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DOMÍNIOS DA CARNE

ensaios sobre a sexualidade com


Foucault
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PARECERISTAS E REVISÃO POR PARES DESTE E-BOOK


Flávia Marinho Lisbôa (Universidade Federa Rural da Amazônia)
Guilherme Figueira-Borges (Universidade Estadual de Goiás)
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Maria Regina Momesso (Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho”)
Mônica da Silva Cruz (Universidade Federal do Maranhão)
Renan Belmonte Mazzola (Universidade Federal de Minas Gerais)
Roselene de Fátima Coito (Universidade Estadual de Maringá)
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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

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1. Filosofia : Estudo e ensino 107

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129


Domínios da Carne
Ensaios sobre a sexualidade com Foucault

Nilton Milanez
Marisa Martins Gama-Khalil
Vilmar Prata
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Nilton Milanez Beatriz Souza Almeida
Marisa Martins Gama-Khalil
Vilmar Prata

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George Lima dos Santos Nilton Milanez

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Daniela Barreto Santana
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Ismarina Mendonça de Moura
Jamile da Silva Santos
Jussara Santana Pereira
Rebeca Barbosa Nascimento
Renailda Ferreira Cazumbá
Sandra Helena Borges
Suelane Gonçalves Santiago Lima
Tamize Mota
Vilmar Prata
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Editoração: Nilton Milanez
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2021
SUMÁRIO

NOTA DO EDITOR..................................................................................................................................8

PREFÁCIO: COMO OU POR QUE A CARNE SE


CONFESSA?............................................................................................................................................9
Marisa Martins Gama-Khalil

DIÁLOGOS ENTRE AS CONFISSÕES DA CARNE E O PEDAGOGO............................................................17


Jamille da Silva Santos
Helen Cristine Alves Rocha
Sandra Helena Borges

PEDAGOGIZAÇÃO DA CARNE: A RELAÇÃO MESTRE-DÍSCIPULO NO PENSAMENTO GRECO-


ROMANO.............................................................................................................................................40
Vilmar Prata

O CORPO ESTEJA CONVOSCO E ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS.................................................................57


Nilton Milanez
Ismarina Mendonça de Moura
Beatriz Souza Almeida

DESLOCAMENTOS PARA UMA CONDUTA DO CORPO: DA NATUREZA CRISTÃ À SUBJETIVAÇÃO


CRISTÃ.................................................................................................................................................90
Suelane Gonçalves Santiago Lima
Rebeca Barbosa Nascimento
Jussara Santana Pereira

OS DISPOSITIVOS DA VERIDICÇÃO E DA SUBJETIVAÇÃO INSCRITOS NA CARNE.................................118


Marisa Martins Gama-Khalil
George Lima dos Santos

FOUCAULT E OS TEMAS DA PROVA E DA PENITÊNCIA NO CRISTIANISMO: OUTRAS LEITURAS PARA


ALÉM DAS CONFISSÕES DA CARNE....................................................................................................141
Carla Luzia Carneiro Borges
Daniela Barreto Santana
Edna Ribeiro Marques Amorim

6
LER COM FOUCAULT AS PRÁTICAS PENITENTES E CONCUPISCENTES E AS FORMAS DE DIZER E SER
VERDADEIRO.....................................................................................................................................170
Renailda Ferreira Cazumbá
Tamize Mota
Carla Luzia Carneiro Borges

POSFÁCIO..........................................................................................................................................193
Vilmar Prata
Nilton Milanez

ÍNDICE REMISSIVO.............................................................................................................................197

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES...................................................................................................202

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

NOTA DO EDITOR

O LABEDISCO é o selo para publicações universitárias do Grupo de Pesquisa do Laboratório de


Estudos do Discurso e do Corpo, cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e certificado pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

O selo LABEDISCO traz a Série Corpo é Discurso, a fim de encorajar discussões teórico-analíticas
sobre o tema do corpo e suas extensões no discurso.

O selo LABEDISCO da Série Corpo é Discurso visa a edição e publicação, em formato digital, dos
resultados de produções científicas de Projetos de Pesquisa, Projetos de Extensão e Projetos de
Ensino vinculados aos estudos discursivos foucaultianos.

O Conselho Editorial do selo LABEDISCO, Série Corpo é Discurso, conta com professores de
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Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação e revisão por pares.

Os artigos deste livro podem ser acessados à escolha do leitor desde o Sumário e até mesmo durante
a leitura, podendo avançar artigos ou retornar, devido a nosso sistema de linkagem dos textos na
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A revisão de Língua Portuguesa e Normas da ABNT foi realizada pelos autores deste livro em sistema
de revezamento por pares diferentes da autoria de cada ensaio, objetivando um trabalho
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Este livro é de acesso livre, gratuito, e reafirma, seguindo preceitos do CNPq, a divulgação e
popularização da ciência para um público aberto e irrestrito, fazendo proliferar o conhecimento
científico entre comunidade acadêmica, em específico, e a sociedade, em geral.

Este livro foi financiado pelos integrantes do Laboratório de Estudos do Discurso, o LABEDISCO/CNPq,
com a colaboração dos membros dos Grupos de Pesquisa GPEA/CNPq, LINSP/CNPq e VIVA
VOX/CNPq.

Colabore com nossa discussão deixando suas impressões sobre o livro no Fórum do LABEDISCO em
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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

-PREFÁCIO-
COMO OU POR QUE O CORPO SE CONFESSA?

Escritos entre os anos 1970 e 1980, os volumes de História da Sexualidade delineiam


um projeto cuja conclusão se apresenta no quarto volume, em As Confissões da Carne. O
primeiro volume, intitulado A Vontade de Saber, foi publicado um ano depois de Vigiar e
Punir, trazendo para o público leitor a noção de dispositivo aplicada à noção de sexualidade.
Nesse volume, o realce recai sobre a investigação acerca de processos e estratégias de poder
que instigaram, na sociedade, a produção de saberes, veridicidades e discursos sobre o sexo
com o fito de sistematizá-lo. Poderes e saberes imprimem à sexualidade seu sistema, sua
vontade de verdade.

O segundo e o terceiro volumes foram publicados meses antes do falecimento de


Michel Foucault. Em O Uso dos Prazeres, o leitor encontra o estudo de como o pensamento
grego lidou com o comportamento sexual, bem como de que modo os saberes médicos e
filosóficos compreenderam o prazer sexual. Moral, ética e modos de sujeição são algumas
noções que articulam esse estudo, para mostrar como o corpo está sujeito a alguns sistemas
e práticas, como a dietética, a econômica e a erótica. O terceiro volume, O Cuidado de Si, é
dedicado à compreensão da relação do sujeito consigo. Seria possível sonhar com os próprios
prazeres? Como essa relação consigo reverbera nos corpos?

Como explica Frédéric Gros, no texto introdutório da edição portuguesa de História da


Sexualidade IV: As Confissões da Carne, o último volume desse grande projeto de Foucault
traz “a experiência da carne nos primeiros séculos do cristianismo, e o papel que aí
desempenham a hermenêutica e a decifração purificadora do desejo”. 1 Publicado na França
em 2018, trinta e quatro anos depois da morte de Foucault, o livro remonta às aulas de
Foucault ministradas no Collège de France em 1980, e algumas conferências proferidas por
ele nos Estados Unidos nesse mesmo ano. A organização dos escritos de Foucault sobre As

1
GROS, FRÉDÉRIC. Advertência. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne.
Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2019, p. 9.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Confissões da Carne e a concretização sob o formato de livro coube a Frédéric Gros. Esse
autor empreendeu um trabalho complexo, de grande responsabilidade, com ações que
procuraram conferir a um labirinto de escritos o espaço de uma “rede”, abrigando as linhas
retas, perpendiculares, paralelas, curvilíneas e sagitais: organizou o texto, remontou-o a
partir de notas de leitura de Foucault encontradas em caixas de arquivos, inseriu no texto
final as correções que Foucault havia apenas pontuado nos originais datilografados, optou
pela inserção de quatro anexos, os quais se originaram de escritos encontrados em pastas
separadas, mas que articulavam ideias que iluminavam as Confissões.

José Gil afirma que “aquele que detém a potência dos corpos, no campo social, detém
todo o poder”,2 porque o poder se faz vivo nos corpos e estes são responsáveis por toda e
qualquer engrenagem e sistema. Poderes e saberes definem relações do ser consigo e do ser
com os outros.

A História da Sexualidade foi escrita em duas décadas – 1970 e 1980 – definidoras de


transgressões no campo da sexualidade. Para entender seu tempo (e o nosso, por que a
História da sexualidade ainda faz um grande sentido em pleno século XXI), Foucault voltou a
épocas antigas, à Grécia, a Roma, às eras cristãs primitivas e conectou-as com práticas do
século XX que refletem o nosso pensar a sexualidade, o nosso sentir a carne.

E por que a carne? Por que a carne se confessa? O leigo pode perguntar: não é a alma
que se confessa? Não, é a carne, pois ela, por meio de todos os sentidos – tato, olfato,
paladar, audição, visão –, confessa-se e é ela que ‘sente’ e experimenta o contato com o
outro, o contato consigo e, obviamente, o contato com a confissão. A carne vive a experiência
do sujeito. Foucault explica que a “carne é um modo de subjetivação” e por isso “deve ser
compreendida como um modo de experiência, quer dizer, como um modo de conhecimento
e de transformação de si por si, em função de uma certa relação entre anulação do mal e
manifestação da verdade”.3

2
GIL, José. Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997, p. 79.
3
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água, 2019, p. 64.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O livro que apresento neste prefácio reúne um conjunto de resultados de reflexões
advindas do “Projeto de pesquisa Nossas Confissões da Carne”, organizado e desenvolvido
pelo Prof. Dr. Nilton Milanez, juntamente o grupo de pesquisa que coordena, o LABEDISCO
(UEFS/CNPq). O referido projeto fazia parte do conjunto de atividades vinculadas ao pós-
doutoramento realizado por Nilton Milanez sob minha supervisão, no Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia, nos anos de 2020 e
2021. No âmbito das atividades do pós-doutorado, Milanez realizou a tradução do romance
francês L’hermaphrodite, de Armand Dubarry. Integrado à tradução, Milanez escreveu o livro
Brigitte Lambert: o diário de uma mulher trans intersexo. O livro agrega, numa primeira parte,
a tradução do romance de Dubarry e, numa segunda parte, estudos sobre questões
materializadas no referido romance, por meio de uma condução teórica de perspectiva
foucaultiana. Para a tradução e a escrita do livro, Milanez especializou-se em estudos sobre
o realismo e o naturalismo do século XIX, investigando discursos no âmbito dos estudos
literários e das ciências sociais.

O supracitado projeto “Nossas Confissões da Carne” coordenado pelo LABEDISCO


(UEFS/CNPq) contou com a participação de grupos de pesquisas parceiros, o GPEA
(UFU/CNPq), o LINSP (UEFS/CNPq) e o Viva Vox (UFS/CNPq), realizando uma série de
encontros de estudo entre os meses de março e julho do ano de 2020, encontros esses que
deram origem a este livro. Nesses encontros, os expositores, pesquisadores dos quatro
grupos citados, realizavam a apresentação dos capítulos de As Confissões da Carne; tais
exposições eram desenvolvidas com base em duas metodologias de leitura: uma leitura
crítica do capítulo do livro elencado para a reunião e uma leitura comparada do referido
capítulo, considerando os seus temas de base. Nessa leitura comparada, os pesquisadores
investigavam como esses mesmos temas surgiram em outros livros de Michel Foucault. O
resultado foi muito produtivo, porque nessa escavação foi possível aos pesquisadores a
compreensão da trajetória de uma mesma noção/tema no pensamento foucaultiano.

Configuramos, nesse movimento de leituras, releituras, pesquisas e apresentações, o


desenho de uma rede, desenho esse tão caro à episteme foucaultiana. Percebemos, por meio

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
dos encontros muitas perspectivas envolvidas nessas Confissões da carne, nessa experiência
tão arrebatadora que é a confissão da carne, experiência subjetivadora por excelência. Os
capítulos do presente livro são resultado dos encontros do citado projeto e oferecem ao leitor
a visão de como são múltiplas e complexas essas experiências da carne.

O livro é aberto pelo ensaio “Diálogos entre As Confissões da Carne e O Pedagogo”,


assinado pelas pesquisadoras Jamille da Silva Santos, Helen Cristine Ales Rocha e Sandra
Helena Borges. As autoras procuram realizar um diálogo entre as obras: História da
sexualidade IV - As Confissões da Carne, de Michel Foucault, e O Pedagogo, de Clemente de
Alexandria. Nas duas obras o pedagogo ocupa o lugar de emissário direto de Deus ou o
próprio, sendo descrito como um ser sem pecado e responsável por guiar, vigiar e punir suas
ovelhas na terra. Foucault mostra como o tratado de civilidade de Clemente funciona como
um manual de conduta moral que vai reger toda uma sociedade dominada pela religião.

Vilmar Prata, autor do segundo capítulo, intitulado “Pedagogização da carne: a relação


mestre-discípulo no pensamento grego-romano”, trata das relações estabelecidas do sujeito
consigo e com o outro a partir de uma perspectiva de governamentalidade que passa pelo
conhecimento constituído de si e do outro. Os três eixos – cuidado, governo e conhecimento
– são as bases nas quais o indivíduo se ergue e se lança no processo de se constituir e se
descobrir enquanto sujeito capaz de discernir suas próprias verdades que emergem do olhar
que se abre para dentro de si, para o próprio corpo, a própria carne, despertando questões e
exigindo mudanças constantes e que, implica o outro em todo esse movimento. Esse outro,
que se posiciona como mestre, que ensina e aprende com seu discípulo, é ilustrado pelas
figuras de Sêneca e de Lucíolo. O autor do capítulo mostra como Foucault se inquieta e dedica
suas reflexões a pensar o sujeito a partir da própria carne, do próprio corpo, tomando o
estoicismo como ponto de partida para se pensar o sujeito da atualidade e suas relações com
o próprio corpo, enquanto ponto em que se funde um emaranhado de sensações físicas e
emocionais.

“O corpo esteja convosco e ele está no meio de nós” é o ensaio seguinte, no qual os
autores, Nilton Milanez, Ismarina Mendonça de Moura e Beatriz Souza Almeida, procuram,

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
em primeiro lugar, discutir um dos temas importantes arrolados em As Confissões da Carne,
a pedagogização do Logos, observando como esse tema conduz a um discurso fora da norma
jurídico-biológica cristã, motivando uma posição contranatureza dos sujeitos. Em segundo
lugar, demonstram como tais posturas contranaturas são desempenhadas como práticas de
confissão no intuito de se produzir um discurso verdadeiro. Em terceiro, os autores mostram
que todo esse processo resulta em uma certa modalidade de perspectiva espiritual capaz de
nortear os sujeitos em seu percurso coercitivo, impelindo-os à confissão e à produção
verdades de acordo com a normatização cristã. Ao final, os autores propõem a entender esse
conjunto de reflexões junto à problematização do corpo como figura que concretiza o
movimento efetivo das práticas sexuais e, nesse sentido, estabelece um corpo que deve
confessar-se, dobrar-se a experiências que normalizam e disciplinam os prazeres.

Suelane Gonçalves Santiago Lima, Rebeca Barbosa Nascimento e Jussara Santana


Pereira assinam o quarto capítulo, que, intitulado “Deslocamentos para uma conduta do
corpo: da natureza à subjetivação cristã”, tem como objetivo descortinar uma série de
condições de emergência de uma conduta do corpo que conflui com uma conduta da alma
cristã. As autoras demonstram essas condições de emergência através da descrição de
processos próprios do interior da vida cristã, exemplificados através de uma moral
catequizada pedagogicamente, que constituem toda uma série de artimanhas que se
atualizam historicamente em direção a um domínio cada vez mais fluido nas relações,
materializadas em valores, regras, procedimentos, bem elaborados e entranhados na vida
ocidental.

Marisa Martins Gama-Khalil e George Lima dos Santos assinam o capítulo intitulado
“Os dispositivos da veridicção e da subjetividade inscritos na carne”, no qual a noção
foucaultiana de dispositivo é acionada para a compreensão de como se arquitetam as
relações entre verdade e subjetividade em As Confissões da Carne. Os autores apontam para
a necessidade de se pensar nos vocábulos “confissões” e “carne”, porque eles indiciam ao
leitor o tema de base da obra, que trata dos dispositivos de veridicção que incidem sobre os
processos de subjetivação/objetificação, responsáveis pela atribuição da sexualidade ao

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
corpo, ou seja, sobre os sistemas de verdade que objetificam o corpo, fazendo dele o que os
cristãos dos primeiros séculos chamam de carne, a qual se relaciona a um conjunto de
experiências relacionadas à confissão. No corpo do ensaio, para a compreensão de como se
instituem os dispositivos da veridicção e da subjetivação no quarto volume da História da
sexualidade, os autores realizam um estudo comparado por meio do qual trazem outras
diversas obras de Foucault em que as noções de verdade e sujeito são constitutivas das teses
por ele tratadas.

“Foucault e os temas da prova e da penitência no Cristianismo: outras leituras para


além das Confissões da carne” é o título do sexto capítulo, em que autoras Carla Luiza
Carneiro Borges, Daniela Barreto Santana e Edna Ribeiro Marques Amorim abordam a
temática da prova e da penitência em As Confissões da Carne, destacando a perspectiva
discursiva foucaultiana para tratar o tema do cristianismo, com o objetivo de compreender
quais eram as problematizações dos estoicos que Foucault considerou e como ele lê a
incorporação das ideias estoicas pelo cristianismo e suas consequências. A proposta é de
verticalizar os pontos que Foucault apresenta, como leitor da prova e da (segunda) penitência
no cristianismo, a partir de suas referências de leituras, como do Manual do Pedagogo e de
Tertuliano, também de Cassiano, ou seja, lendo as leituras feitas por Foucault para falar do
tema da prova. As autoras destacam que tratar do cristianismo exige atenção para a relação
entre sujeito, verdade e as práticas cristãs do estabelecimento da prova e da penitência.
Mostram como a temática está totalmente entrelaçada à obra foucaultiana, retomando
outros lugares onde Foucault enceta a discussão feita em As Confissões da Carne, como em
A hermenêutica do sujeito, nas Histórias da sexualidade, n’Os Anormais, em As palavras e as
coisas e no Governo dos vivos.

No último capítulo do livro o leitor encontrará o ensaio “Ler com Foucault as práticas
penitentes e concupiscentes e as formas de dizer e ser verdadeiro”, no qual as autoras
Renailda Ferreira Cazumbá, Tamize Mota e Carla Luiza Carneiro Borges procuram destacar
um modo de ler discursivo, com Foucault, para pensar as relações entre as práticas penitentes
e o dizer verdadeiro. Partindo do capítulo “A formação de uma experiência nova”, na História

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
da sexualidade IV, o ensaio discute como Foucault interpreta as práticas penitenciais e
exercícios de purificação, através das Cartas de São Cipriano, em confronto com sua posição
na obra O Governo de Si e dos Outros, especificamente na Aula de 9 de março de 1983,
segunda hora, no capítulo “Estudo do Górgias”, no qual Foucault ressalta que a confissão
cristã já teria sido anunciada cinco ou seis séculos antes em práticas ascéticas gregas e
romanas, presentes na via filosófica enquanto exercício de condução das almas. As autoras
observam que Foucault traça a genealogia da subjetividade cristã, destacando a mediação de
um médico, juiz, padre, mestre e a função que este terá no acesso à consciência do sujeito;
essa individualidade já presente na parresía filosófica (diálogo entre mestre e discípulo) e que
se verá nas práticas da confissão e da penitência. Salientam que, para Foucault, o cristianismo
criou uma “obrigação” de dizer a verdade, exatamente alegando necessária para o cristão
conseguir a salvação ou extinção de débitos com o plano superior e que Santo Agostinho foi
responsável por fixar a teoria da libidinização do sexo, do corpo e sexo como condenáveis.
Por fim, ressaltam a análise feita por Foucault em As Confissões da Carne, no capítulo “A
libidinização do sexo”, acerca das teorias de Agostinho tornarem-se importantes para
compreendermos o investimento da Igreja nascente na ideia de uma moral da conduta sexual
ligada ao pecado.

O conjunto de ensaios aqui apresentados compreendem não apenas uma leitura em


close reading da obra, fechando foco sobre as Confissões; a ideia de base do projeto de
extensão e deste livro foi partir de um olhar em close sobre a obra, elencando as principais
noções ali articuladas, mas levar esse olhar a outros espaços da obra de Foucault, procurando
mostrar as conexões discursivas das noções, seus sistemas de emergência, suas regularidades
e suas dispersões. Com esse movimento labiríntico os autores do livro desejam delinear um
efeito especial, que é o de geração de novos labirintos de leitura, espaços plenamente
rizomáticos.

Mas, ainda, por que a carne? Porque ela nos constitui, materializa-nos. Foucault
lembra a determinação de um dos versículos do Gênesis (2,23) que trata da origem do

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
homem: “é osso dos meus ossos e carne da minha carne”.4 O homem é antes de tudo carne.
É a carne que sente os tremores do desejo e todas as experiências do mundo, e é por ela,
portanto, que nos fazemos sujeitos de nossas próprias experiências.

Marisa Martins Gama-Khalil


Porto Velho, Julho de 2021.

4
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água, 2019. p. 53.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
DIÁLOGOS ENTRE AS CONFISSÕES DA CARNE E O PEDAGOGO
Jamille da Silva Santos
Helen Cristine Alves Rocha
Sandra Helena Borges

EDUCAR, REGULAR, CONDUZIR


No presente texto, discutimos os contrapontos estabelecidos por Michel Foucault,
no livro História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne5, com a obra O Pedagogo6, de
Clemente de Alexandria, que é um tratado de civilidade, cuja função é educativa, pois regula
as condutas dentro da sociedade cristã, delimitando aquelas possíveis para cada membro do
corpo social e, com isso, regendo as ações e as paixões. Em O Pedagogo, Alexandria ensina,
então, como devemos nos comportar na vida, discutindo desde questões que envolvam o
papel o pedagogo, daquele que tem a função de ensinar e regular as ações da sociedade, até
situações básicas do cotidiano, como vestimenta, colocar a mesa, o que falar em uma
reunião, ou ainda, quando falar, tomando sempre como base de sustentação a vida simples
e privada do uso dos prazeres, sem os excessos que corrompem a alma.
O corpo social é apresentado como um corpo a ser vigiado, corrigido para que se
alcance a salvação, cabendo ao pedagogo a função de guiar, vigiar e corrigir essas almas.
Assim, o pedagogo é o próprio filho de Deus que por ele foi enviado a terra para tentar redimir
a humanidade, é também quem, como Jesus, decide abdicar dos prazeres carnais e seguir
fielmente a fé, tornando-se, como Deus, conhecedor de todas as coisas: o representante de
Deus na terra.
Para Foucault7, a obra O Pedagogo é um manual prescritivo que busca refletir a vida
em seu cotidiano, mostrando as formas possíveis de viver virtuosamente, ou seja, traçando

5
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019.
6
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014.
7
FOUCAULT, op. cit.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
o caminho para a salvação da alma. A figura do pedagogo é descrita como o próprio Logos,
que por meio de suas regras salva as almas dos humanos pecadores.
Clemente busca discutir prolongadamente as relações conjugais e a instituição da
família, levantando pontos já trazidos por antigos pensadores e, ainda, textos descritos na
Escritura sagrada. Para o sacerdote, o sacramento do casamento deve ser evitado por aqueles
que busquem seguir o caminho do pedagogo e para o corpo social deve ser uma forma de
controle para a regulação dos prazeres, tendo como principal finalidade a procriação8.
Segundo Foucault, para Clemente, o casamento é um regime de regras que regulam a
sociedade humana e uma forma de regulação dos prazeres, de modo que, o ato sexual é
apenas permitido no casamento e com a função de procriação, devendo ao máximo evitar
sentir prazer neste momento, principalmente as mulheres 9. A procriação, ainda segundo
Foucault, é permitida, pois é por meio dela que a humanidade se multiplica seguindo, assim,
o que foi dito por Jesus e é exemplificado pela natureza. Clemente de Alexandria, no seu livro
O Pedagogo, aponta uma gama de animais que se utiliza unicamente da relação sexual como
forma de manutenção da espécie, exemplo esse que deve ser seguido pela humanidade 10.
Alexandria descreve a constituição humana como um corpo social cíclico que precisa
do outro para sobreviver: nos multiplicamos e convivemos uns com os outros 11. Segundo
seus apontamentos, somos uma das poucas espécies que se dedica a cuidar da prole por
anos. Depois, o ciclo é invertido: a criança que é cuidada pelo pai vira adulto que cuida do
idoso.
Dentro dessa estruturação familiar, vamos observar que os tratados de civilidade,
especialmente aqui em O Pedagogo, vão demarcar dentro da esfera familiar o que é
permitido e proibido para cada membro social. Assim, cabe ao homem ser o progenitor, o
protetor, quem cuida e sustenta a família; e à mulher se manter fiel, cuidar do lar, ser
obediente ao esposo e temente a Deus.

8
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014.
9
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019.
10
ALEXANDRIA, op. cit.
11
Ibid. passim.

18
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
A função do pedagogo é de guia espiritual, cabe a ele ser o caminho entre Deus e a
humanidade, transmitir ensinamentos e, ao mesmo tempo, ser o juiz que regula, vigia e pune
aqueles que se rebelam contra a vontade de Deus.

O PEDAGOGO
Uma das grandes personalidades da Igreja nascente, da Igreja antiga, Clemente de
Alexandria foi um grande teólogo, nascido provavelmente em Atenas, em meados do século
II. Interessado em filosofia, foi um dos pioneiros do diálogo entre fé e razão na tradição
cristã12. Ainda jovem foi para Alexandria, onde se tornou discípulo de Panteno, até suceder-
lhe na direção da escola catequética. Muitos estudiosos afirmam que ele foi ordenado
presbítero. “Durante a perseguição de 202-203, abandonou Alexandria para se refugiar em
Cesaréia, na Capadócia, onde faleceu por volta de 215” 13.
As obras mais importantes que nos restam desse autor, conforme nos informa o Papa
Bento XVI em audiência geral sobre Clemente de Alexandria, são três: o Protéptico, o
Pedagogo e o Estromata. Uma trilogia a partir da qual, segundo o Papa, pode ser destinada
a acompanhar de forma eficaz a maturação espiritual do cristão. O primeiro texto é uma
exortação de Jesus Cristo dirigida a quem inicia e procura o caminho da fé, o caminho preciso
rumo à Verdade. O segundo atribui à figura de Jesus a função de pedagogo, educador
daqueles que, após o batismo, já se tornaram filhos de Deus e precisam seguir seus preceitos.
Por fim, o terceiro texto coloca Cristo na posição de Didascalos, isto é, Mestre que propõe
ensinamentos profundos.
A catequese clementina acompanha o caminho do catecúmeno e do batizado para
que, a partir da fé e da razão, eles alcancem o conhecimento da Verdade, que é Jesus Cristo,
o Verbo de Deus. “A finalidade humana é tornar-se semelhante a Deus”14. Esse conhecimento
sobre Jesus é a verdadeira gnose, isto é, o conhecimento, a inteligência. Destarte, a fé é o
que constrói a conversão no caminho a ser empreendido na vida. Ter conhecimento ou

12
BENTO XVI. Prefácio. In: ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Tradução de Iara Faria e José Eduardo
Câmara de Barros Carneiro. Campinas: Ecclesiae, 2014.
13
Ibid., p. 09.
14
Ibid., p. 11.

19
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
inteligência está intimamente relacionado ao desenvolvimento da fé, suscitada por Jesus na
alma daqueles que estão unidos a Ele. O cristão deve deixar-se guiar por Cristo, para chegar
ao conhecimento da Verdade e das verdades que formam o conteúdo da fé. O conhecimento
de Cristo transforma o homem e gera sua comunhão com o Logos, com o verbo divino que é
Verdade e Vida. É nessa comunhão de conhecimento perfeito e de amor que o cristão alcança
a contemplação, a unificação com Deus.
É necessário, para Clemente de Alexandria, que o homem se torne semelhante a Deus.
Porém, isso ainda é um desafio, é preciso a fé vivida, a prática da virtude, uma exigência moral
e intelectual para que isso aconteça: não se pode conhecer sem viver e nem viver sem
conhecer15. Para o Papa Bento XVI, a assimilação a Deus e a sua contemplação não podem
ser alcançadas somente com o conhecimento racional, mas com uma vida segundo a
Verdade, o Logos. Assim sendo, as boas obras precisam acompanhar esse conhecimento
intelectual.
O Pedagogo, livro que utilizamos neste trabalho, propõe diálogo com a filosofia grega.
Para Bento XVI,

pode servir de exemplo para os cristãos, catequistas e teólogos do nosso


tempo, aos quais João Paulo II, na mesma Encíclica, recomendava que
«recuperassem e evidenciassem, do melhor modo, a dimensão metafísica da
verdade, para entrar num diálogo crítico e exigente com o pensamento
filosófico contemporâneo»16.

Portanto, O Pedagogo é uma continuidade dos textos da filosofia e da moral pagã da


época, ou de um período imediatamente anterior. Em forma de prescrição, ele é um “regime”
de vida que define os atos em função dos fins e das ocasiões em que acontecem.
No capítulo, nomeado de “Ofício do Pedagogo”, Alexandria nos conduz à definição de
quem seria o Pedagogo dentro da visão cristã. Ele inicia o texto relatando que há três coisas
a serem regradas no homem: os hábitos, as ações e as paixões. Com relação aos hábitos, o
estudioso salienta que é preciso regrá-los por meio da exortação, guia da religião e da

15
BENTO XVI. Prefácio. In: ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Tradução de Iara Faria e José Eduardo
Câmara de Barros Carneiro. Campinas: Ecclesiae, 2014.
16
Ibid., p.11.

20
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
piedade, e de uma ajuda para se introduzir na fé. Por meio da exortação, “afastamo-nos dos
velhos erros e entramos com alegria na via da salvação”17. O homem, então, abandonaria
seus velhos costumes para instruir-se segundo a fé que conduz a Deus. Os preceitos regrariam
as ações e as consolações remediariam as paixões da alma.
A exortação, que é a que nos interessa aqui enquanto definição de quem seja o
Pedagogo, é o “discurso pelo qual o homem põe-se a procurar as vias da sua salvação”18. Uma
instrução que seja perpétua, com o fito de nos “fazer aprender e levar uma vida correta,
inspirando-nos a desejar ardentemente a vida futura” 19. É por isso que Alexandria usa o
termo “pedagogo”, porque considera que Jesus nos induz a pensar de determinada maneira,
nos dá remédios e preceitos para seguirmos. Destarte, é importante seguir suas
recomendações para tornar nossa alma melhor, mais do que a instruir.
Não é apenas pensar a relação da palavra com a disciplina e os preceitos, mas é preciso
pensá-la em relação às ações. É por isso que Alexandria atribui ao discurso o nome de
“exortação” e, muitas vezes, de “instrução”, no sentido daquele discurso que se emprega
para a explicação de preceitos instrutivos20. “Quando o Pedagogo se utiliza das regras morais
e exorta o discípulo a cumprir todos os seus deveres em relação a elas, está a dar lições
práticas: além de explicá-las, expõem-se vivamente, e de forma bem natural, todas as faltas
cometidas pelos discípulos”21. A exortação de Jesus traz à tona as falhas cometidas pelo
sujeito e, para Alexandria, isso pode resultar em dois efeitos: estimular a prática da virtude,
tendo como exemplo as pessoas de bem, ou inspirar o horror às libertinagens. O Pedagogo,
após demonstrar os pecados cometidos, indica-nos preceitos simples que se assemelham a
remédios doces e suaves, dando-nos o conhecimento perfeito sobre a Verdade. Ele é quem
prescreve o que e como é preciso fazer de acordo com a falha de cada sujeito.
Assim, “aqueles que têm um espírito doente necessitam de um diretor espiritual que
lhes possa prescrever remédios contra as suas paixões; têm necessidade de um doutor que

17
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 19.
18
Ibid., loc. cit.
19
Ibid., loc. cit.
20
Ibid.
21
Ibid., p. 20.

21
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
os instrua, que os faça apreender as máximas da Santa Doutrina” 22. Isso é realizado com
cuidado pelo Pedagogo, conduzindo o sujeito ao mais alto grau de perfeição por meio de
regras “da mais exata disciplina. O Verbo, pleno de bondade e amor pelos homens, exorta a
todos interiormente; Ele mesmo exerce o ofício de Diretor, e lhes revela todos os mistérios
da sua doutrina”23. O Pedagogo é igual a Deus, perfeito, sabe e conhece todas as coisas. É
Deus feito homem, Jesus Cristo, mas um homem sem vícios, paixões ou fraquezas. É
submetido à vontade do Pai; é o Verbo feito carne que nos conduz à salvação.
De acordo com Alexandria, nossos primeiros cuidados devem ser livrar-nos de nossas
paixões e de todas as doenças da nossa alma. Devemos afastar-nos de qualquer hábito que
nos possa levar ao pecado. Embora sejamos pecadores, é preciso nos esforçar para não
cairmos no pecado voluntariamente. Abstermo-nos de pecar involuntariamente. Isso é o que
se espera dos bem instruídos e dos que estão sob a condução do Pedagogo. A última etapa é
recuperar-se tão logo dos pecados cometidos. Depois de cometer o pecado, é preciso tomar
consciência dele e sofrer a penitência (o castigo é a repreensão que endireita o espírito e que
devolve a inteligência àqueles que a perderam). Aquele que peca age contra a razão e é
preciso que ele se afaste do pecado.
Por isso, ainda de acordo com Alexandria, o Pedagogo recorre às leis para impedir o
desregramento pelo pecado. Jesus ensina-nos sobre o que devemos regrar. É por meio de
suas instruções que Deus nos cura; é desse modo que aprendemos, melhoramos. Por meio
dos preceitos a serem seguidos, podemos alcançar o conhecimento e a santidade. Alexandria
ressalta que a profecia trata de dois objetos: a obediência e a desobediência. Por uma somos
salvos e pela outra, punidos. Desse modo, “[a] função do Pedagogo é curar, através de suas
reprimendas, as inclinações viciosas da alma”24. Para o filosofo, o Verbo é o único que pode
instruir-nos e livrar-nos das doenças da alma. O Pedagogo, como a sabedoria que alivia os
distúrbios da alma, é a sabedoria, é o Verbo. Ele cura as enfermidades do corpo e da alma.

22
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 21.
23
Ibid., loc. cit.
24
Ibid., p. 25.

22
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
É de forma doce e afetuosa que Jesus nos convida a praticar o bem e desviar-nos do
mal. Ele exerce o objetivo de “nos instruir nas coisas invisíveis, espirituais e misteriosas” 25.
Dessa maneira, Alexandria observa a importância de se retribuir, de alguma forma, a Deus,
“que por amor nos conduz à Suma Bondade”26. Para o teórico, é justo conformar nossa vida
aos seus mandamentos, aos seus ensinamentos: cumprindo o que Ele nos ordena; evitando
fazer aquilo que ele nos proíbe; procurando sempre nos assemelhar a Ele da forma mais
perfeita possível; seguindo os ensinamentos de Cristo, o nosso guia, que “é o Verbo cujo olhar
austero penetra nos mais secretos vincos do nosso coração” 27, conduzindo os homens à
virtude e, consequentemente, à salvação. É preciso tirar nossos preceitos dos seus exemplos
e das suas obras. “O Verbo se fez carne para melhor nos ensinar a prática e a teoria da virtude.
Que esta seja a nossa única lei: encaremos os seus preceitos e seus avisos como a via mais
curta e mais direta para nos conduzir à eternidade”28. Quando há obediência aos
ensinamentos do Pedagogo, trilha-se o caminho para o céu.
Jesus, nosso Pastor, é o Pedagogo. O sujeito que conduz as crianças deve ser visto
como um pedagogo, pois é, para o alexandrino, um pastor que governa as crianças. Cristo é
quem nos conduz à salvação. Somos seus filhos. Nesse ínterim, é importante frisar que
“Pedagogia” é uma palavra que designa aquele que é dirigido e instruído e aquele que dirige
e instrui. Ademais, ela também é tomada por Alexandria no sentido de conduta. Por esse viés,
é por meio dos ensinamentos (de ações santas) que contemplamos a Deus e recebemos a
salvação, por meio de regras e métodos de vida que chegaríamos ao céu.
A “pedagogia tem por objetivo a condução das crianças, isto é, a sua instrução [...].
Mas ainda resta-nos examinar quais são as crianças de que tratam as Escrituras – e colocá-las
sob a direção de um Pedagogo”29. A partir das Escrituras, Alexandria teoriza que essas
crianças somos todos nós. O termo “criança”, segundo ele, é uma alegoria utilizada para
exprimir quão simples deve ser a nossa fé, isto é, das pessoas que se acostumam e têm como

25
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 28.
26
Ibid., loc. cit.
27
Ibid., p. 29.
28
Ibid., loc. cit.
29
Ibid., p. 33 - grifo do autor.

23
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
hábito viver junto de Cristo. É necessário tornarmo-nos simples igual as crianças o são. A
ternura e a simplicidade marcam a inocência do espírito, a inexperiência do mal; a facilidade
de esquecer as injúrias. O termo “ternura” expressa qual deve ser a simplicidade da nossa
alma. Aquele que é sem manchas é eterno, verdadeiro, coberto de bênçãos. Nossa alma é
livre e inocente como a das crianças recém-nascidas; corremos para a fé e a verdade.
A noção de crianças que devam ser guiadas é discutida por Foucault em O Governo de
si e dos outros30. Para o filósofo, quando nos permitimos ser guiados como crianças,
colocamo-nos em estado de menor idade, isto é, quando deixamos que o outro determine o
que é permitido ou proibido, seja por preguiça, conformismo ou incapacidade, perdemos o
direito do conhecimento e do governo de nós mesmos. Nesse sentido, de acordo com
Alexandria, é preciso que o sujeito abra mão desse governo de si e se permita ser guiado
como criança para Jesus, pois somente o Pedagogo possui o conhecimento necessário para
guiar as almas ao reino dos céus.
Ao fazer uma analogia de Jesus, o Pedagogo, com a pedagogia, Alexandria ressalta que
damos à educação um nome cuja etimologia é tirada da palavra “criança”. Chamamos de
“Pedagogia” a condução da infância no estudo e na virtude e como praticá-la. Por isso, Jesus
é o Pedagogo que ensinava e sofria, que instruía seus alunos ensinando-os a se defender e a
repelir o ataque do maligno. O Pedagogo “sempre acompanha o homem justo, incita-o ao
combate e ensina-o a vencer seu inimigo”31, e a nós mesmos. Ele também fornece o que for
necessário para que sejamos pedagogos de outrem.
As características da verdadeira infância é, para o teórico supracitado, reconhecer
somente a Deus como Pai, ser simples, puro, inocente, despretensioso e honesto. É preciso
afastar todas as preocupações inoportunas das coisas necessárias à vida e imitar as crianças
como quando elas deixam esse cuidado a seus pais. Ou seja, abandonar as preocupações
inúteis e se apegar somente a Deus, que nos dará tudo aquilo que necessitamos. Isso, para
Alexandria, é ser como uma criança. Desse modo, o autor afirma que, por sermos crianças,

30
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 27.
31
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 74.

24
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
devemos guardar para não sermos levados pela heresia, e não confiarmos nas palavras
daqueles que nos instruem em doutrinas contrárias às de nossos pais (às de Cristo). Como as
crianças são naturalmente simples e doces, sermos crianças diante de Deus significa
acrescentarmos a essa doçura uma simplicidade que ignora a malícia e a dissimulação, tendo
um coração cheio de probidade e elevação. Da mesma maneira que o homem se vira para o
bem, ele deve arrepender-se do mal que fez. Logo, ele será levado à virtude pelo
arrependimento. A perfeição consiste em renunciar ao pecado e ser regenerado na lei do
único que é perfeito, Jesus, para marchar em uma via perfeita, diferente daquela que
deixamos.
Para Alexandria, o Verbo é nosso Pedagogo. e nosso Juiz, ele julga e pune os que
desobedecem, mas cheio de bondade, sabedoria, doçura e autoridade, Ele mostra nossos
pecados e censura-os, a fim de exortá-los com a penitência. Somos, para o estudioso,
castigados por Deus (que adverte antes de castigar) e instruídos pelo Pedagogo, o qual é
poderosamente forte, venerável, consolador e salvador.
Outrossim, o Verbo é aquele que molda os nossos apetites desregrados para que a
virtude possa se sobressair. Ele nos repreende no que for necessário. Somente Ele pode
discernir a obediência da desobediência. “Assim, aquele que faz reprimendas a um homem
de espírito doente não deseja o mal a ele por isso, pois não é ele a causa das suas desordens;
apenas as faz serem percebidas, a fim de que o doente renuncie aos seus maus hábitos” 32. A
justiça de Deus é manifestada pela Lei e pelo Verbo, constrangendo os homens a fazer
penitência e aprender a renunciar às vontades da carne.
A Lei foi a nossa primeira pedagoga em Jesus Cristo, a fim de que a fé nos justificasse.
Vinda a fé, ela deixou de ser nossa pedagoga, porque não estamos mais sobre essa Lei que
nos governava pelo medo, mas sim sobre a condução do Verbo. Este, procura nos persuadir
e faz elogios para nos fazer conhecer o que é útil, aconselhando sobre o que é salutar. É
somente seguindo o que Ele nos prescreve que vamos conseguir levar uma vida santa e
virtuosa.

32
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 99.

25
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Mantendo-se dentro do objetivo que propusera a atingir, apresentar as regras para a
conduta da vida, Alexandria escolhe algumas passagens da escritura para instruir os cristãos
a respeito da maneira como devem se comportar para viver conforme aquilo que professam.
No que concerne ao nosso exterior e à economia do nosso corpo, o teórico versa sobre a
importância de se ter discernimento justo entre o corpo e o espírito, porque ambos merecem
cuidados e zelo. Os esforços principais devem estar voltados para o cultivo da alma e para a
conservação da pureza do corpo, pela submissão ao Espírito.
Como exemplo, o primeiro relato do teórico a esse respeito é sobre os homens que
vivem somente para comer. Ele sublinha que Jesus nos ensina o que devemos comer para
viver e que não podemos ter a alimentação como um interesse, limitando-nos a esse prazer.
Por mais que comer seja uma necessidade terrena, é importante lembrarmos que somos
feitos para a imortalidade. Sendo assim, o teórico afirma que os alimentos devem ser simples,
que não há necessidade de muitos cuidados para prepará-los; que não tenham nada de
refinado ou supérfluo, mas somente o necessário, abstendo-se do que é requintado e
saboroso. Alexandria não está afirmando que não devemos ter nenhum cuidado com
alimentação, mas está condenando o excesso e o mau hábito que poderá dar frutos funestos.
Ele está falando sobre a moderação no comer e a condenação da gula.
Diante dessas considerações, percebemos que é preciso despojar-se da arrogância
para estar em condições de seguir a Jesus Cristo; renunciar à luxúria para apegar-se aos bens
sólidos e verdadeiros que são eternos: a fé que nos faz crer na existência de Deus e na paixão
de Jesus Cristo e a caridade com o próximo. Para Alexandria, essas são as riquezas preciosas
e reais. Conforme o teórico, podemos nos servir de materiais mais simples e úteis ao nosso
propósito, considerando apenas a sua utilidade e não a sua magnificência, pois Deus é sem
fausto e sem orgulho. Embora tenha sido criador e mestre de todas as coisas, Ele não trouxe
do céu uma bacia de ouro33.
Jesus, seu filho, tinha como escopo estabelecer o uso útil de cada coisa e não uma
magnificência excessiva e vazia. Enfim, os alimentos, os hábitos, os objetos dos quais nos

33
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. passim.

26
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
servimos e a vida que levamos devem estar relacionados ao estado e à possessão de um
verdadeiro cristão, consoantes à pessoa, sua idade condição e emprego do tempo. É
necessário que todas as posses carreguem o caráter de uma vida honesta e frugal. Portanto,
cada um, por meio de uma conduta regrada e uniforme, faça conhecer a força da fé, da
esperança que nele habita. Aqueles que têm o verdadeiro desejo da salvação precisam
compreender que devem procurar no seu mobiliário, em suas vestimentas, em sua
alimentação, em seus sonhos e desejos carnais apenas a utilidade e a necessidade; que
precisamos de poucas coisas quando nos contentamos somente com o necessário. A
verdadeira riqueza não está em possuir prata e ouro, mas na mortificação das paixões 34.
Foucault analisa O Pedagogo em sua obra As Confissões da Carne, relatando que é uma
obra dirigida a cristãos depois da sua conversão e do seu batismo, propondo-lhes uma regra
de vida precisa, concreta e cotidiana. O Pedagogo é “um livro de exercício e de
encaminhamento – o guia de uma ascensão em direcção a Deus”35. Em 1984, o filósofo
publica um vasto estudo sobre a genealogia do homem do desejo, desde a Antiguidade
Clássica até aos primeiros séculos do cristianismo. Isso foi compilado em quatro volumes: A
Vontade de Saber, O Uso dos Prazeres, O Cuidado de Si e As Confissões da Carne. Para este
estudo, o que nos interessa é seu volume sobre As Confissões da Carne, no qual o autor
aborda a experiência da carne nos primeiros séculos do cristianismo e o papel que aí
desempenham a hermenêutica e a decifração purificadora do desejo 36. Trata-se, então, de
uma pesquisa complexa sobre as práticas e as doutrinas cristãs de confissão da carne a partir
de um panorama histórico. Foucault retoma o ponto de origem de uma ritualização de
verdade, uma injunção de verbalização pelo sujeito de um dizer a verdade sobre si mesmo
articulado em práticas de obediência37. Ele também aborda os temas relativos às obrigações

34
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras
Pereira. Lisboa: Antropos, 2019. p. 24.
35
GROS, Frédéric. Advertência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne.
Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Antropos, 2019.
36
Ibid., op. cit.
37
Ibid., passim.

27
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
cristãs de verdade na preparação do batismo, os ritos de penitência e a direção monástica
entre os séculos II e IV da nossa era38. Foucault também aborda, nessa obra, sobre a doutrina
do casamento de Clemente de Alexandria, sobre a arte cristã da virgindade e o sentido
fundamental que toma para nossa cultura, com Santo Agostinho, o conceito de libido, após a
queda e no casamento.
Foucault reforça o que já relatamos: o “Pedagogo é, pois, o próprio Cristo; e aquilo que
ensina, ou mais exactamente o que ensina nele e o que é ensinado por ele, é o Logos. Como
Verbo, ensina a lei de Deus; e os mandamentos que fórmula são a razão universal e viva”39.
Jesus ensina-nos um conjunto de ações em conformidade com esse logos, a aplicação de seus
ensinamentos, “aquilo a que justamente chamámos de fé” 40. É um conjunto de preceitos do
Senhor, prescritos como mandamentos espirituais e úteis para todos.
Em suma, o que “Clemente propõe nos ensinamentos de O Pedagogo é um corpus
prescritivo em que o nível das ‘conveniências’ não é mais do que a face visível da vida
virtuosa, a qual é por seu turno caminho para a salvação”41. É uma obra que indica precauções
minuciosas que se enunciam “na natureza, na razão humana ou na palavra de Deus”42. A
alma, por ser de natureza superior à do corpo, deve dominá-lo. As vontades da carne não
podem prevalecer e levar o homem ao pecado, pois é preciso controlar nossos prazeres para
conseguirmos comandar nós mesmos.
A “carne” “deve ser compreendida como um modo de experiência, quer dizer, como
um modo de conhecimento e de transformação de si, em função de uma certa relação entre
anulação do mal e manifestação da verdade”43. Nesse sentido, é conhecendo os desejos
carnais que o sujeito irá se transformar, controlando-os ao anular o mal e ir em busca da
Verdade. Como Foucault (2019) bem cita, Clemente de Alexandria afirmava que o maior dos
conhecimentos é o conhecimento de si mesmo. Não obstante, não se trata de uma

38
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. passim.
39
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 25 – grifo do autor.
40
Ibid., Loc. cit.
41
Ibid., p. 26 – aspeamento do autor
42
Ibid., p. 25
43
Ibid., p. 25 – grifo do autor

28
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
investigação de si, de uma retrospecção ao passado ou de nossas faltas, mas trata-se “de
reconhecer em si mesmo o elemento através do qual se pode conhecer Deus, esse cujo guia
é Deus, esse que por conseguinte pode conduzir até ele”44. Ao desprender o homem do
mundo exterior, de seus ornamentos materiais e carnais, Cristo “o reveste de uma beleza
pura que o faz assemelhar-se ao próprio Deus”45. Portanto, o conhecimento de si não é um
exame de consciência, nem o olhar para si mesmo, mas “uma ascensão para Deus a partir da
instância da alma que pode subir na sua direcção”46. Essa direção é guiada por Jesus Cristo.
Desse modo, é preciso abster-se das vontades da carne substituindo-as pela vontade do
Mestre; entregar-se inteiramente ao “Senhor por meio da fé, e as virtudes a serem seguidas
a partir dessa premissa são de igual privilégio para o homem e para a mulher”47, isto é, para
todos nós.

CASAMENTO E MORAL
Em prol da centralização dirigida a uma problematização histórica da carne cristã, ou
seja, da substância ética com a qual e a partir da qual foi se constituindo o próprio modo de
subjetivação cristã, Foucault analisa em História da sexualidade IV: As Confissões da Carne a
doutrina do casamento de Clemente de Alexandria, que tem como fim a procriação de filhos.
Esta tese, no final do século II, já era encontrada entre os médicos e os filósofos. Entretanto,
segundo Foucault, Clemente produz sobre o regime dos aphrodisia, que foi acolhido pelo
pensamento e pela prática cristãos no século II, um testemunho de outra amplitude. Tal
regime foi formulado pelos filósofos e os diretores não cristãos, sendo “definido em função
do casamento, da procriação, da desqualificação do prazer e de um laço de simpatia
respeitosa e intensa entre os esposos”48 .

44
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 129.
45
Ibid., p. 25.
46
Ibid., loc. cit.
47
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 31.
48
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Antropos, 2019. p. 21.

29
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Que testemunho é esse? Clemente entrecruza no capítulo X do segundo livro de O
Pedagogo “o debate concernente à justa economia dos prazeres – tema dos aphrodisia –, e
o do casamento, do valor e da maneira de nele se conduzir, estando dado que ele se justifica
pela procriação e que se pode, a partir daí, definir em que ele pode ser um bem” 49. Dessa
maneira, nesse texto de Clemente, o que se passa entre os cônjuges, sobre o que os
moralistas da Antiguidade se contentam em indicar regras de decência e de prudência, torna-
se objeto de preocupação, de intervenção e de análise.
Assim sendo, segundo Foucault50, Clemente prescreve, neste capítulo, uma ética do
casamento e uma economia detalhada das relações sexuais, cujos objetivos (skopos) estariam
nas existências das progenituras e os fins (telos) nas relações positivas com tais progenituras,
definindo, com isso, um regime sexual do próprio casamento. E, por outro lado, dá uma
significação religiosa a este conjunto de prescrições, repensando-o de uma maneira global
conforme a sua concepção do Logos: “princípio de acção recta e movimento de salvação,
razão do mundo real e palavra de Deus chamando à eternidade”51. Em suma, neste texto,
Clemente condena as relações sexuais contra a natureza, recomenda reserva no uso do
casamento e dá a estas prescrições um regime de outra dimensão.
Para dar forma ao capítulo, Clemente, conforme elucidado por Foucault, inicialmente,
evoca “as lições da agricultura e da história natural para explicar a lei mosaica” 52, que regula
a relação do ser humano com Deus e com seu próximo. Em seguida, usa a “literatura médica
e filosófica a propósito do corpo humano, de seus movimentos naturais, da necessidade de
manter o controle dos desejos, e de evitar os excessos que esgotam o corpo e perturbam a
alma”53. Finalmente, nas últimas páginas do capítulo, traz citações da Escritura que serviram
de contraponto a outras referências. O capítulo, então, obedece a um movimento
ascendente “que vai de exemplos depositados na natureza a título de lição aos apelos que

49
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Antropos, 2019. p. 33 - grifo do autor citado.
50
Ibid., loc. cit.
51
Ibid., p. 27.
52
Ibid.,. p. 30.
53
Ibid., p. 30.

30
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
atribuem aos cristãos o objetivo de uma existência ‘semelhante’ a Deus” 54. O texto, então,
entrecruza a autoridade da Escritura, o testemunho dos filósofos e as palavras de médicos ou
naturalistas.
E é ao longo deste caminho que se determina a economia das relações sexuais. Este
deslocamento de referências

permite ouvir alternadamente as diferentes vozes por meio das quais o Logos
fala: a das figuras da natureza, a da razão que deve presidir ao composto
humano, a de Deus falando diretamente aos homens para salvá-los
(entendendo-se que as duas primeiras são também o Logos de Deus, mas sob
uma outra forma)55.

Isso porque, para Clemente, o que “tem um sentido para a relação entre o homem56
e Deus não é o acto sexual em si, mas o facto de que, levando-o a cabo, segue-se o
ensinamento, a ‘pedagogia’ do próprio Logos”57. Desse modo, Clemente dá ao
relacionamento conjugal procriador obediente, ou seja, àquele que observa “os
‘mandamentos’ que Deus prescreveu por meio da natureza, seus exemplos, suas formas e
suas disposições, mediante a organização do corpo e as regras da razão humana, por meio
do ensinamento dos filósofos e as palavras da Escritura”58, o valor de uma “sinergia” com
Deus. O ato de [pro]criação deve, então, ser feito “por causa de Deus”, tendo em vista que é
primeiro Deus quem o prescreve dizendo “multiplicai-vos”, mas também porque procriando
o homem é “imagem de Deus” e colabora, por seu lado, para o nascimento do homem 59.
Enfim, Clemente, segundo Foucault, “põe em jogo, na procriação, as relações do homem com
seu Criador, de Deus com suas criaturas”60. Em outros termos, Clemente estabelece, na visão
foucaultiana, entre procriação e criação um conjunto de relações estreitas.

54
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Antropos, 2019. p. 31.
55
Ibid., p. 21 – grifos do autor.
56
Clemente explica que, para ele, “a palavra ‘homem’, toada na sua generalidade, compreende tanto os
homens quanto as mulheres” (ALEXANDRIA, 2014, p. 18).
57
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 25. p. 40.
58
Ibid, loc. cit.
59
Ibid., passim.
60
Ibid., p. 40.

31
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Portanto, no capítulo X do livro segundo de O Pedagogo, Clemente fixa as condições
que dão valor positivo às relações sexuais entre pessoas casadas. Tais condições são fixadas
por meio de princípios: o princípio de que a união legítima deve desejar a procriação; o
princípio de que a busca do prazer por si só, mesmo no casamento, é contrária à razão; o
princípio de que se deve poupar à sua mulher qualquer forma indecente de relações. De
acordo com Foucault, Clemente transcreve quase palavra por palavra sentenças do estoico
romano, conferindo-lhes uma significação cristã, que são evocadas com o acompanhamento
de citações das escrituras: Moisés, o Levítico, Ezequiel, Isaías, Sirac61. Desse modo, Clemente
insere, neste capítulo, “aforismos conhecidos e correntes em um tecido complexo de
citações, de referências ou de exemplos que os fazem aparecer como prescrições do Logos,
quer ele se enuncie na natureza, na razão humana, ou na palavra de Deus”62.
Com isso, os princípios prescritos e os interditos (que são repetidos várias vezes no
texto) são fundamentados em três diferentes níveis:

o da ordem do mundo, conforme fixada pelo criador, e da qual alguns animais


‘contranatura’ dão um testemunho inverso; a da medida humana, tal como a
ensina a sabedoria do próprio corpo, e os princípios de uma razão que quer
permanecer senhora de si mesma; e a de uma pureza que permite aceder,
além desta vida, à existência incorruptível 63.

O fato de as relações sexuais entre pessoas casadas serem tratadas em um livro de


condutas e seus princípios serem fundamentados em três níveis diferentes tem sua
importância, segundo Foucault:

Primeiramente porque se vê aí, segundo um processo que pudemos constatar


entre os autores pagãos de épocas precedentes, que a questão das relações
sexuais, dos aphrodisia, está agora fortemente subordinada à questão do
casamento: neste aspecto, ela perdeu sua independência a tal ponto, que o
termo aphrodisia não aparece neste texto de Clemente. É a procriação, ou,
sobretudo, a conjunção procriativa que constitui o tema geral sob o qual vai
se situar todo o capítulo. Temos aí sem dúvida o primeiro texto em que as
relações sexuais conjugais são tratadas por elas mesmas, em detalhe, e como

61
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Antropos, 2019. p. 40.
62
Ibid., p. 28 – grifos do autor
63
Ibid., p. 31.

32
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
um elemento específico e importante da conduta. Ainda uma vez, os filósofos
já haviam formulado a maior parte dos preceitos que Clemente vai enunciar,
mas os recolocavam em uma ética global de relações entre esposos, numa
regulação da maneira de viver junto quando se é casado64.

Clemente, então, constitui no capítulo X do livro segundo de O Pedagogo,


acordando com Foucault, um pensamento e uma moral cristãos das relações sexuais sobre
um código já formado pelos filósofos e os autores pagãos, dando a esse código uma outra
dimensão, ao analisar a pergunta tradicional nos debates da filosofia prática: “é necessário
casar-se?”65. Ao debaterem esta pergunta, os filósofos insistiam que devia governar o uso
dos aphrodisia a lei da natureza, sendo que a maioria das considerações que eles
desenvolviam abrangia “a natureza do homem como ser racional e como ser social
(necessidade de ter filhos para os dias da velhice, utilidade de se ter uma família em termos
de estatuto pessoal, obrigação de fornecer cidadãos ao Estado, homens à humanidade)” 66.
Clemente, neste capítulo, exclui, ainda acordando com Foucault, tudo aquilo relativo ao ser
social do homem, desenvolvendo considerações de naturalista a partir das quais pode tornar
visível aquilo que é o essencial de seu propósito:

a. A natureza indica que deve haver coextensão exacta entre a intenção


procriadora e o acto sexual.
b. Através dos jogos da contranatura que ela própria organiza, a natureza
mostra que este princípio de coextensão é um facto que podemos ler na
anatomia dos animais e uma exigência que condena aqueles que dela
escapam.
c. Este princípio interdita, pois, por um lado, todo acto que se realizaria fora
dos órgãos da fecundação – ‘princípio da hiena’ –, e, por outro lado, todo
acto que viesse a ser acrescentado à fecundação levada a cabo – ‘princípio
da lebre’67.

Clemente situa, então, a sua análise da pergunta “é necessário casar-se?”, que gira
em torno dos aphrodisia, sob o signo da natureza, entendida como aquela que os naturalistas
leem no mundo animal. Os filósofos, de acordo com Foucault, apesar de desejarem colocar

64
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Antropos, 2019. p. 35.
65
Ibid., p. 191.
66
Ibid., p. 47.
67
Ibid., p. 47-48.

33
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
os aphrodisia sob a lei da natureza e tentarem dela afastar o que era contranatureza, jamais
tinham situado a tal ponto sua análise.
No capítulo XXIII e no último do segundo Estromata68 que introduz o livro III, de acordo
com Foucault, Clemente responde (e não analisa) à mesma pergunta: “é necessário casar-
se?”. Seguindo as colocações de Foucault, no que diz respeito ao casamento, neste texto dos
Estromatas, Clemente também estabelece como fim a procriação de filhos, sendo que as
grandes regras éticas que devem presidir as relações dos cônjuges são:
O laço entre eles não deve ser da ordem do prazer e da volúpia, mas do
“Logos”; não se deve tratar a mulher como uma amante, nem dispersar a
semente a todos os ventos, mas observar antes os princípios de sobriedade –
regras que os próprios animais respeitam. Trata-se de um laço que não deve
romper-se; e, se o for, dever-se-á renunciar a outro casamento enquanto o
cônjuge ainda viver. O adultério, enfim, é interdito, e deve ser castigado69.

A maioria destes pontos se encontra em O Pedagogo, porém tratados com


amplitude muito maior, especialmente aqueles relativos às relações entre os cônjuges, que
aparecem no capítulo X do livro segundo. Assim sendo, para Foucault, são notórias a
continuidade e a homogeneidade entre os dois textos de Clemente,

[...] com a diferença de que Os Stronomatas falam do próprio casamento e de


seu valor em função da procriação, enquanto O pedagogo fala da procriação
como princípio de discriminação para as relações sexuais. Num caso, trata-
se da procriação como finalidade do casamento; no outro, tratar-se-á,
sobretudo, desta mesma procriação na economia de relações e actos
sexuais70.

Enfim, no capítulo X do livro segundo de O Pedagogo, o Kairós das relações e atos


sexuais entre pessoas casadas, sejam quais forem os seus pontos de avanço em direção à gnose
de Deus, integra um código em uma concepção religiosa da natureza, do Logos e da salvação.
Tendo em vista que se trata de uma regra para tais relações e atos sexuais, que devem ocorrer
unicamente no casamento, visando exclusivamente a fecundação, nunca durante as regras ou

68
Estronomatas é o terceiro livro de Clemente de Alexandria, assim designado por ele por lidar com uma
variedade de assuntos.
69
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 33.
70
Ibid., p. 88.

34
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
a gravidez e somente à noite, o termo kairós “tem o sentido estrito de ‘momento oportuno’”71.
Mas esse significado não é o único, pois

No vocabulário filosófico e sobretudo estoico, kairós se refere ao conjunto de


condições que podem fazer de uma acção sob outros aspectos permitida uma
acção que tenha efectivamente um valor positivo. O kairós não caracteriza
uma oportunidade de prudência, evitando os riscos e os perigos que
poderiam tornar má uma acção indiferente; define os critérios que uma açcão
concreta deve preencher para ser boa. Enquanto a lei separa o permitido do
proibido entre todas as acções positivas, o kairós confere o valor positivo de
uma acção real72.

Assim sendo, o Kairós da relação sexual, para Clemente, define-se pela ligação desta
última ao Logos, que comanda as ações convenientes. E este, segundo Foucault, é, ao mesmo
tempo, para Clemente, “princípio de acção recta e movimento de salvação, razão do mundo
real e palavra de Deus chamando à eternidade”73.
Para Foucault, “esta análise de Clemente está muito afastada dos temas que
encontraremos mais tarde em Santo Agostinho e que terão um papel muito mais
determinante para a cristalização”74 de uma moral cristã. O cristianismo mais austero e
pessimista de Agostinho afeta as relações sexuais de um índice negativo, mas “não foi
tanto o código [sexual] que foi reforçado, nem as relações sexuais mais estritamente
reprimidas; o que pouco a pouco se forma é um outro tipo de experiência”75, que faz o código
sexual organizado em torno do casamento e da procriação atuar de um modo novo e, com
isso, o corpo é tomado de uma maneira inteiramente diferente na conduta dos indivíduos. “E
em lugar de um regime de relações sexuais, ou dos aphrodisia, que se integra à regra geral
de uma vida reta, teremos uma relação fundamental à carne que atravessa a vida inteira e
subjaz às regras que se lhe impõem”76. Regras voltadas à anulação do mal e à manifestação
da verdade, cujas tecnologias são a disciplina sexual e a ascese monástica.

71
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 34.
72
Ibid., p. 34.
73
Ibid., p. 27.
74
Ibid., p. 62.
75
Ibid., p. 63.
76
Ibid., p. 64.

35
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

A CONSTITUIÇÃO FAMILIAR
A família ocupa um lugar de destaque no livro O Pedagogo, de Clemente de Alexandria.
O estudioso debruça-se sobre a sociedade como um todo em seu tratado de civilidade no
qual propõe as maneiras como cada membro da família deve se portar no interior dessa
instituição. Michel Foucault, em As Confissões da Carne (2018), realiza um paralelo da obra
de Alexandria para fazer emergir a estrutura familiar que constitui a sociedade. Assim, para
Foucault, “à família, entendida como célula matrimonial [...] elemento de base da sociedade
e o ponto de articulação principal entre a conduta moral dos indivíduos e o sistema de leis
universais ...??”77. Desse modo, a instituição família descrita por Clemente de Alexandria e
retomada por Michel Foucault estrutura-se com o casamento, ato que a torna uma instituição
social com os Alexandrinos, momento no qual as relações deixam de pertencer a esfera
privada e se tornam públicas reguladas pela igreja (religião) e pela sociedade (jurídica).
Para Foucault78, o casamento é constituído em uma esfera civil que submete cônjuges
a um regime de regras, ou seja, é um determinado procedimento de controle social, que tem
seus papeis bem demarcados pela igreja e sociedade civil. Desse modo, a instituição
matrimonial é alicerçada em um dispositivo de aliança que é descrito pelo filósofo como uma
“[...] estrutura em torno de um sistema de regras que define o permitido e o proibido, o
prescrito e o ilícito”79.
Assim, Michel Foucault explica-nos que a família é “o encontro indispensável do macho
e da fêmea para a procriação; a necessidade de prolongar essa conjunção numa ligação
estável para assegurar a educação da progenitura”80. A humanidade, em sua cadeia familiar,
cria e protege seus filhos até que se casem, ou que seus pais envelheçam para que sejam
cuidados pelos filhos. A cadeia social humana é cíclica e de dependência mútua, quem era

77
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 25. p. 271.
78
Ibid., loc. cit.
79
Ibid., p. 117.
80
Ibid., p. 153.

36
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
filho que precisava de cuidado se torna cuidador do pai. E esse regime cíclico social é uma
das causas da utilidade dos filhos como é evidenciado por Foucault81.
A estrutura familiar definida por Clemente de Alexandria tem papéis determinantes
para cada corpo social. Foucault, apresentando os princípios das diferenças descritas por
Clemente de Alexandria, ao afirmar que “O homem e a mulher são, e devem, portanto,
permanecer, segundo o Logos na natureza, distintos um do outro, o que não os impede nem
de pertencerem ao mesmo género humano”82. Com lugares sociais distintos demarcados e
regulados pela igreja, um cabeça e o outro coração, razão e sentimento, dois sentidos que
deveriam andar juntos, lado a lado, porém é determinado pela religião que um seja melhor
que o outro que um deva ser o guia estar à frente, e desmontando a metáfora, o homem-
razão é o comandante, cabe a ele prover e guiar a família, a mulher-coração é quem nutre a
casa, cuida dos filhos e deve obediência a Deus e a seu esposo.

Deus, ao criar primeiro o homem e ao dar-lhe a mulher ‘como auxiliar’,


segundo o texto da géneses, marcou bem que o homem ocupa a primeira
posição, e que está destinado a comandar. Ele é a cabeça: ‘Representemo-
nos o marido como ocupando o posto de chefe a mulher como ocupando o
lugar do corpo[...]. Paulo atribui a cada um o seu lugar; a uma autoridade e a
proteção, a outra a submissão83.

Nesse prisma, a religião explicita que os lugares sociais foram demarcados na criação
da humanidade ao enfatizar que Deus criou o homem primeiro e, por isso, ele é o líder e, só
depois criou a mulher que já, em seu nascimento, não possuía uma identidade própria para
igreja, inculcando a ideia de que Deus não a fez do barro como o homem e, sim da costela, o
que a insere em sua criação como parte do corpo do homem, sendo assim, sua propriedade
e tendo que ocupar o lugar de companheira submissa.
Clemente, em O Pedagogo84, afirma que o lugar da mulher ao lado do seu marido e
que o marido é o único ornamento que uma mulher honesta deva usar:

81
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 47.
82
Ibid., p. 44.
83
Ibid., p. 279.
84
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 44.

37
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Como aquela que não é casada ocupa-se de cuidar das coisas do senhor e do
que ela deve fazer para agradá-lo, pois esses cuidados não são partilhados.
Contudo uma mulher honesta que está ligada ao seu marido partilha a sua
vida entre Deus e seu esposo. [...] Uma mulher honesta está atada ao seu
marido com uma verdadeira e sincera piedade, sem disfarces e sem
artifícios85.

Observamos que o lugar da mulher é o de serviço. Ela enquanto solteira tem a


obrigação de servir a Deus, fazendo todas as coisas para seu agrado, e quando se casar deve
dividir seu tempo entre os cuidados com Deus e a dedicação e obediência ao seu marido.
Aqui, vemos funcionando o lugar de obediência e do cuidado do outro, pois como afirmado
anteriormente, a mulher é parte do homem, foi construída de sua costela e feita para seu
serviço. A mulher é inserida em condição de quem não consegue se governar, mas ao mesmo
tempo, desde os primórdios da história, está atrelada ao pecado, haja vista que pelo discurso
religioso vivemos em pecado por culpa de uma mulher, pois Eva escolheu comer a maça e a
ofereceu para Adão que se viu “enganado” por ela. Desse modo, a mulher se desvincula da
figura masculina de Deus, vinculando-se à serpente, metáfora para o demônio, que configura
o primeiro pacto entre o humano e o diabólico, assim, a mulher pela igreja deve ser vigiada,
já que a sua natureza é transgressora, de forma que a instituição da família é pautada pela
figura do homem, aquele que governa e sustenta a casa, a mulher quem deve cuidar de Deus
do marido e dos filhos e os filhos que são a grande dádiva divina e que devem honrar seus
pais e cuidar deles na velhice fechando, assim, o ciclo humano.

CORPO SOCIAL, CLEMENTE E FOUCAULT


No presente artigo, apresentamos a constituição do pedagogo como uma figura de
importância crucial para o funcionamento da igreja católica. Para explicar essa função,
partimos dos pressupostos de Michel Foucault em História da Sexualidade: As Confissões da
Carne e, de Clemente de Alexandria, O Pedagogo. Realizamos um diálogo seguindo os rastros
deixados por Foucault, que nortearam a rede que traçamos neste texto.

85
ALEXANDRIA, Clemente de. O Pedagogo. Trad. Iara Faria e José Eduardo Câmara de Barros Carneiro.
Campinas: Ecclesiae, 2014. p. 207.

38
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Para ambos, Foucault e Clemente, o pedagogo é descrito como o próprio Deus na
terra, aquele que é desprovido de pecado e, por isso, capaz de guiar e vigiar todos os
humanos pecadores. Assim, mostramos que o tratado de civilidade escrito por Clemente é
um livro de conduta moral para o exercício de poder entre a religião e a sociedade.
Ao pensarmos no corpo social que constitui os fiéis, deparamo-nos com a instituição
familiar que tem a sua constituição no matrimônio, tema amplamente debatido por Foucault
e Alexandria, que apresentam os preceitos filosóficos e cristãos no qual, estabelece o
casamento como um dogma que deva ser evitado, buscando uma vida santa longe dos
prazeres carnais, mas que se torna também necessário para manutenção da espécie humana,
quando o uso dos prazeres só é permitido no interior das relações conjugais e com a
finalidade da procriação.
Essa instituição familiar tem seus papeis demarcados pela própria escritura divina, a
qual determina que o homem seja o comando das relações, da economia familiar e social,
cabendo a ele participar da vida social, discutir finanças e empreendimento e do trabalho
externo e manual, enfim, é ele que promove sustento e segurança para casa; já o lugar da
mulher é no interior da casa, ela é a responsável pelos afazeres domésticos, seja em casa ou
na igreja. Ademais, cabe a ela o cuidado e a educação dos filhos, a obediência a Deus e ao
seu marido. Por fim, na hierarquia familiar, as crianças são tuteladas pela mãe a quem devem
obediência. Contudo, sendo do sexo masculino, elas galgam cargos nessa “empresa” familiar
e se tornam responsáveis pela família (assim como seu pai, a figura paterna), devido à morte
do pai ou por sua velhice. Por outro lado, sendo do sexo feminino, elas possuirão a
responsabilidade do cuidado com a família e o lugar de obediência a Deus. Após se casarem,
deverão obediência a Deus e ao seu marido.

39
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
PEDAGOGIZAÇÃO DA CARNE
A RELAÇÃO MESTRE-DISCÍPULO NO PENSAMENTO GRECO-ROMANO

Vilmar Prata

DE SÓCRATES A SÊNECA, UMA QUESTÃO DE PERSUASÃO


O cuidado de si e o governo de si, pressupõe, paulatinamente, o conhecimento de si.
Esse tripé que sustenta o indivíduo em seu processo de constituição de si enquanto sujeito
ao longo de toda sua vida, se dá a partir do seu olhar que se volta para si, para o próprio
corpo, para a própria carne, provocando inquietações, questionamentos e mudanças
constantes, que só terão fim com a sua morte. Esse movimento, por sua vez, está vinculado
ao sujeito-outro que emerge como mestre, como aquele que o orienta nesse processo de
conversão ao próprio eu, ou seja, à sua própria verdade, pois só é possível se conhecer a
partir do momento que se toma ciência da própria carne, se se aprende a cuidar da própria
vida em todo os aspectos, e, essa aprendizagem, só é possível mediante a interferência
persuasiva de um mestre.
Nesta linha, a constituição do si que se dá através dos exercícios de técnicas sugeridas
pelo mestre, que persuadindo o discípulo, fará surgir possíveis conflitos que o implicarão em
mudanças de posturas e novas atitudes que serão refletidas diretamente em sua carne, em
seu corpo, em sua própria vida. Foucault vai lembrar que “a carne deve ser compreendida
como um modo de experiência, quer dizer, como um modo de conhecimento e de
transformação de si por si, em função de uma certa relação entre anulação do mal e
manifestação da verdade.”86 A carne é, por excelência, o lugar da passagem, o início, o meio
e o fim de todo processo de constituição do indivíduo em sujeito. Este mal no qual o filósofo
se refere é exatamente todo tipo de vício e paixão que pode vir a fazer o indivíduo sucumbir
nessa passagem de constituição enquanto sujeito da própria verdade revelada pelo olhar
persuasivo do outro que, em vias de regra, é o mestre.

86
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Antropos,
2019. p. 64.

40
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Mas o que vem a ser exatamente esse olhar persuasivo? Para tentar responder esta
pergunta, é necessário passar pelo questionamento que Foucault faz ao se debruçar sobre a
relação de dois mestres com seus respectivos discípulos, que, a propósito, marcou todo seu
trabalho direcionado à constituição do sujeito a partir do pensamento greco-romano, a saber,
Sócrates e Alcebíades, Sêneca e Luciolo. A questão levantada por Foucault é: “Qual é esse si
do qual deve-se cuidar, e em que consiste esse cuidado?”87
Tomando esse problema é que se desenvolve toda a dinâmica para se pensar o
indivíduo que se constitui a partir do olhar do outro e que se questiona. Que não satisfeito
com os impulsos da própria carne, a confronta não sob um viés moralista, dualista e
pejorativo, que aliás, teremos posteriormente com o cristianismo, mas ao contrário, é sob
sua própria vontade de se tornar sujeito de si, sujeito de sua própria verdade que, diga-se de
passagem, se manifesta na própria carne, na inquietação oriunda de seus desejos, de seus
prazeres e de suas dores que vão deixando cicatrizes em sua carne.

SÓCRATES E ALCEBÍADES
De que o indivíduo para constituir-se e conhecer-se como sujeito deve ocupar-se
consigo, isso os gregos já haviam assimilado desde Sócrates, mas com quais objetivos o
indivíduo deve almejar se constituir e se conhecer é a grande questão. Alcebíades procura
Sócrates visando encontrar instruções que o levasse à condição de se colocar como alguém
capaz de governar a polis, queria ingenuamente, sem antes dar-se conta de si mesmo, do
próprio corpo, da própria carne, do quão complexo é sua própria condição de indivíduo, gerir
e governar toda uma comunidade de indivíduos que, entre as razões dos lugares sociais que
ocupavam, ele achava potencialmente em condições de ser instruído para servir como chefe
e referência de governamentalidade.
Como Sócrates era considerado o grande nome na ocasião, aquele capaz de oferecer
instruções coesas aos jovens no que se refere ao manejo social e ao conhecimento de si,
Alcebíades, sem pestanejar, vai direto àquele que julgava ser capaz de ajudá-lo em seus

87
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Trad. Karla Neves e Wanderson Flores do Nascimento. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 273.

41
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
objetivos. A propósito, Foucault vai chamar a atenção para três coisas importantes que
possibilitava o indivíduo a cuidar de si, a conhecer-se a si, e, consequentemente, também,
ser capaz de governar toda uma cidade naquela época, bem como, fazer de um homem
dentre tantos, capaz de despertar nos outros, o interesse pelo caminho ideal para alcançar
tais objetivos, sendo que, o próprio Sócrates vai se posicionar sendo possuidor dessas
respectivas condições:

Sócrates diz três coisas importantes, concernentes à maneira como convida


os demais a se ocuparem de si mesmos: 1) sua missão lhe foi confiada pelos
deuses e ele não a abandonará antes de seu último suspiro; 2) ele não exige
nenhuma recompensa por sua missão; ele é desinteressado; ele a cumpre por
bondade; 3) sua missão é útil para a cidade –mais útil que a vitória militar dos
atenienses em Olímpia -, porque ao ensinar os homens a se ocuparem de si
mesmos ele lhes ensina a se ocuparem da cidade.88

Que o si do qual tratamos aqui, o mesmo que é e foi alvo de diversas especulações
filosóficas ao longo da história, não deve e nem pode ser considerado homogêneo, essa
característica, Sócrates já havia percebido logo que começou a dedicar-se ao cuidado de si,
logo que se interessou pelo conhecimento de si, confirmando essa condição não só nele, mas
também no outro, assim que começou a orientar as pessoas que o procurava. O mesmo si do
qual se trata não deve ser tomado como um bloco de teorias e práticas previsíveis e coerentes
de um indivíduo em seus dois aspectos primordiais que o define como um ser vivo: carne e
espírito.
Para nos ajudar a refletirmos sobre essa questão, neste momento, é importante nos
determos um pouco em alguns aspectos relevantes dos quais Foucault enfatiza ao
aprofundar sua reflexão, levando em consideração a dinâmica que paira sobre o si de
Alcebíades:

Alcibíades tenta encontrar o si através de um movimento dialético. Quando


se cuida do corpo, não se cuida de si. O si não é reduzível a uma vestimenta,
a uma ferramenta ou a posses. Deve ser procurado no princípio que permite
utilizar tais ferramentas, um princípio que não pertence ao corpo, mas à alma.
É preciso inquietar-se com a alma – essa é a principal atividade do cuidado de

88
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Tradução de Karla Neves e Wanderson Flores do Nascimento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 268.

42
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
si. O cuidado de si é o cuidado com a atividade, e não preocupação com a
alma enquanto substância.89

De igual maneira, vale lembrar que este mesmo princípio, está entranhado no modo
do uso dos prazeres por Alcebíades em todo processo que provoca o deslocamento de sua
condição de um indivíduo jovem imaturo para um sujeito que almeja se constituir como tal,
num árduo e laborioso exercício de práticas cotidianas, sob a supervisão de um determinado
mestre, neste caso, Sócrates, que calçado pelo seu conhecimento filosófico e sabedoria, é
reconhecido tal qual por aqueles que o procura. Portanto, Foucault vai destacar ainda os
seguintes aspectos referentes a Alcebíades:

A segunda questão é: como convém cuidar desse princípio da atividade, como


cuidar da alma? Em que consiste esse cuidado? É preciso saber em que
consiste a alma. A alma não pode se conhecer, a menos que se a observe
dentro de um elemento que lhe seja semelhante, um espelho. A alma deve
contemplar o elemento divino. É nessa contemplação do elemento divino que
a alma descobrirá as regras suscetíveis de fundamentar um comportamento
e uma ação política justas. O esforço que permite à alma se conhecer é o
princípio sobre o qual pode se fundamentar o ato político justo, e Alcibíades
será um bom político na medida em que contemple sua alma em seu
elemento divino.90

Parece que neste momento, quando se começa a esclarecer as questões relacionadas


às duas características básicas que fazem parte da existência humana, das quais não há como
negar: carne e espírito, levando em consideração tudo que isso significa, Alcebíades
compreende o que deve fazer, qual caminho deve traçar e percorrer, o que e no que deve
ater sua atenção e energia para alcançar seus objetivos. Ao que se percebe completamente
equivocado ao supor que a escolha pela vida política, o eximiria de antes se dedicar a si
mesmo, o que aliás, ele nem havia se dado conta desse outro aspecto da vida, ou seja, antes
de querer governar os outros, teria que aprender a governar-se a si próprio e isso deveria,
conforme orientação de Sócrates, começar de dentro pra fora, ou seja, do espírito para a
carne, o que equivale a dizer, da alma para o corpo.

89
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Tradução de Karla Neves e Wanderson Flores do Nascimento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 273.
90
Ibid., loc. cit.

43
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Um movimento que deve ser focado exatamente no uso dos prazeres, ao que Foucault
afirma que “é necessário dominar os prazeres, a reserva, a moderação com a qual cada um
deve satisfazer os seus apetites depois de se ter tornado senhor deles” 91. Para além dessa
relação com os prazeres da carne, também há os desprazeres que o sujeito também deve
aprender a administrar, esse domínio sobre as vontades da carne, refletidos na contenção
dos vícios e das paixões em todas as suas dimensões, limitações e os modos pelos quais o
indivíduo lida com cada uma delas: apetites, desejos, medo, doença e, por fim, a morte.

A PEDAGOGIZAÇÃO DA CARNE NO PENSAMENTO GRECO-ROMANO

É neste sentido que Foucault constata que os deslocamentos realizados pelo indivíduo
à condição de sujeito que se constitui a partir desse processo de pedagogização do próprio
corpo, se inicia quando este mesmo indivíduo se revela para si e para o outro e decide falar
da própria vida, ou seja, decide se confessar, falar a verdade sobre si, sobre sua própria carne.
Porém, não se trata de falar de qualquer maneira sobre si e para qualquer um, ao contrário,
é quando ele dá o primeiro passo em direção ao seu próprio eu, buscando encontrar e expor
ao seu mestre aquilo que lhe é tão caro e em relevante proporção, desconhecido por ele
mesmo: seu próprio Eu. O mestre, por sua vez, atentamente, dedica atenção em todos os
detalhes, para que, no decorrer desse processo de redescoberta de si realizada pelo seu
discípulo, possa ajudá-lo a vislumbrar o que de fato lhe pertence enquanto verdade e o que
era engano da carne, dos próprios julgamentos e Synkatathesis (assentimentos) em relação
às phantasias que fazia de si e do o mundo à sua volta.
Sobre esses Synkatathesis (assentimentos) em relação às phantasias que se
estabelecem a partir das relações que o sujeito elabora ao seu corpo, aos anseios insaciáveis
de sua carne, Dinucci vai esclarecer que

Synkatathesis (assentimento) é a ação da mente de aprovar uma phantasia.


É do sábio dar seu assentimento apenas à phantasia kataleptike
(compreensiva) e negar seu assentimento à phantasia akataleptos (não
compreensiva). Além disso, o assentimento do sábio, baseado em

91
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As confissões da carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Antropos,
2019. p. 48.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
conhecimento, é firme e estável, ao contrário do assentimento do ignorante,
que, ainda que feito a uma phantasia kataleptike, é instável e fraco por não
se amparar em conhecimento, mas em mera opinião.92

Nesta direção, o que vai conferir veracidade, tranquilidade, ou seja, uma estado de
ataraxia, conforme a própria compreensão grega, no modo como esse sujeito se relaciona
consigo e com o outro, vai depender, única, exclusiva e diretamente desses processos de
aceitação e negação das boas e más paixões, evitando ao máximo se perder nos vícios que
podem advir e colocar em risco sua vida em todas as esferas ligadas à sua carne enquanto
objeto de prazer e dor, que podem ser acometida e prejudicada conforme suas decisões. Para
tanto, tais tomadas de decisões quando embasadas nas sábias opiniões de um mestre
comprometido com a sabedoria e que também leva a sério essa constituição de si, e que,
principalmente, tentará orientá-lo sem lhe roubar o direito da última palavra no que
corresponde às decisões tomadas, a probabilidade de um resultado positivo ao final desse
processo é consideravelmente alta e esperada.
Notemos que não há uma negação dos desejos da carne, conforme ocorre no
cristianismo, mas há um enfrentamento do próprio eu manifestado na carne em todas as
suas nuances. Não há fuga, nem tampouco um abandono do próprio corpo aos prazeres, ou
à mercê da responsabilidade do outro, longe disso, o sujeito aprende a se comprometer
consigo mesmo, assumindo sua própria carne, estabelecendo um diálogo pedagógico
consigo, elaborando critérios, medidas, técnicas, que o levarão às práticas de si, sem se eximir
do compromisso, da responsabilidade sobre sua própria vida, sem atribuir suas falhas, seus
‘pecados’, como classificará o cristianismo, ao outro ou ainda, a uma força superior. Dessa
maneira, o responsável por si, tanto para os gregos como para os estoicos, ao contrário do
cristianismo, não é mais o outro, enquanto mestre, muito menos forças sobrenaturais,
deuses e demônios. Mas o sujeito é que torna-se responsável pelo próprio corpo, pela própria
carne e por tudo que isso engloba.
Se para os gregos a inserção na vida política era almejada pelos jovens em geral, se
governar o outro era uma posição estatuaria que qualificava o lugar hierárquico do indivíduo

92
DINUCCI, Aldo. A relação entre virtudes e vícios e paixões boas e más no estoicismo. In: Journal of Philosophy, n. 30,
2019. p. 319-332.

45
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
diante da sociedade, permitindo-lhe o exercício pleno do poder, diferenciando-lhe dos
demais. Essa motivação quase sempre fazia muitos homens tomarem decisões equivocadas
sobre o que de fato significava governar a cidade e negligenciavam em nome muitas vezes da
tirania e arrogância que o cargo poderia colaborar, as condições primevas e essenciais, a
saber, a ética, pautada pelo exercício da verdade, vinculada diretamente à virtude em todas
as suas implicações. Justamente por estas razões, para ajudar aos que almejavam cargos
políticos não incorrerem em erros que comprometeriam a si mesmos e toda a polis, foi que
Sócrates se dispôs a colaborar nesse processo de conhecimento de si.
Nota-se que com as escolas filosóficas que surgiram posteriormente a este período
grego e se desenvolveram no helenismo, ocorre um deslocamento considerável da motivação
e o objetivo passa a ser exatamente o contrário, no que se refere ao que Foucault vai
identificar como um deslocamento do “problema da relação entre o cuidado de si e a
atividade política. Por volta do início do período helenístico e do Império, a questão é: quando
será melhor afastar-se da atividade política para ocupar-se de si?”93 e enfatiza que se “para
Sócrates, ocupar-se de si é o dever de um jovem homem, para seguir carreira política, mas
mais tarde, no decorrer do período helenístico, preocupar-se consigo tornar-se-á o dever
permanente de toda uma vida”.94 Ou seja, o cuidado de si deixa de ser um privilégio de
poucos, deixa de se limitar a questões da idade ou mesmo econômica como era para os
gregos, deixando de ter como finalidade exclusivamente a vida política, passando para uma
esfera mais ampla e universal, considerando a constituição de si, a constituição do sujeito
como foco principal.
Foucault reforça essa ideia ao dizer que

Primeiramente, ocupar-se de si na época helenística e sob o Império não


constitui somente uma preparação para a vida política. Ocupar-se consigo
tornou-se um princípio universal. Deve-se afastar da política para melhor
ocupar-se consigo mesmo. Em segundo lugar, cuidar de si mesmo não é
simplesmente uma obrigação da qual se incumbem as pessoas jovens

93
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Tradução de Karla Neves e Wanderson Flores do Nascimento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 274.
94
Ibid., loc. cit.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
preocupadas com sua educação; é uma maneira de viver, da qual cada um
deve se incumbir ao longo de sua vida.95

No período que se segue, cuidar de si exige algo que vai além desses requisitos gregos
e objetivos políticos, o cuidado de si irá exigir primeiramente que o indivíduo queira, deseje
aprender as técnicas que possibilitarão essa tarefa de modo autêntico, e mais além,
reconhecer com a devida sinceridade e humildade o outro como colaborador indispensável
para alcançar êxito nesse itinerário. É justamente este outro que se implica, que ocupará o
lugar de mestre, pedagogo ou orientador, devidamente, como já falamos, preparado para tal
tarefa. E, os filósofos helenistas, de modo geral, vão reconhecer a necessidade e aconselhar
que, se possível, faz-se necessário que haja justamente esse afastamento das práticas
políticas, que o indivíduo se afaste de toda perturbação, de toda distração que o desvie do
foco principal que passa a ser basicamente o cuidado de si.
Por fim, não podemos deixar de enfatizar, que não se trata de uma prática disciplinar
que tem início, meio e fim, e, com a qual o indivíduo alcança seus objetivos. Ao contrário,
vislumbra-se o despertar de uma consciência que todo esse processo só se finda com a morte,
que o cuidado de si que leva ao governo de si e, na sequência, ao conhecimento de si, situa
o indivíduo em sua constituição enquanto sujeito capaz de se vê de dentro pra fora, mais
ainda, de elaborar estratégias disciplinares que colaborarão em sua evolução em um
movimento dinâmico e cotidiano, que exige constante atenção por parte daquele que se
propõe a tal empreitada: ao comedido uso dos prazeres da carne, se esquivando de todo tipo
de vício que provoque um desgoverno de si.

SÊNECA E LUCÍOLO
Após esse breve retorno aos gregos, proponho uma guinada em direção ao helenismo,
no foco dessa reflexão, que são as práticas de constituição de si, por meio da relação mestre
e discípulo no estoicismo, a partir da confissão que emerge das entranhas da carne deste
sujeito que fala de si para o outro. Parece-nos que já ficou claro que nesta corrente filosófica

95
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Tradução de Karla Neves e Wanderson Flores do Nascimento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 277.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
não existe lugar para a imposição, para a obrigação, para o convencimento por meio da força
bruta, seja de caráter físico ou psíquico. O corpo não é forçado a nada, ao contrário, a carne
é persuadida, o sujeito carnal é convidado a experimentar outras formas de se relacionar
consigo a partir de seu próprio corpo e sensações carnais. Os mestres estoicos, não impõem
seus ensinamentos, não obrigam seus discípulos a seguirem suas orientações, em suma, não
cabe outra coisa ao mestre estoico, a não ser, convencer o seu discípulo pela persuasão e
pelo exemplo com a própria vida manifestada em sua carne, nos atos de seu próprio corpo.
Foucault deixa claro que “não é que se trate assim de opor a ordem humana à
natureza, mas antes de mostrar como a natureza nela se manifesta. Toda a nossa vida pode
decorrer observando as leis da natureza, se dominarmos os nossos desejos.” 96 E esse domínio
de si era exatamente o que Sêneca queria apresentar a Lucíolo. Um controle de si que passa
pela persuasão do outro, que nos confere as técnicas de também aprender a persuadir a si
próprio, escolhendo com cautela e responsabilidade o modo como o corpo vai reagir diante
das investidas instintivas que emerge à flor da pele, na carne viva deste sujeito. Nesse viés,
Foucault reconhece que essa investida do sujeito em direção à própria carne só é possível a
partir do uso prático da razão, pois “o domínio que a razão prescreve e que define as formas
legítimas do comportamento é ainda uma maneira de se escutar o logos que rege a
natureza.”97
Este sujeito do qual trata os estoicos e que Foucault não deixa passar despercebido,
não é o mesmo sujeito do qual o cristianismo posteriormente vai elencar. No estoicismo
temos um sujeito cuja carne e espírito são uma coisa só, o corpo é o ponto onde essas duas
esferas se fundem e, não há como pensar, não há como conceber o sujeito sem essa junção.
Em contrapartida, no cristianismo, vemos emergir um sujeito quebrado, partido em dois,
corpo e alma, carne e espírito, cujo mal está vinculado a tudo que diz respeito à sua carne, e,
consequentemente, o bem está vinculado ao seu espírito, que, diga-se de passagem, deve
travar uma guerra contra seu próprio corpo para manter o controle. Tudo isso respaldado

96
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As confissões da carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Antropos,
2019. p. 49.
97
Ibid., p. 50.

48
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
pelas diretrizes eclesiásticas que tomam Deus como o bem e a verdade suprema, encarnada
e digna de reconhecimento por todos os homens e mulheres.
Vale lembrar também que os filósofos gregos não aplicavam seus ensinamentos de
forma tirânica, por imposição. Ao contrário, deve-se reconhecer que, inclusive eles serviram
de inspiração, em especial Sócrates com sua máxima aplicada à vida: conhece-te a ti mesmo
(γνῶθι σεαυτόν). Mas para os filósofos da Stoá, o que muda, como já foi colocado, é o objeto
e o objetivo, que deixa de ser exclusivamente político, o governo da polis. Passando a ser o
governo do próprio si, tornando o sujeito, ao mesmo tempo, objeto e objetivo de seus
esforços no cuidado de si, no governo de si e no conhecimento de si. Quando, por sinal, a
escrita epistolar ganha ainda mais espaço e dedicação por parte dos envolvidos e
interessados em tais práticas. Tanto que Foucault constata que

Um novo cuidado de si implica uma nova experiência de si. Pode-se ver qual
forma toma essa nova experiência de si nos séculos I e II, nos quais a
introspecção se torna cada vez mais explorada. Uma relação se forma entre
a escrita e a vigilância. Presta-se atenção às nuanças da vida, aos estados da
alma e à leitura, e o ato de escrever intensifica e aprofunda a experiência de
si. Todo um campo de experiências que não existia anteriormente se abre.98

Essa prática metodológica, como assim podemos chamar, encontramos claramente


nas cartas de Sêneca a Lucíolo, aliás, todos os assuntos levantados e tratados entre os dois
respeitava a linha tênue que limitava o papel de cada um nesse jogo pedagógico,
desenvolvido e materializado por meio da escrita em suas respectivas cartas. A escrita de si
presente nas cartas permite a iluminação do olhar do outro, a análise se abre num diálogo
que pode favorecer ambas as partes, essa mesma escrita de si permite um deslocamento em
duas vias, tanto para fora de si, como para dentro de si. O ponto de partida desses diálogos
epistolares é, exatamente, a carne. A carne do sujeito que sente, que fala, que goza e que
sofre, e a meta, tanto do mestre como do discípulo, é aprender a administrar, a governar
essas sensações, sem se perder na profusão de possibilidades que essa carne impõe ao
sujeito. Assim, o indivíduo pretende-se ser sujeito de si e não apenas, a carne de si.

98
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Tradução de Karla Neves e Wanderson Flores do Nascimento.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 275.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Nesta esteira, a primeira atitude de Lucíolo ao se predispor como discípulo estoico, e,
consequentemente, a ser instruído por Sêneca, um mestre que se banhou e bebeu das águas
do estoicismo, é de ter uma atitude franca, transparente e sem reservas, apresentando todas
as suas dúvidas, seus anseios, seus medos e desejos mediante as diversas situações da vida
que o aflige. Ao mesmo tempo que é um gesto de voltar-se a si, de introspecção como nos
lembra Foucault, trata-se ao mesmo tempo de um gesto de abertura, de confiança e partilha,
que mais tarde, esse mesmo gesto ganhará outros contornos no cristianismo, sendo
denominado, como já mencionado, de confissão. Verbalizando sua vida em palavras
transcritas nas cartas, confessando a própria carne, não se pode esconder nada que lhe afete,
direta ou indiretamente, seja prazer ou dor: suas dificuldades, suas fraquezas e vícios, físicos
e psíquicos; trata-se de passar sua vida cotidiana em exame criterioso e expô-lo ao outro.
Portanto, antes de dar o primeiro passo para dentro de si, o discípulo estoico deve se
direcionar a alguém que, por motivos pessoais, variados e relevantes, é escolhido por ele,
como mestre e tutor para orientá-lo nos assuntos elencados. Foucault compara essa relação
mestre-discípulo estoico pautada pela verdade de si, como a de um paciente e seu médico,
dando exatamente, uma tonalidade carnal a este jogo pedagógico

A verdade é-lhe devida, não como uma necessidade, para que possa exercer
o seu poder e escolher os remédios apropriados, mas como uma obrigação
do lado daquele que quer curar-se. Trata-se, para o doente, não de tornar
possível a terapêutica informando o médico, mas de merecer a cura, pelo
preço da verdade.99

No que confere a essa verdade de si, a fala do mestre é direcionada ao seu discípulo
atento e esperançoso por aprender a conhecer a si mesmo e fazer refletir na própria carne
esse conhecimento e não apenas nos discursos proferidos, mas também, e principalmente,
na própria vida, no desejo pela verdade refletida em suas ações e decisões diante de todas
as situações da vida, reconhecendo que, essencialmente o interesse do mestre é prestar um

99
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As confissões da carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Antropos,
2019. p. 116.

50
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
serviço de orientação baseado nas próprias experiências enquanto sujeito que se constitui a
cada dia. Portanto, o filósofo francês vai perceber que

É fácil constatar quão grande, em toda a moral antiga, em toda a cultura grega
e romana, foi a importância do princípio: “é preciso dizer a verdade sobre si
mesmo”. Podemos citar, em apoio a ilustração dessa importância na cultura
antiga, práticas tão frequentemente, tão constantemente, tão
continuamente recomendadas como o exame de consciência prescrito pelos
pitagóricos ou pelos estoicos, de que Sêneca deu exemplo tão desenvolvidos
e que voltamos a encontrar em Marco Aurélio. Podemos citar também
algumas práticas como essas correspondências, essas trocas de cartas morais,
espirituais, de que Sêneca fez uso.100

Desta forma, de modo geral, as cartas escritas por Sêneca aos seus remetentes
ultrapassam os limites do que podemos considerar como orientações disciplinares sobre as
paixões da carne, mas partem exclusivamente do exame de consciência feito pelo discípulo,
que após se examinar, se dirige ao seu mestre, expondo a verdade de si, se revelando ao
outro e também a si mesmo, descobrindo o que estava até então encoberto numa penumbra
erguida ao longo dos anos já vividos, calçados por tradições e ensinamentos muitas vezes
equivocados sobre o que é verdadeiramente ser um homem ou uma mulher, e mais ainda,
ser sujeito de si, capaz de se governar e governar o outro.
Ser mestre, por sua vez, à luz do estoicismo, não significa possuir um lugar de destaque
e privilégio, dono de um saber estático e intocável, tampouco senhor de uma verdade
inquestionável. Ao contrário, podemos testemunhar nas cartas que Sêneca escreve a Lucíolo
que, como mestre, ele também está em processo de descoberta, enfrentamento e
aperfeiçoamento de si que, ao escrever suas cartas, acaba por aprimorar ainda mais as
observâncias ideais a que se refere, afinal, já apontava Plutarco numa palavra, no De
tranquilitate, que se trata de “préstimos recíprocos. Quem ensina instrui-se”.
Vale lembrar que o próprio Sêneca em momento algum se colocou no lugar de sábio,
aliás, nunca teve essa pretensão, afirmando em outro momento de sua vida sobre o fato de
se considerar ou não um homem sábio:

100
FOUCAULT, Michel. A Coragem da Verdade. O governo de si e dos outros II. Curso no Collége de France (1983-1984).
Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2011. p. 05.

51
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Eu não sou sábio e (que tua maledicência seja satisfeita) não o serei. Exige de
mim, portanto, não que eu seja igual aos bons, mas unicamente melhor que
os maus. Basta-me a cada dia cortar algum de meus vícios e refrear meus
desvarios.101

Desta maneira, não cabe ao mestre estoico autoritarismo e arrogância, não cabe o
exercício de um poder impositivo, da dominação e controle do corpo do outro, mas tão
somente, persuasivo. Convencer o discípulo do que é certo ou errado por palavras, mas para
além delas, pelos gestos, na prática, na própria vida, se mostrando como modelo a ser
observado diretamente em sua relação com a própria carne, com os próprios desejos do
corpo. E, para além dessa postura persuasiva, é também está aberto aos próprios
questionamentos e aos questionamentos e discordâncias do discípulo, caso este, não
concorde ou não comungue da orientação dada. Trata-se, por fim, de uma experiência com
a carne do outro e com a própria carne.

O GOVERNO DE SI E DO OUTRO: A TESSITURA ENVIESADA DE UMA RELAÇÃO

Essa relação persuasiva estabelecida entre mestre e discípulo no estoicismo leva ao


que podemos chamar de flexibilidade dos lugares estabelecidos de quem ensina e de quem
aprende. Os envolvidos nos lugares que ocupam, de quem orienta e de quem é orientado,
não estão rigidamente fixados, ao contrário, Sêneca, como mestre, também aprende com
suas próprias cartas, e, principalmente, com a humildade de um mestre estoico de
reconhecer equívocos e fraquezas, estando em processo contínuo de aprimoramento dos
exercícios que colaboram para o cuidado de si e do controle dos desejos da carne.
Quanto ao discípulo, ao acumular sabedoria suficiente, também pode exercer a
função de mestre, ajudando outros nas práticas das técnicas que aprimoram o caminhar
rumo a si mesmo. Nesse sentido, nos lembra Foucault que

O serviço de alma prestado pelo escritor ao seu correspondente lhe seja


restituído sob a forma de “conselho equitativo”; à medida que progride,
aquele que é orientado vai-se tornando cada vez mais capaz de, por seu

101
Sêneca, Da vida Feliz (XVII, 3).

52
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
turno, dar conselhos, exortar e consolar aquele que tomou a iniciativa de o
auxiliar: o sentido único da direção não se mantém por muito tempo; ela
serve de quadro a trocas que a levam a tornar-se mais igualitária.102

O primordial nesta questão vista à luz de Foucault, é enxergar o sujeito como o ponto
exato no qual a verdade se personifica mas não se estagna, uma verdade que se lança em
direção ao ethos referenciado pelos gregos, que vai além do corpo, ou seja, que vai além da
carne e das respectivas limitações que ela impõe a este sujeito, pautado e moldado em
palavras confessadas, num modo autêntico de se posicionar e de se direcionar em relação ao
próprio corpo, realizando, desta maneira, a conexão do cuidado de si ao conhecimento de si
que tem seu reflexo direto numa ética de governo por meio das técnicas aprendidas junto ao
mestre.
A constituição do cuidado de si à luz de uma prática interpessoal é no mínimo
desafiadora para os envolvidos, principalmente quando isso envolve a disciplinarização dos
desejos por meio do controle do uso dos prazeres da carne. De igual maneira, a resignação
em relação às dores inevitáveis que surgem com as doenças, e por fim, a morte, que sucumbe
todas as sensações aprendidas, desejadas e negadas por esse corpo, feito de carne que goza,
mas que também, em maior ou igual proporção sofre tanto quanto. Diante de tais condições,
Foucault vai constatar que

O cuidado de si é urna espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne


dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação,
um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no
curso da existência.103

Nesse cenário, as trocas de informações, de experiências, de dúvidas e


esclarecimentos, elevam-se o conhecimento de si e do outro e viabiliza um autogoverno mais
coeso e alinhado com a verdade de si, de modo particular, no caso de Sêneca e Lucíolo, a
verdade de si revelada através dos ensinamentos estoicos que configuram toda escrita das
cartas, cujo foco é, em suma, aprender a governar o próprio corpo, a própria carne. O

102
FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: O que é um autor? Trad. Eliza Monteiro e Inez Autran Dourado Barbosa. Lisboa:
Passagens, 1992. p. 148.
103
FOUCAULT, Michel, A Hermenêutica do Sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 2006. p. 11.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
aguilhão do qual refere Foucault só pode ser cravado, portanto, mediante essa relação franca
e disposta entre um sujeito que orienta e um sujeito que é orientado, sem, conforme já
mostrado, fixar esses lugares.
Nessa linha, os desejos oriundos da própria carne, os jogos de poder e saber,
sentimentos que se misturam em tendências do corpo e da alma, verdades dissimuladas pelo
próprio sujeito no esforço em ouvir a voz do mestre, enfim, tudo isso faz movimentar as
relações de si para consigo, num olhar para o próprio eu que se ilumina pela voz do mestre.
Buscando incessantemente o exercício mais apropriado que possa viabilizar eficácia e
autenticidade no processo do cuidado de si, do governo de si, e por fim, do conhecimento.
Neste cenário, no qual o sujeito se confronta com o próprio olhar pela escuta das orientações
dadas pelo mestre, Foucault vai indicar que, trata-se de “um olhar sobre si mesmo, olhar
sobre si mesmo em que, memorizando o que se acabou de ouvir, vê-se incrustar-se e aos
poucos fazer-se tema no interior da alma que acabou de escutar.”104
É, portanto, pela escuta atenta à voz do mestre que o indivíduo terá as condições
necessárias para olhar para si mesmo sem qualquer tipo de obscuridade ou engano, nesse
sentido, a voz do mestre é uma lanterna que ilumina os olhos do discípulo neste caminhar
para dentro de si. Nesses jogos de saber e poder, pela fala do mestre e pela escuta do
discípulo, bem como pelo seus respectivos olhares que se cruzam e que estabelecem o
cenário propício para o governo de si e do outro, e esta, creio eu, é justamente a técnica
utilizada por Sêneca a partir do estoicismo, o olhar do mestre e do discípulo que se
atravessam horizontalmente, sem uma hierarquia opressora e rígida que fixa o lugar de quem
sabe e de quem não sabe, de quem é portador de uma verdade e de quem não é, como aliás,
ocorre posteriormente no cristianismo. É neste método que Sêneca aposta para com Lucíolo,
em seu processo de conhecimento de si, compreendido como o caminho que passa
inevitavelmente pelo conhecimento do outro, e, ambos não acontecem sem as práticas do
cuidado si e do cuidado do outro.

104
FOUCAULT, Michel, A Hermenêutica do Sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 2006. p. 422.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
A CARNE QUE CONSTITUI O SUJEITO
Neste sentido, é possível notar um conjunto de variadas exigências de técnicas
disciplinares, que buscam a verdade deste sujeito que se revela por e a partir da própria carne
e que reflete pelo olhar e pela sensação da carne do outro, que, por sua vez, nesse jogo de
olhar reflexivo e de contatos físicos, ambos se esforçam para aprimorar tais práticas, visando
a autenticidade da verdade em um contínuo jogo de poder, capaz de sustentar toda dinâmica
da constituição do sujeito na relação de si para consigo e na relação de si para com o outro,
tomando como cenário, como lugar de partida e de chegada, seus respectivos corpos, suas
respectivas carnes, no ouvir, no falar e no olhar, num ato que pode ser tão libertador quanto
opressor, a depender de quem os executa: a confissão.
O que nos parece ficar claro é que o sujeito sozinho não seria capaz de evoluir na busca
da verdade de si, por ele mesmo, sua ação se perderia num esforço estéril e ineficaz do
controle dos desejos da carne, desenvolvendo apenas vícios e ilusões a seu respeito,
moldurando uma verdade frágil e débil que se dissiparia ao primeiro rompante dos instintos
carnais. O mestre ao voltar seu olhar e sua voz para seu discípulo não perde o foco de si
mesmo, pois na prática, como Foucault afirma, a função de mestre “é um trabalho que visa
descobrir não só ao outro, mas também a si mesmo, o que se passa nos mistérios do coração
e nas suas sombras indistintas.”105 Orientar o outro, sob esta perspectiva é, também se
orientar e se reavaliar constantemente em e na sua própria carne.
Tais práticas de si estão diretamente vinculadas à relação do sujeito com o outro que,
também, como sujeito, busca sua própria verdade. Tais práticas se organizam numa interação
transformadora, baseada num olhar questionador do outro para consigo, e,
consequentemente, exigindo que o sujeito olhe para si mesmo através do olhar do outro, se
desvencilhando de qualquer tipo de conceito que possa maquiar, distorcer, ou mesmo
mascarar o processo de constituição de si e anestesiar sua carne, lhe privando de sentir sua
própria existência, por mais dolorosa e prazerosa que possa vir a ser.

105
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As confissões da carne. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Antropos,
2019. p. 161.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Neste viés, o eu e o outro, se ligam numa relação tensionada pelas práticas de saber e
poder configuradas na carne dos sujeitos envolvidos, que vão de encontro a uma dinâmica
de governamentalidade, que abre caminho para o deslocamento da condição de indivíduo
para sujeito, entendida aqui, conforme Foucault, como o “o indivíduo-sujeito que emerge
tão-somente no cruzamento entre uma técnica de dominação e uma técnica de si” 106, que
englobam todas as nuances do que é ser sujeito e do como se constituir como sujeito a partir
do que nos é apresentado pela filosofia antiga, desde os gregos aos heleníscos, servindo
como base e ponto de apoio e de partida para o cristianismo.
Ao passo que Foucault vai traçar um paralelo, esclarecendo que “a filosofia antiga e o
ascetismo cristão se colocam, nós os vemos, sob o mesmo signo: aquele do cuidado de si”107.
Ao que todo ocidente projetou enquanto o que poderia vir a ser o conhecimento de si à
sombra de uma verdade regulamentada e orientada como padrão do sujeito ocidental até
nossos dias. Foucault se debruça sem poupar esforços para entender tais técnicas de
constituição do sujeito, bem como, para tentar compreender o próprio sujeito que se
constitui por meio de práticas e exames constantes de si e do outro. Voltando seu olhar
atento aos processos de constituição de si visíveis e palpáveis pela carne, que se dão a partir
das respectivas práticas que delineiam as fragmentadas relações de poder e de dominação
de um sujeito para com o outro, num movimento que poderíamos chamar de horizontal, mas
que, por muitas vezes, ao longo da história, esbarra em tentativas que se confundem na
aplicação impiedosa da tirania, abrindo fendas obscuras na história da constituição do sujeito
deixando cicatrizes indeléveis nas carnes desses corpos.

106
FOUCAULT, Michel, A Hermenêutica do Sujeito. Trad. Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo:
Martins Fontes, 2006. p. 11. p. 637.
107
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos I. Tradução de Karla Neves e Wanderson Flores do
Nascimento. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988. p. 269.

56
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O CORPO ESTEJA CONVOSCO E ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS
Nilton Milanez
Ismarina Mendonça de Moura
Beatriz Souza Almeida

Os questionamentos de Michel Foucault abrem uma constelação de relações entre


poder e identidade, vinculando-se às práticas sexuais. Observamos essa visada tanto em seus
estudos anteriores às Confissões da Carne108quanto em suas entrevistas nos anos 1980 109,
visando, sobretudo, refletir e problematizar sobre um modo de vida e os modos de enunciar
tais modalidades que remontam a experiências do antigo mundo cristão. Desse modo,
Foucault evidencia amplamente a questão das identidades sociais nos domínios da
sexualidade entrelaçadas às relações sexuais, ao enfrentamento do desejo em um campo
bastante específico: a necessidade de um dizer verdadeiro sobre o sexo e a sexualidade.
Sob essa perspectiva, buscamos, aqui, nos lançarmos, primeiro, a uma delimitação nos
temas que Foucault discute em As Confissões da Carne, tratando da pedagogização do Logos,
depois, da forma como isso conduziria a um discurso fora da norma jurídico-biológica cristã,
determinando uma posição contra-natureza dos sujeitos. Segundo, para conter essas
posturas contra-naturas se exercem práticas de confissão na tentativa de se produzir um
dizer verdadeiro. Terceiro, tal processo desemboca em um certo tipo de direção espiritual
que guia os sujeitos em sua trajetória coercitiva, obrigando-os a confessar e produzir
verdades segundo a normatização cristã. Em quarto lugar, nos propomosa compreender
essas discussões junto à problematização do corpo enquanto figura que materializa o jogo
das práticas sexuais e, por isso, exige um corpo que confessa, um corpo que se dobra a
normalizações dos prazeres, subsistindo em meio aoinflamento de um discurso do desejo, a
fim de disciplinar o uso dos prazeres.

108
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque
e José Augusto Guilhon Albuquerque. 13ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque
e José Augusto Guilhon Albuquerque. 8ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III: o cuidado de si. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e
José Augusto Guilhon Albuquerque. 8ª ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2005.
109
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e a política da identidade. In: Ditos e Escritos
IX. Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 251-263.

57
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Desenvolvemos, portanto, um trabalho de leitura sobre As Confissões da Carne nos
fixando emtemas que Foucault propôs, alinhavando-os ao modo como o corpo foi
socialmente se delineando, a partir desse retorno aos modos relacionais do sujeito se compor
a partir de antigas práticas cristãs. Nesse sentido, tomamos as referências elencadas por
Foucault e as vasculhamos para que pudéssemos compreender o caminho que o filósofo
trilhou para configurar a exigência de um dizer verdadeiro sobre a sexualidade em períodos
específicos da história. Isso nos levou a propor, às vezes, muito pequenas e breves indicações
dos estados atuais a que chegamos, desde que nos submetemos às condições de um Logos
cristão, das quais, na maioria das vezes, não conseguimos desviar. Dessa feita, algumas vezes
falamos mais amplamente sobre o processo da confissão e seu escopo no viés de uma
verbalização forçada, outras expandimos as referências de Foucault sobre as Conferências de
Cassiano para, efetivamente, expor estratos da antiga história pedagógica do cristianismo e
sua função na produção de um saber sobre o corpo sexual e suas adversidades, que se
prolongam até nossa atualidade.

O CORPO E A PEDAGOGIA DO LOGOS


Costumamos pensar sobre o presente observando a ação dos corpos, os
atravessamentos que nos constituem e a emergência de discursos que impulsionam nossas
vidas e modos de ser. Quando decidimos pensar sobre as questões da sexualidade em nosso
presente, por exemplo, buscamos estratos históricos específicos, encontramos um limiar e,
por vezes, esquecemos de considerar questões que nos parecem irrelevantes, mas que, se
observadas sob um olhar atento, mostram-se notáveis.
Assim, ao lermos As Confissões da Carne pousamos nosso olhar sob o Logos, que
posteriormente nos revelou uma filigrana de possibilidades para pensarmos as questões do
corpo e da sexualidade. Tomamos o Logos, então, como um fio condutor para pensar as
problemáticas levantadas por Foucault. A surgência do Logos nas questões da sexualidade
em Foucault nos conduz a uma busca do Logos na própria filosofia, para só então entender
esse deslocamento para a sexualidade, para compreender quais fatores o fez emergir e, por
fim, como ele se constitui nos diferentes postulados filosóficos.

58
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Para fazermos um breve percurso do Logos, tomaremos primeiro os registros
históricos com os filósofos pré-socráticos que empregavam o termo como uma forma de se
entender a natureza a partir da compreensão dos princípios constitutivos de tudo que existe.
Este modo de compreender o Logos edifica-se na transição na forma como os gregos
explicavam, ou buscavam explicar, os fenômenos que, até então, eram atribuídos somente
aos deuses, em uma visão mitológica do mundo.
Neste primeiro fio temos esta transição da visão mitológica do mundo até o Logos que
efetivou uma profunda mudança no trato das investigações acerca dos fenômenos naturais,
que deixaram de se pautar na crença e passaram a ter a razão como base
fundamental.Heráclito, por exemplo, definiu Logos como grande unidade da realidade,
eterna e divina, apesar de não estar ligado necessariamente a uma divindade. Ainda de
acordo com o filósofo, todos dispomos de um Logos, ou da razão, que devemos utilizar para
o conhecimento da realidade e da conduta individual.
Sem deixar de lado este primeiro fio, faz-se necessário mencionarmos o uso joanino
do Logos no cristianismo primitivo, que apresenta semelhanças com o uso no helenismo. De
acordo com Torres110 o uso da palavra Logos, ou Verbo, no evangelho de João pode indicar
influência do Logos helenístico como uma forma de viabilizar o conhecimento da fé cristã
para os gregos. No helenismo, o Logos aparece enquanto princípio universal de lógica e de
racionalidade, já no evangelho joanino, o Logos, o Verbo, é a própria verdade, o próprio
princípio universalque, posteriormente, é encarnado no corpo de Cristo.
Não muito distante do helenismo, o estoicismo, a partir de Heráclito, considerava o
Logos como constitutivo ao todo, que seria corpóreo e governado então por um Logos divino
e racional. No estoicismo, a alma comporta o princípio divino-racional do Logos enquanto
parte do todo, portanto, o Logos, ou a razão universal, ordena o todo, o universo e, por
conseguinte, os próprios indivíduos enquanto partícipes do todo.
Semelhanças constitutivas podem ser observadas entre o helenismo cristão e o
estoicismo no que diz respeito ao Logos. O estoicismo trata a razão da unidade como uma

110
TORRES, Milton Luiz. A retórica joanina do Logos. Revista Caminhando, v. 21, n. 2, p. 147-167, jul./dez.
2016.Disponível em: https://doi.org/10.15603/2176-3828/caminhando.v21n2p147-167 Acesso em: 26 jul. 2020.

59
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
ideia de comunidade para todos os seres, análogo ao que ocorre no cristianismo,
representando nessa unidade a todos como iguais, pois estão sob o mesmo Logos. O
estoicismo introduz, de certa forma, a ideia de divindade única e absoluta numa visão
teológica do mundo; este ideal é adotado pelo cristianismo mais tarde, embora,de acordo
com Assmann111, apenas parcialmente. A diferenciação dá-seem como os estoicos
constituíam a moral e a autonomia humana que se alicerçavam no Logos como razão da
natureza humana.
Não muito distante desta concepção, Clemente de Alexandria escreve sobre a vida dos
cristãos na obra O Pedagogo. O Logos aparece na obra de Clementecompreendido por
Foucault como “um conjunto de acções em conformidade com o Logos, a aplicação sem
quebra dos ensinamentos do Logos, aquilo a que justamente chamámos a fé” 112. O conjunto
de ações a que Foucault se refere está ligado diretamente a própria constituição do Logos em
O Pedagogo, ou seja, “[...]o próprio Cristo; e aquilo que ensina, ou mais exactamente o que
ensina nele e o que é ensinado por ele, é o Logos”113. O Logos, então, é a palavra de Deus, é
o meio pelo qual o Deus Pai fala aos homens, é por meio do Logos que ele, Deus, expressa as
máximas para a conduta dos fiéis através dos mandamentos. Estes,por sua vez, representam
as ações que conduzem a vida eterna e asalvação, que, em conformidade com o Logos, é a
vontade de Deus e do Cristo.
Viver em conformidade com o Logos implica um cuidar de si, do corpo e da alma, para
conduzir-se à vida eterna. No cristianismo corpo e alma são contrários: o corpo é a prisão da
alma, e para a alma selibertar desta prisão o sujeito deve reger a sua vida de acordo com a
vontade de Deus. É a vontade de Deus que os sujeitos mantenham seus corpos puros, que
sigam e espalhem sua palavra, que não transgridam a fé e a naturezaque é divina. O lugar do
natural enquanto discurso é reforçado por Foucault, tomando Clemente, para mostrar como
a ideia do Logos no cristianismo é constituída. E é neste lugar do natural que o Logos se
alicerça, para Clemente de Alexandria, enquanto princípio constitutivo da sexualidade. Esse

111
ASSMANN, Selvino José. Estoicismo e Helenização do Cristianismo. Revista de Ciências Humanas. v. 11, n. 15, p.
24-38, mar. 1994.Disponível em: https://doi.org/10.5007/%25x Acesso em: 26 jul. 2020.
112
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 25.
113
Ibid., loc. cit.

60
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
princípio é o que move os postulados de Foucault e é um dos fios principais que
consideraremos aqui.
Entregar-se aos prazeres carnais é considerado pecado e transgressivo, destoa da
vontade de Deus,o qualsugere a economia dos prazeres, a temperança114 e a relação sexual
apenas para procriação. Sobre o “fim” procriador Foucault diz que, para os estoicos, “o
procriador leva aqui a cabo aquilo para que a natureza o fez e que o liga, através do tempo,
aos outros homens e à ordem do mundo”115, mas que para Clemente a procriação “constitui
para Deus um objecto digno de amor e uma ocasião de manifestar a sua bondade.
Subordinadas ao ‘alvo’ da ‘fabricação de filhos’, e depois, além disso, a uma finalidade que se
une à da Criação inteira...”116. As relações sexuais devem, então, estar submetidas a razão do
Logos, que “presente na natureza inteira e até mesmo na sua organização material, é também
a palavra de Deus”117. Sentir prazer, então, está no lugar de contranatura, porque seentregar
aos prazeres da carne é não seguir o princípio da criação divina, é corromper o corpo, o lugar
onde a alma está presa; corromper o corpo é corromper a própria alma e isso significa perder
a semelhança com Deus.
O Logos, conforme Foucault apresenta em As Confissões da Carne, constitui-se a partir
do princípio divino da criação; o Logos, a palavra, o Verbo é o próprio Deus. A manifestação
divina do Logos, não distante no helenismo e do estoicismo, norteia para uma conduta dos
sujeitos, que devem seguiar de acordo com a razão que é o Logos. A prática de si é voltada à
Deus, à totalidade, à motriz divina. O Logos serve, grosso modo, para ensinar os sujeitos a
viver segundo a vontade de Deus, ideia tão próxima e, ao mesmo tempo, tão distante da
apresentada também por Foucault em O Governo de Si e dos Outros118.
Em O Governo de Si e dos Outros, Foucault fala do Logos a partir de Platão, situando o
Logos como um elemento retórico usado pelo filósofo que, no contexto da pólis grega, era

114
Foucault afirma que a Temperança, como aparece em O Pedagogo, é fazer com que o corpo se torne e continue sendo
o “Templo de Deus”, uma vez que o logos habita no próprio corpo.
115
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 41
116
Ibid., loc. cit., aspeamento do autor.
117
Ibid., loc. cit.
118
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2010.

61
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
tida como arte da discussão. Já percebemos então a oposição dos lugares que o Logos
ocupava em diferentes ambientes; na pólis grega, Foucault situa o Logos enquanto palavra,
discurso, fala franca e em nenhum momento este Logos estaria ligado ao ideal divino, como
é apresentado por Clemente de Alexandria em O Pedagogo. Em O Governo de Si e dos Outros,
Foucault diz que fazer o Logos agir na pólis é o que caracteriza o próprio dizer verdadeiro, e
fazeragir essa “palavra verdadeira, sensata, agonística, essa palavra de discussão no campo
da pólis, é nisso que consiste a parresía”119. Ser um bom parresiasta é fazer uso do Logos.
Neste sentido, a palavra de verdade e a coragem dizer a verdade, o conjunto logos-parresía,
mesclam-se para fazer funcionar a pólis, ou, em outras palavras, tornam-se um, aliados, para
um fazer-se a si verdadeiro.
O Logos aqui é a própria razão, não tem uma motriz divina, tampouco uma finalidade
de salvação, como ocorre com O Pedagogo; sua função é agir na cidade democrática. No
entanto, mesmo que aqui não tenha princípio divino, o Logos, assim como apresentado por
Clemente, preside uma prática de si. Esta prática de si deve ser direcionada àpólis, deve agir
nela para cumprir sua verdadeira função, para que a democracia seja exercida e os sujeitos
possam ascender.
Para que o Logos se torne verdadeiro na pólis, é preciso fazê-lo ecoar por meio da
parresía. Foucault diferencia dois tipos de parresía: “a que é necessária à vida da cidade, a
que é indispensável à alma do homem”120. Assim, o primeiro tipo de parresía deve ser
direcionado à cidade. O Logos, nesse sentido “só é completo quando capaz de conduzir ao
érgan e organizá-lo de acordo com os princípios de racionalidade necessários”121. O governo
da cidade não deve se guiar apenas pelo Logos, mas setornar real (érgan), para que haja de
fato o exercício da parresía política. O segundo tipo de parresía – necessária à alma do
homem – deve agir em conformidade com o “conhecimento da verdade e prática da alma”122
sobre si mesma para que o sujeito torne o Logos verdadeiro para si e para fazer de si próprio
um parresiasta.

119
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 98
120
Ibid., p. 184
121
Ibid., p. 201
122
Ibid., p. 304

62
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Para não nos distanciarmos das questões da sexualidade, o conjunto logos-parresía
unem-se para um governar-se a si como um movimento de libertação para os corpos e o uso
dos prazeres. Dizer a verdade sobre o próprio corpo ou agir para com o corpo e a sexualidade
consiste em um uso do Logos que se opõe ao postulado por Clemente e o discurso cristão,
mas sevolta em prol do governar-se a si. O Logosem lugar de parresía, conduz-nos para
pensar a sexualidade no próprio presente; para agir sobre si mesmo; para ter uma liberação
sexual e autonomia de direitos; para mostrar a sexualidade numa tentativa de quebra de
tabu. Esse movimento que conduz nossas sexualidades no agora são parresiásticos, não em
conformidade com um Logos estoico, helenístico ou cristão, mas, talvez, um Logos que está
em processo de constituição.
Mas nos cabe apontar ainda a constituição desse Logos em lugar de parresía presidida
no corpo. Para apontarmos essa relação Corpo-Logos, segundo nossa denominação e
compreensão, pensamos nas condições para que ela “se inscreva em um domínio de
parentesco [...], para que possa estabelecer relações de semelhança...” 123, no que é a
constituição do corpo e do próprio Logos. Voltemo-nos ao que Foucault postula sobre O
Pedagogo, ao estabelecer um domínio da alma sobre o corpo “uma vez que é da natureza da
alma ser superior e da natureza do corpo ser inferior...”124. Esta relação estabelece-se mais
claramente ao pensarmos que para Clemente o Logos é o próprio Verbo divino e a alma é a
manifestação desse verbo, portanto, a semelhança com Deus. Porém,a alma está presa ao
corpo e o corpo por sua vez é um receptáculo impuro porque é da natureza do homem ser
pecador. O corpo se torna, desse modo, um objeto para o logos, uma vez que sua única
função será resguardar-se, cuidar-se, economizar-se para ser digno de ser semelhante a Deus.
Esse corpo impuro, receptáculo da graça divina, ocupará então, um lugar de restrição,
de regulação. As práticas direcionadas a eleserão castradas com objetivo de manter a
prudência e a temperança de modo que a razão divina seja superior aos apetites do corpo. O
comportamento temperante traz em si mais do que um equilíbrio entre alma e corpo, mas
exige uma recusa, uma renúncia ao corpo e aos prazeres porque nele reside o mal. Foucault

123
FOUCAULT, Michel. A Formação dos Objetos. In: A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves.
7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 50.
124
Ibid., 2019. p. 48.

63
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
ressalta que “a temperança não é arrancamento ao corpo, mas movimento do Logos
incorruptível no próprio corpo...”125. Isso quer dizer que essa habitação do Logos no corpo,
longe de ser uma separação entre corpo e alma, consiste em uma permanência do próprio
Logos para que ele tenha efeito de controle na vida dos sujeitos, de modo que ter a
responsabilidade de trazer Deus dentro de si conduza os prazeres para que esse corpo-
templo, quando inevitavelmente atingir a morte, una-se a eternidade, onde se tornam
irrisórios os prazeres da carne.
As práticas que são negadas ou restringidas aos corpos estabelecem numa instância
maior uma governamentabilidade de si sobre si. Ser temperante com os prazeres da carne
objetiva preservar um princípio divino em si, porque “o corpo intemperante apodrecerá
porque Deus, abandonando-o, o deixa no estado de cadáver...”126.Assim se constitui uma
disciplina baseada no não: não se entregar aos prazeres, não pecar, não ser intemperante,
não corromper o corpo, não corromper a alma e, desse modo, Deus não o abandonaria e o
sujeito não seria apenas um corpo vazio.

PEDAGOGIA DO CORPO E CONTRANATUREZA


Considerando as questões sobre o Corpo-Logos, como designamos, gostaríamos de
prosseguir apresentando como as formações em que ele está se ligam a um discurso da
natureza, que o torna natural em si e exclui as exterioridades históricas, a partir das
elaborações de Foucault sobre o termo contra-natura em As Confissões da Carne.
Na primeira menção da contra-natura, Foucault vai dizer que para Clemente de
Alexandria “as relações contranatura são condenáveis”127, ou seja, Clemente toma a contra-
natura como algo fora do normal e a condena, juntamente como condena as relações tidas
como infecundas (as relações sexuais fora do casamento, as relações durante a gravidez e o
aborto). Logo, a contranatura é algo que foge do natural.

125
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 56.
126
Ibid., loc. cit.
127
Ibid., p. 30

64
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Essa concepção de contranatura está em consonância com a visão de corpo mostrada
por Foucault: “[a] alma e o corpo, por exemplo, são duas vezes convenientes: foi preciso que
o pecado tivesse tornado a alma espessa, pesada e terrestre, para que Deus a colocasse nas
entranhas da matéria. Mas, por essa vizinhança, a alma recebe os movimentos do corpo e se
assimila a ele, enquanto o corpo se altera e se corrompe pelas paixões da alma” 128, isto é, a
sociedade tem uma maneira de olhar o corpo como provedor dos pecados, já que o corpo é
corrompido pelas paixões da alma, assim como as relações contranaturais são objetos
condenáveis.
A partir daí, a contranatura sempre vai aparecer em contraste com a ideia da natureza,
que está também veiculada com o Logos129. Entendamos, em síntese, a concepção do Logos
como uma regra de vida, um ensinamento para o sujeito, nesse caso, o sujeito cristão, aquele
que leva a vida em conformidade com as ações direcionadas pelo Logos. Assim, as figuras da
natureza são geridas pela fala do Logos em diferentes vozes, isso porque o Logos sendo uma
prescrição aparece justamente para mostrar como o sujeito deve gerir as leis da natureza. A
fuga dessa lei seria uma transgressão regida pela contranatureza. E nos parece que é desse
modo que Clemente de Alexandria vai articular suas premissas ao usar os exemplos de
animais “como testemunhos invertidos da contranatureza”130 como lições da natureza para
a regra das relações sexuais dos sujeitos.
Os exemplos tomados por Clemente no livro animal são por ele denominados como
lições negativas: a “hiena e a lebre ensinam o que não se deve fazer” 131. A hiena era
direcionada a má reputação porque tinha dois sexos, a partir dos quais desempenhava
alternadamente, de ano para ano, o papel de macho e de fêmea. Já a lebre passava a adquirir
anualmente um ânus suplementar, para fazer dele, com os orifícios assim multiplicados, o

128
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas : uma arqueologia das ciências humanas. Tradução Salma Tannus
Muchail. — 8ª ed. — São Paulo : Martins Fontes, 1999. p. 24
129
FOUCAULT, op. cit., p. 28.
130
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio DÁgua Editores. 2019, p.31
131
Ibid., p. 42.

65
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
pior uso. É importante ressaltar que essas lendas132 eram de uso frequente para adquirir
algum tipo de lição, principalmente para os naturalistas.
A hiena e a lebre são, portanto, dois exemplos lendários que também ajudam
Clemente em sua “concepção das relações de natureza e contranatura”133 e lhe servem como
lições de conduta. Além disso, Clemente vai apresentar o exemplo das aves para mostrar que
há ações que modificam a natureza do animal e ações que não se modificam: “há, é certo,
muitos animais nos quais alguns traços se alteram com o tempo. As estações frias e quentes
modificam a voz das aves ou o colorido das plumagens”134 .
A partir daí, podemos entender com a leitura das lendas da hiena e da lebre, que se
trata de exemplos desautorizados por Clemente, porque são animais que, de alguma
maneira, modificam a natureza animal, já que fogem do que seria a lei ou a regra natural e,
assim, configuraria-se como uma contra-natureza. Já o exemplo das aves é visto como algo
natural, porque “é um efeito de acções físicas e exteriores, sem que desse modo se
transforme a natureza do animal”135. São ações que se alteram no decorrer do percurso
natural do tempo, portanto, seriam traços da própria natureza.
Essas lendas serviriam para o sujeito tomar como lição de conduta aquilo que não pode
ser praticado, como deixa claro, mais uma vez, Clemente: “[u]m indivíduo não pode nem
mudar de sexo, nem ter dois, nem também ser de um terceiro que seria intermédio entre o
masculino e o feminino: tais coisas são quimeras que os homens imaginam, mas às quais a
natureza se recusa”136. Ao recusar a ideia de alternância de sexo na hiena ou o exagero da
fecundação na lebre, Clemente vai aplicar o princípio de naturalidade nos sujeitos: o homem
e mulher (macho e fêmea) devem permanecer segundo o “Logos da natureza, distintos um
ao outro”137.

132
“O hermafroditismo alternante da hiena e as perfurações anuais da lebre tornaram-se lendas”. In: FOUCAULT, Michel.
História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa: Relógio DÁgua Editores.
2019. p. 42
133
FOUCAULT, loc. cit.
134
Ibid., p. 43
135
Ibid., loc. cit.
136
Ibid., loc. cit.
137
Ibid. p. 44.

66
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Ao colocar diante dos nossos olhos os exemplos dos animais tidos por Clemente como
animais reprováveis, “a natureza mostra ao homem que enquanto indivíduo racional não
deve tomar por modelo seres que não têm senão uma alma animal”138. Então, o sujeito que
deseja seguir o princípio da naturalidade caracterizado pelas concepções da lei do Logos vai
evitar recair sobre o que seria uma contra-natura, porque a contra-natura seria a
transgressão do indivíduo sobre a lei da natureza, segundo a proposta de Clemente.
Após essas concepções trazidas por Clemente no texto apresentado porFoucault,
algumas considerações naturalistas sob o estudo dos animais ainda serão reforçadas, são
princípios que, na verdade, tratam de prescrições139 para os sujeitos:
a. “A natureza indica que deve haver coextensão exacta entre a intenção procriadora e
o acto sexual”140. (Não deve haver um ato sexual sem uma intenção procriadora).
b. “Através dos jogos da contranatura que ela própria organiza, a natureza mostra que
este princípio de coextensão é um facto que podemos ler na anatomia dos animais e
uma exigência que condena aqueles que lhe escapam”141.(A contranatura nos animais
hiena e lebre devem servir de exemplos para os sujeitos, são exemplos do que não
deve ser feito para evitar a transgressão da lei da natureza).
c. “Esse princípio interdiz, pois, por um lado, todo o acto que se fizesse fora dos órgãos
da fecundação – “princípio da hiena”– e, por outro lado, todo o acto que viesse
acrescentar-se à fecundação levada a cabo – “princípio da lebre”142. (Não deve haver
uma fecundação que foge da relação sexual natural).

d. A intenção de Clemente em desenvolver essas considerações é criar regras de vida


para os sujeitos. São regras que determinam o domínio dos desejos dos sujeitos sobre
seu corpo: o domínio da alma sobre o corpo, que é uma prescrição natural, uma vez
que é da natureza da alma ser superior e da natureza do corpo ser inferior, como o

138
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio DÁgua Editores. 2019. p. 47.
139
Ibid., p. 43.
140
Ibid., p. 47.
141
Ibid., loc. cit.
142
Ibid., p. 47-48.

67
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
indica a localização do ventre, sendo o corpo do corpo (“é necessário dominar os
prazeres e também comandar como senhor o ventre e o que está abaixo dele”) 143.

O sujeito deve ser capaz de dominar os desejos corporais em favor do seu domínio da
razão.Segundo Clemente, toda a nossa vida pode decorrer observando as leis da natureza, se
dominarmos os desejos dos nossos corpos em favor da razão:“[o] domínio que a razão
prescreve e que define as formas legítimas do comportamento é ainda uma maneira de se
escutar o Logos que rege a natureza. A essa reserva, que manifesta o domínio da razão sobre
os apetites do corpo”144.Clemente dá quatro formas principais:
I. “As relações sexuais da mulher e que cada qual esteja ligada ao casamento”145;
II. A abstinência de relações sexuais durante as regras146;
III. A interdição das relações durante a gravidez constitui a recíproca do princípio
anterior, porque devemos preservar a semente a toda evacuação impura 147;
IV. Vigor de todos os que, homens ou animais, se abstêm o mais possível de relações
sexuais148.
Para finalizar, essas prescrições citadas são regras de vida regidas por meio do Logos
em favor das leis da natureza, tornando, de fato, uma forma de controle sobre os sujeitos,
pois aquele capaz de dominar seus desejos em favor da razão possivelmente não
transgrediria a ordem natural e não recairia em uma contra-natura.

CONFISSÃO E VERIDICÇÃO
Ao considerarmos as relações tão intrínsecas entre corpo, Logos e contranatura,
acreditamos que elas desembocam em uma forma de controle muito eficaz e de
procedimentos de assujeitamento bastante sutis sobre o sujeito. Por tais razões, nos
debruçaremos sob os modos de confissão e suas extensões com a problemática da verdade

143
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio DÁgua Editores. 2019. p. 48.
144
Ibid., p. 49-50.
145
Ibid., p. 50.
146
Ibid., loc. cit.
147
Ibid., p. 51.
148
Ibid., p. 52.

68
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
em Foucault. O próprio filósofo aponta-nos esse caminho ao destinar seus estudos sobre a
questão da normalidade e do discurso da natureza, ao trazer à tona os aspectos que
envolvem o “bio-jurídico” e a necessidade de se confessar sujeito de práticas contra a
natureza149, seguida do dispositivo confessional de sexualidade150 no Cristianismo e a
formação das verdades em condições e momentos particulares. Em específico, vamos
abordar, portanto, as noções de confissão e verdade, discutidas por Michel Foucault na
aulade 29 de abril de 1981 daobra Malfazer, o dizer verdadeiro151. Essa aula compõe um curso
que o filósofo francês ministrou na Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, com o
propósito de esboçar uma “história da confissão como elo e relação entre veridicção e
jurisdição”152.
De imediato, Foucault já nos fala que a confissão transpassa por toda a sociedade, nos
dominando, permeando e perpassando tantas práticas e instituições pelas quais nem
imaginamos. A história da confissão teve importância em diversas relações de saber-poder,
na moral, no direito, na literatura, nas instituições e em toda a cultura do Ocidente, até por
isso, ainda há resquícios desse tipo de prática na nossa atualidade.
Assim, de forma descontínua, ele propõe se dedicar sobre a história da confissão
atravessando desde a Antiguidade Pagã ao Cristianismo, em busca dos vestígios que levaram
o indivíduo a ter a obrigação de buscar em si a verdade do que ele é. Ou seja, verificar de
onde surgiu a obrigação de dizer verdadeiro sobre si mesmo, característica utilizada pelo
Cristianismo, mas que nãofoi gerada pelos cristãos.
Sendo assim, Foucault projeta e denomina a discussão sobre confissão e verdade sob
três focos de luz: a) o problema da veridicção sobre si mesmo na civilização antiga, antes do
cristianismo e essencialmente na prática filosófica; b) a veridicção sobre si mesmo na

149
FOUCAULT, Michel. Aula de janeiro de 1975. In: Os anormais: curso no collège de France (1974-1975). Tradução
deEduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
150
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza Albuquerque e José
Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
151
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018.
152
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. Nota dos organizadores.

69
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
penitência canônica dos primeiros séculos até o século V; e c) a veridicção sobre si mesmo na
vida e práticas monásticas dos séculos IV-V.
Nessa primeira parte, sobre a veridicção sobre si mesmo na Antiguidade Pagã,
Foucault esclarece que a obrigação de dizer verdadeiro sobre si não é invenção do
Cristianismo, porque já havia a incitação ao dizer verdadeiro em práticas religiosas, por
exemplo, em templos de Epidauro e Cnido 153. Mas, o que realmente lhe interessasão as
práticas de veridicção na prática filosófica, práticas que assumiram duas grandes formas: uma
de exame de consciência e a outra de exposição da alma a alguém154.
Primeiramente, Foucault apresenta o exame de consciência pitagórico, remontando
essa prática a Pitágoras ou pelo menos à corrente pitagórica. Sabe-se que esse exame ocorre
à noite, semelhança evidente com o exame de consciência cristão. Sua ocorrência à noite tem
uma explicação clara na doutrina de Pitágoras, já que

no sono temos sonhos, e por intermédio dos sonhos entramos em contato


com o mundo espiritual ou o mundo ideal, e, por conseguinte, antes de nos
arriscarmos a entrar em contato com esse outro mundo por intermédio do
sono e da vigília, é preciso purificar-se155.

Ou seja, “antes de entrar em contato com outro mundo através do sono é preciso
purificar a alma”156, assim esse exame de consciência exerceria uma prática purificadora. De
outra forma, segundo Foucault, parece que o exame de consciência pitagórico poderia ter
outro significado e valor. Em um dos textos de De Senectute de Cícero157, diz que os
pitagóricos recomendavam o exame à noite a fim da memorização do que foi feito durante o
dia memoriae exercendae gratia para exercitação da memória. Isso porque essa prática de

153
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. Nota dos organizadores.p. 81-82.
154
Um amigo, orientador, orientador de consciência etc.
155
FOUCAULT, op. cit., p. 83.
156
Ibid., loc. cit.
157
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. passim.

70
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
memorização é muito importante entre os pitagóricos, firmando que ao “repassar o dia,
lembra-se de tudo o que se fez de bem e mal, tem valor purificador em relação ao outro
mundo com o qual se vai entrar em contato e também valor de exercício dessa faculdade tão
fundamental que é a faculdade da memória”158. Trata-se da mnemotécnica enquanto
método estabelecido pelos pitagóricos.
Outro exame de consciência na Antiguidade Pagã e antes do Cristianismo é o exame
de consciência estoico, diretamente a partir da descrição de Sêneca no livro 36 De Ira. Esse
exame age em correspondência com o exame anterior, pelo menos se tratando de estar
diretamente ligado ao sono: “[o] exame de consciência aparece como uma preparação para
o sono. Mas não parece que se possa atribuir a essa prática estoica uma intenção
purificadora, como entre os pitagóricos”159.Isso porque um bom sono pode revelar uma alma
tranquila. O importante nesse exame é a obtenção da qualidade do sono, porque esse estado
de qualidade será revelador para a alma e sua busca por tranquilidade para alcançar o
domínio sobre os desejos e apetites.
De outro ponto de vista foucaultiano, esse exame de consciência estoico é ao mesmo
tempo juiz e réu ao sujeito em relação a si mesmo. O sujeito divide-se em dois, sendo um
lado que se acusa ou se julga, enquanto o outro lado é julgado. Sendo assim, “o sujeito teria
de desempenhar os papéis ao mesmo tempo”160. Como visto no exame pitagórico, o exame
estoico também aparece como memorização de atos cometidos no dia, mas essa
memorização tem o objetivo de cultivar “essa arte da memória, ou melhor, realiza-se um ato
de memória para lembrar e reatualizar, para incrustar melhor no pensamento e na conduta
as regras de códigos que em geral devem gerir a maneira como nos comportamos na vida” 161.
Esse exame de consciência estoico, na perspectiva de Foucault, não pode ser
considerado prática de veridicção para descobrir uma verdade que estaria escondida no
fundo do sujeito, mas trata-se do sujeito ser: “o ponto de cruzamento entre regras de

158
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. p. 86.
159
Ibid., p. 85.
160
Ibid., p.86.
161
Ibid., loc. cit.

71
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
conduta de que é preciso lembrar-se e o ponto de partida de ações futuras que deverão ou
que deveriam estar em conformidade com esse código” 162, ou seja, “as ações passadas,
reatualização da memória, ações futuras: esse é o funcionamento do exame de consciência
em Sêneca. Não é de algum modo uma hermenêutica de si, a decifração de um segredo que
estaria selado no fundo de cada um”163.
Daqui para frente, seguiremos com a segunda parte da discussão sobre a veridicção no
Cristianismo. Ali, Foucault inicia sua fala sobre a prática da penitência cristã atual com sua
obrigação anual de recorrer ao sacramento da penitência num ritual de confissão dos
pecados, prática bem recente, segundo Foucault, secompararmosa outras práticas, conforme
explica o filósofo, invenção do século XII. Para mostrar que a penitência praticada hoje é
diferente da praticada anteriormente: “[a] penitência não era um sacramento, a penitência
não implicava confissão, a penitência não era obrigatória a todos os cristãos” 164.
De acordo com Foucault, a penitência como conhecida entre o século II e a Idade
Média apresentava-se da seguinte forma: a) não era renovável (“fazia uma vez na vida e só”);
b) eram consequência e sequência de um pecado grave (por exemplo, o pecado do adultério);
c) não era um procedimento particular (“não consistia em fazer isso e aquilo, como jejum,
esmola ou preces”). A penitência era um status, onde o sujeito se tornava penitente, e viver
nesse status englobava uma forma de vida completamente diferente dos outros.
Por conseguinte, Foucault retoma a abordagem sobre a veridicção, fazendo os
seguintes questionamentos: Qual era o lugar da veridicção nesse status penitencial? Era
preciso dizer verdadeiro? Como era preciso dizer verdadeiro? Como era preciso manifestar a
verdade? E que verdade era preciso manifestar? Segundo o francês, o lugar da veridicção era
importante nessa prática, já que a própria prática é a prova disso.
“O conjunto de condutas, comportamentos e atos caracterizavam o status
penitencial” e ao que parece estar diretamente ligado ao termo exomológesis –

162
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. p. 86.
163
Ibid., loc. cit.
164
Ibid., p.90.

72
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
exomologein165. Não iremos nos situar na discussão desses termos, já que o objetivo aqui é
outro, mas, conforme o teórico ocorria a “exomológesis (manifestação da verdade na
penitência, reconhecimento da verdade na penitência)” em textos de São Jerônimo no
qualencontra-se a penitência de Fabiola166. Esse ritual abordado por São Jerônimo não
comporta a confissão dos pecados, mas a manifestação do pecador em assumir remorso por
seus atos, o pecador precisa ter consciência dos seus pecados.
Já no texto De paenitentia, capítulo IX de Tertuliano, situa-se como deveria ser a vida
de penitente:

é preciso dormir debaixo de burel e cinzas, envolver o corpo em escuros


andrajos, entregar a alma à tristeza, corrigir com tratamentos rudes os
membros pecadores. O penitente em geral alimenta as preces com jejuns.
Geme, chora, clama dia e noite ao senhor Deus. Roja-se aos pés dos
sacerdotes167.

Como podemos observar, trata-se de algo distinto da manifestação do penitente em


São Jerônimo. Sendo assim, Foucault compreende a descrição de Tertuliano ao mesmo
tempo como penitência e a exomológesis, percebe também que há referência dessas práticas
em outros textos mais tardios.
Trazemos, portanto, o caso de uma carta escrita por um clérigo da Igreja romana a
Cipriano: “Está na hora de fazerem penitência, de demonstrarem a dor que sentem, de
exporem sua vergonha, de mostrarem humildade e exibirem sua modéstia” 168, “eles
confessam com gemidos, confessam com lágrima, confessam com palavras, que não são
coagidos, mas são livres”169. Desse modo, a penitência não ocorre sem essa atividade que
consiste em exibir, mostrar, expor e manifestar. A penitência acaba se tornando uma

165
O homologein significa dar acordo, concordar, enquanto exomologein é reconhecer alguma coisa.
166
Fabíola se divorciara do marido e voltara a casar-se antes da morte do primeiro, o que era muito ruim. Portanto, ela fez
penitência e são Jerônimo descreve na epístola [LXXVII].
167
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. p. 95.
168
Ibid., loc. cit.
169
Ibid., p. 95-96.

73
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
manifestação, uma obrigação de falar a verdade, uma obrigação de dizer a verdade sobre os
atos que levaram o sujeito à penitência.
Para finalizar, Michel Foucault apresenta outra forma de veridicção, durante os séculos
IV e V, se desenvolvendo nas instituições monásticas e interligando veridicção e mortificação
por meio de práticas e ritos diferentes:

A automortificação ainda estará ligada à veridicção, mas por intermédio de


algo novo e fundamental que tem certa importância na história da cultura e
da subjetividade ocidentais que será a linguagem. É pela verbalização
contínua sobre si mesmo que o monge deverá realizar o elo entre veridicção
e mortificação. Digamos que o penitente estabelece esse elo veridicção-
mortificação no corpo, o monge, por sua vez, o estabelece no corpo também,
porque de certa maneira ele é penitente, mas o estabelece também por meio
de certo exercício contínuo e permanente da linguagem*170.

CONFISSÃO, CORPO E VERIDICÇÃO


O corpo é uma prisão? Que tipo de existir é estar em corpo? É pelo corpo que
transgredimos, é pelo corpo que fazemos de nós quem somos e é pelo corpo que
confessamos nosso si. Confessamos por palavras, por atos, eaté pelos mínimos gestosde
nosso corpo confessamosquem somos. O si transborda seu excesso no corpo e confessa-o na
tentativa de esgotá-lo; por isso, nosso corpo se organiza em padrões, se encaixa em
paradigmas e se dispõe em definições.
O corpo se organiza em prol das subjetividades e nós as rearranjamos de modo que
até as mínimas partes digam alguma coisa. O corpo organizado constitui-se como o corpo em
excesso. Esse corpo excessivo figura-se em um si arquitetado, que é moldado afim de
desdobrar-se sob novas subjetividades. Contudo, o corpo excessivo, cheio de marcas e
elementos, não se acomoda, ele rompe eao irromper, transborda e confessa. O corpo que

170
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. p. 98.

74
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
confessa revela-se através de um sintoma “uma causa que se vê, [...] um princípio legível em
sua raiz”171, que manifestado no corpo revela a verdade do sujeito em um empreendimento
do si para um movimento de dizer a verdade sobre si mesmo. A confissão feita pelo corpo
entra na esfera de sua comprovação ao acessarmos um conjunto de elementos que
constituem a verdade sobre o sujeitopor meio do que Foucault chamou de atos de
veridicção172. Foucaultfala-nos sobre estes atos de veridicção em Malfazer, dizer verdadeiro
e As Confissões da Carne de maneira muito estrita. Temos nessas obras veridicções que
incidem sobre a penitência, a prática de exomologese e metanóia,todas confluindo com uma
prática de dizer e comprovar certa verdade sobre si, seja em uma prática espiritual cristã, seja
em uma prática judiciária. Ao pensarmos, então, em uma confissão feita pelo e através do
corpo, entendemos que determinados atos ou formas assumidas pelo corpo terão papel de
tornar verdadeiro o que o sujeito enuncia.
Ao falar sobre confissão em As Confissões da Carne, Foucault retoma as ações
penitentes feitas pelos cristãos e afirma que o penitente “geme, chora, clama noite e dia
dirigindo-se ao Senhor seu Deus. [...] Tudo isto, a exomologese fá-lo a fim de dar crédito à
penitência”173. Temos, assim, em consonância ao que já foi exposto, um ato de veridicção
que se funda em uma manifestação e tentativa de comprovação de uma verdade. O corpo,
ou confessa por si só, ou converte-seà verdade dita pelo sujeito como um modo
comprobatório por meio de sua fala.
Foucault,ao falar sobre a confissão, postulou que se trata de “um ato verbal por meio
do qual o sujeito faz uma afirmação sobre o que ele é”174. Ademais, gostaríamos de propor
um entrelaçamento entre o ato verbal de dizer a verdade sobre si e a confissão marcada no
próprio corpo. O ato de dizer a verdade e a confissão estão, de certo modo, entrelaçados,
pois o sujeito estabelece uma relação consigo e com o outro a quem essa verdade está sendo

171
FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1977. p. 04
172
Ibid., p. 07.
173
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 108
174
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo:curso em Louvain, 1981 / Michel
Foucault. Edição estabelecida por Fabienne Brion e Bernard E. Harcourt. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Editora
WNF Martins Fontes, 2018. p. 07.

75
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
endereçada. Dizer a verdade sobre si e confessar, que é uma forma do dizer verdadeiro,
entrelaçam-se para estabelecer uma relação do sujeito consigo próprio, que em
determinadas práticas pode suscitar um escoamento sobre o corpo.
A confissão que escoa sobre o corpo em instâncias institucionais, por exemplo, seria a
prática terapêutica, na qual o sujeito fala sobre si, a fim de remediar algum mal interno que
possa causar dano ao corpo. O corpo é, então, o motivo pelo qual o sujeito se confessa,
porque se existimos a partir do corpo seria preciso preservá-lo e afastá-lo do seu mal. Dessa
forma, o ato de confissão feito pelo sujeito objetiva, antes de instaurar uma verdade,
estabelecer uma relação consigo por meio de um exame de consciência, isto é, o sujeito
quando confessa, por exemplo, sua sexualidade, primeiro volta-se a si, seguindo o princípio
socrático do “conhece-te a ti mesmo”175, entende a si e a sua sexualidade para só então poder
dizer algo sobre si.
Este dizer sobre si será, por sua vez, verdadeiro porque o sujeito empreendeu um
exame de consciência sobre si, a fim de modificar sua relação consigo. Como Foucault bem
disse, o sujeito “vincula-se a essa verdade, coloca-se numa relação de dependência perante
outrem e modifica ao mesmo tempo a relação que tem consigo mesmo” 176.Mas, para além
de um confessar a si, como na cultura antiga, conhecer a si enquanto um meio de obter uma
verdade é também uma forma de cuidado de si. O “conhece-te a ti mesmo” era atribuído ao
próprio sujeito e, por consequência, as suas maneiras de dizer a verdade.
Um discurso torna-se verdadeiro, então, por um conjunto de elementos que irão
compor osatos de veridicção, sustentado por um tripé que é composto pelas relações
estabelecidas entre subjetividade, verdade eascese. Esse tripé sustenta as relações: a) do
sujeito consigo próprio através do que o constitui; b)do sujeito com a verdade que é
empreendida através do que o sujeito revela sobre si e adota enquanto prática epor fim,
c)relações que o sujeito estabelece com a ascese, que entendemos aqui enquanto um
modode conhecer a si próprio, ou, para citar Foucault, “uma maneira de ligar o sujeito à

175
FOUCAULT, Michel. Aula de 6 de janeiro de 1982: primeira hora. In: A Hermenêutica do Sujeito: Curso dado no
Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio Alves da Fonseca; Salma Tannus Muchail. 2ª ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2006. p. 04.
176
Ibid., p. 08.

76
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
verdade”177.Por assim dizer, o sujeito ao estabelecer uma relação consigo próprio e com sua
verdade, conhece e cuida de si mesmo, o que desvenda como os sujeitos “efetivamente são
atados nas e pelas formas de veridicção em que se envolvem”178.
Ainda pensando nesse tripé de relações entre a subjetividade, verdade e ascese,
pensamos também em um imbricamento confessional que se arquiteta no corpo e organiza-
se em torno de uma série de eixos social e institucionalmente estabelecidos. Tomamos o
exemplo da sexualidade e o conjunto de verdades que a constitui para podermos verificar,
de certo modo, como esses eixos se entrecruzam para inquirir uma confissão da verdade do
sujeito. E o sujeito confessa sua sexualidade; a revela socialmente através de vestimentas, de
modos de agir, dos lugares sociais que ocupa; essa confissão da sexualidade através do corpo
funda-se também sob um eixo biológico, uma vez que o sexo e a sexualidade são construídos
a partir das morfologias corporais que o corpo apresenta.
Outrossim, há atos de veridicção nas práticas judiciárias enelas a obrigação de dizer a
verdade aparece de maneira mais evidente, visto que se entrecruzam também com
experiências culturais de confissão. Foucault interrogou: “Qual é o lugar e qual é o papel do
dizer verdadeiro na prática judiciária?”179, e, para propor um deslocamento sem nos
afastarmos do que por ele foi dito, buscamos investigar qual é o lugar e o papel do dizer
verdadeiro e da prática judiciária que incide sobre o corpo. A relação do dizer verdadeiro com
o corpo dar-se-á através das estratégias de confissão nas quais o sujeito se constitui;
confessartrata-se de “um ritual de manifestação da verdade sustentada por um exercício de
poder”180, que se manifesta sobre e através do corpo.
Equitativamente, Foucault afirma que a confissão existe quando há “o ensejo ao
exercício do poder sobre aquele que confessa”181. Quando o exercício de poder parte de uma
instituição, a confissão é validada pela ação do corpo confessado, que é manifestado através

177
FOUCAULT, Michel. Aula de 6 de janeiro de 1982: primeira hora. In: A Hermenêutica do Sujeito: Curso dado no
Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio Alves da Fonseca; Salma Tannus Muchail. 2ª ed. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2006. p. 383.
178
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo: curso em Louvain 1981. Tradução
de Ivone Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. p. 10.
179
Ibid., p. 12.
180
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: Curso no Collège de France, 1979-1980: aulas de 09 e 30 de janeiro de
1980. Tradução de Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura Social, 2009. p. 07
181
FOUCAULT, op. cit., p. 08.

77
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
do afastamento entre o corpo que confessa e os corpos a quem a confissão está direcionada.
Nos rituais de confissão judiciária os corpos são dispostos de modo que elaboram certa
discursividade; o corpo do réu que irá confessar fica afastado dos demais, de frente para o
júri, que é a quem a confissão será endereçada.O júri, por sua vez, um conjunto de corpos
que simbolizam um só, uma só força, é o aglomerado corporal que recebe a verdade e que a
julga com o intuito de preservar o bem de todos os outros corpos.
O sujeito que confessa, na prática judiciária ou religiosa, objetiva, antes de tudo, uma
remissão dos erros, ou crimes. E por que há necessidade de remissão para que o corpo não
seja punido? Por que o mal, o erro, o pecado, o crime que habita o corpo devem ser
confessados e redimidos? Seria, pois, para estabelecer uma relação do sujeito consigo a fim
de constituir uma nova subjetividade? Sem dúvida, mas cabe ressaltar que o sistema que
exige confissão é coercivo, está entrelaçado por relações de poder e o sujeito que confessa
está, por via de regra, coagido a dizer a verdade, a confessar. O sujeito é obrigado a confessar
para livrar o corpo de mazelas, mas, ao fazê-lo, arrisca o bem-estar do corpo e isso ultrapassa
os limites das práticas judiciárias ou religiosas, atingindo a rotina do dia a dia quando
confessamos nossas sexualidades, quando fugimos de uma ordem ou não apoiamos o senso
comum.
Em Malfazer, dizer verdadeiro Foucault articula um pensamento sobre a confissão ser
obtida através de tortura, refletindo, a partir dos Inquisidores da Idade Média, uma maneira
de obter a verdade que só será verídica após o suplício. Ele estabelece um postulado
semelhante ao falar sobre a penitência “como um remédio” 182 na prática cristã, em As
Confissões da Carne. Hoje, tão distante da Idade Média, ou dos ideais do Cristianismo
primitivo, ainda somos obrigados a dizer verdades sobre nós mesmos e a confessar através
dos nossos corpos, e por mais que pensemos que essa confissão não exija de nós nenhum
sacrifício, as formas de coerção que nos obrigam a confessar ferem nosso corpo a
todomomento. As inúmeras inquisições que são feitas sobre nós, os suplícios que nos
infligimos ao confessar nossas sexualidades, nossos desejos, as mortificações que fazemos de

182
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 115.

78
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
nosso si em prol de uma sociedade reguladora nos impulsiona cada vez mais para as
estruturas sociais que a todo momento nos obriga a confessar e a dizer quem somos, a que
viemos, o que pretendemos.
Porém, mesmo sob subordinação de sistemas coercivos, tomamos o que confessamos
para nós e vivemos essas práticas como se fossem verdadeiramente nossas, porque, como
disse Foucault, “quem fala se obriga ser quem diz ser” 183. Há, então, uma dupla obrigação: a
de governamentabilidade do outro para si e a de si para consigo. A confissão não é de todo
um imperativo negativo, de certo modo, implica um cuidado de si, mesmo que sob vigilância.
O ato de confessar, de dizer a verdade sobre si, estabelece uma espécie de compromisso,
pois quando “eu digo a verdade e penso verdadeiramente que é verdade, e penso
verdadeiramente que digo a verdade no momento em que a digo” 184,implica que o sujeito
que fala “se compromete a ser aquilo que afirma ser”185.
O governo pela verdade que incide sobre o corpo pressupõe um processo de
subjetivação e dessubjetivação186 na medida emque redimimos alguma falta. Isto demanda
um cuidado de si, uma vigilância e uma prática permanente de dizer obrigatoriamente à
instituição quem somos.

CONFISSÃO, CORPO E VERBALIZAÇÃO


Considerando o grau e valor dos atos de verbalização na confissão, prosseguiremos
com essa discussão colocando o imbricamento da prática confessional por meio da
verbalização e sua ligação com o corpo, a partir da prática monástica descrita por Cassiano

183
FOUCAULT, Michel. Malfazer, dizer verdadeiro: função da confissão em juízo: curso em Louvain 1981. Tradução
de Ivone Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018. p. 08.
184
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 62.
185
FOUCAULT, op. cit., p.07.
186
MILANEZ, Nilton. A dessubjetivação de Dolores. Escritas de discurso e misérias do corpo-espaço. Linguagem,
Estudos e Pesquisas (UFG), v. 17, p. 369-389, 2013.Disponível em: http://nilton-milanez.blogspot.com/2017/01/a-
dessubjetivacao-de-dolores.html Acesso em: 12 dez. 2020.
MILANEZ, Nilton. Dessubjetivação e corpo. (Vídeo didático-pedagógico; edição e montagem Matheus Vieira).
LABEDISCO: Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia, 2018. Disponível em: http://nilton-
milanez.blogspot.com/2018/09/dessubjetivacao-e-corpo.html Acesso em: 12 dez. 2020.

79
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
na obra Instituições Cenobíticas187, que foi abordada por Foucault no capítulo “A arte das
artes”, particularmente na parte IV Exame-Confissão, do livro As Confissões da Carne188.
Com fins de contextualização, iniciaremos buscando compreender a ideia de
verbalização mencionada por Foucault na obra A Hermenêutica do sujeito189:

[...] significa que se trata justamente de uma enunciação, certamente interior,


mas perfeitamente explícita. É preciso nomear, é preciso falar a si mesmo, é
preciso dizer a si mesmo. Absolutamente importante neste exercício é a
formulação real - ainda que interior - da palavra, do nome, ou antes, do nome
da coisa e do nome das coisas de que a primeira coisa é composta. E este
exercício de verbalização é evidentemente muito importante para que, no
espírito, se dê a fixação da coisa, de seus elementos e, conseqüentemente,a
reatualização, a partir destes nomes, de todo o sistema de valores190.

Vale ressaltar os seguintes trechos: “uma enunciação”, “é preciso nomear, é preciso


falar a si mesmo”, “é preciso dizer a si mesmo”. Esses são segmentos da verbalização que
deveriam ser usados por sujeitos que praticavam a vida monástica nos séculos IV-V e se
confessavam através da penitência, como podemos observar no trecho:

[...] está em questão a emergência, nas instituições monásticas, de novas


técnicas ignoradas pelo cristianismo primitivo, técnicas que visam exigirdo
sujeito, para a remissão de suas faltas, muitas coisas: um exame contínuo de
suas representações a fim de despojá-las das presenças do Maligno; a
verbalização perante um superior das faltas cometidas, certamente; mas
sobretudouma confissão exaustiva dos maus pensamentos191.

187
CASSIANO, João. Instituições Cenobíticas. Tradução do latim pelo Mosteiro da Santa Cruz. Juiz de Fora: Edições
Subiaco, 2015.
188
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019.
189
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Tradução Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
190
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do sujeito. Tradução Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 358.
191
Ibid., p. 616.

80
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Assim, o sujeito deveria usar a linguagem para enunciar sua confissão perante a um
monge ou alguém superior na instituição. Outra questão importante que exerce uma ligação
direta com a verbalização é a confissão. Já que a confissão é realizada pela junção de palavras
e a verbalização, a confissão é, sobretudo, a exposição das palavras através da linguagem do
sujeito, fato que se materializa no discurso nesse comentário de Foucault:

Há pois na própria forma da confissão, no fato de o segredo ser formulado


em palavras e de essas palavras se dirigirem a um outro,um poder específico:
aquilo a que Cassiano chama, usando um termo que constantemente
voltaremos a encontrar no vocabulário da penitência e da direcção das almas,
a virtus confessionis192.

Antes de continuarmos, é imprescindível compreendermos a discussão trazida por


Foucault no capítulo “A arte das artes” sobre o Exame-Confissão e evidenciada a partir de
textos de Cassiano. O exercício do exame em Cassiano consistia em:
a) Fazer triagem dos pensamentos, a fim de saber se o sujeito penitente estava
seguindo o caminho correto ou não, pois

ao examinar os pensamentos com cuidado, ao operar a todo o momento a


triagem entre os que devem ser acolhidos e os que devem ser rejeitados, o
monge obediente e bem dirigido não condena o que é pensado nessas ideias,
mas antes o movimento do pensamento naquele que o pensa193.

b) A necessidade da confissão, para evitar a enganação ou ludibriação, porque o


confessar tinha o poder de mostrar, expulsar, dissipar e livrar os maus pensamentos, como
podemos verificar no exemplo dado por Foucault, seguindo o relato de Cassiano:

192
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019. p. 159.
193
Ibid., p. 155.

81
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Sublinham em primeiro lugar o facto de a libertação não ser directamente


devida a palavras que o director tivesse pronunciado, mas às do culpado que
confessa: A tua libertação está consumada; sem que eu tenha dito uma
palavra, a confissão que acabas de fazer foi suficiente194.

Assim, essa confissão durante a luz do dia tinha o objetivo de manipular os segredos
da sombra, no que tangeria um jogo de luz e uma inversão de poder: o “teu adversário
conquistava a vitória; tu triunfas hoje sobre ele; e a tua confissão esmaga-o mais
completamente do que ele mesmo te tinha abatido a favor do seu silêncio. [...] Enunciando-
o, retiraste ao espírito de malícia o poder de te continuar a inquietar” 195. Seria a confissão
que colocava em exposição o espírito do mal a luz do dia com o objetivo que essa luz fizesse
o mal abandonar o seu lugar.
c) Outra questão interessante tratada na prática desse exame-confissão é a confissão
como forma de obediência e obrigação permanente por parte do sujeito penitente, ao revelar
e relatar todos os pensamentos ao seu “mestre, orientador”, um superior da vida monástica.
Conforme: “[a]ntes de mais, o exame-confissão está ligado na sua permanência ao dever,
também ele permanente, de obediência. Se tudo o que se passa na alma e até mesmo nos
seus mais pequenos movimentos [deve ser revelado ao outro], é para permitir uma
obediência perfeita196”. Assim, a obediência e a obrigação permanente do exame-confissão
andam necessariamente a par.
Todos esses exercícios tinham que ser realizados durante a prática exame-confissão, a
fim de evitar os pensamentos ruins que rompessem a alma do sujeito penitente. O principal
objetivo era “penetrar cada vez mais os segredos da alma; captar sempre, o mais cedo
possível, até mesmo os pensamentos mais ténues; apoderar-se dos segredos, e dos segredos
que se escondem atrás dos segredos, ir o mais fundo possível na direcção da raiz” 197.

194
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019. p. 158
195
Ibid., loc. cit.
196
Ibid., p. 160.
197
Ibid., p. 161.

82
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Sendo assim, com o intuito de salvar a alma, o corpo do sujeito era quem sofria a
penitência. Para tanto, o sujeito entregava sua vida ao outro renunciando a si, submetia-seàs
vontades do outro no propósito desse outro detectar qualquer mal que levasse a fuga de vida
em contemplação a um Deus. Era o “abandono definitivo de toda a vontade própria: uma
maneira de não se ser si mesmo, de não se estarligado por laço algum a si mesmo. Paradoxo
essencial a estas práticas da espiritualidade cristã: a veridicção de si mesmo está
fundamentalmente ligada à renúncia a si”198.
A partir dessa percepção de Foucault com relação a essas práticas monásticas,
podemos observar que o corpo do sujeito nessa prática exame-confissão é quem sofre as
retaliações, a fimde proteger a alma. Verificamos, assim, que há uma sobreposição de
importância em relação da alma com o corpo. Esse domínio da alma sobre o corpo já é algo
bastante conhecido em nossa sociedade:

o corpo considerado prisão na qual a alma está enclausurada; o corpo


considerado uma impureza que macula com seu contato a alma presa nele; o
corpo que é matéria, matéria destinada à morte e que, portanto, pode
arrastar com sua mortalidade uma alma que, por sua vez, está destinada à
imortalidade199.

O corpo sempre foi visto como algo que pode ser corrompido pelos desejos dos
indivíduos. Desse modo, é mais importante salvar a alma porque ela o levará para a
eternidade.
Durante o exame-confissão o sujeito acaba autorizando esse domínio da alma sobre o
corpo no momento da confissão. Nesse momento ele permite que as consequências recaiam
sobre o corpo, permite que seu corpo sofra as represálias com a finalidade de salvar a sua
alma. Essa prática fica ainda mais evidente nos textos de Cassiano, particularmente no texto
V denominado “Espírito da Gula” do livro As Instituições Cenobíticas. Nesse capítulo, ele

198
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019. p. 162.
199
FOUCAULT, Michel. Subjetividade e verdade: Curso no Collège de France. Tradução de Rosemary Costhek Abílio.
Editora Martins Fontes: São Paulo, 2016. p. 137.

83
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
descreve as metas usadas em combate aos vícios e mostra os remédios da cura. Vale lembrar
que esses vícios falados por ele são os desejos realizados no corpo, ou seja, ele busca
combater os vícios corporais com o intuito de salvar a alma do sujeito.
Fica ainda mais claro quando Cassiano descreve a função de cada capítulo: Capítulo 6:
Os perigos para a vida espiritual dos excessos na comida (e na bebida); Capítulo 7: Uma
correta prática do jejum – um bom jejum – supõe o severo discernimento da temperança;
Capítulo8: “A norma nos jejuns e na contingência”: moderar o uso dos alimentos; Capítulo10:
O jejum é ineficaz se não acompanhado pela prática das demais virtudes da alma; Capítulo
12: A disciplina e a ordem dos combates espirituais; Capítulo13: Se faltar a moderação no uso
dos alimentos não se pode ter uma “experiência das lutas do homem interior”; Capítulo 16:
É um fundamento sólido do combate contra os vícios vencer os maus desejos da própria
carne; Capítulo17: O começo do combate: mortificação da carne e sujeição do corpo; a meta:
Jerusalém celeste; Capítulo 18: Quem conseguir vencer as inclinações da carne deverá
enfrentar os combates com inimigos mais fortes; Capítulo20: Não tomar bebida nem
alimento fora das horasfixadas; Capítulo22: O jejum corporal é um meio para chegar à pureza
do coração; Capítulo23: Norma para a escolha dos alimentos 200.
Como podemos verificar, as descrições dos capítulos funcionam como regras que os
sujeitos deveriam cumprir ao realizar a prática exame-confissão durante a forma de
veridicção na vida monástica. É mencionada diversas vezes a importância do jejum, a
importância da disciplina e da ordem,a fim de evitar qualquer desvio por parte do corpo,
através dos desejos da carne. Caso o sujeito se desvie na hora da moderação dos alimentos,
esse não poderá atingir a experiência no interior de si, pois é de vital proeminência vencer os
desejos da carne, pois aquele que conseguir superar esse feito ficará mais próximo de
combater os inimigos mais fortes, os próprios pensamentos.
São também evidências que é por meio da verbalização, por meio da relação palavra-
confissão, que o sujeito que confessa todos os pensamentos a um monge, por exemplo, acaba
se tornando um sujeito obediente, um sujeito penitente. Assim, por meio também da relação

200
CASSIANO, João. Instituições Cenobíticas. Tradução do latim pelo Mosteiro da Santa Cruz. Juiz de Fora: Edições
Subiaco, 2015. p. 124-125.

84
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
do corpo-alma, o sujeito perante a confissão acaba autorizando as consequências sobre o seu
corpo. A confissão reincide sobre o corpo do sujeito a partir da verbalização da palavra.

A DIREÇÃO DO CORPO EM CASSIANO


Desde que estudamos a história do corpo e, até mesmo, muito antes de podermos
compreender as formas de governo às quais o corpo está sujeito, podemos afirmar que, seja
através de uma direção do corpo por meio da sexualidade, da religião, do gênero, ele sempre
esteve em uma relação de obediência a determinadas regras de conduta, a certas instituições
e sempre preso a certos saberes. Decerto que, ao longo da história, compreendemos também
as práticas de liberdade, de insubordinação para corpos que sempre estiveram sobre
governo, embora nunca totalmente livres. É nesse sentido que Michel Foucault, em a As
Confissões da Carne, apresenta uma série de regulamentos empreendidos pelo cristianismo
primitivo para domínio e controle do corpo, bem como as disposições possíveis para ele.
Foucault se debruça em determinado capítulo a fazer uma análise das disposições do
corpo para a vida monástica cristã, tomando João Cassiano para falar a respeito de como se
dava o funcionamento da direção do corpo e da alma na vida dos monges, bem como a
relação da obediência estabelecida entre os monges e Deus. Para isso, Foucault elabora um
estudo em torno de três princípios básicos que Cassiano situa em suas Conferências: trata-
se, pois, do princípio de direção e de obediência na vida dos monges. Para nos debruçarmos
igualmente sobre esses dois princípios apresentados por Cassiano e, posteriormente,
discutidos por Michel Foucault, cabe-nos primeiro fazer uma descrição sistemática do
discurso-objeto201 para, em seguida, pensarmos de quais modos tais princípios se voltam ao
nosso corpo e de que maneira as formas de direção e obediência estão marcadas na história
do corpo.
“É pois através da direcção que se entra na realidade da existência monástica” 202. Esse
primeiro princípio, diz Foucault, é regularmente citado na literatura monástica, um princípio

201
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2008.
202
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019. p. 133.

85
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
sobre qual o monge não poderia seguir no cenóbio. A direção da alma aparece, portanto,
como uma ação disciplinar do corpo e da alma, uma disciplina que deve ser seguida para que
a alma esteja livre das impurezas da carne e para que a alma entre em comunhão com Deus.
De acordo com a leitura que Foucault faz de Cassiano, o monge deve estar sempre disposto
a ser dirigido, pois “o mau monge é aquele que não é dirigido: é porque chega ao
monaquismo com más intenções [...], ele recusa a deixar-se dirigir; e porque recusa essa
direção, os vícios nele não fazem senão progredir”203. A recusa à direção, à desobediência,
por assim dizer, implica em uma não limpeza da alma, assim, o objetivo da vida monástica
em ter uma aproximarão e comunhão com Deus não é atingido, como afirma Cassiano na
Conferência I: “se alguém não prosseguir, com perseverança e empenho, não poderá alcançar
o fim desejado”204.
A direção ainda de acordo com Foucault, “consiste num treino para a obediência:
entendido como renúncia às vontades próprias pela submissão à de outrem” 205.
Importanteobservar aqui que direção aparece em Cassiano como um “treino” para a
obediência, junto a direção que deve ter como guia um mestre ancião. Dessa forma, a direção
voluntária, que direciona o monasta a livrar-se das impurezas mundanas e dos vícios segue a
premissa da obediência ao mestre ancião, pois deixa-se dirigir e ser guiado por esse mestre
mais velho e sábio para que quando o monge passe dessa primeira fase de treino, torne-se
verdadeiramenteobediente. Essa obediência, como veremos, trata-se de uma obediência não
mais somente a um outro monge, a um mestre ancião, ou até mesmo a Deus, trata-se, pois,
de uma obediência total, sob qualquer aspecto da vida do monasta, pois “é necessário
obedecer em tudo”206.
Nenhum aspecto da vida do monasta deve passar despercebido sem implicar uma
obediência ou uma direção. O corpo que não está sob vigília é um corpo que, de certo modo,
representa ameaça e perigo. O monge sem manter-se obediente está sujeito à queda, a alma

203
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019. p. 133.
204
CASSIANO, João. Conferências I a VIII. Tradução do Latim por Aída Batista do Val. Juiz de Fora: Edições Subiaco,
2011. p. 22.
205
FOUCAULT, op. cit. p. 136.
206
Ibid., p. 137.

86
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
passível de tornar-se corruptível. Nesse sentido, a obediência a tudo e a todos implica numa
renúncia total ao corpo; não se trata somente de obedecer para manter a alma pura, mas
obedecer de tal modo que as necessidades da carne não lhes toque de nenhuma forma.
Falamos também, claro, na conduta de interdição da sexualidade, mas sobretudo no modo
como essa renúncia do corpo implica em um corpo letárgico, que, não fosse a alma, seria
vazio, oco, sem desejos.
Cassiano em Conferências IV, traça uma relação entre a luta da carne e do espírito
contra a vontade. Essa discussão empreendida por ele nos auxiliaacompreender como, na
Filosofia Monástica, a concupiscência da carne contra o espírito, e do espírito contra a carne,
resulta num duelo que consiste em não poder fazer aquilo que se deseja. A concupiscência
da carne, segundo Cassiano, precipita-se no caminho dos vícios e deleita-se nos prazeres e
desejos terrestres, ao contrário da concupiscência do espírito, que se precipita sobre a
aderência das necessidades espirituais, de tal modo que preferiria omitir as necessidades da
carne.
Nesse ponto, Cassiano alerta para a necessidade de se ter inteligência para diferenciar
a concupiscência da carne e do espírito, em um equilíbrio que ele nomeia de “vontade”. De
acordo com ele “a vontade é a que se encontra em pior situação. Não se deleita com os
excessos dos vícios, nem aceita as dificuldades das virtudes” 207. Ora, como, então, o monasta,
nesse duelo que trava entre carne e espírito, empreende uma relação consigo? Como
administrar a “vontade” de modo que a concupiscência da carne-espírito esteja igualmente
equilibrada? É nessa linha muito tênue que a obediência vai atuar de maneira mais forte,
pois, como disse Foucault, é através da relação com o outro que o sujeito estabelece uma
relação consigo.Podemos entender, assim, a obediência como “uma forma de relação
consigo”208 por conta da relação que é estabelecida com o outro, e é através dessa obediência
que o monasta vai abdicar da relação consigo próprio, isto é: a) ao estabelecer, por exemplo,
com um ancião, uma relação de obediência, ao deixar-se dirigir, estabelece também consigo

207
CASSIANO, João. Conferências I a VII. Tradução do Latim por Aída Batista do Val. Juiz de Fora: Edições Subiaco,
2011. p. 134.
208
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 140.

87
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
uma relação. Essa segunda relação estabelecida está ligada diretamente à obediência que
deve ao ancião e se sobrepõe à relação que o sujeito monasta estabelecera consigo mesmo
antes da renúncia; b) a renúncia àquela relação do sujeito consigo, que é anterior à
obediência, constitui, de certo modo, um processo de (des)subjetivação, visto que o indivíduo
constitui-se sujeito a partir da relações que estabelece consigo e com os outros 209. Isso escoa,
claro, para uma mortificação do sujeito, mas que cumpre o objetivo da direção monástica
que diz que “se o monge deve obedecer, é para aceder ao estado de obediência” 210,
estabelecendo, assim, um estado de obediência absoluta.
Aliada às noções de obediência e direção em Cassiano, um terceiro elemento é
essencial para compor o quadro da vida monástica:a discrição. De acordo com o próprio
Cassiano “a verdadeira discrição somente poderá ser adquirida mediante a autêntica
humildade”211, e a primeira prova dessa humildade, ainda segundo ele, “consiste em
submeter ao exame dos antigos todos nossos pensamentos e ações, de tal maneira que nada
confiemos ao nosso próprio julgamento”212, ou seja, ao exame-confissão.
A discrição aparece inicialmente como uma virtude divina, um dom dado por Deus
para que os seus fiéis monastas saibam discernir o bem do mal, os exageros das faltas, e
também como a virtude “conduz o monge a Deus, com passo firme e destemido”213. Assim,
essa discrição como “arte do discernimento e da medida, é indispensável para avançarmos
no caminho da santidade”214. Atentamo-nos ao fato de que, embora a discrição apareça
inicialmente em Cassiano como uma virtude, assim como a direção, a obediência e o exame-
confissão, ela deve ser constantemente exercitada, mantida sob vigília, pois um dom de Deus
não pode agir por si mesmo, já quea discrição, a diakrisis, serve para auxiliar nos caminhos
do monge, mas não lhe dá total clareza, afinal, a discrição é um dom de Deus, uma virtude

209
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2010. p. 62.
210
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 140.
211
CASSIANO, op. cit., p. 69.
212
Ibid., loc. cit.
213
CASSIANO, João. Conferências I a VII. Tradução do Latim por Aída Batista do Val. Juiz de Fora: Edições Subiaco,
2011. p. 63.
214
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Relógio D’Água, Lisboa, 2019. p. 149.

88
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
dada por ele para direcionar os monastas à perfeição, mas “sem a intervenção de Deus, o
homem não é capaz de discrição”215.
Esse tripé de relações entre a direção de consciência, a obediência e a discrição
monásticas culmina, enfim, numa série de regulamentos para controle e observação do
corpo, da carne, de tal modo que tais práticas perduraram ao longo dos séculos e
atravessaram os muros dos mosteiros. O regime da obediência, da vigília, da sexualidade, do
pudor e da vergonha, da confissão e remissão dos pecados permanecematé hoje enraizados
nas nossas relações, nos nossos corpos, na carne de cada sujeito que, obediente ou não ao
regime cristão, pondera acerca do exercício de sua sexualidade; aconselha-se em uma prática
terapêutica como uma forma de direção de consciência; obedece as certos regimes e normas
sociais; e, seja através do que chamam fé ou de uma avaliação de si detalhada, segue uma
discrição, na qual tenta equilibrar os excessos da vida caótica, irracional, com os dias úteis
muito bem calculados e os rituais de passagem muito bem planejados. Se é um deus, um olho
do alto de uma torre, ou nós mesmos que nos vigiamos, uma coisa é certa: estamos ainda
longe encontrar um ponto cego.

215
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução Miguel Serras Perreira. Lisboa:
Relógio D’Água Editores, 2019. p. 148.

89
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
DESLOCAMENTOS PARA UMA CONDUTA DO CORPO: DA NATUREZA À
SUBJETIVAÇÃO CRISTÃ
Suelane Gonçalves Santiago Lima
Rebeca Barbosa Nascimento
Jussara Santana Pereira

CORPO E NATUREZA: A SUBJETIVAÇÃO DO SER CRISTÃO


Em As Confissões da Carne216, Michel Foucault dá seguimento à problematização de
questões as quais representam o nó discursivo que atravessa o quem somos nós neste
momento do presente: a sexualidade. Imersos nesse campo do saber estão o sexo, a história
e o saber moral como verdade, subjetivando o sujeito do desejo que se encontra no cerne
dessa questão, visto que é na história que os discursos se desdobram e se consolidam no
sujeito da atualidade.
No primeiro capítulo, mais precisamente em “Criação – Procriação”, observamos
como Foucault traça, ao longo da obra, uma genealogia das técnicas de subjetivação, a priori,
a partir dos escritos de Clemente de Alexandria e de Santo Agostinho, e como o cristianismo
toma saberes e condutas naturalmente estoicos para implementá-los em uma regra de vida
cristã estrategicamente arbitrária para a governamentalidade dos corpos. Eis aí uma
genealogia que nos mostra em filigranas o ponto de tensão entre o corpo e a história. Assim,
“ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o
corpo”217.
Esse arruinar marca e delimita o sujeito do desejo ao qual nos referimos, o cristão.
Foucault218 toma O Pedagogo219 para discutir como uma rede específica de memória recria
momentos em que o passado e o presente coexistem no discurso institucional e social ao se
materializar no corpo cristão e observar como os deslocamentos das técnicas de si vigentes
em os Aphrodisia marcam não apenas um lugar, mas a identidade dos filósofos e pagãos em

216
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019.
217
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p.
15.
218
Ibid., op. cit.
219
Livro no qual o filósofo e autor Clemente de Alexandria apresenta para os cristãos recém-convertidos e batizados
exercícios de encaminhamento a Deus.

90
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
um ideal de moralidade deslocado e legitimado por um discurso de fé. Em nome da fé e da
salvação, o cristianismo governa corpos ao colocar a propósito do casamento o problema das
relações sexuais e sua produtividade e, em consequência disso, o mal, o pecado, a contenção,
a temperança.
Ao delimitar que o corpo é para a criação e para a procriação, temos um corpo objeto
no qual impera a desqualificação do prazer. Logo, se o corpo é dado para procriar e
reproduzir, instâncias outras das necessidades humanas são desprezadas, vigiadas,
governadas e, consequentemente, controladas. Nesse caso, em razão da vigilância do divino,
mais do que o sujeito, o corpo é privado do desejo (in)voluntário e do prazer carnal na
dispersão de práticas coercitivas de ser e de viver entre os casais.
As formas de subjetivação dos corpos materializam-se justamente na “carne”,
compreendida por Foucault220 como “um modo de experiência, quer dizer, um modo de
conhecimento e transformação de si por si, em razão de uma certa relação entre a anulação
do mal e manifestação da verdade”, é a experiência da contenção e suas formas de veridicção
que vão mensurar o corpo ascético e cristão por meio de uma obrigação ritualizada.
Como discurso de verdade e legitimação do fazer ascético, Foucault problematiza
como o Logos transita entre a fé, o divino e o discurso da natureza. Os primeiros estão no
campo da abstração ao passo que o último dialoga com o real, o natural do corpo. O
ensinamento do Logos em O Pedagogo materializa-se na relação entre o céu e a Terra.
Vemos, portanto, como o corpo configura-se como uma superfície de interdição,
apagamento, (des)subjetivação e punição em “um regime do sexo e uma moral do
casamento”221.
Foucault fundamenta e integra ainda ao texto uma alusão à tripla referência222, que se
desdobra na tripla determinação do Logos: natureza, razão filosófica e palavra de Deus.
Partindo da premissa de natureza abordada por Foucault, identificamos que, para o

220
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p.
64.
221
Ibid., p. 34.
222
“à dos naturalistas e dos médicos, que mostra como a natureza os fundamenta e manifesta a sua racionalidade,
testemunhando assim a presença do Logos como princípio de organização do mundo; a dos filósofos e, sobretudo, de
Platão, o filósofo por excelência, que mostra como a razão humana pode reconhecê-los e justificá-los, testemunhando que
o Logos habita a alma de todo o homem”. Ibid., p. 28.

91
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
estoicismo, a natureza é o divino, assim como para o cristianismo, que não deixa de dispersar
o discurso da contranatura, porém em perspectivas e lugares de equivalência muitas vezes
distintos, ou ainda, em outras possibilidades de divindade.
Segundo Foucault223, a “lição da natureza está no próprio ensinamento do Logos”. A
partir da lógica dos animais e seus comportamentos, observamos como o discurso do natural
é deslocado para nossos corpos e condutas nas relações matrimoniais desde a
individualidade à existência na/para a sociedade.
Ao discorrer sobre a hiena e a lebre, animais conhecidos por sua voluptuosidade e pela
insaciedade do “furor lúbrico”224, Clemente ressalta a capacidade de a lebre fêmea gerar
filhotes muitas vezes por ano. Temos aí o princípio da procriação fortemente disperso
no/pelo cristianismo, além do papel atribuído à mulher na relação marital; procriar para
garantir a “propagação do gênero humano”225, e, por isso, o valor positivo atribuído ao
casamento.
Dado esse furor, emerge o discurso da contranatura, devido às inclinações naturais do
corpo tomadas ao contrário, sobretudo no que tange às partes constituintes do corpo
“destinadas” arbitrariamente a funções específicas, nesse caso, à procriação, processo no
qual o corpo da mulher se transforma ao ser dado à fecundação, à gestação, à parição, à
amamentação, à criação e à procriação.
O discurso de positividade do casamento reverbera em outro discurso, o da
produtividade dos corpos para a existência, a progenitura e a descendência. Eis a essência do
ser, do corpo e do viver na razão cristã, logo, em consonância com a natureza, já que “tudo
que é contrário à reta razão é pecado”226, assim como “a desobediência que se comete contra
o filho de Deus, que é a própria razão, é um pecado”227 e deságua no discurso da
contranatura.

223
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. 16. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2001. p.
41.
224
CLEMENTE DE ALEXANDRIA, O pedagogo, X, p. 192.
225
Ibid., p. 197.
226
Ibid., p. 113.
227
Ibid., p. 113.

92
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Observamos, ainda, que o deslocamento do discurso da natureza difundido a
propósito do cristianismo e presente em O Pedagogo tem grande reverberação acerca das
relações homossexuais, uma vez que identificamos, em Clemente de Alexandria, que o corpo
humano, em contraposição ao da hiena, assume características semelhantes aos dos
pássaros ao longo das estações, que, para o corpo humano, correspondem às fases
metamórficas da infância, passando pela adolescência com a puberdade até a fase adulta.
Acrescentaríamos, ainda, as mudanças interiores das transições hormonais e seus efeitos nas
condutas, sentimentos e desejos (in)voluntários. Vemos, assim, o “corpo-discurso”228 no
visível e no enunciável de sua materialidade orgânica. Dessa feita, observamos que Clemente
de Alexandria, assim como o cristianismo, recusa a hipótese do corpo contranatura e suas
condutas. A interdição desse corpo apaga e deslegitima relações homoafetivas e afins, como
se o corpo devesse assumir apenas a função essencial de procriar ao se relacionar.
Ainda sobre a hiena, Clemente assevera sobre sua lascividade, comparando-a aos
hermafroditas229, qualificados como monstruosos por suas singularidades, uma vez que não
correspondem à regularidade do corpo do macho e da fêmea, atribuídas assim, única e
exclusivamente, pela presença de apenas um órgão genital, pois, na relação sexual, o sujeito
não pode mudar o natural uso do corpo. Isso resulta em um processo de dessubjetivação do
ser em virtude de uma verdade que não é do corpo, muito menos do sujeito, mas que lhe é
atribuída pela verdade da razão e essa razão, para o cristianismo, é o divino, é Deus.
Portanto, segundo essa problematização, a natureza admite apenas o desejo de
procriação e o classifica como privilegiado, no qual há a dessubjetivação do sujeito, do corpo
e, por que não dizermos, da alma, por meio de uma obrigação virtualizada cristã e,
consequentemente, a subjetivação da alma que abrigará e governará o novo corpo.
Quanto à produtividade dos corpos fecundos, vale ressaltar que Clemente não
considera a fase da infância, nem da velhice, uma vez que a natureza não lhes permite dar

228
LIMA, Suelane Gonçalves Santiago. Ser virgem: discursos sobre corpo, virgindade, matrimônio e matrizes de conduta
em vídeos do YouTube (2011-2018), 2020, p. 98.
229
Para mais informações, cf. FOUCAULT, Michel. O verdadeiro sexo. In: MOTTA, M.B. (Org.). Ditos e Escritos V:
Ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006, p. 82-91. Texto no qual o autor problematiza a história de Herculine Adélaide Barbin, um hermafrodita
do século XIX (1838-1868).

93
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
frutos nesse período. Eis, portanto, nesse entremeio, o estabelecimento do corpo útil e
docilizado pelo cristianismo. Assim, instituem-se as leis da natureza e da razão para o corpo
cristão, no qual o desejo e o prazer puramente carnais são refreados, controlados e
governados.

METÁFORA DOS ANIMAIS: A ANATOMIA IMORAL DOS CORPOS NA NATUREZA


Ao tratarmos da singularidade do lugar observacional da natureza e dos
deslocamentos das práticas para condutas de nossos corpos, conforme trazido
anteriormente, tomaremos aqui a metáfora dos animais como ponto de aprofundamento.
No primeiro capítulo do livro História da sexualidade IV - As Confissões da Carne,
encontramos uma prescrição moral que se relaciona com o prazer e a relação sexual e que,
apesar de todos os avanços e mudanças nos códigos morais relacionados
à sexualidade humana e aos relacionamentos interpessoais, ainda hoje não nos parece
superada totalmente. É uma sentença estoica transcrita nas palavras do padre Clemente de
Alexandria da seguinte maneira: “[a] união legítima deve desejar a procriação; sobre o
princípio de que buscar o prazer por si só, ainda que no interior do casamento, é contrária a
razão”230.
Tal sentença se apresenta como um epítome dos preceitos morais cristãos, nela
podemos encontrar referências a uma economia no uso do corpo nas relações dentro do
casamento e um indicativo de uma economia para além do casamento, que se baseia em um
conhecimento que busca demonstrar como se deve usar o corpo e, principalmente, como
não se deve usá-lo. Esse conhecimento, que se apresenta por vezes negativamente, a partir
de anunciados de interdição, é revelado por meio de um tipo de razão.
A razão, no contexto cristão referido por Clemente de Alexandria, retomada por
Foucault na tentativa de desvendar as artimanhas do poder na produção de uma sexualidade
cristã, possui características próprias e se difere dos usos e significados que damos à palavra
razão na atualidade, referida em latim, o termo usado é predominantemente: Logos. O Logos

230
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 27.

94
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
presente nas referências realizadas por Clemente se refere a uma lógica natural e divina,
tomada a partir da observação da natureza, passível de conhecimento através de uma relação
sinérgica com Deus, que possui seu ponto crucial no uso dos corpos no ato de procriar, pois
é nesse momento que o homem, por reprodução do ato divino de criar, assemelha-se mais
com seu criador.
Assim sendo, a relação entre a procriação e o Logos é sagrada e aproxima a natureza
humana da natureza divina, e, por uma relação lógica, o ato da procriação que não se
relaciona com o Logos afasta a natureza humana da sua possibilidade de assemelhar-se a
uma natureza divina. Essa concatenação lógica é demonstrada, segundo a igreja e seus
padres, entre eles o já citado Clemente de Alexandria, através de inúmeros exemplos dados
pelo funcionamento do mundo, a observação do reino animal, por exemplo, fornecerá vários
desses exemplos. A natureza, enquanto criação fundamental de Deus, conecta-nos à verdade
sobre nós mesmos e torna possível para nós compreendermos a conduta necessária para que
alcancemos uma existência plena.
Quanto à conduta dos corpos, os exemplos tirados da natureza possuem uma
conotação negativa, ou seja, estão sempre dizendo como as coisas não devem ser segundo o
Logos divino, fornecendo subsídios para formulação de um campo discursivo que se refere
não à natureza das coisas, mas a sua “contranatura”. O Logos se anuncia na natureza, na
razão humana (filosofia) e na palavra de Deus. Essa tripla determinação age como estratégia
discursiva de validação das prescrições dessas três tecnologias do poder presentes na
sociedade, as quais referem-se e convergem juntamente para a ratificação e fortalecimento
do discurso da “contranatura”.
Desse modo, podemos observar, ao longo do texto de Clemente de Alexandria, um
entrecruzamento da autoridade das escrituras, da filosofia e dos médicos ou naturalistas
(representantes sociais da ordem da natureza) através da importação de lições e de exemplos
relacionados ao uso do corpo que se sobrepõem e formam uma composição “temática” que
vai da condenação das relações “contranatura” às recomendações de reserva no uso do

95
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
casamento231, que refletirão não apenas no uso do corpo conforme o Logos mas também na
vigilância das sensações provenientes desse uso.
Para exemplificar, ilustrar e ratificar o discurso da “contranatura” no que se refere ao
casamento e às atividades internas dessa instituição, faz-se o uso, entre tais lições e exemplos
importados dessas três determinações, de metáforas dos comportamentos animais. Nas
palavras de Foucault232, realiza-se o “apelo aos exemplos ‘depositados’ na natureza a título
de lição que apontam aos cristãos o fim de uma existência ‘semelhante’ a Deus. Foucault
destaca duas obras de Clemente de Alexandria, a saber: Stromata, que se volta à procriação
como finalidade para o casamento, e O Pedagogo, no qual o tema da procriação é colocado
dentro da economia das relações sexuais. Essas obras servem de fio condutor para entender
o pensamento de Clemente e principalmente a formação discursiva a respeito da moral
sexual cristã e de uma economia no uso que os fiéis fazem de seus corpos, com vista a
maldizer os prazeres.
Nas obras citadas, os exemplos tomados do reino animal são lições negativas sobre o
que não se deve fazer com seus corpos, destacando-se a referência ao comportamento de
dois animais, em especial, a hiena e a lebre. A metáfora dos comportamentos animais busca
demonstrar que existe na natureza um Logos sobre as relações que nos permite a elaboração
de regras éticas que devem presidir à relação com o corpo que os esposos possuem, regras
essas tão próprias da ordem das coisas que até os próprios animas respeitam.
A hiena é tomada como um animal que possui comportamentos que devem ser
evitados, embasados na justificativa de, assim como seu comportamento, sua própria
constituição corporal é lascívia, isso está ligado a uma velha crença “segundo a qual cada
animal dessa espécie tinha os dois sexos e desempenhava alternadamente, de ano para ano,
o papel de macho e o da fêmea”233. No entanto, assim como Aristóteles, Clemente contesta
essa crença sem retirar dela sua lição moral, mas, pelo contrário, acrescentando outros
princípios que reforçam o discurso da “contranatura” e marcam no corpo a imoralidade.

231
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 30-31.
232
Ibid., p. 31.
233
Ibid., p. 42.

96
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O padre afirma que, uma vez fixado pela natureza o que um animal é, não pode haver
modificações, pois essa fixação é obviamente natural, e sendo assim está em consonância
com o Logos da natureza. Dessa maneira, nenhum animal ou indivíduo pode modificar seu
sexo, uma vez que a natureza é marcada por uma razão ou presença permanente de um
Logos, refletido nas especificações do mundo animal. Assim, modificações como os
referentes a ter dois sexos ou um terceiro que seria intermediário entre o masculino e o
feminino são, nas palavras de Clemente, “quimeras que os seres humanos imaginam” 234.
Essa lição serve de sustentação para a discussão realizada em O Pedagogo sobre as
diferenças entre os sexos, que recusa a alternância segundo a delimitação pelo Logos da
natureza de uma “dualidade do desejo”235 que tem origem na diferença de gênero. No
interior desse pensamento, essa “dualidade do desejo” será superada no outro mundo, que
é um mundo ideal, onde não haverá desejo, pois mesmo dentro de um padrão binário de
gênero como sinônimo de diferença anatômica, o desejo, para Clemente, ainda possui
conotação negativa ao ser possibilidade de uma atitude sexual que não vise apenas a
procriação, mas também, ou somente, o prazer.
Ainda sobre a hiena, existe nesse animal uma singularidade anatômica que não se
encontra em nenhum outro animal, “uma excrecência de carne que desenha por baixo da
calda uma forma muito próxima de um sexo de fêmea, mas o exame rapidamente mostra
que a dita cavidade não abre sobre conduta alguma, nem na direção da matriz, nem na do
intestino”236. Sobre essa particularidade, Clemente desenvolve uma explicação de cunho
moral. Para ele, apenas observadores precipitados aludem tal característica anatômica à
existência de dois sexos, o que se observa, na verdade, é um elemento que mantém uma
relação ao mesmo tempo de efeito e de instrumento com a falha moral237, pois se o corpo
das hienas se apresenta tão estranhamente disposto é devido a uma consequência do “vício”,
uma propensão excessiva para o prazer, próprio dessa espécie, e semelhante à lascívia,
própria de alguns homens.

234
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 43.
235
Ibid., p. 44.
236
Ibid., p. 45.
237
Ibid., passim.

97
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Dito de outro modo, o seguimento do Logos divino, presente no Logos da natureza,
aproxima o homem da natureza divina; e o ato de procriação, quando realizado
exclusivamente como reprodução do ato do criador, exclue qualquer tipo de adição ou desvio
e possibilita a sinergia com Deus pela analogia ao ato divino. Quanto mais usamos nosso
corpo segundo o Logos divino mais nos afastamos da natureza imperfeita humana e nos
aproximamos da natureza divina, nessa mesma lógica, quanto mais fazemos usos do corpo
contrários ao Logos, ou seja, contrário à própria natureza, mais nos afastamos do divino e
intensificamos a imperfeição humana.
Essa imperfeição pode ser vista nos comportamentos moralmente lascivos, como os
da hiena, e pode gerar respostas da própria natureza que dispõe de recurso para esses tipos
de excessos, tornando-os inúteis à finalidade da procriação, mas mantendo inscrito no corpo
uma diferença que diz sobre o uso indevido deste. Esses tipos de recursos servem tanto como
lembrete a todos dos males decorrentes do contrariar o Logos da natureza, quanto como
uma forma de distinção social entre os corpos naturais e os “contranaturas”. Temos,
portanto, nas palavras de Foucault: “todo um ciclo que vai da natureza à ‘contranatura’, ou
antes o entrecruzar-se incessante de natureza e de ‘contranatura’ que dá às hienas, um
caráter reprovável, inclinações excessiva, órgãos excedentários e meio destes servirem ‘para
nada”’238.
Quanto ao exemplo da lebre, caminha na mesma direção que o da hiena, busca revelar
como qualquer tipo de uso do corpo na relação sexual, que não seja exclusivamente com a
finalidade da procriação, deve ser condenado. A lebre, assim como a hiena, também possui
uma particularidade anatômica que marca no corpo seus excessos. Continuando a seguir
Aristóteles, Clemente rejeita a crença na lebre como animal de ônus anual, substituindo-a
pela ideia da superfetação: “Os animais em apreço são lúbricos que tendem a acasalar
incessantemente, não respeitando tampouco o tempo da gestação e do aleitamento”239.
Desse modo, a natureza, numa estratégia intrínseca à afirmação da sua lógica, deu à
fêmea uma matriz com duas ramificações, que lhe permite conceber com mais de um macho

238
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 44.
239
Ibid., p. 45.

98
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
e também até antes de parir. Assim, o ciclo natural da reprodução que, segundo a lição dos
médicos, reclama a fecundação quando está vazia e recusa a aproximação sexual quando está
cheia, pois sua única finalidade é a procriação, “vê-se assim perturbado por uma disposição
de natureza que permite sobrepor de modo inteiramente ‘contranatura’ a prenhez e o cio”240,
revelando-nos a partir de uma marca no corpo a imoralidade do agir em dissonância com o
Logos.
Em suma, esses exemplos servem para revelar como o Logos manifesta-se em detalhes
que podemos analisar como, a partir dos detalhes não apenas simbólicos, mas também
anatômicos desses dois animais, é possível localizar no corpo a marca da falta de moderação.
E sob o signo da natureza do homem dotado de razão, assim como o ensinamento dos
estoicos, Clemente faz valer o princípio familiar da “temperança” sob a insígnia do controle
da alma, dotada de razão, sobre o corpo, refém dos desejos.

OS APHRODISIA, A TEMPERANÇA E A EXPERIÊNCIA DA CARNE


Fazendo um contraponto acerca da problematização moral dos prazeres apresentada
por Foucault na História da sexualidade II e a História da sexualidade IV, observamos como o
comportamento sexual dos sujeitos foi condicionado e subordinado a uma ética cristã da
carne, para a qual a temperança tem papel fundamental. Nesse panorama, Foucault reflete
sobre a moralidade sexual e traça a constituição dos aphrodisia como campo de cuidado ético
e moral.
Inicialmente, Foucault faz uma alusão ao termo no que se refere aos “atos, gestos,
contatos, que proporcionam uma certa forma de prazer” 241, mais precisamente, às dinâmicas
de intemperança (akolasia) proporcionada pelos prazeres do corpo, exceto os da visão, os do
ouvido ou os do olfato242.
Dentre os sentidos que fragilizam a boa conduta do ser humano, como a visão, a
audição e o olfato, reserva especial atenção aos sons, imagens e perfumes, pois eles podem

240
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 45-46.
241
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 38.
242
Ibid., passim.

99
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
levar a condutas que dão prazer ao corpo e revelam o desejo da alma desgovernada em sua
profundeza243. Por isso, consideramos a alma uma prisão do corpo, uma vez que este é
subordinado ao que é mais profundo da natureza humana. Assim, comportamentos,
sensações, desejos e imagens simbolizam um conjunto de elementos que rementem ao
problema moral da conduta sexual para o cristianismo.
Dentre as formas de interdição do corpo cristão, reside o deslocamento de preceitos
da corrente grega clássica. Isso fica claro quando Foucault 244 afirma que “existiram
pensadores, moralistas, filósofos e médicos para estimar que o que as leis da cidade
prescreviam ou interditavam, o que o costume geral tolerava ou refutava, não podia ser
suficiente para regular devidamente a conduta sexual de um homem cuidadoso de si”245, o
que atribui ao prazer sexual um valor negativo e, por isso, o sujeito deve ser levado a um
estado de vigilância de si.
Foucault apresenta-nos quatro tipos de “estilização da conduta sexual” 246
desenvolvidos em campos e propósitos com perspectivas distintas referentes às reflexões
sobre os aphrodisia: Dietética (corpo), Econômica (casamento), Erótica (rapazes), Filosofia
(verdade). Noções essas que tocam fortemente as problematizações de Foucault em As
Confissões da Carne, e visíveis, sobretudo, quando pisamos os solos das verdades cristãs em
uma perspectiva arquegenealógica das leituras filosóficas e teológicas que ele nos apresenta
ao longo de suas pontuações.
Ao acionar o discurso da natureza de alguns animais e suas descrições anatômicas para
problematizar os comportamentos sexuais dos humanos, Foucault afirma que mais importa
a sua dinâmica de atividade do que a forma que os constituem. Assim, “essa dinâmica é
definida pelo movimento que liga entre si os aphrodisia, pelo prazer que lhes é associado e

243
Sobre esta assertiva, cf. Ibidem, p. 51. É verdade que na educação e no exercício da temperança recomenda-se desconfiar
dos sons, imagens e perfumes. Mas não porque a importância que se lhes dá seja a forma mascarada de um desejo, cuja
essência consistiria em ser sexual; e sim porque existem músicas que por seus ritmos são capazes de enfraquecer a alma,
porque existem espetáculos que são capazes de tocar a alma como um veneno e porque tal perfume, tal imagem, são de
molde a evocar a “lembrança da coisa desejada”.
244
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014.
245
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 47.
246
Ibid., p. 46.

100
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
pelo desejo que suscitam. A atração exercida pelo prazer e a força do desejo que tende para
ele constitui uma unidade sólida com o próprio ato dos aphrodisia”247. Logo, o ato, o desejo
e o prazer são o motor dessa dinâmica e constituem perigo para o sujeito, pois residem no
desejo daquilo que lhe é agradável e que deve ser contido para que o sujeito não tenha
nublado sua capacidade de ponderação e seu julgamento.
Mais do que o prazer, a reflexão acerca dos desejos é intensificada, sobretudo, quando
Foucault evoca Platão para tratar da relação produtiva com a falta e entre o apetite e a
representação do que dá prazer. Portanto, uma relação de produtividade em ambos os casos.
Nesse entremeio, Foucault afirma que “não poderia haver desejo a não ser na alma, pois se
o corpo é atingido pela privação, é a alma e somente ela que, através da lembrança, pode
tornar presente a coisa a ser desejada e, portanto, suscitar a epithumia”248, doravante desejo.
A problematização dessa dinâmica, pelo cristianismo, permite-nos observar a
arbitrariedade de uma estreita e perigosa relação entre o desejo e o prazer, uma vez que é
“o desejo que leva ao ato, o ato que é ligado ao prazer, e o prazer que suscita o desejo” 249,
além de constituir um objeto de reflexão moral para os gregos dada a força que liga esses
elementos entre si que incide sobre o sujeito e o leva à falta. Um ciclo que se desdobra em
formas de controle dos sujeitos ao exaurir a materialidade corporal.
Embora na moral grega haja uma liberdade dos costumes, Foucault atenta para a
reserva que marca a representação dos atos sexuais. Nesse campo, destacamos a Erótica
como dinâmica quantitativa assinalada pela “moderação e a incontinência”250. Isso pressupõe
a dualidade temperança-intemperança marcada pelo controle dos prazeres entre homens e
mulheres como algo natural para a procriação e do prazer entre sujeitos do mesmo sexo, no
qual reside a contranatura, o anormal, pois viola as leis da natureza que viabilizam a
procriação natural e instintiva do ser humano.
Observamos, ainda que, nessa referência ao casamento o corpo da mulher é
controlado a ponto de considerarmos sua analogia ao corpo da Virgem Maria como uma

247
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 52.
248
Ibid., p. 54.
249
Ibid., p. 42.
250
Ibid., p. 54.

101
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
extensão da Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). Portanto, uma mulher tocada
apenas pela palavra, ou seja, pela verdade que a subjetiva e a coloca por meio da fé no lugar
de corpo produtivo ao ser dado à procriação. Assim, a atividade e passividade dos corpos no
ato sexual é discutida e problematizada segundo os preceitos de natureza e de
(a)normalidade, ao passo que o ser temperante resiste ao deleite da carne e o intemperante
rende-se ao desejo e à desmesura.
Ao deslocarmos o olhar acerca da noção dos aphrodisia para o cenário cristão, no qual
ela se apresenta estritamente análoga ao prazer sexual, temos a constituição da sexualidade
e da ética da carne, a desqualificação não apenas do prazer, mas do corpo, e suas
consonâncias com a alma subordinados ao campo de cuidado moral e de gerenciamento de
si que nos levam a pensar em uma espécie de hermenêutica de si ao longo da história e que
toca o “nós” da atualidade.
Isso se evidencia em As Confissões da Carne251, quando Foucault mostra como o
conjunto dessa estilização não é dissociado pelo cristianismo ao tomar a dieta dos corpos
para os corpos cristãos, na qual reside o discurso de uma luta constante contra o desejo que
afeta e polui a alma, pois é pelo desejo de prazer carnal que se configura o perigo da
intemperança dos sujeitos e que os leva ao excesso, ao demasiado, ao descontrole. Por isso,
a imposição de um regime coletivo de contenção e temperança para o controle do desejo, e
nesse caso, sexual, carnal, para o domínio dos corpos.
Entendemos, portanto, que nossa missão não se reduz meramente à análise do termo
grego que remete à dieta dos aphrodisia, mas à problematização do corpo e suas extensões
no campo da sexualidade, como a tomada da moral grega para o cristianismo com o propósito
de controle não apenas do sujeito em sua individualidade, mas da coletividade dos corpos,
sobretudo, pelo reconhecimento sobre a sexualidade ser uma instância que oferece perigo
ao equilíbrio do sujeito, levando-o ao transbordamento de si por se tratar de uma demanda
de ordem natural das consonâncias da carne e, por isso, uma via de acesso eficiente e
produtiva na constituição de subjetividades e coerção dos corpos.

251
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019.

102
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
E, pensando nessas extensões, não há como não citar a (in)continência, a
(in)temperança, o excesso e a desmesura como formas de penitência para o corpo
desdobradas em técnicas de si, que pressupõem um cuidado de si arbitrados por uma
profecia cristã como meio de acesso à verdade divina materializados em mandamentos. Tais
mandamentos são praticados pelos corpos subjugados e sujeitando-os ao cumprimento de
etapas a serem obedecidas e praticadas em sacramentos estrategicamente pensadas para o
controle e para o estabelecimento de uma ordem discursiva que favorece determinado
modelo de conduta a ser seguido.
Isso configura um processo de governamentalidade imposto pelo cristianismo ao
longo da história; condiciona a autonomia dos sujeitos sobre si a uma ordem institucional de
poder por meio de uma fé que se que humaniza e dignifica a existência de um Deus superior
a tudo e a todos e representado no discurso do poder pastoral pela multiplicação de técnicas
de ideal ético e moral, nas quais a sexualidade deixa de ser apenas elemento de uma obra de
arte erótica, mas, agora, uma arte de governar por meio de mecanismos político-pedagógicos
de ser e de viver cujas relações são tecidas e atravessadas pela moral dada a constituir e
subjetivar sujeitos, a ponto de docilizar seus corpos por meio de uma sujeição constante,
atribuem-lhes uma relação de “docilidade-utilidade”252. Assim, um corpo útil é aquele
treinado, temperante e em constante continência.
Quando Foucault escreve sobre o uso dos prazeres, fica claro que há uma tensão entre
o modelo grego (ético) e o cristão (moral). Isso se materializa ao tratarmos da Enkrateia,
domínio que delimita a atitude de si consigo para constituir-se como sujeito moral. A
Enkrateia constitui-se, sobretudo, por uma forma ativa de domínio de si que viabiliza a
resistência e garante a dominação dos desejos e dos prazeres.
Posteriormente, deslocada por uma conduta cristã na qual a vigília do corpo luta
contra as tentações, o modelo grego procura um bom uso dos prazeres, não sua condenação.
Por isso, estabelece uma luta, um modo de resistência, práticas para uma existência plena

252
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 20 ed. Petrópolis: Vozes,
1987. p. 118.

103
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
consigo para provar-se, mostrar-se forte e resistente. Quanto maior o prazer que levaria à
perdição, maior a resistência e maior o mérito.
Diferente da Sophrosune que é, para os gregos, a liberdade que se alcança pelo
domínio dos prazeres, a temperança (a prática e o comedimento é o meio pelo qual os gregos
adquiriam a liberdade, através do uso correto dos prazeres podia-se desfrutar deles, em vez
de ser por eles comandado), a Enkrateia, caracteriza-se por práticas mais contundentes,
combativas, cujo oposto seria a Akrasia: incontinência que se deixa levar, arrastada, por sua
vontade ou contra, pela inexistência de força para resistir.
Os sujeitos precisam da Enkrateia de forma a constituir a temperança, uma vez que
somente aquele que lutou e venceu pode se dizer dono de seus prazeres. Ao tratar do
domínio de si, de certa forma um autocontrole, a Enkrateia entra na dinâmica dos prazeres
gregos por ser uma provação, um desafio que o indivíduo precisa vencer para tornar-se dono
de si mesmo. Para Foucault, “esse exercício da dominação implica, em primeiro lugar, uma
relação agonística”253.
Assim, temperança pressupõe que o sujeito instaure “uma relação de si para consigo
que é do tipo ‘dominação-obediência’, ‘comando-submissão’, ‘domínio-docilidade’”254, e isso
significa estabelecer para si um modo de ser e de viver, dado o “reconhecimento ontológico
de si”255, por meio do conhecimento de si e do controle de si como virtude de
governamentalidade humana. Enquanto dominação, comando e domínio pressupõem uma
ação do sujeito sobre si e seus desejos; obediência, submissão e docilidade implicam uma
atuação exterior sobre esse sujeito. Observamos, portanto, que o estabelecimento dessas
dicotomias traz a noção de atividade-passividade no governo dos corpos que irá se repetir
em outros conceitos e técnicas próprios da moral cristã que serão trabalhados a seguir.

MORAL, VERIDICÇÃO E METANOIA NA CONSTITUIÇÃO DO SER CRISTÃO

253
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 82.
254
Ibid., p. 66.
255
Ibid., p. 80.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O caminho percorrido até aqui demonstra que pensar o corpo como lugar de
constituição de subjetividades é, antes de tudo, revisitar lugares de saber atribuídos à carne
como produto da experiência sobre si e para sujeitos de uma dada época. Os princípios que
tomamos, a partir de Foucault, estabelecem matrizes normativas para uma conduta aceitável
do corpo em um estrato histórico específico e foram deslocados para o pensamento e,
principalmente, as práticas cristãs. Em consonância com essas práticas é que se estabelece a
necessidade de vigília sobre o corpo para controle das condutas e alcance da temperança.
A moderação, a temperança, como formas de praticar a si, figuram papel importante
nos deslocamentos da contenção na conduta dos corpos. Foucault (1998) salienta a
importância da temperança como forma de virtude no estabelecimento da abstenção sexual
como forma de sabedoria, o que conecta os homens com algum elemento superior à própria
natureza humana. Assim, temos então que “a temática da abstinência sexual e o acesso à
verdade já estava fortemente marcada”256.
Para esse certo controle, as práticas dos sujeitos baseiam-se em 3 conjuntos de
relações: com a verdade, com as obrigações e consigo mesmo com os outros. Nessa rede de
relações, tomamos o cuidar de nós mesmos enquanto princípio ético, regra da arte de viver.
A Ética, assim, figura como prática, um dado conjunto de normas através das quais o sujeito
deve praticar-se, mas não em apenas um momento; essa prática deve perpetuar toda a
existência. Nessa perspectiva, somente através desse conhecimento é possível praticar a
liberdade.
É preciso enfatizar, entretanto, que o pensamento filosófico não pré-formaliza uma
matriz para as sociedades pastorais a posteriori. Foucault aponta que, no pensamento antigo,
as “exigências de austeridade não eram organizadas numa moral unificada, coerente,
autoritária e imposta a todos da mesma maneira”257. Assim, tomamos o pensamento antigo
como importante na compreensão genealógica da temperança enquanto virtude, concepção
que se desloca em outros grupos sociais na história.

256
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Paz e Terra, 2014. p. 22.
257
Ibid., p. 23.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Temos, então, nas fagulhas da civilização greco-romana, o cuidado de si enquanto
conhecimento de si. Esse conhecimento impele ao sujeito a sapiência de quais normas deve
seguir, quais condutas deve adotar de forma a alcançar o divino. Entretanto, conhecer a si
implica no conhecimento do outro. Cuidar de si é cuidar também do Outro. No controle das
condutas, Sêneca (2014) coloca o exempla como extremamente relevante não só pela
observação presencial de ações virtuosas, pelo exemplo, mas, sim, pela construção e
consequente evocação de imagens idealizadas dessas ações através da fala dos mestres.
Sêneca258 apresenta a importância do exempla nos seguintes termos:

Será útil não apenas descrever as qualidades habituais dos homens virtuosos
e a figura deles, traçar suas feições, mas expor suas qualidades ao narrar suas
ações: de Catão aquele derradeiro e tão valente ferimento pelo qual se exalou
a alma da liberdade, de Lélio a sabedoria, bem como a harmonia com seu caro
Cipião, do outro Catão a notável conduta em privado e em público, de
Tuberão o leito de madeira em que se estendera no banquete oficial em
celebração de sua entrada para o Senado, e as peles de cabra em lugar de
mantas e, diante do próprio templo de Júpiter, a louça de argila posta para os
convivas.

Assim, em uma sociedade na qual o privilégio na hierarquia das relações de poder é do


homem, cuidar de si é também cuidar das mulheres, olhar as mulheres. No estabelecimento
dessas relações, é importante aos homens e às mulheres terem noção de seus papéis e
funcionalidades e, como consequência, é importante aos homens governarem e controlarem
suas mulheres.
Saberes sobre o cuidado, o governo e a vigilância com as mulheres circulam e se
materializam na história em múltiplos momentos. No curso no Collége de France, em 1978,
Segurança, Território, População inaugura o tema da governamentalidade, que, na forma do
problema do governo de si e dos outros, constituirá o centro das investigações foucaultianas
até 1984. Nesse curso, ao traçar a história da ideia do governo dos homens, Foucault se
detém naquilo que chama de poder pastoral, as condutas pastorais na idade média.
Nas sociedades pastorais, que possuem como máxima a obediência, primordialmente
as cristãs, a vigilância incide sobre as populações deslocando-se de uma prática individual.

258
SÊNECA. Epístola 95, 72. In: A Ira / Sobre a Tranquilidade da Alma. Companhia das Letras. 2014. p. 21.

106
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Vimos que, na perspectiva estoica, era necessário aos sujeitos o controle de seus instintos de
forma a aproximar-se do divino. Nas fagulhas das sociedades greco-latinas, o controle de
conduta se materializa na prática de si, no conhecimento de suas possibilidades sociais em
um dado momento da história, o que se desdobra no controle da conduta do outro.
Essa vigilância do outro se mantém e toma novas dimensões nas sociedades pastorais,
uma vez que é almejada a salvação. A salvação se estabelece, então, como prática coletiva,
social. Assim, é necessário que os indivíduos sejam vigilantes consigo e com os demais e, para
isso, as instituições atuam de forma incisiva.
No cerne do cristianismo, tomamos a abordagem trazida por Foucault 259 em História
da Sexualidade IV: As Confissões da Carne, no capítulo dedicado ao “Batismo Laborioso”, que
remete ao ritual que se configura como um divisor de águas para aquele que objetiva a
introdução à vida cristã. Para isso, o cristianismo estabelece papéis pré-definidos para as
condutas, sobretudo corporais, que visam exteriorizar o sujeito interior, a fim de assegurar a
remissão das faltas desse sujeito como um modo de ser.
Foucault questiona a “natureza das coisas” em uma releitura aristotélica quando trata
das formas de governo. Tomamos aqui a perspectiva da excepcionalidade de determinados
sujeitos, trazida por Foucault ao tratar de governamentalidade em sua leitura de Aristóteles,
enquanto a permissão que certos sujeitos possuem de falar sobre algo em algum lugar. Assim,
tratamos aqui de um regime de condições de possibilidade que tornam possível que um dado
discurso venha à tona atuando em formas de governo da conduta de nós mesmos e de nossos
corpos. Para tanto, faz-se necessário que se possa controlar aquilo que nos descompensa,
estando atento para as intempéries que nos cercam, em um processo de renúncia.
Podemos fazer uma analogia da renúncia a si como um renascimento, um processo no
qual ocorre uma morte simbólica do sujeito pagão e, por meio do acesso à verdade, ocorre a
regeneração do sujeito, um retorno à vida para além da morte. Ao remeter a autores do
século II, Foucault260 ressalta quatro efeitos do batismo sobre o sujeito que se converte ao

259
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019.
260
Ibid., passim.

107
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
cristianismo, ao considerar que esse ato lava, marca, constitui um novo nascimento e ilumina
a alma do ser.
Trata-se de um procedimento no qual o corpo e a alma são atravessados por uma
verdade, já que as faltas são lavadas pela água batismal que constitui o selo do filho de Deus
sobre o corpo; a imortalidade espiritual advém do renascimento à nova vida e conduz o ser,
dissipando as trevas e transportando-o à luz divina. Temos, portanto, um processo dual no
qual “a doutrina e o conjunto das regras definem a “ ‘via da vida’ por oposição à da morte” 261.
Ao falar das regras de veridicção a que o corpo está submetido, Foucault apresenta-
nos o termo “Metanoia, traduzido por autores latinos como paenitentia, e utilizado a
propósito do batismo”262, como uma forma de materializar a transição do corpo pagão para
o corpo cristão. A metanoia configura-se como um processo de elaboração das condições de
existência dos sujeitos, sobretudo os cristãos que se inserem na vida religiosa através do
cristianismo. Este, por sua vez, pressupõe uma vida penitente e um contínuo de vigilância.
Não há como não citar a (in)continência, a (in)temperança, o excesso e a desmesura e
seu controle como formas de penitência para o corpo desdobrado em técnicas de si que
pressupõem um cuidado de Si arbitrados por uma profecia cristã como meio de acesso à
verdade divina, materializados em mandamentos e praticados pelos corpos subjugados e
sujeitando-os ao cumprimento de etapas a serem obedecidas e praticadas em sacramentos,
que são estrategicamente pensadas para o controle e o estabelecimento de uma ordem
discursiva que favorece determinado modelo de conduta a ser seguido.
Isso configura um processo de governamentalidade estabelecido pelo cristianismo ao
longo da história, condiciona a autonomia dos sujeitos sobre si a uma ordem institucional de
poder por meio de uma fé na qual se humaniza e dignifica a existência de um Deus superior
a tudo e a todos e representado no discurso do poder pastoral pela multiplicação de técnicas
de ideal ético e moral, nas quais a sexualidade deixa de ser apenas elemento de uma obra de
arte erótica, mas, agora, uma arte de governar por meio de mecanismos político-pedagógicos
de ser e de viver, cujas relações são tecidas e atravessadas pela moral dada a constituir e

261
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 66.
262
Ibid., p. 67.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
subjetivar sujeitos a ponto de docilizar seus corpos por meio de uma sujeição constante,
atribuem-lhes uma relação de “docilidade-utilidade”. Assim, um corpo útil é aquele treinado,
temperante e em constante continência.
A temperança pressupõe que o sujeito instaure uma relação de si para consigo que é
do tipo “dominação-obediência”, “comando-submissão”, “domínio-docilidade”, e isso
significa estabelecer para si um modo de ser e de viver dado o “reconhecimento ontológico
de si” por meio do conhecimento de si e do controle de si como virtude de
governamentalidade humana.
Esse pensamento, em sua natureza genealógica, diz-nos que o homem pode ser visto
em uma síntese real e intencional do universo: real, porque nele estão presentes uma série
de possiblidades de existência palpáveis; intencional, porque, pelo poder de abstração, tudo
se encontraria no conceito de ser do qual nada fica excluído e ao qual nada pode subtrair-se,
tudo tem que permanecer como está. Temos, assim, que o conhecimento de si não visa
modificações, mas a possibilidade de estabelecimento de novas relações de si consigo
mesmo.
O batismo destaca-se, nesse processo, como um marco no qual o ponto de saída e de
chegada materializa-se no corpo, fato que confirma a premissa foucaultiana de que “o corpo
é o ponto zero do mundo”263. Se pensarmos que a penitência é regida pela obrigação com
uma verdade macro e, nesse caso, consideramos que a Igreja assume esse lugar, dizer a
verdade sobres si revela-se como uma forma jurídica que deve cumprir três passos: pecado-
confissão, punição e salvação. Dessa feita, a penitência é, antes de tudo, uma prática de
exame de si que inicia e tem sua continuidade no corpo de cada ser.
Daí acionamos a metáfora do pião de Festugière trazida por Foucault, a qual preconiza
“alguma coisa que gira sobre si por solicitação e sob o impulso de um movimento exterior”
264
, por se tratar de uma dupla manifestação do cuidado de si que resulta na autofinalização
do eu e se funda na ideia de salvação, fortemente difundida na verdade cristã.

263
FOUCAULT, Michel. O corpo utópico: as heterotopias. Tradução de Salma Tannus Muchail. São Paulo: n-1 Edições,
2013. p. 14.
264
FOUCAUL, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio
Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 255.

109
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Ora, a partir do momento em que o sujeito pagão se converte, e aqui entendemos por
tal como aquele que não segue a religião dos judeus e a crença no Deus único, logo não
monoteísta, a instauração de uma verdade se manifesta. Por esse motivo, faz-se necessária,
segundo a prática no cristianismo, uma desvinculação do eu anterior à conversão por meio
do Batismo, a fim de estabelecer uma relação pedagógica com vestes jurídicas a propósito de
uma verdade de si sobre si, mas que atende aos interesses de um impulso exterior ao sujeito.
Assim, as imagens de uma vida análoga ao movimento do pião simbolizam a “virada
em direção a nós desviando-nos do que é exterior”265, por meio de um retorno a si na ordem
dos princípios morais. Esse movimento traz à tona, no ocidente, a conversão como uma das
tecnologias do eu que se elabora e se transforma ao longo do tempo e tem como elemento
essencial um tripé constituído pelo exercício, pela prática e pelo treinamento, por isso um
exercício contínuo entre corpo e alma.
Nesse processo, o primeiro sucede o último e ambos movimentam em torno de um
referente, de um efeito imaginário de unidade que coloca uma verdade sobre a economia
sexual a ponto de a alma apagar o corpo em detrimento de um cuidado de si autorizado por
uma doutrina que dita regras para os modos de observar o mundo a sua volta, bem como de
ser e de viver para o corpo em sua essência mais profunda, a alma.
Esse processo torna-se visível quando Foucault traz as dualidades que resultam na
experiência de si e de renúncia a si: “da morte à vida, da obscuridade à luz, do reino do
demônio ao de Deus”266, configurando um conhecer a si deslocado da moral pagã na qual há
o desprendimento corpo e alma. Diferentemente, na cultura e prática helenística, o processo
de adequação de si para consigo se dá pela ruptura corpo e alma.
Contudo, observamos em As Confissões da Carne que há, na verdade, um
deslocamento de valores e princípios que visam, na reelaboração do sujeito, o exercício do
poder do outro incidindo sobre o corpo, a fim de governar os desejos carnais pelo domínio
da alma. Esse controle se dá, por sua vez, do exterior para o interior e por meio de saberes
difundidos pela verdade cristã.

265
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio
Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 255.
266
Ibid., p. 260.

110
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Trata-se, portanto, de um processo de subjetivação no qual renunciar a si pressupõe
“morrer para si e renascer em outro eu”267; a esse processo denominamos morte social, dada
a ruptura do eu, não com o seu interior, mas com o exterior. Com isso, identificamos, por
uma discussão em dois polos, que operam processos de governamentalidade distintos: o
governo de si e o governo do outro, nos quais os sujeitos são subjetivados pela normatização
do desejo como uma forma de escrita de si no corpo.
Dado os interditos que incidem sobre os corpos e tendo em vista que a sexualidade é
um terreno fértil e perigoso para o sujeito, segundo as instituições que pregam uma matriz
moral, lidar com seus próprios limites e desejos constituem um lugar de desconforto e de
ameaça à ordem, uma vez que o excesso e a desmesura levam o sujeito à vulnerabilidade e,
por sua vez, impossibilitam domínio da carne. Logo, as interdições sexuais se dão por técnicas
políticas de exercício de poder sobre um si.
O sujeito não é capaz, por si só, de ter acesso à verdade de si mesmo. Somente as
práticas de si, práticas que apenas ocorrem através da mediação entre mestre e discípulo,
possibilitam o acesso à verdade de si e à condição de que o sujeito se aproprie dela. Assim, o
sujeito precisa ser preparado, guiado, acompanhado para que esse acesso, a ascese, se
habilite na articulação de práticas para alcançar a verdade. Por conseguinte, ao passo que
nesse si opera a alma em atividade, que é o que movimenta o corpo, o conhecimento e o
cuidado de si reverberam, por meio das técnicas de si, uma forma de governo (auto)imposta
a propósito de um outro, de uma força exterior. Essas práticas cobram um preço a ser pago
pelo sujeito.
Por esse motivo, pensar, refletir e compreender o si ultrapassam as abordagens ao
sujeito nos estudos foucaultianos acerca da metanoia e permite-nos pensar um diagnóstico
do si no presente do eu/sujeito. Portanto, constatamos que a metanoia configura um
movimento contínuo de aperfeiçoamento do sujeito vigilante sobre si, elemento
fundamental para a consolidação da conversão no cristianismo, por meio de uma técnica de

267
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio
Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 260.

111
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
“re-procriação”268, enquanto um processo de dessubjetivação269 do sujeito, antes, à margem
da moral cristã.
Logo, dessubjetivação e governo do outro caminham de mãos dadas no
funcionamento do discurso de verdade, uma vez que, nesse processo, o cristianismo instaura
“as formas que nos constroem enquanto sujeito, para a desordem desestruturante” e faz
com que ele deixe de ser aquele ser que tinha aprendido com o tempo de sua história” 270.
Assim, ao observarmos os modos de organização das tecnologias do eu ligados à
veridicção, ou seja, o modo de o sujeito dizer a verdade sobre si mesmo, entramos na relação
entre a subjetividade e a verdade que nos constitui enquanto sujeitos do nosso tempo, da
nossa história, e os indícios que permitem identificar esse movimento são observados na
relação entre sujeito, corpo e alma, dentro das suas condições de possibilidade de existência
no mundo. De todo esse movimento, depreende-se, portanto, acerca das relações consigo,
com o outro e com a verdade que, do processo de dessubjetivação proposto na metanoia
cristã, por meio de uma matriz moral, emerge uma nova subjetividade.

DIREÇÃO DA CONSCIÊNCIA: DOMÍNIO DE SI VERSUS DOMÍNIO DO OUTRO


O processo de dessubjetivação proposto na metanoia cristã mantém uma relação
íntima com a direção de consciência realizada na construção de uma aprendizagem própria
do cristianismo sobre como deve o cristão agir diante de Deus e do mundo, como esse cristão
deve usar sua alma e consequentemente seu corpo para provar sua fé. Nessa direção,
Foucault, em Confissões da Carne, mais especificamente no capítulo “Artes das artes”,
descortina um processo de captura da direção da consciência da vida filosófica e estoica, sua
elaboração a partir de um processo de diferenciação que gera uma série de técnicas cristãs
voltadas para uma técnica de direção da consciência que leva o sujeito a uma dessubjetivação
e, posteriormente, uma subjetivação cristã.

268
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 265.
269
MILANEZ, Nilton. A dessubjetivação de Dolores. Escritas de discurso e misérias do corpo-espaço. Linguagem.
Estudos e Pesquisas (UFG), v. 17, p. 369-389, 2013.
270
Ibid., p. 372.

112
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Desse maneira, olhando para a atualidade, para ato de se voltar para alguém e lhe
contar tudo o que lhe acomete, sentimentos, sensações, acontecimentos e pensamentos,
como uma prática ideal e moralmente julgada positiva na busca pelo autoconhecimento, que
encontra seu lugar nos consultórios de psicanálise, psicologia e nas relações com líderes
religiosos cristãos como os padres e pastores, percebemos que essa atitude possui uma
tradição muito antiga e significativamente importante na história do cristianismo e,
consequentemente, na história e produção de subjetivação e controle dos corpos das
sociedades ocidentais.
Essa tradição encontra-se “dos mestres de conduta da Antiguidade aos guias da via
ascética — chamada noutros lugares vida filosófica”271, e posteriormente é assimilada pela
moral cristã que se difunde na sociedade, sendo reproduzida em diversos espaços e num
processo de dessubjetivação e subjetivação que produz corpos dóceis, sempre tendenciosos
a obedecer sem questionar.
As práticas, institucionalizadas ou não, de solicitação do auxílio do outro para lidar
consigo próprio no que se refere a comportamentos e condutas ocorriam das formas mais
diversas. Muitos médicos, por exemplo, eram consultados com o intuito de receitarem
“regras de vida que deviam assegurar o domínio das paixões, o controle de si, a economia
dos prazeres, a equidade das relações com outrem”272. Uma das práticas que envolviam o
auxílio de uma outra pessoa no controle de si, das paixões, das sensações e desejos corporais,
com o objetivo de uma direção da vida conforme determinados preceitos, que futuramente
ganha destaque dentro do cristianismo, diz respeito ao exame de consciência:

No grande desenvolvimento da filosofia helenística como direção de


consciência, o exame da alma desempenha um papel considerável. Constitui
uma espécie de revezamento: uma muda onde o dirigido rende o diretor, uma
charneira entre o período em que alguém é dirigido e o momento em que
deixa de o ser. E através do exame que o discípulo ou o consulente pode
aceder ao estado de quem descobre o estado da sua alma ao seu diretor, a
fim de que este possa formar um juízo e determinar o remédio apropriado273.

271
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 121.
272
Ibid., p. 122.
273
Ibid., p. 124.

113
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O exame de consciência, segundo Foucault, no interior tanto da filosofia helenística
como do estoicismo, considerando suas peculiaridades e diferenças, levanta a questão do
domínio de si como objetivo final, pois, quando “o dirigido se examina, se assinala cada uma
das suas fraquezas, é bem para poder um dia tornar-se plenamente senhor de si mesmo e já
não ter de recorrer, num lance aziago, ao auxílio de outrem” 274.
Ainda nessa direção, no livro De ira, é possível percebermos claramente que o filósofo
estoico Sêneca propõe um tipo de processo de direção com o auxílio do outro que não tem
como intuito priorizar a reprovação do que se fez, mas “constituir esquemas de
comportamento racional para as circunstancias futuras”, visando justamente “reconhecer,
através dos erros’ e dos objetivos falhados, as regras que permitirão assegurar o domínio das
ações que se empreendem, e portanto o domínio de si mesmo”275.
Essas práticas, como pontuado anteriormente, tiveram influência e um papel
importante na história do cristianismo. Mesmo diante de literaturas como a de Clemente de
Alexandria, no início do terceiro livro de O Pedagogo, que buscava uma reflexão sobre si, seus
atos, sensações, pensamentos, as práticas de exame da consciência só começam a emergir a
partir do século IV276, pois o conhecimento de si e esse movimento de voltar-se para os atos
cometidos não eram “um exame de consciência, nem um mergulho nas profundidades de si
mesmo, trata[va]-se de uma ascensão para Deus a partir da instância da alma que pode subir
na sua direção”277.
Em outro front, a direção da consciência cristã que veremos emergir e construir para
si uma série de normas, práticas e técnicas se difere dessa reflexão proposta por Clemente
de Alexandria, assim como da direção da consciência estoica e helenística, apesar de
influenciada por estas. Pois, o que está sendo colocado em questão não é um controle de si
mesmo, mas um controle da consciência e das ações do outro, um controle dos fiéis, do corpo
de uma população que devia obediência a cada ação tentada e pensada. O corpo não era o

274
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 125.
275
Ibid., p. 128.
276
Ibid., passim.
277
Ibid., p. 129.

114
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
corpo para si, mas um corpo para serviço do outro, de Deus e de seus representantes dentro
da igreja.
Desenvolve-se no interior do cristianismo, mais especificamente no interior da vida
monástica, um processo de direção da consciência indispensável para formação cristã, que,
segundo Foucault278, tanto Cassiano, como todos os autores da sua época, consideravam tal
processo executado através de prolongados exercícios contínuos ao longo da vida, pois até
mesmo “quando se tem já uma grande reputação de santidade, é possível que se recaia”.
Assim, organiza-se todo um conjunto de técnicas de aprendizagens necessárias tanto
para a pessoa que ocupará o lugar de diretor, como de quem será direcionado. Articulam-se
técnicas de direção das almas e dos corpos nas suas ações mais banais. Tudo deve acontecer
conforme um querer alheio. É essa submissão composta por uma “obediência cega” que irá
marcar a formação cristã dentro dos mosteiros, não deve existir distinção entre o que se faz
por si só e o que se faz por conselho de outrem. Tudo o que é feito deve obedecer a uma
ordem”279.
Essa obediência essencial para a formação cristã deve ser tão desprovida de
julgamento por parte de quem obedece e de quem se submete ao direcionamento do outro
que seu valor maior estará na expressão de princípios como o da humilitas, da patientia, do
discretio, ou seja, princípios esses que reforçam um lugar passivo na relação com o outro,
como um jogo no qual todos competem para no final o ganhador não receber um prêmio,
mas dar da forma mais completa conseguida o controle da sua vida ao outro, como o maior
ato de caridade que pode existir.
Até mesmo o ato de pensar que nos parece automático é alvo no processo de direção
da consciência cristã, e novamente difere-se dos exercícios da vida filosófica e do estoicismo,
voltados para reflexão sobre a qualidade de alguns tipos de pensamentos em detrimentos de
outros para o fluxo vida. No sistema de obediência, decorrente de direção da consciência no
interior da vida monástica, nada deve ser feito ou pensado “sem que tenha sido ordenado ou

278
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 135.
279
Ibid., p. 138.

115
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
pelo menos permitido pelo diretor; trata-se pois de tomar em conta e de examinar, para o
submeter, o pensamento do ato antes de este último ter lugar” 280.
Assim, a forma como é tratada a capacidade de pensar, nessa perspectiva, é embasada
em uma desconfiança, pois o pensamento longe de ser uma qualidade ou dádiva humana se
torna algo negativo, um perigo interior, como uma fraqueza humana perante a natureza
divina, proporcionando “o risco que a alma virada para a contemplação corre de ser
perturbada a cada instante”281. Não é à toa que a árvore do fruto proibido era a que dava aos
humanos o conhecimento do bem e do mal, permitindo o discernimento. Dito de outro
modo, desenvolvendo a capacidade de pensar tão cara à nossa atualidade e ausente nos
processos de manipulação da população presentes no apoio aos maiores genocidas da
história ocidental, majoritariamente cristã, como Adolf Hitler e Josef Stalin.
Percebemos, então, que a movimentação cristã em torno tanto das sensações
corporais, sentimentos, atos cotidianos, processo de planejamento de ações futuras, possui
como interesse supremo a condução de seus fiéis a um estado que difere da proposta de um
conhecimento de si, mas volta-se para uma entrega total do seu corpo para uso do outro,
como esse outro queira usá-lo. É o sacrifício de Cristo que o cristão deve repetir, deixar seu
corpo ser cruelmente manipulado, traído e usado como manobra política para conservar o
populismo dos “Césares”.
Dessa feita, ao refletirmos sobre a articulação teórica exposta, que possui seu ponto
de emergência no discurso da natureza e os deslocamentos que indicam a produção de uma
conduta do corpo, da consciência e da alma na subjetivação cristã, observamos que ao longo
de séculos o cristianismo controla os corpos por meio de técnicas de direção da consciência
que confluem com uma interdição do desejo e do prazer carnal entre sujeitos, uma forma de
controle que se materializa na obediência a sacramentos específicos concebidos pela Igreja
Católica como via de regra e condutas a serem seguidas pelos cristãos, sendo elas: Batismo,
Eucaristia, Confirmação (ou Crisma), Penitência (ou Reconciliação), Matrimônio, Ordenação
sacerdotal e Unção dos enfermos.

280
FOUCAULT, Michel. História de Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira.
Lisboa: Relógio D’Água Editores. 2019. p. 150.
281
Ibid., p .151.

116
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
É nesse ínterim que a caridade proposta como princípio e finalidade da existência
humana, no cristianismo, é caracterizada seguindo o exemplo da vida de Cristo, e nesse
processo imitativo toma o corpo como objeto principal de manipulação, teorização e de
constituição de subjetividades marcadas por dualidades que, de um lado, associam à
divindade características como a obediência, passividade e ausência de prazer e desejo, e, de
outro, tudo o que se contrapõe a esses adjetivos é negativado.
A benção da igreja recai sobre os submissos, dóceis, servis, subservientes, cativos,
domados. Os corpos que não se deixam controlar, julgados indomados e até mesmo
selvagens, comparados a animais, são amaldiçoados com a atitude ativa diante da vida. Todos
que questionam, que ousam qualificar o prazer e a liberdade de expressão do corpo, das
sensações e dos pensamentos como uma qualidade humana são amaldiçoados com a atitude
ativa diante da vida. A altivez, na moral cristã, é mórbida, no entanto, na história da
humanidade, ela ecoa eternamente.

117
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
OS DISPOSITIVOS DA VERIDICÇÃO E DA SUBJETIVAÇÃO INSCRITOS NA CARNE

Marisa Martins Gama-Khalil


George Lima dos Santos

Por que e como o exercício do poder em nossa sociedade, o


exercício do poder como governo dos seres humanos, exige
não apenas atos de obediência e submissão, mas atos de
verdade nos quais os indivíduos sujeitos à relação de poder
também são sujeitos como atores, espectadores testemunhas
ou como objetos nos procedimentos de manifestação da
verdade? Por que, nesta grande economia das relações de
poder, se desenvolveu um regime de verdade indexado à
subjetividade?

Michel Foucault282

FORMAÇÕES CONCEITUAIS SOBRE A VERDADE

No tomo História da Sexualidade IV – As Confissões da Carne283, Michel Foucault se


dedica à problematização sobre a sexualidade realizada por Padres da Igreja dos primeiros
séculos da Era Cristã (de Justino a Santo Agostinho), abordando as operações realizadas pela
hermenêutica e pela decifração do desejo em suas respectivas instâncias de acontecimento.
Observamos nesse tomo a problematização em torno do ato de se dizer a verdade sobre si
mesmo em correlação com a prática de obediência, partindo desde o processo de preparação
para o batismo, compreendendo os ritos de penitência, indo até a constituição/manutenção
de uma vida monástica. Podemos afirmar que o objetivo de Foucault nessa obra é
compreender os modos pelos quais se problematizavam os temas voltados para a
sexualidade (procriação, virgindade, casamento, libidinização, entre outros) de acordo com a
conduta cristã da época. Assinalamos, entretanto, que é possível detectarmos a recitação de
muitas das práticas do referido período em acontecimentos de nossa atualidade e, nesse
sentido, Foucault parte de um período histórico determinado, mas sugere a ressonância

282
FOUCAULT, Michel. O Governo dos Vivos. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014a, p.
76.
283
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019.

118
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
dispersa e descontínua de práticas discursivas e não discursivas que se estendem, sob a forma
de comentário284, nas tramas da história.

O que nos chama atenção inicialmente nesse último volume da História da Sexualidade
é que os sintagmas “confissões” e “carne” não aparecem por acaso no subtítulo da obra. Tais
termos antecipam para o leitor o tema geral sobre o qual a obra trata: dispositivos de
veridicção sobre a objetificação que atribui sexualidade ao corpo ou, mais necessariamente,
sobre a objetificação que fazem do corpo o que os cristãos dos primeiros séculos chamam de
carne (espécie de experiência sexual, de amor etc.).

Os sistemas de veridicção podem ser entendido saí como:

as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas, discursos


capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as condições
dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer forma, ela foi paga,
seus efeitos no real e a maneira pela qual, ligando um certo tipo de
objeto a certas modalidades do sujeito, ela constituiu, por um tempo,
uma área e determinados indivíduos, o a priori histórico de uma
experiência possível.285 (grifo do autor)

Nessa perspectiva, o quarto volume da História da Sexualidade se insere no que


Foucault reconhece como história crítica do pensamento, entendendo essa história como a
análise das condições nas quais se formam e/ou se modificam as relações determinantes
entre sujeito e verdade, uma vez que essas relações são essenciais para um saber possível.
Realizar essa análise não significa descobrir em quais condições um determinado sujeito teve
contato com a evidência empírica de um objeto já dado pela realidade. O que vemos a partir
da prática analítica de Foucault é a construção de um dispositivo que atua na construção de

284
O comentário, como explica Foucault,é um princípio de controle de discurso que, deslocando-se continuamente, atua
na irrupção de novos discursos: “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Cf. FOUCAULT,
Michel. A Ordem do Discurso. 20a. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2010a,
p. 26.
285
FOUCAULT, Michel. Foucault. In: Ditos & Escritos V.Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 2a.
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006a. p. 235.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
um sistema de veridicção a partir de procedimentos que articulam discursos capazes de
sustentar a aceitação ou não de um saber num período histórico específico.

Assim, em nosso ponto de vista, torna-se pertinente elucidarmos a noção de


dispositivo no fito de compreender como se elaboram as relações entre verdade e
subjetividade em As Confissões da Carne. Em alguns momentos de sua obra, Foucault trata
do dispositivo, por exemplo, no capítulo IV de As Confissões da Carne, no qual aborda o
dispositivo da sexualidade286; entretanto é na entrevista intitulada “Sobre a história da
sexualidade”287, publicada em A Microfísica do Poder, que ele elucida de modo mais
esclarecedor a referida noção, esclarecendo que o dispositivo pode ser compreendido por
meio de três aspectos. O primeiro é relacionado à heterogeneidade do dispositivo, uma vez
que ele “engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais, filantrópicas”288, abarcando o discursivo e o não-discursivo, o dito e o não-
dito. Como segundo aspecto, Foucault elucida que entre os elementos heterogêneos que
compõem o dispositivo, discursivos ou não, há uma espécie de jogo caracterizado por
mudanças de posição e de função, um jogo que mostra e oculta práticas. Por último, Foucault
esclarece que o dispositivo é um “tipo de formação que, em um determinado momento
histórico, teve como função principal responder a uma urgência” 289; logo, todo dispositivo
tem uma função estratégica. Ele esclarece ainda que todo dispositivo se inscreve por meio de
um jogo de poder, relacionado a uma ou mais configurações de saber.

Compreendendo tanto os sistemas de veridicção quanto os processos de subjetivação


enquanto dispositivos, no presente ensaio procuramos entender de que modo os dispositivos
de veridicção se relacionam como os dispositivos de subjetivação na obra História da
Sexualidade IV: As Confissões da Carne, considerando os sujeitos referidos, os lugares

286
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019.
287
FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: Microfísica do poder. Tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 243-277.
288
Ibid., p. 244.
289
Ibid., loc. cit.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
institucionais que ocupam e a partir dos quais falam e seus respectivos posicionamentos em
relação ao domínio religioso e aos fenômenos que os objetivam enquanto sujeitos de prazer.

UMA TRAJETÓRIA TEÓRICO-FILOSÓFICA SOBRE O SUJEITO E A VERDADE

Resgatamos inicialmente algumas proposições colocadas pelo filósofo sobre seu


trabalho teórico no entorno do que poderíamos chamar de “sujeito” e a respeito do modo
pelo qual esse conceito atravessa as problematizações teórico-filosóficas desenvolvidas por
ele, levando em conta algumas proposições consideradas desde a década de 1960,
geralmente difundida como primeira época de seu trabalho e durante a qual o filosofo
procurava investigar os saberes que embasam a cultura ocidental.

Em seu texto “O sujeito e o poder”290, publicado inicialmente em 1982, Foucault avalia


o percurso de sua investigação desde os anos 1960 e chega à conclusão:“Meu objetivo, ao
contrário, foi criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres
humanos tornaram-se sujeitos. Meu trabalho lidou com três modos de objetivação que
transformam os seres humanos em sujeitos”291.Nessa avaliação,o filósofo evidencia que o
conceito de poder, embora esteja presente em algumas de suas teorizações e análises, não
foi ponto central nas suas investigações, tendo, na verdade, o sujeito como grande ator de
suas reflexões e análises.

Foucault, ainda durante essa avaliação, esclarece que seu trabalho considerou três
modos de objetivação que transformam os indivíduos em sujeitos, isto é, três modos de
subjetivação: a) o modo da investigação por meio do qual se obtém o status de ciência, a
saber, a objetivação do sujeito do discurso, do sujeito que trabalha e do simples fato de estar
vivo em As palavras e as coisas(1966); b) o modo a partir do que Foucault (1995) chama de
“práticas divisórias”, como é o caso do louco e do são em História da Loucura(1961), do
doente e do sadio em O Nascimento da Clínica(1963), e dos criminosos e dos inócuos em

290
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L. Dreyfus;RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma
trajetória filosófica: (para além do estruturalismo e da hermenêutica). Tradução deVera Porto Carrero e Gilda Gomes
Carneiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.p. 231-250.
291
Ibid., p. 231.

121
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Vigiar e Punir(1975); e c) o modo pelo qual um indivíduo se torna um sujeito no domínio da
sexualidade, desenvolvendo, desse modo, a História da sexualidade I, II e III (1976-1984).
Esses são os três processos de subjetivação dos indivíduos considerados por Foucault a partir
das suas primeiras investigações e que constituíram o tema central de seus estudos.

Por outro lado, em 1984,no ano de sua morte, em uma entrevista com F. Ewald para
a revista Magazine Littéraire292, Foucault, ao avaliar mais uma vez seu percurso teórico-
filosófico, relata que, em sua trajetória, procurou fazer “a história das relações que o
pensamento mantém com a verdade; a história do pensamento, uma vez que ela é o
pensamento sobre a verdade”293. Parece-nos que essa afirmação avaliativa feita por Foucault
foi motivada pelo seu intuito de entender problematizações ocorridas no interior de
determinados campos de saber considerando suas respectivas condições históricas de
possibilidade.Levar em conta tais problematizações não significa entender fenômenos
preexistentes ou a criação pelo discurso de um objeto inexistente: as problematizações
consideradas por Foucault configuram-se como o conjunto de práticas discursivas e/ou não
discursivas que faz com que alguma coisa entre no jogo do verdadeiro e do falso e o constitua
como objeto para o pensamento, seja esse pensamento prosaico, moral, científico, de análise
política, etc. Portanto, pode-se considerar que, ao longo de suas análises e teorizações,
Foucault relata que os dispositivos de veridicção estiveram também no cerne de seus
escritos. Lembremo-nos também de que, em sua aula inaugural no Collège de France,
Foucault defende que a vontade de verdade, um dos procedimentos do primeiro grupo de
princípios de controle do discurso, atravessa os outros princípios, porque “não cessa de se
reforçar, de se tornar mais profunda e mais incontrolável”294. E isso significa pensar que a
vontade de verdade, ou os sistemas de veridicção, contornam e dão volume às práticas
discursivas, bem como ao real e, por conseguinte, ao corpo, conforme veremos adiante.

292
FOUCAULT, Michel. O Cuidado com a Verdade. In: Ditos & Escritos V.Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran
Dourado Barbosa. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p. 240-251.
293
FOUCAULT, Michel. O Cuidado com a Verdade. In: Ditos & Escritos V.Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran
Dourado Barbosa. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p. 241.
294
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 20a. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições
Loyola, 2010a, p. 19.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Em A História da Loucura, Foucault procurou entender de que modo e por que a
loucura, em certas condições históricas, fora problematizada no interior de determinadas
instituições e a partir de certos aparatos filosóficos e científicos; O Nascimento da Clínica
trata-se de uma arqueologia do saber médico na qual Foucault procurou enxergar a
positividade do saber sobre a doença, considerando determinadas condições que tornaram
possíveis a sistematização desse saber: a passagem da problematização “Quem está
doente?” para “Onde está doendo?”, conceitos, métodos, significações sobre a morte, entre
outros; em As Palavras e as Coisas, Foucault se deteve nos métodos e nas ocorrências para
encontrar os discursos que constituíram o “homem” como objeto de análise e o surgimento
de um campo do saber chamado ciências humanas:certos temas da vida, da linguagem e do
trabalho; Vigiar e Punir é um estudo que procura entender as mudanças na problematização
sobre delinquência e punição a partir da legislação penal e das instituições penitenciárias dos
séculos XVIII e XIX; e em História da Sexualidade I,II e III, investigou-se o problema sobre a
conduta sexual para os próprios sujeitos em suas respectivas condições históricas. Tais obras
colocam em evidência quadros de práticas (dispositivos) que servem de lei de repartição para
que determinados fenômenos obedeçam a uma “vontade de verdade”295e os constitua
dentro de um campo de saber.

Ora, ao inferir elementos tão diversos (subjetivação e verdade) na sua trajetória


teórico-filosófica, essas duas avaliações trazem à tona a hipótese de que a relação
determinante entre subjetivação e verdade sempre esteve presente nos trabalhos realizados
por Foucault. Não nos estranha Foucault relatar que teve preguiça ao escrever os volumes II
e III da História da Sexualidade, visto que reconhece não ter dito nada muito diferente do que
já dizia296. A história do pensamento sobre os modos de objetivação dos sujeitos sempre fez
parte de seus objetivos analíticos.Então, considerar essa trajetória produzida por Foucault é
fundamental para realizarmos a leitura da História da Sexualidade IV, posto que vemos, em
sua compilação, regularidades na compreensão de instâncias já teorizadas pelo filósofo em

295
FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 20a. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições
Loyola, 2010a, p. 26.
296
FOUCAULT, Michel. O Cuidado com a Verdade. In: Ditos & Escritos V. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran
Dourado Barbosa. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006b. p. 240-251.

123
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
trabalhos publicados anteriormente. Por esse motivo, ao pretendermos compreender de que
modo o dispositivo de subjetivação mantém relações com um dispositivo de veridicção nesse
último tomo da História da Sexualidade, evocaremos enunciados do próprio Foucault a fim
de elucidarmos suas respectivas considerações sobre a problematização da sexualidade
realizada por Padres da Igreja nos primeiros séculos da Era Cristã.

SISTEMAS DE VERIDICÇÃO:CONFISSÕES EM DIÁLOGO

Sabe-se que a sexualidade e sua relação com a doutrina dos Padres da Igreja dos
primeiros séculos da Era Cristã é o tema do qual trata a obra História da Sexualidade IV, sendo
dividida em três partes: 1) “A formação de uma nova experiência”, na qual Foucault descreve
e analisa a genealogia das práticas de sexualidade de acordo com um Logos cristão, no qual
e a partir do qual se estabelecia as experiências de (pro)criação, batismo, penitência e arte
de consciência de si mesmo; 2) “Ser virgem”, na qual o filósofo analisa as descontinuidades e
as tensões entre o ascetismo monástico e as formulações gnósticas(tomada pelos Padres da
Igreja como uma espécie de heresia pagã)especificamente no modo de compreensão do valor
da virgindade, levando em conta a relação entre virgindade e a prática de continência, os
procedimentos de manutenção da virgindade como profissão e ciência da vida, e sua relação
com o conhecimento de si do sujeito; e 3) “Ser casado”, na qual Foucault observa também as
descontinuidades entre as posições tomadas pelos Padres da Igreja e as chamadas heresias
pagãs (pelagianos e gnósticos) ao se dedicarem sobre a vida matrimonial, abarcando o dever
dos esposos, o bem e o mal no casamento e o processo de libidinização do sexo em seu
âmbito. Sendo assim, podemos afirmar que, inicialmente, Foucault traça um movimento
histórico descontínuo por meio do qual analisa os procedimentos éticos de preparo para uma
vida cristã, seu batismo e a manutenção de uma vida cristã, para, em seguida, dedicar-se
excepcionalmente a duas experiências sexuais (a virgindade e o casamento) no interior desse
movimento.

Foucault começa a escrita d’As Confissões da Carne com o relato da existência de uma
regra de conduta que tem um funcionamento comunitário, isto é, que tem valor de verdade

124
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
por ser reconhecida/aceitável por todos – o que não significa que era praticada por todos: o
regime dos aphrodisia. Esse regime é um dispositivo de verdade e de subjetivação formulado
por filósofos e diretores gregos do período clássico, mas que também pode ser encontrado
no pensamento e em práticas dos Padres da Igreja do século II.Essa convergência com as
formulações realizadas pelo pensamento filósofo-pagão não se deu por acaso. Justifica-se por
sua convergência ocorrer de modo que os cristãos “escapam às acusações de imoralidades
que lhes são endereçadas, e como a sua vida é a própria realização de um mesmo ideal de
moralidade, que, pelo seu lado, a sabedoria dos pagãos reconheceu” 297. Assim, pelo motivo
de os cristãos fazerem uso de formulações filósofo-pagãs altamente respeitadas, tanto pelo
seu valor verídico quanto pela sua possibilidade de acolhimento pelo pensamento cristão, o
regime dos aphoridisia é um dispositivo de subjetivação em torno do qual veremos a
constituição de um sistema de veridicção sobre a prática sexual e a partir do qual se
estabelecerão regras morais de conduta para os sujeitos cristãos [e não cristãos].

Em A história da sexualidade II – O uso dos prazeres298, Foucault se atém à descrição


das linhas de (des) continuidades sobre o regime dos aphrodisia entre os filósofos gregos do
período clássico e os cristãos da Idade Média, mais exatamente no início do primeiro capítulo
do referido livro. Foucault chama atenção para a dificuldade de encontrar um termo em
francês que traduza precisamente o uso corrente do termo aphrodisia utilizado pelos gregos,
porém explica o funcionamento dos “aspectos gerais com que se preocupavam, a forma geral
de interrogação moral que colocaram a propósito dos aphrodisia”299.A justificativa utilizada
pelo autor para a dificuldade na tradução do termo grego é de que a tradução francesa para
“sexualidade” cobre mais amplamente um conjunto de fenômenos, conjurando uma
realidade de outro tipo e possuindo função inteiramente diferente. Isso explica a necessidade
de se estabelecer linhas descontínuas entre os aspectos que giram em torno do uso grego do

297
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 22.
298
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque. 8a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
299
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque. 8a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.p. 47.

125
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
termo e, por outro lado, permite que entendamos o funcionamento do dispositivo de
sexualidade na cultura cristã da Idade Média.

Foucault estabelece um conceito geral para seguir em direção à descrição e análise


dessas respectivas linhas de descontinuidade: “Os aphrodisia são atos, gestos, contatos que
proporcionam uma forma de prazer”300.Segundo Foucault, a atração exercida pelo prazer e a
força do desejo que se movimenta em direção a esse prazer formam uma unidade sólida com
o próprio ato dos aphrodisiade acordo com a compreensão grega.Essa dinâmica era analisada
a partir de duas variantes e, assim, determinava a moralidade dos sujeitos de acordo com a
intensidade da prática sexual (temperança) e o papel que se exercia nela [polaridade]. Não
havia nessa objetificação nada que restringia o ato sexual em termos de forma de realização,
e o desejo e o prazer eram aspectos naturais na sua constituição. Os gregos não desassociam
o prazer do dispositivo sexual nem desvalorizam o desejo em relação à natureza humana,
como ocorre no pensamento e na prática dos cristãos dos primeiros séculos. Desse modo, as
interdições e as obrigações nas práticas sexuais ocorriam de acordo com que se reconhecia
sobre a natureza humana associadaà sua temperança e ao papel que o sujeito exercia no ato.

Embora mantenha relações estritas de continuidade com esse regime dos


aphrodisiade acordo com os gregos, tal regimeé um dispositivo de subjetivação que
apresenta uma outra configuração para os Padres da Igreja. As descontinuidades sobre o
regime dos aphrodisia se estabelecem de modo que um pensamento cristão poderia acolher,
isto é, de acordo com um Logos que convinha e se acreditava na prática cristã.O cristianismo
não importou um regime que fosse estranho às suas práticas. Na verdade, deu a um regime
já existente uma interpretação religiosa conveniente às exigências de suas forças internas.
No fim do século II, de acordo com Foucault, a obra de Clemente de Alexandria transmite
preceitos a partir dos quais podemos observar de que modo o cristianismo incorporou
preceitos filosóficos sobre o regime dos aphrodisia.

300
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade II: o uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque.
8a. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020. p. 50.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O conteúdo dos preceitos, muito “quotidianos”, que Clemente irá dar a partir
daí pode bem ser idêntico, ou muito próximo de idêntico, aos ensinamentos
dos filósofos pagãos, sem que por isso estejamos perante uma espécie de
abandono da regulamentação das relações sexuais a uma sabedoria estóica
ou platónica, aceite e autenticada por um consenso suficientemente amplo.
Clemente sem dúvida recolheu a codificação e as regras de conduta que
formulava noutros lugares a filosofia que lhe era contemporânea, mas
repensou-as e integrou-as no interior de uma concepção que toma o cuidado
de lembrar, numas quantas frases, no início deste capítulo e que põe em jogo,
na procriação, as relações do homem com o seu criador, de Deus com as suas
criaturas.301

Podemos compreender o Logos cristão como a “razão” ou a “lei de Deus” ensinada no


e pelo Pedagogo (sujeito que é o próprio Deus sob aspectos humanos). Nesse sentido, o Logos
cristão constitui-se como a razão universal e viva sob a qual os sujeitos cristãos vivem em
conformidade e a partir das quais realizam suas ações visando seus devidos fins – ter sua
vontade unida a Deus e ter em vista a vida eterna. A transcrição feita por Foucault (2019) da
declaração realizada por Clemente coloca em prática o funcionamento desse dispositivo:

Clemente declara o sentido que atribui a essas lições que se seguirão: “O


dever, por conseguinte, é, nesta vida, termos uma vontade unida a Deus e a
Cristo, o que é um acto recto em vista da vida eterna. A vida dos cristãos, que
estamos a aprender com o nosso pedagogo, é um conjunto de acções em
conformidade com o Logos, a aplicação sem quebra dos ensinamentos do
Logos, aquilo a que justamente chamámos a fé. Esse conjunto é constituído
pelos preceitos do Senhor, que, sendo máximas divinas, nos foram prescritos
como mandamentos espirituais, úteis ao mesmo tempo para nós mesmos e
para os nossos próximos.”302

As afirmações realizadas por Clemente em sua obra dão a ver uma razão que pode ser
encontrada tanto em toda a natureza quanto na palavra de Deus, ou melhor, uma razão
presente na natureza e que é também a verdade de Deus. Como vimos, essa convergência se

301
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 40.
302
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 25.

127
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
deu por Clemente ter se esforçado em repensar as proposições filosóficas dos pagãos e
colocá-las em função desse Logos cristão. Esse Logos ordena o mundo dos cristãos,
determinando as práticas que vão do nascimento à morte, constituindo-se, pois, como um
sistema que, ao mesmo tempo em que subjetiva o sujeito, produz um conjunto de verdades
norteadoras de suas experiências. Aproximando um pouco mais o olhar sobre esse sistema,
notaremos que a subjetivação ocorre por meio do referido conjunto de veridicção que
constrói a rede de experiências do sujeito.

Nota-se, a partir das análises feitas por Foucault, que o regime dos aphrodisia é
definido por Clemente em função do casamento. É claro que essa definição não ocorre de
qualquer forma, mas de modo que tenha como fim a procriação. Essa tese foi corrente entre
os filósofos e médicos pagãos e se aproxima da metáfora do semeador, ponto de
convergência a partir do qual se considerava a presença do Logos presente na natureza e
ensinada por Deus. O homem planta por causa de si mesmo e, concomitantemente, por causa
de Deus. Foucault afirma, a partir dessa ideia, que Clemente não pretende definir um fim de
acordo com uma ação, mas antes estabelecer um princípio que conduz e sustenta toda a ação
realizada pelo homem. Nesse sentido, o ato de [pro]criação deve ser realizado pelo homem
porque é Deus quem diz “Multiplicai-vos”, mas também porque, ao procriar, o homem se
assemelha a Deus, o homem é sua imagem e semelhança ao [pro]criar outro homem.

Contudo, é preciso levar conta que essa semelhança não significa inteiramente que o
homem possua essencialmente a natureza de Deus. De acordo com Foucault, essa
semelhança é observada no homem antes da queda e, conforme a conduta cristã, poderia
ser recuperada. Isto é, a semelhança com Deus não é essencialmente corporal, mas pelo
espírito e pela razão. Foucault assegura que:

Não é pois a procriação que em si mesma e como processo natural é “à


semelhança” da Criação, mas é-o a procriação, na medida em que tiver sido

128
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
bem levada a cabo e em que tiver “seguido” a lei. E se a lei prescreve a
conformidade com a natureza, é porque a natureza obedece a Deus.303

Considerando a constituição do casamento enquanto dispositivo de subjetividade


cristã, tendo a [pro]criação como fim e o Logos como razão universal a ser seguida, Foucault
vai observar em Clemente de Alexandria a inscrição de regras para as relações sexuais
submetidas a uma lição observada na organização material da natureza, mas que é também
o Logos de Deus. Nessa perspectiva, Clemente desenvolve três “lógicas” para tal lição: a) a
“lógica” da natureza animal, na qual se extraía uma lição moral das relações entre natureza
e contranatura; b) a “lógica” natureza humana e da alma racional com o corpo, reconhecendo
no sujeito humano a superioridade da alma sobre o corpo e fazendo da razão um instrumento
de dominação do corpo; e c) a “lógica” da Criação e da relação com o Criador, na qual se
prescrevem as recomendações do casamento temperante – sobretudo no que diz respeito
ao domínio das faltas presenciadas apenas por aqueles que experienciam a falta, escapando
ao olhar do outro.

Vemos no século II, a partir das análises realizadas por Foucault dos enunciados
postulados por Clemente, a continuidade de proposições filosóficas e morais pagãs nas
reflexões e práticas cristãs, mas, também, as descontinuidades no que tange à significação
religiosa que essas prescrições acabam configurando. Posteriormente, entre o século II e o
IV, Foucault304 irá observar pontos de descontinuidade na ética das relações sexuais: não
observaremos necessariamente um processo de “naturalização” das condutas sexuais cristãs,
como vimos em Clemente, mas certo pessimismo ao pensar as condutas humanas através da
falta, dos pecados presentes desde o nascimento. Nesse sentido, Foucault observa os pontos
de descontinuidades frente às condutas cristãs de acordo com dois elementos novos: a
disciplina penitencial, a partir da segunda metade do século II, e a ascese monástica, no fim
do século III.

303
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 39.
304
Ibid., passim.

129
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Esses dois elementos se constituíram como experiências que definiram e grassaram
certa prática da relação de si consigo mesmo, bem como uma relação entre o mal e a verdade.
Pela confissão penitencial, o fazer o mal e o dizer a verdade são externados e confrontados.
Podemos entender que há, nesse caso, um procedimento que açambarca e constrói a
produção de verdades, uma aleturgia, conforme Foucault a designa: “A aleturgia seria,
etimologicamente a produção de verdade, o ato pelo qual a verdade se manifesta”. 305

Quando o sujeito diz a verdade sobre o mal-feito, ele (re)elabora sua subjetividade,
praticando um exercício de si sobre si, um conhecimento de si sobre si mesmo, tomando seu
próprio corpo, sua carne, como objeto de discurso e de investigação, atravessando-o pela
clivagem de um sistema de veridicção a ele imposto para esse exercício de subjetividade.
Foucault explica que essa experiência:

colocou no centro do seu dispositivo o problema da ‘carne’. [...] A ‘carne’ deve


ser compreendida como um modo de experiência, quer dizer, como um modo
de conhecimento de transformação de si por si, em função de uma certa
relação entre anulação do mal e manifestação de verdade.306

A carne é constituída, assim, pelo constante atravessamento de modos de


subjetivação e de práticas de veridicção.

O batismo é, até a segunda metade do século II, o único ato religioso-cristão possível
de garantir a remissão dos pecados. Os autores desse século associam essa remissão a três
efeitos: purificação, regeneração e iluminação. Isto é, retira as manchas da falta na alma e
impõe a marca do filho de Deus, trazendo para si a pertença e o compromisso que assumiram
com Deus. Além disso, o batismo constitui-se como um segundo nascimento: um nascimento

305
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2017. p. 04.
306
Ibid., p. 64.

130
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
que faz com que rejuvenesçamos, “fazendo-nos nascer de novo, mas desta vez na ‘livre
escolha’ e no ‘conhecimento’”307, dando-nos acesso à vida para além da morte.

O que Foucault observa nessa configuração do batismo, enquanto dispositivo de


subjetivação, é que se trata de um ato que está ligado ao acesso à verdade. Isso porque é
dado em termo de um ensino: o batismo é concedido para aqueles que creem na verdade
que lhes ensinam, mas, também, porque “cada um dos efeitos assim atribuídos ao batismo é
ao mesmo tempo um mecanismo de remissão e um procedimento de acesso à verdade” 308:
apaga as contaminações que obscurecem a alma, marca o nome de Cristo, acende a uma vida
sem o mal e que é a verdadeira vida, e dissipa as travas que são ao mesmo tempo o mal e a
ignorância. Portanto, a ligação entre o processo de remissão das faltas e o acesso à verdade
é bem marcada: ligação direta (concomitante) e não refletida.

Sobre esse segundo aspecto dessa ligação, o fato de ser uma ligação não refletida, há
uma ambiguidade: não se sabe ao certo se essa “não reflexão” diz respeito ao fato de o
perdão em relação às faltas e ao conhecimento da verdade se produzir na alma sem que esta
tenha que conhecer a verdade das faltas que cometeu e em relação às quais pede perdão;
ou se a remissão do pecado e o acesso à verdade estão, de qualquer modo, atados ao
conhecimento das próprias faltas cometidas pelo sujeito em voga. Nesse sentido, Foucault
(2019) resgata o termo metanoia, que autores latinos traduzem por paenitentia e que é
utilizado a propósito do batismo, e alguns enunciados postulados pelo apologeta Justino em
Primeira Apologia para observar em que medida se pode compreender a “não reflexão” da
ligação entre a remissão das faltas e contato com a verdade.

“Aqueles”, diz Justino, “que crêem na verdade dos nossos ensinamentos e da


nossa doutrina prometem viver assim. Ensinamo-los a rezar e a pedir a Deus,
no jejum, a remissão dos seus pecados e nós mesmos rezamos e jejuamos
com eles”; depois, quando chega o momento do batismo, “sobre aquele que
aspira à regeneração e se arrepende das suas faltas passadas, pronunciamos
na água o nome do Pai” – e isso, a fim de que não continuem filhos da

307
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2017. p. 66.
308
Ibid., loc. Cit.

131
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
ignorância e da necessidade, mas antes o sejam de eleição e de ciência.O
texto é claro: aquele que recebe o baptismo, que se torna filho de eleição e
de ciência, e cujas faltas são redimidas, é aquele que não se arrepende.309

Como se pode observar a partir das transcrições e análises feitas por Foucault, uma
espécie de penitência, mais necessariamente uma metanoia, é observável no batismo da
segunda metade do século II. Essa metanoia não se trata de uma prática penitencial
desenvolvida e regulamentada, isto é, de uma prática do sujeito que pretende de forma
pormenorizada tomar conhecimento de todas as faltas cometidas ou que pôde ter cometido,
explorando a fundo as raízes do mal na alma. Essametanoia, como uma espécie de penitência
requerida no batismo, não é uma disciplina tão precisa. Essa penitência está realmente
associada a um ato de conhecimento, mas não no sentido estrito de conhecimento
aprendido, de uma verdade descoberta:trata-se de um conhecimento reconhecido pelo
próprio sujeito, de uma espécie de compreensão do que é verdadeiro e bom diante de Deus:
o sujeito deve remontar-se ao coração, reconhecer o mal que realizou e dar indícios que
permitem reconhecer sua mudança de vida. Desse modo, nessa concepção de batismo, a
metanoia aparece como um terceiro termo da aliança entre a remissão dos pecados e o
acesso à verdade, uma espécie de manifestação de si que não é forma exaustiva de exercício
calculado, mas uma manifestação que é, ao mesmo tempo, consciência e atestação de uma
vida que deixou e de outra que está em vias de assumir.

Nas Confissões, no item intitulado “A segunda penitência”, há uma parte destinada aos
procedimentos de verdade que devem nortear o perdão das faltas graves, o qual pode
concedido após o batismo, procedimentos esses mais complexos e mais numerosos do que
aqueles relacionados ao batismo e que se distribuem em quatro eixos. O primeiro eixo se
refere ao privado X público. Nele, o penitente deve pedir ao sacerdote, em âmbito privado,
que lhe confira o estatuto de penitente; ao mesmo tempo em que, em rito público, coletivo
e teatralizado, deve suplicar aos religiosos que chorem por ele e lamentem com ele. No

309
FOUCAULT, Michel. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros II. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2017. p. 67-68.

132
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
segundo eixo, relativo ao verbal X não-verbal, cabe ao penitente fazer por um lado uma
exposição oral de suas faltas e erros ao sacerdote que receberá sua penitência e, por outro
lado, realizar dramaticamente um conjunto de gestos e atitudes, envolvendo, inclusive, a
escolha certa de vestimentas, conjunto esse a partir do qual o sujeito demonstra
publicamente que pecou e manifesta de modo encenado, evidente e enfático a sua
penitência. O terceiro eixo agrega jurídico X dramático, no sentido de que por um lado toda
a exposição da falta deve ocorrer na condição similar a um relato que se efetua diante e em
função de uma lei, e por outro lado, como já bem evidenciamos, além desse relato jurídico,
privado e verbal, ocorre a exposição dramática da falta, que se desenvolve publicamente e
por meio de manifestações não verbais, circunscrevendo, enfim, uma exomologese. No seu
ensaio intitulado “As técnicas de si”, Foucault explica que a exomologese não é “uma conduta
verbal, mas a expressão teatralizada do reconhecimento do status de penitente”. 310O último
eixo circunscreve a dicotomia objetivo X subjetivo, na medida em que o pecador deve, no
âmbito da objetividade, enunciar a exposição descritiva e objetiva da falta, e, no âmbito da
subjetividade, o pecador deve expor-se, desvelar o seu estado enquanto pecador.

Entendemos que esses procedimentos de verdade, a um só tempo dicotômicos e


complementares, atuam na construção da subjetividade do pecador através de duas vias,
uma que se constrói a partir do olhar do outro sobre nós, sobre nossa carne, e outra que se
erige por meio do meu olhar sobre mim, sobre minhas práticas, sobre meu corpo, sobre
minha carne. Essas duas vias de subjetivação do sujeito coincidem com a explicação de Judith
Revel sobre o processo de subjetivação na teoria foucaultiana:

de um lado, os modos de objetivação que transformam os seres humanos em


sujeitos – o que significa que há somente sujeitos objetivados e que os modos
de subjetivação são, nesse sentido, práticas de objetivação; de outro lado, a
maneira pela qual a relação consigo, por meio de um certo número de
técnicas, permite constituir-se como sujeito de sua própria existência.311

310
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos IX. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014a, p. 288-289.
311
REVEL, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. Tradução de Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez e Carlos
Piovesani. São Carlos: Claraluz, 2005, p. 82.

133
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Esses dois processos se encontram agregados em uníssono em toda formação de


subjetividade e que igualmente são norteados por procedimentos de veridicção a que estão
submetidos os sujeitos em suas práticas verbais e não-verbais. No caso da segunda
penitência, Foucault ressalta que cabe ao pecador seguir o sistema de veridicção a ele
imputado: ele deve não só dizer a verdade, como também fazer a verdade ser manifestada
corporal e expressivamente, ou seja, dizer a verdade e fazer a verdade.

Nessa prática, o sujeito opera uma renúncia de si, em função de ter que reconhecer
suas faltas em verbo e ato, e, destituindo-se delas,através de um rito fundado por um sistema
de veridicção, torna-se novo sujeito. Subjetivação e dessubjetivação encontram-se e se
complementam, por isso Foucault defende que “[o]s ritos de exomologese garantem a
ruptura da identidade”.312

Em “A arte das artes”, último item da primeira parte das Confissões, há a explanação
sobre a exagoreusis como uma prática bastante importante no conjunto dos procedimentos
de veridicção que atuam na construção de novas subjetividades. Ela ocorre não como uma
revelação ao outro, como uma confissão em tribunal, mas se elabora como um trabalho
visando à descoberta de si mesmo, “o que se passa nos mistérios do coração e nas suas
sombras indistintas”.313 É um exame de si planteado na/pela descoberta da verdade de si.
Essa veridicção de si mesmo, conforme analisa Foucault, está atrelada indissociavelmente a
uma renúncia de si, em função de ser nesse processo que o sujeito se descompõe de suas
faltas, das faltas que até aquele momento compuseram sua subjetividade.

Percebemos como, ao longo das Confissões, Michel Foucault articula


constantementeduas noções relacionadas aos procedimentos de veridicção: a exomologese
e a exagoreusis. No “Anexo 2” das Confissões a exomologese e a exagoreusis são nomeadas
como as duas grandes formas de aleturgia que se encontram aplicadas, apoiadas e

312
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 120.
313
Ibid., p. 161.

134
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
aproximadas uma da outra. Elas são importantes práticas nas quais subjetividade e verdade
se encontram entranhadas e por isso recorreremos ao ensaio “As técnicas de si”, 314 no qual
essas duas formas de aleturgia ganham destaque a partir do olhar analítico de Foucault.

Nos primeiros tempos do cristianismo, uma das formas basilares da revelação de si, ou
mais especificamente, da verdade de si, foi a exomologese. Nessa prática aletúrgica, o
pecador assumia o status de penitente, e para isso ele deveria reconhecer publicamente que
era pecador; além disso, deveria atestar que era cristão, tendo, então, uma fé verdadeira.
Todas as expressões e manifestações relacionadas à exomologese ocorriam de forma pública
e teatralizada. Contudo, essa publicização do pecado, da fé e da verdade cristã não
aconteciam em breve período temporal, mas em um período de quatro a dez anos, afetando,
nesse sentido, o conjunto da vida do pecador/penitente, impondo regras diversas à sua vida,
como aquelas que se referiam às vestimentas ou às interdições sexuais.

Explica-se que a exomologese não é nominal, mas teatral, porque o pecador/penitente


deveria expor-se ao público por meio de gestos e comportamentos. Além disso, o pecador
deveria ser capaz de, com esses atos de autocomoção, comover o outro, o seu público
espectador, levando-o a sentir a sua dor e, portanto, a sua rendição a uma verdade que o
livraria daquela dor. É uma prática que tende a apagar o pecado, todavia antes de tudo
procura expor/revelar o pecador. Foucault cita o exemplo de Fabíola, pecadora da nobreza
romana, que, quando aparecia publicamente, as pessoas se lamentavam junto com ela, o que
intensificava a situação patética do castigo público, mas não só, porque se intensificava
também o sistema de verdades que ela assumia para si por intermédio de sua penitência.
Essa assunção vista em um processo em cadeia, tendia a fazer com que o público também
assumisse o mesmo sistema de veridicção que estava ali exposto através da exomologese.
Em nossa compreensão, o que estava presente também nesse jogo de verdade teatralizado
da exomologese era a exposição da carne, a um só tempo pecadora e penitente.

Nesse sentido, estavam em jogo os processos de subjetivação e de dessubjetivação a

314
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos IX. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014a, p. 288-289.

135
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
que se submetia essa carne pecadora e penitente. Um processo de subjetivação exposto a
todos, elaborado com todos, entretanto que é assumido após o processo da dessubjetivação,
porque cabia ao pecador/penitente,em primeiro lugar, recusar a si mesmo, destruir a sua
subjetividade pecadora, antes de assumir sua nova subjetividade. Ao revelar-se pecador e
penitente, o sujeito rompe consigo mesmo, com o seu “eu” pecador, ou mais precisamente,
com o seu “eu”, que assume a verdade de que pecou e, com isso, rasura-se a si mesmo,
destrói-se. Foucault não traz para esse estudo sobre as técnicas de si a noção de
dessubjetivação, todavia, como leitores de sua obra, articulamos essa noção à prática da
exomologese. Justificamos esse uso partindo da explicação de que, de acordo com Foucault,
a dessubjetivação “tem por função arrancar o sujeito de si próprio, de fazer com que não seja
mais ele próprio ou que seja levado a seu aniquilamento ou à sua dissolução”.315 Vemos que,
de modo muito similar, em “As técnicas de si”,Foucault explana que a penitência relacionada
à exomologese tem por finalidade “marcar a recusa de si, a ruptura consigo mesmo: Ego non
sum, ego”.316 Essa fórmula da publicatio sui revela a ruptura do sujeito com o seu passado.
No entanto, entendemos que, ao descartar uma subjetividade pecadora, dessubjetivando-se,
o sujeito assume obviamente uma nova subjetividade, arquitetada pelo sistema de veridicção
a ele imposto.

Analisando a exomologese na tradição estoica e na tradição cristã, é possível perceber


modificações nas práticas de exposição, dessubjetivação e subjetivação do sujeito. Na
tradição estoica, a verdade do sujeito irrompia por intermédio de um exame de si, ou seja,
era através de um exame de si que o sujeito abria acesso ao conhecimento de si mesmo, a
partir da utilização da memorização de regras que tinham por fito fazer aparecer a verdade.
Já na tradição cristã a verdade do sujeito, como explicamos, somente acontece por meio de
uma destruição de si: “é por uma ruptura e uma dissociação violentas que o sujeito faz

315
FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos VI. Tradução de Ana Lúcia Paranhos Pessoa. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
p. 289-347, 2010b, p. 291.
316
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos IX. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014a, p. 290.

136
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
aparecer a verdade sobre si mesmo”.317

Quanto à exagoreusis, é uma técnica de veridicção de si que, no ver de Foucault, é


menos conhecida do que a exomologese, porém mais importante. Ela é similar aos exercícios
de verbalização entre mestre e discípulo nas escolas filosóficas estoicas, que foram
absorvidos por algumas práticas cristãs.

Obediência e contemplação, dois princípios da espiritualidade cristã/monástica,


compõem os princípios da exagoreusis, que, por sua vez, têm sua origem nas tradições
orientais egípcia e síria. Em relação à obediência, determina-se que tudo deve ser permitido
pelo mestre; assim, o que se faz sem o seu consentimento é considerado um roubo. A
verdade do sujeito (discípulo) é a verdade do outro (mestre). A contemplação, segundo
princípio, representa o alcance do bem supremo por uma técnica que deve ser exercida pelo
sujeito: dirigir seus pensamentos, para um ponto único, por meio da imobilização da
consciência. O sujeito deve preocupar-se mais com o pensamento do que com a ação. A
mobilidade do espírito representaria, nesse caso, a fraqueza e a debilidade do sujeito.

Tanto em “As técnicas de si” como n’As Confissões da Carne, Foucault deixa evidente
uma diferença de práticas inerentes à exagoreusis na tradição estoica e na cristã. Na cultura
pagã, a relação do discípulo com seu mestre acontece de modo utilitário e profissional, e o
mestre tende a guiar o seu discípulo para uma vida feliz, por meio de conselhos judiciosos, os
quais se referem a um determinado sistema de verdades. Portanto, o que o mestre esperava
atingir é a autonomia do discípulo. Ao passo que na cultura cristã “[a] obediência, longe de
ser um estado autônomo final, implica o controle integral da conduta pelo mestre. É um
sacrifício de si”.318 Nessa linha de comportamento, a verdade do discípulo será sempre a
verdade do outro.

Por fim, ainda sobre a exagoreusis, é relevante expormos algumas analogias que
Foucault explicita sobre o exame contemplativo com base em João Cassiano. Esse teólogo

317
FOUCAULT, Michel. As técnicas de si. In: Ditos e escritos IX. Tradução de Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014a, p. 290.
318
Ibid., p. 292.

137
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
cristão partiade três analogias metafóricas: em primeiro lugar, comparava o exame
contemplativo ao moinho e dizia que o discípulo deveria selecionar os grãos/ pensamentos,
separando os bons dos maus; em segundo, cotejava o exercício contemplativo do militar, na
medida em que o oficial deve ordenar duas fileiras de soldados, sendo a da direita ocupada
pelos bons soldados e a da esquerda ocupada pelos maus, da mesma forma que o discípulo
deveria fazer com os pensamentos; em terceiro, comparava a prática da contemplação com
o argirônomo, o trocador de dinheiro, porque cabia ao discípulo examinar as moedas e pesá-
las para verificar se elas não seriam falsificadas, o que deveria ser feito de forma similar com
os pensamentos.

Um ponto em comum entre a exomologese e a exagoreusis é a renúncia, porque a


revelação não poderia acontecer sem que o sujeito se desprendesse de si para que assumisse
um outro “si” e assim também uma nova verdade.

No “Anexo 3” das Confissões, Foucault faz duas associações importantes: sistema de


veridicção e sistema de jurisdição, e verdade e crença. O anexo se inicia com a citação de um
trecho de São João Crisóstomo sobre penitência: “Enuncia a tua falta a fim de destruíres a
tua falta”.319Esse enunciado de São João Crisóstomo será o fundamento de toda a discussão
do referido Anexo. Quando Deus pede a Caim para dizer sobre o crime que cometera contra
o irmão, ele queria que Caim reconhecesse a autoria do assassinato e a culpa relacionada a
esse ato, o que Caim se nega a fazer. Deus vai castigá-lo não pelo homicídio propriamente
dito, porém por sua impudência, sua mentira. Esse contexto, então, é marcado pela anaideia,
pela falta de remorso em relação ao homicídio praticado, ou seja, pela ausência da verdade,
o que nos leva a entender que nos subjetivamos por meio de procedimentos e de
deslocamentos entre verdades e não-verdades. Pensando nesse acontecimento que tem
Caim como protagonista, pode-se compreender que “[o] dizer-a-verdade, a ‘veridicção’,
assume os seus efeitos remissivos no quadro da relação com uma jurisdição – relação que
desloca para o sujeito que é culpado e que fala a instância que acusa e a que julga”. 320

319
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade IV: As Confissões da Carne. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa:
Antropos, 2019. p. 419.
320
Ibid., loc. cit.

138
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Em se tratando da analogia entre o dizer-a-verdade e o crer, Foucaultlembra que, ao
reinterpretar São João Crisóstomo, Santo Agostinho defende que a veridicção sobre si mesmo
e a crença, a fé na palavra dita, devem ser indissociáveis. Portanto, nessa linha de
entendimento, estão no centro do cristianismo o dever dizer-a-verdade em formato de
crença e de confissão. O dever de verdade deve, nesse sentido, formar a subjetividade do
cristão.

VONTADE DE SABER SOBRE A CARNE

Ao longo de todo o presente ensaio, puxamos fios que uniram as noções de verdade e
subjetividade, ambas relacionadas ao corpo, à carne. Para arrematar os fios, cumpre-nos
mostrar, neste final, em que medida e a partir de que princípios essas analogias são tornadas
possíveis.

Em Aulas sobre a vontade de saber321, Foucault ressalta a importância de considerar-


se a verdade aos sujeitos, visto que, se uma verdade é manifestada isso ocorre em
decorrência de uma defesa desses sujeitos em relação às suas verdades enunciadas.
Podemos dizer, a partir desse mirante, que um jogo de veridicção norteia a produção do real,
dando-lhe forma e sentido. Essa ideia também se encontra articulada em sua Aula de 16 de
fevereiro de 1983, no Collège de France, no curso intitulado O Governo de Si e dos Outros:
“Interrogar-se sobre o real da filosofia [...] é se perguntar o que é, em sua própria realidade,
a vontade de dizer a verdade, essa atividade de dizer a verdade, esse ato de veridicção” 322.
Portanto, o real (logo, o corpo real, a carne real) irrompe por meio de regimes de veridicção
que assinalam vontades de verdade determinadas por regimes de poderes. As vontades de
verdade apoiam-se no jogo verdadeiro/falso e em torno desse jogo são produzidas as
contingências históricas, as possibilidades de experiência, ou seja, as possibilidades de real.
Para reconstituir-se uma história do real, é preciso, pois, desvelar a emergência dos jogos de

321
FOUCAULT, Michel. Aulas sobre a vontade de saber. Tradução de Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2014b.
322
FOUCAULT, Michel. O Governo de Si e dos Outros. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2010c.

139
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
verdade, dos regimes de veridicção, das vontades de verdade que determinam as
dessubjetivações e subjetivações do sujeito. Obviamente, como Foucault esclarece, em
Subjetividade e Verdade323, não se trata do fato de que o real é construído por uma verdade,
mas por um jogo de verdadeiro e falso, por um jogo de veridicção que transmuda o real,
transformando-o continuamente. O real é movente. Portanto, a relação entre subjetividade
e verdade desencadeia o efeito dos regimes de veridicção e constrói os reais a que temos
acesso, dentre eles o nosso corpo, a nossa carne.

323
FOUCAULT, Michel. Subjetividade e Verdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2016.

140
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
FOUCAULT E OS TEMAS DA PROVA E DA PENITÊNCIA NO CRISTIANISMO: OUTRAS
LEITURAS PARA ALÉM DAS CONFISSÕES DA CARNE
Carla Luzia Carneiro Borges
Daniela Barreto Santana
Edna Ribeiro Marques Amorim

O estudo da noção de prova em Confissões da Carne destaca a perspectiva discursiva


com a qual Foucault trata o tema do cristianismo, com o objetivo de compreender quais eram
as problematizações dos estoicos que Foucault considerou e como ele lê a incorporação das
ideias estoicas pelo cristianismo e as consequências disto. Depois a ideia é verticalizar os
pontos que Foucault apresenta, como leitor da prova e da (segunda) penitência no
cristianismo, a partir de suas referências de leituras, como do Manual do Pedagogo e de
Tertuliano, também de Cassiano, ou seja, lendo as leituras feitas por Foucault para falar do
tema da prova.

Com efeito, explica Foucault em 1980, o cristianismo é a religião que ligou


absolutamente o reconhecimento da verdade divina (a fé) à manifestação da
verdade de si (a confissão). Ele inscreveu dois movimentos de circularidade
perfeita: devo lançar luz sobre o que sou para aceder à luz divina e, em
retorno, essa luz divina me ilumina sobre o que eu sou324.

Tratar, portanto, do cristianismo exige atenção a esta relação entre sujeito e verdade,
nesse caso, entre sujeito, verdade e as práticas cristãs do estabelecimento da prova e da
penitência. É importante destacar também, nesse percurso de leitura do quarto volume da
história da sexualidade, que o que buscamos como horizonte e já estamos empreendendo, é
mostrar como Confissões da carne está totalmente entrelaçada à obra foucaultiana,
retomando outros lugares onde Foucault enceta a discussão feita em Confissões da carne,

324
CANDIOTTO, Cesar, SOUZA, Pedro de (Orgs.). Foucault e o cristianismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012,
p. 47.

141
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
como em A hermenêutica do sujeito, nas Histórias da sexualidade, n’Os Anormais, em As
palavras e as coisas, no Governo dos vivos. Confissões da Carne, portanto, remonta a obra de
Foucault como um todo. Estes são os nortes que guiaram nosso estudo ao longo do ano de
2020.
Para discorrer sobre o Foucault leitor, destacamos a leitura na perspectiva dos Estudos
Discursivos Foucaultianos a qual defendemos como sendo da ordem da dispersão, da
constituição dos sujeitos. A leitura em sua função diagnóstica: possibilitando diagnosticar o
presente, estabelecendo o que o constitui, suas repetições, diferenças e limites.

FOUCAULT LEITOR DO TERTULIANO ESCRITOR: FAZENDO APARECER A


REGULAMENTAÇÃO

Para iniciar, é necessário perguntar de que lugar fala Tertuliano do cristianismo? Quem
foi Tertuliano e o que legitima sua fala? Para responder a estas perguntas, inicialmente
seguimos um caminho mais confortável, menos polêmico, a partir de informações de natureza
biográfica. Africano, nascido em Cartago (estima-se que por volta do ano 155 d.C.)325, que
segundo Jerônimo era filho de um centurião, o mais alto grau que um não romano podia
atingir na hierarquia político-militar romana. Os cartagineses, desde os tempos de Aníbal e
das Guerras Púnicas, três séculos antes de Cristo, nutriam uma especial aversão a Roma, e o
cristianismo, nos seus primórdios, foi um fator aglutinador também do sentimento anti-
romano. É nesse contexto que nasceu e viveu Tertuliano. Outra certeza que se tem a respeito
dele é que suas obras foram escritas entre os últimos anos do século II e as duas primeiras
décadas do século III.

Sobre a igreja de Cartago e sua tradição por Tertuliano, o historiador Paul Johnson
descreve a Igreja de Cartago como entusiasmada, imensamente corajosa, completamente
desafiadora perante as autoridades seculares, muito perseguida, intransigente, intolerante,
virulenta e, de fato, violenta em suas controvérsias. Há evidências de que Cartago e outras

325
Vida e obra de Tertuliano de Cartago. ECristianismo, 2021.Disponível em: http://www.e-cristianismo.com.br/historia-
do-cristianismo/biografias/vida-e-obra-de-tertuliano-de-cartago.html. Acesso: 29 mar.2021.

142
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
áreas do litoral africano tenham sido evangelizadas por essênios e zelotes cristãos,
demonstrando, desde o princípio, uma tradição de militância e resistência à autoridade e à
perseguição. Tertuliano corporificava essa tradição326. A igreja africana, apesar das grandes
contribuições que trouxe à Igreja primitiva, era conhecida pela sua combatividade prática e
por seu silêncio literário, já que pouco se escrevia a seu respeito, talvez em função da forte
perseguição das autoridades romanas. Sobre Tertuliano327 e a influência da igreja primitiva
africana, destaca-se que o primeiro documento que se conhece da Igreja africana são as Atas
dos mártires de Scilli – sete homens e cinco mulheres – que foram condenados pelo pro cônsul
de Cartago a “morrer pela espada” em 17 de julho de 180. Os mártires de Scilli (um povoado
pequeno e nunca mais identificado) conheciam e usavam uma tradução latina das cartas de
Paulo, que levavam consigo numa “capsa” (caixa), e as Atas de seu martírio são referidas por
Tertuliano em sua obra “Ad Scapulam 3” (vide trecho em destaque abaixo), o que comprova
a forte influência que recebeu da primitiva Igreja africana. O fato de os mártires se valerem
da versão latina das cartas paulinas revela outra faceta da Igreja africana: embora, muito
provavelmente, tenha sido formada a partir das Igrejas orientais, foi nos laços com Roma que
ela se solidificou, abandonando, pouco a pouco, suas referências helênicas.

Acerca da relação entre o cristianismo e os regimes de verdade, Foucault (2014)328


ressalta que, desde a origem, o cristianismo estabeleceu certa relação entre a obrigação da
manifestação individual de verdade e a dívida do mal. A questão, portanto, é saber de que
modo a obrigação de manifestar individualmente sua verdade e a extinção da dívida do mal
foram articuladas no cristianismo? Para Foucault, esta articulação deu-se de três formas/três
práticas: batismo, penitência e direção da consciência:

A força do cristianismo, creio eu (...) é que ele foi capaz, em particular graças
a obras como a de Tertuliano, de combinar os três modelos, o velho modelo

326
Vida e obra de Tertuliano de Cartago. ECristianismo, 2021.Disponível em: http://www.e-cristianismo.com.br/historia-
do-cristianismo/biografias/vida-e-obra-de-tertuliano-de-cartago.html. Acesso: 29 mar.2021. Sobre o cristianismo o site
utilizou, como uma das fontes, a obra de Paul Johnson, História do Cristianismo, Ed. Imago, 2001.
327
Vida e obra de Tertuliano de Cartago. ECristianismo, 2021.Disponível em: http://www.e-cristianismo.com.br/historia-
do-cristianismo/biografias/vida-e-obra-de-tertuliano-de-cartago.html. Acesso: 29 mar.2021.
328
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 6 de fevereiro de 1980.
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014.

143
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
dos dois caminhos...na Didakhé, o modelo da queda... na Bíblia, e o modelo
da nódoa que foi, creio eu, muito singularmente elaborado por Tertuliano.329

Qual o lugar, então, de Tertuliano nesta história? Defendemos ser o de conceber a ideia
da nódoa original. Na virada do século II para o III, Tertuliano traz uma elaboração de três
temas: do selo, do renascimento e da iluminação. Esta elaboração, do ponto de vista da teoria
do batismo, se faz em torno da concepção do pecado original, “pois foi Tertuliano que teve
esta ideia maravilhosa de inventar o pecado original, o qual não existia antes dele”330.
Foucault parece rir da situação, da descoberta do nó que está no lastro do dispositivo de
sexualidade e nos subjetiva ao longo da história, controlando nossos desejos e verdades, algo
que nos controla e diz quem somos: “Nenhum homem nasce sem crime – nullus homo sine
crimine todo homem é, por direito de nascimento, um pecador”331. Acerca dos três modelos
já mencionados, destacamos os trechos em sequência nos quais Foucault dá visibilidade ao
modo como pensa o cristianismo e define Tertuliano, o que faz emergir um cristão menos
biográfico e mais complexo, atravessado pelas forças institucionais do cristianismo:

A força do cristianismo, creio eu, é uma das razões pelas quais ele foi o que
foi e teve a ascendência que sabemos, é que ele foi capaz, em particular
graças a obras como a de Tertuliano, de combinar os três modelos, o velho
modelo dos dois caminhos que vocês encontram em Didakhé, o modelo da
queda, que se encontra, claro, na Bíblia, e o modelo da nódoa que foi, creio
eu, muito singularmente elaborado por Tertuliano.

(...) Tertuliano é aquele que elaborou muito especificamente o problema, a


forma da nódoa e da herança da nódoa, com evidentemente uma série de
consequências fundamentais no que diz respeito ao batismo e aos efeitos
específicos que se devem esperar do batismo.

329
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 6 de fevereiro de 1980.
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 99.
330
Ibid., loc. cit.
331
Ibid., p.98.

144
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

(...) o modelo da nódoa que foi, creio eu, muito singularmente elaborado por
Tertuliano (...) Outros grandes sistemas éticos que o Ocidente produziu: Mao
Tsé-Tung, dos dois caminhos; Marx, da queda e Stallin, da nódoa.332

Com relação à preparação para o Batismo, os textos de Tertuliano são testemunhos de


mudanças tanto no que se refere à preparação para o ato batismal quanto à significação a dar
ao rito e à sua eficácia. Segundo Foucault, Tertuliano efetua o triplo deslocamento: a. No
tempo – procedimento de purificação parece dever preceder ao mesmo tempo o perdão e o
próprio rito de imersão; b. Na operação purificadora – agente é o próprio homem agindo
sobre si mesmo; c. Na própria natureza desta operação – papel do exercício moral parece
prevalecer sobre a força da iluminação.

A purificação passa a ser condição preliminar. Mas qual o lugar e o sentido desta
purificação preliminar? Tertuliano critica os postulantes ao batismo que se contentam em
arrepender-se de algumas das faltas que cometeram e se apressam depois a pedir o batismo.
Há nestas atitudes presunção, podendo coagir Deus, e orgulho, confiando o pecador em si
mesmo. O período que antecede o batismo deve ser de temor: não somente temor de Deus,
mas de si mesmo. Metus – consciência de que nunca somos inteiramente senhores de nós
próprios reestrutura uma relação com deus e de cada um consigo mesmo:

Então, aqui também temos um elemento fundamental, que é novo com


Tertuliano e que vai ser capital para a história de todo o cristianismo. O cristão,
quando se prepara para o batismo e uma vez batizado, não deve nunca
abandonar o medo.333

Relembrando, metanoia é o movimento da alma acedendo à verdade, e verdade que


se manifesta desse movimento (Tradição Apostólica, de Hipólito apud Foucault, 2019, p.

332
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 6 de fevereiro de 1980.
Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 99.
333
Vida e obra de Tertuliano de Cartago. ECristianismo, 2021.Disponível em: http://www.e-cristianismo.com.br/historia-
do-cristianismo/biografias/vida-e-obra-de-tertuliano-de-cartago.html. Acesso: 29 mar.2021. (p. 116)

145
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
80)334. Concepção nova de preparação para o batismo: catequese, ensino de verdades e de
regras, com trabalho de purificação moral (fazer do postulante um sujeito de
conhecimento335). O movimento da metanoia dá-se sob forma regulada desde o início da
preparação. Tempo das verdades em que devemos acreditar e da penitência que devemos
praticar. Metanoia como exercício. Purificação e exercício. “Exercício de si sobre si mesmo”
(“qualifica o sujeito, o ilumina sobre si e sobre o mundo e, ao mesmo tempo, o
transforma)”336. Tempo da penitência é do perigo e do temor. No Batismo joânico, marca a
vinda do espírito santo, mas precedido pelo batismo de penitência.

Destacamos que a metanoia tem sua face institucional, tendo como princípio: acesso
da alma à verdade não pode cumprir-se sem que a alma manifeste sua própria verdade “o
preço” para “aceder à luz” – metáfora de Tertuliano destacada por Foucault:337

(...) A penitência é o preço que pagamos pelo batismo e pela remissão das
faltas. Quando ele fala de preço como se fosse uma moeda que damos para
ter o batismo, ele quer dizer o seguinte: o vendedor, quando compramos
alguma coisa, começa por examinar o dinheiro que lhe é dado, a fim de
verificar se as moedas não foram roídas, se trazem a efígie legítima, se não
estão alteradas. Do mesmo modo, o Senhor também testa a penitência como
testamos uma moeda, a fim de “nos conceder a recompensa que é nada
menos que a vida eterna”.338

A escrita de Tertuliano é produzida num tempo em que se desenvolvia uma instituição


nova: papel de organizar, regular e controlar a purificação anterior ao batismo. A
institucionalização surge como modelo que dá forma às práticas de catequese e preparação

334
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019.
335
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 13 de fevereiro de
1980. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 107.
336
Ibid., p. 106.
337
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 13 de fevereiro de
1980, p. 107. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 80.
338
Vida e obra de Tertuliano de Cartago. ECristianismo, 2021.Disponível em: http://www.e-cristianismo.com.br/historia-
do-cristianismo/biografias/vida-e-obra-de-tertuliano-de-cartago.html. Acesso: 29 mar.2021. p. 122

146
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
para o batismo. A “ordem” do catecumenato ganha lugar ao lado dos batizados e a
preparação é escandida por procedimentos destinados a pôr à prova o postulante: manifestar
o que ele é; atestar o labor que efetua; dar testemunho de sua transformação e autenticidade
de sua purificação – probatio – umas das significações da disciplina de penitência para o
batismo. Em Do Governo dos vivos339, Foucault resume (praticamente fazendo um desabafo)
o lugar que Tertuliano ocupa no interior do cristianismo: “Relação consigo, relação com a
morte, relação com o outro, é tudo isso que está se estabelecendo nos textos de Tertuliano e
nessas novas práticas do catecumenato. Bom, chega por hoje”. Eis a configuração de como se
dá a institucionalização do catecumenato e seus procedimentos para pôr à prova: Em tono
do núcleo catequese, estão: as prescrições morais, o ensino das verdades e regras, as
obrigações rituais e práticas e, por fim, os deveres. Tem-se, portanto, a confissão
institucionalizada e seus jogos de veridicção. Entre os atos de pôr à prova pela tradição
apostólica (inquirição interrogativa, provas de exorcismos e confissão), ressaltamos o
destaque feito por Foucault em relação ao modo como Tertuliano vê a confissão:
o como ato que o catecúmeno faz por si mesmo, entre outros exercícios de
piedade e de ascetismo;
o confissão – “dizer a verdade sobre si próprio”;
o no ritual da exomologese (Tertuliano usa publicatio sui no De paenitentia, X, 1),
entre atos de penitência e reconciliação, há procedimentos distribuídos em
eixos (privado/público; verbal/não-verbal; jurídico/dramático;
objetivo/subjetivo)340.

Não é uma nova teologia batismal, mas uma “acentuação nova”, ressalta Foucault. Daí
concluímos, destacando no Governo dos Vivos341, os indícios da leitura de Tertuliano por
Foucault e suas razões para fazê-lo:

339
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 13 de fevereiro de
1980, p. 107. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 148. Grifos do autor.
340
Vida e obra de Tertuliano de Cartago. ECristianismo, 2021.Disponível em: http://www.e-cristianismo.com.br/historia-
do-cristianismo/biografias/vida-e-obra-de-tertuliano-de-cartago.html. Acesso: 29 mar.2021. p. 111.
341
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 13 de fevereiro de
1980. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 105.

147
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
1. leitura dos movimentos discursivos: “Bom, retomemos o problema de Tertuliano e
das relações entre purificação e acesso à verdade em sua obra (...) Tertuliano, a meu ver,
introduziu nessa economia das relações entre purificação e verdade certo número de
mudanças (...) Parece-me que, a partir de Tertuliano, ou, em todo caso, através dos textos de
Tertuliano, podemos ver um fenômeno de que temos outros ecos e respostas em sua época
mesma, em outros autores”342.

2. leitura dos objetos discursivos: “E, me parece que a relação entre purificação e
acesso à verdade, em Tertuliano e em certo número de seus contemporâneos, não assume
...nem mesmo de modo dominante a forma de ensino, mas assume ...a estrutura do que
poderíamos chamar de prova [...]” 343.
3. leitura de si, de seu projeto de escritura – “Hoje, gostaria de explicar um pouco a
maneira como Tertuliano define, no batismo...a relação entre purificação e acesso à verdade.
Para os que possam se espantar com que nos interessemos por isso e com que nos ocupemos
neste nível de detalhe...gostaria de dizer que, de qualquer modo, trata-se nesses esboços...de
traçar um pontilhado, de desenhar alguns lineamentos...para uma história da verdade que
não seria feita do ponto de vista das relações de objetividade, (...) Tratar-se-ia de esboçar uma
história da verdade que tomaria como ponto de vista os atos de subjetividade [...]”344. Nas
obras “A verdade e as formas jurídicas” e “História da Sexualidade IV: As Confissões da
Carne”, Foucault aborda, entre outras, a ideia do que seria a “prova”. Os períodos históricos
abordados por ele não são os mesmos, o que nos leva a perceber uma diferença do que seria
essa prática em ambos os contextos. O autor não define, diretamente, o que seria a prova,
mas é possível compreender o seu conceito a partir das linhas que ele desenha.

FOUCAULT LEITOR DA PROVA EM ‘A VERDADE E AS FORMAS JURÍDICAS’

342
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos: curso no Collège de France (1979-1980), Aula de 13 de fevereiro de
1980, p. 107. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014. p. 106.
343
Ibid., loc. cit.
344
Ibid., loc. cit.

148
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Em A Verdade e as Formas Jurídicas345, Foucault analisa como se chegou ao sistema
judiciário, apresentando as práticas judiciárias, destacando as principais formas de busca da
verdade por meio das relações de poder, desde a época da antiguidade clássica 346.
Nesta obra, notamos que a prova é uma prática bastante arcaica, utilizada na
sociedade grega como um mecanismo jurídico de busca da verdade. A pesquisa da verdade
no procedimento judiciário aparece em Ilíada, de Homero. No momento em que Menelau
contesta a vitória de Antíloco, seu adversário, em um jogo, acusando-o de ter cometido uma
irregularidade, observa-se que a figura da testemunha não é relatada, o que ocorre é um
desafio em que Menelau propõe a Antíloco um juramento, diante de Zeus, de que não havia
cometido nenhuma irregularidade, o qual seria uma prova da verdade. Antíloco poderia tanto
jurar quanto renunciar ao desafio, sendo esta última escolha o reconhecimento de ter
cometido a irregularidade. Aceitando o desafio, caberia aos deuses a descoberta final da
verdade. Assim, a verdade jurídica era estabelecida, sem recorrer a nenhuma espécie de
testemunha, mas sim a um jogo de prova, um desafio lançado. Nesta sociedade, a busca
jurídica da verdade se dava pelo jogo da prova, não se recorrendo a uma testemunha ou
inquérito. Assim, não se buscava quem dizia a verdade, mas quem tinha razão, por meio do
desafio, do risco que a pessoa iria correr.
Na tragédia de Édipo, ainda encontramos alguns registros de prova, porém, surge um
novo tipo de regulamento judiciário: o pastor. Este era uma testemunha que, ao atestar que
viu algo, seria capaz de trazer à tona a verdade. Esta obra resume as conquistas da
democracia grega no âmbito jurídico, representando a história do processo, que garantiu ao
povo o direito de dizer a verdade, de julgar ainda que seja a seus próprios senhores, a seus
próprios governantes, sendo instaurado de forma definitiva.
Este direito foi crucial para o desenvolvimento de formas culturais características da
sociedade grega, dando lugar à elaboração de formas racionais da prova, como a Filosofia, os
sistemas racionais, os sistemas científicos; à retórica grega, que consistia na arte de
convencer as pessoas da verdade, de persuadi-las; e a um novo saber, o inquérito, um

345
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005.
346
Ibid., passim.

149
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
conhecimento por meio do testemunho, da lembrança. Tudo isso resultou no surgimento de
uma forma de descoberta judiciária específica, que constitui um modelo para o
desenvolvimento de outros saberes (filosóficos, retóricos e empíricos), os quais
caracterizaram o pensamento grego. Todavia, o nascimento do inquérito foi esquecido,
sendo retomado, sob outras formas, na Idade Média, sendo esse segundo nascimento mais
sucedido e efetivo.
Quando os germânicos entram em contato com o Império Romano, o direito utilizado
por eles para regulamentar os seus litígios era muito parecido com o Direito Grego Arcaico,
o qual se baseava no jogo da prova (sem a existência de inquérito).
Sendo assim, não havia ação pública, ou seja, não havia nenhum representante da
sociedade ou do poder que fizesse acusações aos indivíduos, o que havia era uma oposição
entre indivíduos, famílias ou grupos. O processo de ordem penal ocorria quando alguém
sofria dano ou se apresentava como vítima, acusando o seu oponente, sendo, então, uma
espécie de duelo, em que não existia a intervenção de um terceiro. Os dois conhecidos casos
que motivavam uma ação pública eram a traição e o homossexualismo. Após a introdução da
ação penal, havia uma luta entre os indivíduos, o processo funcionava como a ritualização
dessa luta, era uma forma regulamentada de conduzir uma guerra e encadear os atos de uma
vingança judiciária, os quais só poderiam ser interrompidos com um acordo, um pacto entre
as partes, o qual consistia em um resgate econômico intermediado por um árbitro, pondo,
assim, fim à guerra. A busca da verdade, aqui, dá-se por meio de uma prova de força, não
ocorre uma pesquisa da verdade. Essa era a forma do Direito Germânico antes da invasão do
Império Romano.
Esse sistema de direito misturou-se ao sistema dos romanos entre os séculos V e X
d.c., e cada vez que um Estado nascia sobre as ruínas do Império Romano, o Direito Romano
revitalizava-se, e foi dessa forma que este sobrepujou o Direito Germânico. Porém, se
houvesse separação, era o Direito Germânico que triunfaria. Dessa forma, o direito feudal é
essencialmente germânico, isto é, a resolução dos conflitos se dava pelo jogo da prova, ou
seja, não se buscava a verdade, mas mostrar a importância de quem dizia.

150
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Havia provas sociais, as quais garantiam a importância social do indivíduo; as provas
de tipo verbal, que averiguavam a capacidade do indivíduo de pronunciar com sucesso
alguma fórmula, um erro de gramática ou uma troca de palavra levava ao fracasso, tratava-
se de um jogo verbal; provas mágico-religiosas do juramento, nas quais o acusado não
poderia hesitar ao jurar, pois perderia o processo; e, por fim, as provas corporais (ordálios),
nas quais a pessoa lutava com seu próprio corpo, como, por exemplo, andar sobre ferro em
brasa e, caso houvesse cicatrizes após dois dias, perderia o processo. Podemos observar que,
nesse tipo de direito, o que ocorria era uma regulamentação da guerra, em que vencia
sempre o mais forte, sem nenhuma pretensão de provar a verdade.
Em suma, podemos elencar algumas características da prova: era binária, ou seja, o
indivíduo só tinha duas opções, ou a aceitava, ou a recusava; terminava por uma vitória ou
fracasso; desenvolvia-se automaticamente, sem a intervenção de um terceiro; estabelecia
quem era o mais forte, não quem dizia a verdade. Nessa perspectiva, a prova servia para
mostrar quem era o mais forte e, com isso, aquele que tinha a razão, por meio de formas
derivadas e teatrais.
Esse sistema perdurou até o final do século XII, quando apareceu a sentença, ou seja,
a voz de uma terceira pessoa que julgava quem dizia ou não a verdade e, dessa forma, quem
tinha a razão. O direito é, então, reinventado, surgindo novas práticas judiciárias e se
inventando uma determinada maneira de saber, o inquérito, que surgiu na Grécia e
desapareceu durante séculos. Porém, este inquérito difere-se daquele exemplificado em
Édipo.
No meio ou final do século XII, a justiça passa a se impor aos indivíduos que, a partir
desse momento, perdem o direito de resolver os seus litígios e passam a se submeter a um
poder exterior a eles, o poder judiciário e poder político. A figura do procurador é vista pela
primeira vez na história. Este será o representante do soberano. Qualquer tipo de
crime/delito não era mais algo que lesava apenas a vítima, mas também ao Estado, ao
soberano, pois a ordem dele havia sido desrespeitada, assim o procurador também se voltava
contra o criminoso. Surge, então, a infração, que é “uma ofensa ou lesão de um indivíduo à

151
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano” 347. Sendo assim, o culpado
deve não somente reparar a vítima, como também o soberano por meio das multas, o que
faz aparecer o mecanismo das confiscações e, com isso, o enriquecimento do monarca.
Dessa forma, o procedimento judiciário passa a ser realizado pelo poder estatal e,
assim, o mecanismo da prova não pode ser mais aplicado. O inquérito passou a ser a forma
utilizada para resolução dos conflitos. Nesse procedimento, o procurador reunia pessoas que
conheciam os costumes, o Direito, e estas, jurando dizer a verdade, deliberavam a sós e
apresentavam a solução do problema. O inquérito tinha como personagem essencial o poder
político, que se exercia, inicialmente, buscando a verdade por meio de perguntas,
questionamentos. Em busca dessa verdade, reúne pessoas notáveis, capazes de saber, as
quais, coletivamente, dirão a verdade. O soberano não usava a violência, pressão ou tortura
para isso, o que o diferencia do que acontece no final de Édipo-Rei.
O inquérito, diferentemente do mecanismo da prova, era uma forma racional de se
estabelecer a verdade. Era uma técnica de governar, administrar, de se exercer o poder. Com
ele, a prova vai desaparecendo tanto na prática judiciária como nos domínios de saber,
encontrando-se apenas restos dela na forma da tortura. Porém, esta já demonstrava uma
preocupação de encontrar a verdade por meio de uma confissão.
A Alquimia era um saber que se baseava na prova: “o alquimista realiza uma espécie
de luta, em que ele é ao mesmo tempo o espectador – aquele que verá o desfecho do
combate – e um dos combatentes, visto que pode ganhar ou perder”348. Este saber, que segue
o modelo judiciário da prova, constituída por regras jurídicas, desapareceu, dando lugar a um
saber de tipo novo tomando como modelo a matriz do inquérito.
Como se pode notar, a prova era um mecanismo de poder em que vencia o mais forte,
tendo este a razão, e essa era a verdade. Era uma forma de obter absolvição do crime
cometido, independentemente de ser inocente ou não. O sujeito deveria provar que poderia
vencer o outro por meio da força, do peso, da importância de quem dizia. Tudo não passava
de um jogo que não tinha por objetivo buscar a verdade.

347
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Editora Nau, 2005, p. 66.
348
Ibid., p. 76.

152
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Na “História da sexualidade IV: As Confissões da Carne”349, Foucault também fala da
prova, mas no contexto do cristianismo, ao tratar da penitência. O batismo foi, por muito
tempo, a primeira e única penitência, uma forma de renascimento em que o indivíduo se
liberta dos pecados cometidos. Somente em meados do século II que, para os pecadores já
batizados, foi instaurada uma segunda penitência, a qual seria um recurso solene, organizado
sob a autoridade das Igrejas e que não se repetiria. A segunda penitência é uma forma de o
indivíduo buscar o que já foi lhe concedido com o batismo, de Deus lhe dar uma segunda
esperança. Dessa forma, é mais estreita que a primeira.
Nesse ritual, tanto o penitente (o cristão que cometeu um pecado grave) quanto os
sacerdotes que o regulam estão submetidos a regras. O cristão pecador pede ao bispo a
possibilidade de se tornar penitente, e este a concede em resposta. Os exercícios penitenciais
duram por meses, podendo chegar a durar anos e, ao final, há uma cerimônia em que o
penitente é admitido à reconciliação, a qual não permite a recuperação do estatuto anterior,
pois o indivíduo continua marcado. Isso significa que não poderá se tornar um sacerdote,
ocupar cargos públicos e lhe é recomendado que evite os litígios. O estatuto da penitência
envolve jejuns, vigílias, orações numerosas (práticas de ascese), esmola, socorro dos
enfermos, interdição das relações sexuais entre esposos e exclusão parcial das cerimônias da
comunidade. Após o pedido de se tornar penitente, e sendo este concedido, ele passava por
um episódio de exomologese, que consistia em um conjunto de atos que incluía o uso de
roupas miseráveis, gemidos, choros, clamores dirigidos ao Senhor Deus. Toda essa encenação
é realizada em público para provar a penitência, provar que é digno de perdão pelos seus
pecados.
O ritual da exomologese é, então, um conjunto de procedimentos de verdade que tem
por fim a busca do perdão às faltas graves cometidas pelo penitente após o batismo, para,
assim, regressar à comunhão. Esse ritual é público e coletivo, pois os fiéis, os clérigos e os
sacerdotes também participam, chorando e gemendo junto com o penitente. Durante a

349
FOUCAULT, Michel. A formação de uma nova experiência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
as confissões da carne. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Edição estabelecida por Frédéric Gross. Lisboa: Relógio
D’Agua Editores, 2019. (Capítulo 1).

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
exomologese, o pecador não precisa expressar a verdade da sua falta, não precisa relatar o
que fez, ele precisa fazer a verdade, manifestar o pecador que ele é. Não basta que ele se
arrependa do que fez, ele precisa mostrar para todos o que ele é. Para Foucault, essa
necessidade de expor que o indivíduo é um pecador por meio de todo um ritual acontece
como um conjunto de provas e de garantias para poder haver o perdão, como também
acontece na admissão ao batismo, em que era necessário pôr-se à prova pelo catecumenato.
O indivíduo precisava manifestar o quanto estava arrependido de forma disciplinar e por
meio de castigos, os quais são imprescindíveis para a obtenção do perdão, ele precisa
manifestar a verdade do seu pecado como condição que essa verdade seja apagada. Segundo
Foucault, a verdade “constitui uma ‘prova’ no triplo sentido em que exprime a sinceridade da
crença de um homem, autentica a força omnipotente daquilo em que ele crê, e dissipa as
aparências enganadoras deste mundo para aparecer a realidade do além”350.
Diferentemente do mecanismo de prova presente na primeira obra citada neste
ensaio, aqui observa-se uma relação entre a prova e a verdade. Esta era uma forma de o
cristão mostrar que era um pecador (essa era a sua verdade) e que merecia o perdão de seus
pecados e a reconciliação com o Senhor Deus. A prova consistia em um conjunto de
penitências por meio das quais o indivíduo deveria sofrer e mostrar que era digno de ser
perdoado, era uma forma de obter a absolvição dos pecados. Não bastava que Deus, como
ser soberano e onipotente, tivesse conhecimento do arrependimento da falta que se passava
no coração do pecador, mas que este demonstrasse em público o merecimento do seu
perdão.
Enquanto no contexto jurídico importava o crime cometido no procedimento da
prova, no contexto religioso era dispensável o conhecimento da falta cometida, bastava
expor em público todos os exercícios de penitência que tinham por objetivo mostrar a sua
verdade, isto é, que ele era um pecador.
Uma outra diferença que se observa é que, no primeiro, não há uma intervenção de
terceiros, a menos que fosse para regulamentar a prova. A relação de poder era estabelecida

350
FOUCAULT, Michel. A formação de uma nova experiência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
as confissões da carne. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Edição estabelecida por Frédéric Gross. Lisboa: Relógio
D’Agua Editores, 2019. (Capítulo 1).

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
entre os adversários, entre os quais prevalecia o mais forte. No segundo, há também terceiros
que regulamentam os procedimentos da prova, visto que os sacerdotes ditam os exercícios,
porém há, neste caso, um julgamento, pois antes de ditá-los, os religiosos julgam a falta
cometida e aplicam os exercícios de acordo com a sua gravidade. Além de uma relação de
poder notável pela hierarquia estabelecida dentro da própria Igreja, há uma força superior
que está acima de todos, no caso, Deus.
Apesar de algumas notáveis distinções, percebemos que ambas buscam demonstrar o
merecimento do indivíduo, seja para absolvição de um crime/delito cometido, seja para
absolvição dos pecados; são práticas que estão atravessadas pelas relações de poder e que
vão constituindo o sujeito jurídico e o religioso.

FOUCAULT LEITOR DA PROVA: DA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA A UMA RITUALIZAÇÃO


DA CULPA
Pensando na leitura como uma prática discursiva atravessada pelas relações de saber
e de poder, iremos observar de que forma Foucault faz a leitura da prova em duas obras
publicadas; a primeira é nossa velha conhecida, “A hermenêutica do sujeito” e, quanto à
segunda, trata-se de uma obra póstuma, “História da sexualidade IV: As Confissões da Carne”.
Em A Hermenêutica do Sujeito, Foucault351, na aula do dia 17 de março de 1982
(Primeira hora), reflete sobre a ascética grega, com base nos estoicos e cínicos, que termina
servindo de base para o desenvolvimento de uma ascética cristã. A ascética grega difere do
tipo de ascética cristã pelo fato de não determinar de forma rígida em que momentos o
sujeito deveria fazer uso de certos exercícios. Segundo a filosofia grega, caberia a esse sujeito
escolher livremente quais exercícios deveria fazer e qual seria o momento apropriado, afinal
o objetivo era fazer da própria vida uma obra de arte, objeto de uma “tékhnê”.
Já no cristianismo, era exigido do sujeito uma regularidade na realização desses
exercícios, os quais deveriam ser praticados em todos os momentos da vida. Foucault 352

351
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018.
352
Ibid., p.380.

155
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
explica sobre como, no final do século XVI e no começo do século XVII, deveria ser a vida de
uma pessoa realmente piedosa:
[...] era literalmente recoberta, duplicada por exercícios que a deviam
acompanhar, que ela devia praticar dia a dia, hora a hora, conforme os
momentos do dia, as circunstâncias que se apresentassem, os momentos da
vida, os graus de progresso no exercício espiritual. E havia manuais inteiros
explicando todos os exercícios que deveriam ser praticados, em cada um
desses instantes. Não havia momento da vida que não devesse ser duplicado,
animado, sustentado por um certo tipo de exercícios. [...].353

Para o cristão, portanto, a vida deve ser regrada, ao passo que, para o filósofo, a vida
deveria obedecer a uma forma, que é bela. Essa situação leva Foucault 354 a trabalhar com
duas palavras, na tentativa de elucidar esse universo tão distinto. Ele fala de “meletân” e de
“gymnázein”.
Assim, “meletân-meléte” (em grego) designam uma atividade real, um exercício real.
Em certos textos, “meletân” pode se referir à atividade do trabalho agrícola. “Meletân” é
ainda um termo empregado na técnica dos professores de retórica para designar o trabalho
de preparação para o indivíduo que precisa falar improvisando, sem decorar. Foucault 355 diz
que, quando os filósofos falam de exercícios de si sobre si, a “meletân” designa algo como a
“meléte” dos retóricos: um trabalho de pensamento que prepara o indivíduo para aquilo que
ele irá realizar em breve.
Já o termo “gymnázein” significa exercitar-se, treinar-se e se refere a uma prática em
situação real, quer ela aconteça livremente ou tenha sido provocado artificialmente. Nela se
põe à prova aquilo que se faz. Há autores que não distinguem “meletân” de “gymnázein”,
como Plutarco, outros deixam claro a diferença. Epicteto usa por vezes a série
“meletân/gráphein/gymnázein”, sendo “meletân” entendido como meditar, exercitar-se em
pensamento; “gráphein” entendido como escrever o que se pensou e “gymnázein”
significando que nos exercitamos realmente.

353
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018, p. 380.
354
Ibid. loc. cit.
355
Ibid. loc. cit.

156
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Foucault356 parte da ideia de “gymnázein” para introduzir dois pontos, ou seja, o
regime de abstinências e a prática das provas. No regime das abstinências, encontramos
Musonius Rufus, filósofo estoico do início do Império, defendendo que devemos nos ocupar
com o nosso próprio corpo e a ascética deve incluí-lo. Segundo ele, podemos nos dedicar aos
exercícios do corpo, da própria alma e aos exercícios do corpo e da alma ao mesmo tempo.
Na parte do “Tratado” de Musonius conservada por Estobeu, em “Florilégio”, consta que ele
nada fala dos exercícios do corpo propriamente dito, porém, na perspectiva da filosofia e da
“tékhne toú bíou” (uma arte de viver), tudo o que interessa são os exercícios da alma e os
exercícios da alma e do corpo conjuntamente.
Assim, os exercícios da alma e do corpo, ainda segundo o filósofo estoico357, devem
ter dois objetivos. Primeiro, devem formar e reforçar a coragem (andreía), entendendo-se
por essa afirmação o seguinte: “[...] a resistência aos acontecimentos exteriores, a capacidade
de suportá-los sem sofrer, sem sucumbir, sem se deixar vencer por eles; resistência aos
acontecimentos exteriores, aos infortúnios, a todos os rigores do mundo”358. Segundo, esses
exercícios devem formar e reforçar a outra virtude chamada “sophrosýne”, que é a
capacidade de moderar a si mesmo. Enquanto a “andreía” permite suportar o que vem do
mundo exterior, a “sophrosýne” permite medir, regrar e dominar os movimentos de si
mesmo.
O que Musonius está afirmando é que os exercícios da alma e do corpo formam a
coragem e o domínio, o que parece se aproximar do que diz Platão sobre os exercícios, ao
declarar que – para formar um bom cidadão – é necessário formar sua coragem física e sua
moderação. A diferença reside no fato de Platão se referir à prática de ginástica, ao atletismo,
à luta com um outro, ao passo que Musonius bane totalmente a ginástica e sugere, em seu
lugar, a prática da abstinência como forma de moldar o espírito. É o que se pode conferir no
trecho a seguir:

356
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018, p. 380.
357
Ibid.
358
Ibid., p. 383.

157
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
[...] o que está em questão nesses exercícios – e creio que a diferença aqui é
muito importante – não é o corpo atlético, desafio ou ponto de aplicação da
ascese física ou psicomoral, mas um corpo de paciência, um corpo de
resistência, um corpo de abstinências. Ora, é isso o que de fato se encontra
em Musonius. E é o que igualmente encontraremos na maior parte dos textos
estoicos e cínicos.359

Essa orientação de Musonius contra a ginástica pode também ser observada em


Sêneca, que, segundo Foucault360, na Carta 15 a Lucílio, critica quem se apraz em passar o
tempo a modelar os músculos, a avolumar o pescoço, recomendando, em seu lugar,
exercícios leves e a prática da abstinência, através de, por exemplo, exercícios de pobreza, ao
mesmo tempo real e fictício. Ilustrava, baseando-se em Sêneca, que não era pobre, mas
exercitava a pobreza durante alguns dias, ao se privar de algum conforto, e recomendava que
se dormisse em leito duro, que se vestisse roupas rústicas, comendo pouco e bebendo apenas
água. Trata-se de um exercício praticado para formar um estilo e vida e não para regrar a
própria vida como ocorreu no mundo cristão.
Além da abstinência, outro conjunto de práticas ascéticas são as provas. O próprio
Foucault361 reconhece que entre a abstinência e a prova há sobreposições numerosas que,
cremos nós, podem levar a alguma confusão. Segundo ele, há alguns traços particulares que
podem ajudar na distinção entre essas duas práticas. Assinalamos aqui que esses traços nem
sempre parecem eficazes para estabelecer essa separação entre o que vem a ser uma ação e
outra, pois apresentam diferenças muito tênues.
De qualquer forma, acerca disso Foucault362 destaca três pontos fundamentais, a
saber: a prova enquanto interrogação sobre si; a prova como exercício duplo (tanto na
realidade quanto no pensamento); a vida por inteiro como uma prova. Sobre esta última,
veremos que se apresenta como uma atitude geral da existência.
O primeiro traço que identifica a prática ascética como uma prova e não como um ato
de abstinência é pensar que tal ato conduza a uma interrogação sobre si. Consiste justamente

359
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018, p. 384.
360
Ibid.
361
Ibid., passim.
362
Ibid., passim.

158
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
no fato de que essa ação busque medir em que ponto o sujeito está em relação ao que era,
em relação ao progresso conseguido e em relação ao ponto em que deve chegar. Ainda sobre
esse traço:

[...] Na prova, se quisermos, está sempre em questão um acerta


progressividade e um esforço de demarcação, logo, de conhecimento de si.
Exemplo dessas provas é o que diz Epicteto: O que se deve fazer para lutar
contra a cólera? Pois bem, deve-se comprometer-se consigo mesmo a não se
encolerizar durante um dia. Depois, faz-se um pacto consigo mesmo para dois
dias, em seguida para quatro dias, e finalmente, feito o pacto consigo mesmo
para não se encolerizar durante trinta dias, e tendo-se efetivamente
conseguido cumpri-lo, então é o momento de oferecer um sacrifício aos
deuses [...].363

Trinta dias sem cólera deveria ser, na ascética estóica, algo surpreendente, porque daí
eles deveriam inclusive comemorar oferecendo um sacrifício aos deuses. Chama a atenção o
fato de esse sistema de prova exigir um esforço de marcação de si e indicar que se observe a
progressividade das ações – o que não acontece com a abstinência, vista apenas como
privação voluntária.
O segundo traço que marca a prova é concebê-la como exercício duplo, tanto na
realidade como no pensamento. Nesse caso, além do ato de abstenção, deve-se elaborar uma
atitude interior, por meio do controle do pensamento. No exemplo esboçado por Epicteto,
se um rapaz vê uma jovem por quem se interesse na rua, não basta renunciar a ela, mas é
preciso que ele tente não imaginar usufruir de seus encantos. Esse é um ponto importante,
porque distingue entre a pureza cristã e a abstinência pagã. Por exemplo, Sócrates ficou mal
visto pelos cristãos, no que se reporta à castidade, porque continuava a desejar Alcibíades,
quando este vinha deitar-se junto a ele, mesmo já tendo renunciado ao rapaz. Assim, se for
só a renúncia ao ato, entendemos que se trata de abstenção, para ser prova é necessário que
a restrição seja acompanhada do controle do pensamento, por esse ato de si sobre si.

363
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018. p. 387.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Por fim, o terceiro traço característico da prova é que a vida inteira seja vista como
uma prova. Esse ponto é retomado por Foucault na aula do dia 17 de março de 1982 (Segunda
hora), com a qual trabalharemos a partir deste momento. Trata-se da ideia desenvolvida pela
ascética dos filósofos da época do império, particularmente em Sêneca e Epicteto, de que

[...] a prova (provatio) não deve ser apenas, diferentemente da abstinência,


uma espécie de exercício formador cujos limites fixamos em um certo
momento da existência, mas pode e deve tornar-se uma atitude geral da
existência. Isso significa que vemos aparecer, creio, a ideia fundamental de
que a vida deve ser reconhecida, pensada, vivida, praticada como uma
perpétua prova. [...]364

Em Sêneca, o texto de referência é o “De providentia”, que aborda o tema de que Deus
é pai, diferentemente de uma mãe, a qual costuma ser indulgente com os filhos. Para ele,
Deus, enquanto pai, ama com coragem, com energia sem fraqueza, impondo-lhe fardos,
dificuldades, sofrimentos a fim de preparar as crianças para os fardos reais que poderão
chegar. Dessa forma, o amor de Deus para com os homens assume a forma de uma vigilância
pedagógica, que encerra um paradoxo, expresso no “De providentia”, através da diferença
entre os homens de bem e os que são maus. Essa diferença consiste no favorecimento aos
homens maus, os quais passam a vida em delícias, e na exposição dos homens de bem à
prova, uma vez que estão constantemente trabalhando, penando para superar dificuldades,
embora sejam os preferidos de Deus.
Essa diferença é racional, pois os homens de bem são provados constantemente para
que se fortaleçam com as dificuldades, sendo aperfeiçoados por uma educação que muito irá
lhe exigir. Tal fato faz lembrar uma passagem bíblica, a Epístola aos hebreus 365, que diz “pois
o senhor disciplina a quem ama, e castiga todo aquele a quem aceita como filho” 366. Como
vemos, esses ensinamentos estoicos foram assimilados pelo livro sagrado do cristianismo.
Curiosamente essa epístola foi escrita no ano 65 d.C., mesmo ano da morte de Sêneca.

364
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018, p. 393.
365
BÍBLIA, N. T. Epístola aos hebreus. Disponível : https://www.bibliaonline.com.br/vc/hb/12. Acesso: 30 jul. 2020.
366
BÍBLIA, Epístola aos hebreus, 12, 6.

160
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Temos, assim, duas ideias importantes a serem destacadas aqui. Primeiro, a ideia de
que a vida, com todas as provas que comporta, é uma educação. Da mesma forma que a
prática de si (“epiméleia heautoû”), para Alcibíades, não seria algo apenas para a juventude,
mas deveria abarcar toda uma vida, também a educação deveria ser para o homem de bem
extensiva a toda a sua vida. É a “epiméleia heautoû” ampliada para toda a vida, fixando
coextensividade entre vida e formação. Segundo, a generalização da prova como vida, com o
cuidado de si atravessando toda a vida, articulando-se com uma função discriminante, que
separa os homens em bons e maus. Então, a vida como prova é reservada aos homens de
bem. Se as pessoas más são abandonadas aos prazeres é porque não têm condições de
vencer a prova, nem organizam sua vida como prova.
Semelhante ao “De providentia”, Epicteto, no livro I dos “Diálogos”, compara Deus a
um mestre de ginastas que dispõe de adversários rudes para ensinar a resistência e a força,
a fim de que os atletas estejam preparados e recebam a palma, no dia dos jogos. Aqui
também se fala na função discriminante: o explorador, que representa o homem bom,
enfrentará os inimigos, passará por sofrimentos, vencerá e voltará, para ensinar aos que
ficaram, como vencê-los.
Para Epicteto, o filósofo é também esse explorador, que passa por provas, enfrenta
inimigos e retorna para dizer que tais inimigos não são tão perigosos como se pensava e,
enfim, pode dizer a forma de vencê-los. Portanto, provas, infortúnios não são males, pois
podemos tirar proveito de todas essas dificuldades. Se um vizinho me insulta, me faz um bem,
pois exercita minha doçura e minha indulgência.
É uma tese tradicional do estoicismo pensar no esvaziamento do mal enquanto mal,
uma vez que as situações que ocorrem, quaisquer que sejam e por mais acidentais que
pareçam, fazem parte da ordem do mundo racional e foi organizada por Deus. É somente a
nossa opinião que nos separa do ponto de vista racional e nos faz pensar que se trata de um
mal o que efetivamente não o é, ao menos ontologicamente.

161
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Foucault367 tece algumas observações acerca dessa ideia da vida como prova
formadora. A primeira observação é que, de certa forma, essa concepção não é tão nova
assim, uma vez que a crença na vida povoada de infortúnios é uma velha ideia grega,
sustentada inclusive pela tragédia. Foucault368 cita Prometeu e sua prova, Héracles e suas
provas, Édipo e a prova ao mesmo tempo da verdade e do crime. Enquanto a prova, na
tragédia grega, é vista como uma disputa entre homens e deuses, na prova estoica, defendida
por Sêneca e Epicteto, é por um uso paternal que os deuses expõem os homens de bem a
toda sorte de provas, de infortúnios, com o objetivo de formá-los.
A segunda observação é que esse tema da vida como prova formadora e discriminante
deveria provocar muitas dificuldades teóricas, afinal essa preparação toda deveria ter um
objetivo e a função discriminante mereceria alguma explicação razoável. No entanto, estas
não parecem ser questões fundamentais para Sêneca, como o foi, mais tarde, para os
cristãos, para quem a prova se definiria na base da salvação da alma. Para o estoico, o tema
da técnica de si parecia ter autonomia suficiente para se manter como uma norma de
conduta, sendo a resposta a essas inquietações algo que não era uma prioridade.
A terceira observação é que esses dois temas da vida como prova e da função
discriminante foram transferidos da ascética filosófica para a espiritualidade cristã,
apresentando-se de modo bastante diferente. Para os cristãos, considerar a vida como prova
será fundamental e as duas questões que não são objeto de preocupação dos filósofos
merecem reflexão ativa para aqueles A preparação que ocupa toda a vida tem como alvo a
salvação. A questão da discriminação se concentra no essencial do pensamento cristão: “[...]
o que é a predestinação? O que é a liberdade do homem diante da onipotência divina? O que
é a graça? Como é possível que, antes mesmo de terem nascido, Deus tenha amado Jacó e
odiado Esaú? [...]”369

367
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018.
368
Ibid., passim.
369
Ibid., p. 401.

162
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Foucault370 chama a atenção para o fato de que tudo o que escreveu sobre a cultura
de si na época helenística e romana, leva-o a refletir sobre o seguinte ponto: o cuidado de si
não será doravante um elemento indispensável à técnica de vida (“tékhne toû bíou”), como
talvez se tenha pensado inicialmente, mas é a técnica de vida que se inscreve no quadro em
relação ao cuidado de si. Há aqui, portanto, uma inversão, o cuidado de si e a técnica de vida
trocam de lugar.
E o que motiva essa troca de lugar? Certamente a inserção da ideia de que a vida
inteira deve ser vivida como uma prova constante. Esse movimento conduz à formação do
eu. O sujeito deve viver a sua vida de tal sorte que ele cuide de si e que as provas sejam
vividas de modo que ele possa desenvolver “[...] uma certa relação para consigo, relação que
é o coroamento, a completude e a recompensa de uma vida vivida como prova. [...]” 371
(FOUCAULT, 2018, p. 403).
Pensemos agora na prova vista pelo prisma de “História da sexualidade IV: As
Confissões da Carne”, obra póstuma de Foucault, na parte denominada “A segunda
penitência”. Foucault372 (2019) cita o quarto Preceito do Pastor de Hermas para demonstrar
que, por muito tempo, existia apenas a penitência destinada aos que aspiravam ao batismo,
só a partir do século II da Era cristã teria se instaurado um segundo recurso aos pecadores
que, após transformações sucessivas, resultaria na instituição penitencial. Seria esse um
recurso único, solene, não repetível. O processo do arrependimento e o pedido de perdão já
existiam na vida comunitária antes mesmo que o texto de Hermas aparecesse anunciando a
instauração de uma outra penitência, assim como já existia a penitência reservada aos
catecúmenos. Surge, então, uma outra penitência, mais rigorosa que a anterior, como forma
de institucionalizar esse arrependimento. Chama-se segunda penitência, considerando, neste
caso, que a primeira penitência era a que ocorria por ocasião do batismo.

370
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Edição estabelecida por Fréderic Gross sob a direção de François
Ewald e Alessandro Fontana. Tradução de Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: WMF Martins
Fontes, 2018.
371
Ibid., p. 403.
372
FOUCAULT, Michel. A formação de uma nova experiência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
as confissões da carne. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Edição estabelecida por Frédéric Gross. Lisboa: Relógio
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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
A penitência canônica toma forma, no século II, “pelos recursos rituais organizados sob
a autoridade das Igrejas para aqueles que cometerem pecados graves e cujo perdão não
poderia ser obtido somente pelo seu arrependimento e somente pelas suas orações. [...]” 373.
Assim, não há segundo batismo, mas há segunda penitência para aqueles que caíram após
receber o batismo. Essa penitência ocorrerá, tendo em vista a existência de pecados graves,
sob a autoridade de um sacerdote, durante um tempo designado, com um certo número de
procedimentos definidos.
Geralmente, o pecador solicita a um bispo a licença para se tornar penitente ou a isso
é impelido por um sacerdote que conhece a sua falta. Concedida a penitência, esta tem início
num ritual de imposição das mãos pelo bispo e os exercícios penitenciais podem durar meses
ou anos, havendo mesmo quem venha a falecer sem receber o perdão, como citado por
Tertuliano, no seu “De pudicitia”, quando descreve de forma positiva o pecador que leva vida
de penitente sem nunca ter se reconciliado, pois serve de exemplo aos demais 374. Ao término
desse período, haverá uma outra cerimônia, na igreja, em que o bispo novamente impõe as
mãos e o indivíduo é readmitido, sem conquistar, porém, o status que tinha antes, ficando
marcado.
Durante o seu exercício, há práticas de ascese (como jejuns, vigílias, orações
numerosas); há também obras, como o socorro aos enfermos; há interdições das relações
sexuais aos casados e exclusão parcial das cerimônias da comunidade, privando o indivíduo,
por exemplo, da eucaristia. Dessa forma, o perdão é obtido depois de um longo trabalho do
pecador sobre si mesmo.
Uma condição exigida para a obtenção do perdão é que seja feita a chamada
exomologese. Segundo certos historiadores, esta consiste em “[..] uma maneira de designar
o conjunto dos actos penitenciais aos quais o pecador está vinculado. [..].” 375. Feito penitente
pela concessão do bispo, haveria um momento, antes da reconciliação, em que o pecador,

373
FOUCAULT, Michel. A formação de uma nova experiência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
as confissões da carne. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Edição estabelecida por Frédéric Gross. Lisboa: Relógio
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374
Ibid., loc. cit.
375
Ibid., loc. cit.

164
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
na igreja, torna pública toda a sua dor em “ter caído”, faz a exomologese, conforme atesta
Tertuliano, no “De pudicitia”:

[...] é portador do cilício e da cinza, veste roupas miseráveis, é tomado pela


mão, introduzem-no na igreja, prosterna-se publicamente diante das viúvas
e dos sacerdotes, agarra-se aos panos de suas vestes, beija o rasto de seus
passos, abraça-lhes o joelho. [...]376.

Deve-se reparar que a exibição exigida para comprovar o arrependimento não


acontece para exaltar o pecador, mas para que ele demonstre a sua modéstia, suportando
toda a humilhação a que se submete, por exemplo, ao pedir aos fiéis que roguem a Deus pelo
seu perdão e chorem com ele, servindo de modelo aos que o veem para que vigiem e não
pequem. É uma espécie de rito jurídico para garantir o poder, a força da instituição e o
controle dos corpos.
A exomologese pode ser vista como uma prova pela qual o penitente precisa passar,
já que ele deseja o perdão da sua falta grave e o caminho oferecido pela instituição religiosa
é esse da penitência que inclui essas manifestações externas, para comprovar que existia o
arrependimento e que o cristão se mostrava merecedor da reconciliação. Neste caso, temos
a prova no sentido de atestar o arrependimento, como valor demonstrativo da conversão,
operada no sentido de uma exibição, que poderia ser ou não verdadeira, mas deveria
convencer. Em todo o texto de Foucault esse sentido é o que parece prevalecer, embora o
sentido de pôr-se à prova também apareça, porém com menor ênfase que o sentido anterior.
Neste segundo sentido, o penitente punha-se à prova, suportava toda humilhação,
para testar sua alma, em nome da sua absolvição. Este sentido do termo aparece dito
diretamente em “A segunda penitência”, apenas no trecho atribuído a Santo Ambrósio, na
sua obra “De paenitentia”, quando é dito que “[...] no fim do século IV, continua a ser através

376
FOUCAULT, Michel. A formação de uma nova experiência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
as confissões da carne. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Edição estabelecida por Frédéric Gross. Lisboa: Relógio
D’Agua Editores, 2019. (Capítulo 1). p. 106.

165
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
de tais actos destinados a pôr à prova e provar que se caracteriza a prática da vida penitente:
gemidos e lágrimas [...]”377.
Essa ação da exomologese que é exigida do penitente lembra-nos do exercício
chamado de treino em situação real (gymnázein), porque a exibição precisa ocorrer em uma
situação real, de forma pública, para que o perdão seja concedido, no entanto essa
similaridade é antes apenas aparente, tendo em vista que os gregos usavam o “gymnazein”
para ações que em nada faziam referência a um pedido de perdão. Eles se colocavam à prova
para dar uma forma bela a suas vidas, era uma decisão pessoal e não uma obrigação
ritualística.
Fica evidente que o pecador precisa dizer, ou melhor, tornar pública a sua verdade, a
fim de obter o perdão das suas culpas, pois, no dizer do próprio Foucault: “[...] Não há perdão
se não há exomologese, reconhecimento pelo pecador da sua falta, manifestação externa,
explícita, visível desse reconhecimento. [...]”378. Essa manifestação da falta através da
confissão é vista como um ato de libertação, porque aquele que confessa é imediatamente
absolvido.
Dessa forma, pode-se dizer que a prova, no contexto do estoicismo, em “A
hermenêutica do sujeito” é uma forma de interrogar-se a si mesmo para saber o quanto já se
progrediu na direção da estética da existência, além de se colocar como exercício duplo, tanto
na ideia como no pensamento, chegando, finalmente, a ser concebida como um treinamento
que abrange toda uma vida, é uma técnica de vida que se inscreve no quadro do cuidado de
si.
Já a prova, no mundo cristão, como pode ser depreendido pela leitura de “História da
sexualidade IV: As Confissões da Carne”, é vista como manifestação da verdade do sujeito,
que precisa se dizer pecador para ser absolvido. É a prova como atestado do arrependimento,
além do sentido de prova como exercício de humildade, no qual o cristão se põe à prova para
alcançar a reconciliação – condição indispensável para alcançar a salvação da alma.

377
FOUCAULT, Michel. A formação de uma nova experiência. In: FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
as confissões da carne. Traduzido por Miguel Serras Pereira. Edição estabelecida por Frédéric Gross. Lisboa: Relógio
D’Agua Editores, 2019. p. 109.
378
Ibid., p. 114.

166
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Uma observação final importante a ser feita com relação à prova é que, no período do
estoicismo, submeter-se à prova era uma opção do sujeito, um ato voluntário para o grego
que desejava conduzir a sua existência de forma ética, na tentativa de fazer da sua vida uma
obra de arte. Em contrapartida, a prova, para o cristianismo, é vista como uma condição a
que o pecador se submete, a fim de ser perdoado pela autoridade eclesiástica, momento em
que o sacerdote se coloca na condição de juiz, que tem o poder de condenar ou absolver o
penitente. A depender do quanto ele se mostre arrependido, através da ritualização da sua
culpa, por meio da exomologese que lhe é exigida, haverá a confirmação do seu
arrependimento.

RETOMANDO NOSSA INCURSÃO PELAS CONFISSÕES DA CARNE E SEUS


DESDOBRAMENTOS
Como vimos, para Foucault, o cristianismo estabeleceu certa relação entre a obrigação
de manifestação individual da verdade e a dívida do mal. Nesse quadro, Tertuliano teve o
papel de conceber a nódoa do pecado original, que não existia antes dele, pois há a crença
de que todos nascem com esse mal. Por conta dessa mancha, todo cristão deveria se esmerar
com a catequese e com rituais de purificação, a fim de fazer jus ao batismo. Ele critica os
cristãos presunçosos que se arrependem de algumas faltas e se apressam em pedir o batismo.
Posteriormente, caso o cristão viesse a cair, deveria solicitar a um bispo a condição de
penitente para proceder com todo o ritual novamente (exomologese), que dessa vez deveria
ser definitivo, ele cumpriria, então, uma segunda penitência, já que o batismo era visto como
a primeira.
Em A Verdade e as Formas Jurídicas, Foucault analisa como se chegou ao sistema
judiciário, dando destaque às principais formas de busca da verdade pelo jogo de poder,
remontando à antiguidade clássica. Retoma a Ilíada, para explicar que a prova era obtida
através de um desafio lançado por alguém que contestava o resultado de uma luta, acusando
o adversário de ter praticado alguma irregularidade. A prova era obtida por meio de um novo
desafio em que o vencedor, o mais forte e mais habilidoso, conquistaria a verdade à força. À
luz da tragédia de Édipo, relata o surgimento do processo, que possibilitava o julgamento e o

167
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
direito de dizer a verdade. Mais tarde, surgia o inquérito, um conhecimento por meio do
testemunho, da lembrança, mas logo desapareceu para ressurgir na Idade Média. Percebe-
se que a prova não é usada para o conhecimento da verdade, mas fruto de uma relação de
poder, em que tem razão quem tiver mais força, mais astúcia. Assim, o cidadão poderia não
ser inocente e ganhar o direito à absolvição da pena. Enquanto em As Confissões da Carne,
no contexto do cristianismo, a prova se referia ao ritual de penitência a que o pecador deveria
se submeter para alcançar o perdão das suas culpas, após ter recebido o batismo e ter caído
novamente em pecado. Nesse caso, havia relação entre a prova e a verdade, já que o pecador
deveria provar que seu arrependimento era verdadeiro, a fim de ser perdoado.
Em A Hermenêutica do Sujeito, Foucault revisita os gregos e a sua estética da
existência, apresentando-a como uma prática ascética livre e fruto de uma escolha do
cidadão, que queria se tornar um sujeito melhor e tenta desenvolver as habilidades do seu
si, podendo essa prática se prolongar como exercício de uma vida inteira. Difere-a, então, da
forma como os cristãos se colocam à prova, em As Confissões da Carne, uma ação que se
origina da culpa pela mancha do pecado e uma obrigação a que o penitente deve se
submeter, se quiser ser perdoado e obter a salvação da sua alma. Essa ritualização da culpa
é uma espécie de rito jurídico para garantir o poder, a força da instituição e o controle dos
corpos.
Assim, essa incursão pelas obras de Foucault, tendo como ponto de partida As
Confissões da Carne, mostra como a concepção de prova se desloca do sentido de jogo de
poder a fim de obter a vitória ou absolvição, passa pela ideia de um treinamento de si com
vistas ao aperfeiçoamento, até chegar ao preceito cristão de exomologese, conjunto de
penitências em que há a confissão da culpa e a teatralização do arrependimento, com o
objetivo de alcançar o perdão dos pecados e o direito ao céu, por meio do apagamento da
mancha do pecado original, ritual preconizado por Tertuliano.
Esta incursão de leituras, num movimento descontínuo de consultas a fontes diversas,
a obras de Foucault e a algumas referidas por ele, falou muito de nós, enquanto leitoras
foucaultianas. Foi uma experiência de descobrirmos a nós mesmas diante de uma prática de
leitura nada costumeira, pois exigiu um olhar para as descontinuidades da escrita

168
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
foucaultiana, enquanto ele fazia o mesmo com suas outras obras, num movimento de leitura
feito na dispersão, seguindo sua tarefa metodológica da arqueologia. Tratamos de exercitar,
nessa prática discursiva de leitura, um modo de fazer emergir os elementos do cristianismo
que funcionaram para produzir sujeitos, definir condutas, estabelecer uma jurisdição e, no
fundo, dizer quem somos nós hoje, atravessados por esta história que não é da ordem daquilo
que passou, mas da ordem das insurgências constitutivas de seres que ainda hoje são
afetados por suas histórias e confissões.

169
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
LER COM FOUCAULT AS PRÁTICAS PENITENTES E CONCUPISCENTES E AS FORMAS
DE DIZER E SER VERDADADEIRO
Renailda Ferreira Cazumbá
Tamize Mota
Carla Luzia Carneiro Borges

A SEGUNDA PENITÊNCIA COMO RITUAL DE GOVERNO E VERIDICAÇÃO


Focalizamos, nesta parte do ensaio, como Foucault interpreta o ritual cristão da
penitência com base nas leituras do autor das cartas de São Cipriano de Cartago (250 d.C. -
304 d.C.) e de Santo Agostinho (354 d.C. - 430 d.C.). Damos prosseguimento às reflexões que
estabelecemos até então sobre as formas a partir das quais Michel Foucault constrói a sua
genealogia do sujeito por meio do estabelecimento das práticas de si que constituíram a
moral sexual cristã dos séculos I ao IV d. C.. Todavia, nesta parte do texto abordamos a
Segunda Penitência, tema tratado por Foucault no capítulo “A formação de uma experiência
nova”379, baseando-nos na forma como o autor interpreta as práticas penitenciais e exercícios
de purificação enquanto estratégias de controle da sexualidade pelo acesso à verdade do
sujeito cristão.
Foucault perscruta e observa descontinuidades e rupturas que compuseram as
relações entre subjetividade e verdade e as técnicas de veridicação, especialmente, ligada à
formação do sujeito sexual. Mira os rituais da purificação do cristianismo que visavam à
salvação e à verdade de Deus, tais como o batizado e a confissão, para apontar rupturas,
brechas nos discursos e nas práticas religiosas para nos dizer o que somos hoje pode ter se
constituído ainda nos primeiros séculos da era cristã. Por isso que ler quem Foucault leu é
tentar reconstruir o seu percurso e nos direciona a um diagnóstico do presente e como ele
podermos criar alternativas outras de interpretação das formas de subjetivação de nosso
tempo. Em Confissões da Carne observamos que Foucault entrelaça essa obra a todas as suas
obras anteriores, conforme veremos, trata do assunto em O Governo de Si e dos Outros380, o

379
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019.
380
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Edição estabelecida
por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010.

170
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
que presume de antemão um modo de ler especial: direcionado a diferentes espaços e
lugares ou direções, dispersivo e que pressupõe a multiplicidade e capacidade de olhar para
várias direções para apreender o objeto lido. Foucault analisa o discurso de vários autores
que compuseram e sustentaram as linhas de pensamento e as doutrinas da igreja católica
nascente. Foucault visa compreender a constituição da moral sexual do Ocidente e, por isso,
observa as formas pelas quais eram realizadas as penitências e os recursos rituais organizados
sob a autoridade da Igreja para obtenção dessa extração da verdade enquanto meio de obter
a salvação. O filósofo francês não estava preocupado em como eram feitas as interdições,
mas sim como eram criadas e aceitas as técnicas constitutivas do sujeito do desejo.
Ler com Foucault é fazer incursões na descontinuidade da história, observar as brechas
e irregularidades, as relações e funcionamentos discursivos, bem como, num movimento de
diagnosticar381 o presente, buscar descrever quais as formas de disciplinarização da
sexualidade que vivenciamos hoje e que foram constituídas bem antes da chamada
modernidade.

FOUCAULT LEITOR DA PENITÊNCIA EM SÃO CIPRIANO E DA LIBIDINIZAÇÃO DO SEXO


EM SANTO AGOSTINHO
Olhando para as práticas e rituais cristãos da Igreja até o século IV a. C, Foucault afirma
que embora o cristianismo não tenha inventado o controle sexual, mobilizou formas
específicas de ordenamento e disciplinarização. Vemos que Foucault lê Cipriano para
compreender o ritual da penitência e a construção dos códigos de conduta cristãos nascentes
naquele período. Estamos atentas à maneira deste autor do século XX olhar para os escritos
daquele bispo da Igreja, que estava nos idos do século III, empenhado em estabelecer as
bases e os códigos de conduta da moral cristã, mas para compreender condutas e éticas
sexuais da era moderna e do seu tempo presente. Foucault estaria observando que Cipriano
já propõe a legislação da penitência atenuando princípios de diversas normas em torno do

381
“Eu procuro diagnosticar, realizar um diagnóstico do presente: dizer o que somos hoje e o que significa hoje, dizer o
que nós dizemos”. Cf.: FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos, volume X: filosofia, diagnóstico do presente e verdade.
Organização, seleção e revisão técnica Manoel Barros da Motta; tradução Abner Chiquieri. 1ª edição. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2014, p. 34.

171
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
ritual. Assim sendo, adotamos também um capítulo de O Governo de Si e dos Outros, pois
Foucault aborda a prática da parresía como rito de conhecer a verdade de si e do outro que
já se fazia presente na vida filosófica dos gregos, sobretudo, Sócrates e Platão. Para Foucault
esse governo da sexualidade não teve início no cristianismo, mas podia ser verificado desde
os gregos da primeira metade do século IV (a. C) que exerciam censura sobre os corpos, mas
a partir de formatos diferentes de interdição. Foucault reconhece entre os filósofos gregos
da antiguidade a existência de um “jogo da verdade indispensável” 382, predominando no
período que autor chama de “o momento socrático e platônico da parresía”383, no qual a
verdade do sujeito sobre si já prevalecia nas técnicas de controle da ética sexual. Portanto,
propomos alguns pontos de conexão de Confissões da carne, sobre a institucionalização da
prática da penitência, com a obra O Governo de Si e dos Outros, especificamente na Aula de
9 de março de 1983, segunda hora, no capítulo “Estudo do Górgias”, resultado dos cursos
ministrados por Foucault de 1982 à 1983 no Collège de France em que aborda o “Górgias”,
um dos diálogos escritos por Platão.
De tal modo, notamos que Foucault deseja evidenciar as formas de constituição da
conduta sexual que nos conforma até os dias de hoje, pois como sabemos todas as leituras
de Foucault neste caminho conduzem para estabelecer um diagnóstico do que somos hoje e
dos procedimentos que modelos a forma como concebemos a sexualidade nos dias atuais. O
interesse de Foucault é pela penitência nos primeiros séculos (I e II antes de Cristo) quando
ainda não era prática institucionalizada como obrigação anual do cristão conforme afirma,
pois seu interesse caminha além dos ‘debates de ordem teológica e pastoral’, que a
antecederam para concentrar-se nos recursos organizados em torno das faltas e pecados
graves.
O autor observa a transformação dos modelos e a formação dos preceitos e códigos
de conduta da pastoral cristã, olhando de perto, no caso da Penitência, ou seja, para os
recursos rituais estabelecidos pelas autoridades eclesiásticas para os sujeitos que praticaram

382
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Edição estabelecida
por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010, p. 179.
383
Ibid., p, 308.

172
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
atos graves: “[...] Limitar-me-ei a encarar as formas tomadas, a partir do século III, pela
penitência ‘canônica’, [...] pelos recursos rituais organizados sob a autoridade das Igrejas para
aqueles que cometerem pecados graves e cujo perdão não poderia ser obtido somente pelo
seu arrependimento e somente pelas suas orações” 384. A penitência era um ritual imposto
ao sujeito com vistas à expiação de um determinado erro/ pecado produzindo a reintegração
do cristão à comunidade; era um estado de reconciliação que perdurava através de muitos
atos simbólicos que a pessoa assumia diante das autoridades da Igreja, da comunidade e de
si mesmo, demonstrando arrependimento pela falta grave que cometeu.
A penitência consistia uma prática enleada de atos de simbolismo que visavam obter
a verdade do sujeito no sentido de conduzi-lo à verdade maior de Deus, da qual não poderia
se furtar, reconhecendo as próprias faltas. Neste sentido, ler São Cipriano mostra-nos a
preocupação em firmar, entre as doutrinas cristãs dos primeiros séculos, algumas técnicas
para a extração da verdade, o que nos possibilita perceber a condição indissociável da
confissão como forma de dizer a verdade sobre si. Vemos com Cipriano que o ritual de dizer
a verdade (parresia) era fundamental nesse processo, pois quem realiza penitência
confessava também seus pecados. Consistia em extrair do sujeito a verdade sobre si, fazendo-
o confiar que tal verbalização da verdade o isentaria de perder o vínculo com Deus.
Baseado nisso, Foucault explica como opera essa discursividade em torno do
enunciado da verdade: Eu digo a verdade e penso verdadeiramente que é verdade, e penso
verdadeiramente que digo a verdade no momento em que a digo. Esse desdobramento, ou
esse redobramento do enunciado da verdade pelo enunciado da verdade [...] 385”. Essa
discursividade marca definitivamente, segundo Foucault, a ligação muito forte entre os
processos de subjetivação do sujeito e o entendimento de como se dá o governo de si e dos
outros por via do conhecimento e da produção de verdade sobre o sujeito. Foucault faz-nos
compreender as relações de saber e poder ligadas à produção historicamente determinada
da vontade de verdade sobre o sexo, transformando-o em discursos que nos interferem ainda

384
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, p. 95.
385
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Edição estabelecida
por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010, p. 62.

173
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
hoje na forma como sentimos e pensamos a sexualidade. Neste caminho, pensar com
Foucault é ser movido pelo que nos interessa agora, é olhar para os processos históricos
constituintes da nossa subjetividade e formadores da nossa relação com a sexualidade.
O olhar da genealogia foucaultiana sobre o cristianismo faz-nos despir das afirmações
e maneiras de fazer a história do moralismo cristão que olhavam para as formas de controle
da sexualidade apenas como repressão, sem nos atentarmos para os caminhos discursivos
que constituíram a sexualidade como uma positividade que incita e produz verdade. Ao
lermos os textos dos padres cristãos com Foucault, vemos que o autor está sempre atentando
para o tempo presente, embora realize em As Confissões da Carne leituras de diversos textos
que comportam. De acordo com o professor Alessandro Francisco (2018)386, os discursos de
filósofos gregos e latinos dos quatro primeiros séculos da era cristã representam um conjunto
de texto que “abrange quatro períodos ou momentos da história de nossa cultura
(ocidental)”387, abarcando dois momentos distintos do cristianismo primitivo até alcançar
Agostinho388.
Neste caminho, sobre a leitura que fez das Cartas389 de Cipriano, Foucault observa
como este bispo de Cartago já propõe a legislação da penitência, vista naquele período da
Igreja nascente como esforço de reintegrar os indivíduos que cometeram erros. Surgiu por

386
FRANCISCO, Alessandro. As confissões da carne. Revista EcopolÌtica. São Paulo, n. 22, set-dez, 2018, pp. 75-99.
Disponível em: https://revistas.pucsp.br/ecopolitica/article/download/40055/27045. Acesso em 15 de dezembro de 2020.
387
Idem, 2018, p. 79.
388 De acordo com Alessandro (2018, p. 76), em Confissões da carne, Foucault trata desses momentos que podem ser

assim compreendidos: “[...] (1) o paganismo da Antiguidade, que Michel Foucault também designa pelas expressões
“moralistas pagãos” (p. 15), “moralistas da Antiguidade” (p. 21), ”mestres de conduta da Antiguidade” (p. 106), “vida
filosófica da Antiguidade” (p. 121), “filosofia helenística” (p. 252), “filosofia da Antiguidade” (pp. 252-253); (2) o
princípio do cristianismo primitivo, em especial por meio dos testemunhos de Clemente de Alexandria (150 d.C. – 215
d.C.) e de Tertuliano (160 d.C. – 220 d.C.); (3) o período dos chamados “exegetas cristãos”, dentre eles, Cipriano (250 d.C.
– 304 d.C.), Metódio de Olimpo (250 d.C. – 311 d.C.), Eusébio de Cesareia (265 d.C. – -339 d.C.), Gregório de Nissa (330
d.C. – 395 d.C.), Basílio de Ancira (ca. 336 d.C. – ca. 362 d.C.); e (4) o momento agostiniano – expressão nossa – onde
analisa o discurso de Agostinho (354 d.C.-430 d.C).
389
“O corpus Cypriani, tal como o conhecemos hoje, abarca 81 cartas e 13 tratados de extensão, proveniência e conteúdo
muito diversos. Algumas cartas se perderam, e, provavelmente, alguns de seus sermões também. Cipriano foi um líder
eclesiástico eminentemente de ação, como demonstra sua intensa correspondência. [...] Entre as 81 epistulae, Bayard (1945,
p. xlvi) distingue quatro grupos de temas principais: aquelas que tratam de assuntos de disciplina (1 a 4); as que tratam da
perseguição de Décio, da reconciliação dos apóstatas e da luta contra os cismáticos (5 a 68); as que tratam do batismo
ministrado pelos dissidentes (69 a 75); e as que tratam da perseguição de Valeriano (76 a 81)”. In: SOARES, Carolline da
Silva. Separando a palha do bom grão: autoridade episcopal e disciplina eclesiástica em Cartago segundo o testemunho
de Cipriano (Século III d.C.). Tese (doutorado em História) do Programa de pós-graduação em História do Centro de
Ciências Humanas e Naturais. Orientador, Gilvan Ventura da Silva. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória: 2016.
pp. 85-115. Disponível em: http://repositorio.ufes.br/handle/10/9300. Acesso em 19 mar. 2021.

174
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
questionamento feito à Igreja por ocasião de batizados voltarem a pecar. Tanto a penitência
como outros rituais do cristianismo primitivo atuavam como um processo de subjetivação e
forma de conhecer a verdade do sujeito, marcando e impregnado no nosso comportamento
moral e ético hoje. Neste percurso, a penitência possuía uma ligação efetiva com o batismo;
estava ligada a este sacramento que significava a ligação mais sólida do sujeito com Cristo e,
portanto, irrepetível. Sabe-se que o batismo é único e era interpretado como uma limpeza
dos erros, quem é batizado não pode pecar mais, pois uma vez que representava a purificação
do corpo maculado pelo pecado.
Foucault coloca é a seguinte questão: “Como poderá um baptizado obter de novo o
seu perdão se infringiu os compromissos que tomou e se se afastou da graça que
recebera?”390. Tal pergunta nos remete a outras para entender de qual modo foi dado à
permissividade da igreja, enquanto instituição, docilizar corpos, controlando-os em nome de
Deus. Caso haja uma reincidência no erro, como um pecador poderá novamente ser
perdoado se não cumpriu com a palavra dada de desejos de mudança? Quais os rituais
necessários para expurgar os pecados? Evolução na dor? Surge, então, após o batismo outras
técnicas, como a penitência, que vêm a funcionar como uma chance de se fazer remissão dos
pecados, arrependimento e correção dos “erros” como o adultério e a renegação da fé. A
penitência significava um ato de reconciliação com Deus e com a comunidade cristã. Foucault
explica que embora a penitência não seja repetível, pois como o baptismo a penitência
também é única: “Não há senão um baptismo; do mesmo modo, não há senão uma
penitência”391. Tratava-se de uma reconciliação que era definida por referência ao baptismo.
“Não que fosse a sua repetição, porque o baptismo não pode ser reiterado”392. Era, portanto,
um renascimento. A pessoa que recorria ou era indicado a realizar a penitência submetia-se
a diversos procedimentos, mas, sobretudo, à condição de ser penitente que cotidianamente
demonstrava seu arrependimento e vontade de remissão das faltas e sofria restrições e
interditos na vida social.

390
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, p. 95.
391
SANTO AMBRÓSIO. De paenitentia, texto estabelecido e traduzido em francês por R. Gryson, S.C., 1971 apud
FOUCAULT, 2019, p. 97.
392
FOUCAULT, op. cit. p. 95.

175
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Nesse percurso, notamos que a penitência no bispado de São Cipriano possuía o
caráter singular de evitar a generalização no processo de avaliação das faltas cometidas pelos
cristãos, de forma que procurava seguir a prática de exame individual de cada caso. Conhecer
caso a caso a falta do sujeito, segundo Cipriano, visava-se penetrar na alma do pecador para
avaliar-lhe o erro para que a decisão de quem avaliasse fosse de certa forma imparcial, e não
se configurasse, portanto, uma avaliação precipitada em relação às intenções e da vontade.
Cipriano buscava atingir o difícil equilíbrio entre “o rigor e a indulgência” e com isso impedir
decisões instáveis como a reconciliação prematura ou a disposição perdida precocemente do
pecador393.
A despeito de não determinar quando advém essa menção, de forma explícita, por
parte de Cipriano em relação à exomologese, Foucault interpreta que, neste caso, era
necessário o reconhecimento das faltas, e este ato podia ser publicamente. Foucault chama
a atenção que a exomologese era uma prática que visava à manifestação da verdade das
faltas cometidas pelo pecador diante da comunidade. Antes da institucionalização, aa
penitência não representava uma confissão em si. Significava que era essencial ao penitente
a demonstração coletiva, em forma de orações, de forma ostensiva, não-verbal e teatral, dos
próprios erros diante da comunidade eclesial. Mais do que dizer a verdade, o pecador deveria
demonstrar de forma gestual, corporal, expressiva que pecou: “[...] a demonstração,
ostentativa, do que o pecador é faz intrinsecamente parte da penitência. Forma uma sua
dimensão essencial e constante. O penitente tem menos de ‘dizer a verdade’ sobre o que fez
do que de ‘fazer a verdade’ manifestando aquilo que é”394. O termo exomologese sugere,
portanto, um conjunto de atos que acompanhavam os rituais penitenciais ao qual o pecador
está vinculado, mas ainda não se fala neste período vivenciado por Cipriano de uma prática

393
“Examinar caso a caso a situação dos que pedem para ser acolhidos como penitentes em vista de serem finalmente
reconciliados; encarar as intenções e as circunstâncias do acto {causae, voluntates, ecessitates); distinguir "aquele que por
sua própria vontade se dispôs imediatamente ao sacrifício abominável, e aquele que depois de ter resistido e lutado por
muito tempo só por necessidade chegou ao acto deplorável; aquele que se entregou a si mesmo e aos seus, e aquele que,
avançando para o perigo só e por todos, preservou a sua mulher, os seus filhos e toda a sua casa"^".) (SÃO CIPRIANO,
carta LIX, 15el6.; carta LV, 13, apud FOUCAULT , 2019, p. 99).
394
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, p. 113.

176
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
confessional ligada aos episódios finais da penitência395. Havia, nos atos penitenciais, uma
obrigação não apenas de reconhecer o pecado, mas “manifestações destinadas a expor à
plena luz do dia a verdade do penitente”396. Mas por que isso acontecia, pergunta-se
Foucault. Por que arrepender-se não bastava, era necessário “[...] mostrá-lo e mostrar-se tal
como é”? Porque é que a manifestação da verdade faz intrinsecamente parte do
procedimento que permite resgatar a falha? Porque é que, quando se “fez mal”, é necessário
fazer brilhar a verdade, não só do que ‘se fez, mas também do que se é’? 397.
De tal modo, Foucault observa que a verbalização da verdade de si presente nos textos
de Cipriano apenas se tornam práticas monásticas institucionalizadas a partir dos séculos IV
e V, que faz surgir uma nova forma de relação entre subjetividade e os modos de veridicação.
Entretanto, desde os filósofos antigos, saber a verdade do sujeito era uma forma de o mestre
exercer o controle sobre a subjetividade do discípulo, entretanto, o cristianismo inaugura
uma nova relação com a verdade do outro por via da direção espiritual; institucionalizou o
controle e direção da consciência nas práticas penitenciais e confessionais tendo o sacerdote
como guia para o acesso à verdade si e obediência aos princípios cristãos. O cristianismo não
criou, mas refinou as técnicas de acesso à verdade do sujeito e ampliou a reação entre
subjetividade e verdade, sempre sob a tutela do mentor espiritual como marca permanente
da pastoral cristã: “[...] técnicas e estratégias tendentes a articular o acesso da verdade para
se formular relações de si para si mesmo com vistas à subjetivação, mas sempre sob a
intervenção de um guia figurado no mestre da conduta ou no diretor espiritual”398.
Na aula de nove de março de 1983, segunda hora, presente na obra Governo de si e
dos outros, Foucault analisa a dimensão política, jurídica e filosófica da prática da paresia com

395
Foucault explica: “Parece de facto possível distinguir três elementos: i) Primeiro devia ter lugar a exposição do pedido;
ii) No outro extremo do procedimento penitencial, quando chegou o momento da reconciliação, parece de facto que se
tenha dado lugar a um episódio, bem definido, de exomologese “É pelo menos o que parecem indicar várias passagens da
correspondência de São Cipriano nas quais, evocando o que é necessário para a reconciliação dos lapsi, aquele indica
regularmente a série: (paenitentiam agere, exomologesim facere e impositivo manus SÃO CIPRIANO, carta XV). iii) Mas
os termos de exomologese ou de confessio não designam apenas este episódio terminal da penitência”. (SÃO CIPRIANO,
carta XV apud FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV - As Confissões da Carne. Edição estabelecida por
Frédéric Gros; Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, p. 105).
396
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, p.113.
397
Ibid., loc. cit.
398
Ibid., loc. cit.

177
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
base no diálogo “Górgias”, de Platão, do livro VIII da República em que se discute sobre a
validade do discurso retórico, mas para esclarecer que as práticas parresiásticas relacionadas
ao governo de si e do outro já possuíam validade no contexto filosófico grego antigo. Neste
texto, Foucault mostra que a confissão cristã já teria sido anunciada cinco ou seis séculos
antes em práticas ascéticas gregas e romanas, presentes na via filosófica enquanto exercício
de condução das almas.
Na leitura que faz do diálogo “Górgias”, Foucault evidencia a valorização da prática
parresiástica na filosofia em detrimento da retórica, considerada um discurso enganador e
falacioso. Neste momento retratado no diálogo platônico, a obrigação de falar a verdade de
si estava dissociada do problema político, pois existia enquanto prática que visava curar-se a
si próprio e aos outros; era cultivada entre os filósofos gregos como Sócrates, depois Platão
e outros filósofos de até o início do século IV a. C. em oposição à retórica representada no
texto pelos sofistas gregos Górgias, Pólo e Cálicles. Foucault denomina de “parresía filosófica”
esta inflexão e desvio da utilização da parresía para o exercício da filosofia e não apenas para
a prática política, embora ela não deixasse de existir com essa função na Grécia antiga; a
parresía utilizada como nova utilização da prática da veridicação entre os filósofos gregos, na
qual há “uma certa inflexão do discurso filosófico, da prática filosófica, da vida filosófica. E é
o momento dessa inflexão do discurso, da prática e da vida filosóficos pela parresía399.
A parresía, portanto, teve lugar neste momento “socrático-platônico”400, como um
exercício filosófico de falar a verdade para o exercício do governo do outro, da forma como
já se conhecerá tardiamente nas práticas cristãs. A filosofia era um modo de vida e uma opção
da existência de forma que comportava a renúncia determinadas “coisas” do mundo.
Renúncia que, entretanto, não possuía o sentido de purificação, como será no ascetismo
praticado pela vida cristã, muito embora já possuísse a função de governo de si e do outro:
“Pelo tipo de existência que se leva, pelo conjunto de opções que se faz, pelas coisas a que
você renuncia, pelas que aceita, pela maneira como você se veste, pela maneira como fala,

399
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Edição estabelecida
por Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010. p. 309.
400
Ibid., p. 307.

178
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
etc., a vida filosófica deve ser, de ponta a ponta, a manifestação dessa verdade”401. A verdade
do sujeito que deveria ser manifestada ao mestre que conduzia a relação de aprendizagem
na vida filosófica. Encorajava-se a produção da verdade do sujeito com vistas à condução da
alma e do corpo daquele que se constitui como discípulo. Essa filosofia parresiástica, de
acordo com Foucault, não mais se dirige ao homem político e ao retório, mas ao discípulo:
“Já não é ao homem político, já não é ao retórico, mas ao discípulo, mas à outra alma, mas
àquele a quem se busca, àquele cuja alma se busca, [...], é a esse que se dirige essa filosofia
parresiástica”402. Foucault observa, a partir do texto de Platão, que é possível perceber que
na vida filosófica antiga predominava “[...] uma obrigação de falar de si mesmo, uma
obrigação de dizer a verdade sobre si mesmo, obrigação de dizer tudo sobre si mesmo, e isso
para se curar”, o que evidencia que as práticas de conhecimento da verdade do sujeito
presentes na confissão cristã que já existiam no universo filosófico grego antigo. Falar de si
mesmo para se curar. É nesse sentido que Foucault conecta a prática penitencial proposta
por Cipriano com os exercícios de dizer a verdade de si para obter a salvação presentes numa
terceira dimensão parresiástica da filosofia do mundo grego antigo. Com base nisso, intenta
traçar a genealogia das relações entre subjetividade e verdade e o governo de si e dos outros.
De tal modo, Foucault vê que este texto de Platão antecipa sem anunciar, mas que já
prefigura “cinco ou seis séculos antes, o que será a confissão cristã.”. De acordo com
Foucault, o que é dito no Górgias, sobre essa obrigação de quando se comete uma falta ter
de falar de si para curar-se, de buscar um médico ou juiz, é muito próximo do que vai se
afirmar muito depois dobre a prática da penitência quando esta for institucionalizada “no
decorrer do século III - e se tornar então urna prática constante pelo menos no ascetismo
cristão, ou todo um aspecto do ascetismo cristão, a partir do século IV-V”. Essa formulação
da verdade com fins de cura física ou espiritual é uma formulação que, assegura Foucault,
poder ser encontrada quase literalmente nos textos de autores como São Cipriano, por
exemplo, sem que se saiba “jamais nenhum autor cristão tenha se referido a esse Górgias,

401
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Edição estabelecida por
Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010. p. 311.
402
Ibid., p. 309.

179
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
como de efetivamente eles soubessem que não era exatamente disso que se tratava” 403. A
analogia, segundo Foucault, encontra relação na forma como as culturas helenísticas e cristãs
interpretam a cura de um erro. O que é preciso fazer para curar de uma falta? Para o cristão,
é preciso eliminá-la buscando-se o auxílio daquele que efetivamente pode fazer isto; é
preciso confessor e dizer a verdade oculta, com ajuda de alguém.
O que interessa a Foucault na genealogia que traça da subjetividade cristã é essa
mediação de alguém – médico, juiz, padre, mestre –, e a função que este terá no acesso à
consciência do sujeito; essa individualidade já presente na parresía filosófica (diálogo entre
mestre e discípulo) e que se verá nas práticas da confissão e da penitência. Ler São Cipriano
nos mostra algumas técnicas para a extração da verdade e perceber a existência de uma
relação indissociável da confissão como forma de dizer a verdade sobre si e a parresia é
fundamental, pois quando o penitente confessa os pecados se acredita que o sujeito esteja
dizendo uma verdade sobre si, pois tal ação de falar a verdade arrisca o vínculo com Deus.
Baseado nisso, Foucault afirma: “Esse desdobramento, ou esse redobramento [...] pensando-
a, eu a digo, é isso que é indispensável ao ato parresiástico404. Há, portanto, uma ligação
muito forte entre o processo de subjetivação do sujeito e o entendimento de como sucede o
governo de si e dos outros, visto que fica nítido como a vida entra nos domínios de governo
(seja na produção das relações de saber/poder seja pela vontade de verdade dos
pensamentos historicamente marcados na atualidade).
Pensar com Foucault é ser movido pelo que nos interessa agora, pelos saberes que nos
objetivam e pelos processos históricos constituintes da nossa subjetividade. Significa
despirmo-nos das afirmações impostas à nossa subjetividade pelo moralismo cristão. É um
processo de reconhecimento de nossa parte, na atualidade, de quais foram as redes de
saberes intricadas na constituição das verdades sobre nós e quais as tramas que ainda nos
prendem e essa rede de verdades.

403
FOUCAULT, Michel. O governo de si e dos outros. Curso no Collège de France (1982-1983). Edição estabelecida por
Frédéric Gros sob a direção de François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2010. p. 326.
404
Ibid., p. 62.

180
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O cristianismo criou uma “obrigação” de dizer a verdade, baseando-se na ideia de
salvação ou de extinção de débitos do sujeito com o plano superior a partir de práticas como
a confissão e a penitência. Neste caminho, a leitura que Foucault realiza da penitência no
bispado de São Cipriano mostra como as práticas de exame de consciência se formaram e
aconteceram no contexto do cristianismo nascente.
Refletirmos como, nos estudos foucaultianos, abre-se uma caixa de ferramentas para
compreendermos as estratégias cristãs ainda hoje exercitadas dentro das congregações com
vistas à constituição da nossa sexualidade. Não há como negar que a ideia de pecado ligada
ao ato sexual é ainda reiterada pelas religiões cristãs atuais, desde que vemos a incitação ao
casamento como forma de praticar o sexo sem pecado. Por incrível que possa parecer, o
direcionamento do sexo com o sentido de tabu e proibição, constituído com base na ideia de
pecado e de culpa, ainda orienta as práticas sexuais atuais dentro do cristianismo atual.
Destarte, Santo Agostinho foi responsável por fixar a teoria da libidinização do sexo,
do corpo e sexo como condenáveis. Foucault analisa em Confissões da Carne no capítulo A
libidinização do sexo405 que as teorias de Agostinho tornam-se importantes para
compreendermos o investimento da Igreja nascente na ideia de uma moral da conduta sexual
ligada ao pecado, que deve ser praticada no casamento, reforçando a confissão e a penitência
como práticas de expurgação dos pecados e reencontro com Deus. Foucault demonstra que
Santo Agostinho sistematizou a concepção de que havia um mal intrínseco ligado à
sexualidade humana.
Nos textos De bono conjugali e Cidade de Deus406, dentre outros analisados Foucault,
Agostinho assenta o ato sexual como ato libidinoso, fruto da desobediência e do nosso
distanciamento em relação a Deus. Na condição de ato involuntário, a sexualidade carrega
consigo a vergonha que o olhar para si e a ereção masculina provocaram ao primeiro homem
no paraíso.

405
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, p. 246 -383.
406
SANTO AGOSTINHO, De bono conjugali, X (11); SANTO AGOSTINHO, A Cidade de Deus, XIV, 16 apud
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019, pp. 246 - 247.

181
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Visto sob a perspectiva de uma espécie de morte espiritual, o sexo encarna a
desobediência e o afastamento do homem à bondade de Deus e a entrada no reino da morte.
Foucault interpreta que a elaboração agostiniana da conduta e da subjetivação do sexo está
baseada no ato involuntário que habita o corpo (a libido) durante a relação sexual e que
significa uma morte espiritual contraída pela queda de Adão e Eva e da qual somos herdeiros:

Para Agostinho, o acto sexual não tem por que esperar o apagamento das
gerações para se exercer, mas o involuntário que doravante o habita significa
uma morte espiritual da qual o fim sucessivo das existências terrestres é
também uma manifestação. O corpo que escapa à vontade do homem é
também um corpo que morre: a retirada da graça subtrai-o ao seu domínio
ao mesmo tempo que actualiza a morte407

É neste sentido que Foucault nos induz a pensar que, em relação à sexualidade
relacionada ao ato libidinoso se constitui mesmo a história da subjetividade cristã e, ainda,
hoje nos induz a vermos com restrições o nosso corpo que deseja e pulsa. Com base nas
elaborações de Santo Agostinho, Foucault direciona-nos a refletir como foi constituída a ideia
de sexo libidinoso. Em torno da ideia de pecado, por exemplo, Foucault observa que
Agostinho põe o sexo como ato de insubmissão humana aos desígnios divinos, pois o ato
sexual com se baseia na vontade, a libido, revoga a comunhão fundada entre Deus e os
homens no ato da criação que estabeleceu prática sexual direcionada apenas à procriação
dentro do casamento. O sexo feito no casamento com fins de procriação é isento de culpa.
Esta é a ideia principal de Agostinho, e que Foucault resume no início do capítulo e
ironicamente nos interroga se deveria seguir na análise: “A conjunção física dos sexos,
quando se faz no casamento, dando-se por fim à procriação, é pois, como diz o De bono
conjugali, isenta de falta: ihculpabilis”408.
Na visão religiosa de Agostinho, o ato sexual experimentado fora do casamento e por
ação involuntária é pecado e ação libidinosa; é fraqueza da alma e do corpo que precisa ser
confessada e expurgada da consciência e prática do sujeito cristão.

407
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019. p. 359.
408
Ibid., p. 346.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Por ser um ato involuntário, a libido estaria, portanto, inerente ao ser humano, faria
parte da natureza original humana. Se na teoria, os órgãos sexuais deveriam ser refreados e
a relação sexual conduzida para os fins da procriação, pois na prática esse freio da vontade
não pode ser realizado porque constitui parte da fraqueza intrínseca ao humano, um mal que
faz parte da natureza do homem: “A esses órgãos destinados à procriação desde a origem,
mas abalados desde a queda por movimentos dos quais não podem livrar-se, os homens,
observa Agostinho, dão o nome de “natureza”409. Para Foucault expõe esse paradoxo:

Agostinho vê-a também na impossibilidade de dissociar o acto sexual destes


movimentos que não se controlam e da força que os arrebata. Por sábios que
possamos ser, por justo e razoável que seja o fim que nos propomos na
conjunção dos sexos, por maior conformidade que nisso mostremos com a lei
de Deus e o exemplo dos Patriarcas, não podemos fazer com que ela se
produza sem esses abalos dos quais não somos senhores [...]410.

Foucault interroga a teoria de Agostinho: deveremos compreender que a libido revela


de uma natureza estranha ao próprio sujeito, que se lhe impõe como elemento exterior, e
que a queda desapossou de certo modo o sujeito da sua própria carne, a ponto de esta agir
sem ele? Sendo da natureza animal do homem, o ato involuntário da libido faz parte do corpo
e se apossa da alma do homem. A questão da natureza animal do homem encerra-se,
segundo Foucault aponta, na Apenas encerrando o sexo à obediência e à submissão das
regras do casamento poderia significar uma forma de superar a desobediência do primeiro
casal humano: “A condição necessária da geração, é, segundo este texto nos diz, ‘sem falta’.
Mas é somente dentro desse limite que releva do casamento e do seu bem. [...], se vai "além
dessa necessidade", já não pertence à razão, mas à concupiscência (libido)”411.
A libido (isto é, o desejo) representa uma morte espiritual por excelência a que fora
condenada a humanidade no ato da queda do paraíso, e que fica patente na passagem do
Gênesis que manifesta como Adão revelar-se envergonhado diante de Deus; a teoria de

409
SANTO AGOSTINHO, De nuptiis et concupiscentia, 1,6 (7) apud FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV:
As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros; Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 2019, p. 362.
410
Ibid., loc. cit.
411
Ibid., p. 349. - grifos do autor.

183
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Agostinho, segundo Foucault, demonstra que o homem infringira a lei suprema do paraíso de
praticar o ato sexual sem interferência das tramas libidinosas e, por extensão, cedera às
forças involuntárias do desejo: “A queda provocou pois aquilo a que poderíamos chamar a
libidinização do acto sexual: quer admitamos que este, sem a falta, poderia desenrolar-se
sem libido alguma; [...]”412. Assim, a elaboração de Agostinho de princípios morais da
sexualidade cristã parte da cena bíblica da queda do homem e da mulher no paraíso, que
cederam às sensações involuntárias do corpo, demostrando a Deus o olhar envergonhado
diante da nudez e da ereção masculina involuntária. Agostinho parte desses componentes
para compor a ideia de que a libido significa ato condenável, porque se manifesta pelo ato
alheio à vontade.
Com base em Agostinho, Foucault lê a libido, um “movimento que atravessa e
transporta todos os actos sexuais”413, à qual o homem deveria opor-se e combater, pois nada
mais é “do que o correlativo de uma deficiência, e o efeito de uma degradação” 414. O homem
decaído cede aos desejos do corpo e da alma, pois isso é um degenerado que se apartou da
vontade de Deus:
De acordo com a leitura de Foucault, esse ato libidinoso que se manifesta pela falta
traz consigo dois aspectos basilares da teoria agostiniana da libidinização do sexo que traz
um paradoxo essencial: a libido provém da queda; é degradação, visto que os órgãos
destinados à geração de filhos e da descendência foram deturpados quando o casal deixou-
se conduzir pelas sensações involuntárias do corpo. Este se constitui o paradoxo na teoria da
concupiscência, pois a distinção entre a união sexual e o e ato involuntário da libido seria
constituinte da carne humana, criada por Deus e não significaria mal em si: “Por conseguinte,
não poderemos considerá-la um bem – um bem originariamente disposto por Deus e mantido
depois da queda?”415. Entretanto, como ato involuntário, a libido não é possível de ser
dominada, que aja comedimento e abstenção. Há, porém, dois aspectos que se ligam a esse

412
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019. p. 360.
413
Ibid., loc. cit.
414
Ibid., loc. cit.
415
Ibid., p. 346.

184
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
estigma do involuntário ligado à libido, isto é, a ereção e a impotência, pois ambos fogem do
controle da vontade, conforme detalha Foucault:

Uma breve evocação, na Cidade de Deus, do que o acto sexual é na sua forma
e no seu desenrolar-se permite-nos cingir o problema. Agostinho retoma aí
muito fielmente a descrição clássica do paroxismo sexual com os seus três
pontos essenciais: um abalo físico do corpo que não é possível dominar, uma
comoção da alma que é arrebatada contra vontade pelo prazer, um eclipse
final do pensamento que parece aproximá-lo da morte. 416

Essa condição involuntária do desejo carnal, que foge do controle da vontade, não
pode ser imputada ao homem, pois não poderia ser responsabilizado por reações corporais
que não poderia controlar. Para Foucault esta é a “fórmula notável” feita por Foucault
observa que nas reflexões de Agostinho em Cidade de Deus, a libido possui o estigma do
involuntário, porque faz parte da natureza animal, mas que possui diferença em relação à
natureza do homem.
A concupiscência procede da desobediência e da revolta humana em relação aos
desígnios de Deus e que provocou a sua queda: “[...] o mal da concupiscência não existe entre
os animais, não porque seria voluntária, mas porque o involuntário que a caracteriza não é
neles uma revolta, não marca a cisão entre os desejos da carne e os do espírito.”417 Foi por
obra da queda que provocou uma modificação na estrutura do sujeito que o tornou rebelde
e separado de Deus. O homem deixou de olhar para Deus, fixando-se em si próprio: tal
modificação na alma do primeiro casal constitui uma cisão fundamental que faz com seus
atos sejam apartados do bem, pois dos desejos sexuais satisfeitos de forma desenfreada e
segundo a vontade humana, e não segundo a vontade de Deus, são atos da carne, portanto,
condenáveis. Entretanto, Foucault questiona se a libido é algo exterior ao sujeito, se é da
natureza, como podemos culpar o homem por algo que foi da obra de Deus? Agostinho teria
formulado a saída: a libido é sui juris e fixado dois elementos importantes para fundar a
vontade do sujeito em si próprio: “[...] teve de definir por um lado as relações da libido com

416
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019. p. 347.
417
Ibid., p. 365.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
a alma (o que assegura o princípio da imputabilidade) e a fixar por outro lado o estatuto da
libido por referência ao pecado (o que permite estabelecer o que pode ser imputado)”. 418 A
concupiscência, portanto, não tem relação com a alma, que seria imputável, mas estaria
fincada no corpo: “[...] num corpo ferido pela morte e dominado pelo princípio do mal que
põe o ponto de origem dos movimentos da concupiscência o seu carácter involuntário está
ligado ao facto de serem carnais [...]”. Como houve falta, relacionada à desobediência que
provocou a queda, a alma do homem guiou-se pela vontade má e fixou-se em si, apartando-
se de Deus: “num movimento da alma que, afastando se de Deus, se afeiçoa a si mesma e
nisso se compraz”419. Abandonamos Deus nos comprazermos em nós mesmos. Esta é a lei da
concupiscência: a lei do pecado, porque é uma desobediência que apossa do homem quando
este não se compraz do bem.
O homem não pode senhor de si e querer o bem a não ser que reconheça seu
pertencimento a Deus. Entretanto, é apenas o batismo que pode redimir a concupiscência do
pecado original: “A concupiscência da carne é remida no baptismo, não de maneira a deixar
de existir, mas de maneira a deixar de ser imputada como pecado” 420. Entretanto, a falta
original é sempre atualizada, de forma que o batismo redime, mas não apaga a falta que já
constitui.
Sabe-se que o batismo é interpretado como uma limpeza dos erros. Quem é batizado
não pode pecar mais, porém Foucault se questiona: “Como poderá um baptizado obter de
novo o seu perdão se infringiu os compromissos que tomou e se se afastou da graça que
recebera?” Tal pergunta nos remete a outras para entender de qual modo foi dado à
permissividade da igreja enquanto instituição docilizar corpos e controlando-os em nome de
Deus. Uma reincidência no erro, como poderá novamente ser perdoado se não cumpriu com
a palavra dada de desejos de mudança? Quais os rituais necessários para expurgar os
pecados? Evolução na dor? Surge então pós o batismo outras técnicas de penitências que

418
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019. p. 366.
419
Ibid., p. 363.
420
Ibid., p. 370.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
vem a funcionar como uma chance de se fazer remissão dos pecados, arrependimento e
correção dos “erros”.
Pensar e pesquisar com e a partir de Foucault nos mostra que durante cristianismo
primitivo, a única penitência existente era a do batismo, daí ser necessário retomar o poder
pastoral para fazermos uma leitura do surgimento do que Foucault chama de mecanismo da
instancia da obediência pura (que seria o obedecer pelo obedecer). O pastor atribui a lei
divina e, com isso, não precisa convencer ou provar aos fiéis onde está essa lei, pois o simples
fato de argumentar e de duvidar já pode ser caracterizado como uma desobediência, uma
espécie de sim por que sim onde a obediência é uma virtude. O que, para Foucault, é algo
novo na história que surge com o povo hebraico: a obediência como algo positivo, pois seria
como o pastor desse a vida por eles, algo que não seria possível com os gregos e romanos.
Os estudos foucaultianos nos disponibilizam os instrumentos interpretativos para
lermos as estratégias que o cristianismo utilizou para constituir da nossa sexualidade ligada
à ideia de pecado e de tabu. Ainda, podemos entender que somos, em parte, resultado das
formas de direcionamento da moral sexual cristã, das formas de incitação à verbalização da
verdade sobre o sexo e dos rituais punitivos e penitenciais.
A libidinização do sexo elaborada por Santo Agostinho é um investimento numa moral
sexual baseada no sentimento de culpa que leva à confissão para que, através desta e da
penitência, haja uma expurgação dos pecados. Com base em Agostinho, Foucault analisa as
estratégias do cristianismo para assentar o ato sexual como ato libidinoso e aceito com base
na perspectiva da morte espiritual. A libido é uma perversão e distorção do ato sexual
originalmente instituído por Deus para fins de procriação. Enquanto pecado, o mal que a
libido encerra precisa ser reconhecido, purificado, para conduzir o homem em direção ao
caminho à redenção divina. O casamento cumpre uma função definitiva neste processo,
conforme veremos. É neste sentido que Foucault nos convida a pensar em quem somos hoje
em relação à sexualidade, como vemos nosso corpo que deseja e pulsa em meio às restrições
e incitações ainda persistentes na saciedade contemporânea.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
FOUCAULT LEITOR DE AGOSTINHO: A JURIDIFICAÇÃO E O PROBLEMA DO
VOLUNTÁRIO E DO INVOLUNTÁRIO

Como já dissemos alhures, Foucault destaca que o cristianismo criou uma “obrigação”
de dizer a verdade, exatamente alegando necessária para o cristão conseguir a salvação ou
extinção de débitos com o plano superior. Trazer a noção do que seja voluntário ou
involuntário relacionado a aspectos jurídicos implica num modo específico de pensar no
cristão e nos modos de sua sujeição, mais do que subjetivação talvez.
Para compreendermos o processo de juridificação instituído por Agostinho e Cassiano,
como tratado por Foucault em Confissões da Carne, no caso específico que diz respeito à
concupiscência, vamos estabelecer alguns confrontos com as Confissões do próprio
Agostinho. Em suas Confissões421, Agostinho declara sobre as primeiras palavras em sua
infância:
Não mo (a falar) ensinaram os mais velhos, apresentando-me as palavras com
certa ordem e método, como logo depois fizeram com as letras; mas foi por
mim mesmo, com o entendimento que me deste, meu Deus, quando queria
manifestar meus sentimentos com gemidos, gritinhos, e vários movimentos
do corpo, a fim de que atendessem a meus desejos; e também ao ver que não
podia exteriorizar tudo o que queria, nem ser compreendido por todos
aqueles a quem me dirigia.

Agostinho quando atualiza suas memórias, já se mostra neste embate entre


manifestar seus desejos e controlar seus sentimentos. Esta confissão vai na direção de pensar
numa prática regulada, fundamentada nas regras sociais, as quais delimitam os espaços de
subjetivação. As práticas do sujeito que vão produzindo um modo de viver, de se relacionar
consigo e com os outros, com o amor a Deus. Ainda considerando as Confissões, de Santo
Agostinho, destacamos o momento em que o autor discorre sobre “a verdade das
escrituras”422:
Por isso lancei-me avidamente sobre as veneráveis escrituras inspiradas por
teu Espírito, sobretudo as do apóstolo Paulo. (...) Compreendi a unidade
daqueles castos escritos, e aprendi a me alegrar com tremor.
421
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Capítulo VIII As primeiras palavras, p. 37. Texto integral. São Paulo: Editora Martin
Claret, 2002.
422
AGOSTINHO, Santo. Confissões, Livro VII, capítulo XXI, p. 163.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Comecei a lê-los e compreendi que tudo de verdadeiro que lera nos tratados
dos neoplatônicos se encontrava ali, mas com o aval da tua graça (...) Porque
tu és justo, Senhor; nós, porém, pecamos, cometemos iniquidades;
procedemos como ímpios, e tua mão se fez pesada sobre nós, e é com justiça
que fomos entregues ao pecador antigo, ao príncipe da morte, porque ele
persuadiu nossa vontade a se conformar à sua, que não quis persistir em tua
verdade.

Acerca da finalidade das confissões, capítulo 1, Agostinho pergunta: “Por que motivo,
então, narrar-te essas coisas todas? Certamente não é para que as conheças; é para despertar
em mim e nos que me lêem nosso amor por ti(...)” 423. Esta confissão de amor a Deus como
propósito maior da confissão, vai se constituindo em condição para produção de um discurso
que regulamenta os desejos do sujeito. Narrar a si é desdobrar-se no outro, no Deus amor
que determina os limites entre o voluntário e o involuntário.
Para responder a alguns questionamentos, Agostinho precisou considerar as relações
da libido com a alma. Outro ponto que destacamos é que a possibilidade de imputação deve
ser precisada. Essa imputação tem relação com a falta cometida por um sujeito que se deixa
levar pela concupiscência. As análises anteriores mostram que a concupiscência não é uma
potência autônoma na alma, nem uma força que viria do exterior afetar a sua fraqueza. É da
alma no sentido de ser “constitutiva da forma actual da sua vontade: ‘é a lei do pecado’ ”. 424
Abre-se, portanto, lugar ao princípio jurídico da imputabilidade. Em Confissões da
Carne, Foucault aborda a libidinização do sexo com atenção ao processo de juridificação que
foi ganhando corpo e sendo instituído por Agostinho. O tema da concupiscência surge como
objeto deste empreendimento no campo limítrofe do religioso e do jurídico:
Se a concupiscência for caracterizada na estrutura da vontade parece difícil
imputá-la como se imputaria um pecado a que mo tivesse cometido. “A
vontade poderá ser culpada de ser o que é? Mas se o não é, como acusar, a
título do pecado, o que dela vem e não é se não o efeito de sua natureza?”425

Para Foucault, este aspecto reporta-se ao governo das almas e à conduta sexual dos
esposos em particular. Passa a ser necessário refletir e, em especial, decidir sobre como se

423
AGOSTINHO, Santo. Confissões, Livro VII, capítulo XXI, p. 257
424
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019. p. 366.
425
Ibid., p. 367.

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ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
dá a introdução de elementos que permitem pensar em formas do tipo jurídico, práticas,
regras, prescrições e recomendações. Também passa a ocupar espaço central pensar o
pecador como sujeito de desejo e de direito.'
Com este processo de estabelecer modos de diferenciação desejo/direito, surgem
noções importantes para a juridificação: o consentimento (consensus) e uso (usus),
discutidos mais adiante. O documento De nuptiis et concupiscentia trata da imputabilidade
(reatus) da concupiscência e do pecado. A concupiscência tem um caráter de atual, como
pecado original em todo aquele que viesse ao mundo e seria suprimida pelo batismo, não
sem que ela subsistisse. O pecado, como ato cometido, desaparece, mas o reatus permanece.
Para Juliano de Eclana, ocorre o que considera “recíproca de todos os contrários”: não tem
como suprimir o reatus da concupiscência sem apagar o do pecado; nem incriminar o pecado
sem fazer da concupiscência da qual ele procede um mal substancial do ser humano. Para
Agostinho (no VI livro do Contra Julianum), até mesmo depois do batismo, a concupiscência
continua presente, “em acto” uma vez que o batismo não apagou senão o aspecto jurídico
que a tornava condenável.
A concupiscência é pecado segundo uma certa maneira de falar. Mas que maneira é
essa? Antes do batismo, a lei do pecado é dita pecado atual, merecendo a este título o castigo
que espera todos os que não foram batizados. Agostinho 426 apresenta vários esquemas de
explicação dessa atualidade:
a) Esquema originário e sincrônico: Em Adão, existem todos os homens no estado de
semente, estes não comportam mal, mas participam do ato da falta e “herdam” a
condenação.

b) Esquema da ressurgência permanente: Uma oliveira brava pode ser domesticada


pelo jardineiro, mas dela nascerão outras oliveiras bravas dando frutos amargos,
assim acontece com os batizados, eles são regenerados, mas seus filhos continuam
marcados pela atualidade da primeira falta.

426
AGOSTINHO, Santo. Confissões, Livro VII, capítulo XXI.

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ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
c) Esquema das reatualizações sucessivas e do seu encadeamento: este esquema não
é exclusivo dos outros, mas de um desenrolar-se no tempo. Não pode haver
nascimento sem a conjunção sexual dos pais, esta mesmo dentro do casamento e
segundo os fins que foram fixados, não se dá sem os movimentos involuntários que
constituíram o estigma da queda. Esta concupiscência transmite ato dos que
nascem a lei do pecado, que existe antes do batismo, como pecado em ato.

Desta argumentação de Agostinho, dois temas essenciais se destacam. Para


Agostinho, a concupiscência sexual foi consequência da falta original: “[...] Agostinho acaba
por colocar o acto sexual no centro da economia do pecado original e das suas consequências,
mas a título de veículo permanente da sua actualidade através das gerações humanas [...]” 427.
Foucault ainda ressalta que termos nascido do sexo dos nossos pais, liga-nos, através do
tempo, à falta dos primeiros de entre eles.
Nas teses de Agostinho, outro tema mais importante se forma, porque não ficará
ligado somente à teologia cristã: é o tema do laço fundamental e indissociável entre a forma
do ato sexual e a estrutura do sujeito. Todo homem desde a queda nasce como sujeito de
uma vontade concupiscente.
[...]Em suma, a verdade daquilo que o homem é como sujeito manifesta-se
na própria forma a que está submetido todo acto sexual. Esta forma, por
conseguinte, embora portadora da marca de uma falha, de um defeito, de
um acontecimento originário, não deve ser referida a uma natureza
estranha, mas antes à estrutura do próprio sujeito[...]. 428

A libido quer dizer a forma sexual do desejo, sendo, portanto, o laço trans-histórico
que liga a falta da qual é consequência à atualidade desse pecado em todo o homem.
Agostinho, então, funda o usus. Entendiam-se as relações sexuais entre esposos, porque era
o casamento que tornava legítimo um acto que, fora dele, era condenável e porque tal acto
consistia no exercício de um direito adquirido sobre o corpo do outro. O uso, por sua vez,

427
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade IV: As Confissões da Carne. Edição estabelecida por Frédéric Gros;
Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019. p. 368.
428
Ibid., p. 369.

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ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
tinha um sentido institucional e corporal, jurídico-físico. Agostinho introduz a ideia de que
não era só isso, considerando que os esposos se servem da própria concupiscência. O usus é
uma certa modalidade de jogo entre consentimento e não-consentimento, portanto.
A questão agora é saber quais são as consequências do usus em Agostinho. Em
resposta, destacamos que, nesta abordagem da sexualidade, é a forma da vontade que
determina o acto físico. Entramos, portanto, numa moral sexual centrada num sujeito
jurídico. Esta perspectiva resulta de uma leitura foucaultiana que se dá na dispersão,
interligando pontos, sentidos, materialidades diversas, dando visibilidade a este
deslocamento na produção do sujeito no interior do cristianismo e que a todo momento é
atualizado nas práticas religiosas e cotidianas em geral, em seus atravessamentos. Nessa
perspectiva agostiniana, o mal é prévio e está inevitavelmente inscrito na relação sexual e o
pecado que dele deriva distingue-se para não ser nunca seu resultado necessário e constituir
acto imputável. Sendo assim, defendemos que isso permite pensar o indivíduo como sujeito
do desejo e do direito, pensar a (vontade de) verdade que permeia estes campos do
voluntário e do involuntário.

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
POSFÁCIO

DOMÍNIOS DA CARNE: LER E ESCREVER, FALAR PARA SE OUVIR

Falar de si para o outro, eis o grande desafio que acompanhou o indivíduo desde os
gregos, sem nunca deixar de ser uma prática cotidiana nas relações interpessoais e de
extrema importância para a sua constituição enquanto sujeito. Atravessou o helenismo,
tornando-se uma ferramenta essencial e de uso cotidiano na relação mestre-discípulo,
conforme os moldes das escolas filosóficas que se erguiam na ocasião, como o estoicismo.
Passou pelo cristianismo ganhando uma roupagem mais institucional, recebendo outra
nomenclatura, a confissão. Deslocou-se por instituições sócio-políticas e se mantendo na
atualidade como uma prática cada vez mais presente, variada em seus modos de se fazer,
fragmentada, porém, vigorosa na vida de todos. Uma prática de si que foi sofrendo
modificações, sendo alterada muitas vezes conforme interesses pessoais e institucionais,
protagonizando relações de saber e poder, que ora era tomada como um gesto persuasivo,
ora como uma atitude de imposição. Fato é que se revelar para si e para o outro é em suma,
um ato de coragem, coragem de se ouvir e de se ver a partir da própria perspectiva e da
perspectiva alheia: essa é envergadura dos ensaios realizados neste livro.
Os ensaios que acabamos de ler aqui dialogam entre si e formam um conjunto de
posições, um jogo que se estabeleceu no ato de se expor e de estar atento ao que o outro
expõe em palavra falada e/ou escrita. Desse modo, o corpo, mais precisamente a carne, se
afirmou como o ponto nevrálgico por onde o indivíduo se constitui enquanto sujeito tanto
para si mesmo quanto para o outro. Este outro individualizado, porém, institucionalizado e
fixado em determinado contexto social, de acordo com a época em que se insere e se
conecta, por meio de uma rede de discursos, em filigranas, se enlaçam e entrelaçam. Essa
torsão se dá por meio do que é dito, do que é confessado por este sujeito que fala de si, na
mesma via que também ouve atento o outro.
Mas para que falar de si, para que confessar-se? Qual necessidade e importância
existem no ato de se expor ao outro, de falar sobre a produção das verdades que constitui o

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
sujeito, em todas as suas esferas, manifestando-se em sua carne? De que modo se
conduziram as leituras que fizemos das leituras de Foucault nesses ensaios? Em torno desses
questionamentos, observamos a intensidade com que as formações históricas da
constituição do sujeito se tornam ao mesmo tempo tema e objeto de estudo à medida que
também revelam o dizer verdadeiro dos pesquisadores que falam no entroncamento da
leitura de Foucault e nos embates que os ensaístas travam consigo. Depreendemos dessa
maneira de ler e problematizar Foucault, a partir de si e do outro, que se manifesta uma
terceira via, aquela das subjetividades que se desdobrou sobre as alteridades teórico-
metodológica foucaultianas. De rebote, ler a leitura de Foucault faz explodir o sujeito da
ciência que é também o sujeito que lê e que é lido. Portanto, os ensaios que encontramos em
Domínios da Carne se dão a ver sob uma sedimentação de camadas de sujeitos em várias
posições: o sujeito que escreveu como leu a carne do outro, o posicionamento sobre a leitura
do que foi lido, o desdobramento da escrita de um exame de si e do outro colocado em forma
de ensaios, desembocando em um novo movimento de leitura por um leitor expectante. Uma
rede de dizeres possíveis para causas ensaísticas enunciáveis.
Esse ato atemporal e as indagações que surgiram e ainda surgem a partir do
confessar-se a si, chamou a atenção de Michel Foucault, despertando nele o interesse em
pesquisar, questionar e apresentar suas reflexões. Seu foco, e também a curvatura discursiva
de nossos ensaios, foi problematizar as complexidades que se encontram nesse processo de
constituição de si, no qual o sujeito é impelido a olhar para o próprio corpo e para o corpo
do outro, reverberando no ato de confessar, de falar a partir da própria carne, dos reflexos
que isso implica no corpo e nos seus posicionamentos políticos, nos seus sistemas de
veridicçao, diante de si e do seu corpo social. Esse gesto de se expor, por sua vez, ligado ao
outro numa prática cuja motivação é o interesse pela verdade que se revela no confessar-se,
se eleva em meio ao interesse de se conhecer e se preservar frente às incitações carnais.
Nesse sentido, o deslocamento da condição de indivíduo para sujeito passa - como
vimos ao longo dos ensaios aqui apresentados, a partir das estratégias que o próprio Foucault
destaca - por uma gama de exercícios, de técnicas, de práticas que configuram o ato de se
constituir na subjetivação da própria carne para si e para o outro. Esse entregar-se ao

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DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
processo de subjetivação reflete em mudanças, reparações, aceitação ou negação das
condutas da carne, a partir de conceitos éticos e morais estabelecidos e tomados como
verdade a ser seguida, vivida segundo à adequação dos indivíduos a seus corpos, que se
confrontam.
Se por um lado a carne passa a ser compreendida por Foucault como o lugar de onde
o sujeito se revela e materializa seus processos de constituição, em contrapartida, a carne
também é o lugar onde o sujeito se vê desafiado a questionar suas posturas e
direcionamentos. Nesse entroncamento, a escrita dos ensaios e o elencamento de saberes
que Foucault apresenta convergem para uma fonte de prazer e dor, lugar de todas as
sensações, o da carne que se projeta no corpo exigindo do sujeito tomadas de decisões que
passam pelas noções de verdade na produção da escrita discursiva. A veridicção atestada nos
ensaios emerge dos discursos de confissão da leitura que fizemos de Foucault e da entrega
de reflexão na escrita dos ensaios, exigindo tanto do trabalho foucaultiano quanto dos
autores deste livro um gesto parresiástico, para que, de fato, todo seu esforço, aquele de
Foucault, e dos escritores e escritoras que aqui se inscrevem, não seja em vão. A carne do
outro é vista como um espelho de todas as comoções, espelho que não apenas reflete mas
impele e exige um falar verdadeiro de si, que sustente esse itinerário, que fez os
questionamentos de Foucault em As Confissões da Carne trazer à superfície relações de saber
e poder. Ao final, esses ensaios sobre a sexualidade com Foucault introduzem e verticalizam
problemas políticos e filosóficos para pensarmos, sobretudo, o que é ler o outro, o que é
transformar-se a si e como encarar a genealogia de um dizer verdadeiro.
Para além de uma reflexão que se esgota em si mesma, trazendo resultados
palpáveis e mensuráveis, este livro oferece a oportunidade de olhar para este último trabalho
de Michel Foucault a partir das experiências do próprio sujeito e de pesquisadores do nosso
hoje, abrindo novas cearas de reflexões e problematizações sobre esse tema tão provocante
e instigante que é o da nossa carne. Eis então um ato de confissão, mas não de constrição,
escritas como resultado de discussões realizadas por pesquisadoras e pesquisadores, cujo
interesse comum foi ousar saber com Foucault sobre os modos como o sujeito se constitui a
partir da própria carne. Isso tudo coloca a nós sujeitos sempre de maneira desconfortável

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ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
diante de si e do outro, exigindo sempre de nós, escritoras e leitoras, escritores e leitores,
uma incontornável atitude crítica de nosso presente.

Vilmar Prata e Nilton Milanez


Salvador, Julho de 2021.

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ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

ÍNDICE REMISSIVO

A
Aldo Dinucci, 44
Aleturgia, 130, 134, 135
Alma, 10, 13, 15, 17, 18, 20, 21, 22, 24, 26, 28, 29, 30, 42, 43, 48, 49, 52, 54, 59, 60, 61, 62,
64, 65, 67, 70, 71, 73, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 93, 99, 101, 102, 108, 110, 111, 112, 114, 115,
116, 129, 130, 131, 132, 145, 146, 157, 162, 165, 166, 168, 176, 178, 179, 182, 183, 184,
186, 189
Aphrodisia, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 90, 99, 100, 101, 102, 125, 126, 128
As Confissões da Carne, 9, 12, 13, 14, 15, 17, 27, 29, 36, 38, 57, 58, 61, 64, 75, 80, 85, 90, 94,
102, 107, 110, 118, 120, 137, 148, 153, 155, 163, 166, 168, 174, 195
Ataraxia, 45
Atualidade, 12, 58, 69, 90, 94, 102, 113, 116, 118, 180, 190, 191, 193

B
Batismo, 19, 27, 28, 107, 108, 109, 110, 116, 118, 124, 130, 132, 143, 144, 145, 146, 147, 148,
153, 154, 163, 164, 167, 168, 175, 186, 187, 190, 191

C
Carne, 12, 14, 16, 22, 23, 25, 27, 28, 29, 35, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 61, 64, 84, 86, 87, 89, 91, 97, 99, 102, 105, 111, 119, 130, 133, 135, 136, 139,
141, 183, 184, 185, 186, 193, 194, 195
Casamento, 18, 28, 29, 30, 32, 34, 35, 36, 39, 64, 68, 91, 92, 94, 96, 100, 101, 118, 124, 128,
129, 181, 182, 183, 187, 191
Cassiano, 14, 58, 79, 81, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 115, 137, 141, 188
Cidade de Deus, 181, 185
Clemente de Alexandria, 12, 17, 18, 19, 20, 28, 29, 36, 38, 60, 62, 64, 65, 90, 93, 94, 95, 96,
114, 126, 129
Concupiscência, 87, 183, 184, 185, 186, 188, 189, 190, 191, 192
Conduta, 12, 13, 15, 17, 23, 26, 27, 32, 35, 36, 39, 59, 60, 61, 66, 71, 72, 85, 87, 90, 95, 97, 99,
100, 103, 105, 106, 107, 108, 113, 116, 118, 123, 125, 128, 133, 137, 162, 171, 172, 177,
181, 182, 189,
Conferências, 58, 85, 87
Confissão, 10, 12, 13, 14, 15, 27, 47, 50, 55, 57, 58, 68, 69, 72, 73, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81,
82, 83, 84, 85, 88, 89, 109, 130, 134, 139, 147, 152, 166, 168, 170, 173, 176, 178, 180, 187,
188, 189, 193, 195
Contranatura, 13, 32, 33, 61, 64, 65, 66, 67, 68, 92, 96, 98, 99, 101, 129

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Corpo, 8, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 23, 27, 32, 33, 36, 38, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 50, 54,
55, 56, 59, 60, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 69, 70, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 85, 86, 87, 88, 89, 91,
92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 109, 110, 111, 112,
113, 114, 116, 117, 118, 119, 121, 124, 131, 132, 135, 136, 141, 142, 143, 145, 153, 159,
160, 167, 170, 174, 177, 181, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 193
Cristianismo, 10, 15, 16, 28, 36, 43, 47, 50, 52, 56, 58, 60, 61, 62, 71, 72, 73, 74, 80, 82, 87,
92, 93, 94, 95, 96, 102, 103, 104, 105, 109, 110, 112, 113, 114, 115, 116, 118, 119, 128, 137,
141, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 155, 157, 162, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175,
177, 179, 183, 189, 190, 194
Cuidado de si, 42, 43, 46, 47, 49, 52, 53, 54, 56, 76, 79, 103, 106, 108, 109, 110, 111, 161,
163, 166

D
Desobediência, 22, 25, 86, 92, 181, 182, 183, 185, 186, 187
Dessubjetivação, 79, 93, 112, 113, 134, 135, 136,
Direção de Consciência, 89, 112, 113
Disciplina, 21, 22, 35, 64, 84, 86, 129, 132, 147, 160
Discurso, 8, 9, 11, 13, 21, 38, 50, 57, 58, 60, 62, 63, 64, 69, 76, 81, 85, 90, 91, 92, 93, 95, 96,
100, 102, 103, 107, 108, 112, 116, 119, 120, 122, 123, 130, 170, 171, 173, 174, 178, 189,
193, 195
Dispositivo, 9, 13, 14, 36, 69, 119, 120, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 130, 131, 144
Dizer Verdadeiro, 14, 57, 58, 62, 70, 72, 76, 77, 194, 195

E
Enkrateia, 103, 104
Epiméleia Heautoû, 161
Estoicismo, 12, 47, 48, 50, 51, 52, 54, 59, 60, 61, 92, 114, 115, 161, 166, 167, 193
Estromata, 19, 34
Ética, 9, 29, 30, 33, 34, 46, 53, 96, 99, 102, 105, 129, 167, 171, 172
Exagoreusis, 134, 137, 138
Exame de Consciência, 29, 51, 70, 71, 72, 76, 113, 114, 181
Exomologese, 75, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 147, 153, 154, 164, 165, 166, 167, 168, 176

F
Família, 18, 33, 36, 37, 38, 39, 150
Filosofia Antiga, 56
Foucault, 9, 10, 11, 13, 15, 16, 17, 18, 19, 25, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40,
42, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68,
69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94,
96, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115,

198
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
116, 117, 118, 120, 121, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134,
135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 154, 155,
156, 157, 158, 159, 160, 161, 162, 164, 165, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175,
176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 190, 191, 193, 194

G
Governamentabilidade, 64, 79

H
Helenismo, 46, 47, 59, 61
Homem, 16, 18, 20, 21, 22, 24, 25, 27, 28, 29, 31, 33, 37, 38, 39, 42, 46, 51, 62, 63, 66, 67, 84,
89, 95, 98, 99, 100, 106, 109, 127, 128, 144, 145, 154, 161, 162, 179, 181, 182, 183, 184,
185, 186, 187, 191

I
Instituições Cenobíticas, 80, 83

J
Juridificação, 188
Justino, 118, 131

L
Leitor, 9, 12, 13, 14, 119, 141, 142, 194
Libidinização, 15, 118, 124, 181, 184, 187, 189
Logos, 13, 18, 20, 28, 30, 31, 32, 34, 35, 37, 48, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68,
91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 124, 126, 127, 128, 129

M
Marco Aurélio, 51
Metanoia, 108, 111, 112, 131, 132, 145, 146
Monasta, 86, 87, 88, 89
Moral, 9, 12, 13, 15, 20, 33, 35, 36, 39, 60, 69, 90, 94, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 108,
110, 112, 113, 117, 122, 129, 145, 146, 170, 171, 175, 181, 187, 192
Mulher, 18, 29, 32, 37, 38, 39, 51, 66, 68, 92, 101, 102, 184

N
Natureza, 13, 18, 28, 30, 31, 32, 33, 34, 37, 38, 48, 59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 91, 92,
93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 105, 109, 116, 126, 127, 128, 129, 142, 145, 183, 185, 189, 191

199
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
O
O Governo de Si e dos Outros, 15, 24, 61, 62, 139, 170, 172
O Pedagogo, 12, 14, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 28, 30, 32, 33, 34, 36, 37, 38, 60, 62, 63,
90, 91, 93, 96, 97, 114, 127, 141
Obediência, 22, 23, 25, 27, 37, 38, 39, 82, 85, 86, 87, 88, 89, 104, 106, 109, 114, 116, 117,
137, 177, 183, 187

P
Parresía, 15, 62, 63, 172, 178, 180
Penitência, 16, 23, 26, 29, 72, 74, 75, 76, 77, 80, 82, 83, 85, 105, 110, 111, 118, 120, 126, 134,
135, 136, 137, 138, 140, 143, 145, 148, 149, 155, 156 ,165, 166, 167, 169, 170, 172, 173,
174, 175, 176, 177, 178, 181, 182, 183, 188, 189
Plutarco, 51, 156
Procriação, 18, 29, 30, 32, 34, 35, 36, 39, 61, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 101, 118,
127, 128, 182, 183, 188
Prova, 14, 72, 88, 141, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 158, 159, 160, 161,
162, 163, 165, 166, 169

R
Razão, 19, 22, 28, 30, 31, 32, 35, 37, 48, 59, 60, 61, 62, 63, 68, 93, 94, 95, 97, 99, 127, 128,
129, 149, 151, 152, 168, 183
Relações Sexuais, 30, 31, 33, 34, 35, 57, 61, 64, 65, 68, 91, 96, 127, 129, 153, 164, 191
Religião, 12, 20, 36, 37, 39, 85, 110, 141
Rituais de Purificação, 167

S
Santo Agostinho, 15, 28, 35, 90, 118, 139, 171, 181, 182, 187, 188
São Cipriano, 15, 170, 173, 176, 179, 180, 181
São João Crisóstomo, 138, 139
Sêneca, 12, 41, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 71, 72, 106, 114, 158, 160, 162
Sexualidade, 10, 11, 14, 15, 59, 60, 62, 65, 71, 78, 79, 80, 87, 89, 91, 92, 96, 104, 105, 110,
113, 120, 121, 122, 124, 126, 127, 128, 143, 146, 157, 172, 173, 174, 176, 183, 184, 186,
189, 194
Sophrosune, 104
Subjetividade, 13, 15, 74, 76, 77, 73, 102, 105, 112, 117, 120, 129, 130, 133, 134, 135, 136,
139, 140, 148, 170, 174, 177, 179, 180,182, 194

T
Tékhnê, 155
Tertuliano, 14, 73, 141, 142, 144, 145, 146, 147, 148, 164, 165, 167, 168

200
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT
Torres, 59
Tratado de Civilidade, 12, 17, 36, 39

V
Verdade, 10, 11, 13, 14, 15, 16, 20, 21, 22, 25, 27, 28, 29, 30, 37, 39, 42, 43, 46, 48, 51, 52, 53,
55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 64, 65, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 85, 88, 90,
92, 93, 95, 97, 99, 102, 104, 105, 107, 109, 110, 11, 112, 113, 114, 121, 122, 123, 124, 125,
126, 127, 128, 129, 130, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 145,
146, 147, 148, 149, 164, 167, 168, 169, 170, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 178, 179, 180,
182, 183, 189, 190, 191, 193, 194
Veridicção, 13, 14, 69, 70, 71, 72, 74, 75, 76, 77, 83, 84, 91, 108, 112, 119, 120, 122, 124, 125,
128, 130, 134, 135, 136, 137, 139, 140, 147, 195
Vigiar e Punir, 9, 122, 123

201
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

ORGANIZAÇÃO

Nilton Milanez
É Professor Pleno na Universidade Estadual de Feira de Santana
(UEFS). Coordena o LABEDISCO – Laboratório de Estudos do Discurso
e do Corpo/CNPq, sediado na UEFS. Atua no Programa de Pós-
Graduação em Estudos Linguísticos na UEFS. Realizou pós-doutorado
em Estudos Literários, 2020-2021, pela Universidade Federal de
Uberlândia, junto ao GPEA – Grupo de Estudos em Espacialidades
Artísticas, sob a supervisão de Marisa Gama-Khalil. Em Sabática,
2015-2016, desenvolveu pesquisa sobre Corpo, Cinema e Psicanálise
no Département de Psychanalyse, Université Saint Denis, Paris VIII e
Departamento de Psicologia, Universidade de São Paulo (USP),
Ribeirão Preto com o Interfaces, coordenado por Leda Verdiani Tfouni. Seu Pós-doutorado, 2010-
2011, em Discurso, Corpo, Cinema foi realizado na Sorbonne Nouvelle, Paris III, sob a supervisão de
Jean-Jacques Courtine e Phillipe Dubois. É Doutor em Linguística e Língua Portuguesa com área de
concentração em Análise do Discurso pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho (UNESP),
Campus de Araraquara. Seus trabalhos como livros, periódicos, artigos e vídeos podem ser acessados
em nilton-milanez.blogspot.com

Marisa Martins Gama-Khalil


Possui doutorado em Estudos Literários pela UNESP/Araraquara e
pós-doutorado pela Universidade de Coimbra. É professora titular
da Universidade Federal de Uberlândia; líder do Grupo de Pesquisas
em Espacialidades Artísticas (GPEA); pesquisadora do CNPq com bolsa
de Produtividade em Pesquisa; investigadora do Centro de Literatura
Portuguesa da Universidade de Coimbra; líder do GT da ANPOLL
Vertentes do Insólito Ficcional.

202
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Vilmar Prata Correia

Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Sergipe -


UFS, com bolsa CAPES a partir de 2021. Mestre em Memória,
Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia -UESB (2017). Estágio sanduíche em filosofia na Sorbonne
Nouvelle Paris III (2015) sob orientação de Philippe Dubois. Estágio
sanduíche na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP -
Ribeirão Preto (2016) sob orientação de Leda Verdianni Tifoune. Pós graduado lato sensu em Filosofia
e Existência pela UCB - Universidade Católica de Brasília (2012). Graduado em Filosofia pela
Faculdade Batista Brasileira (2010). Membro do grupo de pesquisa Ética e Psicologia Moral na
Filosofia Antiga - UFBA. Membro do Viva Vox, grupo de pesquisa em Filosofia Antiga - UFS e membro
do grupo nacional - Pórtico de Epicteto. Tem experiência na área de Filosofia e Análise do discurso,
com ênfase em Ética, filosofia antiga e contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas:
Teoria da Memória, Teoria do Conhecimento, Linguagem, Governamentalidade, Ética, Sujeito,
Subjetividade, Verdade, estoicismo, Michel Foucault, Sêneca. Atuou como professor de Ética e
Introdução à Filosofia na FAECO (2015) e professor visitante de Introdução à Filosofia no IEED (2010).
Membro do grupo editorial dos periódicos REDISCO (2015-2017) e O CORPO É DISCURSO (2015-2017)
atuando principalmente como revisor.

AUTORAS E AUTORES

Beatriz Souza Almeida

É graduanda do curso de Licenciatura em Letras Vernáculas pela


Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Pesquisadora e
Bolsista vinculada ao Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo
(LABEDISCO/CNPq), e membro do GT de Estudos Discursivos
Foucaultianos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Letras e Linguística (ANPOLL). Atuou como Bolsista de Iniciação
Científica financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), nos projetos

203
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

'Audiovisualidades: elaborar com Foucault' e 'Foucault e o Cinema: um estudo sobre os filmes Pierre
Rivière e Alexina Barbin', orientada pelo Prof. Dr. Nilton Milanez, no período compreendido entre
2019-2020. Possui artigos, vídeos e capítulo de livro publicados na área de Estudos Discursivos
Foucaultianos, com ênfase em Corpo, Discurso e Audiovisualidades.

Carla Luzia Carneiro Borges

Doutora em Linguística (UNICAMP), professora Titular da


Universidade Estadual de Feira de Santana, coordena o Núcleo de
Leitura Multimeios e lidera o LINSP (Grupo de Pesquisa em
Linguagem, Sociedade e Produção de Discursos). Atualmente,
desenvolve o Projeto de pesquisa Modalidades do saber/poder em
práticas de leitura, concebendo a leitura na perspectiva de Michel
Foucault. Já orientou trabalhos na área de Linguística Textual, Análise de Discurso e Linguística
Aplicada. Atualmente, orienta trabalhos na área dos Estudos Discursivos Foucaultianos, com ênfase
nas práticas de leitura/(re)escritura.

Daniela Barreto Santana

Graduada em Letras com Espanhol pela Universidade Estadual de


Feira de Santana (2009). Professora de Português e Redação.
Integrante do grupo de pesquisa Linsp - Linguagem, Sociedade e
Produção de Discurso desde fevereiro de 2017. Desenvolve,
atualmente, uma pesquisa o processo de subjetivação da mulher de
hoje. Aluna do Mestrado em Estudos Linguísticos na Universidade
Estadual de Feira de Santana (2019).

204
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Edna Ribeiro Marques Amorim

Doutoranda em estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de


Feira de Santana (PPGEL/UEFS), sob orientação da Professora
Doutora Carla Luzia Carneiro Borges. Tem Graduação em Letras e
Especialização em Linguística Aplicada pela UEFS e Mestrado em
Letras pela UFBA. É Professora Assistente de Língua Portuguesa na
UEFS e atua também na rede pública de educação básica do Estado
da Bahia. É integrante do Núcleo de Leitura Multimeios e também do grupo de pesquisa LINSP
(Linguagem, Sociedade e Produção de Discursos). Atualmente, dedica-se a pesquisas sobre a
literatura de mulher negra, sob a perspectiva dos Estudos Discursivos Foucaultianos.

George Lima dos Santos

É doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos


Literários da UFU e é também bolsista pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES. É integrante
do Grupo de Pesquisas em Espacialidades Artísticas (GPEA) e do GT
da ANPOLL Vertentes do Insólito Ficcional. Os assuntos de empenho
e que constituem suas investigações giram em torno de
problematizações que envolvem o espaço literário e as possíveis relações entre literatura e discurso.

Helen Cristine Alves Rocha

Possui graduação em Letras/Português pela Universidade Federal de


Uberlândia (UFU - 2013). Concluiu o Mestrado em Estudos Literários
(PPLET/UFU -2016). Atualmente, exerce a função de Orientadora
Educacional contratada do Centro Universitário Internacional Uninter,
faz Doutorado em Estudos Literários (PPLET/UFU), pesquisando a
relação intertextual e adaptativa em algumas obras de e para surdos e
é intérprete de Libras voluntária.

205
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Ismarina Mendonça de Moura

Mestranda em Estudos Linguísticos na Universidade Estadual de


Feira de Santana e Bolsista FAPESB. Possui Graduação em Letras com
Espanhol (2015-2019) na Universidade Estadual de Feira de Santana,
onde participou como Bolsista no Programa Institucional de Iniciação
à Docência PIBID/Espanhol em (2015-2016), como Bolsista de
Extensão PIBEX no projeto Audiovisualidades: Elaborar com Foucault
(2018-2019) e como Voluntária de Iniciação Cientifica no Projeto Foucault e o cinema: um estudo
sobre os filmes Pierre Rivière e Alexina Barbin sob orientação do Prof. Dr. Nilton Milanez (2017-2019).
Atualmente, é integrante do Labedisco/CNPq - Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo.
Organizadora do livro Transexualidades: O que pode o corpo?. Autora de capítulos de livros e artigos
nas áreas dos Estudos Discursivos Foucaultianos, com ênfase em Corpo e Discurso.

Jamile da Silva Santos

Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de


Uberlândia (UFU). Mestre em Linguística pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). Possui Especialização em Língua
Brasileira de Sinais (LIBRAS) pelo Claretiano Sistema de Educação. Se
especializando em Autismo pelo CBI of Maiami. Graduada em Letras
Vernáculas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
É membro dos grupos de Pesquisa Labedisco – Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo/ CNpq
e do grupo Espacialidades Artísticas GPEA/CNPq.

206
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Jussara Santana Pereira

Psicóloga pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).


Especialista em Filosofia também pela UEFS e Mestranda em Estudos
Linguísticos – com ênfase em Estudos Discursivos Foucaultianos no
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos da UEFS.
Integrante do Laboratório de estudos do Discurso e do Corpo
(LABEDISCO/CNPq).

Rebeca Barbosa Nascimento

Doutoranda em Estudos Linguísticos na Universidade Estadual de


Feira de Santana, mestre em Estudos Linguísticos e graduada em
Letras Vernáculas, também pela mesma instituição, atua
profissionalmente como professora do Colégio Helyos, situado na
cidade de Feira de Santana. Possui experiência no trabalho com
Língua Portuguesa aplicada e no ensino de Língua Inglesa. Possui
certificação internacional Cambridge e atua na área de educação com foco em Ensino Bilíngue desde
2009. É bolsista FAPESB e está vinculada aos grupos de pesquisa Labedisco (Laboratório de Estudos
do Discurso e do Corpo - UEFS/CNPq), sob a coordenação do Prof. Dr. Nilton Milanez, no qual atua
como pesquisadora e professora assistente. Foi co-organizadora do vol. 1 da REDISCO (ISSN 2316-
1213). É organizadora do E-book "Temas de Pesquisa: o corpo e suas extensões no discurso".

207
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Renailda Ferreira Cazumbá

É doutora em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade


Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), mestra em Literatura e
Diversidade Cultural pela UEFS (2009) e especialista em Texto e
Gramática pela UEFS (1999), professora Adjunta do Departamento
de Educação da Universidade Estadual de Feira de Santana. Atua na
área de prática de ensino, especificamente na subárea de Língua
portuguesa e Literatura brasileira, ministrando as disciplinas Metodologia do ensino da língua
portuguesa, Estágio supervisionado de língua portuguesa, Leitura e produção textual, Ensino de
literatura. Na pesquisa atua na aérea relacionada aos estudos da linguagem, leitura e formação de
professores. Sou pesquisadora do Grupo de Pesquisa Linguagem, Sociedade e Produção de Discursos
– LINSP/CNPQ/UEFS, na linha Práticas discursivas cotidianas na perspectiva de Michel Foucault, e do
Grupo de Pesquisa Cacimba de histórias: vidas e saberes dos contadores de histórias tradicionais de
cidades do interior da Bahia (UEFS/UNEB), interessa-se em compreender as discursividades que
envolvem as práticas de leitura e escrita da literatura e a oralidade no âmbito e fora do ambiente
escolar.

Sandra Helena Borges

Graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


Mestre em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de
Uberlândia (UFU). Doutoranda em Estudos Literários na Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Integrante do grupo de pesquisa Grupo
de Pesquisa em Especialidades Artísticas (GPEA). Professora de
literatura na rede pública de educação no Ensino Fundamental I.

208
DOMÍNIOS DA CARNE
ENSAIOS SOBRE A SEXUALIDADE COM FOUCAULT

Suelane Gonçalves Santiago Lima

Mestra em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual de Feira


de Santana (UEFS). Especialista em Linguística e Ensino-Aprendizagem
da Língua Portuguesa, nível Lato Sensu, pela Universidade Estadual de
Feira de Santana (UEFS). Graduada em Letras Vernáculas pela
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Integrante do
Labedisco/CNPq - Laboratório de Estudos do Discurso e do
Corpo. Integrante do projeto Audiovisualidades: elaborar com Foucault.

Tamize Silva da Mota

Possui graduação em LETRAS VERNÁCULAS pela Universidade do


Estado da Bahia (2010), com Especialização em Gestão em
Tecnologia da Informação. pela Unyleya Editora e Cursos S.A, AVM,
Brasil (2017), Especialista em Ensino da Língua Portuguesa pela
Faculdade de Artes, Ciências e Tecnologias, FACET/BA (2013) e
mestranda em Estudos linguísticos pela Universidade Estadual de
Feira de Santana. Atualmente é professora da Prefeitura Municipal
de Tanquinho, antirracista, protetora de direitos humanos, de causa animal e integrante do Grupo
de Pesquisa LINSP (Linguagem, Sociedade e Produção do Discurso) atuando principalmente no
seguinte tema: Leitura, Discurso, Escola, TICs, Fake News.

209

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