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JOHN LOCKE:

Estado de Natureza e Estado Civil

Prof. Me Leonardo Bruno Farias


• Enquanto Hobbes escreveu o "Leviatã" em 1651,
em seu exílio na França , Locke escreveu seus dois
tratados sobre o Governo civil por volta de 1680,
durante seu exílio na Holanda.
• O Século XVII, na Inglaterra, foi marcado por um
confronto entre os defensores do absolutismo
monárquico, encastelados na Coroa Britânica, e a
burguesia, representada por seus parlamentares na
Câmara dos Comuns.
• Segundo Magalhães (2001, 58) “no século XVIII, a
burguesia ascendente já estava suficientemente
fortalecida e poderia prescindir de governos fortes
para solidificar seu domínio sobre a nação.
• Os monarcas ingleses da Dinastia Stuart
pretendiam fundamentar a autoridade real no
poder divino, ficando o século XVII marcado pelos
constantes conflitos entre a autoridade real,
supostamente inata porquanto oriunda da vontade
divina, e a autoridade do Parlamento baseada no
princípio racionalista de representação dos
interesses dos proprietários burgueses".
• Este processo de convulsão interna na Inglaterra
teve seu desfecho com a vitória das forças sociais
que defendiam o Parlamento, o liberalismo
político, contra as que pugnavam pelo absolutismo
monárquico, materializada na Revolução Gloriosa.
• A referida Revolução e “a aprovação do Bill of
Rights, em 1689, assegurou a supremacia legal do
Parlamento sobre a realeza e instituiu na Inglaterra
uma monarquia limitada”.
• Antes, porém, de iniciar a abordagem do item
referente ao Estado de natureza, convém fazer uma
breve exposição sobre as principais obras políticas
de Locke, que são os dois tratados sobre o Governo
civil que, conforme já foi inscrito, foram elaborados
por volta de 1680.
• O Primeiro Tratado é uma contestação á obra "O
Patriarca", de Robert Filmer, na qual há a defesa do
direito divino dos reis com base no princípio de
autoridade paterna de Adão, considerado o
primeiro monarca, a quem Deus agraciara com o
poder real que legará a seus descendentes a
referida autoridade.
• Locke, em seu Segundo Tratado, advoga que não é
a tradição nem a força que constituem a fonte
legítima do poder político, e sim , de modo
exclusivo, o consentimento pleno dos governados.

• A concepção de Estado de Locke é, segundo


Bobbio, “a primeira e mais completa formulação do
Estado liberal“.
O estado de natureza

– Para Locke, o estado de natureza é uma situação em que

• “todos os homens se acham naturalmente, sendo este um


estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e
regular-lhes as posses e as pessoas tal como acharem
conveniente, nos limites da lei da natureza, sem pedir
permissão ou depender da vontade de qualquer outro
homem” (Locke, 1.973:41).
• Neste trecho fica nítida a diferença existente entre
Locke e Aristóteles:

– Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo


a qual a sociedade precede ao indivíduo, Locke afirma
ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da
sociedade e do Estado.
• Na sua concepção individualista, os homens viviam
em estágio pré-social e pré-político, caracterizado
pela mais perfeita liberdade e igualdade,
denominado estado de natureza.
• Prosseguindo sua caracterização do estado de natureza,
Locke ressalta o caráter de eqüidade que existe nessa
situação:

– "Um Estado também de igualdade, onde é recíproco qualquer


poder e jurisdição, nenhum tendo mais do que o outro; nada
havendo de mais evidente do que criaturas da mesma
espécie e ordem, nascidas promiscuamente para as mesmas
vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades,
que terão sempre de ser iguais às outras, sem subordinação
ou sujeição... " (Locke, 1.973:41).
• O estado de natureza, para Locke, é uma situação de
convivência pacífica entre os homens, segundo o trecho
a seguir:

– "O estado de natureza tem uma lei de natureza a governá-lo,


que a todos obriga; e a razão , que é essa lei, ensina a todos
os homens que apenas a consultam que, sendo todos iguais e
independentes, nenhum deve prejudicar a outrem na vida, na
saúde, na liberdade ou nas posses" (Locke, 1.973: 42).
• Esse estado de natureza diferia do estado de guerra
hobbesiano, baseado na insegurança e na
violência, por ser um estado de relativa paz,
concórdia e harmonia.
• É importante destacar o fato de Locke considerar a
monarquia absoluta pior do que o estado de natureza:

– "Aquiesço finalmente em que o governo civil é o remédio


acertado para os inconvenientes do estado de natureza , os
quais devem, com toda a certeza, ser grandes se os homens
têm de ser juízes em causa própria, (...). (...), os monarcas
absolutos são apenas homens, e se o governo deve ser o
remédio para aqueles males que se seguem necessariamente
ao fato de serem os homens juízes em causa própria, ...
– ...não sendo por isso suportável o estado de natureza, desejo
saber que espécie de governo é esse , e em que medida é
melhor do que o estado de natureza, onde um homem
governando uma multidão tem a liberdade de ser juiz em
causa própria , podendo fazer aos seus súditos tudo quanto
lhe aprouver, sem o menor questionamento ou controle por
parte daqueles que lhe executam as vontades, devendo ele se
submeter , seja lá o que for que ele faça , levado pela razão,
pelo erro ou pela paixão?
– Muito melhor será no estado de natureza, no qual os
homens estão obrigados a vontade injusta de outrém; e
se aquele que julga julgar erroneamente no seu próprio
caso ou no de terceiros, é responsável pelo julgamento
perante o restante dos homens" (Locke, 1973: 44).
Propriedade: direito natural
• Locke aborda a questão do direito de propriedade
conceituando-o segundo duas significações
diferentes.

• A primeira designando-a como algo que


representaria , simultaneamente , a vida, a
liberdade e os bens como direitos naturais do ser
humano .
• A segunda acepção significa, rigorosamente, a posse de
bens móveis e imóveis .

• Ainda segundo o mesmo autor , ao contrário de


Hobbes, conforme já foi abordado , para Locke

– “a propriedade já existe no estado de natureza e, sendo uma


instituição anterior à sociedade, é um direito natural do
indivíduo que não pode ser violado pelo Estado”.
• Com referência ao direito de propriedade
propriamente dito, Locke considera que

– “O direito à propriedade seria natural e anterior à


sociedade civil, mas não inato. Sua origem residiria na
relação concreta entre os homem e as coisas, através do
processo de trabalho. Se, graças a este, o homem
transforma as coisas – pensa Locke – o homem adquire
o direito de propriedade, na medida em que "todo
homem possui uma propriedade em sua própria pessoa
, de tal forma que a fadiga de seu corpo e o trabalho de
suas mãos são seus”.
• Assim, em lugar de opor o trabalho à propriedade ,
Locke sustenta a tese de que o trabalho é a origem
e o fundamento da propriedade.

• As coisas em seu trabalho teriam pouco valor, e


mediante o trabalho, elas deixariam o estado em
que se encontravam na natureza, tornando – se
propriedade.
• Ou seja, caso o homem, mediante o desempenho
do seu trabalho, e utilizando como insumo
qualquer fator de produção presente na natureza,
fator esse em estado bruto, original, o beneficiasse,
o transforma-se, o produto desta transformação
seria propriedade privada desse homem. Então,
dessa forma, “o trabalho era, pois, na concepção
de Locke, o fundamento originário da propriedade.
• Assim, Locke descreve , no "Segundo Tratado", o
surgimento do dinheiro, e a legitimidade de seu uso
como forma de adquirir propriedades, da seguinte
forma:

– “A maior parte das coisas realmente úteis à vida do homem


são, em geral, de curta duração e, tal como a necessidade de
subsistência, obrigou os primeiros membros das
comunidades a procurar por elas ,..., se não forem
consumidas pelo uso, estragar-se-ão e perecerão por si
mesmas: o ouro, a prata e os diamantes são artigos que a
imaginação ou o acordo atribui valor , mais do que pelo uso
real e sustento necessário da vida. (...)
– E assim originou-se o uso do dinheiro – algo de
duradouro que os homens pudessem guardar sem se
estragar e que , por consentimento mútuo, recebessem
em troca sustentáculos de vida , verdadeiramente úteis
mas perecíveis. (...)
– Mas como o ouro e a prata são de pouca utilidade para a vida
humana em comparação com o alimento, vestuário e
transporte, tendo valor somente pelo consenso dos homens,
enquanto o trabalho dá em grande parte a medida, é
evidente que os homens concordaram com a posse desigual e
desproporcionada da terra, tendo descoberto, mediante
consentimento tácito e voluntário , a maneira de um homem
possuir licitamente mais terra do que aquela cujo produto
pode utilizar, recebendo em troca, pelo excesso, ouro e prata,
que podem guardar sem causar danos a terceiros, uma vez
que esses metais não se deterioram nem se estragam nas
mãos de quem os possui” (Locke, 1973, 59).
• Desta maneira, o pensador político britânico
justifica que, além do trabalho, o uso do dinheiro é
uma forma legítima de se exercer o direito à
propriedade.
Estado civil
• A vida no estado de natureza , para Locke, caracterizaria
- se pela perfeita igualdade e liberdade. Entretanto,
haveria alguns inconvenientes, tais como uma possível
tendência de os indivíduos se autofavorecerem , assim
como a seus parentes e amigos, na inexistência de uma
autoridade superior isenta, que tivesse poder suficiente
para solucionar conflitos entre os interesses dos
indivíduos.
• Desta maneira, o direito à propriedade e a
manutenção da liberdade e da igualdade estaria
ameaçada.
• Justamente para evitar a concretização dessas
ameaças , o homem teria abandonado o estado de
natureza e criado a sociedade civil, politicamente
organizada, através de um contrato não entre
governantes e governados, mas entre homens
igualmente livres.
• O pacto social não criaria nenhum direito que
viesse a ser acrescentado aos direitos naturais, que
não implicam a renúncia por parte dos homens de
seus direitos em favor do poder dos governantes.
• O pacto seria apenas o acordo entre esses próprios
indivíduos, reunidos para empregar sua força
coletiva na execução das leis naturais, renunciando
a executá-las pelas mãos de cada um.
• Seu objetivo seria a preservação da vida, da
liberdade e da propriedade, bem como reprimir as
violações desses direitos naturais.
• Os problemas existentes no estado de natureza, tais
como o desrespeito ao direito de propriedade,
entendida como vida, liberdade e bens, a inexistência
de juiz isento, imparcial, fato que conduziria à
inclinação do homem para ser juiz em causa própria, e,
também, a ausência de uma força coercitiva para impor
a execução das sentenças. Esses elementos, causariam
a guerra entre os indivíduos.
• É a necessidade de superar esses inconvenientes
que, segundo Locke, leva os homens a se unirem e
estabelecerem livremente entre si o contrato
social, que realiza a passagem do estado de
natureza para a sociedade política ou civil.
• Esta é formada por um corpo político único, dotado
de legislação, de judicatura e da força concentrada
da comunidade.

• Seu objetivo precípuo é a preservação da


propriedade e a proteção da comunidade tanto dos
perigos internos quanto das invasões estrangeiras.
• O contrato social é um pacto de consentimento em
que os homens concordam livremente em formar a
sociedade civil para preservar e consolidar ainda
mais os direitos que possuíam originalmente no
estado de natureza.
• No estado civil os direitos inalienáveis di ser
humano à vida, à liberdade e aos bens estarão
melhor protegidos ao amparo da lei, do árbitro e
da força comum de um corpo político unitário.
• Ou seja, a principal diferença entre o pacto de
submissão de Hobbes e o pacto de consentimento
de Locke é a de que, no primeiro, os direitos
naturais do ser humano são subtraídos pelo
soberano, que passa a concentrar uma soma muito
grande de poder e direitos.
• Enquanto que aos súditos só resta o direito de
preservação da própria vida, enquanto no segundo
os direitos naturais dos indivíduos são mantidos , e
o contrato é celebrado com a finalidade de
proporcionar maior proteção aos referidos direito,
principalmente ao de propriedade.
• Outra diferença importante é que, para Hobbes, o
soberano, a autoridade constituída, não pode ser
destituída em hipótese alguma, enquanto Locke
admite o direito de resistência, que seria a
prerrogativa detida pelo povo no sentido de depor
governantes tiranos, opressores e que não
governassem visando ao bem comum.
Diversas formas e fins do governo civil
• A respeito da noção de sociedade civil em Locke, é
constituída pelo contrato social; já as leis são
aprovadas mediante a anuência recíproca dos
contratantes e aplicadas por magistrados isentos. A
concordância recíproca antes referida tornaria os
indivíduos organizados na sociedade civil aptos a
optarem pela modalidade de governo que melhor
os aprouvesse.
• A passagem do estado de natureza para a
sociedade política ou civil ( Locke não distingue
entre ambas) se opera quando, através do contrato
social, os indivíduos singulares dão seu
consentimento unânime para a entrada no estado
civil.
• Relativamente a este tema, Locke nos informa que para
que os homens se encontrem em sociedade civil uns
com os outros é necessário que sejam partes
integrantes do contrato social, caracterizado pelo fato
de cada indivíduo se sujeitar à decisão da maioria,
mesmo que tal decisão seja antagônica a seus
interesses individuais, e que também estejam unidos
em um corpo, tendo lei instituída que valha para todos
e magistratura.
• Sobre isso nos informa Locke no capítulo Viii do
"Segundo Tratado", intitulado "Da sociedade civil e
política" :

– "(...) haverá sociedade política somente quando cada um dos


membros renunciar ao próprio poder natural , passando – às
mãos da comunidade em todos os casos que não lhe
impeçam de recorrer à lei por ela estabelecida .(...)
– Os que estão se unindo em um corpo , tendo lei comum
estabelecida e judicatura – para a qual apelar – com
autoridade para decidir controvérsias e punir ofensores,
estão em sociedade civil uns com os outros ; mas os que
não têm essa apelação em comum, ..., se encontram em
estado de natureza sendo cada um, onde não há outro,
juiz para si e executor, o que constitui, ..., o estado
perfeito de natureza" (Locke).
– Em relação ao Governo liberal , Locke salienta a
importância do consentimento dos governados como
base, fundamento, para a legitimidade do Governo ,
conforme fica nítido no seguinte trecho do "Segundo
Tratado sobre o Governo Civil":
• "Assim sendo, o que dá início e constitui realmente qualquer
sociedade política nada mais é senão o assentimento de qualquer
número de homens livres capazes de maioria para se unirem e
incorporarem a tal sociedade. E isto, e somente isto, deu ou podia
dar origem a qualquer governo legítimo no mundo" (Locke).
• Locke também ressalta os motivos pelos quais o
homem decide renunciar à liberdade e aos direitos
que possui no estado de natureza para, mediante a
celebração do contrato social, , formar a sociedade
política, o estado civil, e estabelecer um governo :
– "... embora no estado de natureza tenha tal direito, a fruição
do mesmo é muito incerta porque, sendo todos tão reis
quanto ele, todo homem igual a ele, e na maior parte pouco
observadores da eqüidade e da justiça , a fruição da
propriedade que possui nesse estado é muito insegura, muito
arriscada. Estas circunstâncias obrigam-no a abandonar uma
condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos
constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade
juntyar-se em sociedade com outros que já unidos, ou
pretendem unir-se, para a mútua conservação da vida, da
liberdade e dos bens a que chamo de "propriedade" (Locke).
• A respeito do estabelecimento do estado civil e da
ausência de determinados requisitos para a defesa da
propriedade no estado de natureza, Locke nos diz o
seguinte:

– O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens


em comunidade, colocando-se eles sob governo, é a
preservação da propriedade. Para alcançar esse objetivo
muitas condições faltam no estado de natureza:
• Primeiro, falta uma lei estabelecida, firmada,
conhecida, recebida e aceita mediante
consentimento comum, como padrão do justo e do
injusto e medida comum para resolver quisquer
controvérsias entre os homens;...
• Em segundo lugar falta um juiz conhecido e
indiferente para resolver quaisquer dissenssões, de
acordo com a lei estabelecida; nesse estado , juiz e
executor da lei de natureza, sendo os homens
parciais para consigo, a paixão e a vingança podem
levá-los a exceder-se nos casos que os interessam,
enquanto a negligência e a indiferença os tornam
por demais descuidados nos casos de terceiros.
• Em terceiro lugar , no estado de natureza falta
muitas vezes poder que apóie e sustente a
sentença quando justa, dando – lhe a devida
execução" (Locke).
• Além disso, Locke afirma, no "Segundo Tratado"
que

– "em todos os estados e condições, o verdadeiro


remédio contra a força sem autoridade é opor – lhe a
força. O emprego da força sem autoridade coloca
sempre quem dela faz uso num estado de guerra, como
agressor, e sujeita – o a ser tratado da mesma forma"
(Locke).
Conclusões
• Para concluir, é importante consignar que o
exercício tirânico do poder por parte da autoridade
coloca o governo em estado de guerra contra a
sociedade e os governantes em rebelião contra os
governados, conferindo ao povo o legítimo direito
de resistência à opressão e à tirania.
• O estado de guerra imposto ao povo pelo governo
configura a dissolução do estado civil e o retorno
ao estado de natureza , onde a inexistência de um
árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão
utilizada por Locke para indicar que, esgotadas
todas as alternativas, o impasse só pode ser
resolvido pela força.
• Para respaldar o que foi escrito sobre o direito de
resistência, alguns trechos do "Segundo Tratado" :
– E quem quer que em autoridade exceda o poder que lhe
foi dado pela lei, e faça uso da força que tem sob suas
ordens para levar a cabo sobre o súdito o que a lei não
permite, deixa de ser magistrado e, agindo sem
autoridade, pode sofrer oposição como qualquer pessoa
que invada pela força o direito de outrem. (...)
– (...) se a parte prejudicada encontrar remédio e os seus
danos reparados mediante apelação à lei, não haverá
qualquer necessidade de recorrer à força, que somente
se deverá usar quando alguém se vir impedido de
recorrer à lei; porque só deve se considerar força hostil
a que não possibilita o recurso a semelhante apelação, e
é tão só essa força que põe em estado de guerra aquela
que faz dela uso, e torna legítimo resistir – lhe (Locke,
1973).
Obrigado!

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