cidade portuária próxima de Roma, provavelmente datado do
final do primeiro século EC e localizado na chamada "Taberna dos Sete
Sábios". Escolhemos esse mural porque, definitivamente, ele não foi concebido
para um espaço doméstico como, por exemplo, uma sala para as
conversações eruditas e exibições intelectuais que faziam parte dos rituais
associados ao convivium romano. O esquema mural dos “Sete Sábios” é um
tipo de combinação de palavras e figuras em um contexto totalmente diferente.
O próprio fato de ser uma composição muito conhecida permitirá fazermos uma
apresentação breve neste Simpósio. Observaremos, visando a estimular o
debate, a sobreposição de textos em uma obra visual com um apelo cômico
para um público mais amplo. Tal sobreposição desestabiliza a recepção da
obra visual e cria novos sentidos, em um lugar, pode-se imaginar, bastante
popular e muito frequentado. Observemos as imagens:

36
Figura 1 – Sala 5 – “Sete Sábios”, visão geral. Fotografia: Stephan Mols
Fonte: https ://www.ostia-antica.org/regio3/10/10-2.htm

Figura 2 – Sala 5 - No alto: uma ânfora com a palavra FALERNVM. Na parte central:
Chilon de Esparta. Na parte inferior: uma fileira de homens supostamente em uma
latrina comunitária. Fotografia: Jan Theo Bakker. Fonte: https://www.ostia-
antica.org/regio3/10/10-2.htm

37
Figura 3 – Sala 5 - Sólon de Atenas. Fotografia: Jan Theo Bakker.
Fonte: https://www.ostia-antica.org/regio3/10/10-2.htm

Figura 4 – Plano do edifício em sua fase final.


Fonte: https ://www.ostia-antica.org/regio3/10/10-2.htm

38
Esse mural está localizado em um edifício muito bem estudado, uma grande
terma com diferentes estágios de construção e uso. A discussão sobre o
edifício per se escapa aos nossos interesses, mas há um consenso de que a
chamada Sala 5, na qual o mural foi encontrado, era uma taberna, talvez
pertencendo a um edifício preexistente do final do período flaviano. O que está
em jogo aqui é que, provavelmente, essa sala era usada por um amplo
espectro de pessoas de diferentes origens, ocupações e status social. Quase
todo mundo que alguma vez visitou o edifício era virtualmente capaz de ver e
ler o mural. A parte central mostra os “Sete Sábios" do pensamento clássico
grego, cada um de acordo com uma fórmula iconográfica já bem estabelecida,
com seu nome e cidade de origem inscritos ao seu lado em um grego bastante
erudito. Eles são Sólon de Atenas, Thales de Mileto, Chilon de Esparta e [Bias]
de Priene. Com base nessas quatro figuras, supõe-se que as outras paredes
[danificadas] um dia apresentaram Cleobulos de Lindos, Pittacus de Mitilene e
Periander de Corinto, mas eles não chegaram até nós. Além disso, esses
Sábios estão majestosamente sentados sobre pedestais, o que lembra as
estátuas que podiam ser vistas em muitos espaços públicos, como a
Graecostasis no forum romarum, ou em bibliotecas e jardins particulares em
Roma e além. Em outras palavras, eles são retratados como estátuas, ou
melhor, eles são estátuas, o que nos parece mais apropriado falar sobre essas
figuras. Imagens muito nobres e distintas, pode-se pensar.

Se seguirmos a tradição literária, os Sete Sábios falavam a língua dos adágios,


precisamente porque eram "sábios" e "antigos". No entanto, em vez de os
espectadores encontrarem o que seria de esperar, ou seja, as vozes
retumbantes de sapientíssimas personagens, ao lado de cada figura está
inscrito um ditado muito improvável para tão doutos Sábios. Onde se poderia
esperar alguns dos aforismos atribuídos a essas figuras da tradição intelectual
grega, o que se lê é uma série de inscrições latinas paródicas, escritas em
poderosos senários iâmbicos – ligados à poesia épica, muito erudita –,
colapsando totalmente os aforismos tradicionais associados aos Sete Sábios.
Isso causa um tipo de curto-circuito na recepção da imagem. Vamos ler as
inscrições [= AE 1939.162]:

VT BENE CACARET VENTREM PALPAVIT SOLON [Para bem defecar, Solon


esfregava a barriga]
DVRVM CACANTES MONVIT VT NITANT THALES [Thales aconselhava àqueles que
defecam com dificuldade para se esforçarem]
VISSIRE TACITE CHILON DOCVIT SVBDOLVS [O astuto Chilon ensinou a flatular em
silêncio]
[---]ENIS BIAS.

E, embaixo de 'Thales', pode-se ler:

VERBOSE TIBI | NEMO | DICIT DVM PRISCIANV[s] | [?] [u]TARIS XYLOSPHONGIO


NOS | [? a] QVAS [Ninguém te dará uma longa aula, Priscianus, a não ser que você
use a esponja em uma vara].

39
Para cada Sábio, um sábio adágio sobre indigestão, constipação, flatulência
etc. Infelizmente, poucas inscrições sobreviveram, mas pode-se supor que as
composições das demais paredes seguissem este modelo. Se a iconografia
dessas imagens lembra alguns dos temas mais nobres da tradição filosófica
grega, as inscrições cômicas confrontam qualquer expectativa. Mesmo assim,
os Sábios antigos continuam a ensinar, aconselhar e admoestar os mortais
comuns com “doutos” aforismos.

Na parte inferior do mural, abaixo das estátuas dos Sábios e em um novo


espaço pictórico, mas integrado à composição, há um grupo adicional de
figuras explicitamente masculinas, aparentemente sentadas em uma latrina
comunitária. Talvez eles sejam os homens comuns aconselhados pelos Sábios
acima deles. Esta seção mural também traz inscrições, desta vez em prosa
latina popular, sobre processos intestinais e outros procedimentos adequados
ao contexto da latrina, como J. R. Clarke argumentou [2003: 170-180; 2007:
125-131].

Sem considerar as controvérsias atuais entre arqueólogos e arquitetos – por


exemplo, se essa sala fazia parte de uma antiga taberna ou não –, os dados
importantes para nós são:

a) A forma dos Sábios na seção central da pintura de parede: eles são


estátuas sentadas em belas cadeiras, como eram comumente
representados em lugares públicos e nobres em Roma.
b) Seus nomes e cidades estão inscritos em um grego erudito.
c) Os adágios próximos a eles são escritos em senários iâmbicos, uma forma
culta de versificação latina.
d) As figuras masculinas na parte interior do mural estão sentadas em uma
latrina publica, ou seja, são pessoas comuns.
e) Essas figuras não são nomeadas [eles são “todo mundo” mesmo].
f) As descrições de suas ações na latrina são escritas na prosa latina vulgar
do seu tempo.
g) O mural está localizado em um espaço realmente público, provavelmente
uma taverna em uma grande terma romana, o que nos permite supor que
qualquer um que vivesse ou estivesse em Óstia tinha acesso a este mural –
ou, pelo menos, a parte dessa população que frequentava tabernas.

O público-alvo desta obra de arte era, portanto, as pessoas comuns das ruas,
fossem elas livres, libertas ou, mesmo, escravas. E este esquema mural, antes
de tudo, assume que seus espectadores o “vissem e lessem”. A composição
supõe que os espetadores conhecessem ou, pelo menos, reconhecessem as
estátuas dos Sete Sábios dispostas nas bibliotecas, no forum, nos horti ou em
jardins dos grandes nobres, que tinham estátuas como essas em suas villae,
onde seus visitantes e dependentes podiam vê-las. O mural também supõe que
os espectadores pudessem ler ou reconhecer nomes gregos e versos latinos
em senários iâmbicos. Mesmo no caso das inscrições em prosa quotidiana na
parte interior do mural, é assumido que esta era uma sociedade de um modo
ou de outro letrada. Mais relevante para nós é que, com seu viés cômico, o

40
mural mostra que “a filosofia estava nas ruas”, como J. E. Zetzel [2013]
coerentemente demonstrou.

Para concluir e retomando nosso argumento sobre as palavras que


desestabilizam imagens, é certo que texto e imagem interagem todo o tempo.
As inscrições da parte central do esquema mural, apesar de escritas em grego
ou em um latim nobre, subvertem a solenidade das estátuas pintadas ao fazê-
las dizerem as coisas mais vulgares e banais. Em suma, a composição é muito
erudita, apesar da vulgaridade de seu tema. Esta obra de arte une palavras e
pinturas, exigindo de seus espectadores/leitores uma compreensão das várias
referências culturais que apresentava. Ela requeria de seu público uma
familiaridade com a linguagem iconográfica, com o mundo das estátuas, os
estilos literários e com a filosofia – o non plus ultra da cultura letrada do tempo.

Comentários finais
Este texto amplia uma discussão realizada pelas autoras no Colóquio Nereida-
UFF Imagens e Corpo: Representações do Mundo Antigo, realizado entre 29 e
31 de outubro de 2019. As autoras agradecem aos organizadores deste
Simpósio Eletrônico pela oportunidade de retomar o tema. Para saber mais
sobre o tópico da visualização na arte helenístico-romana, ver Goldhill [1994],
Goldhill [1996], Zanker [2004] e Tanner [2006]. Sobre as disjunções entre
imagens e textos em obras de arte romanas, ver especialmente: Koortbojian
[1995, p. 1-6] e Petersen [2006, p. 84-120] sobre sarcófagos romanos; sobre
urnas cinerárias, ver Davies [2007]; sobre as relações entre media verbais e
visuais em pedras tumulares romano-britânicas e romano-gaulesas, ver Hope
[1997] e Hope [2001]. De fato, o debate especializado sobre este tema se
concentra na arte funerária romana.

Referências
CLARKE, J. R. Art in the Lives of Ordinary Romans: Visual Representations
and Non-Elite Viewers in Italy, 100 BC – AD 315. Berkeley: University of
California Press, 2003.
. Looking at Laughter: Humour, Power and Transgression in Roman
Visual Culture, 100 BC – AD 250. Berkeley: University of California Press
2007.
Corbier, M. L’Écriture dans l’image. In SOLIN, H. ; SALOMIES, O. ; LIERTZ, U.-
M. [ed.] Acta Colloquii Epigraphici Latini Helsingae. Helsinki,
Commentationes Humanarum Litteratum 104, 113-161, 1995.
DAVIES, G. Idem ego sum discumbens, ut me videtis: Inscription and Image on
Roman ash chests. In : NEWBY, Z. ; LEADER-NEWBY, R. [ed.]. Art and
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2007, p. 38-59.
GOLDHILL, S. The naïve and the knowing eye: Ecphrasis and the culture of
viewing in the Hellenistic world. In: GOLDHILL, S.; OSBORNE, R. [ed.]. Art and
Text in Ancient Greek Culture. Cambridge: Cambridge University Press,
1994, 197-223.

41
. Refracting Classical vision: Changing cultures of viewing. In:
BRENNAN, T.; JAY, M. [ed], Vision in Context: Historical and Contemporary
Perspectives on Sight. New York: Psychology Press, 1996, p. 17-28.
HOPE, V. Word and pictures: The interpretation of Romano-British tombstones,
Britannia 28, 245-58, 1997.
. Constructing Identity: The Roman Funerary Monuments of Aquileia,
Mainz and Nimes. Oxford: J. and E. Hedges, 2001.
KOORTBOJIAN, M. Myth, Meaning and Memory on Roman Sarcophagi.
Berkeley: University of California Press, 1995.
PETERSEN, I. H. The Freedmen in Roman Art and Art History. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006.
TANNER, J. The Invention of Art History in Ancient Greece: Religion,
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2006.
ZANKER, G. Modes of Viewing in Hellenistic Poetry and Art. Madison, WI:
University of Wisconsin Press, 2004.
ZETZEL, J. E. Philosophy is in the Streets. In WILLIAMS, G. D.; VOLK, K. [ed.].
Roman Reflections. Studies in Latin Philosophy. Oxford: Oxford University
Press, 2013, p. 50-82.

42
ENSINO DE HISTÓRIA ESCOLAR: SABERES, PRÁTICAS E
ESPECIFICIDADES

Diego Caetano Miranda

Em seu artigo, Guimarães [2009], aponta uma crise no ensino de História.


Caracterizada pela incapacidade de interação e o descompasso do que é
produzido na academia com o que é operado no Ensino de História Escolar.
Na análise do autor, a pesquisa acadêmica é responsável por produzir saberes
e gerar mudanças. A Teoria da História é o campo responsável pelas
contribuições ao Ensino Escolar. Portanto, o Ensino de História deve usar a
Teoria da História como referência para a sua construção.

O autor não nega a importância do campo do Ensino de História como um


campo autoral e não cria mecanismos que procuram hierarquizar tal condição.
Entretanto, como consequência, a produção dos saberes está ligada ao
resultado gerado predominantemente pela produção do campo da Teoria da
História. Nesse sentido, segundo a sua concepção, a produção acadêmica vai
fornecer as bases para a construção, em um sentido mais amplo, à educação
histórica, expressa na disciplina de História escolar.

Ampliando as possibilidades de análise em relação ao campo do Ensino de


História, Monteiro [2010] afirma as especificidades do saber escolar e as
diferentes possibilidades em relação a sua construção enquanto um saber
singular nos espaços escolares. Para a autora, a escola produz saberes
próprios e específicos. Enfatiza que o Ensino de História é uma área de
fronteira. Um local de encontro, diálogos e marcação de diferenças. Essa área
de fronteira, representa uma expansão do diálogo entre a Educação e a
História, demarca um local de troca, onde as contribuições entre os campos
epistemológicos são articuladas.

O lugar de fronteira é representado por dois limites. O de unificação e o de


divisão. O primeiro pela Educação [currículo e didática] e o segundo pela
própria História [Teoria da História]. Nesta fronteira, não é possível dissociar a
pesquisa do ensino. O conceito de docência está ligado ao ato de ensinar,
atribuir sentido e significação. Essa experiência requer uma mobilização e uma
operação muito complexa. Exige uma complementação. Ao Ensino de História,
a Teoria da História é importante porque possibilita aprender História e articular
a operação historiográfica com o saber escolar. Em relação ao saber escolar,
está fragmentado em diferentes saberes. Entre eles, saberes disciplinares,
disciplinas pedagógicas e saberes da experiência. Portanto, História e
Educação permanecem em um troca contínua quando tratamos do tema
Ensino de História Escolar.

A Teoria da História como requisito único e fundamental na produção de


saberes escolares não é suficiente. Ao atribuir a formação do conhecimento
histórico de forma restrita a Teoria, faz com que o Ensino funcione como um
instrumento de divulgação. Em termos práticos, o que ocorre é a construção

43
de outro saber ou até mesmo de um saber próprio. A Teoria estabelece uma
relação epistemológica com o ato de Ensinar e escrever a História. As aulas
sofrem interferências de acordo com os contextos escolares, criando uma
especificidade epistemológica em relação ao conhecimento escolar. Nesse jogo
de criação, o professor ocupa um espaço de autor neste processo. Como já
sinalizado no trabalho de Mattos [2007], o docente é o autor da aula e não um
sistematizador de conhecimentos anteriormente construídos e divulgados no
cenário acadêmico.

É necessário valorizar o espaço da sala de aula como o lócus da construção do


conhecimento relacionado ao Ensino de História escolar. Para Silva [2016] a
aula é uma experiência coletiva de leitura. A aula só acontece a partir do
compartilhamento de interpretações de mundo que naquele mesmo espaço,
começam a interagir, buscar significados e a interpretar a realidade histórica.
As evidências e as comparações só passam a ser possíveis quando o
professor estimula os seus alunos a fazer essa viagem no tempo, permitindo
analogias, identificações, críticas e releituras. Essa dinâmica acontece na sala
de aula, com o professor e alunos livres para debater, reinterpretar e
sistematizar os conhecimentos historicamente construídos.

Neste processo, professores e alunos são leitores em diferentes graus, considerando


a capacidade de operar com categorias e conceitos próprios à forma da história com o
campo disciplinar. [SILVA, 2017, p.106]

Ao operar com o ensino de História escolar, o professor encontra em sua


turma, um perfil de alunos multifacetado. Tanto pelo conhecimento histórico que
carregam quanto pelas experiências sociais. Várias possibilidades de
interpretações e narrativas são construídas a partir do lugar de fala dos alunos.
A experiência com filmes, leitura, dinâmica familiar e religiosa marca essa
construção da experiência histórica e da construção da narrativa. Esse terreno
imprevisível, o qual o professor se movimenta e opera, carrega um leque de
visões de mundo temporalmente afetadas por inúmeras situações que
extrapolam o conhecimento histórico disciplinar.

Neste sentido, o professor, autor da aula, encontra diante de si um estudante afetado


pelas múltiplas formas de circulação do passado, anteriores e posteriores ao momento
da aula, das quais é possível citar: relatos orais, museus, romances históricos, filmes,
programas televisivos, mídias sociais e todo o conteúdo disseminado na internet.
[SILVA, 2017, p.122]

É importante que os professores se apropriem do seu lugar de docência e


militem a favor do Ensino de História escolar e da valorização do espaço da
sala de aula para construção do conhecimento a partir de outras perspectivas
de ensino. Caminhando na direção das possibilidades, Silva [2016] direciona o
foco sobre o uso de História Pública como um elemento potencializador nas
aulas, principalmente ao promover a ampliação do debate público no ambiente
escolar. Sinaliza que o debate em torno da História Pública aponta para um
processo de criações, interpretações e sentidos, associados aos leitores e
ouvintes da História. Nesses moldes de circulação, também se movem

44
representações, muito marcadas pela forma subjetiva como o indivíduo
interpreta ou recria a narrativa que está se apropriando.

Trata-se, portanto, de uma forma de ler a história que destaca as perfurações das
vozes do público presentes no texto ou na aula de história, diante de um ideal de
interesse público, a partir do qual o historiador público, o historiador profissional ou
professor de história compartilham e interferem. [SILVA, 2016, p.13]

Precisamos nos fazer entender enquanto professores-pesquisadores da


História Escolar. Que atuam em diferentes dimensões, com um trabalho
baseado no rigor e na evidência, diariamente exercitado na construção do
conhecimento histórico desenvolvido nos espaços escolares. A reafirmação da
profissão docente e do lugar de fala do professor, viabiliza o acesso ao
conhecimento histórico no ambiente escolar com base no rigor metodológico e
na evidência.

Reafirmar a posição do professor é reconhecer a sua profissão como uma


construção sistematizada e complexa, que necessita de uma formação teórica
e prática específica a qual vai se transformando temporalmente. Essa
experiência, se alterna continuamente em possibilidades de inventar e
reinventar as estratégias de intervenção ao longo do tempo e no espaço da
sala de aula. O professor não é um profissional amador. Ele tem a autoridade e
o reconhecimento intelectual para elaborar as suas práticas diárias de acordo
com os diferentes contextos que opera. Na atualidade essa prática deve ser
reafirmada, já que estamos passando por um processo de
desprofissionalização. A própria distinção genérica do termo profissional que se
dá a quem tem a tarefa de ensinar demonstra esse processo. Sobre as novas
possibilidades de nomenclatura, Nóvoa [2017], aponta os perigos da utilização
de termos como “educador” ou “pedagogo” em sobreposição ao termo
professor. A utilização dos termos genéricos para designar a função de quem
ensina, deixando de lado o termo professor, esvazia a função docente da sua
principal característica, o ato de ensinar. Para Mello [2003] o docente vive um
dilema que caminha entre a competência técnica e o compromisso político. A
exigência de tarefas que fazem parte da burocratização do trabalho do
professor, contribuem para a precarização e desintelectualização em relação a
sua prática.

Se o professor tem a sua especificidade no seu fazer diário em sala de aula, o


seu rigor crítico e os seus saberes como em outras profissões, é necessário
que reafirme o seu lugar de fala e de atuação. É necessário afirmar a
legitimidade. As narrativas estruturam-se a partir de um método baseado em
uma historicidade. Albuquerque [2016] ao tratar sobre a escolha do que
ensinar, pontua que é o resultado de uma escolha ordenada por um saber
específico. Tratando do Ensino de História e a sua legitimidade, Hobsbawm
[1998] entende que é fundamental tratar de temas que sejam verificáveis. A
verdade deve estar no horizonte do fazer histórico. O Ensino de História assim
como o seu fazer metodológico, deve estar associado ao rigor de construção.
Ele é fundamental para a direção, verificabilidade e afirmação do trabalho do
Professor.

45
É fundamental validar a profissão docente desenvolvendo uma narrativa com
base na importância social dessa atividade. Ratificar o seu fazer e demarcar a
docência como um ato que atribui sentido e significação as questões colocadas
pelos conteúdos históricos em sala de aula. O ser professor não é uma tarefa
simples. Requer uma mobilização e uma operação complexa. O repertório de
atuação docente é formado por saberes e práticas específicas, construídas ao
longo da experiência. Nesse aspecto, Tardif [2000] enfatiza que a experiência,
o domínio da prática e a afirmação da identidade são elementos fundamentais
para entender a singularidade do magistério e os seus desdobramentos.

Nesse campo de batalhas, entre direito à produção de sentidos, criação de


narrativas e História ensinada, Araújo [2015] sinaliza que o historiador deve
assumir a posição de curador, do conhecimento histórico e do rigor que envolve
o processo que passa pela evidência, a teoria, a metodologia e o ensino. Essa
é uma das suas funções que deve ser ratificada neste momento, como
demarcação de território e lugar de fala do professor de História.

Discutir o ensino de História Escolar é observar como o professor opera de


forma complexa com algumas ferramentas. Esse profissional não deve ser
percebido como apenas um narrador ou reprodutor de histórias. Ao abordar
esse tema Mattos [2007], enfatiza a necessidade e complexidade da leitura em
relação ao conhecimento histórico e historiográfico que o professor manipula
no seu fazer, extrapolando a posição de apenas interlocutor. Esse docente
assume a posição de um produtor de material para sua própria aula. Esta ação
só é possível, graças ao seu conhecimento de teoria, metodologia, pesquisa,
prática de aula e a composição do seu olhar atento ao contexto que está
inserido. Todo esse cenário de habilidades, faz com que o conhecimento
histórico que produziu, possa ser apropriado pelos alunos, que atribuem
significado e sentido.

A aula de história como texto é criação individual e coletiva a um só tempo; criação


sempre em curso, que permanentemente renova um objeto de ensino em decorrência
de novas leituras, de outras experiências vividas, da chegada de novos alunos, dos
encontros acadêmicos e das conversas com os colegas de ofício, do surgimento de
novos manuais didáticos, das decisões das expectativas geradas pelo movimento do
mundo no qual vivemos, em sua dimensão local ou global. [MATTOS, 2007, p.14]

O professor de História escolar faz a ponte e estabelece conexão entre


historiografia, teoria, metodologia e História ensinada. Ele cria a partir de um
rigor metodológico específico da sua experiência docente, conhecimento e os
transforma em aulas, produtos autorais operando muitas vezes com conceitos
e saberes e práticas que representam os dois extremos, o acadêmico e o
escolar.

Possibilidade de uma prática que se renova a cada dia, a aula como texto ou o texto
de nossa aula propicia que cada um dos alunos valorize as diferenças, constitua
identidades, crie memórias e exercite a cidadania. E, assim, torne-se capaz de fazer
sua própria história. Mas, certamente, não somente assim! [MATTOS, 2007, p.15]

46
A construção do conhecimento histórico em sala de aula possui uma série de
especificidades. É importante que o professor esteja consciente do debate
teórico, da sua prática e do seu lugar de fala. O professor é o responsável por
atuar em uma realidade marcada pela responsabilidade da sua mediação e
autoria. Estabelece conexões entre Teoria da História e Educação. Opera de
forma sistematizada, a partir da interação entre o conhecimento histórico e as
experiências dos alunos. A sala de aula deve ser entendida como um espaço
público de valorização e construção do conhecimento histórico, no qual o
professor, a partir do seu repertório, faz as conexões e operações entre
saberes e práticas que envolvem o Ensino de História Escolar.

Referências
Diego Caetano Miranda é Mestre em Ensino de História [PUC-RIO], Professor
do Ensino Básico [SEEDUC-RJ] e Mediador de Disciplinas Pedagógicas –
CEDERJ.

ALBUQUERQUE Jr, D.M de. Regimes de Historicidade: como se alimentar de


narrativas temporais através do ensino de História. In: GABRIEL, C.T.;
MONTEIRO, A.M.; MARTINS M.B. Narrativas do Rio de Janeiro nas aulas
de História. Rio de Janeiro: Mauad X, 2016, p. 19-42.
ARAÚJO, Valdei Lopes de. O Direito à História: O[A] Historiador [A] como
curador [A] de uma experiência Histórica Socialmente Distribuída. Disponível
em <https://pt.scribd.com/document/384671846/Valdei-Araujo-O-Direito-a-
Historia-O-A-pdf>
GUIMARÃES, M.L.S. Escrita da história e ensino da história: tensões e
paradoxos. In: ROCHA, H.A.B.; MAGALHÃES, M.de S.; GONTIJO, R.[Orgs.] A
escrita da história escolar. Memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV
Editora, 2009, p. 35- 50.
HOBSBAWM, Eric. Não basta a História da identidade. In: Sobre História. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
MATTOS, Ilmar Rohloff. Mas não somente assim!” Leitores, autores, aulas
como texto e o ensino-aprendizagem de História. Revista Tempo, v.11, n.21.
MELLO, Guiomar Namo de. Magistério de 1º grau.: da competência técnica
ao compromisso político. Guiomar Namo de Mello. - 13. ed. - São Paulo:
Cortez, 2003
MONTEIRO, A.M. Didática da História e Teoria da História: produção de
conhecimento na formação de professores. DALBEN, A. et alii [Orgs.] Coleção
Didática e Prática de Ensino. Convergências e tensões no campo da
formação de professores e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica,
2010.
NÓVOA, A. Firmar a posição como professor. Afirmar a profissão docente.
Cadernos de Pesquisa, Vol.47, n.166, p. 1106-1133, 2017.
SILVA, Daniel Pinha. Ampliação e veto ao debate público na escola: História
Pública, ensino de História eu projeto “Escola sem Partido”. Transversos:
Revista de História. Rio de Janeiro, v. 07, n. 07, set. 2016.
SILVA, Daniel Pinha. O lugar do tempo presente na aula de história: limites e
possibilidades. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 9, n. 20, p. 99 ‐
129. jan./abr. 2017. jan./abr. 2017.

47
TARDIF, Maurice; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do
trabalho no magistério. Educação & Sociedade, vol. 21, no. 73, p. 209-244,
Dez. 2000.

48
RECONSTRUÇÃO E ANÁLISE DE TRAJETÓRIAS DE SERVIÇOS COMO
POSSIBILIDADES DE ESTUDO PARA A PESQUISA COLONIAL: O CASO
DE D. VASCO DE MASCARENHAS [SÉC. XVII]

Érica Lôpo de Araújo

Esse texto tem por objetivo demonstrar como a reconstrução e análise de


trajetórias de serviços pode ser uma boa metodologia para o estudo da
América portuguesa no período colonial a partir do estudo de caso de D. Vasco
de Mascarenhas, nobre português, no período compreendido entre os anos de
1626 e 1678. A investigação da trajetória do personagem em questão no
exercício de múltiplas atividades de governo, tem como finalidade encaixar a
história do Brasil na época moderna em uma escala imperial, atentando para a
circulação de pessoas, ideias, instituições e modelos de governação em um
espaço que recobria realidades distintas como a América, Ásia e Europa.

Para demonstrar a efetividade e operacionalidade dessa metodologia, serão


elencados alguns passos a serem perseguidos nesse tipo de estudo, bem
como sugeridos fundos documentais, parte dos quais encontram-se disponíveis
online, que podem auxiliar na reconstrução de trajetórias. O percurso a ser
demonstrado nesse texto foi o produto de em uma pesquisa de doutorado
realizada junto à Universidade Federal do Rio de Janeiro, contemplada com o II
Prêmio Katia Mattoso de História na modalidade melhor tese de doutorado e
publicada em formato de livro sob o título A arte de mandar: Trajetória de um
nobre português a serviço do Império. Bahia, Portugal, Goa, séc. XVII.

O primeiro passo a ser dado consiste no mapeamento geral da trajetória de


serviços para construção da justificativa da escolha do personagem, que serviu
com máximo empenho, inicialmente à monarquia hispânica, durante o período
de União das Coroas Ibéricas e depois ao reino de Portugal. Em sua vasta
carreira, Dom Vasco de Mascarenhas – feito I Conde de Óbidos em 1638,
atuou três vezes na Bahia: como mestre-de-campo, entre 1626 e 1634, e
poucos anos depois, entre 1638 e 1640 como capitão general da artilharia da
fracassada armada do Conde da Torre, que pretendia restaurar Pernambuco
do domínio português, ocasião em que chegou a ocupar o posto de governador
interino do Estado do Brasil. Quando da Restauração portuguesa [1640], atuou
na guerra do Reino como governador do Algarve por duas vezes, e ainda como
governador de armas da província do Alentejo, principal quartel general da
guerra de fronteira contra os espanhóis. Em 1653 foi nomeado vice-rei do
Estado da Índia, posto que ocupou por pouco mais de um ano, sendo deposto
e enviado preso para Lisboa. Depois de um certo período de ostracismo, na
década de 1660, voltaria ao Brasil na condição de vice-rei daquele Estado, o
primeiro a ser nomeado pela dinastia brigantina e o segundo desde a fundação
do Estado do Brasil. Ocuparia ainda Conselhos palatinos e terminaria os seus
dias como estribeiro mor da rainha, cargo de grande prestígio. [LÔPO DE
ARAÚJO, 2018]

49
Uma vez reconstruídos os percursos trilhados por Mascarenhas, foi possível
identificar sua ordinariedade e singularidade ao mesmo tempo, pois embora a
circulação de nobres cujas carreiras se voltaram para a prestação de serviços à
monarquia no reino e ultramar tenha sido comum, ele foi o único sujeito
nomeado vice-rei dos Estados da Índia e do Brasil ao longo de todo o século
XVII e o acesso que teve a postos, títulos e rendas também se deu com algum
caráter de excepcionalidade.

Após a reconstituição da trajetória do personagem em linhas gerais, primeira


etapa dessa pesquisa, segue a identificação dos recursos familiares e sociais,
ou do “lugar de nascimento do sujeito”, tão importante em uma sociedade de
Antigo Regime, a fim de se perceber os acessos e vetos que este
proporcionou. Compreende-se aqui essa expressão não apenas baseada no
posicionamento do nascimento de um indivíduo dentro da organização de uma
sociedade [nesse caso, em estamentos], e da ordem de nascença dentro de
uma família [filho primogênito/secundogênito], mas também a partir dos
campos de poder em que estes inseriam uma pessoa e as relações que ela
poderia tecer ao longo da vida. “Especificar o lugar de nascimento de um
indivíduo equivale a conferir-lhe uma identidade, garantindo-lhe direitos e
deveres e concedendo-lhe uma espécie de capital com o qual poderá negociar”
[LÔPO DE ARAÚJO, 2019, 48].

Em razão da origem nobre do personagem, nessa etapa, a consulta às obras


genealógicas de D. Antonio Caetano de Sousa [disponível online] e Felgueiras
Gayo foram fundamentais para compreensão do lugar social de D. Vasco de
Mascarenhas. Para além destas obras, fundos documentais de casas
senhoriais disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo [parte deles
online], em Portugal, podem fornecer informações de cunho privado dessas
famílias, enquanto os livros de chancelaria, disponíveis no mesmo arquivo,
podem ser utilizados para conhecer as mercês concedidas aos sujeitos em
estudo. A todo momento é preciso estar atento tanto à documentação oficial,
trocada com a administração régia, quanto à documentação particular, pois
essa, embora mais difícil de ser perseguida, é importante para realizar uma
espécie de confrontação ou confirmação de informações oriundas de
documentos oficiais.

Foi possível enquadrar Mascarenhas como quarto filho homem de uma família
de primeira grandeza, situação que, inicialmente, praticamente inviabilizaria
qualquer possibilidade de tornar-se sucessor ou fundar uma nova “casa”;
entendida como “um conjunto de bens simbólicos e materiais, a cuja
reprodução alargada estavam obrigados todos os que nela nasciam ou dela
dependiam” [MONTEIRO, 2011, p. 137]. Contudo, em razão de uma sucessão
de eventos que tiveram origem na ausência de descendência por parte de seus
tios [pela via materna], da opção pela vida religiosa empreendida por seus dois
irmãos mais velhos, por uma política de incentivo a casamentos mistos [entre
as nobrezas portuguesa e castelhana]e por sua própria escolha em prestar
serviços à monarquia, terminou por fundar uma nova Casa. [CUNHA, 2010]

50
Depois de mapeada a trajetória do personagem e uma vez identificado o capital
social fornecido por seu lugar de nascimento, o terceiro passo consiste na
reconstrução pormenorizada dessa trajetória em cada um dos lugares de sua
atuação, transcorrida em paragens diversas e distantes entre si, e, no maior
das vezes, em ambientes bastante competitivos.

No caso da atuação no Estado do Brasil, para a reconstrução dessa trajetória,


foram acessados diversos fundos documentais, a exemplo da documentação
disponibilizada pelo projeto resgate abrigada no Arquivo Histórico Ultramarino,
seja nos seus fundos avulsos de cada capitania no Estado do Brasil, nas
Consultas Mistas, ou de Partes, e ainda nos códices. Outra fonte importante é
a série Documentos históricos da Biblioteca Nacional, também disponível
online. No caso do Estado português da Índia, foram pesquisados os fundos
documentais Cartas da Índia, Documentos Avulsos Índia e Livro das Monções,
todos abrigados no Arquivo Histórico Ultramarino e também os Assentos do
Conselho de Estado, obra publicada por Pissurlencar. Já a pesquisa realizada
acerca da atuação no reino de Portugal, fez uso de Cartas de El-rei D. João IV
para diversas autoridades do Reino, ou ainda Cartas de Governadores da
província do Alentejo a el-rei D. João IV e a el-rei D. Afonso VI, para além de
documentação do Conselho de Guerra, todos disponíveis em impresso.

Nessa fase é preciso realizar também o processo de construção e a verificação


de acionamento de redes de relacionamento [sem perder conexão com o reino
de Portugal e mais especificamente com a corte lisboeta], e examinar se o
personagem foi capaz de identificar e adaptar-se, quando necessário, aos
“jogos locais”, tendo sempre em atenção os conflitos e acordos vivenciados.

Nesse sentido, foram observadas diferenças significativas em sua atuação no


Estado do Brasil, espaço em que se mostrou mais experiente e hábil, e no vice-
reinado do Estado da Índia, onde foi deposto decorridos pouco mais de um ano
de governo. Esta deposição foi, em boa medida, resultado de sua
incompreensão e incapacidade moldar-se à política local. A fim de socorrer o
Estado em um momento de crise geral, o vice-rei realizou a cobrança de
dívidas de particulares à fazenda real e sugeriu o sacrifício pessoal de
principais da terra, situação que não encontrava precedentes e não foi bem
aceita naquelas partes. Combinado a isso, observou-se um reduzido número
de aliados naquele espaço longínquo, onde a comunicação era lenta e
oportunizava uma maior autonomia aos governantes e elite local. A dificuldade
de encontrar homens dispostos a ocupar ofícios em postos de perigo foi uma
realidade encontrada por Mascarenhas que escrevera ao rei, sem sucesso,
solicitando a ida de profissionais experientes para ocupar altos postos na Índia.
[LÔPO DE ARAÚJO, 2019 A, p. 133]

Uma vez munidos de todos os dados mencionados anteriormente, é viável


atribuir-lhes questionamentos mais amplos e que proporcionem conexões entre
diferentes espaços e momentos. A esse exemplo, é possível verificar se há
construção de um eventual padrão/modo de ação em diferentes espaços, ou o
contexto local era capaz de condicionar as ações de governo de Mascarenhas

51
que atuou em territórios que possuíam lógicas sociais e econômicas diversas e
também em momentos específicos.

É válido ainda questionar acerca de quais as estratégias de ação


empreendidas pelo protagonista, identificando os acessos que os ofícios lhe
possibilitaram, bem como as redes de alianças construídas, verificando,
quando possível, sua durabilidade, dentre inúmeros outros questionamentos
[CUNHA, 2009]. A análise de uma atuação na longa duração permite indagar a
importância de longas trajetórias de serviços, seja individualmente para os
sujeitos envolvidos, seja para a monarquia.

Foi possível perceber um acúmulo de experiências de governo a partir de sua


última atuação no Estado do Brasil, quando Mascarenhas fez uso de vivências
anteriores e acionou alianças construídas previamente. Essas alianças
dividiam-se em dois tipos: as mais casuais, que se davam normalmente
localmente em razão das vantagens que a ocupação de um posto poderia
oferecer, ou as de maior duração, como é o caso de apadrinhamentos e
amizades que transcenderam governos e espaços. Nessa ocasião, fez uso de
todos os signos de distinção social à sua disposição e refletiu sobre como a
utilização destes poderia representar uma ampliação do direito do seu poder de
mando. Conhecedor de sua identidade social, tão logo de sua chegada ao
Estado do Brasil na condição de vice-rei, cercou-se de todos os símbolos
públicos a seu dispor, a exemplo da construção de um bergantim [pequeno
navio de baixo bordo e leve para correr o mar] para seu transporte pessoal,
reforma da sala do Paço e do palácio. [BLUTEAU, 1712, p. 107]

Quando de sua morte, em 1678, o Conde de Óbidos ocupava, há alguns anos,


o ofício de estribeiro-mor da rainha que tinha sido desempenhado
anteriormente por seu aliado VII Visconde de Vila Nova de Cerveira e é
provável que sua escolha tenha sido influenciada por seu proprietário anterior.
Sua descendência iria ratificar seu esforço de ascensão e seu filho primogênito,
D. Fernando, tornou-se o segundo Conde de Óbidos e foi feito meirinho-mor
como dote por seu casamento.

A partir dos caminhos, nem sempre virtuosos, trilhados por D. Vasco de


Mascarenhas, compreende-se melhor como agentes da monarquia portuguesa
desempenharam seus papeis em diferentes partes do reino e império,
misturando ambições pessoais e serviços para o bem do Estado. Por outro
lado, para a monarquia, a circulação de oficiais foi importante por garantir seu
domínio imperial, baseado especialmente em uma memória burocrática e de
serviços que as longas trajetórias podem conferir a um indivíduo.

Referências
Érica Lôpo de Araújo é Licenciada e Bacharel em História pela Universidade
Federal da Bahia, Mestre pela Universidade Federal Fluminense e Doutora em
História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente é
Professora Adjunta da Universidade Federal do Piauí. Vencedora do Prêmio
Katia Mattoso de História na modalidade melhor tese em 2018. Autora de: A

52
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158.

54
EDUCAÇÃO E CIDADANIA NA ATENAS CLÁSSICA

Fábio de Souza Lessa

Neste texto, pensamos em oferecer algumas considerações básicas acerca do


processo educacional ateniense no período clássico [séc. V e IV a.C.]. Assim
sendo, a primeira observação a ser feita é que iremos nos limitar aos grupos
masculinos, tradicionalmente inseridos em uma educação formal e visando a
constituição de cidadãos ágeis e plenos. De imediato, pode-se fazer a seguinte
pergunta: as meninas atenienses se encontravam excluídas de uma educação
formal? Elas parecem, no geral, ter sido educadas para as tarefas manuais e
domésticas por suas mães e/ou amas. No entanto, não podemos
desconsiderar a existência de referências na documentação literária e
imagética de mulheres desenvolvendo atividades intelectuais, como a leitura,
por exemplo [LESSA, 2004, p. 89-90].

Posto isto, convêm enfatizar que o nosso objeto de estudo, a educação


[paideía, literalmente “educação de crianças”] dos cidadãos atenienses, que
implica na sua formação ética e política a partir do aprendizado da gramática e
oratória, desenho geométrico, ginástica e música, será analisada a partir das
referências fornecidas pelo pintor Douris na kýlix [taça] de figuras vermelhas
[personagens pintados em tom alaranjado sobre fundo escuro] de
aproximadamente 500 a 450 a.C. Assim como Werner Jaeger [2001, p. 3-4]
assinalou, a paideía é o meio pelo qual a comunidade conserva e transmite a
sua particularidade física e espiritual, não sendo a educação uma propriedade
individual, pois pertence por essência à sociedade. Havia, dessa forma, uma
preocupação com a formação intelectual, física e militar do jovem cidadão
ateniense. Temos que esclarecer que a educação, na Grécia antiga, era uma
experiência reservada a poucos, pois dependida do investimento privado de
cada família, e se iniciava por volta dos sete anos de idade [RATTO, 2007, p.
187]. Segundo Platão [Protágoras. 325e-326a], “assim procedem os que
podem, e podem mais os ricos, cujos filhos começam muito cedo a frequentar a
escola e são os últimos a deixá-la”.

Antes de prosseguirmos, convém refletirmos sobre o conceito paideía. De


forma mais genérica, o termo pode significar “educação e/ou cultura”,
aparecendo associado à conduta que todo cidadão deveria seguir para ser
considerado honrado e virtuoso junto à sociedade. Ao tentar defini-lo, Claude
Mossé [2004, p. 107-08] destaca ser esse um conceito amplo que englobava
todas as atividades educacionais e culturais que passou por um grande
desenvolvimento a partir da segunda metade do século V a.C.
Etimologicamente, o termo está ligado à raiz pais, criança em grego. O
conceito abrange todo o processo educacional ateniense, consistindo em
práticas intelectuais [como escrita e leitura], físicas [ginástica, caça], militares
[efebia], além dos valores éticos que eram necessários a convivência em
comunidade.

55
Podemos defender que o propósito máximo da paideía era a formação do kalòs
kagathós [os “bem-nascidos”], do modelo de homem virtuoso pertencente ao
grupo abastado da sociedade, portador da skholé – o tempo livre destinado aos
exercícios das atividades em prol da pólis. Henri-Irénée Marrou [1990, p. 77-78]
sintetiza tal ideia no conceito de kalokagathia, “o fato de ser um homem belo e
bom”. O bom [agathós], corresponde ao aspecto ético, já o belo [kalós], à
beleza física. Ressalta-se que o ideal da kalokagathia é de suma importante
para a vida cívica na pólis [SPIVEY, 2005, p. 56-57].

De acordo com Aristóteles [Política. VIII, 1337 b, 24-27], são basicamente


quatro as áreas que constituem a paideía ateniense: gramática, ginástica,
música e desenho. Platão [Leis. VII, 788d], ao refletir acerca da formação do
cidadão, enfatiza que “a boa educação se revela na capacidade de
proporcionar ao corpo – sómata – e à alma - psikhás – toda a beleza – kállista
– e excelências possíveis ...”. Em sentido semelhante, retornamos a Aristóteles
[Política. VIII, 1337 a, 1-4] que argumenta tal necessidade afirmando que a
negligência das póleis a respeito da paideía é nociva aos governos – tàs
politeías.

Passemos à análise de como o pintor Douris concebeu o processo educacional


ateniense e o eternizou nas imagens pintadas na taça de figuras vermelhas de
aproximadamente 500-450 a.C. Diferente de Beazley, Claude Calame [2005, p.
94] apresenta a datação de 490-80 a.C. para a taça. Devemos ter em mente
que as pinturas não são ilustrações de textos escritos, pois elas criam as suas
próprias composições, levando em conta o espaço disponível para a criação do
pintor, além das demandas dos consumidores dos vasos [SCHMITT PANTEL,
2019, p. 196-97].

Comecemos com a interpretação da imagem figurada no medalhão da taça. É


relevante mencionar que esse interior adornado só era apresentado ao
receptor do vaso à medida em que o vinho fosse sendo consumido. A kýlix,
devido ao seu contexto social de uso, isto é, taça para beber vinho,
normalmente aparece associada aos espaços dos simpósios. A escolha pela
análise da taça de Douris se deu pelo fato dela ser a mais completa
representação que nos chegou das atividades didáticas atenienses.

Em uma imagem fragmentada – Figura 1A – temos um jovem nu tirando as


sandálias. Ele se abaixa para desamarrar a sandália, tendo o pé direito apoiado
em um banco. Já o seu pé esquerdo está calçado. Ao fundo da imagem temos
um cajado do jovem repousado no louterion e seu manto está sobre o banco.
Ressalta-se que o cajado, que estará presente nas três cenas que iremos
analisar, é um símbolo de exterioridade e de poder. Logo, aparece associado
ao universo masculino, da vida pública e política. Uma esponja e um aríbalo
estão pendurados acima do banco. E m vermelho no interior do lado esquerdo a
inscrição: Douris egraphsen [Douris pintou/desenhou]. Temos aqui a
identificação do pintor.

56
Figura 1A [medalhão]

Localização: Berlin, Antikenmuseen – inv. F 2285, Temática: Educação grega,


Proveniência: Care [Etrúria], Forma: kýlix [taça], Estilo: Figuras Vermelhas, Pintor:
Douris, Data: aprox. 500 a 450 a.C., Indicação Bibliográfica:
www.beazley..ox.ac.uk/index.htm [vaso number 205092 - consultado em agosto de
2020],
http://www.perseus.tufts.edu/hopper/artifact?name=berlin%20f%202285&object=vase,
CALAME, 2005, p. 95-97, RATTO, 2007, p. 188-189.

A cena pintada no medalhão mantém clara associação com a ginástica, uma


das áreas da paideía ateniense. O primeiro signo que nos remete à prática
esportiva é a nudez do jovem atleta. A juventude é atestada pela ausência de
barba. A nudez dos corpos entre os gregos antigos tinha significados
específicos. Além de se distinguir os fortes dos vulneráveis, o corpo desnudo
dos helenos evidenciava quem era civilizado. O atleta grego em qualquer idade
se exercitava completamente despido, demarcando sua alteridade face ao
bárbaro [MARROU, 1990, p. 200].

A prática esportiva nas suas diferentes modalidades permitia a interação dos


diversos grupos de homens/cidadãos no interior da sociedade políade,
explicitando suas alteridades: helenos e bárbaros, vencedores e derrotados,
ricos e pobres, e a própria heterogeneidade que caracterizava esses grupos.
Para além da vitória, as competições esportivas entre os gregos antigos nos
remetem à noção do belo. Segundo Platão [Leis. II, 655 b], “... belos são todos
os gestos próprios para dar expressão à virtude da alma ou à do corpo ou a
qualquer de suas imagens, ...” [PLATÃO. Leis. II, 655 b]. Na convivência nos
ginásios, os atenienses aprendiam que o corpo era parte de uma coletividade
maior, a pólis, e que pertencia à koinonía [SENNETT, 1997, p. 42]. O corpo se
tornava um dos elementos de integração dos isoí na pólis; marcando sua
identidade como cidadão.

57
Outros signos que evidenciam ser o personagem um atleta é a presença da
esponja e do aríbalo, aliados ao louterion, recepiente vinculado ao universo do
banho. Logo, esponja, aríbalo e o louterion são indícios de que o atleta está no
ritual da higiene pessoal; ou o banho antes do treino e/ou da competição, ou no
momento após aas atividade realizadas.

Segundo Peter Jones [1997, p. 177], o treinamento físico não visava apenas
objetivo militares, isto porque, a excelência atlética era um dos campos mais
importantes em que os helenos expressavam seu sistema sistema de valores
agonísticos, de competição. Platão [Protágoras, 326c] afirma que a ginástica
propicia um “corpo em melhores condições de servir o espírito virtuoso, sem
virem a ser forçados, por fraqueza de constituição, a revelar covardia,...”

Avançando na interpretação das imagens, temos em um dos exteriores da taça


– Figura 1B – o ensino da música e da gramática e leitura. A imagem pode ser
dividivida em duas partes. O par da esquerda pratica a lira. Eles se sentam em
bancos almofadados, um de frente para o outro, o professor barbudo à
esquerda, o aluno, imberbe, à direita. Na imagética grega as faixas etárias
masculinas são identificadas pela presença ou ausência da barba. Os
personagens imberbes são adolescentes, enquanto os barbudos são adultos.

Os dois personagens seguram as liras no colo e as tocam, com os dedos


espalhados pelas cordas. Eles usam seus mantos abaixados na cintura para
deixar a parte superior do corpo livre. Vale reforçar que o professor de música
ensinava aos meninos a cantar e a tocar o aulos ou a lira. Esses instrumentos
eram os mais frequentes para o acompanhamento do canto dos poetas e dos
coros trágicos. Entre os helenos, a música era concebida como um meio eficaz
para a educação ética dos cidadãos. Na cultura grega, a música não se
refereia apenas a arte dos sons, compreendendo também o texto poético e a
dança [RATTO, 2007, p. 190].

Há entre a música e a ginástica uma relação estreita na parendizagem do


cidadão ateniense, isto porque “eram ingredientes reconhecidos pela pólis para
a formação do cidadão como modelo de homem” [CAMBIANO, 1994, p. 93].
Platão [Leis. VII, 795 d-e] associa a música ao benefício da alma e a ginástica
ao corpo, subdividindo esta última em dança e luta. Já Aristóteles [Política. VIII,
1341 a, 6-9], além de enfatizar a importância do aprendizado da música na
formação do cidadão, chama a atenção para o fato de que este estudo “... não
deve constituir um obstáculo às atividades subsequentes, nem amesquinhar o
corpo ou inutilizá-lo para as ocupações marciais e cívicas do cidadão, ...”.

Na segunda parte da imagem, temos o professor, personagem barbudo,


sentado em uma cadeira almofadada voltada para a direita e seu aluno de pé
diante dele com seu manto enrolado. Ele segura um rolo de pergaminho
parcialmente aberto com a inscrição: “Minha Musa, começo a cantar pelo
Escamandro de curso largo” [Trad. Felipe Marques]. O Escamandro é o rio da
planície de Tróia. Beazley [1948, p. 337] vincula a presente inscrição ao poeta
lírico Estesícoro [632-553 a.C.].

58
O manto do professor é empurrado para baixo para liberar seus braços e
ombros. Um terceiro personagem barbudo está sentado à direita, voltado para
a frente, com as pernas cruzadas na altura dos tornozelos e com a cabeça
voltada para observar as atividades escolares. Ele segura um cajado em sua
mão direita e veste seu manto da maneira usual, cobrindo um ombro. Na
próxima cena um personagem semelhante também estará presente. De acordo
com Calame [2005, p. 98], trata-se do paidagogos, comumente identificado
como o escravo que acompanhava uma criança [pais] à escola. O cajado que
ele porta pode ser entendido, nessa situação, também como um símbolo de
autoridade sobre a criança.

Como a imagem anterior, essa também é de interior, haja vista os objetos


pendurados na parede [ver: CALAME, 2005, p. 98]. Temos duas liras, duas
taças [kylikes], uma cesta e uma caixa de flauta. A cesta, segundo a
interpretação de Calame [2005, p. 98] poderia servir para fruitas ou para o
armazenamento dos rolos de pergaminhos. Há a inscrição Hippodamas kalós
[Hippodamas é lindo]. O adjetivo kalós pode nos remeter à beleza do receptor
da taça, certamente um adolescente em processo de aprendizagem, ou ao seu
estatuto social, de bem-nascido.

Figura 1B [Face A]

Na outra face externa da taça – Figura 1C – encontramos um esquema cênico


próximo ao anterior. Mais uma vez observamos a associação entre música e
gramática. Na imagem, tanto o aulete quanto o grammatistés [aquele que
ensina as primeiras letras] são jovens e imberbes. O aulete à esquerda,
sentado em um banco sem almofadas, toca flauta, tendo o manto puxado para

59
baixo até a cintura. Seu jovem aluno está de frente para ele, envolto em seu
manto. O professor, no centro, sentado em um banquinho almofadado voltado
para a direita, segura uma prancheta no colo, com um instrumento para escrita
na mão direita erguida. Seu aluno também está de frente para ele, envolto em
seu manto. Um personagem barbudo está sentado em um banquinho
almofadado à direita, com a parte superior do corpo e a cabeça voltadas para
os outros. Ele segura um bastão em uma das mãos. Mais uma vez temos uma
referência à exterioridade e ao poder masculino. Um pergaminho, uma tábua
de escrever, uma lira, um objeto em forma de cruz e um saco estão
pendurados na parede. Todos signos de interioridade da cena. Há uma
inscrição ao longo da borda superior da cena. Novamente a mesma inscrição
presente na face A da taça, a saber: Hippodamas kalós [Hippodamas é lindo].

Figura 1C [Face B]

Assim como Jones [1997, p. 175], defendemos que muitos aspectos da


democracia ateniense dependiam, para o seu funcionamento eficiente, de um
conhecimento mesmo que rudimentar da leitura e da escrita. Depois de
aprender a ler os meninos eram apresentados a Homero. Platão, no
Protágoras [325e-326a], nos informa sobre tal situação:

[...] quando o aluno aprende a ler e começa a compreender o que está escrito, tal
como faziam antes com os sons, dão-lhe em seu banquinho a ler as obras de bons
poetas, que eles são obrigados a decorar [...].

60
Um signo que também oferece unidade ao enunciado presente nas três
imagens pintadas na taça de Douris é a presença da fita vermelha nas cabeças
dos personagens. Tal signo informa que os personagens foram vitoriosos em
alguma competição atlética, atingindo o objetivo máximo das disputas
esportivas que é vencer. A vitória permitia uma posição privilegiada no interior
da estrutura social da pólis. Não nos esqueçamos de que a pólis era uma
sociedade de honra e vergonha.

Para além das fitas vermelhas, dos signos que remetem ao processo
pedagógico ateniense, das posições simétricas e homólogas dos cinco
personagens, em especial nas figuras 1 B e C, outro elemento que une as três
imagens é o fato de passarem em um ambiente externo. Podemos pensar
nesse espaço como sendo a palestra, campo de exercício cercado de
edificações diversas, e do estádio, pista para corrida a pé [MARROU, 1990, p.
202-203]. Vale ressaltar que as escolas funcionavam em casas ou cômodos
particulares ligados a um campo de treinamento, a palestra [JONES, 1997, p.
174], que poderia ser usado para a ginástica.

Já os ginásios, que poderiam ser o conjunto formado pela reunião da palestra,


se tornaram a partir do século VI a.C., junto com os teatros, os edifícios típicos
das póleis. Por volta dos 12 anos de idade, os jovens, orientados pelo
paidotribés, o instrutor de ginástica, executavam todos os exercícios de
ginástica; treinando nus, ungidos de óleo e com acompanhamento musical.
Além da prática da ginástica, os ginásios representavam um espaço onde a
vida sexual dos jovens começava a se desenvolver [CAMBIANO, 1994, p. 90].

Anteriormente, defendemos que o receptor da taça de Douris é um adolescente


em fase de aprendizado. A mensagem das imagens pintadas é clara: as
atividades pedagógicas são fundamentais para a formação de um cidadão
pleno e virtuoso. Resta-nos refletir sobre o emissor. Certamente a taça resultou
de uma encomenda para presentear um jovem, cujo intuito era reforçar o que a
sociedade espera dele. Possivelmente a iniciativa foi de seu pai, enfatizando a
educação formal dos atenienses.

Como vimos, a taça é de produção ática, mas a sua proveniência é da Etrúria.


Podemos pensar no motivo de uma cerâmica com imagens estreitamente
vinculadas à cultura educacional ateniense ter circulado na Etrúria. Sabemos
das relações comerciais entre a Grécia e a Etrúria, mas o que motivou a
escolha de uma temática tipicamente ateniense para circular fora dessa pólis?
Infelizmente ainda não possuímos uma hipótese precisa para explicar tal
situação, mas seguramente havia um mercado consumidor para os enunciados
culturais atenienses fora de Atenas e da Hélade.

Como conclusão, podemos afirmar, assim como o fez Jean-Pierre Vernant


[2000, p. 10] que para além da paideía, da educação tradicional, existia entre
os helenos, toda uma cultura identitária que passava de geração a outra, sem
qualquer formalidade, para constituir uma bagagem de comportamentos e

61
saberes distante do oficial: regras de boa conduta para falar e agir, ética,
técnicas corporais...

Documentação escrita
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62
ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL E NOS ANOS INICIAIS
DO ENSINO FUNDAMENTAL – BREVES CONSIDERAÇÕES

Luis Filipe Bantim de Assumpção

Durante muito tempo, a disciplina de História foi considerada uma matéria


simples, cujo objetivo era levar o sujeito a memorizar nomes, datas e feitos
associados aos heróis nacionais. Esse estigma lida com os esforços da
educação jesuíta que se conservou ao longo de nossa trajetória histórico-
social, afinal, era um dos mecanismos pelos quais os sujeitos provavam que
sabiam sobre a história do território.

Entretanto, como destacou Circe Bittencourt [2018] a memorização é


importante em uma sociedade marcada pela tradição oral, pois a cultura letrada
era um luxo que poucos poderiam se dar. A autora expôs que a repetição dos
acontecimentos e a sua absorção acrítica pelos alunos se conservou em
virtude dos governos que se sucederam, os quais fizeram retornar o
tradicionalismo excessivo das práticas de ensino com o golpe militar de 1964.
De todo modo, a memorização de algumas informações é importante para que
os sujeitos se situem no tempo e no espaço, porém estes não devem se tornar
reféns deste procedimento de fixação.

Embora Bittencourt seja otimista sobre o uso da memorização de pequenos


dados, a nossa experiência docente demonstrou que a situação não é tão
simples como a autora destacou. Mesmo entre os alunos do ensino médio e
alguns do superior, existe uma necessidade intrínseca em se “gravar de cor” as
informações que são veiculadas no ambiente de ensino-aprendizagem. Ainda
que este não seja um mal hábito de nossos discentes, devemos nos indagar
sobre a nossa postura em sala de aula para superarmos essa situação.

De uma maneira breve, defendemos que o currículo de História – bem como a


História Ensinada – deve ser repensada quando lidamos com uma instituição
de ensino cujos alunos ainda consideram a memorização um instrumento
fundamental de aprendizagem. Isso porque a disciplina de História é essencial
para formarmos cidadãos críticos e conscientes do seu lugar e da sua
importância em sociedade. Com isso, ao longo dos séculos XX e XXI, inúmeros
governos afirmaram que a História é ideologizante e forma os alunos para se
“rebelarem” contra os parâmetros da sociedade. Tais acusações reforçam o
temor que as elites têm de tornar a população consciente de sua relevância
social.

Elison Paim [2007] declarou que a ditadura cívico-militar e os sujeitos que nela
se formaram consideram a História uma disciplina de segunda categoria – o
primeiro por uma questão estratégica e o segundo por falta de conhecimento,
somada ao comodismo. Beatriz dos Santos [2011] apontou que, após o golpe
de 1964, havia a preocupação do governo militar com a veiculação de
informações e à maneira como o ensino era realizado no Brasil. Essa postura
fomentava uma escolarização que legitimasse a postura do governo, o que

63
levou a promulgação da lei 5.692/71. Esta medida legal instituiu o ensino de
Estudos Sociais em substituição de História e Geografia no primeiro grau. Em
certa medida, existe um legado dessa formação mesmo nos dias de hoje, pois
muitos responsáveis exigem questionários e provas simplificadas, capazes de
serem realizadas por meio da memorização do material didático.

Todavia, como essas colocações se associam à temática deste texto? Se


considerarmos que grande parte dos nossos alunos do ensino infantil e dos
anos iniciais do ensino fundamental dependem da ajuda de adultos para
realizarem as suas tarefas escolares, então, os discentes estariam sujeitos a
uma geração dependente da memorização e dos materiais didáticos como
referenciais da “verdade histórica”. Maria Lúcia Aranha [2006] informou que o
governo militar pretendia condizer à lógica político-ideológica e as demandas
de mercado norte-americanas, associando a educação popular à formação
profissional, tida como necessária para produzir o trabalhador brasileiro.
Aranha manifestou que essa política foi a expressão de um ideal tecnicista, no
qual a educação passou a ser tratada como capital humano, devendo se
adequar às exigências de uma sociedade industrial e tecnológica. Para isso,
caso o Brasil pretendesse se inserir no mercado capitalista internacional, o
investimento na educação possibilitaria o crescimento econômico.

Esperava-se que o cidadão brasileiro fosse um reprodutor de tarefas, aceitando


as determinações impostas sem questionar e interessado em obter o mínimo
de recursos para legitimarem a sua identidade individual por meio da
capacidade de compra. Sendo assim, verificamos uma retomada do ideal
tecnicista e da preocupação em não tornar o estudante consciente de seu lugar
social. Essa postura faz com que o governo renove o seu compromisso com
um ensino marcado pela memória e a quantificação de informações, as quais
são absorvidas por uma via acrítica, necessária para a realização de provas e
vestibulares simplistas, que servem de índice estatístico para o governo
brasileiro no cenário internacional.

Essa conjuntura nos faz considerar o papel da História e dos professores


responsáveis por ministrarem essa disciplina na educação infantil e nos
primeiros anos do ensino fundamental. Ana Maria Monteiro, Adriana Ralejo e
Vicente Cicarino [2014] destacaram que embora a História tenha sido cerceada
em inúmeros momentos de nossa trajetória política, a sociedade e o Estado
não negam a importância desta disciplina para a formação de um cidadão
crítico e politicamente ativo, necessário diante das demandas sociais em que
vivemos. Assim, o professor não nega a sua “dupla” atribuição, pois tanto deve
ensinar conteúdos importantes do passado quanto deve articular a sua prática
em benefício de uma postura crítica por parte de seus alunos.

Portanto, cabe ao profissional da educação interagir com os seus alunos para


identificar as suas necessidades e limitações, considerando a faixa etária dos
discentes da educação infantil ou mesmo os anos iniciais do ensino
fundamental. A disciplina de História está longe de ser algo simples, visto que
lida com conceitos e múltiplas temporalidades vinculadas à inúmeras

64
espacialidades. Logo, não podemos esperar que essa complexidade seja
facilmente compreendida por alunos mais jovens. Com isso, Liliane Miranda e
Dirlei Schier [2016] destacaram que o professor deve se preocupar com a fase
em que se encontra o aluno ao ensinar qualquer conteúdo, respeitando-se a
capacidade, as limitações e a especificidade cultural, social e histórica do
discente.

Nesse sentido, Vanda Santos e Joila de Lima [2011] sugeriram que o ensino
fosse norteado pelo método dialógico, tendo como uma de suas
fundamentações básicas os pressupostos pedagógicos desenvolvidos por
Paulo Freire em sua “Pedagogia do Oprimido” [2005]. A perspectiva dialógica é
instrumento para que o aluno perceba o seu papel na produção do saber
histórico, além de desmistificar a ideia de que o professor e o material didático
são a matriz são os referenciais para se conhecer a História. Para que os
alunos se percebam como agentes ativos do conhecimento e se compreendam
como parte integrante da produção do conhecimento histórico, o método
dialógico se mostra fundamental. Em virtude dessa especificidade, as autoras
afirmam que a História nos anos iniciais deve aproximar os conteúdos da
realidade particular dos alunos, isto é, a História Local.

Para além da História Local, Miranda e Schier [2016] pontuaram que o


importante é que o aluno compreenda a sua participação no meio social em
que vive. É no ensino infantil que os discentes estão formando o seu caráter e
a sua personalidade, cabendo à História demonstrar e ensinar o respeito à
diversidade cultural e o direito de cada um ser o que é, fomentando a cidadania
ainda na tenra juventude. A História deve ser apresentada como um
conhecimento em constante transformação, a qual ocorre para além dos
“grandes heróis nacionais”. A lógica da interação e da sociabilidade podem ser
tratadas através questões, afinal, nenhum desses heróis agiram sozinhos em
suas realizações.

Ao retomarmos Monteiro, Ralejo e Cicarino [2014], estes apontam que o


conhecimento histórico é um produto original recorrentemente problematizado
e transformado, se atualizando nas circunstâncias do contexto. Se
considerarmos as especificidades dos alunos e as variáveis inerentes a cada
dia de aula, o profissional da educação deve ter em mente que esse aluno – na
condição de sujeito ativo do conhecimento e produtor de História – atuará como
o elemento principal do processo de ensino-aprendizagem. Independentemente
da idade dos alunos, estes serão capazes de manifestar o seu pensamento de
modo que percebam criticamente a realidade que os cerca. Dessa forma, ao
invés de simplificarem as relações interpessoais, os jovens saberão desde
cedo que a vida social não se resume às ideias estáticas, como muitas vezes o
ensino tradicional da História preconizou. Logo, o professor deve construir em
sua prática docente um processo de racionalização de sua atividade, cujas
etapas serão: a compreensão, a transformação, a instrução, a avaliação, a
reflexão e a nova compreensão. Essa ação racionalizada nos permite superar
os entraves de uma educação limitadora que toma o aluno como um
trabalhador nos moldes tayloristas.

65
Maria Aparecida Pereira e Clarice Bianchezzi [2015] expuseram que mesmo
diante dessas possibilidades e em virtude do cenário tecnológico em que
vivemos, dotado novas expectativas para o processo de ensino-aprendizagem,
a História no ensino infantil e nos anos iniciais do fundamental não é ministrada
por professores especialistas desta disciplina. As autoras afirmam que não
existe uma separação precisa entre as disciplinas, pois todas são ministradas
para uma turma inteira por um único professor. Pereira e Bianchezzi pontuam
que, nas décadas de 1980 e 1990, os profissionais da educação responsáveis
por estas etapas do ensino se utilizavam da História para cumprir a carga
horária esperada pelo calendário letivo, sem se preocuparem com o
desenvolvimento do potencial criativo dos alunos.

A situação exposta por Pereira e Bianchezzi é grave diante da especificidade


político-social que o Brasil vivencia. Embora as autoras afirmem que as suas
críticas se direcionaram às duas últimas décadas do século XX, esse cenário
perdura na grande maioria das escolas brasileiras. Isso porque, anualmente,
vemos crianças fantasiadas de indígenas, soldados ou coelhos, fazendo
cartazes com papel para comemorar o dia da árvore e/ou a primavera, ou
realizando projetos com material descartável para confeccionar modelos de
comidas típicas de diversas regiões do Brasil. O próprio Referencial Curricular
Nacional para a Educação Infantil, no seu terceiro volume, critica esse tipo de
posicionamento institucional pela falta de profundidade dos temas e pela
maneira descuidada como essa postura legitima estereótipos.

Se tomarmos o caso dos indígenas, por exemplo, o modo como são tratados
no ensino infantil está longe de ser crítico e problematizado. As crianças são
levadas a acreditar que os membros das sociedades indígenas são todos
daquele modo e saem as ruas de tanga e muitas penas. Os indígenas são
tratados como fósseis vivos, cuja cultura tenta sobreviver em um mundo
incapaz de absorvê-los em virtude dos avanços tecnológicos. Circe Bittencourt
[2014], bem como Pedro Paulo Funari e Ana Piñón [2016] enfatizaram que a
cultura indígena deve ser pensada pela lógica da transformação, afinal,
nenhuma sociedade e as suas práticas se mantêm idênticas ao longo do
tempo. Ao contrário, a relação das sociedades indígenas brasileiras entre si e
destas com os europeus e africanos fomentou a hibridização cultural. Portanto,
inúmeras práticas tidas como indígenas, africanas ou europeias são
estritamente brasileiras e incapazes de se pensarem como dotada de uma
cultura unilateral e/ou predominante.

Ainda nesse sentido, notamos a questão do dia do soldado que não somente
valoriza em demasia a função desta atividade, como também celebra a data de
nascimento de Luís Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias. O elogio aos
feitos de Caxias deve ser problematizado com os alunos dos primeiros anos do
ensino fundamental, assim como as ações dos Bandeirantes do período
colonial. Isso porque aquilo que é visto como heroico é encoberto pelo
maniqueísmo social oriundo da influência do cristianismo católico no Brasil.
Portanto, se existe um herói deverá existir um vilão/malfeitor a ser combatido e

66
dizimado, servindo exemplo moral aos alunos que interioriza essas ideias de
modo inquestionável.

Embora Duque de Caxias tenha contribuído com o projeto imperial em seus


esforços de apaziguar movimentos como a Balaiada e a Farroupilha, além de
participar da Guerra do Paraguai, a sua postura deve ser pensada em oposição
àquela de seus inimigos, pois para muitos dos envolvidos, o comandante foi
uma pessoa cruel e o responsável por massacrar inúmeros inocentes. Do
mesmo modo, os Bandeirantes podem ser pensados por essa mesma via,
afinal, embora sejam considerados desbravadores e os responsáveis pela
expansão das fronteiras do território colonial, estes perseguiram, escravizaram
e/ou mataram indígenas e negros fugitivos. Portanto, seria essa a postura de
um herói? Em que medida pessoas que se manifestam ou fogem de um
cativeiro são criminosos? Não seria essa uma maneira de interiorizar que o
Estado está sempre certo e de que os interesses das elites são legítimos diante
dos outros?

É aí que reside a importância da História para se formar as futuras gerações do


país. O fato de podermos desmistificar inúmeras percepções de mundo que,
até então foram interiorizadas como um acontecimento inquestionável,
demonstra a sua importância no meio educacional. Como explicitou Geraldo
Moreira, Hilbernon Coelho e Christiano dos Santos [2014] a História nesses
segmentos de ensino deve ser abordada junto aos temas de diversidade,
voltados para a socialização da criança. Na educação infantil a socialização e o
reconhecimento da diversidade é um instrumento para se desenvolver a
experiência educativa dos alunos, tanto para respeitarem as diferenças quanto
para reconhecerem a si próprios como sujeitos. Esse seria um dos
pressupostos para o desenvolvimento da cidadania dos alunos.

Segundo Moreira, Coelho e Santos [2014] os Parâmetros Curriculares


Nacionais de História e Geografia para o primeiro segmento do ensino
fundamental destacam que os conhecimentos destas disciplinas são
responsáveis pelo desenvolvimento da autonomia crítica dos alunos, desde
que os profissionais da educação se empenhem com um ensino crítico-
reflexivo. O documento citado destaca que a História é responsável por permitir
que o sujeito conquiste a sua cidadania, assumindo o direito de lutar pelo
espaço de construção da sua identidade. Em certa medida, as próprias atitudes
governamentais associadas aos PCNs e ao RCNEI evidenciam a preocupação
com o desenvolvimento de uma consciência crítico-reflexiva entre os alunos na
infância. Contudo, as demandas institucionais e político-sociais que se
apresentam no decorrer da trajetória de ensino minimizam essa
responsabilidade, em virtude da quantificação do conhecimento e da
necessidade de “notas” para avançar nos ciclos de aprendizado.

Pereira e Bianchezzi [2015] reforçam que o ensino de História lida com a


construção de identidades que se formam por meio da memória. Sendo assim,
diante de um ensino tradicional que torna a História um aglomerado de datas
comemorativas que desfilam no calendário de modo linear e anacrônico, cabe

67
ao professor um posicionamento efetivo para assegurar que os seus jovens
alunos sejam percebam esse cenário de modo mais ativo e crítico. Para que
isso ocorra, sugere as autoras, o Estado deve investir na formação continuada
dos professores do ensino infantil e dos anos iniciais do fundamental, pois
raramente são especializados em História. Os professores pedagogos, como
denominaram Pereira e Bianchezzi, precisam de um aprimoramento constante
para romper com os paradigmas de um ensino tradicionalista da História.

Imersos nessa premissa, as instituições de ensino poderiam promover cursos


eficazes, bem como seminários e workshops voltados para a troca de
informações, conhecimentos e métodos de ensino-aprendizagem com
profissionais de outros segmentos de ensino. No caso das escolas de grande
porte, dotadas de séries que vão da pré-escola ao ensino médio, o diálogo
entre os profissionais pode ser um instrumento que beneficie mutuamente
todos os envolvidos. Por outro lado, nas escolas públicas, poderia haver
reuniões e seminários que congregassem professores das escolas municipais
e estaduais de ensino, uma vez que cada ente da União é responsável, a
princípio, por um segmento educacional. O diálogo entre profissionais da
educação e a receptividade para lidar com outras ideias seria um meio de se
obter resultados mais adequados na formação dos jovens ao longo de sua vida
escolar. Contudo, lembramos que as atividades de ensino não podem estar
centradas na figura do professor e alheia às inovações tecnológicas que se
fazem presentes na vida dos alunos.

Sendo assim, dialogando com Vera Candau [2013], concluímos que o ensino
de História é tanto uma arma contra as demandas de um mundo globalizado
que tende a uniformizar pensamento e práticas, submetendo-as ao
pensamento político-econômico das elites; quanto pode ser um instrumento da
mudança que esperamos da sociedade em que vivemos. No entanto, para que
o conhecimento histórico alcance o potencial esperado, cabe aos professores
fomentarem a capacidade crítica dos alunos, já na educação infantil. Longe de
querermos que os alunos mais jovens pensem em conformidade à múltiplas
temporalidades, relacionando conceitos e contextos históricos variados,
devemos partir do sujeito, da família e do local para que os educandos
percebam como a sua atuação social integra a construção do conhecimento
histórico de sua sociedade, porém, em uma microescala.

A partir daí, sugerimos que os discentes pensem a diversidade como algo


“natural”, mesmo diante de um Brasil normatizador de práticas sociais. Isso
tende a fazer com que o “outro” deixe de ser uma alteridade, a qual nos ajuda a
compor a nossa identidade. A multiplicidade e a hibridização são conceitos que
integram a nossa percepção de mundo e na nossa construção identitária, seja
no interior de nosso bairro seja em nossa relação com pessoas de outros
estados ou países. Desmistificar ideias e percepções de mundo também é
importante para os alunos e professores que, por meio de um método
dialógico, constroem o conhecimento mutuamente. Entretanto, é importante
que a busca pelo conhecimento histórico não esteja restrita ao aluno, pois os

68
professores devem buscar aquilo que lhes falta de modo que possamos
promover a mudança no cenário político-social que vivenciamos.

Referências
Luis Filipe de Assumpção é doutor pelo PPGHC-UFRJ e mestre pelo PPGH-
UERJ, com pesquisas voltadas para a Antiguidade clássica grega. O autor
também desenvolve pesquisa sobre Ensino de História e o uso de mídias
alternativas. Atualmente, Assumpção realiza o pós-doutorado no PPGLC-UFRJ
sob a supervisão do Prof. Rainer Guggenberger e atua como professor-
mediador do curso de História pelo consórcio CEDERJ/UAB, polo Cantagalo.

ARANHA, M. L. de A. História da Educação e da Pedagogia: Geral e Brasil.


São Paulo: Moderna, 2006.
BITTENCOURT, C. F. Prefácio. In: MONTEIRO, A. M.; GABRIEL, T.; ARAUJO,
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2018.
CANDAU, V. M. Currículo, didática e formação de professores: uma teia de
ideias-força e perspectivas de futuro. In: OLIVEIRA, M. R.; PACHECO, J. A.
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2013 [versão e-book].
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 44ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2005.
FUNARI, P.P.; PIÑÓN, A. A temática indígena na sala de aula: subsídios
para os professores. São Paulo: Contexto, 2016.
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MONTEIRO, A. M.; RALEJO, A. S.; CICARINO, V. “Brasil: uma história
dinâmica”: desafios didáticos no ensino de história. In: MONTEIRO, A. M.;
GABRIEL, T. C.; ARAUJO, C. M. de; COSTA, W. da [Org.]. Pesquisa em
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MOREIRA, G. E.; COELHO, H. F.; SANTOS, C. R. dos. O ensino de história e
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69
PEREIRA, M. A. B.; BIANCHEZZI, C. O Ensino de História nos Anos Iniciais do
Ensino Fundamental: desafios e possibilidades em uma escola municipal de
Parintins/Amazonas. FRONTEIRAS – Revista Catarinense de História, v. 1, p.
87-102, 2015.

70
A DITADURA MILITAR BRASILEIRA NA PERSPECTIVA DAS HISTÓRIAS
EM QUADRINHOS: UM INVENTÁRIO SOBRE AS FORMAS DE NARRAR NA
CULTURA HISTÓRICA DO BRASIL

Marcelo Fronza

Introdução
Este texto pretende inventariar como as histórias em quadrinhos que abordam
a Ditadura Militar Brasileira de 1964-1985 permitem compreender as
dimensões estéticas, políticas e cognitivas da cultura histórica no Brasil que
expressa as estruturas de sentimento que os sujeitos têm sobre aquela época.
O trabalho é produzido a partir do grupo de professores historiadores
vinculados à Associação Ibero-americana de Pesquisadores da Educação
Histórica [AIPEHD], ao Laboratório de Pesquisa em História da Educação
[LAPEDUH/UFPR] e ao Grupo Pesquisador Educação Histórica: consciência
histórica e narrativas visuais [GPEDUH/UFMT], que fazem parte do Projeto de
pesquisa Por uma aprendizagem histórica humanista dos jovens estudantes de
ensino médio a partir das narrativas históricas visuais, que investiga a cognição
histórica situada a partir da Epistemologia da História [SCHMIDT, 2009].

Começa com a preocupação de entender os processos históricos ligados à


relação entre a estrutura de sentimentos [WILLIAMS, 2003] pertencentes à
cultura juvenil e expressa pela cultura histórica de uma comunidade [RÜSEN,
2016], a interculturalidade e o novo humanismo [RÜSEN, 2014], e o princípio
da “burdening history” proposto por Bodo von Borries [2018].

Neste texto pretendo construir uma tipologia a partir do inventário das


narrativas gráficas históricas que narram as experiências históricas
relacionadas à ditadura militar brasileira em 1964 a 1985. Esta pesquisa
tipológica será o embasamento para o desenvolvimento de ferramentas de
pesquisa como critérios metodológicos, a fim de, no futuro, investigar as ideias
históricas sobre ditadura militar brasileira presentes nas histórias em
quadrinhos produzidas por jovens estudantes de escolas públicas brasileiras.

Narrativas históricas gráficas como possibilidades para a investigação


das dimensões da cultura histórica brasileira
As histórias em quadrinhos que abordam a Ditadura Militar Brasileira de 1964-
1985 permitem compreender as dimensões estéticas, políticas e cognitivas da
cultura histórica no Brasil que expressa as estruturas de sentimento
[WILLIAMS, 2003] que os sujeitos têm sobre aquela época.

Para Bodo von Borries [2018], existem formas de se lidar com histórias difíceis.
Em suas investigações construiu uma tipologia das formas narrativas dos
fardos da história: 1] histórias hostis em um modelo de vingança e “rivalidade
de sangue” [inimizade herdada] vinculadas a estudos empíricos da cultura
histórica [autobiografias, romances, entrevistas, narrativas históricas]; 2] a
história dos vencedores e da perda/esquecimento dos perdedores [cinismo do
poder]; 3] a história oculta e subalterna dos perdedores e a esperança por uma

71
rememoração histórica [heroísmo da rememoração]; 4] o abandono e
esquecimento da história hostil devido à irrelevância para a vida prática
[prioridade pela sobrevivência em momentos violentos]. Essas histórias foram
geradas pelo sofrimento e não permitem alcançar uma reconciliação histórica.
Alcançar uma reconciliação entre antigos inimigos [vítimas e algozes] é uma
experiência histórica de um movimento em direção de uns em relação aos
outros e na busca por continuar a seguir o mesmo caminho juntos. O caminho
de tornar os humanos mais humanos [BORRIES, 2018, p. 33-34].

É possível desenvolver estratégias mentais de reconciliação histórica por meio


das narrativas históricas, dentre elas as histórias em quadrinhos. Entre os
primeiros passos dessa reconciliação está a necessidade de abolir as
falsificações e mitos tendenciosos, distanciando-se do passado de sofrimento e
rivalidade, sem, no entanto, esquecê-lo. Dentre os passos intermediários está o
movimento de uns em direção aos outros, buscando caminhar juntos para
construir as chances e condições para um futuro comum. Por fim, apostar em
passos avançados de mutualidade, construindo histórias novas, plausíveis e
compatíveis, mesmo que ao menos parcialmente comuns, desenvolvendo, com
isso, o reconhecimento dos “outros” e a aceitação e internalização mútua na
própria história [BORRIES, 2018, p. 40-42].

Defendo que a categoria de estrutura de sentimento desenvolvida por


Raymond Williams [2003] pode ser articulada com as formas de narrar o fardo
da história e as estratégias mentais de reconciliação histórica investigadas por
Bodo von Borries [2018] assim como com a categoria de cultura histórica
proposta por Jörn Rüsen [2016]. Isto porque as histórias em quadrinhos são
artefatos da cultura histórica que expressam as estruturas de sentimento de
uma comunidade relativa ao seu passado. A estrutura de sentimento pode ser
descrita como uma cultura relacional, ou seja, a cultura comum vivida de uma
época. É uma “estrutura” que “atua nas partes mais delicadas e menos
tangíveis” da atividade humana. Os artefatos culturais como as histórias em
quadrinhos são expressões dessa estrutura de sentimento porque incluem
“enfoques e tons característicos da argumentação” pois são acessíveis à
comunicação documentada de onde se extrai o “sentido vital real” na
comunidade profunda que faz possível a comunicação [WILLIAMS, 2003, p. 57-
60].

Com isso, ao investigar as narrativas históricas gráficas sobre a ditadura militar


brasileira, os embates presentes na dimensão estética das histórias em
quadrinhos podem revelar a estrutura narrativa na concepção básica de que
alguém conta a alguém uma história sobre uma experiência do passado
interpretada no presente e que cria expectativas de futuro.

Uma tipologia das formas de narrar as histórias em quadrinhos sobre a


Ditadura Militar Brasileira
Nesta investigação pretendo realcionar as categorias relativas às formas de
narrar as histórias difíceis e as estratégias mentais de reconciliação histórica
[BORRIES, 2018] e as estruturas de sentimento [WILLIAMS, 2003] expressas

72
pelas histórias em quadrinhos sobre a Ditadura Militar Brasileira. Isso,
inventariando como a experiência histórica da ditadura militar está demarcada
na cultura histórica brasileira a partir desses artefatos culturais.

Neste inventário encontrei dois tipos estruturais nas narrativas históricas


gráficas sobre a Ditadura Militar Brasileira de 1964-1985, levando em conta que
optei por abordar somente histórias em quadrinhos não-ficcionais: a] as
histórias em quadrinhos que despersonalizam as narrativas históricas sobre a
Ditadura Militar Brasileira, a partir da perspectiva da transposição didática; b]
Histórias em quadrinhos que personalizam as narrativas históricas sobre a
Ditadura Militar Brasileira, a partir de uma geração de sentido histórico. Essas
formas de narrar as histórias difíceis e as possíveis estratégias de reconciliação
histórica nas histórias em quadrinhos expressam diferentes estruturas de
sentimento na cultura histórica brasileira.

Histórias em quadrinhos que despersonalizam as narrativas históricas


sobre a Ditadura Militar Brasileira [transposição didática]
Esse tipo de histórias em quadrinhos que despersonalizam as narrativas
históricas a partir da transposição didática é caracterizado pela desvalorização
dos sujeitos que atuam historicamente, pois são enquadrados ou didatizados
por meio de uma narrativa anônima e generalizadora. A transposição didática
se fundamenta epistemologicamente, conforme afirmação do matemático
francês Yves Chevallard [2000], a partir da pedagogia dos objetivos e se
estrutura em estratégias didáticas como a dessincretização, a
despersonalização, a programabilidade e a publicidade do saber, além do
controle social do conhecimento típicos dessa epistemologia. A maioria dessas
estratégias didáticas [dessincretização, a despersonalização e a publicidade do
saber] é verificável nesse tipo despersonalizador de histórias em quadrinhos
sobre a ditatuda militar brasileira. Em geral, essas narrativas aparecem sob a
forma de materiais didáticos ou como obras de divulgação histórica de caráter
didático. Aqui focarei nesse último tipo.

A narrativa histórica gráfica O golpe de 64, de Oscar Pilagallo e Rafael Rocha


[2014] despersonaliza os sujeitos históricos em prol de uma grande narrativa
fragmentada e dessincretizada.

73
FIGURA 1 — Repressão Militar e Guerrilha Urbana. Fonte: PILAGALLO; ROCHA,
2014, p. 108.
As imagens dos requadros da Figura 1 não apresentam uma história dos
sujeitos em ação, mas as ações dos sujeitos estão representadas em uma
história determinista baseada em causas e consequências inexoráveis, e
conforme apresentado nos requadros, desconexas.

FIGURA 2 — O Assassinato de Carlos Lamarca Fonte: PILAGALLO & ROCHA, 2014,


p. 109.

74
A estética usada para narrar nessas duas páginas [Figuras 1 e 2], seja por
meio da tortura, da ação dos grupos guerrilheiros urbanos, seja pela
apresentação canônica da imagem do assassinado de Carlos Lamarca, é
acompanhada pela relativização histórica ao apresentar a vitória da seleção
brasileira na Copa do Mundo do México de 1970. Percebe-se, uma
espetacularização da narrativa histórica por meio da explicitação da violência
da cultura do espetáculo que se expressa por uma forma narrativa pautada em
histórias hostis em um modelo de vingança [BORRIES, 2018]. Essa forma
narrativa de história hostil voltada para a vingança expressa uma estrutrura de
sentimento vinculada a uma memória de sofrimento pautada na brutalidade da
repressão do Estado autoritário brasileiro. É também reforçada pelo uso das
estratégias estéticas próprias aos quadrinhos de horror da década de 1970.
Essa espetacularização estética da violência do Estado representada em
imagens desconexas e aterrorizantes do sofrimento de suas vítimas
enfraquece o teor denunciatório que essa narrativa gráfica pretendia
comunicar.

Busco agora inventariar formas de narrar histórias difíceis que encontrem


estratégias de reconciliação histórica em histórias em quadrinhos que
dialoguem com a possibilidade de revelar estruturas de sentimento que se
fundamentem numa dissidência humana radical pautada no novo humanismo
defendido por Jörn Rüsen.

Histórias em quadrinhos que personalizam as narrativas históricas sobre


a Ditadura Militar Brasileira [geração de sentido histórico]
Esse tipo de quadrinho que personaliza narrativas históricas é caracterizado
pela humanização dos sujeitos que atuam historicamente por uma narrativa
que dá sentido de orientação temporal à história. Este sentido de orientação
temporal é fundamentado na formação histórica relacionada às representações
de continuidade significativas [interpretações históricas], criando perspectivas
de ação para o futuro a partir da narrativa histórica [RÜSEN, 2014].

Nesse sentido, a formação histórica, enquanto práxis é organizada na


realização objetiva da existência na luta social, na defesa das próprias
convicções que determinam a subjetividade e a relação com os outros sujeitos
e com a natureza. Essas convicções devem ser ponderadas pela
argumentação estruturada pela validade das narrativas históricas, permitindo,
assim, a expressão de um sentido formativo emancipador [RÜSEN, 2007]. A
geração de sentido histórico presente em certas histórias em quadrinhos
expressa uma estrutura de sentimentos ligada a uma dissidência humana
radical [WILLIAMS, 2003]. Nesse inventário constatei que este tipo de narrativa
histórica gráfica são artefatos da cultura histórica que dialogam com as
[auto]biografias.

Uma biografia em quadrinhos que aborda o contexto da Ditadura Militar


Brasileira à luz da história do movimento musical mineiro denominado Clube da
Esquina é evidência da existência de estruturas de sentimento alternativas
voltadas para uma geração de sentido histórico. Na obra Histórias do Clube da

75
Esquina, os quadrinistas Laudo Ferreira e Osmar Viñole [2011] apresentam
como se dava a relação dos músicos no enfrentamento da censura.

FIGURA 3 — A Censura ao Álbum “Milagre Dos Peixes”. Fonte: FERREIRA;


VIÑOLE, 2011, p. 39.

A figura 3 apresenta Márcio Borges narrando a censura sobre a música “Hoje é


dia de El Rey” do album “Milagre dos Peixes” produzido em 1973 cuja letra
censurada foi composta por Milton Nascimento e Márcio Borges. O compositor
narra que Milton Nascimento foi intimado a comparecer ao DOPS
[Departamento de Ordem Política e Social] para prestar “esclarecimentos”.
Como resultado, ao invés de abandonar a música, Milton Nascimento a grava
sem letra como ato de resistência.

76
FIGURA 4 — A Transformação da Obra Musical Em Resistência. Fonte: FERREIRA;
VIÑOLE, 2011, p. 40.

Márcio Borges narra que, a partir da resistência à censura, o processo da


construção de do álbum se transformou, pois grandes artistas passaram a
participar da gravação do mesmo, fazendo com que “Milagres dos Peixes” se
tornasse uma das obras primas musicais da cultura brasileira. Essa breve
narrativa tem um caráter genético, pois apresenta uma concepção de geração
de sentido histórico pautada na transformação [RÜSEN, 2007]: do medo
produzido pela censura à liberdade dissidente de criar uma obra que expressa
uma estrutura de sentimento ligada ao significado histórico universal da união
do ser humano com a natureza e a sua história. Parte-se de uma forma de
narrar uma história difícil onde sujeitos narram uma história oculta que busca
uma rememoração sobre a memória da censura para uma estratégia de
reconciliação histórica [BORRIES, 2018] com a sociedade brasileira e seu
passado apresentada nos requadros da figura 5 que mobiliza as imagens da
cantora afro-brasileira Clementina de Jesus cantando “Escravos de Jó” ou do
músico afro-brasileiro Naná Vasconcelos, que introduziu os ritmos e
sonoridades africanos nas composições de Milton Nascimento. Aqui, a
dimensão estética da cultura histórica brasileira expressa uma estrutura de
sentimento alternativa e humanista [WILLIAMS, 2003].

Outro exemplo de histórias em quadrinhos com personagens históricos sobre a


ditadura militar brasileira por meio de [auto]biografias está presente na
narrativa historiográfica em quadrinhos Herói de Guerra, na graphic novel
Notas de um tempo silenciado, de autoria de Robson Vilaba [2015]. Nela é
narrada a biografia de um líder guerrilheiro afro-brasileiro, Osvaldo Orlando da
Costa, alcunhado de Osvaldão, que lutou na Guerrilha do Araguaia, a mais
violenta das batalhas contra as forças armadas durante a ditadura militar. Era

77
um guerrilheiro bem integrado com as comunidades camponesas da região do
Araguaia, como é representado na figura 6 por meio das imagens da história
em quadrinhos.

FIGURA 5 — Osvaldão, o Inquebrável: Um Guerrilheiro Negro do Araguaia. Fonte:


VILALBA, 2015, p. 45.

Devido à integração com a comunidade trabalhadora camponesa, muitas


lendas giravam em torno das lutas de Osvaldão contra as expedições do
exército brasileiro. Ao sobreviver a duas expedições militares altamente
equipadas, a população local afirmava que esse personagem tinha o corpo
fechado [as balas não o atingiam]. Segundo as documentações existentes, os
militares o assassinaram somente numa terceira expedição. No entanto,
mesmo assim, muitos camponeses locais informam até hoje que ele se
transformou num pássaro e voou.

78
FIGURA 6 — Osvaldão, o Inquebrável: Um Guerrilheiro Negro do Araguaia. Fonte:
VILALBA, 2015, p. 49.

Essa narrativa historiográfica de um guerrilheiro negro, mesmo baseada em


farta documentação escrita e oral, é também uma história oculta que busca
uma esperança de rememoração e é pautada numa memória de heroísmo, que
garante a diversidade de tradições contra-hegemônicas, mas não atingem uma
reconciliação histórica com o passado [BORRIES, 2018, p. 33-42]. Isto porque
ainda hoje a guerrilha rural do Araguaia, assim como a guerrilha do Vale do
Ribeira, é um tabu para a historiografia brasileira e mais ainda para a
historiografia militar. No entanto, a história em quadrinhos está imbuída de uma
estrutura de sentimento alternativa, pois narra uma comunhão de valores de
solidariedade mútua e cooperação que esse guerrilheiro tinha com a classe
trabalhadora camponesa do Brasil.

No decorrer deste inventário encontrei uma narrativa histórica gráfica que


apresenta uma perspectiva de reconciliação histórica com o passado. Ao
apresentar personagens históricas que enfrentaram e sofreram a Ditadura
Militar Brasileira, a narrativa é uma divulgação didática da luta por reparações
das injustiças cometidas no período. Composta pelas estudantes da
Universidade Federal Fluminense, Joana D’Arc Fernandes Ferraz, Elaine de
Almeida Bortone e Diana Helene [2012], a história autobiográfica em
quadrinhos Brasil: ditadura militar: um livro para os que nasceram bem depois...
é uma rememoração que expressa uma estrutura de sentimentos que busca
reconciliar o sofrimento da perda durante o Estado de exceção.

79
Uma das autoras, ao narrar o momento da infância em que perguntou para a
sua mãe onde estava o pai, apresenta, nas imagens, sua mãe contando a
história de lutas que tiveram contra a ditadura. Rememora os diversos
momentos em que ela e seu marido lutaram contra os poderes constituídos.

FIGURA 6 — A Menina Pergunta à Mãe onde está seu Pai. Fonte: FERRAZ;
BORTONE; HELENE, 2012, p. 4.

Um dos momentos mais marcantes foi quando seu pai e sua mãe se
vincularam aos movimentos guerrilheiros de resistência à ditadura, pois
optaram pela luta armada ao invés das formas pacíficas de resistência. Foi
nesse momento da luta que seu pai desapareceu durante um processo violento
de repressão militar.

FIGURA 7 — A Luta Armada pelos Movimentos de Guerrilha. Fonte: FERRAZ,


BORTONE & HELENE, 2012, p. 19.

80
Como forma de resistência, como é evidenciado na figura 8, a filha que narra a
história de sua mãe, representa-se lutando em favor da lei dos desaparecidos
políticos que tem o objetivo de recuperar informações sobre as pessoas
assassinadas pela ditadura militar brasileira.

FIGURA 8 — Projeto de Lei dos Desaparecidos Políticos [Lei 111/1991]. Fonte:


FERRAZ; BORTONE; HELENE, 2012, p. 22.

Essa é, portanto, uma narrativa histórica que persegue os primeiros passos e


os passos intermediários de uma reconciliação histórica com o passado de
violência e sofrimento [BORRIES, 2018]. Isto porque busca abolir as
falsificações históricas e os mitos tendenciosos construídos tanto pela
esquerda quanto pela direita quando se lembra do período de exceção. A
narrativa busca um distanciamento em relação ao passado, mas não seu
esquecimento. Mas também foram dados os passos intermediários, pois essa
narrativa [auto]biográfica procura uma direção em relação aos outros na busca
de um caminhar juntos ao lutar para que todos os que sofreram com a perda de
parentes e amigos durante a ditadura tivessem o direito de saber o que ocorreu
naquele passado ainda oculto [essa constatação é muito significativa, pois
mesmo em 2020 a maioria absoluta dos documentos produzidos e
armazenados pelas Forças Armadas Brasileiras sobre a repressão militar e
desaparecimentos políticos ainda não foi divulgada, mesmo sob pressão da
Comissão Nacional da Verdade [CNV], que de 2012 a 2014 investigou o
processo de violência política realizado pela repressão da Ditadura Militar
Brasileira.]. Essa narrativa histórica gráfica expressa uma estrutura de
sentimento de dissidência humana radical [WILLIAMS, 2003] por meio de uma
busca das condições da geração de sentido histórico para um futuro comum
entre os brasileiros.

Considerações finais
Nessa investigação inventariei dois tipos estruturais nas narrativas históricas
gráficas sobre a Ditadura Militar Brasileira. Por um lado, as histórias em

81
quadrinhos que despersonalizam as narrativas históricas sobre a Ditadura
Militar Brasileira a partir da perspectiva da transposição didática, por outro, as
histórias em quadrinhos que personalizam as narrativas históricas sobre a
Ditadura Militar Brasileira a partir de uma geração de sentido histórico.

É perceptível que as histórias em quadrinhos que despersonalizam as


narrativas por meio da transposição didática, seja na forma de livros didáticos
de história, seja na dos quadrinhos de divulgação histórica, narram por meio de
uma espetacularização da violência contra os guerrilheiros na ditadura militar
brasileira. A característica dessa despersonalização está no fato de que as
histórias dos personagens históricos é espetacularizado porque o contexto
histórico é esteticamente dimensionado como uma estrutura determinista. A
transposição didática de despersonalização e de dessincretização foi a
concepção de ensino de história que menos apareceu neste inventário de
histórias em quadrinhos sobre a Ditadura Militar Brasileira.

No que diz respeito às histórias em quadrinhos que despersonalizam as formas


narrativas das histórias difíceis evidenciei que existem duas estruturas de
sentimento predominantes. Uma pautada numa memória de repressão oficial e
brutal por meio da violência estatal que, nessas históras em quadrinhos,
aparece seja enquanto aceitação desse estado de coisas seja como denúncia
em relação a ele. Outra estrutura de sentimento, esta de caráter social
alternativo, é a memória de vitimização dos sujeitos que sofreram essa
violência a qual é marcada pelas imagens espetacularizadas das torturas e
assassinatos que o Estado cometeu contra seus opositores.

Já as histórias em quadrinhos que personalizam as narrativas históricas sobre


a Ditadura Militar Brasileira a partir da geração do sentido histórico têm um
carárer [auto]biográfico e permitem afirmar que as dimensões estéticas,
cognitivas e políticas/éticas da cultura histórica mobilizam a geração do sentido
temporal através de histórias de personagens históricos fortes carregados de
experiências históricas significativas.

Como síntese do tipo referente às histórias em quadrinhos que personalizam


as narrativas históricas sobre a Ditadura Militar Brasileira por meio da geração
de sentido histórico é possível constatar que predomina uma forma de narrar
as histórias difíceis desse período por meio da memória histórica dos
subalternos que constrói uma história de heroísmo da resistência — artística,
estudantil e trabalhadora — contra a violência política do autoritarismo
brasileiro [BORRIES, 2018]. Mesmo reconhecendo a existência de uma
estrutura de sentimento tradicional pautada num modelo de vingança e
brutalidade dos adeptos do Estado ditatorial, essas narrativas [auto]biográficas
em quadrinhos expressam uma estrutura de sentimento alternativa
fundamentada em modelos de cooperação mútua de um caráter social de
dissidência humana radical ligada aos trabalhadores, estudantes e
subalternizados [WILLIAMS, 2003].

82
Por conta disso, novas possibilidades se abrem: a investigação de histórias em
quadrinhos sobre a ditadura militar brasileira produzidas por estudantes de
escolas públicas neste em Mato Grosso e em outras regiões do Brasil e a
construção de uma narrativa histórica gráfica a partir dessas formas de narrar a
história desse período conflitivo.

Finalizo com uma passagem da romancista Mary Ann Evans, também


conhecida como George Eliot, citada por Raymond Williams [2003, p. 75] para
descrever a estrutura de sentimento que existia durante os conflitos e
revoluções de 1848

Chegará o dia em que haverá um templo de mármore branco, quando doces incensos
e hinos surgirão na memória de todo homem e mulher que teve um profundo Ahnung,
um pressentimento, um anseio ou uma visão clara da época em que este miserável
reinado de Mammon terminará — quando os homens deixarem de ser “como peixes
do mar” — a sociedade não mais será como uma face onde metade da qual — o lado
da crença, de uma fé insincera — é justa e divina, e a outra metade — o lado dos
feitos e das instituições — com uma pele enrugada, dura e velha, franzida no desdém
de um Mefistófeles.

Em 1970, uma história em quadrinhos expressa uma estrutura de sentimento


semelhante, mas diversa. Denominada “Napalm” contra plantação de
maconha, nela, Henfil divulga que bombas napalm estavam sendo lançadas
contra a resistência guerrilheira à ditadura militar no Vale do Ribeira e contra os
indígenas da região norte do Brasil, que também resistiam ao regime de
exceção.

FIGURA 9 — “Napalm” contra Plantação de Maconha. Fonte: HENFIL, 1970.

Essas imagens alternativas [SALIBA, 1999] bem humoradas remetem às


informações que eram divulgadas pela imprensa censurada no ano de 1970,
pois nelas apareciam falsas notícias relativas a ataques militares a plantações

83
ilegais de maconha com esse tipo de bombas quando, na verdade, ocorriam
massacres militarizados contra jovens resistentes e indígenas. As histórias em
quadrinhos de Henfil são apresentadas, como era o estilo desse quadrinista,
enquanto uma forma narrativa voltada a um modelo de vingança direcionado à
rememoração das lutas dos subalternizados, no entanto, expressa uma
estrutura de sentimento pautada numa dissidência humana radical
fundamentada na solidariedade de uma humanidade igualitária.

Referências
Marcelo Fronza é coordenador do Grupo Pesquisador Educação Histórica:
Consciência histórica e narrativas visuais [GPEDUH-UFMT], Universidade
Federal do Mato Grosso, Cuiabá, Brasil e professor pesquisador no Laboratório
de Pesquisa em Educação Histórica [LAPEDUH-UFPR], Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, Brasil.

BORRIES, Bodo von. Lidando com histórias difíceis. In: SCHMIDT, Maria
Auxiliadora; FRONZA, Marcelo; NECHI, Lucas Pydd. [orgs]. Jovens e
consciência histórica. Curitiba: W.A. Editores, 2018, p. 33-54.
FERRAZ, Joana D’Arc Fernandes; BORTONE, Elaine de Almeida; HELENE,
Diana. Brasil: ditadura militar: um livro para os que nasceram bem depois... Rio
de Janeiro: Hama/FAPERJ, 2012.
FERREIRA, Laudo; VIÑOLE, Omar. Histórias do Clube da Esquina. São
Paulo: Devir, 2011.
HENFIL. “Napalm” contra plantação de maconha. Pública: Agência de
reportagem e jornalismo investigativa.1970. Disponível em:
<http://apublica.org/2014/08/napalm-no-vale-do-ribeira/ >Acesso em: 29 out.
2018
PILAGALLO, Oscar; ROCHA, Rafael Campos. Começa a Ditadura. O golpe de
64. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
RÜSEN, Jörn. História viva: Teoria da História III: formas e funções do
conhecimento histórico. Brasília: UnB, 2007.
. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis:
Vozes, 2014.
. O que é a cultura histórica? Reflexões sobre uma nova maneira de
abordar a História. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; MARTINS, Estevão
Chaves de Rezende [Orgs.]. Contribuição para uma Teoria da Didática da
História. Curitiba: W. A. Editores, 2016, p. 53-91.
SALIBA, Elias Thomé. As imagens canônicas e o Ensino de História. In:
SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene Rosa. III Encontro
Perspectivas do Ensino de História. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1999, p.
434-452.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Cognição histórica situada: que aprendizagem
histórica é essa? In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel. [Orgs.].
Aprender história: perspectivas da educação histórica. Ijuí: Editora UNIJUÍ,
2009, p. 21-51.
VILALBA, Robson. Herói de guerra. In: Notas de um tempo silenciado. Porto
Alegre: Besouro Box, 2015.
WILLIAMS, Raymond. La larga revolución. Buenos Aires: Nueva Visión, 2003.

84
A HISTÓRIA ANTIGA GREGA NA CONTEMPORANEIDADE: O ABISMO
ENTRE A PESQUISA E O LIVRO DIDÁTICO

Márcia Cristina Lacerda Ribeiro

Os avanços da História Antiga Grega


Em tempos recentes acompanhamos, apreensivos, os rumos da discussão em
torno da construção de uma Base Nacional Comum Curricular [BNCC] do curso
de História. A BNCC inicialmente cogitava de um currículo eminentemente
nacionalista, suprimindo por completo a História Antiga e Medieval da
Educação Básica, o que implicaria reformulação também nos cursos superiores
de licenciatura e bacharelado em História. Pesquisadores, estudiosos,
professores de diversas áreas de todo País se lançaram em caloroso debate,
argumentando quão empobrecedor seria para os estudantes brasileiros uma
história centrada na Nação, que não fosse capaz de acessar a universalidade.
Ponderavam, então, como tal proposta estava na contramão da própria política
educacional brasileira, que assegura programas de internacionalização, como o
Ciência sem fronteiras do CNPq e a Escola de Altos Estudos da Capes.

A proposta reducionista da BNCC perdeu fôlego e espaço, mas a ideia da


redução da carga horária do Ensino de Europa permaneceu vívida em algumas
mentes. Certamente muito se deve ao tão propalado fantasma do
eurocentrismo, que já não mais tem razão de ser, nem para os estudos da
Antiguidade e nem para os tempos modernos frente aos debates
historiográficos mais recentes. Não há mais espaço para uma história da
Antiguidade e uma história da Europa que não estejam centradas no tempo
presente. A pesquisa em História Antiga tem se expandido por todo País,
focalizando questões absolutamente atuais, com amplo viés em uma história
comparada. Identidade, gênero, fronteira, mobilidade e globalização constituem
temáticas que estão na ordem do dia dessas áreas de estudo. Já não se
concebe, por exemplo, falar de uma Grécia antiga fechada em si mesma, mas
aberta aos múltiplos contatos com diferentes povos no Mediterrâneo – fenícios,
etruscos, norte-africanos e tantos outros. Fala-se em redes, globalização,
conectividade, culturas híbridas no mundo antigo e o que tudo isso pode nos
dizer sobre a nossa atualidade, a nossa identidade - brasileira. Termos como
helenização e romanização ficaram no passado. Povos que não têm voz, por
meio da documentação escrita, levantam-se através das lentes da Arqueologia,
que a cada dia emprega tecnologia mais avançada, desnudando um universo
até então desconhecido. De cidades submersas [Pavlopetri], ou a cidade de
Tenea, descoberta em 2019 por Eleni Korka, à reconstituição de rostos, à
identificação de doenças e até de hábitos alimentares. Sem dúvida, uma
história fantástica que se avoluma e se abre a novas perspectivas e a novos
modelos interpretativos.

Já há algum tempo o Brasil assiste aos avanços da pesquisa em História


Antiga. Ainda há grande concentração das pós-graduações nas regiões sul e
sudeste, mas com avanços significativos por todo o País. Resultado disso é
uma grande quantidade de revistas especializadas na área, de congressos,

85
livros e artigos de toda sorte. Cito aqui também a iniciativa louvável do
Laboratório de Estudos sobre a Cidade Antiga, o Labeca, situado no Museu de
Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. O Laboratório criou um
banco de dados, o Nausitoo, com o objetivo de divulgar maior conhecimento
sobre a pólis grega, destinado tanto a professores da Educação Básica quanto
a pesquisadores, e outros interessados. A partir do mapa do Mediterrâneo, o
visitante pode clicar sobre cada um dos balões, que representam cidades
gregas antigas. Até agora foram catalogadas cerca de duzentas cidades, mas o
trabalho continua. Ao clicar abre-se um verbete que dá acesso a informações e
imagens sobre a cidade. Na parte inferior do lado direito avista-se um
bonequinho, é possível levá-lo a qualquer das cidades e ele mostrará o sítio
arqueológico nos dias de hoje. [http://labeca.mae.usp.br/pt-br/city/].

Figura 1: Captura de tela do Nausitoo. Fonte: Site do Laboratório de Estudos sobre a


Cidade Antiga. Disponível em http://labeca.mae.usp.br/pt-br/city/, acesso em 20 de
ago. 2020.

Os limites da História Antiga grega impostos pelo livro didático


Embora assistamos a um esforço, ainda tímido, para melhoria do ensino de
História na Educação Básica, a exemplo de um conjunto de programas, alguns
inclusive com bolsas para alunos e professores, o livro didático continua sendo
o grande mediador do processo de ensino-aprendizagem, e pode ser uma
importante e útil ferramenta ou um problema considerável. Há vinte e cinco
anos eu encerrava a graduação em História com um trabalho monográfico
intitulado “A influência da renovação dos estudos de História da Antiguidade
Clássica nos livros didáticos de primeiro e segundo graus”. Foram elencados
quatro temas nos quais era mais visível e consensual a renovação da
perspectiva historiográfica [o cotidiano, o escravo, o mito e a pólis grega]. A
partir de um levantamento em escolas públicas da cidade de Vitória da
Conquista, na Bahia, onde a pesquisa foi realizada, foram selecionados oito

86
livros, variando entre publicações de 1988 a 1993, dos Ensinos Fundamental e
Médio. Destaco que tais livros eram amplamente utilizados em todo o País.

Vinte e cinco ano depois, através de um projeto realizado na Universidade do


Estado da Bahia, no campus da cidade de Caetité, Bahia, onde leciono História
Antiga na graduação em História, retornei ao livro didático. Desta feita, meu
interesse é verificar apenas um dos quatro temas analisados no passado, a
cidade grega. Na sequência pretendo comparar em que medida o livro didático
sofreu, ou não, alteração.

A representação da pólis grega no livro didático: síntese de alguns


problemas a partir da análise de 1995
Resumo abaixo alguns tópicos importantes que perpassaram a análise dos
livros didáticos analisados em 1995:

• O eixo discursivo sobre o mundo grego é a cidade. Alguns autores optam por
utilizar o termo pólis ou cidade-estado. Em apenas uma obra vemos o tópico
‘pólis ou cidade-estado’. Nenhum autor conceitua qualquer dos termos, mas
observa-se em alguns a preocupação em situar o nascimento da pólis ‘a partir
da desagregação do genos, como um lugar de refúgio em momento de perigo’.
• A maioria das cidades evoluiu lentamente para governos democráticos. Apenas
Esparta e algumas outras não mudaram, continuando a possuir governos
oligárquicos.
• As cidades eram autônomas, e passaram, no geral por três fases da evolução
política: monarquia, oligarquia e democracia; depois chega-se ao Período
Helenístico e ao ocaso [‘fim dos gregos’?].
• Muitos autores repetiram a fórmula: a Grécia teve diversas cidades-Estado,
porém as mais importantes foram Esparta e Atenas.
• Um dos autores chega a afirmar que em certo sentido todas as cidades gregas
foram democráticas, se levada em consideração a noção de cidadania que elas
desenvolveram.

É preciso considerar algumas questões importantes no contexto da produção


dessa pesquisa. O programa Nacional do Livro Didático havia sido
implementado pelo Governo Brasileiro há poucos anos, em 1985. Foi a partir
de meados dos anos 90, conforme Selva Guimarães [2005], que o Ministério da
Educação e Cultura [MEC] passou a distribuir gratuitamente livros didáticos
para os alunos do Ensino Fundamental. Apenas a partir de 1994 surgiram
preocupações mais acentuadas com uma educação básica de qualidade,
fazendo emergir daí o Guia do Livro Didático. Nossos livros, portanto, não
foram objetos de análise da comissão de parecerista dos livros didáticos.

Desde então, O Governo Brasileiro tem se empenhado na compra, distribuição


e melhoria do material didático distribuído gratuitamente nas escolas públicas
brasileiras. Bem verdade, assistimos a uma onda de retrocessos, espero que
passageira, por parte de uma pequena ala, desejosa de fazer retornar ao livro
didático e aos bancos escolares temas há muito tempo deles extirpados.
Discussão absolutamente estranha e mal recebida nos círculos dos estudiosos
e pensadores sérios da Educação Brasileira.

87
A representação da cidade grega nos livros didáticos hoje
O livro que tomamos para análise é o principal manual didático utilizado pelas
escolas do município de Caetité, Bahia. Faz parte da coleção voltada para o
Ensino Médio “Contato história”, de autoria de Marco César Pellegrini, Adriana,
Machado Dias e Keila Grinberg, primeira edição de 2016 [PELLEGRINI et al,
2016]. Nosso foco é apenas o primeiro volume, que trata ao longo de doze
unidades da ‘origem do ser humano’ aos ‘Reinos e impérios da África’,
abrangendo, portanto, até o período que convencionamos chamar de Idade
Média.

O sexto capítulo, “os antigos gregos”, é dedicado à história da Grécia.


Brevemente, no tópico os “primeiros povoadores” os autores mencionam os
primeiros habitantes da Grécia, tangenciam mais precisamente Cnossos, em
Creta, por volta de 3000 a.C. Na sequência falam sobre a instalação dos
aqueus na Península balcânica e destacam a importância de Micenas. A breve
passagem tem como objetivo adentrar no eixo condutor do livro – a história das
cidades.

No tópico seguinte, “o mundo helênico”, os autores afirmam que “durante o


período Clássico, as [cidades] que mais se sobressaíram foram Esparta e
Atenas. Outras cidades helênicas, no entanto, também alcançaram grande
desenvolvimento e destacaram-se em diferentes regiões da Grécia” [p. 119].
Os autores não conceituam o termo cidade-Estado, estranho na atualidade, o
que gera um problema importante. Como o estudante irá entender, em sua
primeira leitura, sem a ajuda do professor, qual o significado do termo? O
tópico em que a discussão está inserida é “o mundo helênico”, algo que dá a
entender uma unidade. Ao não explicar o significado de cidades-Estado
independentes, isto é, autônomas umas das outras, com regimes políticos
[tirania, oligarquia, diarquia, democracia etc.], calendários, moedas, e estilo de
vida diferentes, o aluno pode entender os antigos gregos como um país com
suas várias cidades, algo muito mais próximo de sua realidade. E o professor
daria conta de explicar para os alunos a contento, vez que não há informações
adicionais nas “orientações para o professor?”

Em seguida o livro exibe a imagem de três moedas. Na legenda, afirma que o


comércio das cidades-Estado era dinamizado com o uso de moedas de prata,
bronze e ouro. Informa que as três moedas são de prata, sendo,
respectivamente, uma do VI a.C., outra do V a.C. e a última do IV a.C. Omite,
no entanto, de onde eram essas moedas. Informação imprescindível, vez que a
maior parte das cidades cunhavam moedas próprias, verdadeiro símbolo
nacional, não havendo uma moeda única para toda a Grécia, mas uma
infinidade delas. Aristóteles afirma que para facilitar as trocas as cidades
instituíram o uso do dinheiro. Inicialmente as moedas foram definidas apenas
por seu tamanho e peso, e, posteriormente, foram estampadas com seus
símbolos, que indicavam o seu valor, dispensando a necessidade de pesá-las
[ARISTÓTELES, Política, III, 1257b].

88
A despeito de no Guia do Livro Didático os pareceristas afirmarem que o
Manual do Professor assessora “na condução da leitura das imagens,
oferecendo comentários e respostas, situando-as historicamente” [BRASIL.
Ministério da Educação. PNLD 2018, p. 74], não há qualquer menção sobre as
moedas ou alguma indicação de como elas podem ser utilizadas como fonte
histórica, na perspectiva esboçada pelo próprio Guia. Apesar de os avaliadores
afirmarem que “A utilização de imagens é um diferencial da obra, pois elas
podem ser discutidas enquanto fonte, permitindo a aproximação com o
cotidiano do estudante do Ensino Médio” [BRASIL. Ministério da Educação.
PNLD 2018, p. 76], não é possível discutir a moeda enquanto fonte histórica
apenas a partir da mera inserção das suas imagens no texto, carecendo,
portanto, de informações adicionais.

Abaixo das moedas está um mapa das “cidades-Estado helênicas”, indicando


na legenda que as regiões hachuradas na cor rosa representam a “civilização
helênica”. [p. 119]. O mapa apresentado no livro está bem de acordo com o
mapa do Nausitoo [Figura 1] e com aquilo que nos afirma Moses Finley [1998]
sobre a geografia dos gregos – espalhados de uma ponta a outra do
Mediterrâneo através de sucessivas ondas de explosões migratórias. Essas
explosões migratórias são responsáveis pela extraordinária expansão grega
para além da Península Balcânica e pelo novo desenho geográfico da Grécia.
Assim, a Héllas ou Hélade, nome com que os gregos se designavam, alcançou
um total de mais de mil cidades, de extensão e número de habitantes
enormemente variados, que por óbvio nem Atenas e nem Esparta são delas
modelos. Cada uma é única, deve ser observada em suas particularidades, a
partir de sua contextura. O Inventário [Inventory] publicado em 2004 pelo
Copenhagen Polis Centre [HANSEN, 2004] catalogou 1035 comunidades
gregas. Havia uma variedade de assentamentos, com distintos estatutos. Nem
todos foram nomeados de pólis pelos gregos. Muitos desses assentamentos
receberam outros nomes: demos, kome, teichos, emporion, limen e hieron,
distintos de pólis, portanto [RIBEIRO, 2019, HANSEN, 1995]. Desse milhar de
assentamentos é possível afirmar categoricamente que muitas se
enquadravam no estatuto de pólis, outras provavelmente não; algumas delas já
haviam desaparecido no período Arcaico, mas outras foram fundadas neste
mesmo período [HANSEN, 2004, p. 54]. Os estudiosos vêm revendo a ideia de
pólis como uma unidade independente e autônoma, alargando seu conceito,
que passa a incluir as pólis dependentes [SHIPLEY, 2006]. Aquelas que em
certo sentido gozavam de um conjunto de prerrogativas, mas ao mesmo tempo
estavam submetidas a uma pólis dominante em outros aspectos, este é o caso
de muitas comunidades em que habitavam os periecos de Esparta, verdadeiras
pólis dependentes.

A despeito dessa multiplicidade de cidades, inclusive da adequada escolha do


mapa no livro em análise [não há no Manual do Professor qualquer indicação
de como ele deve ser explorado], os autores não só deixam de conceituar
“cidades-Estado”, como já dissemos, como repetem a fórmula atenocêntrica
encontrada em tantos outros livros didáticos ao eleger Esparta e Atenas como
modelos de cidade grega. Sem pretender adentrar na discussão sobre o

89
atenocentrismo [Vide FRANCISCO; MORALES, 2016], suas implicações, e
como sua perspectiva mudou com o passar do tempo, aqui nos atemos ao
papel da historiografia ao eleger Atenas como padrão de cidade grega. Ao
fazê-lo, Esparta passa a ser a escolhida como o antimodelo, o elemento
negativo e necessário de comparação ao modelo positivo ateniense. Frisemos
que a História Antiga está, e sempre esteve, em constante processo de
renovação, que de modo geral ainda não chegou aos livros didáticos da
Educação Básica.

Vale ressaltar que ao apresentar a cidade de Atenas [Esparta vem antes] e


seus avanços econômicos, os autores exibem, à página 123, um apêndice cujo
objetivo é explicar a causa do novo dinamismo econômico do Período Arcaico,
advindo do intercâmbio comercial entre as cidades gregas. Então os autores
mencionam os movimentos migratórios: “Desde o século VIII a.C., o
crescimento populacional das cidades gregas impulsionou movimentos
migratórios em busca de novas áreas para colonização. Nessa época foram
fundadas colônias gregas em vários pontos do litoral dos Mares Egeu e
Mediterrâneo” [p. 123]. Em síntese, os movimentos migratórios, responsáveis
por alterar o próprio quadro geográfico da Grécia, servem apenas como ‘pano
de fundo’ para justificar como alguns grupos sociais em Atenas ascenderam e
passaram a reivindicar maior participação política.

Os autores poderiam ter utilizados as informações sobre os movimentos


migratórios ao introduzir o tópico “O mundo helênico”, aproveitando-se das
moedas e do mapa para mostrar a mobilidade dos gregos e as formas de
contato entre eles. Momento interessante, inclusive, para explicar como
pessoas morando em lugares tão distantes, no extremo leste ou oeste do
Mediterrâneo, vivendo de formas tão diferentes, poderiam ser todas gregas.
Como forjaram uma identidade comum? Excelente oportunidade ainda para se
discutir como os gregos não estavam sozinhos no Mediterrâneo, mas com
tantos outros povos. O mar era também dos fenícios, com suas várias
fundações, e de muitos outros, que buscavam novas oportunidades, novos
mercados, novas fontes de materiais. Daí ser tão importante o estudo do
contato entre esses povos, das suas trocas, que eram muito mais do que
trocas comerciais. E o que dizer das fundações em que os gregos se
misturavam com populações que já se encontravam no local antes de sua
chegada, dos casamentos mistos entre os gregos e não-gregos, dos tantos e
diferenciados processos de negociação? [Vide FLORENZANO, 2018]

A primeira cidade apresentada é Esparta, cujo mote acentuado é o militarismo:


“O militarismo era uma característica marcante de Esparta” [p. 120]. Na seção
“Orientações ao professor”, referente à Esparta, os autores iniciam seu
discurso repetindo a propalada “anormalidade” ou “atipicidade” de Esparta no
universo das demais pólis: “A sociedade espartana caracteriza-se e diferencia-
se das demais sociedades da Grécia Antiga pela coesão social manifesta por
meio da participação de seus cidadãos nas atividades militares” [p. 343]. Todos
os tópicos sobre Esparta, distribuídos em duas páginas, reforçam a ideia de
uma cidade atípica e excessivamente militarizada. Os autores afirmam que tal

90
característica é consequência da conquista do território pelos espartanos e da
consequente subjugação dos hilotas e periecos, o que representava constante
ameaça, sendo necessário um rigoroso sistema de segurança para
manutenção da ordem. Ressaltam que os hilotas muitas vezes se revoltaram
contra os espartanos [p.120].

Esse posicionamento, durante muito tempo estabelecido, de que os hilotas


representassem um tal perigo para os espartanos, provocando nestes a
necessidade de um excessivo controle e um sistema fortemente militarizado,
transformando a cidade em um acampamento militar, não é consenso entre os
especialistas e vêm perdendo força. Novas abordagens têm demonstrado que
não havia nada de especial na hilotagem que sugerisse essa mudança na
sociedade [HODINKSON, 2013]. Tal representação está fundada em parte na
documentação produzida por atenienses e perpetuada na historiografia.

Os periecos, que no livro são colocados no mesmo nível dos hilotas, eram
populações livres, assentadas no território de Esparta sob graus de sujeição e
liberdades muito diversificados. Eles faziam parte do exército espartano,
lutando ao lado dos esparciatas [cidadãos de Esparta]. Tenho defendido que
uma identidade comum entre periecos e esparciatas em torno do culto a Apolo,
divindade patrona de Esparta, e de cunho fortemente militar, tenha contribuído
para uma dominação esparciata sem maiores turbulências entre os dois grupos
[RIBEIRO, 2019].

No tópico dedicado a Atenas vemos o dobro de páginas daquelas reservadas à


Esparta. Conforme se lê no Manual do Professor [p. 341], um dos objetivos
específicos da unidade é “Estudar o processo de consolidação da democracia
de Atenas”. Toda a narrativa está centrada na organização política de Atenas,
no percurso da monarquia, passando pela tirania até chegar à democracia.
Perturbadora tese de que o destino manifesto das cidades, auge da sua
evolução, fosse a democracia, que era realidade de bem poucas. Muitas
viveram e prosperam sob a tirania sem qualquer registro de que desejassem
chegar à democracia. Na caixa “Refletindo”, os autores questionam: “O regime
democrático criado em Atenas, no século V a.C., é igual aos regimes
democráticos da atualidade? Por quê?” [p. 124]. Nas “orientações para o
professor”, os autores informam que a resposta esperada dos alunos é que a
democracia grega não é igual às democracias atuais. Apresentam um
fragmento extraído de Aranha e Martins [1998, p. 176-178], entrecortado, como
subsídio para o professor mediar a discussão. Os autores informam que o texto
aborda o histórico do conceito de democracia. Acreditam que o pequeno
fragmento dê conta de explicar as diferentes formas de democracia e suas
contradições ao longo dos tempos. Mais ainda, ao selecionar trechos das
autoras consultadas, eles optam por um em que elas recorrem a Norberto
Bobbio para entender as contradições dos conceitos de democracia nos
diferentes períodos. Não informam qual obra de Bobbio foi consultada e não é
possível saber quando começa e quando termina a intervenção de Bobbio no
texto. O recorte atribuído ao autor diferencia os aspectos formais e substanciais
das democracias modernas. Da forma como está colocado, o fragmento em

91
nada auxilia na compreensão da democracia ateniense, e muito menos em
uma comparação com as democracias atuais. A versão consultada pelos
autores, conforme nota 9, é de 1998. Não tivemos acesso a essa edição,
consultamos a edição de 1992. Nesta, o capítulo 13, “A democracia”, não visa
discutir a democracia ateniense, mas a moderna. A democracia ateniense é
apenas mencionada. O texto informa que se trata da mais antiga democracia,
direta, onde os cidadãos, apenas dez por cento da sociedade, eram chamados
a participar da vida da pólis, exercendo, portanto, um direito e cumprindo um
dever perante a comunidade. Ressalta que escravos, mulheres e estrangeiros
não tinham direitos civis, estavam excluídos da vida pública, e concluem: “O
que importa, no entanto, é o surgimento do ideal democrático como um valor
novo que se contrapõe à concepção aristocrática de poder” [ARANHA;
MARTINS, 1992, p. 169].

A despeito dessa referência positiva sobre a democracia ateniense no que ela


significa de avanço em relação ao poder aristocrático a que ela sucede, os
autores do livro didático encaminham o estudante na direção contrária, do
senso comum. Na comparação entre as democracias grega e moderna, eles
reforçam negativamente a não inclusão de determinadas categorias no corpo
de cidadãos e acentuam que apesar de teoricamente iguais civilmente, os ricos
tinham mais tempo para se dedicar às atividades políticas [p. 124].

A narrativa do livro didático prende-se a uma história política que privilegia a


Atenas democrática versus a Esparta militar. Depois de encerrar a história
política de Atenas, os autores dedicam-se à mitologia, aos Jogos Olímpicos, à
filosofia, à literatura. Finalmente, encerram o ciclo da hegemonia das cidades
gregas [leia-se Atenas e Esparta] no Mediterrâneo com uma breve menção à
Guerra do Peloponeso, liderada pelas duas confederações de cidades
inimigas.

Ao apresentar o livro, os autores informam: “cada unidade é iniciada com duas


páginas de abertura. Nelas, você encontrará uma imagem relacionada ao tema
da unidade e um texto introdutório, que poderão ser explorados por meio das
questões apresentadas” [Introdução]. A bela imagem é uma fotografia atual da
vista da cidade de Atenas. Em seu centro destaca-se a imagem do Partenon,
templo dedicado à patrona da cidade – a deusa Atena. Depois de um breve
texto os autores lançam duas perguntas. A primeira delas, e que nos chama a
atenção, diz: “No centro da fotografia é possível observar as ruínas de Atenas,
cidade onde nasceu a democracia. O que você já sabe sobre a democracia na
Grécia Clássica?” [p.117]. Se a imagem de abertura, conforme os autores
afirmam, são o fio condutor do tema, ao escolher Atenas, eles a colocam
deliberadamente no centro da História da Grécia.

Nas “orientações para o professor”, os autores mais uma vez são excessivos:
“Na segunda metade do século V a.C., Atenas, após a vitória contra os persas
e o estabelecimento da democracia, assumiu uma posição de liderança entre
as outras cidades-Estado do mundo antigo” [p. 341, grifos nossos]. Após as
guerras greco-pérsicas, os atenienses transferem a sede da Liga de Delos para

92
Atenas, começam a utilizar os recursos comuns sem mais prestar contas aos
seus aliados, transformam muitos deles em súditos, todavia estavam longe de
exercer a hegemonia sobre a totalidade das cidades gregas. A outra ponta
coube a Esparta e seus aliados, e muitas cidades simplesmente se mantiveram
neutras, fora das disputas. No mapa “A Guerra do Peloponeso [431 – 404
a.C.]” [p.131], que não é mencionado no texto principal ou nas “Orientações
para o professor”, mas que soa como mera ilustração, vemos em sua legenda
uma área pintada “Estados neutros”. Sem dúvida há uma contradição entre a
afirmação acima e a informação do mapa.

O livro apresenta um belo design, vários apêndices com informações adicionais


ao texto principal, de modo a deixá-lo mais leve, muitos mapas e imagens
variadas. Apesar do esforço dos autores, ainda se nota a necessidade de
melhor explorar os recursos imagéticos, de modo a não soar como mera
ilustração do texto, o que acontece inúmeras vezes. Há apenas na seção
específica de Atividades, na ala “Explorando a imagem”, a apresentação de
dois vasos gregos com algumas perguntas para os estudantes, e no Manual do
Professor uma informação complementar.

Algumas considerações finais


Observando os tópicos sintetizados a partir dos livros analisados em 1995 e no
último, que tomamos como espelho do que vemos em nossas escolas, é
forçoso concluir que nos aspectos atinentes ao conteúdo, passados vinte e
cinco anos, persiste como eixo explicativo a história da cidade. A porta de
entrada, bem ilustrada na fotografia que abre o capítulo do livro analisado,
continua a ser Atenas a caminho da democracia, e depois do ocaso,
contrapondo-se com a Esparta militarizada. A despeito dos inegáveis avanços
do livro didático, do esforço editorial para se atualizar e se manter no mercado,
com a inserção de muitos outros povos antes esquecidos, temas importantes e
inúmeros textos de apoio, a ideia de uma história cronológica que se encerra a
cada capítulo para outra começar, como observa Guarinello [2003], ainda
persiste.

É imprescindível oferecer aos alunos secundaristas e aos professores da


Educação Básica outra história dos gregos antigos, não mais uma narrativa
redutora centrada em Atenas e Esparta, e não exatamente uma história
fundada apenas sob o viés político ou em tópicos estanques que não dizem
muito. É urgente para todos nós refletir sobre formas de ecoar as novas
discussões, os novos debates e, especialmente, como essa nova História
contemporânea grega pode chegar aos bancos escolares e ao livro didático, de
modo a fazer sentido e a provocar reflexões sobre os gregos e sobre nós.

Referência
Márcia Cristina Lacerda Ribeiro é doutora em História Antiga [FFLCH/USP],
Pós-doutora em Arqueologia Clássica [MAE/USP]; Professora de História
Antiga da Universidade do Estado da Bahia; Pesquisadora do Laboratório de
Estudos sobre a Cidade Antiga [Labeca/MAE/USP]. mclribeiro@uneb.br

93
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de
Filosofia. 2ed. São Paulo: Moderna, 1998. P. 176-178.
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2012.
PELLEGRINI, Marco César [et al]. Contato história. 1ª ed. São Paulo:
Quinteto Editorial, 2016.

94
O CARRO FALA. UM OLHAR SOBRE A SOCIEDADE OITOCENTISTA POR
INTERMÉDIO DOS MEIOS DE TRANSPORTE [C.1850-1890]

Marcus Vinicius Kelli

Graças aos meios de transportes desenvolvidos ao longo dos séculos, as


atividades econômicas e sociais foram transformadas radicalmente. As
distâncias, assim como a capacidade de deslocamento das mercadorias, foram
expandidas com os avanços tecnológicos. Paulatinamente, a circulação pelas
rotas, fossem elas marítimas ou terrestres, foi adquirindo mais segurança e
rapidez, elementos que permitiram manter a periodicidade das atividades
comerciais no decorrer dos anos.

Quando direcionamos o nosso olhar para o meio urbano, espaço de análise do


texto em questão, percebemos que o seu crescimento demográfico e
geográfico impôs ao poder público, a necessidade de melhorias contínuas na
infraestrutura – ruas, praças, travessas, trapiches, armazéns etc.

O quadro que se desenhava foi importante para o aprimoramento do setor de


transporte, em especial, o privado. Ainda que precário para grande parte da
população, fosse em Londres, Paris, Rio de Janeiro ou Buenos Aires, uma
parcela de privilegiados das grandes cidades do século XIX conseguia
deslocar-se de maneira relativamente eficiente e confortável pelo perímetro
urbano com seus veículos de tração animal.

A exclusividade na utilização dos carros por um segmento abastado da


população ocorreu em função dos altos custos envolvidos na produção e
manutenção destes. Como o Brasil não oferecia matéria-prima de qualidade à
época [ferro, tecidos, tintas, madeira, ferramentas e acessórios], somente pela
importação tornava-se viável a confecção da manufatura. Somando-se a isto, o
emprego de mão de obra qualificada e a exigência de infraestrutura [espaço
físico] contribuíam para o seu encarecimento.

Já para os que adquiriam o produto, os seus gastos eram direcionados para o


animal [aquisição, alimentação e remédios], eventuais reparos [troca de peça
em função do desgaste] e o condutor [salário e vestimenta], cifras que poucos
poderiam arcar na sociedade oitocentista carioca [KELLI, 2018].

Além do deslocamento, os carros atuavam como marcadores sociais em seus


espaços de circulação. Para as famílias de posse, ostentar apenas um
exemplar em sua garagem não era o suficiente, pois a regra era clara: quanto
mais melhor! Assim, para os afortunados, cada atividade demandava um
veículo para o seu uso: passeios ao final de semana ou a ida ao trabalho eram
realizados por modelos distintos.

Como integrante da paisagem, os carros também foram expostos à ação do


tempo. Ser classificado como antigo ou moderno, era fruto do exercício de
valoração dos observadores à época. Portanto, por estarem imersos nas

95
convenções que ditavam o comportamento e o gosto, o nosso objeto de análise
oferece camadas de temporalidade [APPADURAI, 1991]. O que proporciona
aos historiadores, a capacidade observar permanências e rupturas de práticas
sociais no cotidiano.

Para verificarmos as colocações feitas nas linhas anteriores, utilizaremos os


campos da pintura e literatura, ambos do século XIX, como ponto de nossa
análise. Podemos perceber que os veículos de tração animal ofereciam
conforto e segurança para os seus passageiros no cotidiano de suas
atividades. Além disto, serviram para que homens e mulheres expressassem
seus sentimentos e/ou conquistas materiais. Portanto, os carros também
falavam!

Carros, literatura e pintura: um olhar sobre a sociedade em transformação


No decorrer do século XIX, circular pelas cidades não era uma tarefa fácil e
agradável para os seus moradores. A precariedade das ruas, ainda em sua
grande maioria feita sobre terra batida, era constantemente agravada pelas
chuvas e/ou nevascas que ocorriam no decorrer das estações do ano. Além
das intempéries da natureza, outros empecilhos atingiam a mobilidade dos
habitantes, em particular, as mulheres. Em uma sociedade controlada pelo
olhar masculino, onde o papel feminino estava circunscrito à esfera do privado,
ter controle sobre o próprio ir e vir poderia ser compreendido como uma
afronta, ou mesmo uma ruptura à hierarquia vigente.

Este cenário pode ser observado por intermédio da literatura inglesa moderna.
Alan James Hogarth oferece ao leitor um estudo interessante relacionando as
mulheres e os meios de transporte, em especial, os veículos de tração animal.

Examinando peças teatrais ou livros do período em questão, Hogarth verificou


que, para muitos escritores, as carruagens, uma denominação genérica para
os modelos de carros em circulação, tinham funções que ultrapassavam a
promoção do deslocamento seguro e ágil das suas ocupantes. Na obra
intitulada The World Runs on Wheels, escrita no século XVII por John Taylor,
Hogarth destaca que “as carruagens eram populares entre as prostitutas, não
apenas como meio de transporte, mas como espaços para exercerem seu
ofício [...]” [HOGARTH, 2014, tradução nossa].

O fato de uma mulher andar por conta própria instigava a imaginação do


público masculino à época. Qualquer atitude que fugisse aos padrões vigentes
era imediatamente taxada como imoral ou pecaminosa. Deste modo, para
muitos observadores assentados sobre um rígido moralismo cristão, a
conquista da mobilidade não era apenas um quesito de ordem espacial.

Seria inocência supormos que apenas as prostituas utilizassem os veículos


como espaço para as suas atividades econômicas. Assim como elas, casais ou
amantes, fossem eles héteros ou homossexuais, também usufruíram deles
para construírem suas estratégias em busca de prazer e intimidade.

96
A visão preconceituosa contida na obra de John Taylor não ficou restringida ao
mundo das letras e ao período apontado acima. Próximo da passagem do
século XIX para o XX, só que agora no campo das artes plásticas, é possível
encontrar exemplos sutis da representação feminina junto ao veículo em uma
possível transgressão social. É o que podemos verificar, por exemplo, em uma
imagem que faz parte da obra Paris à Cheval, editada em 1883, é que está
disponibilizada em formato digital. Vejamos a imagem abaixo.

Fonte: http://www.cheval.culture.fr/en/page/women_and_carriages

Um primeiro olhar pode fazer com que a cena pareça despretensiosa para o
leitor. Todavia, quando recorremos ao fragmento citado anteriormente e
retemos nossos olhos por mais tempo na pintura, o bucólico e o ingênuo
encontro pode ganhar novas conotações.

Em primeiro lugar, a busca pela intimidade oferecida pela floresta não pode ser
entendida como uma escolha puramente estética. Ao contrário dos grandes
centros urbanos, onde os olhares vigilantes eram múltiplos e, por
consequência, as chances para driblar as convenções sociais instituídas eram
mais escassas, nada mais apropriado do que o silêncio proporcionado pela
natureza para confidenciar os sentimentos sem grandes receios. Em segundo
lugar estão os protagonistas, neste caso, o casal e o choffeur. No que diz
respeito aos apaixonados, não é possível saber se estamos diante de uma
traição conjugal ou de um encontro, no qual o pretendente talvez não possua
as qualificações exigidas pelo pai da moça para uma união matrimonial digna
de suas condições sociais. Não menos importante no enredo é o choffeur.
Responsável pelo manejo do carro, o empregado torna-se cúmplice na ação
amorosa representada, devendo guardar o segredo a sete chaves. Afinal, o seu
silêncio é, ao mesmo tempo, garantia da continuidade dos encontros e, claro, a
manutenção do próprio emprego.

Por fim, temos o carro. Além de proporcionar deslocamento rápido e seguro,


provém outro fator importante: privacidade. Como pode ser visto na pintura, o
veículo fechado oferecia uma oportunidade para a concretização das ações

97
amorosas; suas janelas e cortinas contribuíam para assegurar o anonimato de
quem viajava em seu interior.

Outra função desempenhada pelo carro na composição é a de auxiliar na


determinação do corte temporal. Como dito anteriormente, a obra é do ano de
1883; contudo, isto não permite, em um primeiro momento, afirmarmos que a
produção artística pertença ao mesmo período. Afinal, o seu autor pode ter sido
influenciado por cenas como essa no decorrer de sua vida, como também, por
leituras similares às de John Taylor, usando, assim, a sua imaginação para
criá-la.

Uma possibilidade para desfazermos nossa dúvida é olhar com mais atenção
para o modelo de veículo utilizado na obra. Assim como o espaço urbano, os
carros também sofreram significativas modificações no decorrer do seu uso. Os
avanços tecnológicos e as mudanças estéticas foram fatores que contribuíram
para o surgimento de novos exemplares. Logo, estes dois elementos permitem
a construção de um olhar mais acurado para situarmos a cronologia da cena.

Deste modo, quando recorremos à coleção digital disponibilizada pelo Museu


Coche, com sede em Lisboa, verifica-se que o modelo que mais se aproxima
das características da pintura é o Clarence, um carro pertencente ao século
XIX.

Fonte: http://museudoscoches.gov.pt/pt/explore/colecao/

Quando comparados, podemos verificar uma grande semelhança física entre


os veículos, o da pintura e o da foto. O número de eixos, o posicionamento do
assento do choffeur, as lanternas laterais e as janelas, afiançam nossa
colocação.

A utilização dos carros como parte integrante do mundo artístico não foi uma
exclusividade circunscrita à Europa. Este importante componente da paisagem
urbana pode ser verificado inúmeras vezes na obra do maior escrito brasileiro
de todos os tempos: Joaquim Maria Machado de Assis. Sabemos desta relação

98
graças à obra Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, publicada por
Raymundo Faoro em 1974.

Diferentemente dos exemplos mencionados anteriormente, onde a relação


entre o sexo feminino e os transportes apontava para um comportamento
desvirtuado, em Machado, os carros fazem parte da trama social, indicam
valores de uma sociedade que se transformava a partir do seu processo de
urbanização. Esta percepção proporcionou uma reflexão instigante por parte de
Faoro. Na seção O homem se mostra nas carruagens e no transporte coletivo,
encontramos a seguinte colocação: “Elegeu Machado de Assis [...] as
carruagens para representar a realidade, em lugar do homem. A coisa fala e
vive, tem uma função social e efeitos psicológicos [...]” [FAORO, 1974].

Se um objeto fala e vive, podemos atribuir a ele um lugar de fala, a existência


de um vocabulário próprio capaz de unir emissor e receptor sob um
determinado contexto socioeconômico. Desta maneira, a antropomorfização
revela, indubitavelmente, a sobreposição de camadas temporais que, por sua
vez, concedem ao historiador a capacidade de observar rupturas e
permanências no decorrer do ciclo de serventia para seus personagens.
Resumindo: se há vida, há historicidade.

Vivenciando um intenso processo de urbanização ao fim do século XIX, as ruas


da capital imperial foram palco para a circulação de um trânsito crescente de
carros [SANTOS, 1996]. Se para alguns, este cenário revelava apenas o
progresso do Rio de Janeiro, para Machado de Assis serviu como matéria-
prima para a construção de comentários brilhantes sobre as tensões e
contradições que emergiam em sua cidade natal.

Principal porto para o escoamento do café, commodity que capitaneou as


finanças do Império em boa parte do século XIX, o espaço público carioca
testemunhou o sucesso dos homens ligados, direta ou indiretamente, ao seu
comércio. O crescimento vertiginoso do patrimônio era demonstrado de forma
que todos soubessem do bom momento vivenciado. A compra de casas
maiores e bem localizadas, o aumento do número de empregados ou a
inclusão de novos mobiliários como o piano, foram algumas das estratégias
utilizadas para coroar a nova fase social conquistada [ALENCASTRO, 1997].

Outro objeto que pode ser incluído na lista de itens acima são, obviamente, os
carros de tração animal. E, em mais uma passagem de Quincas Borba, obra
lançada em 1892, percebemos que este detalhe não passou em branco para o
nosso escritor. O trecho a seguir é fruto da imaginação de Rubião, após ser
convencido pelo Major Siqueira de que o casamento lhe faria muito bem para o
espírito:

[...] compôs de cabeça as pompas matrimoniais, os coches, — se ainda os houvesse


antigos e ricos, quais ele via gravados nos livros de usos passados. Oh! grandes e
soberbos coches! Como ele gostava de ir esperar o imperador, nos dias de grande
gala, à porta do paço da cidade, para ver chegar o préstito imperial, especialmente o
coche de Sua Majestade, vastas proporções, fortes molas, finas e velhas pinturas,

99
quatro ou cinco parelhas guiadas por um cocheiro grave e digno! Outros vinham,
menores em grandeza, mas ainda assim tão grandes que enchiam os olhos. Um
desses outros, ou ainda algum menor, podia servir-lhe às bodas, se toda a sociedade
não estivesse já nivelada pelo vulgar coupé. Mas, enfim, iria de coupé; imaginava-o
forrado magnificamente, de quê? [ASSIS, 1994. Grifo nosso].

Verifica-se que os coches possuem lugar de destaque no cenário construído


pela psique de Rubião, eles reforçam ao mesmo tempo a existência do luxo e o
grande número de convidados, elementos que indicam uma festa onerosa para
a sua realização. E aqui, os gastos elevados demonstram dois aspectos: o
primeiro é oferecer o que há de melhor para os participantes [comida, bebida,
música]; o segundo é reforçar a posição do anfitrião no interior de suas redes
de sociabilidade. Em uma sociedade pautada pelos interesses, onde as
alianças familiares eram, na maioria das vezes, sacramentadas pela busca de
ganhos políticos, econômicos ou sociais, o planejamento de Rubião estava em
consonância com a realidade do momento.

Outro ponto interessante foi destacado no fragmento acima. Na verdade, o que


chamou a nossa atenção foi o emprego do adjetivo nivelada por Machado.
Quando analisamos o contexto no qual a obra se passa, o Segundo Reinado
[1840-89], sabemos que o país como um todo estava muito aquém de oferecer
este panorama.

Do ponto de vista econômico, o verbo nivelar aponta para a busca da


equiparação ou, em casos mais radicais, para a extinção das barreiras que
inviabilizavam o acesso a bens e serviços outrora restritos a certos grupos. A
vulgarização vislumbrada por Machado oferecia sentimentos antagônicos. Para
uns, o momento representou o coroamento do seu esforço ao longo dos anos.
Advogados, engenheiros, militares, médicos, professores e comerciantes, por
exemplo, ganhavam mais espaço social com o avanço da segunda metade do
século XIX, período marcado pelo processo de modernização e urbanização
que se instaurava pelas cidades mais importantes do Brasil à época [COSTA,
2007].

É claro que nem todos aproveitaram a nova fase que despontava, muitos
ficaram para trás, foram esquecidos ou ignorados pelos afortunados do novo
momento. Afinal de contas, uma boa herança, um bom casamento ou possuir
economias suficientes para custear uma faculdade, nem sempre estiveram à
mão de grande parte da população. Como diz a sabedoria popular: o sol não
nasce para todos!

Este cenário foi capturado pelo olhar machadiano que vai descrever o
momento por intermédio de uma mulher e do seu veículo. A cena, encontrada
novamente nas páginas de Quincas Borba, revela o sentimento de inveja
despertado por Sofia e o coupé. Sobre a passagem, diz o autor: “A Sofia de
coupé! Fingiu que me não via, mas arranjou os olhos de modo que percebesse
se eu a via, se a admirava. Vaidades desta vida! Quem nunca comeu azeite,
quando come se lambuza” [MACHADO, 1994].

100
A curiosa troca de olhares descrita por Machado de Assis ocupa uma função
importante na trama. O que está em jogo entre os polos em questão,
observador e observado, é o acesso ao bem material, ao privilégio de possuir
um carro que não apenas promovia o deslocamento pelas cercanias, mas que,
igualmente, conferia prestígio ao seu proprietário por onde fizesse caminho.

A satisfação pessoal de Sofia é plena somente quando constata que os olhares


externos não são apenas frutos da admiração pelo seu belo veículo. Os
comentários em tom irônico revelam a impossibilidade daquela conquista
material para muitos, neste caso, os espectadores. A conquista da nossa
passageira deu a ela também a possibilidade de transitar por novos espaços de
sociabilidade. Em um ambiente imerso pelo personalismo, favorecimento e
títulos de distinção, Sofia deu um passo importante para a realização dos seus
objetivos pessoais. Seguramente, os carros aceleraram seus anseios.

Concluindo – o que os carros podem oferecer [?]


Os estudos sobre os transportes, partindo da perspectiva aqui adotada, ainda
estão aquém das suas possibilidades. Presença marcante nas cidades
brasileiras, os veículos de tração animal podem dar novas cores às pesquisas
direcionadas ao meio urbano.

Traçar comparações entre cidades, por exemplo, pode ser uma de suas
possibilidades. Se os carros foram elementos que viabilizaram o deslocamento
de pessoas e mercadorias, podemos dizer que quanto mais desenvolvido o
centro urbano, mais numerosa foi a sua frota. Por intermédio de anúncios
encontrados nos almanaques publicados pelas províncias, é possível
observarmos esta relação. Na década de 1850, por exemplo, a cidade de
Salvador possuía um número ínfimo de anúncios de cocheiras quando
comparada com a capital imperial [KELLI, 2018]. O motivo para a diferença não
estava apenas na centralidade política exercida pelo Rio de Janeiro, mas
também, pelo fato desta ser o principal centro de consumo do Brasil no
desenrolar do século XIX.

Enfim, há um campo fértil a ser explorado por intermédio dos veículos de


tração animal. Cabe a nós, historiadores sociais, superarmos as dificuldades
encontradas nos arquivos, construirmos novos diálogos entre segmentos
historiográficos [consumo, tecnologia, transporte, economia para a elaboração
de novas perguntas sobre as cidades. O desafio está feito.

Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In
[Org.]. História da vida privada no Brasil: Império – a corte e a
modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
APPADURAI, Arjun. Introducción: Las mercanciás y la política del valor. In
APPADURAI, Arjun et. ali. La vida social de las cosas. Perspectiva cultural de
las mercancías. México [DF]: Editorial Grijalbo, 1991.

101
ASSIS, Machado de. Quincas Borba. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar,
1994. Disponível em <http://machado.mec.gov.br/obra-completa-
lista/itemlist/category/23-romance>. Acesso em 23 jul. 2020.
COSTA, Emília Viotti da. Da monarquia à república: momentos decisivos. São
Paulo: Fundação Editora UNESP, 2007.
FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. Rio de
Janeiro: Editora Nacional, 1974.
HOGARTH, Alan James. ‘Hide and be Hidden, Ride and be Ridden’: The coach
as transgressive space in the Literature of Early Modern London. Early Modern
Literary Studies, Vol 17, N°2, 2014, p. 1-20. Disponível em
<https://extra.shu.ac.uk/emls/journal/index.php/emls/article/view/98>. Acesso
em 24 jul. 2020.
KELLI, Marcus Vinicius. Circulando pelo Rio de Janeiro: infraestrutura,
consumo e produção de veículos de tração animal [1808-c.1880]. Tese
[doutorado – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de História,
Programa de Pós-Graduação em História Social, 2018.
SANTOS, Francisco Agenor de Noronha. Meios de transportes no Rio de
Janeiro: história e legislação. Rio de Janeiro: Secretária Municipal de Cultura,
Departamento Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1996.

102
ENSINAR HISTÓRIA COMO CONDIÇÃO E SENTIDO PARA AÇÃO DOS
SUJEITOS EM TEMPOS TRAUMÁTICOS: DESAFIOS DA EDUCAÇÃO
HISTÓRICA

Marlene Cainelli e Ronaldo Cardoso Alves

Quem acredita poder deduzir suas expectativas apenas da experiência, está errado.
Quando as coisas acontecem diferentemente do que se espera, recebe-se uma lição.
Mas quem não baseia suas expectativas na experiência também se equivoca. Poderia
ter-se informado melhor. Estamos diante de uma aporia que só pode ser resolvida com
o passar do tempo. Assim, a diferença entre as duas categorias nos remete a uma
categoria estrutural da história. [...] é a tensão entre experiência e expectativa que, de
uma forma sempre diferente, suscita novas soluções, fazendo surgir o tempo histórico.
[KOSELLECK, 2006, p. 312]

Como ensinar História em momentos históricos traumáticos? Como o conteúdo


de História pode superar o momento vivido em tensão e importância? Qual a
melhor maneira de abordar a História a ser ensinada sem rivalizar com a
vivência traumática? A experiência coletiva histórica demonstra que o processo
histórico gera aprendizado histórico, o acúmulo de experiências, a tradição
resulta em aprendizagem, seria o saber produzido pela própria experiência.
Aquilo que se aprende pela própria História é marcante, tende a não ser
esquecido, é a aprendizagem pela vida e com a vida. O conhecimento
histórico se ancoraria neste aprendizado da experiência do indivíduo.

Peter Lee [2011] e Joaquim Prats [2015] concordam que a disciplina de História
está sempre numa posição vulnerável. Quando se pretende reduzir o tempo de
currículo, ela é sempre uma das candidatas a cortes ou a integração noutras
disciplinas. No entanto, e paradoxalmente, sempre que o currículo está em
discussão, é invariavelmente a História que é o foco de controvérsia. Há
sempre uma cobrança que o conteúdo histórico não se adequa às demandas
sociais de nosso tempo presente. Segundo Lee

A razão para o ensino de História em escolas não é para que os estudantes possam
usá-la para fazer outras coisas, ou para mudar ou preservar uma forma particular de
sociedade, ou até mesmo expandir a economia. A razão para ensinar História não se
deve ao fato dela mudar o mundo, mas sim que muda os estudantes, muda a maneira
que eles veem o mundo. [LEE, 2001, p.43]

Porém, como afirma o próprio professor Joaquim Prats [2015], precisamos


entender o valor educativo da História. Para que serve formar professores de
História e a disciplina ensinada na escola? Peter Lee [2011] argumenta que
não saber história significaria que o indivíduo seria um ser ignorante. Alguém
que ignora o mais importante dos conhecimentos, o conhecimento da vida. A
História se constitui como um saber indispensável para que o ser humano
entenda e compreenda o mundo em que vive. A atividade docente firmada na
ciência histórica, é um trabalho árduo, continuo, porém totalmente necessário.

A ciência da História precisa ser entendida pelos sujeitos no universo escolar


como em permanente construção. Uma afirmativa que podemos fazer é que o

103
ensino escolar da História como é perspectivado hoje nas escolas não se
articula entre o conhecimento da prática e o conhecimento científico. Se
ensinar história tem que partir das carências de orientação da vida prática
como conseguir isto com a organização engessada e tradicional dos livros
didáticos de História? Algumas pesquisas já concluíram que os jovens tendem
a explicar o mundo e suas escolhas a partir de experiências do presente,
porém a formação que estão tendo sobre História não reflete na constituição do
pensamento histórico. Bem como as relações que os jovens organizam como
orientação temporal é o presente que os orienta, pois o lugar onde vivem e o
tempo que estudam são destituídos de História e o passado não os motiva nas
suas tomadas de decisões. [PYDD NECHI,2017].

A aprendizagem de histórias difíceis está entre as questões mais complexas do


ensino de história e a grande dificuldade que as pesquisas percebem diz
respeito a falta de clareza do porque se ensina a História desta ou daquela
forma o que torna incompreensível para as crianças e jovens como se
relacionar com o passado, o presente e o futuro tendo a História como princípio
de sentido de orientação.

O ensino da História controversa, tensa ou "Burdening History" [VON


BORRIES, 2011] pressupõe um envolvimento com o processo de conflito, bem
como de mudança, como estratégias de formação do pensamento histórico e
da consciência histórica. Esta forma de compreensão é complexa porque
organiza a maneira pela qual os indivíduos aprendem a interagir com o outro e
o diferente, bem como com situações do passado seja individual ou coletivo
que, muitas vezes, representam experiências conflituosas e traumáticas que os
indivíduos precisam movimentar as camadas da história para perspectivar um
futuro conjunto.

Como afirma Bodo Von Borries a aprendizagem só é possível se novas


perspectivas se ligarem às antigas sejam por sentimentos afirmativos ou
negativos. No caso dos sentimentos negativos há uma dificuldade maior na
relação a ser estabelecida por conta da tensão formada por estes sentimentos
de vergonha, angústia, culpa. Quando os seres humanos usam a História em
suas vidas e para suas legitimações e decisões, ou seja, quando eles se
orientam por meio da História para confrontar e encarar o futuro, eles escolhem
um conjunto limitado de estratégias e versões [BORRIES, 2018, p.37].

Para refletirmos a respeito desta questão iremos trabalhar a partir de um


estudo realizado com estudantes do curso de História da Universidade
Estadual de Londrina no ano de 2018, nas aulas de prática de ensino, no
terceiro ano da licenciatura. A metodologia adotada partiu dos pressupostos da
“Aula Oficina” [BARCA, 2004]. Assim, aplicamos um questionário que serviu
como atividade para verificar as ideias previas dos participantes, alunos da
formação em docência, na disciplina de Metodologia e Prática do Ensino de
História [Na Licenciatura em História da Universidade Estadual de Londrina são
duas disciplinas de Metodologia e Prática do Ensino de História que se dividem
em I e II, respectivamente no 3º e 4º ano. O estudo exploratório que aplicamos

104
foi na turma do 3º ano do curso de História matutino]. O estudo exploratório
focalizava o conceito de “História controversa”, Histórias difíceis ou dolorosas”
e sua relação com a História do Brasil. Segundo Barca [2004], o levantamento
sistemático das ideias prévias dos alunos no início de um curso é fundamental
para ser delinear o percurso entre o momento inicial e o momento final da
intervenção educativa.

As possibilidades teórico-metodológicas que desenvolvemos estão no campo


da Educação Histórica. Defendemos que no processo de ensino aprendizagem
é importante entender a subjetividade dos sujeitos envolvidos no processo de
ensino aprendizagem escolar, buscando compreender suas carências de
orientação, contribuindo para que, a partir dos conhecimentos históricos, dotem
de sentido o viver no presente.

Dentro da perspectiva de entender como o passado se concretiza no presente


tendo como pressuposto que o professor de história defenda um compromisso
com a memória nos valemos de uma atividade de um livro didático de Israel
onde é sugerido aos alunos que assinem um certificado de compromisso com a
memória se comprometendo a fazer lembrar algo que considere importante
para que “la memoria de lo ocurrido durante la shoá siga viva”. [TUGENDER,
S/D, p. 44]. Esta metodologia de ensinar história não se baseia apenas no
conceito de criar empatia com os sujeitos compartilhando suas dores e
sofrimentos para o entendimento do passado.

Esse “Certificado de compromisso com a memória”, com o intuito que a memória do


evento siga viva, é uma amostra bastante significativa da forma como o YadVashem
pensa pedagogicamente o ensino de história do Holocausto. Não se trata somente de
contar uma história baseada no antigo conceito de fontes primárias, sensibilizando
crianças e jovens, com a comunidade judaica fazendo-os compartilhar a dor e o
sofrimento do trauma da Segunda Guerra Mundial. É mais que isso. A intenção é a
sensibilização para a formação de militantes da memória, que possa servir na
consolidação, parafraseando o professor Pieter Lagrou, de uma “memória patriótica”
[LAGROU, 2001]. As crianças que terminam a leitura desse material de ensino não
estão apenas fechando um livro cujo final é uma atividade de classe, mas estão se
comprometendo a ser uma sentinela da memória, uma espécie de guardião do
passado, no qual o fundamental é transmitir a história do evento traumático para que
seja evitada sua repetição. [SILVA; SCHURSTER, 2016, p.768]

Na pergunta em questão foi sugerido aos alunos que enquanto professores se


comprometessem a manter viva uma determinada memória traumática da
História do Brasil necessária para as gerações futuras entenderem seu
passado e perspectivarem seu futuro. Na perspectiva de compreender de
forma profunda como essas feridas do passado foram causadas e como elas
refletem diretamente no tempo presente de determinadas sociedades. [SILVA;
SCHURSTER, 2016, p. 748]. Nas respostas dos futuros professores
apareceram quase na totalidade conteúdos substantivos relativos aos
acontecimentos históricos de maior tensão da História do Brasil. Dois
estudantes optaram por indicar indivíduos que de uma forma ou de outra
sofreram perseguições no passado. A fragilidade e a vulnerabilidade humana

105
são os pontos iniciais para os conceitos de valores humanos na natureza
humana. Eles nos levam à necessidade de educação, auto cultivação e
solidariedade social. [PYDD NECHI, p.70]

Me comprometeria em manter viva a memória dos judeus, negros, homossexuais


todos aqueles que foram vítimas de um genocídio violento, simplesmente por
intolerância.
Me comprometo a manter viva a luta pelos direitos dos povos oprimidos e das
mulheres.

Um outro estudante optou por entender que seu compromisso é com a História
ciência e sua forma de ensinar:

Como professora de História me comprometo em buscar me aprofundar em questões


traumáticas e controversas principalmente brasileiras, para ensinar aos alunos que a
História é de extrema importância para o presente. Também me comprometo a
apresentar o processo de construção do conhecimento histórico por meio de pontes,
para desconstruir a ideia de que os historiadores “tiram as coisas da cabeça”.

Outros alunos apontaram partes traumáticas da História brasileira como


necessária ao comprometimento do professor, para tanto escolheram temas
relacionados aos conteúdos substantivos da História escolar.

Me comprometo a manter viva a memória da escravidão no Brasil, pois necessitamos


ainda de lutas de igualdade, luta contra o racismo para que nunca esqueçamos esse
período de muita dor.
Me comprometo a manter viva a memória da escravidão brasileira, fugindo de
distorções tais quais as implicadas em dizer que já havia escravidão na África ou no
mito da democracia racial. Trabalhar como era e as consequências para os africanos
até os dias atuais sem permitir que a “dívida” seja desvinculada da sociedade
brasileira.
Manter viva a memória da luta indígena por direitos no Brasil abordando em minhas
aulas as políticas públicas que cada governo proporcionou, expondo os massacres do
campo e o genocídio indígena.

Observamos pelas respostas dos licenciandos, futuros professores de História,


o quão importante é compreender o passado histórico, por meio da
problematização da experiência traumática dos povos e grupos historicamente
oprimidos, relacionando-a com a própria experiência histórica no tempo
presente. Nesse sentido, a formação do pensamento histórico contribui para
que sejam trazidas à memória tais experiências com o fito de que as opressões
não voltem a ocorrer, seja sendo reproduzidas com os mesmos mecanismos
do passado, seja sob novas roupagens no presente, possibilitando às atuais e
futuras gerações, um horizonte de expectativa [KOSELLECK, 2006] firmado na
luta pela dignidade humana.

A discussão em torno da manutenção da memória da experiência traumática


com a finalidade de criar horizontes de expectativa que privilegiem a dignidade
humana a todos os povos e grupos, pode ser pensada a partir da relação dos
seres humanos com o tempo. Rüsen [2001] apresenta duas formas com as

106
quais o tempo se coloca às pessoas. Inicialmente, o tempo se apresenta de
forma natural, ou seja, todos nós nos deparamos com o fluxo contínuo do
tempo, o qual atua como impeditivo dos projetos que concebemos. O “tempo
natural” é o tempo da vida, da mortalidade. Assim, sua passagem se constitui
como obstáculo para a satisfação de nossos interesses à medida que
apresenta as mudanças ocorridas no mundo e em nós mesmos, sejam as
marcadas pelas alterações tecnológicas, culturais, econômicas, políticas e
sociais, sejam as reveladas pelas rugas do rosto ou pela lentidão do nosso
caminhar.

No entanto, há possibilidade de resistir à passagem do tempo natural refletindo


constantemente a seu respeito. Nesse sentido, o pensamento histórico,
cientificamente concebido e relacionado conscientemente à vida, possibilita a
criação de outro tempo. Rüsen [2001] o chama de “tempo humano”.

O tempo humano é o tempo da imortalidade, da transcendência. A consciência


histórica atua com o objetivo de construir possibilidades de permanência das
funções de orientação existencial concebidas intelectualmente, não só na
experiência de sua geração, mas na sua continuação post-mortem. Nesse
sentido, as operações mentais da consciência histórica possibilitam que
compreendamos nossas próprias transformações temporais, bem como da
sociedade na qual estamos inseridos, apontando para a criação de
possibilidades de orientação que transcendam nosso tempo vivido, a
experiência. Projetar um mundo melhor para as futuras gerações demanda a
conscientização histórica. Algo que pode ser deixado como legado para as
gerações posteriores.

Um ser humano que não constrói a habilidade de interpretar as mudanças de


sua sociedade se conforma em ser objeto e não sujeito de sua ação. Abre mão
do exercício da autonomia para agir e, por isso, está condenado a ser tomado
pelo tempo natural, pois não terá condições de orientar sua própria experiência.
Acabará alienado, ou seja, a reboque da História. Entretanto, um Ensino de
História fundamentado em princípios da ciência histórica pode contribuir com a
formação das operações mentais da consciência histórica a fim de que o
estudante não se conforme [no sentido de tomar a forma] ao tempo natural,
antes reflita a respeito do tempo humano, o que o fará interpretar sua própria
experiência temporal e as experiências que lhe foram legadas, e colocar-se,
autonomamente, perante as relações de poder numa sociedade, constituindo
sua própria orientação.

A consciência histórica é, pois, guiada pela intenção de dominar o tempo que é


experimentado pelo homem como ameaça de perder-se na transformação do mundo e
dele mesmo. O pensamento histórico é, por conseguinte, ganho de tempo, e o
conhecimento histórico é o tempo ganho. [RÜSEN, 2001, p.60]

Conhecer experiências históricas próprias e alheias e refletir a seu respeito por


meio da contribuição da ciência histórica possibilita a construção de
consciência histórica, ainda que as contingências temporais sejam difíceis e
traumáticas. Conhecer, interpretar, trazer à memória o passado histórico de

107
modo que este componha nosso repertório analítico, ou seja, desenvolver
literacia histórica [SCHMIDT, 2009] para o exercício no espaço de experiência
com vistas a prospectar o horizonte de expectativa. Em resumidas palavras, ter
consciência histórica implica conhecer o passado com o fim de se direcionar-se
no presente numa orientação com sentido próprio, construído racionalmente
para uma ação intencional futura, mesmo que está não possa efetivamente ser
realizada no tempo natural, mas adentrar a transcendência do tempo humano.
A lide dos seres humanos com o tempo sempre existiu. É condição histórica.
Coube, cabe e caberá a todos nós o envidar de esforços para conscientizarmo-
nos perante sua passagem, gerando sentido para a vida.

Para Rüsen, essa especificidade existe no sentido dado à orientação temporal


na narrativa de cunho histórico. Isso não é fictício, criado literariamente.
Decorre da conclusão de que o pensamento histórico somente se constitui
como tal se estiver intrinsecamente relacionado à experiência humana. Emerge
da necessidade de satisfazer interesses de orientação dos seres humanos e,
por isso, objetiva a interpretação do passado com vistas à compreensão do
presente e antecipação do futuro. Essa relação cognitiva entre as diferentes
temporalidades compõem a História, pois nela está subsumida um processo
consciente de rememoração:

[...] “História” é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a
fim de poderem ir à frente em seu agir, de poderem conquistar o futuro. Ela precisa ser
concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, de ações humanas, no qual a
experiência do tempo passado e a intenção com respeito ao tempo futuro são
unificadas no tempo presente. [RÜSEN, 2001, p.74]

Destarte, a História, para ser compreendida como tal, deve se relacionar com a
vida. A consciência histórica é o que torna aparente essa relação na forma de
experiências vitais orientadas que revelam identidade. Consciência que se
constitui por meio do pensamento histórico que reflete a respeito das
experiências de si e da sociedade, revelando-se em forma de narrativas
organizadas para darem sentido à vida, em quaisquer tempos, sobretudo em
tempos traumáticos, desafio constante de uma Educação Histórica que objetive
contribuir para a luta constante pela dignidade humana a todos.

Referências
Marlene Cainelli é Pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação Mestrado e
Doutorado em Educação e História da Universidade Estadual de Londrina.
Investigadora do CITCEM- Centro de Investigação Transdisciplinar: Cultura,
Espaço e Memória- Grupo de Investigação: Educação e desafios Societais da
Universidade do Porto/Portugal.

Ronaldo Cardoso Alves é Docente do Departamento de Estudos Linguísticos,


Literários e da Educação da Universidade Estadual Paulista – UNESP/Assis e
do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Estadual
de Londrina – UEL – Brasil. Coordenador do Laboratório em Estudos e
Pesquisas em Didática da História – LEPEDIH – UNESP/Assis.

108
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[Org.]. Para uma Educação Histórica de Qualidade. Braga: Centro de
Investigação em Educação, 2004. p.131-143.
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Revisão de César Benjamin. Rio de Janeiro: Contraponto & Ed. PUC-Rio,
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I.Perspectivas em Educação Histórica. Actas das Primeiras Jornadas
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Psicologia, Universidade do Minho, 2001.
PYDD NECHI, Lucas. O novo humanismo como princípio de sentido da
didática da história: reflexões a partir da consciência histórica de jovens
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RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência
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Universidade de Brasília, 2001.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora. Literacia Histórica: um desafio para a educação
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Ensino de História. Centro de Letras e Ciências Humanas, Universidade
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TUGENDER, Mariela. Ana, Hanka, Jana, Hana. Cuatro vidas distintas y muy
parecidas. Proposta de atividade do livro. Jerusalém: YadVashem, s/d.

109
LIBERDADES PRECARIZADAS: UM ESTUDO SOBRE AS
MOVIMENTAÇÕES INTERNACIONAIS DE FUGA DAS PESSOAS
ESCRAVIZADAS NA FRONTERA OESTE DO BRASIL [1829-1850]

Newman Di Carlo Caldeira

Ao pensarmos nas movimentações de fuga das pessoas escravizadas,


algumas imagens parecem naturalizadas, como a ideia de que as mesmas
formavam quilombos ou conseguiam suas liberdades, o que nem sempre se
confirmava. Enquanto Stuart Schwartz considera as evasões das pessoas
escravizadas como algo inerente ao sistema escravista [SCHWARTZ, 2001, p.
220-221], Neil Roberts as interpreta como uma chave importante para a
reelaboração dos conceitos de escravidão e de liberdade [ROBERTS, 2019, p.
9-10].

Procuraremos nortear essa análise sobre as movimentações das pessoas


escravizadas oriundas do Brasil para a Bolívia a partir do diagnóstico feito por
Roberts. Em Freedom as Marronage, o autor defende a necessidade de serem
desenvolvidas mais categorias e distinções a respeito dos contextos
transitórios que remetem à passagem da condição de escravizado à de pessoa
livre. Uma das teses centrais da obra de Roberts se concentra no conceito de
liberdade, considerado pelo autor como uma palavra-chave na cultura política e
no pensamento modernos.

Na esteira da obra de Roberts, entendemos que o conhecido binômio cativeiro


e liberdade, presente nos debates jornalísticos, políticos e jurídicos do Brasil
oitocentista, muitas vezes não contemplam inúmeras gradações que
contribuíam para alargar os significados que podiam ser atribuídos às vivências
inerentes à categoria de liberdade [SCOTT, 2005; PATTERSON, 1982, p. 209-
261]. Em função disso, partimos do pressuposto de que as práticas sociais
assentadas nos processos de escravização e na manutenção de seres
humanos na condição de escravizados, assim como suas respectivas
libertações, não podem ser compreendidas como ambivalentes ou simétricas
por inexistirem correspondências exatas ou sequer aproximadas entre ambos.

Os variados graus de autonomia e as formas de protesto experimentadas pelos


escravizados a partir das brechas existentes tornaram a conquista da liberdade
algo tangível, mesmo quando em cativeiro [FLORENTINO, 2005, p. 338]. Para
tanto, as fugas de caráter temporário ou não se apresentavam como uma
alternativa capaz de fazer com que as pessoas escravizadas passassem a
viver longe do alcance do Estado, de seus representantes e de seus sistemas
judiciários, assim como dos proprietários ou amos. As travessias e passagens
internacionais reforçavam essa perspectiva na medida em que os fugitivos
conseguiram, em alguns casos, se colocar ou se manter fora do alcance do
rigor das leis e das autoridades existentes em seus locais de origem.

Ademais, as movimentações de fuga agregavam em si novos significados para


a concretização de uma liberdade possível, ainda que não reconhecida pelas

110
autoridades envolvidas e fora das definições legais dos Estados que os
acolhiam, nos casos internacionais. Ao migrarem, os fugitivos passavam a se
sujeitar a um conjunto de leis e práticas sociais até então provavelmente
desconhecidos da maioria dos prófugos, mas que, de todo modo, passariam a
regular suas vidas e suas possibilidades. Mesmo sem conhecer os meandros
jurídicos em relação à situação que enfrentariam ou de possuírem garantias
legais de que melhorariam suas condições de vida e de trabalho, muitos
escravizados que habitavam o lado brasileiro escolheram essa modalidade de
fuga. As oportunidades oferecidas pela mobilidade espacial certamente
motivaram muitos escravizados a fugir.

As travessias internacionais, ainda que bem-sucedidas, resultavam em algum


momento em algo provisório ou mesmo precarizado em função de as
autoridades locais, regionais ou nacionais condicionarem à questão a
entendimentos pessoais que não observavam princípios jurídicos mais gerais,
como cartas constitucionais, códigos, ordens, decretos e regulamentos [DÍAZ
VILLAMIL, s/d, p. 355-357]. A ausência de consensos mínimos entre as esferas
de governança, juntamente com as distâncias entre os departamientos
bolivianos fomentaram o descumprimento de legislações vigentes no tocante
às garantias dos estrangeiros asilados. Embora prevista a libertação dos
indivíduos que buscassem asilo em território boliviano pela primeira carta
constitucional, publicada em 1826 [BOLÍVIA. Constituição Política da República
da Bolívia, de 19/11/1826], a falta de unificação linguística e a publicidade falha
na divulgação das normas aprovadas geraram conflitos de jurisdição entre as
autoridades e incrementaram os possíveis desrespeitos em relação à condição
legal dos recém-chegados [Arquivo Histórico do Itamaraty [AHI] 308/02/08 –
Correspondência anexa ao ofício nº 5, de Cuiabá em 14/9/1835].

A mobilidade de longa distância implicava em mais do que ter de lidar com


regras, oportunidades e imposições existentes do outro lado da fronteira, sendo
necessário considerar que os fugitivos teriam que percorrer locais inóspitos ou
desconhecidos até chegar em seus destinos. Durante o trajeto, poderiam se
deparar com paisagens que facilitariam ou não suas movimentações, como
florestas, rios, serras, montanhas etc., comumente usadas como esconderijos
pelos escravizados. Em suas passagens, os caminhos poderiam ser
percorridos a pé, a nado ou de barco, dependendo das condições do terreno. A
viabilidade da circulação estava sujeita às cheias dos rios, mas também aos
insetos pestilentos e às febres letais, havendo ainda a necessidade de serem
transpostos os obstáculos humanos, como as diversas etnias indígenas que
habitavam os caminhos da travessia. Em função das circunstâncias, os
indígenas poderiam se aliar aos quilombolas, da mesma forma que aos
fugitivos que estivessem apenas de passagem, mas, segundo João José Reis
e Flávio Gomes, os índios aparecem frequentemente associados às tropas
repressoras em razão das recompensas prometidas pelas autoridades [REIS;
GOMES, 1996, p. 19].

A imagem costumaz de que as fugas praticadas por pessoas escravizadas


resultavam na formação de quilombos encontra nas passagens em direção à

111
Bolívia um ponto de inflexão, que serve para analisarmos as movimentações
internacionais. A opção dos fugitivos de migrarem para o território de outro
Estado serve, por si só, para problematizar a associação entre as fugas e a
reunião de quilombolas. Outro ponto a ser considerado refere-se à natureza
dos próprios quilombos, que representariam nas palavras de Carlos Magno
Guimarães, uma espécie de “negação da ordem escravista” [GUIMARÃES,
1988, p. 45-53]. No entanto, consideramos que as ilações entre as fugas, a
formação de quilombos e as passagens internacionais ficariam mais bem
contempladas se partirmos da premissa de que os quilombos não
representavam uma negação da ordem, em função da possibilidade de haver
uma convivência pacífica com os parâmetros legais e sociais que regulavam as
sociedades circundantes, como no caso das complexas malhas de interesse e
das relações comerciais que mantinham com diversos agentes sociais
[VOLPATO, 1996p. 231].

Embora não seja possível afirmar que novas escravizações de pessoas


fugitivas fossem uma prática corrente no interior dos quilombos, há registros de
que as mesmas se apresentavam como uma das muitas possibilidades
associadas à fuga [GEARY, 2006, p. 321-322], acrescentando mais riscos às
travessias. Os casos de reescravização de foragidos no interior dos quilombos
ainda reforçam a lógica de perpetuação ou de possível convivência com regras,
tradições e costumes existentes tanto no continente africano quanto nas
sociedades do entorno. Acreditamos que as movimentações internacionais de
fuga também não sirvam para indicar um rompimento com a chamada ordem
escravista, sendo, antes, uma espécie de diálogo baseado na percepção dos
escravizados em relação aos contextos políticos e sociais em que estavam
inseridos. A ausência de uniformidade no trato com os escravizados/fugitivos
pelas sociedades do entorno não passava despercebida pelos mesmos, que
viam nos deslocamentos a chance de poderem reinventar suas próprias
identidades, manejando as conjunturas internacionais a partir de alguma noção
acerca da validação do princípio de territorialidade nos contatos entre os
Estados-nação [FLORES, 2014, p. 90-94].

Em virtude das dificuldades apontadas, a fuga de longa distância


provavelmente não figurava entre as primeiras opções para as pessoas
escravizadas por se tratar de uma estratégia difícil de lograr êxito [VOLPATO,
1987, p. 68-73; MEIRELES, 1989, p. 119-188]. Mesmo nos casos em que tais
ações fossem bem-sucedidas, os fugitivos abandonavam não apenas as
lógicas que orientavam o funcionamento da instituição no lado da fronteira em
que residiam, mas também seus laços consanguíneos e de solidariedade, as
paisagens cotidianas, suas relações parentais e as atividades rotineiras. Ao
analisar o perfil dos fugitivos, Marcia Amantino indicou a existência de
subdivisões pautadas por gênero, etnia, aspectos culturais e locais de
procedência dos mesmos, com destaque para as categorias de crioulo e de
africano, que assumiram um destacado papel em seu estudo [AMANTINO,
2006, p. 61-69].

112
Os desdobramentos militares das disputas políticas entre os diversos
segmentos da elite, assim como os conflitos sociais decorrentes das
disparidades econômicas existentes no interior das províncias fomentaram a
elevação do número de evasões. Em meio ao Período Regencial [1831-1840],
um movimento político e social de cunho popular que ficou conhecido como
Cabanagem, ocorrido na província do Grão-Pará entre 1835 e 1840, ilustra a
forma como os enfrentamentos entre as elites políticas nacionais ou centrais e
aquelas mais identificadas com os interesses regionais ou locais puderam ser
instrumentalizadas pelas pessoas escravizadas. Em meio aos primeiros
reveses nas lutas contra os cabanos, as tropas oficiais desferiram uma violenta
repressão contra os mesmos, promovendo milhares de assassinatos e
concorrendo para um sem-número de mortes [RICCI, 2007, p. 5-8].

No meio das disputas, os indígenas, os mestiços, os africanos livres, os libertos


e os escravizados, assim como os proprietários de escravizados, os posseiros
e os sitiantes, ajudaram a engrossar a fila dos descontentes, que vinha sendo
puxada pela insatisfação da população livre e pobre em relação às precárias
condições de vida. No caso das pessoas escravizadas, José Maia Bezerra
Neto considera que as mesmas faziam “política por conta própria”, uma vez
que a bandeira da abolição não se constituía em ponto comum entre os
cabanos [BEZERRA NETO, 2001, p. 76].

Entre os pontos de aproximação dos estratos sociais menos favorecidos,


destacamos o conhecido temor do alistamento militar compulsório, prática
adotada com mais ênfase pelas autoridades em tempos de guerra
[PEREGALLI, 1986, p. 29; IZECKSOHN, 2001, p. 89-95]. Havia ainda a
ameaça de incorporação de índios, negros livres, libertos e mestiços ao Corpo
de Trabalhadores, que, pela lei de 25 de abril de 1838, determinou a
competência exclusiva das governantes para classificar tais indivíduos como
uma ameaça à ordem e assim fazê-los servir em lavouras, na construção de
obras públicas ou na prestação de serviços aos particulares mediante
pagamento. Shirley Nogueira descreve uma estrutura de funcionamento
militarizada, em que os trabalhadores eram alocados em companhias que se
subdividiam em esquadras [NOGUEIRA, 2009, p. 265].

A amplitude de tais movimentações foi múltipla e assumiu inúmeros


significados, sendo necessário considerar que as movimentações de fuga
podem ser caracterizadas como “internas”, relativas aos casos de evasão
ocorridos dentro dos imprecisos limites territoriais das províncias de origem dos
prófugos ou como “externas” ou internacionais. Em relação às movimentações
de fuga ou às travessias, os avisos trocados entre os membros do ministério
dos negócios estrangeiros do Brasil com os presidentes das províncias do
Grão-Pará e de Mato Grosso demonstram que nem todos os escravizados que
cruzaram as linhas de fronteira internacional eram, necessariamente,
provenientes das províncias ou localidades mais próximas dos locais de refúgio
[BANDEIRA, 1988, p. 123; SILVA, 2001, p. 158-159; 161-162]. Desse modo, a
instrumentalização das fugas aparece atrelada às brechas existentes em

113
função do desconhecimento das autoridades em relação aos limites legais de
suas atuações.

Seguindo a leitura das fontes, o cuidado dos governantes da província de Mato


Grosso sugere que as pessoas que pretendiam entrar no Brasil seriam, na
verdade, escravizadas fugitivas do solo brasileiro [AN – [IJ1 918]. Aviso n° 58,
de Cuiabá em 11/8/1835]. Em meio às investigações, localizamos uma Ordem
publicada sob orientação dos dirigentes bolivianos que faziam parte do governo
central no ano de 1833, que tornava privativa a competência dos
representantes centrais na emissão dos passaportes para as pessoas que
pretendiam migrar ou emigrar. Desse modo, passava a ser proibida a
expedição de tais documentos por representantes dos governos locais, como
corregedores e governadores [BOLÍVIA. Archivo Histórico de la Honorable
Camara de Diputados. Coleccion Official de Leyes, Decretos, Ordenes,
Resoluciones &c, años 1833, 1834, y hasta la instalacion del Congreso de
1835. [La] Paz de Ayacucho: Imprenta del Colegio de Artes, 1835. p. 50. Orden
de 27 de junio de 1833]. Desconhecemos as razões que levaram os dirigentes
centrais a tomar essa decisão, mas os pedidos feitos dois anos depois pelos
asilados às autoridades locais revelam que as determinações não vinham
sendo cumpridas.

A inexistência de convenções, atos, acordos, tratados etc., acordados entre as


chancelarias brasileira e boliviana tornou possível que pessoas acusadas de
cometer crimes ou perseguidas por diferentes razões dentro dos limites de um
Estado migrassem para viver sob a proteção do outro. A razão para as
travessias era a aplicação do princípio de territorialidade dos delitos, pelo qual
um crime ou uma infração cometida no exterior não seria punida pelas
autoridades locais. Na prática, as acusações eram invalidadas pelo fato de os
atos infracionais ou criminais não retroagirem em contextos diversos daqueles
em que tivessem sido praticados [CALDEIRA, 2017, p. 117-121]. Em razão
disso, os pedidos de devolução ou de extradição dos fugitivos asilados feitos
pelas autoridades brasileiras muitas vezes não foram sequer respondidos pelos
bolivianos. Ao escolherem fugir em direção ao território boliviano, alguns
prófugos demonstravam ter alguma noção a respeito do quanto os conflitos de
jurisdição e soberania poderiam favorecer seus interesses [AHI [211/01/18].
Ofício n° 11, de 22/11/1845].

No tocante às evasões em direção à Bolívia, os governantes daquele Estado


nem ao menos as consideravam como algo passível de punição desde 1830,
quando foi publicado o primeiro Código Penal, que previa a libertação das
pessoas escravizadas [BOLÍVIA. Código Penal Boliviano. [La] Paz de
Ayacucho: Imprenta del Colegio de Educandas, 1830]. Enquanto isso, as
brasileiras procuravam revalidar o direito de propriedade dos senhores, mesmo
nos casos em que as propriedades se encontrassem em domínio alheio. Para
tanto, sugeriram a utilização do Direito das Gentes como parâmetro das
negociações diplomáticas, mas o mesmo se mostrou inviável em razão de
estabelecer a reciprocidade dos atos internacionais como base de seu
funcionamento. A inexistência de casos análogos remonta ao ano de 1826,

114
momento em que os governantes bolivianos adotaram a primeira carta
constitucional. A carta, apesar de ter proibido a introdução de novos
escravizados e ter previsto a abolição da vigência do trabalho escravizado,
serviu, ao mesmo tempo, para criar um regime jurídico misto ao legitimar a
perpetuação da propriedade escravizada, nos casos em que as transações
comerciais tivessem ocorrido antes da entrada em vigor da carta [JORDAN DE
ALBARRACIN, 1978, p. 33-44].

De todo modo, os assuntos relativos à extradição, à repatriação ou à devolução


das pessoas asiladas continuavam em aberto por inexistirem legislações em
ambos os Estados que tipificassem os atos de fuga como ilícitos. Com relações
diplomáticas marcadas por acusações mútuas, brasileiros e bolivianos viram os
episódios de reclamação motivados pelo roubo do capital investido pelos
proprietários brasileiros se avolumarem sem chegar a um acordo sobre a
matéria [CALDEIRA, 2013, p. 38-40, 53-62].

REFERÊNCIAS
Newman Di Carlo Caldeira é Pós-doutor em História pelo Departamento de
História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – FFLCH/USP. Professor do curso de História do
Instituto de Ciências Humanas do Pontal [ICHPO], da Universidade Federal de
Uberlândia, Ituiutaba, Minas Gerais, Brasil. Agradeço ao Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq] pelo apoio financeiro
prestado à pesquisa. O mesmo destaca que o presente texto é um extrato de
um artigo aprovado para publicação pela Revista de História da Universidade
de São Paulo [USP].

AMANTINO, Márcia. Os escravos fugitivos em Minas Gerais e os anúncios do


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117
GENEALOGIA FLUMINENSE NA PRIMEIRA REPÚBLICA: OS ARNOLDI
BOSISIO

Rafael de Almeida Daltro Bosisio

I
Desde 2006, quando eu e meu irmão, Fabio Bosisio, iniciamos uma grande
pesquisa genealógica sobre nossa família, com enfoque na linhagem dos
Bosisios, encontramos muitos desafios e caminhos tortuosos que a própria
família se sentia incomodada em percorrer por inúmeros motivos.

Além dos desafios comuns a qualquer pesquisa – busca por fontes primárias,
compreensão dessas fontes entre outras questões –, a pesquisa genealógica
traz um desafio adicional, pois ela revolve memórias afetivas das famílias, que
nem sempre desejam lembrá-las. Esse tipo de pesquisa também desmistifica
ou corrobora algumas tradições familiares repassadas oralmente por gerações.
Ela reconstrói antigos laços, revivendo memórias outrora adormecidas pelo
tempo e traz à luz histórias ainda não contadas de gerações passadas.

A pesquisa genealógica se faz relevante no contexto maior da história das


famílias, através da qual, partindo de uma perspectiva micro, é possível
compreender o macro. Por ajustarem e controlarem sistematicamente o foco de
suas lentes, os micro-historiadores estão sempre atentos à construção do real
e ao papel que o observador e seus instrumentos desempenham nessa
construção. A redução de escalas retira o foco do fato por si mesmo e
possibilita que o pesquisador possa analisar condutas individuais e coletivas,
em termos de possibilidades, as quais ele pode tentar descrever e
compreender [LEVI, 2000; REVEL, 1998].

Nesse sentido, o conceito de genealogia adotado tem como enfoque a busca


pelas origens familiares e pela linhagem, reconstruindo as estruturas de
parentesco e contextualizando-as historicamente [FOUCAULT, 1995;
HÉRTIER, 1997]. Por esse prisma, a genealogia oferece um importante auxílio
na reflexão histórica e na discussão sobre os papéis familiares à luz da micro-
história e como essa análise pode revelar o processo de formação social – seu
tecido social – de uma determinada região.

Assim, dentro do escopo desse trabalho, optou-se por fontes cartoriais –


certidões de nascimentos, casamento e óbitos – como fontes primárias da
análise, reduzindo, assim, a escala de observação à busca de sinais, vestígios,
rastros mínimos que pudessem revelar um cotidiano vivido pelos diversos
personagens, bem como uma nuance do tecido social daquela época.

II
Com cerca de quatorze anos de pesquisas, percorrendo instituições como
Arquivo Nacional, Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, Colégio Brasileiro de
Genealogia, inúmeros cartórios e sítios de busca na Internet, como Family
Search, foram localizadas dezessete certidões – entre nascimentos,

118
casamentos e óbitos –, com as quais foi possível construir a árvore
genealógica.

O trabalho adotou o modelo de árvore de costados, fazendo uso do método


Stradonitz, um sistema de numeração dos antepassados nas genealogias
ascendentes, utilizado pela primeira vez por Michel Eyzinger, em 1590,
desenvolvido em 1676 por Jerónimo de Sosa e divulgado por Stephan Kekulé
von Stradonitz, em 1898. Desde então, este método tornou-se de uso universal
[MENDES, 1996].

Com base nesse método apresentado, a árvore foi construída a partir de uma
genealogia ascendente paterna, chegando até ao antenato italiano da família,
que migrou para o Brasil na segunda metade do século XIX, e alcançando até
os avós de 5ª ascendência, segundo a linhagem paterna, tendo uma base de
quatorze indivíduos, sem contar com os filhos. A partir do antenato, isto é, o
último antepassado italiano na linhagem familiar, construiu-se uma árvore
genealógica paterna de 16 costados.

Giuseppe Zaccaria Gerolamo Francesco Maria Bosisio [foto abaixo], antenato


da família Bosisio de um dos dois ramos que existem no Rio de Janeiro, migrou
para o Brasil entre 1850 e 1870 com seu pai, o engenheiro civil Pietro Bosisio.
Giuseppe, também era engenheiro e trabalhava junto com seu pai quando
contraiu matrimônio com sua prima, Maria Carolina Arnoldi, em 15 de abril de
1876, na Igreja de São José, próximo à sua residência. Contava então 29 anos
de idade.

Giuseppe Zaccaria Gerolamo Franceso Maria Bosisio – Acervo familiar

O casamento, entre o século XIX e início do XX, dividia a vida das pessoas em
duas etapas diferentes. Entendido como um acontecimento social, o
casamento estabelecia a continuidade social e familiar daquele grupo, e dava
origem a um novo núcleo que entrelaçaria dois troncos familiares anteriormente
distintos. A união era, muitas vezes, planejada pelas famílias interessadas no
intuito de proporcionar a manutenção dessas famílias como parte de um grupo
específico, seleto e privilegiado [MUAZE, 2008, p. 54]. Portanto, um casamento
entre primos, ambos pertencentes à comunidade italiana do Rio de Janeiro,
não seria algo fora do comum sob essa perspectiva, visto que fortalecia e

119
consolidava ainda mais o núcleo familiar e, num âmbito maior, mantinha a
comunidade mais fechada em si, proporcionando o fortalecimento dos laços
comunitários. De certa forma, reproduzia-se uma dinâmica comum dentro das
comunidades de estrangeiros que viviam na cidade do Rio de Janeiro nessa
época.

Giuseppe e Maria Carolina tiveram oito filhos dessa união: seis meninas e dois
meninos, tendo uma das filhas falecido ainda recém-nascida. A chamada
primeira infância – fase que se iniciava com o nascimento até os três anos –
era uma fase extremamente perigosa, na qual a criança inspirava muitos
cuidados, pois o número de óbitos era muito grande em todas as camadas
sociais – os próprios príncipes imperiais do Brasil, Afonso Pedro e Pedro
Afonso, haviam falecido nessa fase da vida, mesmo cercados com o melhor
que a medicina podia oferecer na segunda metade do século XIX. O cuidado
com a alimentação e a parte física da criança era intenso; da amamentação
aos primeiros passos, o medo da morte súbita era constante.

Dos oito filhos, os dois do sexo masculino significavam a continuidade do nome


paterno e, sob a perspectiva da época, a manutenção da linhagem. Era
importante investir tempo e dinheiro na formação desses filhos varões – Pedro
Arnoldi Bosisio, nascido em 11 de dezembro de 1885; e João Baptista Arnoldi
Bosisio, nascido em 5 de julho de 1887 – tendo ambos seguido carreiras dentro
do funcionalismo público.

Pedro e João jovens.

De acordo com Gilberto Freyre, na sociedade patriarcal agrária brasileira do


século XIX e início do século XX, havia uma extrema especialização ou
diferenciação entre os sexos. Nesse sistema patriarcal, o sexo masculino tem
todas as oportunidades de iniciativa e de ação na sociedade, limitando as
oportunidades do sexo feminino em geral ao mundo doméstico [FREYRE,
1985, p. 93]. Ainda que já se vivenciasse nos espaços urbanos movimentos
feministas, cujas lideranças, lutavam por sufrágio universal e outras liberdades
políticas e civis, esses ideais não eram largamente difundidos e nem
compartilhados pelo tecido social [CUNHA, 2014]. As mulheres que
encampavam tais ideias eram vistas como baderneiras, mulheres perigosas,
que deveriam ser mantidas à distância da “boa sociedade” [MATTOS, 2004].

120
Em consonância com a época, a família Arnoldi Bosisio se voltou a dar uma
profissão e carreira para seus filhos homens. Em abril de 1910, Pedro Arnoldi
Bosisio – indivíduo que o presente trabalho põe em foco – ingressou na
Repartição de Águas e Obras Públicas da cidade do Rio de Janeiro, então
Distrito Federal, como praticante de 1ª classe. Enquanto, João Baptista Arnoldi
Bosisio, em 1913, ingressou como escriturário na Repartição Geral dos
Telégrafos. Ambos órgãos vinculados ao Ministério da Viação e Obras
Públicas.

Se, por um lado, João Bosisio mudou de carreira no funcionalismo público,


passando através de concurso público, em julho de 1926, para o Ministério das
Relações Exteriores, onde passou a servir como cônsul; por outro, Pedro se
manteve na Repartição de Águas e Obras Públicas, alcançando o cargo de
administrador de florestas, lotado na região da Mantiqueira – atualmente
Reserva Biológica Federal do Tinguá.

A Repartição de Águas e Obras Públicas teve sua origem na reformulação da


Inspeção-Geral das Obras Públicas, pelo Decreto n. 7.924, de 31 de março de
1910, e na reorganização da mesma repartição, pelo Decreto n. 9.079, de 3 de
novembro de 1911. Estruturada em divisões que englobavam trabalhos
técnicos e administrativos, uma das suas principais funções era realizar obras
para tentar solucionar o problema crônico de abastecimento de água na cidade
do Rio de Janeiro. Na década de 1920, a repartição, já com o nome de
Inspetoria de Águas e Esgotos [Decreto n. 16.711, de dezembro de 1924],
incorporou, dentre outras atribuições, a administração da Estrada de Ferro Rio
D’Ouro, construída em 1875 para servir à edificação de sistemas de captação
de água na Serra do Tinguá. Tinha como objetivo auxiliar nas obras de
construção das adutoras para o abastecimento de água com o transporte de
água, material e operários entre a cidade do Rio de Janeiro e a região de
Tinguá.

O cargo de Administrador de Florestas, ocupado por Pedro Arnoldi Bosisio já


no ano de 1913, tinha como principal função a preservação, manutenção e
recomposição das florestas onde nasciam os mananciais que abasteciam a
cidade do Rio de Janeiro – semelhante ao que atualmente se chama de
manejo florestal. Pelo relatório do diretor-geral da repartição, o engenheiro Luís
Van Erven, em 1913, os administradores florestais eram incumbidos de vigiar
permanentemente os mananciais e as obras de captação e adução dos canais
das linhas adutoras [BRASIL, 1915: 39]. Ainda nesse mesmo relatório, o diretor
relatou os trabalhos executados pelo administrador de florestas da Mantiqueira,
Pedro Bosisio – reparação das cercas, conservação dos caminhos, extinção
dos formigueiros, plantio e eucaliptos, reparo da comporta da represa do Meio,
aplainamento dos caminhos das represas do Meio, da Fazenda e do Ribeiro, e
o principal, a fiscalização das florestas. Ainda destaca que, “apesar da boa
vontade do administrador”, não foram executados os reparos que a sua
residência carecia [BRASIL, 1915, p. 48]. Era uma vida isolada do centro
urbano, dentro de uma região florestal, com muitos afazeres manuais que
demandavam dedicação e disposição física. Realmente, era uma vida para

121
quem gostava do convívio com a natureza e conseguia extrair dela benefícios
para o desenvolvimento da sua cidade. Talvez a atenção com a casa não fosse
tão importante, dado o volume das demandas exigidas pelo cargo. Todavia,
essa vida de isolamento numa região florestal cobrou seu preço.

III
Corria o ano de 1913; Pedro Arnoldi Bosisio já tinha três anos de serviço
público e passaria por uma grande mudança pessoal: o casamento. Aos 31 de
julho de 1913, às 17h15, na Igreja de São José, no Rio de Janeiro, Pedro
contraiu núpcias com Dolores Mendes Ferreira, sob o testemunho de Antônio
Jacinto de Faria e Américo Coda, seu colega de repartição – amanuense na
mesma divisão da Repartição de Águas e Obras Públicas.

No início do século XX, o casamento na sociedade brasileira mantinha as


características já apontada, representando uma mudança de patamar para o
casal, estabelecendo a união entre duas famílias e dando origem a um novo
núcleo familiar. Individualmente, mudava a condição dos nubentes,
transformando-os em um casal que deveria gerar filhos. Era o ingresso à vida
adulta e suas reponsabilidades.

Ambos estavam na casa dos vinte anos – Pedro com 27 e Dolores com 24 – e,
pelos relatos familiares, realmente gostavam um do outro. Não era um
casamento arranjado. Todavia, as famílias concordavam e viam com bons
olhos a união, já que, numa sociedade patriarcal, o casamento representava
segurança e estabilidade, principalmente quando o noivo era funcionário
público.

Dolores Mendes Ferreira era nascida em 1889, na freguesia de São Gonçalo,


em Niterói. Seus pais, apesar dos laços estabelecidos nessa freguesia – como
casamento de outros filhos com famílias locais –, viviam em 1913 na cidade do
Rio de Janeiro, na freguesia de São José. Estava “pronta para o casamento”.

Com o casamento, foram residir no bairro de São Cristóvão. Mas o cargo que
Pedro Arnoldi ocupava demandava grandes temporadas nas matas da
Mantiqueira. Em três anos de casamento, tiveram dois filhos, Nadir [em 1914] e
Waldir [em 1916]. O matrimônio se consolidara.

No ano de 1918, com o mundo assolado pela epidemia de influenza –


conhecida como gripe espanhola [SILVEIRA, 2005] –, a família Arnoldi Bosisio
passou por um trágico evento. Dolores Ferreira Bosisio faleceu em 16 de
novembro, em sua residência, em Xerém – então distrito de Iguaçu –, numa
região denominada Galrão, onde existia uma represa administrada pela
Repartição de Águas e Obras Públicas. No óbito consta como causa mortis
“gripe pneumônica”, sendo inevitável relacionar à epidemia de gripe espanhola,
embora, naquele momento, diante da impossibilidade de detecção da doença
em si, a causa mortis fosse geralmente determinada de forma imprecisa e
pudesse ser confundida com diversas outras febres epidêmicas das áreas
florestais. Dolores foi enterrada no Cemitério Público da Posse.

122
Vivendo há algum tempo nessa região, responsável pela fiscalização e
manutenção da represa e da floresta ao redor dela, Pedro e sua família
estavam distantes de regiões com atendimento médico mais eficiente. Talvez
essa distância e dificuldade de atendimento possam ter custado a vida de
Dolores, mas isso não é possível determinar, pois a doença tinha um alto
índice de mortalidade. Com dois filhos pequenos que presenciaram o
traumático falecimento da mãe, viúvo, com 32 anos, Pedro Arnoldi sentia
grande responsabilidade em suas costas.

IV
A análise de documentos à luz da micro-história possibilita a reconstrução de
trajetórias individuais a partir de uma escala menor e, ao mesmo tempo, ao
afastar o foco, é possível reconstruir o contexto histórico social e cultural em
que aqueles indivíduos estavam inseridos – suas alegrias, tristezas,
dificuldades, enfim, a reconstrução do seu cotidiano.

Pedro Arnoldi Bosisio reconstruiu a sua vida pessoal com um novo casamento,
em 1922, que gerou mais três filhos – um homem e duas mulheres. Sua nova
esposa “adotou” os filhos do casamento com Dolores como se fossem seus.
Continuou como administrador de florestas na região da Mantiqueira, mas, no
início da década de 1930, fixou residência em Inhaúma – uma das estações do
ramal da Estrada de Ferro Rio D’Ouro, da qual Pedro fazia uso para ir e voltar
do trabalho para casa. O segundo casamento durou quase 39 anos, até o seu
falecimento, em 29 de abril de 1951.

Referências
Rafael de Almeida Daltro Bosisio é doutor em História Social pelo
PPGHIS/UFRJ. Servidor da SEEDUC/RJ, SME/RJ e da rede privada de ensino.

Todas as imagens pertencem ao acervo da família Bosisio.


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apresentando ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil
pelo ministro de Estado da Viação e Obras Públicas dr. José Barbosa
Gonçalves. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1915.
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análise de sua trajetória de catequista a feminista. Tese [Doutorado em
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FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do
poder. Rio de Janeiro: Graal, 1995.
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da Moeda, 1997.
INSPEÇÃO-GERAL das Obras Públicas da Capital Federal.
In: DICIONÁRIO da Administração Pública Brasileira da Primeira
República [1889-1930], 2015. Disponível

123
em: http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-primeira-republica/569-
inspecao-geral-das-obras-publicas-da-capital-federal . Acesso em: 28 agosto
2020.
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no
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MENDES, Nuno Canas. Descubra as suas Raízes. Lisboa: Lyon Multimédia
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Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.
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1918. Tempo, Niterói, v. 10, n. 19, p. 91-105, Dec. 2005. Disponível em:
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77042005000200007&lng=en&nrm=iso. Acesso em 30 ago. 2020.

124
IDEIAS DE ESCRAVIDÃO

Sheila de Castro Faria

Como abordar, nos tempos atuais, o tema escravidão? Difícil e perigoso, em


alguns sentidos.

Os debates estão radicalizados, principalmente por incidentes graves como o


assassinato de George Floyd em maio de 2020, na cidade estadunidense de
Minneapolis, asfixiado por um policial branco na rua, publicamente, com a
pressão do joelho sobre a garganta da vítima, e os tiros nas costas de um
homem negro por policial branco, em agosto do mesmo ano, na cidade de
Kenosha, estado de Wisconsin. Ondas de protestos antirracistas varreram o
mundo, com destruição de monumentos que enalteciam pessoas ligadas à
escravidão. Os ânimos continuam acirrados, de um lado e de outro.

Os movimentos também exacerbaram a questão sobre o “lugar de fala”,


principalmente quando se trata de brancos analisando personagens,
comunidades ou ações negras. Entre as discussões, estão os assuntos ligados
à escravidão, e é dentro dessa questão que incluo o presente texto. Destaco-o
para permitir uma nova perspectiva, porque o tema “escravidão” não se
restringe à escravização de brancos sobre negros. Pessoas das mais variadas
cores, credos e culturas foram escravizadas na história da humanidade. A
escravidão moderna, atlântica, de cativos africanos tornados escravos na
América foi uma das mais visíveis, cujos reflexos trágicos persistem até hoje.

Esses debates permitem-me considerar o tema escravidão, no mundo, em


diferentes épocas e contextos, como bastante relevante, propiciando o debate
e a ampliação do campo de visão de estudantes ou profissionais de História.
Sou uma pessoa de cor branca, mas meu lugar de fala é o ambiente
acadêmico sério, na avaliação de pesquisas baseadas em documentos
confiáveis e em argumentos robustos. Falar de outro lugar é estimular
achismos e informações inadequadas.

Escravidão: definição
É muito comum a interpretação sobre uma relação direta entre escravidão e
exploração do trabalho na produção, para se conseguir rendimento ou lucro. A
escravidão, entretanto, não se relacionou necessariamente à exploração da
força de trabalho de um ser humano sobre outro. Relacionou-se, em suas
primeiras acepções, com a dominação de um grupo sobre outro grupo, em
particular através da guerra. Foi a guerra que produziu pessoas escravizadas,
que podiam, ou não, ter sua mão de obra utilizada para os mais variados fins,
inclusive produtivos. Tornar-se escravo passava primeiro por ser um cativo, um
prisioneiro de guerra, para depois se transformar em escravo.

A escravidão, assim, estava menos relacionada com a questão do trabalho e


muito mais com o cerceamento da liberdade do inimigo.

125
A definição estrutural de escravizar é privar a pessoa do poder, da propriedade
sobre si mesma, ao transferir esse poder a outro. O escravo não detém o
controle sobre sua própria força produtiva. Mas, todos, sejam filósofos,
historiadores, antropólogos ou sociólogos, consideram que a escravidão não
existe como um dado em si: é um processo, que precisa ser devidamente
identificado no tempo e no espaço, inclusive porque pode existir uma esfera
escravista em uma sociedade que não tem um sistema escravista. Portanto, os
estudos sobre a escravidão estão inseridos em uma categoria mais ampla, a de
trabalho compulsório.

O processo mais comum para transformar um indivíduo em escravo foi por


meio da força, da coerção física. Era, portanto, um sistema que primou em
todos os tempos pela violência. A escravidão é uma violência em si, extrema,
mas foi comum na humanidade. Apesar dessa constatação, não bastava
somente a violência física. Era necessário existir uma organização social que
se adequasse a essa formação social. Portanto, a escravidão tinha que ter a
aceitação política, moral e ética de uma dada sociedade.

Foi o que ocorreu, de forma emblemática, nas cidades da Grécia, em Roma e


em grande parte das sociedades da Antiguidade Clássica.

Em vários tratados, o tema foi filosoficamente debatido. Havia filósofos a


destacar diferença entre aqueles que “nasceram para ser escravos” e os que
foram “escravizados”. Um dos principais expoentes foi o filósofo grego
Aristóteles [384 a. C. – 322 a. C.], cujos argumentos estão no livro I da obra A
Política.

Foi o pensador que mais claramente legitimou a escravidão, ao considera-la,


em certos casos, “natural”. A principal questão no livro A Política foi justificar a
existência de formas de governo do homem sobre outro homem, daí tratar da
escravidão. Seu objetivo era preservar o espaço da liberdade dos cidadãos,
que não deveriam ser governados como se fossem escravos [tirania]. Havia, na
época, filósofos que definiam a escravidão como não natural, pois
consideravam todos os homens naturalmente livres, como o sofista Protágoras
[490 a. C – 421-15 a. C.], por exemplo. Para eles, a escravidão era o resultado
da lei do mais forte sobre o mais fraco. Aristóteles os criticava, afirmando que
eles só argumentavam através da retórica, sem, no entanto, procurar a
verdade.

Para Aristóteles, a primeira definição de escravo é ser um “objeto de


propriedade”, mas uma propriedade “animada”, diferente das propriedades
“inanimadas”, como instrumentos, por exemplo, ou uma propriedade “animada”
mas que não usa a razão, como os animais. Aristóteles considerava que o
escravo tinha alma, ou seja, era um ser humano. Mas o que distinguia o
escravo dos outros homens é ele ser “uma propriedade”, uma parte do senhor,
um instrumento de ação.

126
Aristóteles, então, explica a escravidão pela “natureza”, enquanto que, para os
sofistas, a escravidão é uma convenção, uma lei dos homens.

Para entender o que Aristóteles considera como “escravo natural” é necessário


ressaltar que o homem grego não se pensava separado de sua comunidade; a
comunidade seria anterior ao homem, que poderia morrer, mas a comunidade
permaneceria. E o homem se definia pela relação estabelecida com os outros
homens, seus iguais. Nesse sentido, a ética e a política estavam
intrinsecamente ligadas. O senso de comunidade relacionava-se ao que se
pensava sobre liberdade: somente para e entre os gregos. Isso explica, em
parte, a forte separação entre gregos e bárbaros na civilização clássica.

Para eles, o homem grego não podia ser naturalmente um escravo, a não ser
por “lei”, ou seja, vencido e escravizado em uma guerra, pela violência, em
suma. Já os bárbaros, esses, sim, poderiam ser considerados escravos
naturais, pois não tinham as características necessárias de alma, como tinham
os gregos, naturalmente dominadores.

Escravidão no Império Romano


A Grécia antiga nunca foi um estado unificado nem se constituiu em um império
propriamente dito, mas foram influentes em uma enorme área geográfica.
Sentiam-se parte de um mesmo conjunto cultural, a Hélade, por isso se auto
identificavam como “helenos”. A partir do século VIII a. C. a cultura grega se
expandiu por todo a costa do mar Mediterrâneo e do mar Negro. Certas
cidades-estado tornaram-se dominantes e colônias de cultura gregas se
espalharam por amplas áreas em torno do mar Mediterrâneo.

A influência não foi diferente nas regiões da península itálica, onde a cultura
grega predominou e se consolidou, de forma que até hoje se denomina de
cultura greco-romana. Foi sob a liderança de Roma que se consolidou o
Império, o império romano, no qual a cultura greco-romana conheceu seu
apogeu. A escravidão, já comum na Grécia clássica, se transformou em
estrutural sob o império romano. Na cidade de Roma já não havia espaço para
o trabalho livre. As conquistas se multiplicavam, dominando povos
considerados bárbaros, passíveis política e culturalmente de serem
escravizados.

Também foi no auge do império Romano que o escravo se tornou


eminentemente uma mercadoria, bem animado que podia ser vendido, trocado,
penhorado.

Roma e cristianismo
A expansão do Império romano se deu até o século I, com o fim das guerras de
conquista, na mesma época em que o cristianismo se difundia aceleradamente.
Deve-se ressaltar que a religião greco-romana era politeísta e o panteão de
deuses greco-romanos, extenso. Contrastava, assim, com os judeus,
monoteístas, de onde surgiu Jesus de Nazaré, cujo nascimento é considerado
o ano 1 do calendário cristão atualmente em uso em nossa sociedade. Durante

127
os três séculos seguintes a conversão de povos ao cristianismo em sociedades
dominadas por romanos foi enorme. A perseguição aos cristãos foi constante,
mas seu auge se deu no tempo do imperador Diocleciano, no início do século
IV, devastadora, com a proibição de culto, torturas, mortes na cruz e cristãos
jogados em circos para serem devorados por tigres e leões.

Ao mesmo tempo, a quantidade de escravos decrescia em todo Império,


acompanhada de grave crise econômica. Os latifúndios foram repartidos, e
rendeiros, inclusive escravos, passaram a lavrar as terras e a serem obrigados
a pagar impostos aos proprietários.

Os pressupostos do cristianismo deram coerência cultural a essa decadência


da escravidão na época. Eram elementos novos, e a força da fé cristã via em
Deus o pai de todos os homens, e os unia na fraternidade e na igualdade,
fossem eles romanos ou judeus, ricos ou pobres, livres ou escravos. Aliás, o
cristianismo foi especialmente aceito por escravos, que dividiam com os livres
os cultos em lugares escondidos dos olhares dos administradores romanos na
época da grande perseguição de Diocleciano.

A conversão seguiu adiante, e um imperador romano, Constantino, convertido


ao cristianismo, decretou o Édito de Milão, em 313, que concedia liberdade de
culto aos cristãos. Décadas depois, no ano 380, um outro imperador, Teodósio,
tornou o cristianismo religião do estado romano.

O declínio da escravidão no Império, portanto, mesmo com a divisão


administrativa posterior [final do século IV] entre Império Romano do Ocidente,
com sede em Roma, e Império Romano do Oriente, com sede em Bizâncio,
batizada depois de Constantinopla, além das invasões germânicas iniciadas no
século III, transformaram o sistema de trabalho em servidão, em que o
camponês cristão passou a ser a mão de obra básica, e assim permaneceu por
muitos séculos.

A doutrina da escravidão natural aristotélica perdeu grande parte de sua


aceitação, mas não significou a queda ou decadência da escravidão como
instituição. Escravos existiram durante toda Idade Média europeia, mas não
foram mais o elemento definidor ou fundamental da produção econômica, de
forma que as discussões sobre escravidão por lei e escravidão natural
perderam seu caráter ou sua função pragmáticas, situação que retornaria
séculos depois, no ocidente cristão.

O islã e a escravidão
Judeus e cristãos eram as duas únicas religiões monoteístas no mundo. A
partir do século VII, outra religião entrou para o rol do que se convencionou
chamar de “religião do livro”, o islamismo. Islã significa “submissão a Deus”. A
religião foi criada pelo profeta Maomé, nascido na cidade de Meca, na
península arábica. Maomé recebeu uma mensagem de Alá, considerado o
criador do Universo e o único Deus, através do anjo Gabriel. Maomé deveria
escrever os versos recitados pelo anjo e transmiti-los ao povo. O conjunto

128
desses versos foi escrito e o livro sagrado chamou-se Corão ou Alcorão. Em
622 d.C., o profeta e os seguidores migraram para Medina, criando a
comunidade religiosa que marcou o princípio de uma nova religião, baseada na
palavra escrita, assim como são livros sagrados o Antigo Testamento para os
judeus e o Antigo e o Novo Testamento para os cristãos.

A escravidão sempre existiu entre os árabes, principalmente nos centros


urbanos, com trabalho dedicado às tarefas domésticas e ao setor de serviços.
Mas a base da economia era o trabalho camponês em terras de grandes
proprietários, líderes militares e religiosos.

Os códigos sagrados do Islã provocaram mudança na ética da escravidão: a


principal deles foi a de que um muçulmano não poderia ser escravo de outro
muçulmano, obrigando-os a buscar escravos em povos que adotassem uma
religião diferente. Isso estimulava um amplo comércio, uma vez que os
escravos eram comprados em regiões nas fronteiras daquelas sob a
hegemonia ou conversão islâmica.

Observe que a expansão islâmica não significou a unificação política dos


territórios. Assim, foram vários os estados ou governos que se converteram ao
islamismo mas que mantiveram a independência apesar de se considerarem
membros de uma “nação islâmica”.

Por conta dessa ética escravista, o islã foi responsável pela ampliação
exacebada do comércio de escravos, sendo um dos componentes do
sistema econômico islâmico.

África, islã e escravidão


A África é um continente variadíssimo em todos os sentidos. Tratá-lo como
uma unidade, portanto, é não só inadequado como impossível. A diversidade
ambiental, social, cultural é enorme.

Havia variados tipos de sociedade, desde povos pouco centralizados até


grandes e poderosos impérios, mas muitos tinham escravos. As sociedades
com maior número deles eram composta cidades ou reinos centralizados,
urbanizados e com hierarquias bem definidas. Utilizaram amplamente trabalho
escravo na agricultura, no pastoreio ou em atividades mineradoras, assim
como no trabalho doméstico, em construções e até mesmo na burocracia. Em
algumas delas, compunham parte dos exércitos e participavam ativamente das
guerras, em que alguns até ocupavam posições de comando.

Em muitas outras sociedades, entretanto, a situação do escravo não passava


de uma dependência pessoal, não sendo considerada uma escravidão
propriamente dita. Muitos se tornaram escravos desse tipo por dívida ou como
castigo por algum crime. Havia ainda, em menor número, os que por diversos
motivos vendiam parentes a quem se dispusesse a pagar por eles. Esse tipo
de venda de parentes ou da própria pessoa como escravo existiu na Grécia

129
antiga, no Império romano, entre os árabes, em suma, em quase todas as
sociedades em que havia escravidão.

Alguns estudiosos defendem que, na África, em geral, não teria existido uma
escravidão como a do Império romano ou a do islã, nas quais o escravo era
também uma mercadoria, mas uma escravidão de linhagem. Essa tipologia
está relacionada a situações em que a sociedade tinha escravos, mas não era
economicamente deles dependente. Também não haveria compra e venda de
escravizados. O escravo colocava-se em uma relação de dependência, na qual
ele representava o aumento do número de pessoas nas mesmas funções,
inclusive trabalhando lado a lado com seus senhores. Isso significava
consolidar ou ampliar o poder de um grupo, de um clã ou de uma linhagem.
Nesses casos, o escravo e seus descendentes se incorporavam, via de regra,
à família do senhor, embora em uma situação subalterna.

Pouco se sabe sobre as condições da escravidão na África subsaariana antes


da expansão muçulmana, pois não há fontes documentais ou arqueológicas
suficientes para generalizações ou, mesmo, para trabalhos sobre regiões
específicas. Com a entrada de muçulmanos na África ao sul do Saara,
cronistas islâmicos passaram a escrever sobre as situações que observavam
naquele vasto território, aumentando as informações para os pesquisadores,
mesmo assim de forma fragmentada e sob a interpretação de estrangeiros.

Em grande parte do território da África subsaariana, a expansão muçulmana


provocou grandes transformações políticas, sociais e culturais. Os povos
islamizados do Norte da África passaram a buscar os cativos nos reinos
africanos ao sul do deserto, que eram negociados nas rotas comerciais do
Saara. Como pelas leis do Corão um muçulmano não poderia ser escravo de
outro muçulmano, era necessário adquiri-los em territórios com outras religiões,
nas fronteiras do islã. Dessa forma, os reinos, estados, aldeias e povoados ao
sul do Saara entraram na órbita do mundo islâmico.

De qualquer forma, foi a introdução do islã na África que tornou as sociedades


de grande parte dela como reservatório de escravos para os califados e reinos
muçulmanos do Norte do continente e até da Europa. Alguns analistas, então,
defendem que a escravidão em larga escala, ocorrida em impérios como os de
Gana, do Mali, do Sosso, etc., foi resultado de fatores externos, e não de
mudanças dentro do território africano. A forma desses mercadores internos
conseguirem escravos era a guerra, mas também se valiam de razias, ataques
a aldeias camponesas, para arrematar pessoas para o tráfico através do Saara.

Abordagem divergente
Alguns pesquisadores, entretanto, como o africanista John Thornton [A África e
os africanos na formação do Mundo Atlântico – 1400-1800, ed. Campus, 2004],
por exemplo, chegam a outras conclusões sobre a participação da África no
comércio de escravizados. Criticam os que consideram que a África era uma
região passiva frente à voracidade de outros povos. Para eles, é uma
interpretação vitimizadora, pelo menos desde a Segunda Guerra Mundial, e foi

130
muito utilizada como estratégia para o fortalecimento dos nacionalismos
africanos após a descolonização. Nas décadas de 1960 e 1970, argumentos
defendiam a ideia de que o eurocentrismo e o poder ocidental prejudicaram a
África, atrasando seu processo de desenvolvimento, desde muito antes da
colonização imperialista do final do século XIX, portanto, ainda no período de
tráfico de escravizados pelo oceano Atlântico.

A partir da década de 1980, essa interpretação vitimizadora foi criticada,


através de pesquisas que demonstravam os motivos que fizeram com que
fosse a África, e não qualquer outra área, uma das maiores provedoras de
escravos tanto para os reinos islâmicos quanto para a América. Seus principais
argumentos são que africanos, árabes e europeus teriam comercializado em pé
de igualdade. Os africanos não foram dominados. A escravidão e o comércio
de escravos eram uma realidade africana e os estrangeiros entraram nesse
mercado já existente.

Esses estudos provocaram grande revolta em parte significativa do mundo que


recebeu milhares de africanos na época Moderna, por ser difícil de acreditar
não haver uma identidade negra anterior. Constatou-se não terem os negros
uma identidade por conta da cor da pele. Não se consideravam africanos.
Para historiadores, como John Thornton, o comércio externo de escravos deve
ser visto como um fator autônomo na história da África, pois desenvolveu-se e
foi organizado de forma racional pelas sociedades africanas que dele
participavam, as quais tinham completo controle sobre ele.

Renascimento: cristianismo e escravidão moderna


Desde o início do século VIII os cristãos europeus foram subjugados pela
expansão muçulmana e isolados do mar Mediterrâneo. Na península ibérica, a
ocupação contou com a criação de califados e a permanência de dominadores
islâmicos por séculos, com exceção dos reinos cristãos ao Norte da península.
Esses estados islâmicos escravizaram cristãos. No decorrer do século XI,
entretanto, no contexto de início das Cruzadas organizadas por cristãos
europeus para reconquistar a Terra Santa [Jerusalém, dominada por
muçulmanos], os cristãos do Norte iniciaram as guerras de reconquista. Essas
guerras, portanto, estavam inseridas na luta entre a Cristandade e o islã: a
guerra santa.

Foi durante as Cruzadas que os ibéricos cristãos se viram livres dos


muçulmanos, tornando muitos deles escravos, por sua vez, nessas lutas. O
processo de reconquista permitiu a criação do reino de Portugal, no século XI,
e o da Espanha, mais demorada, pois as guerras duraram até o século XV.

A expulsão dos muçulmanos da Europa tornou o mar Mediterrâneo novamente


de domínio cristão. No caso dos reinos ibéricos, representou a possibilidade de
expansão marítima, de conhecimento e de conquista de terras navegando pelo
oceano Atlântico.

131
A partir do século XV, portanto, Portugal, principalmente, investiu no
conhecimento da costa da África ocidental, recebendo de lá ouro, pimenta e
escravizados. A reutilização da obra de Aristóteles A Política foi fundamental
para a justificativa da escravização de negros africanos entre os séculos XV e
XVIII. Ela foi o eixo moral e ético apropriada por teólogos, religiosos e
estadistas para a dominação. Espelhando-se na escravidão natural de
Aristóteles, os letrados cristãos consideraram que a escravidão seria permitida
por Deus como consequência do pecado original.

Na Bula Romanus Pontifex, de 1455, o papa Nicolau V elogiou a expansão


portuguesa na África, salientando não só o êxito no combate ao islamismo
como a perspectiva de conversão dos africanos pagãos, escravizados, salvos
do pecado original através do batismo cristão. Como reparação, tornavam-se
escravos.

Diversos religiosos e missionários cristãos escreveram livros e opúsculos


criticando formas e métodos de apresamento e tratamento dos escravizados na
América. Apesar dessas críticas, nenhum deles contestou abertamente a
escravidão, ou seja, não a criticaram em sua substância ou essência.

Desde os Apóstolos, o cristianismo sempre admitiu a existência da escravidão,


mesmo que muitos teólogos lamentassem que a comunhão fraterna pregada
por Cristo tivesse de suportar essa condição escravista. Atribuíram-na aos
desígnios de Deus, ao fato de que alguns deveriam purgar seus pecados ainda
em vida, herdeiros que eram dos erros de Adão. Santo Agostinho, ainda no
século IV, escreveu a mais concreta fundamentação da escravidão terrena.
Para ele, os escravos mereciam sua condição, porque eram somente carnais.
A verdadeira escravidão seria a sujeição ao pecado, esse, sim, capaz de tirar
para sempre a liberdade da alma.

Foi também Agostinho a relacionar a servidão a Cam, filho de Noé, que


escarneceu da nudez do próprio pai, condenando-o à escravidão perpétua e a
de seus descendentes, argumento ressaltado e justificado dos teólogos e
letrados católicos da Idade Moderna e legitimador da expansão sem
precedentes da exploração do trabalho de escravizados na América.

Mas foi com Santo Tomás de Aquino [1225-1274], considerado o maior teólogo
cristão medieval, ao lado de Santo Agostinho, que se desenvolveu a
concepção com base aristotélica sobre a escravidão: alguns nasceram
potencialmente escravos. Tomás de Aquino [Suma Teológica] cristianizou a
filosofia aristotélica e chegou quase a contradizer a tradição cristã, segundo a
qual a escravidão era oposta à natureza fraterna dos homens.

As ideias de Santo Tomás de Aquino sobre a naturalização cristã da


escravidão foram totalmente adequadas para justificar a realidade da
escravização, sem precedentes na História, com base comercial dos negros
africanos na Idade Moderna.

132
Entre os séculos XV e XVIII, letrados e teólogos se debruçaram sobre as
teorias desses pensadores cristãos, influenciados pela ideia de escravidão
natural aristotélica, para justificar a escravidão: a troca da liberação do pecado
original através do batismo por serviços compulsórios terrenos.

O tráfico Atlântico: escravizados de outra cor


A costa ocidental africana foi sendo reconhecida através da organização de
expedições marítimas lideradas por portugueses no decorrer do século XV,
entrando paulatinamente no imaginário europeu como terra habitada por povos
considerados pagãos.

Em fins do século, portugueses conseguiram chegar às Índias, contornando a


África, ao mesmo tempo em que o navegador Cristóvão Colombo chegava ao
Novo Mundo, posteriormente denominado de América, navegando para
ocidente.

No continente foram encontradas sociedades das quais os europeus nunca


tinham ouvido falar, inclusive porque não constavam nas Escrituras bíblicas. De
qualquer forma, assim como os povos da África, foram considerados pagãos,
donde se justificava sua escravização.

O tráfico de escravizados pelo deserto do Saara para áreas muçulmanas não


diminuiu quando os europeus instalaram suas estruturas na costa ocidental
africana para o comércio de pessoas. Na realidade, esse amplo território foi
integrado e sangrado pelos dois lados: os portos do deserto e os portos do
atlântico.

Porto do deserto: os especialistas costumam se referir às cidades da borda do deserto


do Saara, que acumulavam mercadorias para serem negociadas pelos comerciantes
caravaneiros como portos, pois tinham as mesmas funções dos armazéns dos portos
marítimos.

O funcionamento da produção para o mercado externo de gêneros da América,


como o açúcar, o fumo, o cacau, o algodão, os minérios, etc. criou uma ampla
demanda por mão de obra. Apesar da exploração de indígenas ter ocorrido em
determinadas épocas ou circunstâncias, inclusive na condição de escravos, foi
da África que partiu o principal contingente de escravizados para o trabalho nas
grandes produções da América. Calcula-se que entraram em solo americano
mais de 12 milhões de escravizados da África.

Algumas características distinguem essa escravidão: eram pessoas de “cor”


diferente da de seus proprietários e o acesso a essa mão de obra foi totalmente
comercial. Isso significa dizer que a produção do cativos se realizava através
da guerras internas ao continente africano, mas que os proprietários desses
escravizados, da América, só tinham acesso a eles através do mercado, do
comércio com os mercadores africanos.

As características da escravidão moderna podem ser consideradas a forma


mais acabada da dominação de pessoas sobre outras no sentido de extrair

133
trabalho. Algumas características representam a eficácia da dominação: era
estrangeiro, coagido ao trabalho pela violência; era uma propriedade, podendo
ser comprado e vendido; a condição de escravo era herdada da mãe, do
ventre; foram totalmente explorados como força de trabalho, para enriquecer
proprietários e comerciantes.

Como vimos, muitos teólogos e filósofos modernos criticaram as formas como


a escravidão foi executada, denunciando excessos e maus tratos, além de
formas injustas de escravização. Mas nenhum defendeu o fim da escravidão
como sistema.

Tudo mudou a partir do século XVIII. A escravidão como sistema foi duramente
criticada, e perdeu sua legitimidade teórica, porque teológica. Para começar, o
Iluminismo, ou Ilustração, foi um movimento eminentemente anticlerical. A
razão passou a explicar os fenômenos, quer naturais ou humanos, em
substituição aos argumentos religiosos.

Iluminismo e escravidão
Um dos principais expoentes do pensamento ilustrado foi o filósofo genebrino
Jean Jacque Rousseau [1712-1778], que escreveu sobre a liberdade, em
oposição à escravidão, em dois estados, o da natureza e o da sociedade. Em
Do Contrato Social [1757], Rousseau dedica um item inteiro a tratar da
escravidão, para afirmar sua realidade, mas a explica pela coerção física, não
pela natureza desigual da humanidade. Nesse ponto, discorda inteiramente de
Aristóteles, a quem cita, e discorre sobre a escravização, que poderia ser
explicada da seguinte forma: em uma guerra, o vencedor tem o direito de matar
o vencido, mas pode optar por não o fazer em troca de sua escravização. Mas,
ressalta, é um direito estipulado por lei, não é natural, é a lei do mais forte,
violenta. Volta-se, assim, aos debates da filosofia grega do século IV a. C., que
divergiam sobre ser o escravo um ser natural ou resultado das leis humanas. A
Ilustração apostou na segunda alternativa.

Dessa forma, Rousseau, que é somente um exemplo entre vários pensadores


do Iluminismo, considera a escravidão um mal social, um vício, uma desgraça,
uma superstição, conforme verbete da Enciclopédia que trata da humanidade.
A Ilustração permitiu o arcabouço teórico para o fim da legitimidade do sistema
escravista, mas condições políticas, econômicas e sociais também foram
fundamentais para o fim efetivo do sistema escravista no mundo, como a
Revolução Industrial e a Revolução Francesa.

Não houve, em qualquer lugar do mundo, inclusive na África, movimentos


contra o sistema escravista antes da Ilustração. Após a deslegitimação da
escravidão como sistema no decorrer do século XIX, foram as regiões da África
e da Ásia islamizadas as mais relutantes em acabar com a escravidão. Apesar
dessa constatação, os grupos, individualmente, não queriam ser escravizados,
queriam se tornar escravizadores. E lutaram arduamente para se livrarem da
sua escravidão e de seus pares.

134
A conclusão que podemos chegar é a de que a escravidão moderna, atlântica,
da África para a América, foi um sistema que enriqueceu ou aumentou o poder
de chefias locais africanas e comerciantes ocidentais. Os penalizados foram as
sociedades menos militarizadas, compostas por camponeses distantes das
decisões políticas e religiosas. Foi um massacre de certos grupos sociais sobre
outros. Nada tinha a ver com cor da pele.

Fim da escravidão no mundo?


Legalmente, hoje, não há país com sistema escravista reconhecido. Mas os há
sob outros nomes ou outras estratégias.

A Inglaterra aboliu o tráfico de escravizados pelo atlântico para suas colônias


na América no início do século XIX. Mas o primeiro país da América a abolir a
escravidão foi o Haiti, cuja independência, efetivada por escravizados, resultou
na formação de uma república livre da escravidão, embora com reviravoltas por
conta das guerras de independência. Depois, vários outros se tornaram
independentes, mas não no mesmo tempo em que puseram fim a seus
sistemas escravistas. Foi o caso dos últimos baluartes da escravidão na
América: Estados Unidos, após a guerra de Secessão [1861-1865], Cuba,
ainda colônia espanhola, em 1886, e o Império do Brasil, em 1888.

Mas a escravidão continuou em boa parte do mundo, principalmente no Oriente


islâmico e na África, sob outras roupagens ou denominações. Efetivamente e
legalmente, entretanto, não eram mais sistemas escravistas, no sentido de
legitimidade nem de base econômica, como o foram antes. De qualquer forma,
o fim da escravidão como sistema é muito recente, contrastando com sua
história milenar.

O Brasil, especialmente, que carrega o estigma de ter sido o último da América


a abolir a escravidão, ainda conta com resquícios de uma cultura que considera
os que exercem o trabalho braçal “naturalmente” inferiores, quer sob o ponto
de vista da inferioridade natural, quer sob o ponto de vista da filosofia clássica
aristotélica transmutada em conceito de raça biologicamente inferior, é um
conceito raciológico do século XIX que ainda encontra ressonância em nosso
mundo atual.

Referências
Sheila de Castro Faria é professora aposentada do Departamento de História
da UFF

ARISTÓTELES. Política. Madrid: Gredos, 1982.


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moderna. Tempo – Revista do Departamento de História da UFF. Vol. 3 - n° 6,
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Luiz Guarinello. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
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Cambridge University Press, 1996.

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Transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
OLIVEIRA Anderson José Machado. Igreja e escravidão africana no Brasil
Colonial. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. v. 10, n.18, jul. - dez.
2007, p. 355-387.
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Atlântico – 1400-1800. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
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VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão. Os letrados e a sociedade
escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986.

136
REFLEXÕES SOBRE A DINÂMICA COLONIAL NA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA

Sonia Maria Vieira da Silva

Para entender o processo educacional de jovens e adultos no Brasil,


destacamos a necessidade de resgatar as marcas deixadas pela colonização
do Brasil e as concepções educacionais que envolveram as ações dos jesuítas,
para tentar compreender as dinâmicas coloniais na educação brasileira.

Podemos encontrar naquele período, além do projeto de colônia, os


condicionantes que impuseram às culturas originais concepções sobre uma
educação assentada em uma única cultura, a cultura eurocêntrica.

Na atualidade, assumir tais dinâmicas coloniais, como nos propõe Claudia


Miranda [2006], é um imprescindível, para ampliarmos as possiblidades de uma
outra educação. Ou seja, uma educação que visibilize a diversidade, saberes
outros.

Os estratos da sociedade aqui incluídos como interlocutores centrais de um


estudo sobre “pertencimento socioeducacional”, por assim dizer, estão
representados como não sujeito dentro do quadro teórico dos estudos pós-
coloniais se aceitamos as reflexões de Frantz Fanon e de Edward Said. Com
essa orientação, remetemo-nos, portanto ao século XVI e adentramos os
mares do Atlântico, do Oceano Índico e do Atlântico Sul com os portugueses.

Em uma região de povos tradicionais – renomeados como indígenas pelos


europeus - os diferentes grupos sociais foram subjugados a partir de uma
lógica da neutralização de suas expressões linguísticas, religiosas, dentre
tantas outras dimensões do pertencimento humano. É início da constituição
das marcas coloniais que ainda influenciam a dinâmica organizacional da
sociedade brasileira, notadamente na educação.

A história do Brasil do século XVI está vinculada aos acontecimentos da


Europa, entre eles o processo de expansão colonial, comercial e de
catequização. Isso porque, em 1530, nos primórdios da colonização brasileira,
as estruturas socioeconômica e política se caracterizavam pelo latifúndio, pela
escravização de africanos e africanas, pela monocultura, constituindo uma
sociedade colonial-patriarcal, centrada na figura do senhor do engenho
[ARANHA, 2006, p. 139].

No tocante à educação no Brasil, para Aranha [2006, p. 138], o destaque fica


na inexistência de uma pedagogia brasileira, por conta da vinculação da forma
de pensar a educação ao pensamento estrangeiro e, além disso, o trabalho
pedagógico dos missionários religiosos tinham como objetivo final a conversão,
com “[...] a educação [assumindo] o papel de agente educador” [ARANHA,
2006, p. 139]. Ou seja, o modelo educacional que se instala em terras
brasileiras tem como elemento fundante não só o pensamento europeu,

137
invisibilizando outras formas de pensar a educação, outras culturas, num
processo permanente de apagamento das diferenças, como também estruturar
a dominação europeia [ARANHA, 2006, p. 139].

Desse modo, simultaneamente aos motivos pelos quais os portugueses


empreenderam o projeto de conquistar novas terras, ampliar o comércio, havia
também o interesse da Igreja Católica em intentar um processo de
catequização, o que nos leva a refletir sobre a concepção de educação que
acompanhou o processo de conquista.

Naquele momento a concepção era a de que a educação não era relevante,


em uma sociedade colonial-patriarcal, fundada na agricultura e na ideia de que
não havia a exigência de maiores conhecimentos. Ao mesmo tempo, o
combate à reforma protestante, difundindo a religião católica foram supostos
objetivos para essa conformação do Brasil [ARANHA, 2006, p. 139].

Em 1549, os jesuítas, encabeçados por Manuel da Nóbrega, empreenderam


um trabalho missionário e dito “pedagógico” de conversão, civilização, dos
povos originais. Por outro lado, estava a educação, dos colonos. Assim,
durante o período de cerca de 210 anos, os jesuítas catequizaram os índios,
educaram os filhos dos colonos, formaram novos sacerdotes e a elite
intelectual, a partir do controle da fé e da moral dos habitantes [ARANHA,
2006, p. 140].

O que colocamos em evidência é que já naquele momento do processo


iniciado pelos jesuítas havia dois objetivos, a saber: o de civilizar os povos sem
alma e o de educar os colonos. O que coloca em espaços distintos os
diferentes estratos sociais, sem uma educação formal, em contraposição às
classes dominantes – estas sim adentrando os espaços formais de
aprendizagens. É preciso considerar as concepções que influenciavam o
projeto educacional e civilizatório da educação jesuíta dos colonos e dos
índios, que nos revelam uma articulação com uma ação de dissolver as
diferenças.

Conjecturamos que o processo de apagamento das diferenças se articula com


um projeto de colonizar mentes e corpos e perpassa ações que até os dias de
hoje influenciam as práticas educativas voltadas para EJA e os demais níveis
de ensino. Com esses pressupostos, defendemos que o pensamento
decolonial pode nos ajudar a ampliar a nossa compreensão sobre o ideário
colonizador e suas implicações educacionais, como também revelar as
subjetividades/intersubjetividades que sustentam de forma singular as
desigualdades sociais, educacionais e mantém as estruturas de discriminação
de cor/raça e de gênero a que são submetidas as populações negra e
indígena.

O tema alfabetização/educação de mulheres negras, aqui nos ajuda a refletir


sobre práticas educativas eurocentradas em todos os níveis de ensino. Ou
seja, embora, originalmente, a pesquisa tratou a temática alfabetização de

138
jovens e adultos, as reflexões realizadas aqui podem ser assumidas como uma
problemática da educação brasileira.

É nessa perspectiva que acreditamos ser urgente refletir sobre a educação


brasileira como processo colonizador, que desempodera na medida em que
não forma jovens, adultos/as e idosos/as, negros e negras para o
enfrentamento da invisibilização a que são submetidos/as, ou como diria
Fanon [2008, p. 28], para combater esse processo de alienação, - que traz um
sentimento de inferioridade - a partir da conscientização daquela pessoa que
se sente subalternizada, não detentora de direitos.

Essa alienação que é fruto de um acreditar-se inferior e que atinge


especificamente negros e negras, invisibilizando, imobilizando, limitando,
mantendo-os/as como prisioneiros/as em um espaço fixo de subalternização.
No entanto, manter prisioneiras aquelas pessoas não significa passividade,
nem aceitação desse estado de coisas, pois o desejo de liberdade é desejo
do/a colonizado/a desde o momento em que a colonização se inicia [FANON,
2008].

Seja qual for o processo de colonização, o/a dominado/a deseja, justamente


um movimento inverso daquele que oprime, qual seja, buscar a liberdade, que
significa aprender a ler e a escrever, educar-se formalmente. Por isso, refletir
sobre práticas educativas outras para este grupo social [não somente para este
grupo, mas para qualquer outro grupo que esteja em desvantagem
socioeducativa] significa reconhecer a necessidade de outra educação.

No contraponto das concepções alfabetizadoras, educativas que colonizam,


refletimos sobre as possibilidades de uma alfabetização/educação decolonial
como caminho para a humanização, acesso a direitos básicos, como por
exemplo, a educação que empodera. Nesse caminho de pensar a
alfabetização/educação para indivíduos cujas vozes são silenciadas, é hora de
pensar uma educação que visibilize as vozes que estão aí, caladas por
imposição.

Sobre o pensamento decolonial, chama a atenção os modos de concepção de


processos de desconstrução das relações subjetivas/intersubjetivas erguidas a
partir da ideia de raça, sendo esse um dos fundamentos da construção de um
padrão de poder mundial, de caráter colonial.

Pensar decolonialmente seria, portanto, pensar para fora do eixo eurocêntrico,


pensar a partir de identidades próprias, forjadas a partir das distintas culturas, é
pensar, por exemplo, a partir da América Latina, num movimento insurgente
que desperta para a valorização de saberes outros. E essa forma de pensar,
externa ao mundo eurocêntrico “defende a “opção decolonial” – epistêmica,
teórica e política – para compreender e atuar no mundo, marcado pela
permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e
coletiva [BALLESTRIN, 2013, p. 89].

139
Desse modo, essa reflexão, que se constitui a partir da perspectiva dos povos
colonizados, do antagonismo colonizado/a e colonizador/a, para fora do eixo
eurocêntrico e se inicia com Aimé Fernand David Césaire [1913-2008],
defensor das raízes africana, crítico da opressão cultural do sistema colonial
francês, poeta, político e jornalista martinicano; Franz Fanon [1925-1961],
psiquiatra, ensaísta e filósofo, também martinicano e Albert Memmi [1920],
professor e escritor tunisiano, de origem judaica [BALLESTRIN, 2013, p. 92].

Também expoente do pensamento pós-colonial, Edward Said, cuja perspectiva


se funda em uma narrativa distinta à do colonizador – e recebe influências de
Fanon - propõe explicações para o mundo moderno através da “perspectiva do
negro e do colonizado”. Ambos os autores, Fanon e Said, segundo Sergio
Costa [2006, p. 118] apresentam os fundamentos do pós-colonialismo.

Por suas análises críticas ao processo de colonização e suas implicações


psíquicas, sociais e políticas para os povos colonizados, elegemos Fanon
[1968; 2008] como pensador pós-colonial para subsidiar este trabalho, suas
reflexões contribuíram de sobremaneira para a constituição do pensamento
decolonial latino americano. Sua obra nos remete ao contexto das décadas de
50 e 60 e aborda o processo de colonização da França, na Ilha de Martinica, e
o movimento de libertação nacional da Argélia, inspirou a crítica pós-colonial ao
expor os mecanismos de fixação em espaços de subalternização a que são
submetidos homens e mulheres estigmatizados pela racialização e negação
dos seus modos de pertencimento. Fanon apresenta uma crítica que
influenciou e influencia distintos movimentos políticos bem como outros tantos
estudiosos em contextos diversos da África, Europa, Ásia, Estados Unidos da
América e América Latina que trazem à tona outras histórias.

Para Frantz Fanon [1968], existe o mundo do colonizado e o mundo do


colonizador e a relação entre ambos se faz a partir de imposições do
colonizador sobre o colonizado que têm como efeito o apagamento das
identidades, mas, que ao mesmo tempo, imprime no colonizado o desejo de se
libertar, de se descolonizar, porque é a “a reivindicação mínima do colonizado
[...] que reside num panorama social transformado de alto abaixo” [FANON,
1968, p. 26].

A interpretação psicanalítica do pensador e revolucionário da Martinica sobre a


relação entre branco/a [europeu, francês] e o/a negro/a [antilhano] revela um
processo forçado de desconstrução do outro, de inferiorização com base na cor
da pele, na relação da cor da epiderme com a variável econômica, na
desvalorização da sua cultura e a valorização da cultura do europeu, na
medida em que esta é colocada como modelo de humanidade. Assim, para o
autor, uma das consequências psíquicas seria a alienação daquele/a
permanentemente inferiorizado/a que ocorre por conta de “um duplo processo:
inicialmente econômico; em seguida pela interiorização, ou melhor, pela
epidermização dessa inferioridade” [FANON, 2008, p. 28].

140
Para o enfrentamento daquela alienação Fanon [2008] propõe, a desalienação,
que implicaria na conscientização daquele/a subalternizado/a das realidades
econômicas e sociais. Saber o porquê da sua fixação no lugar de inferior, saber
quais as causas econômicas e sociais que o/a levaram a estar neste lugar,
implicando em tomar consciência de si e das estruturas sociais, políticas e
econômicas o/a levam a permanecer nesse lugar de subalternização.

Todo essa desconstrução imposta conforma-se no colonialismo


epistemológico, que se constitui a partir da atribuição da linguagem como
elemento importante para compreender o processo de colonização do outro, na
medida em que esta pode “fornecer um dos elementos de compreensão da
dimensão para-o-outro uma vez que falar é existir absolutamente para o outro”
[FANON, 2008, p. 33].

Compreendendo a língua como instrumento cultural, Fanon afirma que adotar a


língua do colonizador, compreendido como mais civilizado, será o caminho
para a humanização daquele/a que se considera inferior, pois ao possuir a
linguagem possuirá também “o mundo que essa linguagem expressa e que lhe
é implícito” [FANON, 2008, p. 33]. Ou seja, isso revela que dominar a
linguagem, a língua, do colonizador se constitui como elemento empoderador,
ao mesmo tempo em que faz com que o indivíduo, enquanto ser social se
integre, se enquadre, se aculture, ao mesmo tempo em que se fortalece ao
ampliar o “seu poder de intervenção” [FANON, 2008, p. 33].

Assim, a partir de Fanon, podemos compreender que a linguagem, a língua, é


o primeiro elemento a ser utilizado no processo de colonização e tem a função
de deslegitimar a cultura do colonizado. Por outra parte, a assimilação da
cultura do colonizador faz com que o colonizado se aproxime do que é
compreendido como individuo civilizado, mas, ao mesmo tempo, produz uma
autorrejeição de si, da sua própria cultura, pois falar a língua do colonizador
significa assumir, seus valores, costumes, modos de pensar, agir e, o que
significa a construção de um processo de invisibilização do outro.

São essas fontes que possivelmente sustentam e fundamentam a nossa forma


de compreender as diferenças inventadas e que estigmatizam e promovem um
tipo de rebaixamento que afeta inclusive políticas educativas. Vimos crescer a
naturalização das assimetrias de poder e a aceitação de ideários tais como alta
cultura e baixa cultura.

Na compreensão das teorias que predominam no campo da Educação de


Pessoas Jovens e Adultas, Paulo Freire [1987] é um autor fundamental. Com o
seu quadro analítico onde emerge a educação dialógica, como prática da
liberdade, investigativa, de valorização da cultura do/a educando/a com vistas a
sua emancipação e transformação social, Freire se posiciona, a nosso ver,
como autor alinhado com o pensamento decolonial que coloca uma posição
crítica à educação colonizadora de corpos e mentes.

141
Nos escritos de Freire [1987, p. 44-45] encontramos a concepção de que o
diálogo possibilita a transformação da realidade, porque se funda em uma
relação horizontal, simétrica, onde educador[a] e educando/a precisam desejar
a troca, a conversa, o diálogo que, segundo o autor permite o encontro entre o
“refletir e o agir dos sujeitos”. A sua impossibilidade reside “entre os que negam
aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito” [FREIRE, 1987, p. 44-45]. O diálogo permite o desenvolvimento do
pensar crítico, que significa perceber "a realidade como processo" [FREIRE,
1987, p. 47], um constante devir e não como algo estático. Para tal, é preciso
acreditar na transformação, na permanente humanização do ser humano. No
entanto, não podemos ser ingênuos e acreditar no sucesso do programa
educativo, se não respeitarmos a visão particular do mundo do outro, pois isso
se constituiria em uma invasão cultural, mesmo que seja feita com a melhor
das intenções. [FREIRE, 1987, p. 49]. E é a partir desta proposta de respeitar a
visão particular do mundo do outro e de ir à direção contrária à invasão cultural
é que podemos inserir Freire no rol dos autores pós-coloniais.

Ao analisar a sociedade brasileira Freire [1987] a define como colonial e


destaca que a sua “inexperiência democrática” contribuiu para a constituição de
um complexo cultural, que implicou no domínio dos grandes proprietários de
terras, na formação de uma elite paternalista, de uma estrutura econômica
baseada na mão de obra escrava. Estas características, para o autor,
colaboraram para a constituição de “pontos de estrangulamento de nossa
democratização”, evidenciando a nossa “inexperiência democrática”. Esta
“inexperiência” conjugada à estrutura escravocrata e, talvez possamos afirmar
contribuíram para a formação de grupos sociais marginalizados, alijados das
decisões políticas, mudos, sem poder de decisão e participação.

Sem diálogo, grande parte da sociedade foi forjada na invisibilidade, à margem


dos acontecimentos e/ou por eles quase sempre vitimada. Nosso ponto de
partida é pensar aspectos que possam nos auxiliar nas análises sobre o que
ainda permanece dessa configuração delineada pelo autor e por seus/as
interlocutores/as não apenas no contexto brasileiro. Daí, partimos de uma visão
freireana presente nos diferentes aportes latinos americanos e que marcam
também o pensamento decolonial.

Em suas análises acerca da predominância dessas críticas, Miranda [2006,


p.20], afirma: no questionamento da crítica pós-colonial, as relações de poder
presentes nas obras literárias são reflexos da imagem que se quer fixar
daqueles grupos ou indivíduos vistos como estranhos aos olhos do colonizador.
Portanto, trata-se, sobretudo, de uma dominação cultural indo além da
dominação econômica ou territorial. Para a mesma autora “os setores
controlados por uma narrativa ocidentalizada, em detrimento daquilo que se
produz em distintos espaços [...] são setores que fazem parte de uma
engrenagem de controle” [MIRANDA, 2006, p. 21]. Dessas interfaces dialógicas
e, a nosso ver, decoloniais, emergem os aspectos que orientaram nossas
primeiras impressões de estudo sobre outras pedagogias e outras concepções

142
dos sujeitos inventados como diferentes facilmente localizados nos espaços
onde dinamizamos projetos de educação em todos os níveis.

Desse modo, articulado àquela perspectiva, compreendemos, está o


pensamento decolonial, como projeto de enfrentamento da matriz colonial de
poder. Aníbal Quijano [2014] faz a distinção entre colonialidade e colonialismo
asseverando que a colonialidade se funda no colonialismo - padrão de
dominação e exploração que se manifesta a partir do controle político,
administrativo, dos recursos de produção e de trabalho de um determinado
povo concebido como diferente e, por isso, inferior, implicando em relações
racistas de poder. Para o autor, embora o colonialismo seja mais antigo do que
a colonialidade, esta foi forjada no interior daquele e tornou-se mais profunda e
duradoura [QUIJANO, 2014, p. 285].

Ou seja, apesar do colonialismo ter perdido o fôlego, a colonialidade


permanece até os nossos dias dando sentido às
subjetividades/intersubjetividades historicamente construídas no seio das
sociedades fundadas a partir do projeto de colonização, que avançou sobre a
America Latina, África e Ásia. Portanto, o colonialismo foi interrompido, mas a
colonialidade permanece enraizada. Quijano [2005] elabora o conceito
colonialidade do poder, que pressupõe a classificação e a dominação social
cuja centralidade está na ideia de raça, uma construção social. A partir desta
concepção, ou seja, da “racialização”, se estabelece um padrão de poder que
vai distinguir quem é superior e quem é inferior.

Especificamente a “raça” é a ideia central contida no conceito colonialidade do


poder, inserida como elemento explicativo das diferenças, em termos
biológicos, para distinguir grupos humanos e que vai colocar em patamares de
superioridade, o colonizador europeu, - o branco - e em de inferioridade -
índios, negros e mestiços – o colonizado, ou seja, os povos latino-americanos,
africanos e asiáticos. [QUIJANO, 2005, p. 117]. Essa “racialização”, inventada
de determinados grupos humanos, diferenciando-os do grupo europeu,
historicamente serviu e serve como recurso para a conformação de relações
sociais hierarquizadas, definindo papéis sociais e relações de trabalho.

Podemos afirmar que quando se trata, por exemplo, da relação entre mulheres
negras, trabalhadoras domésticas e suas subjetividades – inventadas ao longo
das suas existências e marcadas pela desconstrução histórica de duas
identidades, ou identidades negativas - e suas/seus patroas e patrões -
também estes com suas subjetividades construídas historicamente - o que está
em manifesto é a colonialidade do poder que está implícita em “todas e cada
uma das áreas de existência social e constituem a mais profunda e eficaz
forma de dominação social, material e intersubjetiva” [QUIJANO, 2002, p. 4].

Para nós, a colonialidade do poder seria uma forma de abonar a hegemonia da


cultura eurocêntrica, a divisão do trabalho, a partir de uma hierarquia racial, um
modo inventado de pensar e agir que legitima determinados saberes,
deslegitimando outros, criando um padrão de validade e modelos ao qual os

143
indivíduos não pertencentes à cultura hegemônica ou que [talvez] não a
dominem, são alijados. Nesse padrão de poder, as relações sociais, a
educação se estabelecem de forma assimétrica, onde determinados grupos
não têm direito a educação, de viver a experiência de ser cidadã ou cidadão, e
sim o dever de trabalhar em atividades desprestigiadas, porque não
escolarizados/as e marcados/as pela cor da pele, só lhes resta servir.

Concluindo, ao assumimos a influência eurocêntrica que funda a educação


brasileira nos orientamos para uma reflexão sobre práticas pedagógicas
alternativas como possibilidades de construção de uma sociedade e de uma
educação democráticas, na medida em que reconhecemos e valorizamos os
diferentes grupos socioculturais e seus diferentes modos de construção de
conhecimento.

A busca por outras formas de atuar é contribuir para a reflexão acerca dos
processos de alfabetização/educação de jovens, adultos e idosos, mulheres e
homens negros. É a partir da compreensão de que é preciso pedagogias
outras, tendo como base a reflexão sobre nossas práticas educacionais. Se
quisermos contribuir para a mudança desse processo permanente de
desigualdade que atinge a população negra, homens e mulheres é
precisaremos refletir sobre a alfabetização/educação como processo
colonizador, que invisibiliza, desempodera e aliena; e como possibilidade
decolonial, na medida em que valoriza saberes, empodera, desaliena.

Entender que o sistema escravocrata implantado no Brasil tem muito a nos


revelar sobre as relações de subalternização que ainda reverberam em na
educação brasileira, uma vez que os papeis sociais associados à cor da pele
são visíveis e também é ilustrativo da colonialidade do poder que permeia as
relações entre as classes sociais abastadas e as populares.

É preciso assumir que somos habitados por concepções tradicionais sobre o


saber, o ser, política e de gênero que nos levam a invisibilizar,
inconscientemente ou não ou outro, o diferente. Essas visões ao mesmo tempo
em que aprisionam a nós e aos outros se constituem como elementos
fundantes do processo histórico de desigualdades.

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Sonia Maria Vieira da Silva é Mestre em Educação, pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro [UNIRIO].

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145
A PRIMEIRA MISSÃO DIPLOMÁTICA DO PADRE ANTÔNIO VIEIRA AOS
PAÍSES BAIXOS [1646]

Thiago Groh

Nascido em Lisboa em 1608, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e Maria


Azevedo, Antônio Vieira mudou-se para o Brasil em 1612 com pouco mais de 3
anos de vida, quando seu pai reassumiu o cargo de escrivão da Relação da
Bahia – Cristóvão havia ocupado anteriormente a mesma posição até 1609- e
somente voltaria a Portugal em 1641 junto com o vice-Rei do Brasil o Marques
de Montalvão para jurar lealdade ao novo rei. [AZEVEDO, 1992 p.45-46]. No
retorno ao reino aos 33 anos, Vieira era um promissor padre jesuíta que
gozava de certa fama na Bahia por conta de seus eloquentes sermões.

A ida de Vieira ao reino era motivada pelo temor de ser declarado inimigo do
novo rei, à medida que havia proferido no primeiro dia do ano um sermão
elogioso ao rei Filipe III de Portugal. Isso ocorrera por que as notícias sobre a
aclamação de D. João IV chegaram ao Brasil apenas em fevereiro de 1641,
pouco mais de 1 mês da ruptura com Espanha [GROH, 2015 p.151]. Apesar
das suspeitas de lealdade ao novo monarca, o jesuíta logo cai em suas graças
e passa a ocupar posições de prestígios junto aos serviços religiosos da corte e
também se tornando pessoa de confiança do rei. Figura complexa, que viveu
por quase 90 anos, Vieira passou por altos e baixos junto aos monarcas
portugueses. Era como bem coloca Ronaldo Vainfas, uma fênix. Sempre
ressurgia após um fracasso político [VAINFAS, 2011]. E é assim, que o jesuíta
convence ao rei para ser enviado em missão diplomática no ano de 1646 para
Paris e Haia e parte para sua primeira aventura com diplomata em um contexto
complicado para Portugal, principalmente na relação com os holandeses que
de parceiros comerciais passaram a inimigos.

A relação entre Portugal e Holanda, que eram parceiros comerciais e


importantes praças de negócios, começou a entrar em crise ainda durante o
período da União Ibérica, quando a Filipe IV impõe restrições comerciais,
rompendo unilateralmente os contratos entre lusitanos e neerlandeses em
1621, o que motivou as investidas holandesas nas colônias portuguesas
[VALLADARES, 2006 p.35]. O conflito com o antigo parceiro comercial
significou para Portugal, após a Restauração, um problema econômico, político
e militar, à medida que era necessário reabrir os canais de venda do açúcar
produzido no Nordeste Brasileiro, receber o reconhecimento das monarquias
europeias – principalmente participando do Congresso de Vestifália onde as
forças políticas europeias se reorganizaram- e recuperar as colônias perdidas.

O processo de Restauração de Portugal percorreu então um longo caminho,


não somente temporal, mas também político e diplomático-militar que se
desenvolveu tanto no interior do Reino e Império, como em diferentes espaços
da Europa. Na luta contra o invasor holandês estabelecido pelos
pernambucanos ou nas tratativas de Vieira e outros diplomatas nas cortes. A
monarquia brigantina havia de durar mais que um inverno, contrariando os

146
diagnósticos de Filipe IV, e para tanto uma rede articulada e eficiente de
diplomatas foi necessária. D. João IV não ousou então em enviar
representantes as principais cortes [França, Inglaterra, Suécia, Holanda e
Roma] logo nos primeiros meses de seu governo.

Nesse contexto que se inserem os esforços diplomáticos do Padre Antônio


Vieira nas negociações pela recuperação do Nordeste do Brasil ocupado pelos
holandeses desde 1630, que depois da frustrada a tentativa de conquista de
Salvador em 1624 se estabelece em uma ampla faixa do Nordeste brasileiro
controlando a principal zona de produção do açúcar, tendo a cidade de Recife
como centro, em um duro golpe contra Portugal que tinha assim sua principal
fonte econômica suprimida pelo inimigo, que alguns anos depois também
conquistaria Angola controlando o tráfego negreiro no Atlântico.

Saído de Lisboa em 01 de fevereiro de 1946, na época das chuvas fato que


tornou a viagem mais cansativa, chegou a Paris vinte dias depois para se
encontrar com o Conde da Vidigueira , futuro Marques de Nisa, embaixador
português naquela cidade e que centralizava o “comando” das ações
diplomáticas para o reconhecimento da dinastia brigantina. O encontro entre o
religioso e o Conde acabou não ocorrendo, pois, o embaixador tinha saído em
viagem, deixando a embaixada a cargo de Antônio Muniz de Carvalho, que
ocupava a função de residente. Foi com ele que Vieira se inteirou das ações e
dos negócios, principalmente das tratativas para uma aliança com a França.

De Paris seguiu para os Países Baixos com uma parada na cidade de Rouen
onde havia outra importante comunidade sefardita portuguesa. O jesuíta tinha
consciência da importância desses homens para o reino, tanto
economicamente como socialmente, desde 1644 já os defendia em público,
conclamando pela volta desses homens e o relaxamento das perseguições
inquisitoriais. O Sermão de São Roque de 1644, pregado na capela real diante
de toda a corte, é o marco inicial das ideias do jesuíta sofre os judeus, ao
menos publicamente. Nesse mesmo sermão ele defende a criação de uma
companhia comercial [VIEIRA. 1858]. Sobre a passagem de Vieira por Rouen
podemos inferir um pouco do que lá fez e dos favores que obteve por meio de
sua carta remetida a comunidade local, logo que chegou a Haia [VIEIRA,
1925].

É também a partir desse contato com a comunidade judaica de Rouen que


Vieira torna-se defensor dos sefarditas portugueses no estrangeiro e publica o
apócrifo texto Proposta que se fez ao serenissímo rei D. João IV a favor da
gente da nação sobre a mudança de estilos do Santo Ofício e do fisco, causa
que passa a defender e usar para negociar junto aos judeus nos Países
Baixos. Em Haia, usando vestes seculares e espada na cintura, Vieira teve
com Francisco de Sousa Coutinho, que inicialmente o recebeu com pouca
simpatia, mas logo os ânimos passaram para uma relação amistosa, segundo
João Lúcio de Azevedo, que credita ao jesuíta e suas habilidades a mudança
de animosidade inicial por parte do embaixador português [AZEVEDO, 1992
p.90]. Ali, Vieira colheu informações sobre as negociações e negócios da

147
embaixada e ouviu ainda de Sousa Coutinho reclamações sobre as demoras
no envio de notícias de Lisboa e de orientações para o estabelecimento de um
acordo com os holandeses.

Em Amsterdã o jesuíta visitou a sinagoga portuguesa na cidade e encontrou-se


com o rabino Menasseh ben Israel, principal rabino e importante impressor. O
líder judeu havia nascido quatro anos antes de Vieira na cidade de Lisboa ou
em La Rochelle no sul da França durante a fuga de sua família para Amsterdã,
depois do pai ter sido preso e reconciliado pela Inquisição em 1603. Diferente
Saul Mortera outro importante rabino que recusou encontrar o jesuíta,
Menasseh reuniu-se com Vieira e pregou na sinagoga em sua presença. O
jesuíta animou-se com a possibilidade de diálogo e a erudição do religioso
judeu. A proximidade entre eles ampliou a afeição de Vieira pelos judeus e sua
causa [AZEVEDO, 1992 p.126].

O contato com as comunidades judaicas de Rouen e Amsterdan foram os


momentos mais relevantes e decisivos dessa missão de sondagem e coleta de
informações. Antônio Vieira retornava a Lisboa, pronto para colocar em prática
suas ideias, as quais já havia convencido o rei D. João IV a aderir. Do mesmo
modo que também tinha conseguido a indicação para a missão. “Eminencia
parda” do rei não recebeu oficialmente nenhuma carta da chancelaria com sua
missão diplomática e seu caráter, como era a pratica, papel conhecido em
Portugal como carta de crença [MIRANDA, 2003 p.6]. E junto aos ministros,
principalmente com Francisco de Sousa Coutinho, agiu nos bastidores
articulando e negociando, como um embaixador oculto, mas também tomando
frente e protagonismo em alguns momentos.

No retorno ao reino, depois de pouco mais de quatro meses, o jesuíta logo


procuro rei para lhe noticiar tudo que havia visto e ouvido no estrangeiro. E de
certo modo passou a preparar os planos para a segunda missão em 1647-48,
para buscar uma aliança com a França e resolver de vez o imbróglio com os
holandeses. Dessa primeira missão, consagrada pela historiografia com missão
secreta, o êxito do jesuíta foi mesmo junto as comunidades sefarditas de
portugueses, das quais obteve a promessa de apoio político e principalmente
financeiro. A relação com os judeus seria fundamental para Portugal na
primeira década da Restauração, não somente no momento da criação da
Companhia de Comércio, mas também no financiamento da coroa e da
empreitada diplomática [GROH, 2019].

Pensar a primeira missão diplomática do Padre Antônio Vieira permite-nos


conhecer os meandros da nascente diplomacia moderna e também a situação
política de Portugal e seu Império após o final da União Ibérica em 1 de
dezembro de 1640. Também nos permite conhecer uma das inúmeras facetas
do jesuíta, que faleceu com quase 90 anos – cego, mas lúcido- na casa do
Tanque na Bahia, onde se recolhiam os jesuítas idosos.

148
Referencias
Thiago Groh é graduado em licenciatura e bacharelado em História pela
Universidade Estadual de Londrina no Paraná [UEL], onde também obteve o
título de Especialista em História Social. Mestre em História pela Universidade
Federal Fluminense [UFF] e doutor pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Atualmente é professor adjunto na Universidade Federal do Tocantins,
campus de Araguaína. É autor da obra O Embaixador Oculto: O Padre Antônio
Vieira e as negociações entre Portugal e os Países Baixos. Editora Prisma:
Curitiba, 2015

Fontes Impressas
COELHO, P. M. Laranjo [ed.]. Cartas d´El-Rei D. João IV ao conde da
Vidigueira [ marquês de Niza], embaixador em França. 2 vols, Lisboa, 1942.
. Cartas d`El Rei D. João IV para diversas autoridades do Reino.
Lisboa, 1940.
ERICEIRA, Conde da. História de Portugal Restaurado. Porto: Livraria
Civilização, 1945 4Volumes.
PRESTAGE, Edgar [ed.]. Correspondência diplomática de Francisco Sousa
Coutinho durante a sua Embaixada em Holanda. I-III, Lisboa, 1920-1955
4volumes.
MUHANA, Adma. Os Autos do processo de Vieira na Inquisição. São Paulo:
Editora da Unesp: 1995.
VIEIRA, Antonio. Cartas do padre Antônio Vieira. Coordenadas e anotadas.
Coimbra. Imprensa da Universidade, 1925. v 3-. Biblioteca de Escritores
Portugueses. Azevedo, J. Lúcio de.
. Sermões. São Paulo: Editora das Américas, 1858. 24 Volumes.
. Representação perante o Tribunal do Santo Ofício. Edição de Ana
Paula Banza. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2008. 2vols.
. Escritos históricos e políticos. Prefácio de Alcir Pécora. Martins
Fontes: São Paulo, 2002.

Bibliografia
ALVARES, Fernando Bouza. Portugal no tempo dos Filipes: Política, cultura
e representações. Lisboa: Cosmo, 2000.
AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antonio Vieira. Lisboa: Clássica
Editora, 1992
BESSELAAR, José van den. Antônio Vieira: profecia e polêmica. Rio de
Janeiro: Editora da UERJ, 2002.
. Antônio Vieira e a Holanda. Revista da Faculdade de Letras de
Lisboa 24 [1971] p. 5-35
CARDIM, Pedro. Entre Paris e Amesterdão. António Vieira, legado de D. João
IV no norte da Europa [1646-1648], Oceanos, 30/31 [Setembro de 1997].
. Os “rebeldes de Portugal” no Congresso de Münster [1644-48],
Penélope. n. 19-20, 1998.
MELLO. Evaldo Cabral de, O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e
o Nordeste, 1641-1669. 3ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2003
MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Chefes de Legações portuguesas no exterior:
o emprego e a aferição de caracteres [1640-1815]. In: 2° Colóquio de História

149
Social das Elites. Instituto de Ciências Sociais- Universidade de Lisboa:
Lisboa, 2003
VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal: Guerra e Restauração
1640-1680. Trad. Pedro Cardim. Esfera dos livros: Lisboa, 2006.
VAINFAS, Ronaldo. Traição: um jesuíta a serviço do Brasil holandês
processado pela inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008
. Antônio Vieira e o “negócio do Brasil”: derrotismo pragmático e
estratégia política. In: AZEVEDO, Silvia Maria; RIBEIRO, Vanessa Costa [org.].
Vieira: vida e palavra. São Paulo: Edições Loyola, 2008
. Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa. Tempo
[online]. 2009, vol.14, n.27, pp. 82-100
. Jerusalém Colonial: judeus portugueses no Brasil Holandês. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010
. Antonio Vieira: jesuíta do rei. São Paulo: Companhia das Letras,2011

150
A TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO CLÁSSICO COMO ALTERNATIVA
PARA PENSARMOS A EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DA BNCC

Thiago Brandão Zardini

Com o advento e a divulgação da Base Nacional Comum Curricular,


documento normativo, fruto de determinação legal, que define os direitos e
objetivos de aprendizagem e desenvolvimento de crianças, jovens e adultos
brasileiros em escolas de educação básica, públicas ou privadas [BNCC, 2015,
p. 7], as instituições educacionais de todo o Brasil produziram uma avalanche
de discussões sobre a qualidade do ensino veiculado na atualidade. Mais do
que isso, passou a fazer parte do debate a exclusão de conteúdos, temáticas e
abordagens por muitos considerados essenciais ao desenvolvimento de
competências e habilidades que nortearão o processo de aprendizagem
garantidor da Educação Integral – física, social e psicológica – propulsora da
igualdade de oportunidades prevista pela BNCC [2015, p. 8-9].

Os classicistas e medievalistas, em especial, se depararam com a dupla


exclusão, já que na implementação da BNCC [2015] consta não apenas a
retirada da disciplina de História, no nível do Ensino Médio, como a eliminação
dos conteúdos de História Antiga e Medieval do currículo do Ensino
Fundamental. Diversos acadêmicos se posicionaram contrários a decisões tão
radicais, pesando o fato que a comissão selecionada não incluía qualquer
especialista em História Antiga ou Medieval, ligados às universidades
brasileiras ou aos órgãos de fomento, como a CAPES e o CNPq.

Assim, contamos com o imediato posicionamento do Prof. Dr. Pedro Paulo de


Abreu Funari [Unicamp] que, a convite da ANPUH, defendeu a universalidade
do ensino na forma de um artigo intitulado “Parecer para o MEC sobre a Base
Nacional Comum Curricular: a história em sua integridade” [2016]. Diversos
laboratórios e setores de pesquisa das universidades brasileiras também se
dedicaram a apontar as diversas falhas do documento. A comoção em torno do
assunto e a movimentação da classe acadêmica e suas reivindicações naquele
contexto foram muito bem sintetizadas no artigo “Ensino de História Antiga no
Brasil e o debate da BNCC” [2019], de Dominique Santos, que indico aos
interessados.

Observando por outro prisma, concordo que o exercício da ciência e o proceder


acadêmico no Brasil, em linhas gerais, têm se afastado das reais aspirações
das práticas sociais no cotidiano da população. Ou, pelo menos, os laboratórios
científicos e a divulgação da pesquisa em nível local, regional e nacional
permanecem restritos ao espaço universitário ou órgãos de cultura fechados
em si mesmos. Claro, há pesquisadores da Antiguidade e do medievo
dedicados a integrar comissões de aprovação de Livros Didáticos e
Paradidáticos, além de publicarem uma considerável bibliografia que dá
suporte ao ensino das áreas mencionadas. Mesmo com tais precauções, no
entanto, a prática docente no Ensino Fundamental e Ensino Médio pouco têm
se aproveitado destes materiais. E é aqui que confrontamos uma faceta mais

151
ativa do conhecimento: será que os professores do ensino básico, formados
como historiadores, compreendem a quantidade de ferramentas que o mundo
pré-industrial pode proporcionar à emancipação do estudante como sujeito
autônomo dos seus interesses? A princípio, percebo que o problema talvez
seja uma questão de desconhecimento. Ou, ao contrário, nos falte maior
empenho metodológico para pensar como o conhecimento clássico pode
oferecer aos docentes exemplos diretos, vinculados aos dilemas atuais acerca
da diversidade e do multiculturalismo.

Há mais de duas décadas, Norberto Guarinello vem se dedicando a mostrar as


interfaces entre as dinâmicas do Mundo Antigo e o processo de globalização
vivenciado na atualidade, a exemplo das reflexões que realiza em “O Império
romano e nós” [2006, p. 14-15]. Sem dúvida, as conexões entre o Mundo
Clássico e o século XXI já fazem parte de uma historiografia mais abrangente
que inclui grandes nomes dos estudos clássicos em nível internacional, dos
quais destaco Greg Woolf [2004] e Richard Hingley [2005]. É grande a
contribuição deste paradigma: conectamos o passado por meio de seus
conteúdos; conjecturamos como os gregos, romanos e normandos [apenas
alguns exemplos] desenvolveram práticas semelhantes às nossas ou criaram
processos que refletem na nossa realidade atual; também analisamos as
diferenças e aprendemos sobremaneira com estas, expandindo o potencial de
variabilidade que possuímos enquanto seres humanos e sociais.

Entretanto, creio que há matizes ainda mais próximos que nos una aos antigos.
E aqui me refiro à forma com a qual eles idealizavam, obtinham e exercitavam
o conhecimento em suas práticas sociopolíticas e educacionais. Ao invés de
percorrer a trajetória do conhecimento pela via do conteúdo, das práticas
políticas, sociais, econômicas ou religiosas, penso que seja interessante
investigarmos o vínculo que temos com a cultura clássica por meio dos estilos,
das composições... ou seja, praticarmos um exercício de forma.

Para entendermos melhor este propósito faço questão de apresentar uma


citação do próprio documento da BNCC [2015, p. 397], que justifica os
objetivos acerca dos conteúdos da disciplina de História com um excerto de
Ulpiano Menezes [1998], a seguir: “O historiador não faz o vestígio do passado
falar; é o historiador quem fala e a explicitação de seus procedimentos é
fundamental para definir o alcance de sua fala. Toda operação com fontes
históricas, portanto, é de natureza retórica”. Chama a nossa atenção que
conste no documento da BNCC uma afirmação de um historiador do campo da
Antiguidade que, mesmo produzindo estudos de teoria e metodologia, sempre
fez questão de destacar exemplos próprios do Mundo Clássico nas suas
análises, comprovando a pertinência e riqueza de proposições que a área
promove. Algo que a comissão da Nova Base parece desconhecer, ou ignorar.

Mais do que isso, a afirmação de Ulpiano Menezes [e da BNCC, por


consequência], recorda que o ofício do historiador parte do domínio da retórica
para estabelecer seu objeto de conhecimento – o que concordo –, embora nos
pareça contraditório, em duas dimensões, com a proposta apresentada ao

152
longo de todo o documento. Em primeiro lugar, a retórica é uma ciência
clássica [tekné, para os gregos, ars para os romanos] que desenvolveu
estruturas, fórmulas e padrões utilizados até hoje na escrita e na oratória do
Ocidente, sem a qual teria sido impossível produzir todo o arcabouço cultural
que chegou até os nossos dias. Acerca desta problemática trataremos mais a
frente.

Em segundo lugar, e seguindo a citação do próprio documento, é injustificável


que uma disciplina como a História – que depende da retórica para se
estabelecer – esteja no setor de Ciências Humanas [BNCC, 2015, p. 353], já
que o historiador revisita discursos do passado, os analisa em seu contexto, e
busca interpretá-lo à luz de problemas verificáveis nas mais diversas
conjunturas atuais. Como nós manipulamos os discursos, a meu ver, estamos
mais próximos dos procedimentos e capacitações descritas para o setor de
Linguagens, a saber, área que visa “possibilitar aos estudantes participar de
práticas de linguagem diversificadas, que lhes permitam ampliar suas
capacidades expressivas em manifestações artísticas, corporais e linguísticas,
como também seus conhecimentos sobre essas linguagens, em continuidade
às experiências vividas” [BNCC, 2015, p. 63].

Constam no documento da BNCC, acertadamente, as áreas de Língua


Portuguesa, Língua Inglesa, Artes e Educação Física como sistemas
interlocutores, uma vez que promovem o dialogo entre o corpo, o intelecto e a
sociedade. Mas a História não recebe o devido reconhecimento pelo processo
de comunicação entre o passado e o presente, mesmo sendo uma área que
necessita dos métodos da retórica para obter resultados. E a retórica, sendo
um dos primeiros métodos de sistematizar a comunicação dos homens em
comunidade, tanto em sua propriedade oral quanto escrita, não deveria servir
de base para o nosso conhecimento, visto que gregos e latinos
performatizaram ricas e relevantes experiências transmitidas por gerações, por
milênios, até a atualidade?

E digo mais, as experiências passadas até que são revisitadas, mas chegam
até nós vazias de significado e faltam referências que indiquem elos com os
antigos. O encadeamento de referências facilitaria que nossa sociedade
compreendesse os nuances de dois episódios recentes da política brasileira: a
carta enviada pelo Vice-Presidente Michel Temer ao Planalto Federal em 7 de
dezembro de 2015, endereçada à Presidenta Dilma Rousseff, que iniciava a
missiva com o provérbio latino: Verba volant, scripta manent, traduzido como
“as palavras voam, a escrita permanece”; e a ação da Polícia Federal em 2016
contra o esquema de corrupção que envolvia o PMDB e importantes nomes da
política brasileira, como Eduardo Cunha, incluindo lavagem de dinheiro público,
intitulada “Operação Catilinárias”, em referência aos discursos de Cícero no
senado romano contra a corrupção de Catilina [séc. I a.C.]. Em ambos os
casos, a reação pública e o posicionamento de grupos mais populares seriam
diferentes se a carga de significados que os títulos latinos mencionam pudesse
ser decifrada com maior facilidade. Por isso, proponho como alternativa que a
retórica, grega e romana, se torne mais funcional para o nosso ensino,

153
propiciando aos estudantes formas de escrever, de argumentar. Por este viés,
seria a História a disciplina que poderia viabilizar o contato, a mediação, os
recursos basilares para que as experiências do passado fossem vivenciadas e
problematizadas pelas classes dos Ensinos Fundamental e Médio.

A fim de defender esta proposta precisarei argumentar a partir de um viés mais


literário do conhecimento clássico. Assumo que não é o modus operandi pelo
qual o historiador usualmente se aventura, mas é aquele que acredito oferecer
ferramentas eficientes para o pesquisador se tornar mais hábil em estratégias e
munido de recursos para aproximar os discentes do ensino básico com a
finalidade de obter maior bagagem cultural.

Bagagem cultural! Em tempos de “esta é a minha opinião pessoal” e do


descrédito ao defendermos argumentos com propriedade de formação, aquilo
que descrevemos como bagagem cultural vem perdendo paulatinamente a
importância. É neste sentido que gostaria de problematizar aqui a relevância
deste aparato intelectual: o acúmulo de conhecimento.

A cultura que acumulamos ao longo da nossa formação era entendida no


passado como Literatura. Na etimologia, o termo pode ter seu berço na palavra
grega litografia, cuja tradução original seria “a arte de grafar em pedra”.
Entendida como forma de expressão e, depois, transformada em diversas
maneiras de registro [hieróglifos, pictogramas, etc.], essa acepção assumiu um
caráter cada vez mais abstrato, até ser entendido como um conhecimento
relativo às letras, à arte de escrever e ler, denominada ainda na Antiguidade de
litteratura. Segundo Francisco Saraiva [2006] a carga semântica de litteratura,
na Antiguidade, designava menos uma disciplina ou área de formação do que a
própria completude de tudo que se liga ao conhecimento de ler e escrever. Ter
conhecimento da Literatura significava dominar os rudimentos da gramática,
das formas de expressão da palavra e da comunicação, o que era, em suma,
uma forma de arte.

Na atualidade, Paul Zumthor reforça o caráter amplo da produção literária e


sua transmissão, pois o mesmo compreende que a formação e propagação do
discurso em seu caráter performático compõem três elementos, constitutivos
de toda Literatura em sua universalidade: “um conjunto de autores e textos
‘canônicos’, que cristalizam os parâmetros a serem seguidos; fabricantes de
textos que seguem as regras anteriormente estabelecidas; e um público
iniciado e preparado para a recepção de tais discursos” [ZUMTHOR, 2000, p.
46-47]. De fato, os antigos despendiam enorme quantidade de tempo a
escrever sobre as coisas que lhes importavam, e assim nasceram as formas de
conhecimento mais importantes para a cultura clássica – como a filosofia.
Desde os gregos, todas as produções escritas eram estruturadas a partir de
padrões, de fórmulas de iniciar, desenvolver e finalizar uma obra, fosse ela um
tratado sobre astronomia, comentários sobre a ética ou um poema que
enaltecesse a figura feminina. Tudo isso era reconhecido pela alcunha de
Literatura, pois cabia ao homem erudito compreender sobre todos os assuntos
e dominar as artes do modo mais ampliado possível.

154
Exatamente por isso abundam ensaios e manuais sobre a arte de discursar, de
escrever e de ensinar. Desde o Fedro, de Platão à Ética a Nicômaco, de
Aristóteles; diversos tratados romanos como a Retórica a Herênio, além de
inúmeros escritos de Cícero, como o Sobre o Orador; destacam-se também o
Dialogo sobre os Oradores, de Tácito, e a monumental obra de Quintiliano, a
Instituição Oratória.

Todos os textos mencionados ensinam como ser um bom discípulo, assim


como tornar-se um mestre ideal, já que ambas são faces subsequentes daquilo
que chamavam de paideia [termo grego] e Humanitas [conceito romano], que
podem traduzir o completo ciclo de conhecimentos que o pupilo precisava
dominar [CLARKE, 2002, p. 189], mas também um elo entre a formação
literária em todos os assuntos e a consciência do uso destes conhecimentos na
condução da vida pública [DOWNEY, 1957, p. 49]. Paul Veyne [1992, p. 283]
ainda descreve a Humanitas como um modo de vida, que envolve aprendizes e
tutores como portadores de toda Literatura e partícipes das práticas públicas. É
bem verdade que o próprio Cícero, ao tratar do cidadão ideal, afirma que
“nenhum orador poderá ser cumulado de toda a glória se não atingir o
conhecimento de todos os grandes temas e artes” [Sobre o Orador, I, 20].

O que traduzimos hoje como “todo conhecimento” ou Literatura, pela ótica dos
antigos, não limita a retórica ao campo teórico ou restrito ao espaço dos
discursos políticos. O conhecimento de todos os assuntos precisa ser expresso
na vida prática; nas relações humanas, de cunho privado ou público; precisa
estar estampado nas vestes, nos adereços; e percebidos na postura, nos
gestos, nas estratégias e movimento do corpo. Esta reflexão está
metaforicamente reproduzida por Tácito, no Dialogo sobre os Oradores [V, 5]:
“Não há couraça nem espada que sirva de proteção durante a batalha como a
eloquência serve para o réu que está em perigo; arma simultânea de defesa e
ataque, com a qual se pode evitar um combate ou contra-atacar, seja no
tribunal, no senado, ou junto ao príncipe”.

Os treinos de retórica, que envolviam uma aguçada atividade de memorização


e raciocínio, incluíam exercícios de respiração, projeção da voz e circuitos de
movimentos que exigiam do aprendiz um corpo capaz de coreografar a
performance de um homem público em ação no fórum ou no Senado. Por outro
lado, o mesmo jovem era treinado com exercícios físicos de salto, corrida,
equilíbrio, o que sempre vinha acompanhado de táticas e técnicas de combate
para que se tornassem exímios guerreiros. Todas as estratégias militares, por
sua vez, também eram aprendidas por meio da Literatura, já que a memória
dos grandes generais e das grandes batalhas sempre geraram inúmeros
tratados, desde a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, e a
Anábase, de Xenofonte; até o Sobre o General, de Onassandro e a obra
tardoantiga Compendio da Arte Militar, de Vegécio. Com razão, o rito de
iniciação do jovem romano abarcava testes físicos e intelectuais, termos estes
que se distinguem para nós, mas que serviam a um mesmo fim na formação de
um cidadão da Antiguidade clássica [ROSA, 2007, p. 55].

155
É curioso, desse modo, que a BNCC considere a Educação Física um
expediente da Linguagem, mas ignore que a retórica clássica também
corresponde a este tipo de formação, encaixando perfeitamente no seguimento
que presa pelo uso de “diferentes linguagens – verbal [oral ou visual-motora,
como Libras, e escrita], corporal, visual e sonora –, para se expressar e
partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes
contextos e produzir sentidos que levem ao diálogo, à resolução de conflitos e
à cooperação” [BNCC, 2015, p. 65].

Basicamente, os mesmos princípios indicados pela comissão da BNCC como


parâmetro para a formação do corpo discente é aquele apregoado pela paideia
clássica através do domínio da Literatura. Em síntese, acreditamos que em
ambos os processos o papel fundamental do conhecimento é promover a
inserção do indivíduo nos valores da sociedade e oferecer um arcabouço
cultural concernente a cada etapa de sua vida, que seria perpetuado como
conteúdo integrante da Literatura, obtendo notoriedade suficiente para alcançar
o status de exemplo para a posteridade [ZARDINI, 2014, p. 138].

Muitos outros exemplos de uso da retórica clássica e o vínculo com as


competências da área das Linguagens da BNCC poderiam ser evocadas aqui,
mas o espaço e o tempo para desenvolver as propriedades do conhecimento
na Antiguidade [e também no Medievo, que não tivemos oportunidade de citar
nesta apresentação] demandariam maior número de páginas para
apresentarmos autores, problematizar conceitos filosóficos e conjecturarmos
comparações que nos levassem à imersão na Cultura Clássica, o que nos
interessa realizar em futuras circunstâncias.

Referências
Thiago Brandão Zardini possui graduação em História pela Universidade Federal
do Espírito Santo [2005], com experiência na área de História de Roma. É
mestre em História, na área de pesquisa de História Social das relações
políticas, pela Universidade Federal do Espírito Santo [2008]. É doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras / UFES [2015], na área de pesquisa de
Estudos Literários, orientado pelo professor Doutor Gilvan Ventura da Silva, com
bolsa da CAPES. Atualmente é integrante do “Atrium - Espaço interdisciplinar de
estudos da Antiguidade” [Letras Clássicas/UFRJ] e professor dos cursos de
História, Letras e Pedagogia da Faculdade Saberes/ES, onde coordena o Grupo
de Pesquisa "CVLIMVCLAT – Cultura e Literatura no Mundo Clássico e na
Antiguidade Tardia" [NUPES/Saberes].

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157
SER PROFESSOR NO SÉCULO XXI: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA E
CULTURAL ATRAVÉS DE HARRY DANIELS

Vivina Dias Sol Queiroz e Carlos Eduardo da Costa Campos

A formação docente não é um elemento estático, pois ela se encontra em


constante transformação em razão dos avanços das pesquisas e demandas
sociais. Desse modo, para construção de um ensino crítico é necessária uma
postura investigativa, reflexiva e conectada com a sociedade. Sendo assim,
essa exposição busca refletir sobre os desafios da docência no século XXI,
vivenciadas em tempos do COVID-19, a partir das reflexões teóricas de Harry
Daniels.

Em caráter introdutório, destaca-se que ensinar é um ato de promoção da


compreensão do mundo vivido pelos alunos e outros humanos que vivem ou
viveram nessa sociedade. Nesse sentido, a formação docente envolve um
papel que deve ser visto como “[...] educativo, formativo, cultural e político, e
sua relação com a construção da cidadania perpassa diferentes espaços de
produção de saberes históricos” [SILVA & FONSECA, 2010, p. 24]. Dessa
maneira, o professor, sujeito histórico e social que se constitui e é constituído
nas relações estabelecidas ao longo de sua existência, transforma-se objetiva
e subjetivamente em consonância com as transformações sociais; construindo,
reconstruindo, alterando e modificando a realidade material externa com a qual
interage, constituindo a sua subjetividade a partir de situações de
intersubjetividade.

González Rey [2003] aponta para a ideia de um sujeito e sua subjetividade


numa perspectiva dialética, complexa, histórica e cultural. Considera que as
criações humanas são produtoras de sentido e a subjetividade ao abrir uma
“zona de sentido” caracteriza a psique humana individual e os cenários sociais
de atuação do sujeito. Um cenário onde noções ambivalentes e contraditórias
podem coexistir e os conceitos serem instrumentalizados de acordo com a
finalidade das ações a que se propõem. Nesse contexto, “[...] a individualidade
do sujeito é resultado das suas relações sociais, e a sua subjetividade a
possibilidade de interação desse sujeito a partir da materialidade das relações
construídas” [idem, p. 150]. Constitui-se assim um sujeito que não é produto
apenas do biológico e tão somente do meio, mas da relação que se desenvolve
entre ambos. Um sujeito, cuja identidade está em constante movimento; que
possui uma subjetividade coletiva e individual, que pressupõe constantes inter-
relações entre o singular e o universal, entre o individual e o coletivo, entre o
coletivo e as massas.

Compreender a constituição do professor é uma tarefa desafiadora, uma vez


que para tal compreensão se faz mister a análise das implicações ideológicas
acerca do uso das atuais tecnologias de informação e comunicação no ensino,
haja vista esse processo estar fatalmente vinculado à formação do professor.
Em tempos de uma pandemia, como a vivenciada em 2020 [COVID-19], pensar
e refletir sobre os métodos de ensino, bem como sobre o impacto tecnológico

158
na vida docente é vital para se repensar o magistério. Logo, mais do que fazer
uma adaptação de conteúdos faz-se necessário que o professor se aproprie
dos objetos tecnológicos para construir uma lógica mais complexa, mais
dialógica, mais profunda de comunicação e interlocução com seus alunos, de
modo a estabelecer um “novo” relacionamento com essas tecnologias de
informação e comunicação, que satisfaça e atenda as suas necessidades e de
seus alunos, como é possível ser visto no uso das plataformas digitais e
podcasts, por exemplo. Lembrando que as TICs são recursos para o processo
de ensino-aprendizagem e que não substituem a relação professor e aluno.

Dessa forma, percebe-se que as novas formas de exercer a atividade docente


e compreender as transformações sociais, decorrentes dos avanços
tecnológicos, têm provocado um abismo ainda maior entre os que têm acesso
aos bens materiais e aqueles que são desprovidos desses bens. Assumir que a
educação é uma das vias para as transformações necessárias em uma
sociedade mutante como a que estamos presenciando, é fundamental para a
compreensão do papel dessa ciência que nos torna humanos. Assim, há uma
necessidade de se retomar alguns pensamentos base da Psicologia da
Educação, pois:

A contribuição primordial de Vygotsky foi desenvolver uma abordagem geral que


inseria totalmente a educação, como atividade humana fundamental, numa teoria do
desenvolvimento psicológico. A pedagogia humana, em todas as suas formas, é a
característica definidora de sua abordagem, o conceito central de seu sistema
[MOLL,1990, p.15 apud DANIELS 2003, p. 11].

Atuar na perspectiva dos conceitos centrais da teoria de Vygotsky como a


mediação, a interação, a zona de desenvolvimento proximal e o
desenvolvimento de conceitos científicos e cotidianos, pode ser um caminho
para o professor conhecer outras possibilidades de ensino e de aprendizagem.

Sendo a educação tão importante para o desenvolvimento das funções


psicológicas humanas, nos processos de desenvolvimento e aprendizagem
mediados pela prática pedagógica, o professor deve considerar tanto as
questões cognitivas, quanto as questões afetivas, uma vez que a prática
pedagógica é ela em si mesma um contexto social que produz e reproduz a
cultura humana.

É fundamental que uma teoria de desenvolvimento e aprendizagem ultrapasse


as barreiras do conhecimento tácito e do senso comum e chegue ao nível da
compreensão da relação existente entre as funções psicológicas dos humanos
e seus processos de aprendizagens. Um dos papéis essenciais exercidos pelo
professor nessa direção é o de poder ser elemento de mediação entre o sujeito
aprendiz e o objeto do conhecimento, tendo clareza de que os fatores sociais,
culturais, históricos e institucionais, são elementos que além de influenciadores
são determinantes da prática pedagógica.

Vygotsky considera que a aprendizagem do aluno está intimamente


relacionada ao ambiente social e o professor para exercer sua docência

159
precisa organizar os espaços educativos almejando a aprendizagem dos
alunos, uma vez que segundo o autor “o que poderia ser uma solução
individual de problema pode ainda ser pensado como uma atividade
colaborativa, visto que a “voz” do “outro” pode ainda servir para guiar ações
individuais” [DANIELS, 2003 p. 96].

A contribuição do conceito “cognição distribuída” apresentado por Daniels


[2003, p. 94] tomado emprestado de Salomon [1993 a] ao considerar “o
conceito de cognição como um fenômeno que transpõe o individual, que nasce
na atividade compartilhada”, deixa transparecer o conceito de mediação da
teoria vygotskyana que atribui ao intrapessoal a função de desenvolver o
interpessoal do sujeito.

Outra abordagem que também traz a implicação de sua teoria e que merece
ser destacada é a “aprendizagem cognitiva” de Collins [1991] e Collins et al.
[1989a] referenciada por Daniels [2003] que considera a aprendizagem do
jovem aprendiz mediada pelo mestre artesão no espaço das oficinas
artesanais da sociedade feudal, um modelo de aprendizagem que se realiza no
espaço social de sua época. Pela aprendizagem cognitiva os alunos resolvem
problemas reais, dando-lhe o caráter de aprendizagem significativa. É
significativa, porque segundo seus defensores, o aluno trabalha com problemas
reais, autênticos.

Em Daniels encontramos Davydov e Kozulin, chamando a atenção de que para


se trabalhar na perspectiva vygotskyana de conceitos cotidianos e científicos, é
fundamental que os chamados problemas autênticos possibilitem a aquisição
da aprendizagem teórica. Wardekker [1998, p. 147-149 apud DANIELS, 2003,
p. 152-153] oferece duas abordagens para a entrada do real na sala de aula.

Se entendemos as escolas como lugares onde as crianças são introduzidas na


participação em práticas socioculturais, essa introdução é melhor quando a “prática
virtual”, estabelecida na escola, retém as características essenciais da prática real e
[...] a motivação necessária para o envolvimento no trabalho de construir conceitos
genuínos depende de ser capaz de ver para que você está aprendendo e em que
práticas você poderá participar melhor.

O argumento de Wardekker é ampliado por Hedegaard [1998, p. 117 apud


DANIELS, 2003, p. 152-153] que propõe três pontos-chave: a] situações da
vida cotidiana características da comunidade; b] áreas disciplinares [áreas de
problemas relevantes para a vida em sociedade e que dominaram as diferentes
ciências ao longo do tempo e desenvolvem conceitos e procedimentos centrais
de ciência]; e c] as matérias escolares e seu desenvolvimento.

Daniels cita Tharp [1993, p.271-272], que apresenta sete meios auxiliares para
que o professor facilite a aprendizagem dos alunos, que são os seguintes:
modelação, feedback, administração da dependência; instrução;
questionamento, estruturação cognitiva e estruturação da tarefa. E ainda se
apoia em Moll e Grenberg [1990, p. 154] por argumentarem “que as escolas
devem recorrer às contribuições sociais e cognitivas que pais e outros

160
membros da comunidade podem dar ao desenvolvimento da criança”. São
formas de a comunidade participar na vida da escola e vice-versa.

Em Daniels encontramos também Lave e Wenger que tratam da cognição


situada e/ou da aprendizagem situada, consideram a aprendizagem como:

[...] atividade situada tem como característica definidora central um processo que
denominamos participação periférica legítima. Com isso pretendemos chamar a
atenção para a idéia de que os aprendizes participam inevitavelmente de comunidades
de profissionais e que o domínio do conhecimento e da prática exige dos recém-
chegados que se encaminhem para a plena participação nas práticas socioculturais de
uma comunidade. A “participação periférica legítima” oferece uma maneira de falar
sobre atividades, identidades, artefatos e comunidades de conhecimento e prática. Diz
respeito ao processo pelo qual recém-chegados tornam-se parte de uma comunidade
de prática. As intenções de uma pessoa de aprender são engajadas, e o significado da
aprendizagem é configurado pelo processo de tornar-se um participante pleno de uma
prática sócio-cultural. Esse processo social inclui, de fato subsume, a aprendizagem
de habilidades especializadas [LAVE; WENGER, 1991, p. 29]

A ideia central dos autores é que a aprendizagem situada é não formal, não
intencional. As atividades são compartilhadas visando a garantia de
sobrevivência do grupo. Sob essa ótica, a cognição não é separada em corpo x
mente; atividade x cenários culturais organizados; mas inerente a todos os
membros da comunidade e é por definição localizada, situada naquele contexto
específico. Discutem também a aprendizagem como “produção colaborativa”,
oriunda de diversas atividades práticas, intimamente ligadas a uma forma
específica de ser no mundo social e não apenas saber sobre esse mundo.
Nesse processo, a linguagem é parte integrante da atividade prática. As
pessoas se comunicam e aprendem na prática e pela prática.

Ao trazer a aprendizagem situada para o contexto da sala de aula, Lave a


Wenger, citado por Daniels, alertam sobre como os professores podem limitar e
constranger através do poder do significado dessa aprendizagem ao aluno
recém-chegado na comunidade escolar. Para evitar tal situação, o professor
precisa ajustar seu foco para a dinâmica social da aprendizagem daquilo que
os alunos estão fazendo em situações reais, pois além de ensinar os conceitos
científicos é preciso saber valorizar as diversas formas de aprender do seu
aluno.

Na interação homem-computador, Daniels traz a discussão de Nardi [1996] que


aponta semelhanças e diferenças nos modelos de aprendizagem [ação] situada
e de cognição distribuída. Para a autora, a ação [aprendizagem] é a origem da
atividade em uma determinada situação, ou cenário. A prática situada ocupa o
lugar dos artefatos e das relações sociais e culturais. O foco da análise é “a
atividade de pessoas agindo em cenários”. O importante é uma situação
particular de mudança e não uma mudança mais geral, duradoura.

A cognição distribuída como unidade central de análise, fundamentada no


modelo da ciência cognitiva e a cognição distribuída, no modelo antropológico.

161
[...]diferem no grau com que os objetivos moldam as ações. Para os teóricos da
cognição distribuída, há muito mais ênfase na consciência humana ou nos objetivos
sistêmicos, enquanto os teóricos da aprendizagem situada afirmam que os objetivos
não são anteriores à ação. [...] uma abordagem da cognição distribuída, presta-se
mais a estudos comparativos, ao passo que a natureza radicalmente situada da outra
torna a comparação, na melhor das hipóteses, problemática ou, em certa medida,
irrelevante [DANIELS, 2003, p. 102]

Para Daniels [2003] a cognição distribuída está mais para a teoria da atividade
que envolve a prática do sujeito e a aprendizagem situada mais para a teoria
sociocultural, que valoriza o processo de abstração do sujeito.

A teoria da atividade postula o desenvolvimento psicológico e, com isso, a análise


psicológica como fundamentados em atividades culturais práticas. A abordagem
simbólica compreende a psicologia em termos de símbolos e conceitos coletivos. A
abordagem individualista enfatiza a construção individual das funções psicológicas a
partir de símbolos e artefatos coletivos [DANIESLS, 2003, p. 102]

Nessa perspectiva o desenvolvimento tecnológico vem proporcionando novas


possibilidades de aprendizagens, fornecendo mecanismos para os indivíduos
agirem ativamente com outros meios, como por exemplo, as inúmeras
ferramentas de informação e comunicação aprimoradas e amplamente
utilizadas neste século XXI, ativando a criatividade e transformando-as, em um
novo modelo de uso pela ação.

Para essa discussão Daniels [2003] traz as ideias de Wells [1999] que defende
a necessidade de assumirmos o nosso entendimento do que seja o
conhecimento, para podermos compreender sob quais condições as crianças
podem construir seus próprios conhecimentos; como podem aprender na e
para a vida, pois considera que a tarefa do ensino escolarizado é
instrumentalizar os alunos para que estes possam transpor o aprendizado do
ambiente escolar para outros contextos sociais.

A maneira como as atividades de sala de aula são selecionadas e organizadas deve


não só levar os alunos a construir uma compreensão pessoal dos tópicos envolvidos
que os equipe para participar eficaz e responsavelmente de atividades similares e
relacionadas além da sala de aula, mas também encorajar o desenvolvimento da
disposição e das estratégias necessárias para adotar a mesma postura,
independentemente, em situações novas e não-familiares [WELLS,1999, p. 91 apud
DANIELS, 2003, p. 138].

Sua proposta para uma intervenção pedagógica eficaz traz a tona a abordagem
de Vygotsky a respeito de fala interior e fala exterior e de sentido e significado,
como alternativa de um ensino que enfatize os diferentes modos de conhecer
[procedimental, substantivo, estético, teórico, meta-cognitivo] em relação às
diversas situações para produção de sentido [experiência, informação,
construção e conhecimento, compreensão].

A abordagem histórico-cultural contraria o princípio da escola forjado no


contexto da Revolução Industrial que produziu um ensino em grande escala e

162
massificado, inspirado no trabalho fabril, serial e fragmentado que resultou em
uma educação escolarizada organizada didaticamente em séries anuais com
conteúdos também fracionados.

Todavia, esse arquétipo de educação que atendeu ao modelo da sociedade


moderna durante os séculos XVIII, XIX e adentrou o século XX, começou a ser
questionado principalmente a partir da segunda metade desse último, tendo
como cenário as transformações decorrentes do avanço tecnológico
denominado por Schaff [1992] de Revolução Técnico-Científica, presente em
objetos produzidos como os relógios de quartzo, as calculadoras de bolso, o
forno microondas, os microcomputadores, os telefones celulares, etc. Tais
inovações provocaram inúmeras transformações na sociedade, desde a
formação econômica [produção de bens e serviços, e desemprego estrutural],
passando pela formação social [o trabalho, o trabalhador e a classe
trabalhadora ganham outros significados], atingindo a esfera cultural em que
um novo espaço social é criado – o ciberespaço – e é povoado por
manifestações culturais de toda natureza, como a realização de reuniões,
pesquisas, conferências, compras, etc, utilizando esse novo espaço também
chamado de virtual.

As novas formas de viver, de se relacionar e de se comunicar estão exigindo


da escola outra organização didático-pedagógica, para atender ao indivíduo
contemporâneo. Conforme afirma Alves [2001, p. 52]:

As funções sociais da escola contemporânea e a nova forma de organização do


trabalho didático ocasionam consequências, por exemplo, sobre a concepção de
espaço escolar e para a arquitetura escolar. O espaço físico da instituição, como
decorrência das necessidades formativas de crianças e jovens, precisa ser concebido
como espaço de vida.

Se antes da revolução industrial no século XVIII trabalhava-se com a dimensão


do passado no presente e com a certeza, hoje com a revolução tecnológica
trabalha-se com a dimensão do futuro e com a incerteza. Fazem-se
prognósticos e espera-se realizá-los. Os planejamentos são feitos sem
nenhuma garantia de que serão executados. A escola neste século XXI convive
com o velho e o novo, o estático e o dinâmico ocupando e dividindo o mesmo
espaço físico, constituindo-se em um desafio para o professor; o de conseguir
formar um sujeito capaz de interagir e agir neste mundo em constante evolução
tecnológica, globalizado e competitivo.

Tais exigências relacionadas às mudanças ocorridas no âmbito social


econômico e político têm atribuído outros papéis ao professor para que este
possa desempenhar sua função em sintonia com as mutações ocorridas no
modelo de sociedade no qual está inserido e sob o domínio das tecnologias da
informação e da comunicação. Assim, é solicitado ao professor o entendimento
da linguagem tecnológica, para que possa fornecer ao aluno as ferramentas
conceituais que o habilite a agir e interagir com a contemporaneidade.

163
Sacristán [1999, p. 31], observa que o professor é um agente pedagógico e é
também um ser humano. Ao exercer a sua função age e esse agir não pode
ser entendido à margem da condição humana “por mais técnico que se queira,
que seja esse ofício” [...] por meio das ações que realizam em educação, os
professores manifestam-se e transformam o que acontece no mundo[...].
Kenski [2001] define o professor como um agente de memória, de valores e de
inovações, portanto, pode e deve proporcionar ao aluno o contato com novas
formas de linguagem e de comunicação.
Em suma, o Ser Professor neste século XXI que lida com transformações
tecnológicas, sociais e uma pandemia provocada pelo COVID-19, ultrapassa
aos desafios que eram encontrados em um espaço físico da sala de aula que
ficava localizada no interior de uma escola concreta e erigida em moldes do
início da modernidade. Esse novo contexto de ensino entrelaça, tensiona,
aperfeiçoa e modifica um conjunto de práticas do magistério, assim convidando
o professor a relacionar com sabedoria os artefatos culturais e tecnológicos
disponíveis no espaço social onde realiza a sua ação docente.
Referências
Vivina Dias Sol Queiroz é Graduada em História e Pedagogia, Mestra e
Doutora em Educação, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Na
Educação Básica foi professora na Educação Infantil, nos anos iniciais e finais
do Ensino Fundamental, no Ensino Médio, na Educação de Jovens e Adultos,
na Coordenação do Ensino Supletivo e Direção de Escolas da 74 Educação
Básica. Também foi diretora do Centro de Informática Educacional de Mato
Grosso do Sul e do Núcleo de Tecnologia Educacional de Campo Grande-MS.
No Ensino Superior foi professora da Universidade Anhanguera-UNIDERP,
onde trabalhou como docente nos cursos de Administração, Educação Física,
Serviço Social, Pedagogia e Turismo, na Coordenação Adjunta do Curso de
Pedagogia na Modalidade Presencial e como Coordenadora do Curso de
Pedagogia na modalidade EaD. Atualmente é professora associada da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, diretora da Faculdade de
Ciências Humanas [2017-2021] membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Educação [GEPPE.]

Carlos Eduardo da Costa Campos é Doutor e Mestre em História pelo


Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. Professor Adjunto de Pré-
História, História Antiga e Medieval da UFMS / FACH e docente do Programa
de Mestrado Profissional em Ensino de História [PROFHIST] da Universidade
do Estadual de Mato Grosso do Sul. Pesquisador do Museu de Arqueologia da
UFMS; Coordenador do Grupo de Pesquisa no CNPQ - ATRIVM / UFMS;
Coordenador da área de História [FACH] no Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência [PIBID].

ALVES, Gilberto Luiz. A Produção da Escola Pública Contemporânea.


Campo Grande, MS: Ed. UFMS; Campinas, SP: Autores Associados, 2001.
DANIELS, Harry. VIGOTSKI e a Pedagogia. São Paulo: Edições Loyola, 2003
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errâncias, conquistas e perdas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.
31, nº 60, 2010, p. 13-33.

165
A DEFESA DA EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA SOCIAL E OS PERIGOS DA
IDEOLOGIA DA APRENDIZAGEM

Wendell dos Reis Veloso

Algumas Primeiras Palavras


“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”
[BRASIL, Art. 205, CRFB, 1988].

Desde que os filósofos da linguagem nos ensinaram que os discursos não são
transparentes, posto que imersos no que Michel Foucault denominou de ordem
discursiva [FOUCAULT, 2006], não devemos encará-los como neutros ou
frutos do mero acaso. Desta maneira, não me parece desprezível apontar que
o artigo constitucional mencionado acima e retirado de nossa Constituição
Cidadã, inicie com a afirmação de que a educação, e não apenas a
aprendizagem quero já ressaltar, é um “direito de todos” e um dever,
primeiramente, do Estado, depois da família, e deve ocorrer com o auxílio da
sociedade. Acerca dos seus objetivos, em primeiro lugar a educação deveria
privilegiar o “pleno desenvolvimento da pessoa”, o que certamente possibilita o
“exercício da cidadania” e é somente depois disso que a preocupação dos
processos educacionais deveria ser a “qualificação para o trabalho”.

É partindo desses pressupostos que este ensaio propõe uma reflexão sobre as
características da educação, entendida como processo social, ao diferenciá-la
das práticas que a querem resumida à aprendizagem.

A defesa da educação como prática social


A despeito do que se propaga, até mesmo por integrantes do atual governo
nacional, que as Universidades e as escolas seriam locus da deflagração
iminente de um movimento de caráter revolucionário, comunista, feminista e
não apenas amplamente favorável, mas também disseminador da
homossexualidade, a educação no Brasil, em sua maioria, ainda se caracteriza
fortemente pelo que se poderia denominar de tradicionalismo. Penso que a
nossa própria experiência como alunos atesta que as instituições de ensino
não têm como principal compromisso a transformação da sociedade. E
entendendo política como práxis na qual não se dissociam reflexão teórica e
ação, só nos resta lamentar que esta seja a realidade.

O educador e escritor Carlos Rodrigues Brandão afirma: “ninguém escapa da


educação” [2006]. Daniel Cara em coletânea recente, mas já de importância
capital intitulada Educação contra a Barbárie, define educação genericamente
como apropriação de cultura [2019, p. 25]. E como cultura é tudo aquilo criado
por nós seres humanos, a educação é elemento de extrema importância na
organização das relações sociais.

É a educação que organiza mesmo as diferenças que poderíamos classificar


como estruturais, aquelas que sob uma perspectiva antropológica, parece-nos

166
comum a um grande número de grupamentos humanos, a saber, a diferença
geracional entre jovens e velhos, entre pais e filhos e a diferença entre pessoas
baseadas no que nós contemporaneamente chamamos de gênero e sexo.

Contudo quero sublinhar a relação entre a educação, o ensino e o poder que


organizam relações sociais mais sofisticadas. Por exemplo, o modelo de
educação iluminista que pauta as instituições escolares, o qual levando em
consideraçao seus mais de trezentos anos não mudou radicalmente, surgiu no
contexto das monarquias européias de tendências absolutistas e se
estabeleceram no século XIX marcado pelos projetos nacionalistas. Essa
relação não me parece coincidência.

De semelhante maneira, a sistematização de um sistema de ensino na Grécia


Antiga, a paidéia grega restrita a aristocracia, objetivava, no caso da cidade-
Estado de Atenas, a formação dos cidadãos cujos privilégios se ancoravam na
expropriação do trabalho de seres humanos escravizados, na exploração de
não-cidadãos como estrangeiros e na subjulgação política, social e sexual das
mulheres. Este sistema alcançou o seu auge no momento de maior
organizaçao política de Atenas, durante o que denominamos de período
clássico.

Foi no Império Romano Cristão que a formação na paidéia grega adaptada


pelos romanos seria condição para não apenas se almejar um cargo na
burocracia tradicional do Império, mas, sobretudo, aspirar ao episcopado,
lembrando que paulatinamente o cargo de bispo se torna um dos principais
pilares da política imperial.

Durante a Idade Média foi no contexto dos Reinos Germânicos que buscavam
estabilidade política, assim como no âmbito da experiência imperial dos
francos, que surgiram as escolas catedralícias, responsáveis por capacitar
homens a participar de tais governos; Durante os séculos X e XIII do mesmo
período, chamado por nós medievalistas de Idade Média Central, momento no
qual a Igreja, a instituição dinamizadora da sociedade medieval, alcançou o
acme do seu poder político, surgiram as universidades.

Os apontamentos extremamente sintéticos e, portanto, generalistas dos quatro


últimos parágrafos objetivam apontar para o entendimento da educação,
entendida em sua interface ensino-aprendizagem, como uma prática social e,
portanto, eivada de poder. Para Brandão:

“Assim, acontece com a educação o que acontece com todas as outras


práticas sociais [a medicina, a religião, o bem-estar, o lazer] sobre as quais um
dia surge um interesse político de controle. Também no seu interior, sistemas
antes comunitários de trocas de bens, de serviços e de significados sao em
parte controlados por confrarias de especialistas, mediadores entre o poder e o
saber” [2006, p. 33].

167
Acerca deste tema não se pode deixar de mencionar as reflexões de Michel
Foucault ao classificar as escolas, sob o período de afirmação da burguesia,
como instituições que, assim como as prisões, objetivam sequestrar as
subjetividades e criar corpos dóceis e domesticados que fossem produtivos do
ponto de vista do capital [FOUCAULT, 2010].

Seria então a relação entre a educação e o poder fatalmente negativa? Não


necessariamente, embora não seja possível negar que o conhecimento pode
ser utilizado, e frequentemente o é, para construir noções perigosas de
normalidade e pautar subjetividades sob a rúbrica do normal e do legal. E,
embora não caiba aqui nos debruçarmos sobre a relação entre saber e poder
denunciada por Michel Foucault é aí que também se encontra o pulo do gato,
pois, se o saber tem relações com o poder e o poder é produtivo, não apenas
opressor, o saber também pode ser ferramenta de desmonte do próprio poder
[FOUCAULT, 2006; 2007; 2010].

E é a educação entendida como prática social que possui o potencial de


desnudar o exercício do poder, evidênciá-lo, possibilitando, como aludido em
nossa Constituição, o desenvolvimento pleno do indivíduo e o exercício da
cidadania.

Essa reflexão é importante porque em tempos de pânico moral e social não é


incomum nos depararmos com a defesa de concepções educacionais
supostamente neutras, tal como aquela advogada pelo violento movimento
Escola sem Partido. Como não existe prática em sociedade que seja apolítica,
o que está em questão é a defesa de uma prática educacional que procura
escamotear sua relação de promiscuidade com o poder, o seu caráter político,
ao insistir na enganadora redução da política aos partidos políticos e, portanto,
na falaciosa associação exclusiva do exercício do poder à violência entendida
em seus elementos tradicionais.

Os Perigos da Educação Reduzida ao aprendizado


Desde o golpe jurídico-parlamentar de 2016, o qual retirou da presidência da
Repúbica a presidenta democraticamente eleita Dilma Rousseff, o governo
brasileiro apressou os passos para um destino que, ao menos em parte, já
estava no horizonte de expectativa mesmo antes. Refiro-me a intensificação da
agenda neoliberal e totalitária dos últimos anos de nossa república pouco
republicana.

Sendo assim, não parece exagero caracterizar o Brasil atual como ultraliberal e
ultrareacionário. O ultrarreacinarismo pode ser entendido como uma visão de
mundo moralizante profundamente ancorada em princípios cristãos
fundamentalistas, embora se antagonize a alguns princípios telógicos do
próprio cristianismo, e uma ideologia política acusatória que advoga estar se
defendendo de um ataque aos valores supostamente tradicionais ao negar a
ciência e os direitos civis e políticos das denominadas minorias sociais. Já o
ultraliberalismo é uma ideologia política e econômica marcada pela
“radicalização da agenda liberal” e cujo objetivo é a diminuição do Estado sem

168
se importar mesmo com condições de miséria as quais a população vulnerável
está sujeita. Em suma, são freios à democracia e se expressam em discursos
classistas, racistas, misóginos, lgbtfóbicos, machistas e inimigos da laicidade
do Estado [CARA, 2019, p. 27].

Poderíamos evocar muitas ações políticas como símbolos do ultraliberalismo e


do ultrareacionarismo, tais como, o desmonte do sistema previdenciário
pautado em um regime de solidariedade, a retirada dos já parcos direitos
trabalhistas ao fragilizar a CLT e a anunciada precarização do sistema
trabalhista público. Entretanto, o maior símbolo desses tempos sombrios
parece ser a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, emenda
constitucional de número 95, adequadamente apelidada de PEC da Morte
pelos que a ela se opõem, e que impede investimentos públicos mais próximos
aos adequados mesmo em áreas como saúde e educação por longos 20 anos.

As marcas do reacionarismo e do liberalismo em suas versões radicais


expressam-se nos processos educativos de modo mais objetivo através da
ideologia da aprendizagem, um visão de mundo que restringe a educação ao
direito a aprender. Aprender um conteúdo. E mais, aprender um conteúdo
resumido à compreensão dos vocábulos que compõem este em detrimento da
sua interpretação, a qual só é possível ao conectá-lo à vontade de verdade que
o possibilitou; um conteúdo que preconiza o significante e não o significado, e
assim ignora o regime de discursividade no qual ele se insere. Em outras
palavras, o ensino de um conteúdo que esconde o regime de sua própria
produtividade, encobrindo as relaçoes de poder que o possibilitaram. Em suma,
um conteúdo que se pretende neutro, apólítico embora esteja comprometido
com a manutenção do status quo.

Em consonância com a ideologia da aprendizagem a educação é reduzida a


um insumo econômico, expressado mesmo na defesa de um critério global
para a medição de seu sucesso [em um sentido liberal, obviamente] em um
nível mundial. Refiro-me ao Programme for International Student Assessment,
o PISA, uma iniciativa da OCDE - Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, uma organização internacional pautada na lógica
de mercado e que promove o PISA para alegadamente aferir o aprendizado e
propor medidas, fatalmente liberalizantes, para os problemas identificados. O
Brasil aderiu ao PISA no ano de 2000 durante o governo Fernando Henrique
Cardoso e, desde então, as políticas públicas educacionais brasileiras têm
como justificatica a alegação de necessidade capital de melhora da
classificação nacional neste programa [CARA, 2019, p. 28; CARNEIRO, 2019,
p. 43].

Os maiores e mais recentes produtos antidemocráticos da ideologia da


aprendizagem são a Reforma do Ensino Médio, expressa na lei 13.415/2017
que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; e a BNCC –
Base Nacional Curricular Comum, um documento normativo e de referência
obrigatória para elaboração dos currículos escolares e propostas pedagógicas
em todos os níveis do ensino básico, além de fornecer um conjunto super

169
detalhado de habilidades e competências que devem ser desenvolvidas a partir
dos conteúdos elencados.

Por exemplo, uma rápida análise da BNCC, cujo documento oficial se encontra
disponível online no portal do Ministério da Educação, MEC, revela uma lista de
conteúdos pretendidos como naturais, posto que todos desconectados de suas
ordens discursivas, de modo que acabam por anular alguns dos elementos
propostos nas próprias competências gerais, tais como, ênfase na análise de
dados e na diversidade de saberes, embora a diversidade cultural em si possa
ser criticada [VELOSO, 2020] e no uso do ensino para a democracia, a qual é
entendida como natural e resultado do aprendizado de um determinado
conteúdo. Depreende-se, portanto, a defesa, a qual não pode ser entendida
como inocente, de que qualquer ensino pode servir à democracia. Bastaria
aprender os conteúdos.

Mais grave ainda, portanto, é o descaso com a realidade socioeconômica do


país. Basta mencionar que os conteúdos devem possibilitar a democracia em
um país no qual metade dos habitantes vivem com cerca de R$400 por mês?
[AMORIM, UOL Economia, 06/05/2020] É suficiente insistir nos dados que
apontam que os alunos não aprendem, reafirmar que eles devem aprender e
ignorar as condições de trabalho daqueles que ensinam? É possível, portanto,
entender a democracia como algo dado e fatalmente positivo e ainda assim
promover a cidadania? Tenho tentado argumentar neste ensaio que não.

Outra pergunta que se coloca é: “quais as experiências escolares são


eclipsadas quando a aprendizagem se torna o eixo da relação com o
conhecimento?” [CARNEIRO, 2019, p. 42] Certamente a vida vivida é abstraída
a um padrão daquilo que se deveria aprender [CARNEIRO, 2019, p. 45].

Embora possa parecer insistente, reforço que o processo educativo reduzido à


ideologia da aprendizagem colide com o ensino como prática social e, portanto,
com uma práxis pedagógica que gera um saber escolar autônomo em
consonância com o que Katia Maria Abud denomina de cultura escolar. A
autora defende a cultura escolar como um complexo cultural no qual sujeitos
escolares tais como, alunos, professores, diretores e coordenadores
pedagógicos, se apropriam, por exemplo, dos documentos curriculares e textos
legais [ABUD, 2007, p. 107].

Abud ainda argumenta que é nesta apropriação que ocorrem os desvios e as


ressignificações, os quais, por sua vez, estão relacionados com o surgimento e
a persistência histórica de determinados conceitos, conhecimentos e
convenções, além da função social da escola e dos interesses profissionais. Ou
seja, para Kátia Maria Abud a cultura escolar é uma força formadora que
implica em processos específicos oriundos do interior do espaço escolar, força
esta que orientaria não só a prática pedagógica do professor, e sim as práticas
escolares de uma maneira geral, de todos os sujeitos escolares [ABUD, 2007,
p. 107-108].

170
Considerações Finais
Insisto que a redução dos processos educativos à ideologia da aprendizagem
contribui para o apagamento da educação e do ensino como um processo
social, o que, por sua vez, enfraquece o meio social ou a sociedade, assim
como o destino dos homens e das mulheres que estão sendo educados
[BRANDÃO, 2006, p. 65].

A concepção idealista de educação e de ensino pautada em noções liberais de


meritocracia que sublinham o indivíduo e o que este deveria aprender no
processo educacional, ao defender como pressuposto conteúdos
despolitizados [e não apolíticos], pretende impedir questionamentos, tais como:
existem valores universais desconectados da vida vivida que devem guiar o
ensino? Pretende impedir a percepção de que a realidade é naturalizada e não
natural e, portanto, ela pode ser transformada. Em outras palavras, insistir na
educação e no ensino como práticas sociais é reconhecer que os processos
educacionais sofrem constrangimentos da vida vivida, o que Katia Abud
denomina de cultura escolar, é escancarar a conscientização do saber como
exercício de poder, capaz inclusive, de criar fissuras nas próprias relações de
poder socialmente instituídas.

Não poderia fazer estas reflexões sem recorrer ao patrono da educação


brasileira, o autor brasileiro mais lido nas universidades estadunidenses, o
grande intelectual Paulo Freire. A obra freiriana nos ensina que toda prática de
ensino corresponde a uma agenda política, o que acontece é que nem sempre
se tem consciência disso, não constituindo-se assim esta prática numa práxis.

De maneira geral em toda a sua obra, mais aqui eu faço referências diretas aos
textos da coletânea Política e Educação, Paulo Freire afirma que é papel da
educação garantir o desenvolvimento do condicionamento do ser humano para
o ser mais [FREIRE, 2003, p. 14], seres humanos conscientes, livres, com
possibilidades de escolha e interventores da realidade [FREIRE, 2003, p. 15].
Este condicionamento, entretanto, há que se frisar, não se apresenta de
maneira determinista, somente se desenvolve a partir de uma prática
pedagógica moral, a qual se caracteriza pela conscientização e posicionamento
político voltado para a superação da opressão, discriminação, passividade ou
pura rebelião que resultam das diferenças interculturais. E aí puxando um
pouco a sardinha para a minha brasa, Paulo Freire afirma que nada disso é
possível sem uma compreensão crítica da História [FREIRE, 2003, p. 33].

As argumentações do historiador espanhol Carlos Barros [2008] entram em


consonância com as de Freire quando Barros afirma que as práticas
pedagógicas não podem mais pretenderem-se neutras, antes há que passarem
por um crivo axiológico, devem ser guiadas por bases éticas e humanitárias
que garantam o desenvolvimento do ser mais freiriano. Uma educação que
deve ser guiada por valores universais de paz e democracia, justiça e
igualdade, tolerância e pluralismo e respeito aos direitos humanos ligados ao
gênero, à condição sexual, à etnia e à religião. Uma educação que não possa
ser utilizada para justificar o injustificável.

171
Concluindo, a defesa liberal de que a educação é a chave para a
transformação do país, transformação esta confundida com uma melhora,
apresenta-se como uma meia verdade, posto que a educação reduzida à
ideologia de aprendizagem não tem nenhum compromisso com a probletização
da realidade. Desta forma, a superação do ultrareacionarismo e do
ultraliberalismo, os quais insistem na redução do papel do Estado para os mais
vulneráveis em termos sociais, somente é possível a partir de uma educação,
se não revolucionária, no mínimo progressista, comprometida com princípios
democráticos e ideais de amizade, solidariedade e fraternidade na esperança
de uma educação que permita aos nossos alunos serem aquilo para o qual
eles estão condicionados, mas não determinados. Para isto temos que insistir
na educação e no ensino como uma prática social refletida, uma práxis que se
oponha ao mero aprendizado de conteúdos despolitizados, pois só assim
honraremos a máxima constitucional aludida no início deste ensaio.

Referências
Wendell dos Reis Veloso é Licenciado e Bacharel em História pela
Universidade Gama Filho; Mestre e Doutor em História pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro; atua como professor tutor presencial/mediador
pedagógico de História Antiga e de História Medieval do Consórcio
UNIRIO/CEDERJ/UAB – Polo Resende; atua também como professor do
ensino básico na rede privada; é pesquisador do NEPHis – Núcleo de Estudo e
Pesquisa em História do Consórcio UNIRIO/CEDERJ/UAB – Polo Resende e
pesquisador associado ao ATRIVM/UFMS e ao LabQueer/UFRRJ.

Bibliográficas
ABUD, Kátia Maria. A História nossa de Cada Dia: Saber Escolar e Saber
Acadêmico na Sala de Aula. In: MONTEIRO, Ana Maria F. C.; GASPARELLO,
Arlette Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza. [Orgs.]. Ensino de
História: Sujeitos, Saberes e Práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p. 107-
117.
AMORIM, Daniela. Metade dos brasileiros sobrevive com menos de R$ 15 por
dia, aponta IBGE. In: UOL Economia, 06 de maio de 2020. Disponível em:
https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/05/06/metade-dos-
brasileiros-sobrevive-com-menos-de-r-15-por-dia-aponta-ibge.htm
BARROS, Carlos. Propuestas para El nuevo paradigma educativo de La
história. Revista de História, n. 158, 2008, p. 9-41.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense,
2006.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: DF, 1988.
CARA, Daniel. Contra a Barbárie, o Direito à educação. In: CÁSSIO, Fernando
[Org.]. Educação contra a Barbárie: por escolas democráticas e pelo direito
de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 25-31.
CARNEIRO, Silvio. Vivendo ou Aprendendo ... A “Ideologia da Aprendizagem”
Contra a Vida Escolar. In: CÁSSIO, Fernando [Org.]. Educação contra a
Barbárie: por escolas democráticas e pelo direito de ensinar. São Paulo:
Boitempo, 2019, p. 41-46.

172
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
. Microfísica do Poder. São Paulo: Edições Graal, 2007.
. Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez, 2003.
VELOSO, Wendell dos Reis. Ensino de História, Ciência e Sociedade: A Sala
de Aula como Local de Conhecimento Científico e Transformação Social. In:
BUENO, André; CAMPOS, Carlos Eduardo; PORTO, Dilza. [Org.]. Ensino de
História: Teorias e Metodologias. 1ed. Rio de Janeiro: Sobre Ontens/UFMS,
2020, p. 456-464.

173
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM EM EAD:
A IMPORTÂNCIA DA TUTORIA PRESENCIAL

Wesley da Silva Gonçalves

Introdução
Este trabalho tem como objetivo analisar a importância da tutoria presencial
como ferramenta pedagógica e motivacional na Educação a Distância, bem
como descrever os impactos da tutoria presencial na constituição do saber
neste processo de ensino-aprendizagem, destacando sua contribuição para as
avaliações. Ao longo do texto, pretende-se observar a importância social do
tutor presencial, no que tange à motivação, mas, sobretudo, à adaptação do
aluno à nova modalidade, haja vista que a maioria provém da modalidade
presencial.

A Educação a Distância [EAD], modalidade educacional regulamentada pelo


Decreto 5.622, de 19/12/2005, que por sua vez normatiza o Art. 80 da Lei
9.394/96 [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conhecida como
LDB], é o conjunto educacional constituído a fim de democratizar o ensino, ou
seja, proporciona àqueles que moram longe de uma universidade ou não
podem ir à aula todos os dias a oportunidade de estudar e se qualificar para o
mercado de trabalho.

Na EAD, o processo de ensino-aprendizagem ocorre com a utilização de meios


e tecnologias de informação e comunicação, ou seja, através de ambientes
virtuais [as plataformas], chats, fóruns e e-mail, onde estudantes, professores e
tutores desenvolvem atividades educativas em lugares e/ou tempos diversos.

Contudo, a EAD também dispõe de tutores presenciais, os profissionais


responsáveis por trabalhar in loco com os estudantes. Enquanto os tutores a
distância, em sua maioria, fazem o trabalho de modo assíncrono, isto é, uma
interação que não é simultânea [fórum, seminário etc.], o tutor presencial
trabalha de modo síncrono, praticando uma interação simultânea com os
estudantes.

A tutoria presencial em muitos cursos é utilizada para tirar dúvidas, no entanto,


a prática pedagógica de muitos tutores permite chamar esse contato com os
estudantes de aula. Por isso, o objetivo primeiro da tutoria presencial é a
adaptação dos estudantes, fazendo com que estes busquem autonomia no
processo de ensino-aprendizagem. Grande parte deles é proveniente da
educação presencial e a educação a distância requer uma participação ativa.
Além disso, o tutor presencial é o elo entre o discente e a instituição, uma vez
que está mais próximo do estudante, atuando no polo regional.

A avaliação está intimamente ligada à qualidade da Educação, uma vez que


esta ação norteia todo o trabalho desenvolvido, o processo de aprendizagem,
assim como, a instituição em geral. Dessa forma, pesquisar sobre a
importância da intervenção da tutoria e dos recursos tecnológicos no

174
desempenho do aluno na EAD, permite-nos compreender, à luz dos
fundamentos teóricos, aproximando teoria e prática, como a atuação ativa do
tutor contribui nas avaliações durante o desenvolvimento do curso. Ampliando,
dessa forma, reflexões e interligando assuntos, tais como: fatores,
recursos/ferramentas e interações indispensáveis neste processo.

A visão do tutor sobre o seu trabalho e sua interação com os alunos, reflete no
desempenho da EAD. São os tutores que motivam e ao mesmo tempo avaliam
os alunos. São eles que fazem a ponte do conhecimento até os alunos,
ajudando-os a encontrar os caminhos com os recursos tecnológicos
disponíveis. Analisando o seu desempenho podemos contribuir para a
qualidade do ensino.

Desenvolvimento
A Educação a Distância [EaD] é uma modalidade educacional, como alternativa
pedagógica, com legislação específica e que tem avançado historicamente,
graças à evolução dos diversos recursos tecnológicos. A internet, encurtando
tempo/espaço, mediando ações e interações e superando preconceitos,
oferece inúmeras vantagens ao atendimento às demandas educacionais da
sociedade moderna. A Educação a Distância acontece por meio de uma
grande rede, onde se compartilha: materiais, experiências, ideias, dúvidas,
opiniões, descobertas. Essa rede propicia um ambiente favorável à construção
do conhecimento de forma mais autônoma, mesmo que orientado virtualmente.

Esta modalidade de ensino necessita também de sistematização, planejamento


e intencionalidade. Assim, a gestão dos cursos oferecidos à distância segue
uma hierarquia, como de praxe, composta por administrador/gestor,
coordenadores, técnicos, professores/tutores que são responsáveis pela
administração e organização do trabalho em equipe. Essa equipe fortalecida
pela interação entre as pessoas e os recursos tecnológicos estabelece
condições favoráveis ao sucesso do curso, uma vez que um mau
gerenciamento da instituição de ensino pode interferir de forma direta e/ou
indireta na aprendizagem. Segundo Garbin e Dainese [2010]:

Na modalidade de educação à distância os processos de gestão devem oferecer a


possibilidade da relação entre os recursos tecnológicos e os recursos humanos para
que o processo de aprendizagem possa ocorrer de forma facilitada. Nesta modalidade
a dinâmica do processo de aprendizagem é complexa e envolve diferentes atores,
como professores, tutores, alunos, técnicos e coordenadores, que estão em diferentes
espaços e tempo para o desenvolvimento das atividades. A tecnologia deve oferecer
suporte aos diferentes processos envolvidos na organização, planejamento e
execução de todas as etapas do processo de ensino e aprendizagem, determinando a
necessidade do desenvolvimento de métodos e técnicas. [GARBIN; DAINESE, 2010,
p. 1]

Concordando com o exposto, entende-se que a avaliação está intimamente ligada a


qualidade educacional oferecida. Uma vez que esta prática norteia todo o trabalho
desenvolvido durante o processo de aprendizagem.

175
Uma “aprendizagem assistida por avaliação” segundo Hadji, [1992, p. 9] toma a
avaliação como indicador de rumo ao êxito e à evolução formativa do aluno
sem oprimi-lo e/ou recriminá-lo. Ou seja, um processo avaliativo que
acompanhe o crescimento e o desenvolvimento do estudante, numa
perspectiva inclusiva, solidária e integrada às demais práticas sociais, poderá
possibilitar sua atuação como agente transformador.

Luckesi nos remete ao caráter inclusivo da avaliação na EAD e a descreve


como um ato amoroso e acolhedor ao afirmar que: “O acolhimento integra, o
julgamento afasta.”.

Encontramos também no decreto nº 5.622, que regulamenta o art. 80 da Lei


no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, o seguinte disposto no art 1º:

caracteriza-se a educação a distância como modalidade educacional na qual a


mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a
utilização de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e
professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos diversos.
[BRASIL, 2005, p. 1]

Compreende-se então que “no contexto digital, mudam as formas de pensar e,


portanto, de aprender.” [LEVY, 1999]. A mudança de atitudes dos alunos de
cursos em EAD também requer aprendizagem autônoma, crítica e reflexiva. O
aluno é o centro do processo ensino-aprendizagem e deverá possuir perfil
adequado as exigências desta modalidade de ensino. Maturidade, motivação,
iniciativa, desprendimento, responsabilidade entre outros itens tornam-se
indispensáveis, considerando-se assim que, esta modalidade é mais
apropriada para adultos.

No entanto, levando-se em conta o lado psicológico do aluno, a motivação e a


interação dos tutores são de suma importância, uma vez que as trocas de
experiências e os laços afetivos firmados influenciam positivamente os
processos educativos.

Nos caminhos da mente humana, em que se entrelaçam sentimentos, pensamentos,


valores, crenças, fantasias, imaginação, ações, etc., tudo parece influir em tudo, em
relações que implicam causalidades, indeterminações e incertezas. Para adentrarmos
esse labirinto é necessário fascínio pela complexidade e coragem para sair dele com
mais indagações do que entrou. [ARANTES, 2003. p. 7]

E, para que este mecanismo ocorra é imprescindível que a percepção, a


sensibilidade e a afetividade do tutor se façam presentes em todas as
interações para: acompanhar, sinalizar, transformar, contribuir, contagiar,
facilitar, orientar, redimensionar, desmistificar o isolamento e a noção de
trabalho solitário, assim como, avaliar todo o processo ensino aprendizagem,
observando a subjetividade de cada aprendiz na sua singularidade. O estímulo
do tutor é uma das estratégias que gera reações psicológicas no aluno. Os
Referenciais de Qualidade para a Educação Superior a Distância [MEC, 2007]

176
tem o tutor como peça fundamental nos processos de aprendizagem, avaliação
e interação. Este referencial estabelece que:

O tutor deve ser compreendido como um dos sujeitos que participa ativamente da
prática pedagógica. Suas atividades desenvolvidas a distância e/ou presencialmente
devem contribuir para o desenvolvimento dos processos de ensino e de aprendizagem
e para o acompanhamento e avaliação do projeto pedagógico. [MEC, 2010, p. 21]

Para Wallon [1938] “A emoção estabelece uma relação imediata dos indivíduos
entre si, independentemente de toda relação intelectual.”. Vygotsky também
nos conduz a reflexões ao afirmar que cognição e afetividade, razão e emoção,
são dimensões indissociáveis no funcionamento psíquico humano. E por fim
Piaget, que fala da afetividade e sentimentos em suas relações com a evolução
cognitiva:

É indiscutível que o afeto tem um papel essencial no funcionamento da inteligência.


Sem o afeto não haveria nem interesses, nem necessidades, nem motivação; em
consequência, as interrogações ou problemas não poderiam ser formulados e não
haveria inteligência. O afeto é uma condição necessária para a constituição da
inteligência. No entanto, em minha opinião, não é uma condição suficiente. [PIAGET,
1962/1994, p.129]

Na educação online, estas relações/interações acontecem por meio dos


feedbacks. Historicamente, o feedback não era considerado uma ferramenta
para conduzir o aluno à reflexão de seu desempenho. Mas atualmente,
acompanhando os avanços tecnológicos e, segundo Mory [2004, p. 745-783],
“feedback pode ser descrito como qualquer procedimento ou comunicação
realizada para informar ao aprendiz sobre a acuidade de sua resposta,
geralmente relacionada a uma pergunta instrucional.”.

Para ratificar estes argumentos, consultamos Fluminhan, Arana que afirmam


“[...] Em todos os momentos em que há comunicação, é necessário que haja
um feedback [...] seja para confirmar o que foi emitido, seja para orientar novas
práticas ou para corrigir o que já foi dito ou executado.”.
Analisando diversas leituras, observa-se que o feedback precisa ser cauteloso.
Mesmo que o aluno ainda não tenha entendido os enunciados, faz-se
necessário fino trato para direcioná-lo as devidas interpretações. Pois, sua
dificuldade pode levá-lo ao desânimo e, consequentemente, a evasão do curso.

Assim sendo, chama a atenção a relação entre qualidade de ensino x formação


profissional,

Na formação do tutor devem ser acrescentados conhecimentos e habilidades


específicas necessárias ao desempenho de funções que envolvem a responsabilidade
pela mediação pedagógica e pela execução, acompanhamento e avaliação do plano
de estudos e da aprendizagem do aluno de cursos à distância”. [MOULIN, PEREIRA,
TRARBACH, 2004]

Dentre outras funções, lhe cabe a de lidar com elementos imprescindíveis ao


feedback do tutor para o aluno, tais como: cuidados com a linguagem, uso de

177
tom amigável, estreitar relações, organização, contextualização do conteúdo,
ritmo, frequência, tempo de retorno, estratégias, abordagem sugestiva, facilitar
o processo, etc., atendendo a um aluno que, por vezes, não chegará a
conhecê-lo pessoalmente.

Por isso, segundo White [2003], “o feedback é muito valorizado pelo aluno de
ensino a distância e é o alicerce do diálogo entre o professor e o aprendiz,
provocando motivação, encorajamento e suporte para a realização das
tarefas”, uma vez que ele supre a “ausência física”, ou seja, a atuação do
professor presencial que pode complementar suas falas, fazendo uso de
recursos como movimentos, expressões faciais, gestos, etc. Nesta linha de
raciocino:

O professor virtual precisa ter em mente que para além das máquinas, no outro lado
da tela há um sujeito carregado de subjetividade, com uma história de vida única,
recebendo e interpretando as suas mensagens. O respeito às normas, bem como o
bom senso devem estar sempre presentes e de forma equilibrada em seus feedbacks.
[FLORES, 2009, p. 9]

E, assim, compreende-se que o vínculo afetivo gera confiança.

Santos e Grumbach, também acrescentam que “O resultado da avaliação da


aprendizagem tem um significado muito importante na formação da autoestima
dos alunos.” [2004, p.184] Ou seja, os estimulam na busca de novos
conhecimentos e interação para uma aprendizagem significativa e colaborativa.

Não se pode esquecer de que a autoavaliação também se torna um


termômetro para o aluno, à medida que este percebe e acompanha o seu
crescimento intelectual, ao participar das dinâmicas, nas postagens e
realização das tarefas propostas. Da mesma forma, sua visão com relação à
instituição e ao trabalho nela desenvolvido é muito importante, servindo,
inclusive, de “bússola” rumo à qualidade.

Considerando que a avaliação, a autoavaliação e o acompanhamento do aluno


ao trabalho escolar são pontes que facilitam a construção do conhecimento, o
tutor precisa preparar-se para desenvolver essas práticas para que possa
chegar a uma qualidade de ensino. O professor tutor na EaD é o mediador do
processo de ensino e aprendizagem. É ele que dá o suporte, via tutoria
presencial ou a distância, a este aluno, ultrapassando a distância física e o
envolvimento que o aluno teria em um curso presencial.

Oliveira e Santos [2013] observaram que muitos tutores da EaD não possuem
formação e experiências nesta modalidade de ensino, sendo um caminho de
descobertas e desafios para estes tutores, mas ao mesmo tempo é uma via um
tanto arriscada para a os envolvidos e que dependem destes profissionais.
Neste sentido, Machado e Machado [2004], citando Carmem Maia [Guia
Brasileiro de Educação a Distância], nos descrevem habilidades e
competências sociais e profissionais que os tutores devem possuir para o bom
andamento da EaD:

178
ter capacidade de gerenciar equipes e administrar talentos, habilidade de criar e
manter o interesse do grupo pelo tema, ser motivador e empenhado. É provável que o
grupo seja bastante heterogêneo, formado por pessoas de regiões distintas, com
vivências bastante diferenciadas, com culturas e interesses diversos, o que exigirá do
tutor uma habilidade gerencial de pessoas extremamente eficiente. Deve ter domínio
sobre o conteúdo do texto e do assunto, a fim de ser capaz de esclarecer possíveis
dúvidas referentes ao tema abordado pelo autor, conhecer os sites internos e
externos, a bibliografia recomendada, as atividades e eventos relacionados ao
assunto. A tutoria deve agregar valor ao curso. [MAIA, 2002, p.13]

Sendo assim, o tutor deve ser este gestor, que está temporal e espacialmente
longe do seu campo de ação, e deve “empregar as competências
comportamentais para lidar com a subjetividade de cada aluno, estabelecer
interações continuamente e romper com a padronização do ensino” [TENÓRIO
et al, 2015] e, ainda “possuir um perfil profissional com certo número de
capacidades, habilidades e competências inerentes à função” [SOUZA et al.,
2004]. Tudo, claro, mediado pelas novas tecnologias.

É através da relação tutor-aluno que acontece boa parte da aprendizagem dos


alunos da EaD. Por isso, os tutores possuem um papel bastante significativo
para o sucesso na Educação a Distância, sobretudo, levando em consideração
as competências, as habilidades e atitudes que capacitam um profissional a
desempenhar as suas tarefas de forma satisfatória. Cito as competências
tutoriais segundo Oliveira et al. [2004]:

• interesse pela Educação a Distância;


• formação mínima, em nível de graduação, compatível com a área de conhecimento
em que a tutoria será desenvolvida;
• conhecimento do projeto político-pedagógico do curso e do material didático da
disciplina, de forma a dominar o conteúdo específico da área;
• familiaridade com os recursos multimídia, para estimular o aluno a criar o hábito da
pesquisa bibliográfica e da utilização dos recursos multimídia;
• disponibilidade para a interação mediada com os alunos, atendendo às suas
consultas seguindo o modelo de tutoria estabelecido;
• disponibilidade para orientar os alunos a respeito da utilização dos recursos para a
aprendizagem, tais como textos, material em web, CD-ROM, atividades práticas de
pesquisa bibliográfica, dentre outros;
• observação de critérios éticos que permitam estabelecer uma perspectiva relacional
positiva com os alunos e com os demais colegas de trabalho, a fim estimular a criação
de um ambiente que favoreça o processo de aprendizagem de todos.” [OLIVEIRA et
al., 2004]

Avaliar o seu comportamento, desempenho e dificuldades encontradas, se faz


necessário para capacitar e estimular este profissional que intermedeia o
processo de aquisição de conhecimento através da EaD. Isso nos faz despertar
para a necessidade de conhecer a influência de cada competência no seu
papel de tutor na prática profissional, as habilidades necessárias a sua
profissão e o quanto isso influencia o desenvolvimento dos alunos nos cursos a
distância.

179
Os tutores de EaD apresentam características distintas, definidas a partir da
concepção da instituição de educação ao qual está inserido. Preti [1996, p. 40],
afirma que “cada instituição busca construir seu modelo tutorial que atenda às
6164 especificidades regionais e aos programas e cursos propostos”. O tutor é
apenas um dos elementos primordiais nesse processo de ensino-
aprendizagem, pois temos o professor que elabora e prepara o material
didático, enquanto o tutor é aquele que acolhe e acompanha o processo,
mediando as relações para que o processo aconteça de fato. E para que tudo
isso ocorra com êxito, outra formação necessária e intrínseca a tutoria é o
domínio dos recursos a serem utilizados. Por meio desses, serão viabilizados
os conteúdos e as atividades onde intercorrerão as interações. Para Preti
[1996, p. 27], é necessário o tutor ter conhecimento das “técnicas específicas
do modelo a distância”, visando à sua aplicabilidade. Ou seja, é necessário
saber utilizar de forma competente as tecnologias de informação e
comunicação, para uma escolha pedagógica que contribua com o processo de
aprendizagem, desenvolvendo assim competências que gerem
colaboratividade entre o grupo e o entendimento do conteúdo disponibilizado
no material de apoio auxiliando nas possíveis dificuldades encontradas pelos
discentes. A escolha do recurso tecnológico adequado é que vai garantir
alcançar os objetivos traçados e o sucesso da aprendizagem e interação do
aluno.

Por fim, vivenciando e observando a prática, por meio da graduação em EaD,


percebemos cada vez mais a relevância dos assuntos expostos, a tal ponto de
torná-los objetos de nossa pesquisa. Neste intuito, este trabalho trata-se de um
estudo sobre as possíveis intervenções, tanto pessoais quanto tecnológicas,
que podem ocorrer na Avaliação da Aprendizagem e como esse processo
acontece na modalidade de Educação a Distância.

A construção do conhecimento, segundo Werneck [2006], deve corresponder a


um contexto no qual o indivíduo está inserido, levando em conta todo um
consenso universal, ou seja, o homem não recebe qualquer conhecimento
pronto, no entanto, constitui saberes relacionando os dados com os quais se
depara. Quando um aluno, na maioria das vezes proveniente do ensino
presencial, chega à Educação a Distância, muitas informações serão
processadas simultaneamente e os saberes começarão a constituírem-se para
este discente, no entanto a ausência do professor temporal e espacialmente
necessita ser trabalhada, uma vez que a característica marcante desta
modalidade é a busca pela autonomia. Com isso, faz-se necessária, na maioria
das vezes, o tutor presencial, aquele que ajudará o aluno neste processo de
adaptação.

Santos diz que,

cada instituição educacional que atua na modalidade de EAD, busca construir o seu
modelo tutorial, baseando-se no levantamento de informações que demonstram as
características de cada região, população atendida e curso desenvolvido. [SANTOS,
2009, p. 4]

180
A participação do tutor presencial como agente mediador dos processos de
aprendizagem, incentivando o aluno em seu caminhar acadêmico se faz muito
importante tanto para a prática pedagógica deste profissional quanto para os
alunos. Além disso, a presença do tutor presencial humaniza o curso de EAD,
uma vez que a ideia de que um curso a distância é algo solitário cai por terra, e
juntamente com a interação entre tutor e alunos, bem como entre os próprios
alunos, seja via plataforma ou polo, descobre-se que a EAD deve ser um
ensino solidário, em que trocas devem ocorrer o tempo todo.

Deste modo, o tutor presencial deve ser um grande incentivador dos alunos
para que haja a formação de grupos de estudo no polo, bem como a realização
das atividades presenciais agendadas. Para isso é preciso que a comunicação
se estabeleça de modo harmonioso. Em certa medida, o tutor presencial
também contribui com as partes administrativas do curso, estando em contato
tanto com a gestão presente no polo, bem como a coordenação do curso, que
não necessariamente está no polo.

A falta de iniciativa e/ou contato do tutor a distância em relação aos alunos


pouco frequentes pode ser suprida, nestes cursos, pela tutoria presencial que
tem a função de auxiliar os alunos a criarem novos hábitos e comportamentos
em relação aos estudos para que eles possam alcançar as suas metas,
inclusive nas avaliações presenciais. Compreende-se, assim, que a EAD exige
um trato especial quanto à criação do hábito de estudar diariamente, então,
quando um aluno se isola, é função do tutor saber gerenciar essa situação,
respeitando, é claro, a privacidade do aluno. Segundo Martins, este profissional
deve ter um perfil baseado em:
• Saber lidar com os ritmos individuais e as diferenças presentes no grupo de alunos;
• Apropriar-se de novas técnicas para a elaboração de materiais didáticos que poderão
ser produzidos nos meios eletrônicos [Ex. sites, e-books, e-mails];
• Compreender técnicas e instrumentos de avaliação, trabalhando em ambientes
diversos daqueles já existentes no sistema presencial de educação;
• Ser capaz de refletir sobre suas ações, buscando uma formação continuada na área.
[apud SANTOS, 2009, p. 4]

Neste sentido, a participação do tutor deve estar intimamente ligada à sua


preparação e à concepção de ser humano, enquanto sujeito na produção do
conhecimento. O tutor fazendo a mediação entre conteúdos e o processo de
aprendizagem, sua função não se limitará ao esclarecimento de dúvidas, mas
também à função do curso acadêmico, que é a de ensinar a pensar
criticamente, a analisar e a sistematizar, sempre buscando novas técnicas a fim
de apropriar-se da produção do conhecimento. Esta é uma caminhada
permanente e exige, a cada dia, novas descobertas e novas ações.

Considerações finais
Levando em conta a importância da tutoria presencial na formação dos
estudantes, a ideia que se tem de um curso a distância, segundo o senso
comum, de que é um ensino solitário, é refutada, uma vez que é a partir da
interação que o conhecimento se constrói e o tutor presencial simboliza a
humanização neste processo, pois o aluno para de dialogar com a “máquina” e

181
com os instrumentos que possui num Ambiente Virtual de Aprendizagem e
passa a vivenciar o que já está familiarizado, conforme afirma Santos [2009]:

[...] quando o Tutor preocupa-se com o processo de ensino e aprendizagem e, busca


propiciar momentos de interatividade e reflexões acerca dos conteúdos trabalhados
nas aulas à distância, o aluno mostra-se muito mais motivado à aprender, pois não
sente-se “sozinho”; sabe que tem no Tutor um ponto de apoio, à quem recorrer
sempre que necessário. Importante mencionar ainda que, os momentos presenciais
contribuem de forma significativa para a elaboração e socialização de conhecimentos
construídos pelos alunos no decorrer do curso.” [SANTOS, 2009, p. 6]

No momento de adaptação, este profissional deve estar atento às demandas


deste aluno a fim de motivá-lo a continuar seus estudos, contribuindo para a
diminuição da evasão e para a permanência do estudante no curso e,
sobretudo, a encontrar um norte, um direcionamento capaz de leva-lo à
autonomia na produção do saber.

Com isso, verifica-se que quando existe no ambiente educacional o tutor que
instiga, impõe um ritmo diferenciado e que, simultaneamente, tem a
capacidade de orientar a construção do conhecimento, aliado a um AVA
inovador e de fácil compreensão, a aprendizagem passa a ser colaborativa,
demonstrando o potencial da EAD como um ensino solidário, em que há o
compartilhamento de um objetivo comum.

Portanto, é possível afirmar através deste trabalho que a EAD perpassa a


barreira do mero recebimento da informação. Esta não para no aluno, mas é
transformada em conhecimento e, a partir da interação, vai ganhando corpo e
particularidades de cada aluno são acrescentadas, haja vista que ao romper a
lógica tradicional para uma prática mais inovadora, o aluno passa a ser o
centro do processo educativo. Deste modo, a participação de cada componente
no processo de ensino-aprendizagem se faz importante, no qual o tutor
presencial está inserido.

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184
NAVEGANDO DIGITALMENTE PELO IMPÉRIO PORTUGUÊS NO ALÉM-MAR:
REINVENÇÕES, NEGOCIAÇÕES E ALIANÇAS NA AMÉRICA PORTUGUESA.

Rosiane de Oliveira da Fonseca Santos

Considerações iniciais
Pensar o Império Português e o governo colonial além-mar traz a tona muitas
questões intrigantes e nos faz a refletir sobre a enorme distância que separava
metrópole e colônia, distância que hoje se supera facilmente com o
desenvolvimento da tecnologia de transportes e comunicação, mas em época de
caravelas e cartas, era algo bem mais complexo.

No ofício do historiador em sua busca de interpretações sobre o passado, são


imprescindíveis o acesso à documentação histórica, as fontes primárias e aos
vestígios deixados pelo passado. A experiência contemporânea com a pandemia
do novo coronavírus [SARS-CoV2] desde o início do ano 2020 e as
recomendações de isolamento social, nos distanciaram dos arquivos históricos
físicos, mas longe de estagnar o trabalho do historiador, reafirmou a importância
da História Digital e suas possibilidades de estudo, ensino, pesquisa e divulgação
científica.

História Digital
Conforme Oliveira [2014], o surgimento da Digital History pode ser localizada na
década de 90 no Center For Historyand New Media [CHNM] da Universidade
George Mason [Virgínia], onde se desenvolveram projetos na área das novas
mídias com propostas de preservação do passado, usava-se tecnologias da
informática em busca de democratizar o acesso e a manipulação de conteúdos
históricos na internet.

A História Digital pode ser compreendida, a partir de Anitta Lucchesi [2013], como
apropriação da Internet e suas novas ferramentas digitais pela História, de várias
formas, sejam com ferramenta de pesquisa e escrita da história, para criação e
acesso ao repositório de fontes ou mais um meio de divulgação de trabalhos
científicos e um espaço de História Pública compartilhada.

Lucchesi [2013], dialogando com John B. Thompson [1998], afirmam que há uma
grande mudança em curso em relação à comunicação na contemporaneidade,
emergindo novas formas de ação e interação na sociedade, com as novas
tecnologias de informação e comunicação. Nas últimas décadas presenciamos
uma maior democratização dessas tecnologias, cenário que promoveu grandes
mudanças em nosso cotidiano, e as ferramentas digitais se tornaram importantes
também ao fazer histórico.

Fontes históricas e narrativas sobre o passado estão disponíveis aos milhares na


Internet, sejam através de divulgação de documentos de acervos particulares ou
ainda exposições on-line de museus e repositórios de arquivos, novas
ferramentas tecnológicas e softwares abrem novas possibilidades de análises
históricas que impulsionam a interdisciplinaridade e a colaboração.

185
O virtual apresenta as inúmeras possibilidades como preservação de acervos
digitais, compartilhamento de memórias, grande acesso a materiais históricos
variados, rompimento de longas distâncias geográficas, diálogos transoceânicos
entre pesquisadores, ampla comunicação a diversos públicos, facilidade de busca
de informações por palavras, recortes cronológicos e geográficos, entre outros,
impactando a teoria e a prática historiográfica.

Sabemos que o acesso e a manipulação de qualquer tipo de fonte histórica


exigem cuidado e rigor metodológico. Os suportes digitais também trazem
limitações ao trabalho do pesquisador que não pode manipular o documento em
mãos e investigar atentamente seus detalhes observando suas propriedades,
trata-se de uma cópia, é preciso atentar para a forma com que foi feita a
digitalização, se há todo o conteúdo presente no original, quem está custodiando
aquele arquivo, entre outros.

O historiador trabalha com o que é essencialmente humano, suscetível a


manipulações e falsificações, portanto como em qualquer trabalho historiográfico
tem-se a necessidade do confronto de diversas fontes e heurística. Lucchesi
[2013] alerta também sobre a imaterialidade, fragilidade dos arquivos digitais,
perigo de instabilidade e não permanência das informações na rede.

Conforme Pierre Lévy [2007], estamos vivendo a abertura de um novo espaço de


comunicação para a vida social e cultural, a que ele compara com um “novo
dilúvio” de informações, gerado pelas telecomunicações com seu caráter
exponencial de crescimento, explosivo e caótico, com uma quantidade de dados
brutos se multiplicando de forma acelerada, presenciamos um transbordamento
de informações, inundação de dados e águas tumultuosas.

Estamos diante de uma nova condição social irremediável, precisamos aprender


lidar com esse volume gigantesco de informações que nos chegam de forma tão
rápida. Lévy [2007] nos recomenda a aceitar essa nova condição, aprender e
ensinar às futuras gerações e a nossa, a nadar, flutuar e talvez a navegar.

Concordamos com Brasil e Nascimento [2020] que apontam a necessidade de um


“upgrade” teórico-metodológico entre os historiadores para trabalhar com as
especificidades do “mundo virtual”, pois uma modificação na “materialidade” da
fonte histórica nos leva a uma nova forma de lidarmos com a informação nela
contida, essas mudanças e novas aprendizagens são importantes tanto para
pesquisa quanto para atuação nas salas de aula, repletas de estudantes de uma
nova geração que, como nenhuma outra, teve tanto acesso às tecnologias
digitais.

Nesta perspectiva, tem se desenvolvido diversos projetos de pesquisa e


divulgação científica em várias instituições, tendo como produtos plataformas
digitais e a disponibilização de fontes e acervos, como exemplos podemos
destacar o Laboratório de História Oral e Imagem [LABHOI] da Universidade
Federal Fluminense, a Biblioteca Nacional Digital do Brasil, o Centro de Pesquisa
e Documentação de História Contemporânea do Brasil [CPDOC], a Biblioteca
Digital Mundial, O Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico e a
Biblioteca Digital Luso-Brasileira.

186
"Práticas de pesquisa em história digital: diálogos historiográficos sobre o
Império Português Ultramarino"
Os estudos dos três primeiros séculos da História do Brasil, tem como principais
expoentes os trabalhos clássicos de Caio Prado Júnior e Fernando Novais dos
anos 40 aos 70, que caracterizam-se por valorizar a subordinação da economia
colonial brasileira à Europa e também seus críticos, como João Fragoso e outros,
a partir da década de 90.

Prado Jr [1981] aborda a ação portuguesa de forma dominadora e o povoamento


da colônia necessário à montagem de uma estrutura administrativa, orientada por
princípios diversos. Cita o exclusivo metropolitano português como um
instrumento necessário para manter o “sentido da colonização”, no qual a colônia
ficava com o encargo de produzir matérias-primas, enquanto a metrópole lhe
vendia produtos com maior valor agregado, como as manufaturas. Para controlar
a atividade econômica na colônia, a Coroa instituiu uma intensa atividade de
fiscalização com taxas, diversos impostos e proibições.

Neste contexto, para Caio Prado Jr. [1981], a política colonial empreendida pelo
governo português teria provocado desordem, acúmulo de funções, privilégios, e
deixado pouco espaço para a liberdade econômica e política na colônia, os
objetos de fiscalização tinham brechas, sendo naturalmente, inviável, rígido e
violento, o sistema gerava desconfianças mútuas e apego aos cargos públicos. O
autor orienta que no estudo e análise da administração colonial não devemos
procurar encontrar ordem ou harmonia nas instituições de um passado
caracterizado como caótico.

O Governo Geral foi instituído por D. João III por causa da necessidade uma
forma de governo mais enérgica, firme e centralizadora no Brasil. Como fato que
contribuiu sua criação, pode-se apontar a morte de Francisco Pereira Coutinho,
capitão donatário da Bahia devorado por indígenas tupinambás numa festa
antropofágica, após ser imobilizado e executado em 1548. As capitanias
hereditárias que vigoravam desde 1532, não seriam extintas, mas justapostas ao
novo governo que formava um centro para administração e governo colonial
promovendo uma maior ligação das diversas partes da América portuguesa.

Em relação aos governadores, Caio Prado Jr. [2000] aponta que eram “figuras
híbridas”, não se caracterizando nitidamente suas competências e jurisdição,
variavam com o tempo e de um governador para o outro, e também em relação a
personalidade, caráter e tendências dos indivíduos revestidos nos cargos.
Ressalta que a extensão territorial da colônia, a dispersão do povoamento e a
deficiência de recursos tornam difícil a solução do problema de fazer chegar a
administração de forma eficiente a todos os cantos do império colonial português.

Novaes [1979] aprofunda a interpretação de Caio Prado e tem como fundamenta-


se também na obra de e Eric Williams, vê a colonização como desdobramento do
desenvolvimento da expansão do comércio europeu, as colônias aqui tinham
como função fornecer matérias primas a metrópole e ainda servia de mercado
consumidor aos produtos da produção mercantil metropolitana. A partir de suas
obras criou-se a explicação historiográfica do grupo Antigo Sistema Colonial com
influência marxista, interpretando o Brasil Colônia como fruto de um sistema

187
colonial.

Conforme Salles [2017] da análise de Caio Prado e Fernando Novais vem a


noção de dicotômia na relação entre Metrópole/Colônia e especialmente em
Novais, uma dicotomia marcante desencadeada pela exploração colonial.

Nos últimos anos vem surgindo uma nova perspectiva historiográfica sobre os
antigos temas da História do Brasil Colonial em trabalhos de historiadores como
Fragoso, Bicalho e Gouveia [2000], Souza [2009], entre outros, que formam o
grupo Antigo Regime nos Trópicos. Rompendo com as análises anteriores de
estruturas econômicas, contestam a visão política dicotômica de oposição entre
metrópole e colônia e a contradição de interesses entre colonizadores e
colonizados. Apresentam um novo ponto de vista para as práticas e instituições
presentes na sociedade colonial, seguindo uma vertente que dá grande valor às
formas de representação social dos agentes históricos.

Fragoso, Bicalho e Gouveia [2000], a partir de influencia da obra de António


Manuel de Hespanha, contestam a ideia tradicional consolidada na historiografia,
a Caio Prado e Fernando Novais, de visão mão única que valoriza a exploração e
dominação metropolitana sobre o território e população coloniais, nos fazem olhar
a dinâmica de negociação entre elites coloniais e Coroa portuguesa.

Acerca da governabilidade do Império português, Fragoso et al. [2000] apontam


como fatores decisivos uma economia de privilégios, o pacto entre soberanos e
súditos e as estratégias de poder. A expansão e conquista de novos territórios
permitiu à coroa portuguesa atribuir ofícios e cargos civis e militares, conceder
privilégios comerciais, tais concessões eram o desdobramento de uma cadeia de
poder e de redes de hierarquia que se estendiam desde Portugal, permitindo uma
expansão de interesses metropolitanos até aqui e o estabelecendo vínculos
estratégicos com os moradores da colônia.

Conforme Fragoso et al. [2000], a distribuição de mercês e privilégios pelo


monarca não tinha só a função de retribuir o serviço dos vassalos ultramarinos,
defendendo os interesses da Coroa e assim também do bem comum, mais que
isso, reforçaria os laços de sujeição e o sentimento de pertencer e estrutura
política do Império, isso nos ajuda a compreender as estratégias usadas para
garantir a governabilidade do Império na distante colônia americana.

Segue também esta linha, Santos [2007] ao discutir o conceito de Antigo Regime
o relacionando com honra e poder, percebendo-os, como dois elementos
inseparáveis em se tratando nesta sociedade europeia. Para a autora, a
sociedade portuguesa da Época Moderna guarda traços que as diferenciam das
demais, traços mais perceptíveis na nobreza. Descreve que a principal
característica da nobreza portuguesa está assentada no binômio
recrutamento/remuneração honra e privilégio] e ao analisar a luz dessas questões
as trajetórias administrativas homens que partiram de Lisboa a serviço do rei
numa longa viagem rumo ao ultramar português, com o intuito de iniciar uma
estratégia de ascensão na rígida hierarquia social, elucida como esses indivíduos
lançaram mão de variados recursos de modo a atingir seus objetivos.

188
Esta interpretação, alinha-se a historiografia Antigo Regime nos Trópicos, com os
trabalhos de João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e Maria de Fátima Gouveia,
que criticam as noções do Antigo Sistema Colonial de dicotômica na relação
Metrópole/Colônia e marxismo de Novais. Tentaremos compreender a estrutura
administrativa do Império português na colônia americana e a reinvenção pelas
negociações e alianças, focando na trajetória política do Governador Pedro
António de Meneses Noronha de Albuquerque, através da análise de sua
correspondência política.

A busca nesse escrito elaborado para o I Simpósio Eletrônico de História e


Educação do polo CEDERJ UAB Cantagalo, uma exemplificação das inúmeras
possibilidades da História Digital, por ora, através de sua produção e divulgação.

Faremos uma análise através de fontes digitais disponíveis no acervo da


Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional, que iniciou em 2006 a
digitalização de seu acervo, deste selecionamos para leitura um breve conjunto
de correspondências do Governador-Geral no Brasil Colonial, Pedro António de
Meneses Noronha de Albuquerque, o primeiro Marquês de Angeja, no contexto da
Bahia [1714-1718] e através de sua comunicação política, refletiremos sobre a
estrutura administrativa do Império português no além-mar e sua reinvenção pelas
negociações e alianças na America portuguesa.

Analisando os Documentos Históricos Digitais


A análise de correspondências tem ganhado cada vez mais importância nos
estudos históricos, as cartas analisadas como documentos abrem espaço para
compreensão tanto de personagens de destaque político, como também
populares e sua vida íntima.

As cartas são importantes fontes históricas para analisar o período colonial e a


administração ultramarina, nos revelando vivências e modos, os governadores
gerais tiveram nas mesmas importante instrumento de governação e
comunicação política, sendo já parte das orientações e obrigações presentes nos
Regimentos recebidos pelos governadores.

O governador-geral era a principal autoridade da administração colonial, exercia


funções militares, sendo comandante da tropa, na área administrativa era
responsável pelo governo civil, articulando as capitanias e sendo responsável
pelos assuntos fazendários, além de exercer funções jurídicas, assessoramento e
fiscalização.

O interesse pelo governador em pauta, surgiu a partir de uma pesquisa sobre


comunicação política e me chamou a atenção a pouca quantidade de trabalhos
sobre o mesmo.

Analisando um conjunto de correspondências do Marquês de Angeja disponível


na Biblioteca Nacional Digital [BND] de forma digitalizada e também transcritas
através da paleografia, com uma historiografia que discute as alianças, os
interesses interligados, a reinvenção e a negociação com a Coroa podemos
compreender sua função, importância, valores da sociedade colonial,

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particularidades do governador e seu importante papel na engrenagem
administrativa.

Em 1714, Pedro A. de Noronha Albuquerque foi nomeado para o cargo de vice-rei


e capitão-general de mar e terra do Estado do Brasil, e por carta régia de 21 de
janeiro do mesmo ano, recebeu o título nobiliárquico de Marquês de Angeja, título
de juro e herdade com Honras de Parente da Casa Real criado por D. João V de
Portugal, a favor do mesmo.

Descrito como um dos "Grandes do Reino" por Salles [2012], o Marquês em seu
governo tomou medidas como reativar a cunhagem de moedas na Bahia, depois
no Rio de Janeiro e Minas Gerais, através da reabertura das Casas da Moeda
que já haviam sido criadas nas cidades da Bahia e Rio de Janeiro, sobre artigos
importados o Marquês determinou um imposto conhecido como a dízima da
Alfândega.

O total de cartas disponibilizadas são 131, na presente análise foram usadas


apenas uma parte do conjunto de cartas pelo pouco tempo disponível e por se
tratar de um trabalho introdutório a temática.

As cartas apresentam em geral não são muito extensas, vão direto aos assuntos
sem muitos rodeios, provavelmente por causa da quantidade de cartas que eram
escritas por dia, visto que se tratava de um meio muito utilizado na comunicação
política; seguem um padrão de cumprimento e despedida, na despedida
geralmente é utilizada a expressão “Deus Guarde a Vossa Mercê” isso reflete um
Império que tinha o Catolicismo como religião oficial.

Vemos também nas cartas do Marquês como se entrelaçavam interesses


particulares com o governo, como exemplo, na carta que escreveu ao Governador
do Rio de Janeiro, seu sobrinho Francisco da Távora, ele demonstrava seu
grande apreço ao mesmo, citando “Meu sobrinho, e meu Senhor do meu
coração”,a quem relata seu descontentamento com o fechamento da barra e a
ausência de notícias do mesmo, já que não chegavam embarcações do Rio de
Janeiro que trariam novas cartas.

Em carta escrita ao Capitão Antônio Correia de Moraes em dia 7 de outubro de


1715, o Marquês demonstra seus amplos poderes de tal modo que manda
prender um homem, Bernardo Carneiro da Rocha, sem dar maiores explicações
sobre o motivo.

O contexto em análise é complexo, implicando a compreensão das várias


instâncias de poder que nem sempre eram definidas claramente e conforme
Souza [2006] as determinações se recriavam no cotidiano, fugindo da ordem
inicial. Assim percebemos que para além de homens a serviço do Rei, havia
humanos com interesses próprios.

As cartas analisadas aqui são apenas alguns exemplos de análises que podem
ser feitas, a correspondência produzida pelo vice-rei é vasta e merece maior
atenção, pois conforme Santos [2007], o bom governador, além de respeitar as
jurisdições deveria também governar tendo sempre a pena à mão, de forma a

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conjugar os diversos interesses em jogo, e disso sempre informar ao rei. Tal
análise pode nos permitir reavaliar as interpretações consagradas sobre as
monarquias modernas e também nos permite construir novos estudos sobre a
complexa administração portuguesa.

Apontamentos finais
As correspondências do governador-geral Pedro de Noronha, remetidas a outras
autoridades do Estado do Brasil servem para sustentar a ideia proposta pela
historiografia do Antigo Regime nos Tópicos que dá ênfase às formas de
representação social dos agentes históricos. As cartas analisadas fazem parte de
um conjunto documental extenso e de extrema importância para análise de temas
como governo geral, relações de poder entre colônia e metrópole e das
reinvenções cotidianas.

Nas análises das correspondências do período é fundamental refletir sobre a


administração da América portuguesa levando em consideração os mecanismos
utilizados para o estabelecimento do poder régio e sua manutenção, além
desconsiderar as hierarquias e as prestação de serviços que além de possibilitar
a “ascensão”social, por causa da remuneração dada pelo rei, muitas vezes em
forma de mercês que visavam a manutenção de fidelidade à Coroa.

O cargo de governador-geral exercido por Pedro de Noronha é um exemplo


evidente deste sistema de recompensas e mercês, sua trajetória é vasta de
serviços prestados a Coroa e de distinção, privilégios e responsabilidades que
vinham concomitantemente.A análise de sua trajetória revela a complexidade de
relações sociais, políticas e econômicas que habitavam no Estado do Brasil.

Longe de ser algo completo, este trabalho tem a preocupação de na prática da


História Digital apontar algumas possíveis direções e temas de pesquisa acerca
do Marquês de Angeja e sua correspondência política, valorizando documentos
que ainda hoje têm sido pouco explorados, apesar de sua importância para
compreensão da administração do Império português além-mar na América
portuguesa.

As correspondências, como documentos históricos, não apresentam caráter


extremamente burocrático ou informativo, muito além disso, expressam afetos,
emoções, descontentamentos, alianças, redes de sociabilidade.

A partir diálogo estabelecido entre a cultura do manuscrito e o digital, refletimos


juntos sobre as práticas do historiador contemporâneo e a História Digital que
vem proporcionando às pesquisas históricas, ampliação de possibilidades, novas
linguagens e suportes de fontes e maior espaço de divulgação e diálogo com
vários públicos.

Referências
Rosiane de Oliveira da Fonseca Santos é pós-graduada em Planejamento,
Implementação e Gestão da Educação a Distância (UFF), Tecnologias e
Educação a Distância (Barão de Mauá), Gestão Pública e de Pessoas (UCAM) e
Gestão Pública Municipal (UFF). Graduou-se em História pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Processos Gerenciais (UCAM),

191
atualmente cursa Licenciatura em Pedagogia (UniFAVENI). Atua como
Articuladora Acadêmica do Curso de História (UNIRIO), na modalidade
semipresencial no polo CEDERJ-UAB Cantagalo-RJ e como Mediadora
Pedagógica Presencial nos cursos de História e Pedagogia, nas disciplinas Teoria
da História, Patrimônio Cultural e História da Educação. É Professora na
Secretaria do Estado de Educação. Atuou como Bolsista de Iniciação Científica da
UNIRIO, no Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo
(CMPD-CAN). Tem experiência na área de Educação a Distância, História e
Administração Pública.

Documentos Digitais
Biblioteca Nacional Digital (BND)
http://bndigital.bn.gov.br/acervodigital/
Documentos Históricos (RJ) - 1928 a 2012
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=094536&pagfis=2

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