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FILOSOFIA – CEPAP – PAULO TAVARES

A TEORIA POLÍTICA DE JOHN LOCKE O estado de natureza


(1632-1704)
Os indivíduos vivem na mais absoluta liberdade,
As ideias políticas do filósofo inglês John Locke são porém isso não implica que vivessem sem a existência
apresentadas em sua obra “tratado sobre o governo ci- de leis. Nesse estado os seres humanos eram
vil” (1689). Ele inicia o livro fazendo uma distinção entre governados pela lei natural da razão, sendo seu princípio
o poder politico e os demais tipos de poder. Segundo básico a proteção da vida, à liberdade e à propriedade.
ele, o poder de um governante não é do mesmo tipo Para Locke, antes da organização da sociedade entre
daquele que o pai exerce sobre o filho, o marido sobre a governantes e governados já existia uma lei, a da razão,
mulher ou ainda o senhor sobre o escravo. dada por Deus enquanto vivemos no estado de
Ainda que alguma analogia seja certamente possível, natureza, isto é, um estado pré contratual. Também
um pai, um marido ou um senhor de escravo não são ne- existe uma moral. Uma vez que os homens são dotados
cessariamente legisladores. Também não lhes caberia o de razão, podem discernir entre o certo e o errado.
uso da autoridade ou da força para garantir a integrida- Assim qualquer um que atente contra a vida ou a pro-
de de sua propriedade ou para a defesa contra um ata- priedade de outro comete um ato moralmente condená-
que estrangeiro, pois essas seriam atribuições do Estado. vel e se coloca como transgressor da lei divina. Do mes-
O ponto de partida de Locke é mesmo de Hobbes isto mo modo aquele que puni a transgressão de outrem,
é, o “estado de natureza seguido de um “contrato” entre nada mais faz do que seguir o ditado natural da razão.
os homens, que criou a sociedade e o governo civil”. O estado de guerra passa a existir a partir do
Mas, Locke chega a conclusões opostas às de Hobbes, momento em que existe inimizade, destruição ou
pois sustenta que, mesmo no estado de natureza, o controle arbitrário da vida de outra pessoa. Assim se
homem e dotado de razão. Dessa forma, cada indivíduo refere Locke ao estado natural:
pode conservar sua liberdade pessoal e gozar do fruto
de seu trabalho. Entretanto, nesse estado natural faltam “Entretanto, ainda que se tratasse de um ‘estado de
leis estabelecidas e aprovadas por todos e um poder liberdade’, este não é um ‘estado de permissividade’:
capaz de fazer cumprir essas leis. o homem desfruta de uma liberdade total de dispor
de si mesmo ou de seus bens, mas não de destruir
(...)embora livre o homem está sujeito a sua própria pessoa, nem qualquer criatura que se
temores e perigos constantes; e não é sem encontre sob sua posse, salvo se assim o exigisse um
razão que procura de boa vontade juntar-se em objetivo mais nobre que a sua própria conservação. O
sociedade com outros que estão unidos, ou ‘estado de Natureza’ é regido por um direito natural
pretendem unir-se, para a mútua conservação que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é
da vida, da liberdade e dos bens a que este direito, toda a humanidade aprende que, sendo
chamamos de “propriedade”. (Locke, Segundo tratado todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o
sobre o governo, Col. Os Pensadores, p.88.).

Os indivíduos, então consentem em abrir mão de outro em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus
uma parte de seus direitos individuais, concedendo ao bens; todos os homens são obra de um único Criador
Estado a faculdade de julgar, punir e fazer a defesa todo-poderoso e infinitamente sábio, todos servindo
externa. Entretanto, se a autoridade pública, a quem foi a um único senhor soberano, enviados ao mundo por
confiada a tarefa de a todos proteger, abusar de seu sua ordem e a seu serviço; são, portanto sua
poder, o povo tem o direito de romper o contrato e propriedade, daquele que os fez e que os destinou a
recuperar a sua soberania original. Assim Locke defendia durar segundo sua vontade e de mais ninguém.
o direito do povo de insurgir contra o governo e Dotados de faculdades similares, dividindo tudo em
justificava a derrubada e a substituição de um soberano uma única comunidade da natureza, não se pode
legítimo por outro. conceber que exista entre nós uma ‘hierarquia’ que
nos autorizaria a nos destruir uns aos outros, como se
Brasil resgata 942 pessoas do trabalho escravo no primeiro ano da covid-19 tivéssemos sido feitos para servir de instrumento às
necessidades uns dos outros, da mesma maneira que
as ordens inferiores da criação são destinadas a servir
de instrumento às nossas.” (LOCKE, p. 35).
No estado de natureza, todo homem tem o direito de
punir o transgressor e de ser o executor da lei da
natureza. Os “homens vivem juntos segundo a razão e
sem um superior comum sobre a Terra, com autoridade
para julgar entre eles”.
“Ainda que a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a O estado de natureza, relativamente pacífico, não está
todos os homens, cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; isento de inconvenientes, como a violação da propriedade
sobre esta ninguém tem qualquer direito, exceto ela”. Locke (vida, liberdade e bens) que, na falta de lei estabelecida,
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de juiz imparcial e de força coercitiva para impor a
execução das sentenças, coloca os indivíduos singulares
em estado de guerra uns contra os outros.
É a necessidade de superar esses inconvenientes que,
segundo Locke, leva os homens a se unirem e
estabelecerem livremente entre si o contrato social, que
realiza a passagem do estado de natureza para a
sociedade política ou civil. Esta é formada por um corpo
político único, dotado de legislação, de judicatura e da distinções – o poder legislativo emana do povo
força concentrada da comunidade. Seu objetivo precípuo representado no parlamento; o poder executivo é
é a preservação da propriedade e a proteção da delegado ao rei pelo parlamento".
comunidade tanto dos perigos internos quanto das O contrato social institui, então a sociedade civil e o
invasões estrangeiras. Estado como garantia dos direitos naturais e não como
criação de outros direitos.
Conselho nacional Sendo fruto do consentimento de todos, a instituição
dos direitos humanos de uma sociedade política não significa a renuncia à
divulga levantamento liberdade individual, e sim a instauração de uma nova
das áreas com maior forma de liberdade: a liberdade civil. Esta não se
incidência de contrapõe a liberdade natural, mas a preserva e a amplia,
violações de direitos
já que os direitos naturais se tornam direitos políticos.
humanos no Brasil.
Assim, a passagem do estado de natureza para a
sociedade política ou civil (Locke não distingue entre
ambas) se opera quando, através do contrato social, os
O Estado social indivíduos singulares dão seu consentimento unânime
para a entrada no estado civil. Estabelecido o estado civil,
A passagem do "estado natural" para o "estado social"
o passo seguinte é a escolha pela comunidade de uma
só pode ser feita pelo consentimento (e não pela
determinada forma de governo. Na escolha do governo, a
conquista) dos homens. "Sendo – todos os homens
unanimidade do contrato originário cede lugar ao
igualmente livres, iguais e independentes, nenhum pode
princípio da maioria, segundo o qual prevalece a decisão
ser tirado desse estado e submetido ao poder político de
majoritária e, simultaneamente, são respeitados os
outrem, sem o seu próprio consentimento, pelo qual pode
direitos da minoria
convir, com outros homens, em agregar-se e unir-se em
No que diz respeito às relações entre o governo e a
sociedade, tendo em vista a conservação, a segurança
sociedade, Locke afirma que, quando o executivo ou o
mútua, a tranqüilidade da vida, o gozo sereno do que lhes
legislativo violam a lei estabelecida e atentam contra a
cabe na propriedade, e melhor proteção contra os insultos
propriedade, o governo deixa de cumprir o fim a que fora
daqueles que desejariam prejudicá-los e fazer-lhes mal."
destinado, tornando-se ilegal e degenerando em tirania. O
Entre os direitos que, segundo Locke, o homem
que define a tirania é o exercício do poder para além do
possuía quando no estado de natureza, está o da
direito, visando o interesse próprio e não o bem público
propriedade privada que é fruto de seu trabalho. O Estado
ou comum.
deve, portanto, reconhecer e proteger a propriedade.
Com efeito, a violação deliberada e sistemática da
Locke defende também que a religião seja livre e que não
propriedade (vida, liberdade e bens) e o uso contínuo da
dependa do Estado.
força sem amparo legal colocam o governo em estado de
A sociedade civil, que veio substituir o estado natural,
guerra contra a sociedade e os governantes em rebelião
possui dois poderes essenciais:
contra os governados, conferindo ao povo o legítimo
 Um é o legislativo, que determina como o Estado direito de resistência à opressão e à tirania.
deve agir para a conservação da sociedade e de seus
membros;
 O outro e o executivo, que assegura a execução das
PARA PENSAR
leis promulgadas.
"Cada homem tem uma propriedade em sua
O poder legislativo e o executivo devem estar em própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum
diferentes mãos para evitar possíveis abusos e evitar a além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra
de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente
concentração de poder nas mãos de um único grupo.
dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado
De acordo com o cientista político Norberto Bobbio, com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele
"Locke passou para a História – justamente como o com o seu trabalho e lhe junta algo que é seu,
teórico da monarquia constitucional – um sistema político transformando-a em sua propriedade." (Locke, John.
baseado, ao mesmo tempo, na dupla distinção entre as Dois tratados sobre o governo. Martins Fontes, São
duas partes do poder, o parlamento e o rei, e entre as duas Paulo, 1998, p. 409.)
funções do Estado, a legislativa e a executiva, bem como Pode parecer óbvio que somos proprietários de
na correspondência quase perfeita entre essas duas nosso corpo, mas naquele momento reconhecer
essa situação representou um avanço. Pense no

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