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IDCBJ - Simpósio Internacional de Direito


Japão – Brasil
KEIO – USP

“Evolução do Direito no Século XXI”


Painel de História do Direito

“A História do Direito e o Direito Romano: perspectivas curriculares universitárias


para uma comunhão jurídica e científica”
(PALESTRA A SER PROFERIDA NO DIA 14/3/2014)

HÉLCIO MACIEL FRANÇA MADEIRA


PROF. DE HISTÓRIA DO DIREITO E DIREITO ROMANO DA USP
PROF. TITULAR DE DIREITO ROMANO NA FDSBC

1. O Direito Romano como disciplina nos Cursos Jurídicos: um longo


passado e um longo futuro.

O direito romano como disciplina nos cursos de Direito não impõe maiores
dificuldades aos alunos, nem lhes exige preparação intelectual prévia. Como disciplina
curricular, é uma síntese introdutória ao direito, didática e clara, compreensível mesmo
aos que não sabem o latim e que não tenham maiores aprofundamentos na história.
Diferente sucede ao docente e aos pesquisador, pois lhes exige longa preparação
intelectual, leitura das difíceis fontes latinas antigas e o estudo de uma extensíssima
bibliografia universitária de dez séculos, multilíngue e predominantemente europeia,
desde os glosadores do séc. XI até os dias atuais.
A análise didática de cada instituto de direito, privado ou público,
principalmente à luz dos contextos e períodos históricos, permite extrair muito
didaticamente os princípios, a terminologia e as regras do direito romano, os seus três
elementos historicamente mais estáveis, que consentem ao aluno visualizar e
compreender o grande “sistema” jurídico em que ele vive, e que hoje abarca uma
centena de direitos estatais, sejam eles de cunho liberal ou socialista, republicano ou
democrático, religioso ou laico.
E assim como não faz sentido lógico descrever uma biologia “francesa”, uma
química “russa” ou uma matemática “brasileira”, o direito romano, enquanto arte ou
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ciência do justo, também não é “romano”, senão por sua origem e em razão de seu
contraste com os direitos estatais, que surgiram fechados em suas soberanias e
adjetivaram-se, propriamente, como francês, russo ou brasileiro.
O direito romano foi simplesmente ius, ius civile, jurisprudentia, assim
nominado sem o adjetivo “romano”, desde as escolas antigas até os cursos
universitários iluministas. Até a promulgação dos Códigos Modernos, eram os “cursos
jurídicos” que ensinavam, quase que exclusivamente, “o direito” por excelência, isto é
a ciência do direito que posteriormente seria denominada “Direito Romano”. Esse
processo de mudança de nomenclatura explica-se pelo fenômeno da nacionalização das
grades curriculares pelos reinos-estados absolutistas europeus e substituíram o longo
estudo do direito (romano, universal) pelo estudo do direito natural e pelo direito
pátrio, estatal e positivo. Em contrapartida, o direito do Corpus Iuris Civilis, até então
comum a todas as nações, foi comprimido em um suposto direito “estatal dos romanos,
histórico, terminado, não mais vigente”. Nasceu assim a disciplina “Direito Romano”,
já se firmando no início do século XIX, agora como parte mínima de um currículo
universitário oscilante, sempre em reforma, sempre no encalço dos novos ramos dos
direitos, segundo a sistemática das leis em vigor, e conforme o desenvolvimento e as
classificações de cada direito pátrio ou estatal.
O direito romano, na verdade, não era mesmo dos romanos. Mas universal e de
aplicação contínua, como direito vigente, como ciência apátrida. Firmou-se por quase
toda Europa e depois na recém colonizada América Latina, como “o” direito por
excelência. Construiu-se na arte operada pelos pareceres e debates dos cientistas
romanos, dos compiladores e professores bizantinos, dos docentes universitários do
renascimento jurídico italiano, dos pesquisadores humanistas e iluministas europeus,
das escolas histórica ou da pandectística alemã, e dos codificadores de todas as épocas,
da Rússia à Argentina, do esboço de Teixeira de Freitas ao Código Beviláqua, ou ao
novo Código Civil, em cuja comissão a visão romanista de Miguel Reale e de Moreira
Alves norteou as renovações terminológicas e conceituais, especialmente da Parte
Geral.
Fonte comum de quase todos os países do Ocidente, como que uma grande
língua-mãe, o direito romano tornou-se um instrumento de grande clareza para
compreender cada um dos direitos estatais. Até para superá-los, para evidenciar suas
virtudes, seus desvios, ou para leva-los a novos rumos que o aperfeiçoam e o
atualizam. É o que se denomina de processo de “atualização” permanente do “Sistema
de Direito Romano”.
Negar esta visão integradora ao aluno que inicia o curso jurídico é deixá-lo
refém dos direitos estatais e da literalidade das leis. É negar-lhe os argumentos que
tocam os próprios fundamentos das normas. É abandoná-lo nas contingências do
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presente, sem a segurança existencial que a crítica histórica, principiológica e


conceitual proporcionam. Negar o direito romano na grade curricular é ceder o aluno
ao mercantilismo do ensino superior, especialmente o privado, que prefere os valores
transitórios da empregabilidade imediata, do baixo custo e da máxima antecipação de
uma prática jurídica remunerada em detrimento de valores permanentes, como o de
formação de uma classe que possa cientificamente fazer a crítica das leis,
reconhecendo nelas o direito subjacente; uma classe que possa com habilidade
interpretativa, resistir mais às leis e aos legisladores injustos ou cooperar na redação,
unidade e sistematização do direito vigente; uma classe que possa atualizar
permanentemente o direito, sem incidir nos erros passados e fazendo uso de uma
experiência bimilenar comum a várias nações do globo terrestre.
Em suma, a “ciência do justo” que os juristas romanos antigos iniciaram e que
os juristas de todas as partes e épocas históricas continuaram a atualizar, só mais tarde
será conhecida como Direito “Romano”. Enquanto fora direito vigente e ius commune
a toda Europa, até o século XVIII, não se denominava ele Direito Romano, mas apenas
e tão somente “Ius”, “Ius Civile” ou “Direito”, dividido nos seus respectivos ramos
conhecidos (direito das pessoas, das coisas, das obrigações, ações etc.). Foi somente
após a lenta introdução dos Códigos estatais (desde o primeiro, da Prússia, no século
XVIII), frequentemente frutos de um anti-historicismo, como o Código Alemão de
1900, que a vigência prática do direito comum dos doutrinadores europeus foi
completamente deixada, transformando-se em mera disciplina “Direito Romano”
nascida já em crise existencial, diante de sua inaplicabilidade imediata.
Mas o tempo demonstrou que os direitos europeus, ensimesmados nos direitos
estatais, não poderiam tomar rumos diferentes sem grande prejuízo. O século XX
nasce esperançoso de uma nova ordem. Caberá ao direito internacional e ao direito
internacional comparado a missão de evidenciar os traços comuns da experiência e a
percepção da força e unidade dos grandes sistemas jurídicos. A própria América Latina
revelará ao mundo o romanismo unificador de seus juristas, coesos nos princípios e na
terminologia romana, não limitados às fronteiras dos estados recém-independentes
(Andrés Bello, Teixeira de Freitas, Velez Sarsfield, Lafayette Rodrigues e tantos
outros). A integração jurídica da Europa e da América Latina reclamará a volta de um
direito comum, agora não mais o Direito Romano histórico, mas um novo direito
romanista, mais uma vez atualizado para o seu tempo.
Tornou-se o Direito Romano mais uma vez direito vigente, seja como
fundamento histórico do direito, seja como sistema jurídico atual. Uma ciência sem
pretensões temporais, étnicas, estatais ou políticas, que se colocou a serviço de
diversos povos, até mesmo aqueles alheios à sua origem histórica, como os povos
germânicos medievais ou, mais recentemente, os chineses, que ora dedicam grande
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esforço no estudo dos juristas romanos e na tradução dos textos latinos para o chinês, a
fim de inserirem-se no concerto do mundo globalizado.
Desponta agora, para o século XXI, como o direito dos BRICS, o direito do
diálogo entre os povos de sistemas jurídicos diferentes, um novo ius gentium para
superar a crise do direito internacional e estatal. Mantém-se como instrumento
inspirador nas reformas dos Códigos Civis de todo o mundo, como o nosso, que
repristina e atualiza antigos conceitos como a lesão, o sinalagma, a superfície, o usus, a
boa-fé, ou a coisa comum de todos. Comunica-se com a Bioética, renova o
fundamento das ações populares e da defesa do meio ambiente. E paradoxalmente é
também instrumento de conservação e resistência dos fundamentos do direito europeu
e latino-americano, remanescido nos mesmos códigos atualizados.
Na Europa, recentes modificações das grades curriculares introduzem, em
diversos países, a disciplina integradora “Fundamentos do Direito Europeu”, lecionada
mormente por romanistas e com uma literatura crescente e de boa acolhida. É mais um
fruto da ciência romanística, mais uma vez convocada para redirecionar a integração
da nova Europa comunitária e extracomunitária.
O choque de sistemas jurídicos, especialmente com a common law e com o
direito muçulmano é já uma realidade em todas as partes do mundo. O Brasil não está
isolado e não escapará da necessidade de rever seu direito. Esse processo de
integração, resistência ou adaptação implicará novas escolhas científicas que, se não
forem muito bem estudadas, poderão levar ao desperdício das conquistas científicas e
das tradições romano-luso-brasileiras fundamentais à nossa identidade e ao nosso
porvir, seja como brasileiros, seja como latino-americanos, seja como integrantes do
sistema romanista, seja como aspirantes a um sistema jurídico científico universal. É
preciso estar alerta. É preciso conhecer as reservas do conhecimento jurídico para não
ser lesado nas trocas entre os sistemas jurídicos.
Cada época tem o seu próprio “direito romano”. Como direito vigente (em
Roma, no Império Bizantino, nos reinos germânicos - como direito romano vulgar ou
como direito incorporado, ou como direito comum - recepcionado nas legislações de
quase todos os reinos e repúblicas europeias até as grandes codificações), ou como
objeto de pesquisa histórica (como, e.g., sucedeu no Humanismo Jurídico do séc.
XVI), ou mesmo como ambos (como ocorreu com a Escola Histórica Alemã, no
séc.XIX). E não foi só no campo jurídico que o direito romano se tornou referência.
Assumiu também, paralelamente, outras dimensões, tornando-se o fundamento da
Ciência Política (como em Maquiavel, ou Rousseau) ou da Razão Filosófica, tornando-
se, ao mesmo tempo, êmulo e baliza do jusnaturalismo (de Suarez ou Puffendorf) e do
jusinternacionalismo (de Vitória ou Grócio).
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Ainda quando estudado como “direito histórico”, “não-vigente”, o direito


romano continuou sendo parte fundamental da cultura jurídica e da doutrina europeia.
Essa mesma doutrina, que é uma principais das fontes do direito em toda a história do
sistema jurídico romanista, é a sua maior força de coesão, ainda hoje. As leis e os
códigos, votados pelos órgãos legislativos, não esqueçamos, são, em nosso sistema
romanista atual, necessariamente preparadas e redigidas pelos juristas, frequentemente
docentes universitários, para que se mantenham a coesão, a lógica interna de suas
partes, a integração terminológica e principiológica com as diversas outras normas. O
direito romano acabou por se confundir com o próprio bimilenar sistema jurídico
romanista, que se atualiza segundo a sinfonia entre suas principais fontes do direito: os
costumes, as leis e a jurisprudência (doutrina ou ciência do direito).
Não foi diferente nem mesmo no Japão. “A cultura do Direito Romano ali se
implantou não como diletantismo de um povo inteligente, mas como uma necessidade
científica e prática” (Abelardo Saraiva da CUNHA LOBO, Curso de Direito Romano,
vol.III, “A Influência Universal do Direito Romano”, Rio de Janeiro, 1931, p.79).
Além da obra do ilustre romanista Hg HH (“Hogakuski” – professor; “Hogaku
Hakuski” – doutor em direito) ICHIRO HARUKI quem em 1925 publicou seu
“Direito Romano - Lições professadas”, notabilizaram-se SUEMATSÚ (Institutas do
Imperador Justiniano, Comentários das Institutas de Gaio e as Regras de Ulpiano),
IRIE (Estudo do Ius Praetorum) e Hg. TSUNEFUJI (Teoria do Direito Natural no
Direito Romano). Oghi TAKATO, ministro da Justiça, deu início à codificação do
direito japonês, confiando ao professor parisiense Gustave Boissonade os projetos de
Código Civil e de Processo Criminal. Também os códigos, ali, resultaram do trabalho
científico de professores, como é fato próprio e exclusivo do sistema jurídico
romanista. Em 1897 entrou em vigor o C.Civil. Assim também fora composto seu
Código de Comércio de 1890, cujo projeto fora confiado ao professor alemão Rössler.
Um Código substituto, de 1899, foi redigido pelos professores da Universidade de
Tókio, UMÊ e OKANO, com colaboração do jurista TANABE, por meio de um
projeto que teve por inspiração o Código Civil Alemão. O Japão tornou-se assim mais
um exemplo vivo de que o Sistema de Direito Romano, porque científico e atemporal,
tem vocação para universalidade.
Os séculos XIX e XX fizeram emergir mais um direito romano: o das sutilezas
do direito privado, especialmente dos direitos patrimoniais, obrigações e direitos reais,
com a criação dos modelos mais apurados da técnica jurídica. O estudo do Direito
Romano tornou-se assim uma excelente escola para a formação do denominado
espírito jurídico moderno.
O direito romano, tornado disciplina, firmou-se o como um canal apropriado
para o ensino e conhecimento dos aportes que as diversas escolas jurídicas modernas
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desenvolveram, especialmente os da Escola Histórica e da Pandectística alemã. E


também se tornou a sede ideal para veicular as reações mais recentes ao dogmatismo e
ao positivismo, algumas de caráter anti-individualista e anti-liberal, outras mais em
busca de uma visão sistêmica e de integração jurídica regional ou mundial, ambas a
evidenciar os aspectos perdidos do direito público romano, reapreciados hoje como
fatores de equilíbrio do sistema jurídico. Michel Villey, Emilio Betti, De Martino,
Orestano e, recentemente, Catalano e Schipani são alguns exemplos expoentes.
Em suma, os juristas romanos, sobretudo os da época clássica, fizeram da
interpretação das leis uma arte realmente superior, legando-nos um método científico
para as discussões jurídicas. E ensinam-nos até hoje a distinguir, em cada causa
judicial, quais são as questões jurídicas (quaestiones iuris) e quais as questões de fato
(quaestiones facti) nela presentes, quais os princípios que a regem, quais os conceitos
jurídicos que se aplicam. Notório é o seu auxílio na Teoria Geral do Direito e,
especialmente, no Direito Civil.
O século XXI redescobre também o Direito Público Romano e é convidado a
superar os embates históricos entre o exitoso sistema de direito privado romano com o
em grande parte esquecido sistema de direito público romano, que se hibridou com os
modelos anglo-saxônicos e socialistas.
A redescoberta da lição de Ulpiano, para quem as noções de direito público e
de direito privado são apenas “posições de estudo” de um mesmo e único direito,
oferece uma frutuosa colaboração para a superação do conflito entre o público e o
privado, ou da crise do Estado moderno, da crise da representação, da crise das pessoas
jurídicas, da sobrevalorização dos julgados das altas cortes, do ativismo judicial.
Oferece uma renovação da ciência jurídica para a luta contra a usurocracia, para a
proteção dos mais débeis, dos trabalhadores, dos imigrantes.
O constitucionalismo latino, que subjazia na tradição ibero-latino-americana,
foi finalmente intuído e começa a ser sistematizado, permitindo que grandes elos
conceituais, como os aprofundados pelos grandes romanistas Maquiavel e Rousseau,
desprestigiados pelas revoluções liberais, convidassem os contemporâneos a revisitar o
federalismo do modelo romano, o comissariado, a ditadura, a censura, o tribunato, o
costume contra legem, o direito de secessão, o ius revolutionis, retirando os vernizes
depreciativos e os abusos conceituais que o século XX agregara a cada um deles e
permitindo uma análise mais detida no romanismo bolivariano ou do paraguaio Gaspar
Rodrigues Francia.
O estudo do direito romano, embora não seja motivado pela aplicação
imediata de seus resultados, permitiu a fixação de conteúdos didáticos de grande
aplicabilidade prática aos estudantes, preparando-os com uma visão integrada
científico-profissional, graças ao elevado grau de generalização científica obtida nas
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diversas experiências nacionais e na revisão permanente dos manuais acadêmicos e das


fontes latinas traduzidas.
A dificuldade de preparar docentes de direito romano, além disso,
recentemente, vem sendo superada. O processo de internacionalização das
universidades tem permitido a formação de dezenas de estudiosos em centros de
excelência de Direito Romano na Espanha, Itália, Alemanha e França. E, no Brasil, já
despontaram centros de estudos romanísticos no Sul, Sudeste, Centro-Oeste e
Nordeste, bem como já foram oferecidos diversos cursos de especialização em direito
romano desde os anos 90, culminando com a recente implantação do Programa de
Mestrado em Direito Romano e Sistemas Jurídicos Romanísticos na Universidade de
São Paulo, iniciado em 2012, com os esforços dos juristas do direito internacional que
cada vez mais aderem à atualização e à vocação universal do sistema jurídico
romanista. Curiosamente, no Brasil, as últimas grandes iniciativas institucionais em
prol do direito romano contaram com o apoio dos comparatistas e internacionalistas,
seja no Rio de Janeiro, em Brasília, com a criação do Centro de Estudos de Direito
Romano e Sistemas Jurídicos da UnB, ou em São Paulo, com a inauguração do aludido
Programa de Mestrado.
Pari passu, o mercado editorial nacional, na última década, acompanha o
interesse crescente pelo direito romano, com a publicação recorde de obras de
romanistas nacionais e de traduções de trabalhos estrangeiros.
O direito romano, ademais, é elemento fundamental para integração da
América Latina e para a formação da “comunidade latino-americana de nações”
preconizada no parágrafo único do art. 4º, do Título I da Constituição do Brasil como
“Princípio Fundamental”, anterior mesmo aos Direitos e Garantias Fundamentais do
Título II.
De fato, resolutos em suas manifestações, diversos órgãos nacionais e
internacionais na atualidade têm apontado para a necessidade do ensino do Direito
Romano (a última foi a declaração da União Latina, com sede em Paris), cujos objeto,
metodologia e finalidade adquiriram ainda maior relevância em tempos modernos,
uma vez que se aplicam à interpretação e solução de questões relativas à formação e
integração jurídica de blocos culturais e econômicos, à globalização, às dívidas entre
países, aos direitos dos indígenas, temáticas todas especialmente caras à integração da
América Latina.
É este o momento propício, no meio universitário e jurídico nacional, para se
assentarem as bases da integração de povos cuja identidade jurídica se apresenta
uniforme, sendo todos tributários do mesmo sistema jurídico romano.
Em suma, ao Direito Romano, como disciplina, cumpre o papel de ser um
meio didático de introdução ao direito; um exercício seguro para iniciar-se no
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raciocínio jurídico; um meio de aproximação dos princípios e da terminologia


civilística; um despertar para o sentimento de pertença, com a consequente
responsabilidade histórica, a um sistema jurídico maior, não propriamente “estatal” ou
“pluriestatal”, mas “supra-estatal”, de longa duração, gerido no seio de povos com
religiões e culturas diversas, que os recepcionaram pela sua elevada cientificidade; um
meio de compreensão e superação dos conflitos entre sistemas jurídicos; um meio de
acesso à cultura jurídica latino-ibero-americana; um meio de diálogo com vistas à
integração jurídica latino-americana e global.

* * *

Finalmente, qualquer que tenha sido o uso do “direito romano” ao longo da


história do direito, mesmo na atualidade, apresenta-se ele, seja como disciplina
jurídica introdutória, seja como disciplina jurídica de aplicação prática no
encalço de um direito comum ou universal para o século XXI, seja como sistema
dogmático civilístico, seja como objeto da História, especialmente como uma parte
essencial da História dos Direitos Antigos. São as suas quatro faces autônomas que
reclamam a sua inserção nos currículos universitários. As três primeiras faces, com
caráter utilitário, respectivamente, didático-pedagógico, político- educacional e
doutrinário. A quarta face, pela profundamente humana “ars gratia artis”.

2. A “História do Direito”: uma das mais antigas disciplinas do Direito e


uma dais mais novas disciplinas da História.

Só depois de criada e amadurecida a ciência do direito nos livros dos


iurisprudentes republicanos e imperiais, só depois de se acumularem centenas de
obras, de centenas de juristas, é que os romanos se deram conta de que era preciso
apresentar, aos iniciantes na arte jurídica, uma espécie de índice, uma espécie de
manual de referência cronológica e introdutória ao conhecimento do conteúdo
acumulado, dos inúmeros cargos jurisdicionais e de um sem número de autores e livros
de direito. Uma espécie de guia metodológico e de referência bibliográfica ao estudo
do direito. Tal foi a importância do liber singularis Enchiridii, ou simplesmente
Enchiridium, escrito pelo jurista Pompônio no II século, garantiu lugar de relevo no
Digesto de Justiniano: além de ser o maior fragmento selecionado pelos compiladores,
abriu o grande livro, sob a rubrica “Da origem do direito e de todos os magistrados e
da sucessão dos juristas” logo após o curto primeiro título “Da Justiça e do Direito”.
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Como critério de exposição histórica do direito, o liber singularis Enchiridii do


jurista Pompônio representou uma grande novidade, quando comparado aos inúmeros
livros de história conhecidos em seu tempo (Pompônio vive no séc. II e não demonstra
qualquer preocupação de “historiador”, não procura identificar “um direito em meio à
história, na história”, mas ele elabora uma “história no direito, dentro do direito”, com
uma posição metodológica clara, de jurista, que conta os acontecimentos históricos
segundo a origem e o desenvolvimento do próprio direito (“origo atque processum
ipsius iuris”) (D.1.2.2 pr.), ou seja, segundo as fontes do direito que vão surgindo,
segundo os magistrados que vão surgindo (“origo et nomina magistratuum”)
(D.1.2.2.13), e, finalmente, segundo as obras e a presença dos “juristas que
dignificaram o povo, por meio do qual os direitos nasceram e foram transmitidos”
(“qui maximae dignationis apud populum Romanum fuerunt”, “a quibus et qualibus
iura orta et traditae sunt”) (D.1.2.2.35).
Excepcional foi o papel e a importância pessoal dada por Pompônio aos
juristas, aqueles que, segundo ele, professam a scientia iuris civilis. Estava já
assentada a característica marcante do sistema jurídico romanista (exatamente o oposto
do sistema de direito inglês, quase anonimamente construído nas decisões dos
tribunais). Compete ao jurista, segundo Pompônio, a prodigiosa capacidade de
renovação e de atualização do direito a cada tempo.
Pompônio recolhe o tempo e o espaço dentro de seu sistema jurídico, formado
pelas três categorias que elegeu para explicar o direito: as fontes do direito, as funções
públicas que rendem o direito; as pessoas que professam direito. O direito não é fruto
da história, em sua história do direito. Mas o direito formou a sua própria história,
segundo Pompônio. É uma visão do jurista que pretende introduzir o direito com uma
notícia histórica do próprio direito, com as categorias mais relevantes do próprio
direito (fontes de expressão, fontes de aplicação e fontes de interpretação e renovação
do direito), e não a visão de um filósofo ou historiador que pretende explicar o
fenômeno do direito a partir dos fenômenos do universo ou da história.
Este primeiro livro de “História do Direito” conhecido foi o grande e
praticamente único modelo de que se serviu o Direito até o surgimento da disciplina de
História do Direito, no fenômeno que descreveremos mais adiante, após a introdução
do jusnaturalismo nas universidades europeias do século XVIII.
A busca de um direito segundo a razão natural e o uso indireto do direito
romano, não mais como direito vigente, mas apenas enquanto aceito nos seus
princípios racionais, levou os currículos universitários a atualizarem Pompônio,
continuando-o com diversas “Historiae Iuris” nacionais, como foi o caso, em Portugal,
do notabilíssimo Liber singularis Historiae Iuris Civilis Lusitani de Pascoal José de
Mello Freire, o conhecido “Papiniano” português, composto em 1777. Enquanto o
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direito civil, criminal, processual e das gentes passaram a se transmitir por meio de
compêndios de exposição lógico-racional e anti-histórica, inspirados no modelo de
Heineccius, restava a cada país, a cada universidade, uma vez que agora as fontes
nacionais e os juristas dos direitos pátrios passavam a gozar de interesse científico,
escrever a sua própria história do direito. Assim compôs Mello Freire o primeiro livro
de História do Direito Lusitano, para introduzir o aluno não mais no direito universal
romano, mas no valorizado e racional direito lusitano “moderno”. A “nova” História
do Direito servir-se-á do mesmo método de Pompônio: uma análise das fontes
conforme cronologicamente foram surgindo (agora do direito português),
contextualizadas reinado por reinado, terminada por uma cronologia dos juristas
portugueses desde as origens até o seu tempo (De Jureconsultis Lusitanis).
Mello Freire seguia o exemplo, conforme esclarece em sua primeira nota, de
outros grandes autores europeus que, segundo os cânones do jusnaturalismo filosófico,
elaboraram uma introdução aos seus direitos pátrios, contendo a História, as Origens,
as Antiguidades, os Princípios e as Fontes de cada direito pátrio. (“Ut solum de Jure
Patrio loquar, quis dubitat, quod Gallorum, Germanorum, et aliarum gentium Juris
peritissimi homines, Argou, Conring Heinecc., Franck, Cramer, Hofmann, illius
tractationi praemiserint, vel adjunxerint ejusdem juris Historiam, Origines,
Antiquitates, Principia, Fontes”, Hist. Civ. Lus. § I. Quid Historia Juris Civilis
Lusitani”).
A nova “História do Direito”, nascida sob a égide do Direito Natural, tornou-
se, com o abandono dessa expressão no século XIX, parte integrante da “Filosofia do
Direito”, mais tarde transformada em “Enciclopédia Jurídica” e, novamente em
“Filosofia do Direito” (CUNHA LOBO, L.1.t.1.). Também foi incluída, a partir de
SUMMER MAINE na Comparative Jurisprudence, expressão que no continente
europeu foi substituída pela ciência da Legislação Comparada, aquela que seria vista,
ainda com CUNHA LOBO, “como a boca que clama pela universalização do Direito e
o braço que maiores e mais enérgicos esforços tem empregado para torná-lo o único
soberano do mundo, no dizer de CARRARA.”
No Brasil o processo de recepção da História do Direito não foi diferente. O
Direito Romano foi excluído, apesar de inicialmente projetado, de nossa primeira
grade curricular (conforme a Lei de criação dos cursos jurídicos de 11/8/1827,
confirmada pelo Regulamento dos Cursos Jurídicos de 7/11/1831). Tanto este quanto a
“História do Direito” subentendiam-se inclusos na cadeira de Direito Natural. Somente
em 1851 introduziu-se a cadeira autônoma de Direito Romano no primeiro e segundo
anos (Decreto nº608 de 16/8/1851) não sem resistência, como a de Bandeira de Melo,
que afirmava que os “princípios de razão universal que se acham no Direito Romano,
esses se ensinam no Direito Natural. Por outro lado, a considerar-se o Direito Romano
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como origem, entendo que os lentes que ensinam o nosso Direito positivo são
obrigados a recorrer a essas fontes, e apresentá-las aos seus estudantes; deve isto fazer
parte das suas preleções”.
A História do Direito, inexistente como cadeira, permanecia potencialmente na
disciplina de Direito Natural, até que o Projeto de Lei nº64, que teve Rui Barbosa por
relator, propunha como postulado a “reconstituição do caráter nacional” no currículo e,
como corolário, apresentava a disciplina de “História do Direito Nacional” no quarto
ano do curso jurídico, sem extinguir o “Direito Romano”, que foi sugerido para o 2º
ano. Rui Barbosa, além disso, não pretende que se continue a cadeira de Direito
Natural, que faz substituir pela de Sociologia, evocando as grades curriculares
europeias, que já havia abolido o Direito Natural e substituído por Filosofia do Direito
ou pela Enciclopédia Jurídica, expressões que Rui também rejeita, em abono de uma
cadeira intitulada “Sociologia”. Apesar de a reforma curricular ter sido publicada no
Decreto 9.360 de 17/1/1885, sua execução foi suspensa aos 22/11/1885 pelo Decreto
9.522, após representação da Congregação da Faculdade de Direito, que alegara
questões formais. E a reforma de 19/5/1879, mantendo o Direito Natural e o Direito
Romano, acabou por não inovar nessa temática.
Os ventos europeus sopraram mais uma vez, agora na primeira reforma
republicana, a Reforma Benjamin Constant (do Decreto 639 de 31/10/1891), que
transformou a Cadeira de Direito Natural em “Cadeira de Filosofia do Direito e
História do Direito” no primeiro ano, seguida do Direito Romano, no segundo ano, e
acrescida de uma cadeira autônoma, intitulada “História do Direito Nacional” no
quarto ano. Com a vigência interrompida, outra reforma curricular a substituiu, antes
que a grade estivesse completamente implantada.
O próprio professor Pedro Lessa, o primeiro a lecionar “Filosofia do Direito e
História do Direito” protestou pela impossibilidade de unidade entre as duas
disciplinas no primeiro ano, conclamando uma separação de ambas. E venceu.
A reforma de 1895 manteve apenas a Filosofia do Direito como disciplina
introdutória do curso jurídico e criou, para o 5º ano, a denominada “História do Direito
especialmente do Direito Nacional e Legislação comparada sobre Direito Privado”,
que teve por primeiro catedrático Aureliano Coutinho, em 1896, em São Paulo. “A
Filosofia do direito expõe o que ele deve ser, a dogmática o que ele é, e a história o
que ele tem sido”, foram as suas palavras no discurso inaugural da Cátedra. Martins
Júnior, no Recife, traçará simultaneamente os rumos didáticos da cadeira, redigindo os
dois inovadores livros “História do Direito Nacional” (1895) e “Compêndio de
História Geral do Direito” (1898), que seguiram um método também inédito: o da
apresentação do direito como fruto do ambiente físico, dos fatores étnicos e do meio
social em que as instituições nascem e desenvolvem, “relacionando as origens dos
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institutos com o condicionalismo social e natural de que são produto” no dizer de


Marnoco e Souza, o lente coevo da Universidade de Coimbra, que adotava, como no
Brasil, o evolucionismo jurídico. Uma primeira aproximação, ainda tênue, da História
do Direito como um “Direito na História” ou, mais propriamente, um direito explicado
na história da evolução humana, das raças e segundo os meios naturais. O programa
oficial, que inspiraram seus dois livros, ainda que influenciados pela evolucionismo
jurídico, previram como conteúdo uma história cronológica das fontes do direito e um
capítulo final com a marcha da ciência do direito, de suas idéias, escolas, doutrinas e
de seus jurisconsultos e professores. O método de Pompônio ainda ecoava, mesmo
entre os evolucionistas do final do século XIX. Como esclareceu no prefácio à História
do Direito Nacional, Martins Junior tratou, de uma parte, do direito “como legislação,
em seu desdobramento objetivo”; e de outra, “como ciência, como doutrina, a evoluir e
influir em nossas leis positivas”.
Mas a cadeira autônoma de História do Direito cedo se extinguiu. A reforma de
Epitácio Pessoa, afirmada no Decreto 3.903 de 12/1/1901 eliminou a única disciplina
criada pela República. Doravante, nas próximas décadas, a História do Direito voltará
a depender da benevolência dos Catedráticos da “Enciclopédia Jurídica” ou
“Introdução ao Estudo do Direito”, que poderão inserir parte de seu conteúdo nos
programas dessas recém-criadas disciplinas introdutórias, substitutivas da “Filosofia
do Direito”.
Assim permanecerão as disciplinas Direito Romano e História do Direito, a
primeira viva, a segunda eliminada, até a publicação do primeiro “Currículo Mínimo
Federal”, (Resolução CFE nº3, de 25/2/1972), que dispôs sobre a transformação do
Direito Romano como disciplina optativa, entre outras sete disciplinas, obrigando a
cada Faculdade de Direito eleger duas, entre as oito. Nos anos noventa, sob a nova
Constituição de 1988 e sob os ideais pedagógicos da “flexibilização curricular”, a
Portaria 1886/94 não mais faz referência ao Direito Romano, tampouco à História do
Direito. Mas recomenda que as instituições, na organização curricular, definam três
“Eixos de Formação”. No Eixo de Formação Fundamental as disciplinas, conteúdos ou
atividades deverão proporcionar relações do Direito com outros campos do saber,
dentre outros, estudos que envolvam Antropologia, Ciência Política, Economia, Ética,
Filosofia, História, Psicologia, Sociologia etc. A recomendação surtiu imediato efeito
nas faculdades privadas. Temerosas de que seus cursos não fossem aprovados,
interpretaram a genérica recomendação de conteúdos como disciplinas obrigatórias.
Surgiram assim, da noite para o dia, inúmeras reformas de currículo pleno, com as
respectivas publicações de inúmeros manuais no mundo editorial, das disciplinas
“Antropologia Jurídica, Ética, História do Direito, Psicologia Jurídica, Sociologia
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Jurídica”. Um “boom” disciplinar e editorial motivado mais pelos fatores burocráticos


do que pelos ideais acadêmicos que nortearam a recomendação curricular.
A “história da História do Direito”, como disciplina, então, pode resumir-se
assim: a) foi parte harmoniosamente integrante do Direito Romano, enquanto história
das fontes e dos juristas, desde o século II até o século XVIII; b) tornou-se autônoma
para, com a mesma metodologia, servir de introdução aos direitos nacionais-estatais, e
para apresentar o desenvolvimento histórico das fontes do direito e dos juristas que as
interpretavam ao longo dos tempos. Assim foi em Portugal, com Pascoal José de Mello
Freire, no século XVIII; c) Com a criação da Cadeira de Direito Natural, depois
Filosofia do Direito e, por vezes, sob o nome de Enciclopédia Jurídica, a história do
direito nacional e da legislação comparada pôde ser vista como parte integrante do
programa destas. Mas os programas de ensino destas disciplinas, ao menos no Brasil
imperial e da primeira república, não pareceram incorporá-la. d) com o surgimento do
evolucionismo jurídico no seio da Filosofia do Direito, tornou-se a História do Direito
uma disciplina vocacionada para a explicação sociológica, genética e naturalística do
surgimento e das transformações do direito. Foi essa a única experiência da história do
direito como disciplina obrigatória, no Brasil, no efêmero período de 1895-1901; e)
extinta do currículo oficial em 1901, dependeu, até 1962, da inserção voluntária de seu
conteúdo na disciplina de “Introdução ao Estudo do Direito”, que todavia tornou-se
cada vez mais disciplina de caráter filosófico-jurídico, como demonstram os manuais
mais editados no período. f) Depois do surgimento do chamado “currículo federal
mínimo”, a disciplina pôde existir autonomamente, segundo os currículos plenos
criados espontaneamente pelas próprias faculdades de direito públicas ou privadas.
No gozo dessa liberdade é que foi lecionada a História do Direito, por exemplo
no Rio de Janeiro, na Pontifícia Universidade Católica e na Universidade Federal entre
1962 e 1972. Na Faculdade de Direito da USP, a disciplina “História do Direito e do
Pensamento Jurídico” foi criada em 1989, tendo sido iniciada no ano de 1990, sob a
regência dos professores Antônio Junqueira de Azevedo e Cláudio de Cicco. Fomos,
Eliane Maria Agati e Hélcio Maciel França Madeira, os primeiros “Monitores”, em
cargo à época incorporado à carreira docente, nomeados por Portaria do Diretor
Antônio Junqueira de Azevedo, para os anos acadêmicos de 1992 e 1993; foram as
primeiras atribuições oficiais, como docentes exclusivos da disciplina, em regime de
trabalho de turno completo, desde o período de Aureliano Leite e Isidoro Martins
Junior. Igualmente, tive a honra de ser o primeiro docente concursado oficial e
exclusivamente para a Área de “História do Direito e Direito Romano” (em 2002 e
2007), quando a disciplina já se tornara definitivamente vinculada ao Departamento de
Direito Civil, e sob o nome de História do Direito I e II, sem menção ao Pensamento
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Jurídico e segundo o perfil filo-romanista. Até então, a docência era feita por docentes
de Direito Civil, Filosofia do Direito, Processo Civil e Direito Romano. O primeiro
concurso específico para professor titular de História do Direito ocorreu em 1998,
sendo o seu primeiro professor titular o Prof. Luiz Carlos de Azevedo, e o segundo, em
2006, com o ingresso do Prof. Tit. Ignacio Maria Poveda Velasco, oriundo igualmente
da área de Direito Romano, do Departamento de Direito Civil. Embora o programa
oficial da disciplina não mais inclua a História do Pensamento Jurídico, contempla
ainda hoje um conteúdo metodologicamente híbrido, selecionando temas diversos da
filosofia (justiça no pensamento clássico greco-romano), da história do processo civil
(grego e romano), apresentando períodos históricos ora com o foco nas fontes do
direito, ora com o foco nas instituições de direito público e privado. Ora evidenciando
um sistema jurídico (e.g. germânicos e de common law), ora um segmento (e.g. direito
canônico). Ora evidenciando a história de juristas (glosadores, comentadores,
humanistas), ora a de fontes (as grandes codificações). Aderiu, embora oficialmente
seja uma disciplina, ao menos formalmente, à interdisciplinaridade e à seletividade
pedagógica de conteúdo. Mas manteve o predomínio da história das fontes, servindo
de sequência cronológica ao Direito Romano histórico, lecionado na série anterior,
especialmente desdobrado na longa duração do Direito Romano como “sistema
jurídico romanista” ou “romano-germânico”. Transige, assim, ainda que
tangencialmente, com o “Direito na História”.
Em outro nosso artigo (À História do Direito, publicado na Revista da
Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo), já estudamos o conceito de
“História do Direito” e a sua dependência dos múltiplos conceitos externos a ela: os
conceitos de “História” e os conceitos de “Direito”. E filiamo-la, enquanto ciência, a
um ramo da História, e não a ramo do Direito.
Abrem-se, portanto, perspectivas infindáveis de pesquisa na História do Direito,
da micro-história à história do quotidiano, da história dos valores jurídicos à história
econômico-social do direito, da história dos órgãos judicantes à análise histórico-fática
de um determinado processo judicial em um determinado passado.
Mas a moderna ciência da “História do Direito” não se confunde absolutamente
com a disciplina que, desde o iluminismo jusnaturalista, tomou lugar nos currículos
jurídicos como o nome de “Historia Juris”, como que em continuação do Enchiridium
de Pompônio, atualizado em cada um dos direitos pátrios.
Foi nessa primeira História do Direito que o Direito Romano foi descobrindo-se
lentamente como um Sistema Jurídico, desdobrado no suceder histórico de suas fontes
e de sua ciência do direito. Tornou-se, nos currículos das faculdade de direito, um
capítulo essencial do direito dos povos, seja pela contínua recepção do Direito Romano
no passar dos séculos, seja pela sua “influência universal”, certamente em medidas
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muito diversas de um lugar para outro, em quase todos os países modernos. Tornou-se
a principal referência científica com base na qual os demais sistemas jurídicos são
apresentados, com seus predominantes traços de tradicionalismo, religiosidade, ou
pragmatismo jurisprudencial.
Foi o talvez nosso maior Historiador do Direito, Alberto Saraiva da Cunha
Lobo, que alcunhou visionariamente a mudança do nome da disciplina História do
Direito, chamando-a simplesmente por “Direito Romano”, nos seus três volumes em
que expõe o direito de quase todos os povos do orbe, que receberam, em diversas
medidas diferentes, a influência universal do direito romano, do direito japonês ao
direito inglês, do direito ibérico ao direito latino-americano. Savigny, Glasson ou
Summer Maine já haviam apresentado com profundidade muitas dessas influências,
mas a consolidação delas sob o nome de “Direito Romano” foi reservado ao ilustre
romanista da Escola do Recife.
Assim harmonizamos os conceitos. Compreendam os Historiadores a força
histórica de uma tradição bimilenar, reservando o conteúdo da disciplina introdutória
de “História do Direito”, nos cursos jurídicos, aos juristas, a fim de que se possa
continuar construindo e atualizando a história das fontes, a história dos juristas, a
história dos princípios jurídicos, a história da terminologia jurídica e a história dos
institutos ou instituições.
E ao mesmo tempo que se promova, o quanto antes, a nova História do Direito,
iniciada timidamente pela Escola do Recife entre nós, e cultivada por filósofos do
direito, por sociólogos, por historiadores não-juristas, por romanistas, por helenistas,
por germanistas etc. Suas possibilidades são inesgotáveis e comporão um precioso
acervo ainda por se fazer em todo o mundo. São exemplos frutuosos os últimos livros
de Eva Cantarella, na Itália, como seu L´ambiguo malanno – La donna nell´antichità
greca e roman ou de Marie Theres Fögen, na Alemanha, com seu recente Römische
Rechtsgeschichten – Über Ursprung und Evolution eines sozialen System, ou o já
clássico Vocabulaire des Institutions Indo-européennes de Émile Benveniste. No
Brasil, é exemplo recente de grande contribuição à História do Direito do Brasil,
Manuela Carneiro da Cunha, com suas obras sobre o direito indigenista, com relevante
seleção de fontes, como na Legislação Indigenista do Século XIX por ela organizado.
Esta renovada ciência da História do Direito, de um “Direito na História”
(denominemo-la “segunda História do Direito”), compatível com a multiplicidade
metodológica da historiografia moderna, deverá conformar-se todavia a disciplinas
específicas, nominadas segundo os recortes e os métodos científicos aplicados por seus
autores e professores, constituindo-se como disciplinas eventuais e optativas, no
exercício da flexibilidade curricular dos diversos cursos humanísticos, e segundo a
essencial autonomia universitária.
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E, na primeira “História do Direito”, preserva-se o longo futuro do Direito


Romano, sem concorrência curricular e sem prejuízo à alta especialidade,
interdisciplinaridade e diversidade da segunda e instigante nova “História do Direito”.

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