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Lei da Boa Razão

Livro – Mário de Júlio Almeida Costa – Págs. 389 – 410


Antes de mais, é necessário averiguar algumas correntes do pensamento jurídico que
marcaram os horizontes europeus, para justificar a evolução do direito português com o
ciclo pombalino e as reformas que se sucederam nessa mesma época.
Durante os Sécs. XVI e XVII, a Europa conheceu duas linhas de pensamento que se
afirmaram nas áreas da filosofia jurídica e política e também no Direito Internacional
Público – a Escola Espanhola do Direito Natural, que se desenvolveu através da
Segunda Escolástica e a Escola Racionalista do Direito Natural (escola filosófica e de
jurisprudência teorética), que teve o seu assento privilegiado na Holanda, Inglaterra e
Alemanha. Grócio, fundador do jusnaturalismo moderno, influenciado pela Segunda
Escolástica, representou uma transição de conceções teleológicas e filosóficas para o
subsequente jusnaturalismo racionalista – a compreensão do direito natural desvincula-
se de pressupostos metafísico-religiosos e, neste seguimento, surge o direito natural
racionalista, produto da razão humana; Este último teve uma ampla influência direta
sobre a ciência jurídica positiva e, mediante um processo de dedução exaustiva de
axiomas básicos, foi possível a organização de minuciosas exposições sistemáticas deste
direito natural. Relacionado com o jusracionalismo, surgiu uma nova metodologia
(Alemanha) de estudo e aplicação do Direito Romano – usus modernus pandectarum
(que reflete um ciclo de passagem da Escola dos Comentadores para a Escola
Histórica). Esta metodologia caracteriza-se pela confluência de vetores práticos
racionalistas e de nacionalismo jurídico e traduz o reflexo da penetração de ideologias
jusracionalistas no âmbito do direito – numa primeira fase, essas ideologias apenas se
repercutiam na vida jurídica de forma indireta e só nos finais do Séc. XVII é que há
influência do jusracionalismo ao nível da doutrina e da prática do direito. (o pensador
que mais contribui para esta transição foi Pufendorf).
Ambas as fases encaravam o Direito Romano com “os olhos postos na realidade” – os
juristas procuravam distinguir, na organização do Corpus Iuris Civilis, aquelas que eram
as normas suscetíveis de “uso moderno”, isto é, adaptadas às exigências do tempo e
somente essas deveriam ser aplicadas, daquelas que estavam ligadas a circunstâncias
romanas peculiares. Ao lado da normas suscetíveis de prática atualizada, tinha-se de ter
em conta também o direito pátrio.
Nesta segunda fase, o reconhecimento da atualização dos preceitos romanísticos
beneficiou o afloramento teórico da referência ao direito natural racionalista – uma das
principais consequências desta metodologia nova foi o foco dado ao direito nacional e à
respetiva história, incluindo o seu ensino universitário, havendo por isso uma direta
associação entre o “usus modernus” (orientação teórico-prática, que se traduz na
utilização atual à época e que vem afirmar que o Direito Romano só deve ser aplicado
apenas naquilo que é intemporal, por contraposição ao Direito Romano caduco que é
aquele que apenas faz sentido aplicar na época em que foi feito e nesse caso temos
Direito Romano datado, estes uso moderno refere-se ao Direito Romano intemporal,
que pode ser por isso aplicado em qualquer momento e lugar) e a Escola Racionalista do
Direito Natural, que disciplinavam a vida concreta. É importante neste contexto afirmar
que em Portugal, estas duas fases assinaladas ao “usus modernus” não parece razoável,
na medida em que esta metodologia é eminentemente identificada juntamente com a
penetração do jusracionalismo no universo jurídico português (pelo que aparentemente
Portugal apenas sentiu esta mudança naquela que seria a 2ª fase).
Outra linha de pensamento que influenciou significativamente as reformas que se
sucederam no ciclo pombalino foi o Iluminismo (Séc. XVIII). Do ponto de vista
político, o Iluminismo desenvolveu-se sob o domínio das monarquias absolutas que
configuraram o “Despotismo Ilustrado”. Assiste-se a uma hipertrofia da razão e do
racionalismo nas áreas científico-naturais e nos domínios ético, social, económico,
político e jurídico e a um desenvolvimento de um sistema naturalístico das ciências do
espírito em que a base é a natureza que é aferida pela razão subjetiva e crítica do
Homem.
A respeito do âmbito específico do direito penal e do tratamento penitenciário, é
importante mencionar correntes humanitaristas que derivaram do Iluminismo e que
tiveram em Montesquieu, Voltaire, Beccaria e Filangieri os seus expoentes mais
evidentes. Em primeiro lugar considerava-se que o direito penal se deviria desvincular
de todos os pressupostos religiosos; este apenas deveria tutelar os valores e interesses
gerais necessários à vida coletiva. E depois, reconhecia-se como critério delimitador do
direito penal a ideia de utilidade comum, por oposição a uma axiologia ética e religiosa.
(Beccaria vem introduzir a ideia de lei moral como marco e limite de qualquer
incriminação) As sanções criminais passam a ter o único objetivo, dentro dos limites da
justiça e conforme ao princípio da dignidade da pessoa humana, de prevenção e defesa
da sociedade e era justificada não pelo facto passado, mas como meio de evitar futuras
violações da lei criminal, quer agindo sobre o próprio delinquente (prevenção especial),
quer intimidando as pessoas em geral (prevenção geral). Havia por um lado uma
proporcionalidade entre as penas aplicadas e a gravidade dos delitos e por outro o
afastamento de antigas penas corporais ou humilhantes a serem substituídas pela pena
de prisão (decorrente do liberalismo). Do Séc. XIII ao XVIII, ocorre uma prevalência do
processo oficioso em confronto com o processo baseado na iniciativa das partes; desde
as alterações decorrentes da análise iluminista dos problemas da justiça criminal,
começam a surgir várias mudanças no âmbito de processos penais, a nível do
pensamento jurídico-filosófico e político e ao nível da formação dos sistemas
legislativos.
Todas estas correntes de pensamento formaram a base das reformas pombalinas.
Operam-se por vias legislativa inúmeras alterações de múltiplos institutos e foram feitas
diversas providências, tanto ao nível da ciência do direito, a partir da interpretação,
integração e aplicação das normas jurídicas e ao nível da formação dos juristas. Estas
providencias foram atendidas, pela Lei da Boa Razão de 1769 e pela Reforma da
Universidade em 1772 com os Estatutos Novos, respetivamente.
A Lei de 18 de Agosto de 1769 (no Séc. XIX foi nomeada de Lei da Boa Razão, por
José Homem Correia Telles) apelava, sistematicamente, para a necessidade dos seus
preceitos estarem conformes “à boa razão” ou “recta ratio jusnaturalista”, que decorre
do pensamento racionalista. Foi a primeira manifestação legislativa das ideias
jusracionalistas do Iluminismo, conhecidas em Portugal através de Luís António Verney.
Esta Lei visava impedir irregularidades em matérias de assentos e quanto à utilização
do direito subsidiário, fixar normas precisas sobre a validade do costumes e indicar a
que elementos o intérprete poderia recorrer para o preenchimento das lacunas.
Primeiramente há duas causas relevantes para o surgimento desta lei – necessidade de o
monarca controlar o que se aplicava como lei no Reino e a pluralidade de opiniões (esta
Lei vem penalizar a interpretação da lei).
Vem trazer diversas alterações, principalmente ao nível das Fontes de Direito:
Fontes de Direito Principais
1. Lei Pátria (Lei do Reino) – surge como principal fonte de direito e vai surgir
com uma regra de interpretação: a lei é interpretada apenas pelo seu legislador,
não havendo outro tipo de interpretações.
2. Estilos da Corte – apenas se fossem confirmados pelos Assentos da Casa da
Suplicação – centralização política na aplicação do Direito. O que significa que
estes Estilos perderam a sua eficácia autónoma que antes lhe era reconhecida.
(confirmados pelos juízos da CS)

Os diferendos submetidos a apreciação dos tribunais deviam ser julgados em primeiro


lugar pelas Leis Pátrias e pelos Estilos da Corte. Os Estilos estão sempre presentes nas
Ordenações e vai ter continuação como Fonte de Direito e traduz-se na construção do
processo em tribunal.
3. Assentos da Casa da Suplicação (Tribunal Supremo do Reino) – confere-se a sua
exclusiva autoridade; os assentos das Relações só tinham valor normativo se
fossem confirmados por este Tribunal. Passam a ter uma importância enorme
pois confirmam os Estilos da Corte e interpretam leis.
4. Costume – com uma restrição muito mais exigente; para que o costume valesse
como Fonte teria de preencher os seguintes requisitos cumulativos, que caso não
fossem cumpridos então o costume seria considerado uma “corruptella ou
abuso” e a sua aplicação e observação em juízo era proibida:

 Ser conforme à boa razão


 Não contrariar a lei
 Ter mais de 100 anos de existência
Quando houvesse casos omissos, ou seja, que não fossem regulados pelas Fontes de
Direito principais, então caberia recurso ao direito subsidiário. Se a lacuna dissesse
respeito a matérias políticas, económicas, mercantis ou marítimas, determinava-se o
recurso direto às Leis das nações cristãs iluminadas e polidas, deixando de parte do
Direito Romano, pois, pela sua antiguidade, entendia-se que era inadequado para
disciplinar essas áreas que estava em constantes progressos.
Fontes de Direito Subsidiárias
Nas Ordenações Afonsinas temos como Fontes: o Direito Romano, o Direito Canónico,
a Glosa de Acúrcio e a Opinião de Bártolo.
Lei da Boa Razão
 Direito Romano – só é fonte subsidiária se for aplicado à luz do usus modernus
pandectarum
 Direito Canónico – deixa de ser fonte subsidiária de direito e passa a ser enviado
para os tribunais eclesiásticos, deixando de ser aplicado nos tribunais civis. A
sua aplicação é feita em função das pessoas e em função da matéria, na medida
em que existem matérias que são estritamente do campo do Direito Canónico
 Glosa de Acúrcio e Opinião – a sua aplicação é proibida porque não são
racionais e também não são conformes à Lei da Boa Razão.
 Surgem uma nova fonte, uma vez que esta Lei é produto do Iluminismo – a Lei
da Boa Razão abre caminho para o direito comparado – surge a Lei das nações
cristãs polidas e iluminadas (países que comungam como Portugal os princípios
conformes à Lei da Boa Razão – Espanha, França, Áustria, Prússia, Rússia e
Inglaterra e portanto pode haver soluções que advém de outros ordenamentos
jurídicos).
Vai fazer eco de novas correntes de pensamento que surgem a partir da 2ª metade do
Séc. XVII – direito das gentes (direito aplicável às relações entre os Estados) – uma
lei que leve à guerra não prossegue a lei da boa razão, tem de haver um equilíbrio
entre os Estados, uma realidade harmoniosa e sem guerra entre estes. Tem de estar
conforme ao Direito dos outros Estados, para manter o equilíbrio. Uma lei nacional
que poe em causa esse equilíbrio, vai contra a lei da boa razão . Por Boa Razão,
entende o próprio legislador, que se refere quatro ideias:
1. Ética dos Romanos
2. Moral e Ética do Direito Divino e do Direito Natural e da Ética Cristã
3. Direito das gentes
4. Direito das nações cristãs iluminadas

Assim, para que um lei estivesse conforme à Lei da Boa Razão teria de ser conforme
a estas ideias.

 Tem grande importância nos Sécs. XVIII e XIX: Vai revogar um dos artigos das
Ordenações Filipinas – o título 64 do livro III – artigo das fontes de direito que
refere quais são as fontes principais e as subsidiárias – vai criar uma nova
disciplina de fontes de direito à luz do paradigma da época. A norma vai ter
como destinatário os juízes.

À parte, também ocorreu a Reforma Pombalina dos Estudos Universitários, que


reflete a influencia das correntes doutrinárias europeias dos Sécs. XVII e XVIII. Em
1770, é nomeada a Junta de Providência Literária para fazer o levantamento do
estudo do Ensino Superior. Esta apresentou, em 1771 uma crítica enorme sobre a
organização existente (Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra),
refletindo o intento restaurador de Verney. Esta Comissão elaborou os novos
Estatutos da Universidade aprovados por Carta de Lei de 28 de Agosto de 1772.

Deu-se uma feição moderna à Filosofia e instituiu-se a prática clínica na Medicina.


Passaram a ser 6 as faculdades:
 Matemática
 Medicina
 Teologia
 Cânones
 Leis
 Filosofia
Feitas as alterações, criou-se uma cadeira de Direito Natural, de Instituições do Direito
Pátrio e de História do Direito. Passa também a ser obrigatório o estudo da geometria
para os estudantes de direito – acreditava-se que a geometria organizava o pensamento,
esquematizando-o. Foi adotado o método de ensino sintético-demonstrativo-
compendiário: começava-se por uma visão geral de cada disciplina e seguia-se uma
linha de complexidade progressiva, em espiral. O método analítico substituiu, então, o
método bartolista-escolástico. O direito romano passou a ser ensinado segundo o usus
modernus pandectarum, abandonando-se o método bartolista.

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