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OS “PRETOS MODERNOS”, UM ESTUDO DA “ELITE NEGRA” PAULISTANA E


SUA ATUAÇÃO NA DÉCADA DE 1920

Flávio Ferreira (Acadêmico de História / UFS)


flaviof13@yahoo.com.br

Na edição comemorativa do 39º aniversário da abolição da escravidão, o jornal da imprensa


negra paulistana, O Clarim d’Alvorada, publica o artigo intitulado “A voz da história e os pretos
modernos”. Neste texto podemos ler: “Procedendo desta forma perante a collectividade, o negro
moderno saberá vencer, dentro da paz e da ordem, sem deixar atraz da sua victoria o rosto do
odio.” (13.05.1927, p. 12). Em linhas gerais, a forma de proceder a qual este e outros artigos
fazem referência é a adoção dos costumes da elite paulistana, que a época era fortemente
influenciada pela cultura americana e européia. Durante algum tempo, pesquisadores entenderam
esse comportamento da “elite negra” de São Paulo como uma forma de “branqueamento
cultural”. Para rebater essa concepção essencialista de cultura e identidade, pretendemos
percorrer alguns aspectos sócio-culturais da metrópole cosmopolita e, a partir da dificuldade de
inserção dos negros nesta sociedade, entender, através da imprensa negra e das memórias de José
Correia Leite, que o procedimento deste grupo social não deve remeter-se necessariamente a
cultura negra vernácula.

Palavras-chave: “elite negra”; “pretos modernos”; São Paulo.

OS “PRETOS MODERNOS”, UM ESTUDO DA “ELITE NEGRA” PAULISTANA E


SUA ATUAÇÃO NA DÉCADA DE 1920

Flávio Ferreira (Acadêmico de História / UFS)


flaviof13@yahoo.com.br

Para introduzir este breve estudo sobre a atuação da “elite negra”1 paulistana, vamos ler
parte do artigo “A voz da historia e os pretos modernos”, que foi publicado no jornal O Clarim
da Alvorada,2e a partir deste fragmento tecer as considerações iniciais.

O negro, embora escravisado, tambem entrou no caldeamento racial, daquelles


primitivos tempos. Prestando desta arte o seu concurso valioso á formação desta grande
nacionalidade brasileira. (...) Herdeiros que somos dessa raça titanica; dessa raça
heroica, que nunca foi menospresada no seu credito fecundante; não podemos quedar
callados neste grande momento, sem recordarmos os feitos dos nossos antecessores.
Para podermos avançar com o mesmo vigor na evolução assombradora da nossa querida
patria, é necessario que saibamos demonstrar o quanto somos dignos do convívio social,
nos tempos modernos. (O Clarim da Alvorada, São Paulo, 13.05.1927, p. 12)3

Nesta citação há alguns elementos interessantes para evidenciar. Primeiro, o jornal onde
foi publicada a notícia é uma das principais vozes da “elite de cor” de São Paulo. Este grupo
social, que se notabilizou por fundar diversas associações e clubes, teve na chamada imprensa
negra um importante meio de divulgação do seu modo de vida, da sua ideologia e um dos
principais elementos de agregação da classe. (Silva, 1990, p. 102). Porém, o que faz com que o
jornal fundado por Jayme de Aguiar e José Correia Leite seja considerado tão importante para o
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estudo da “elite negra”, quando comparado com diversos outros periódicos? Simples, esse jornal
conseguiu como poucos, vencer a efemeridade tão comum a essa imprensa alternativa.4 Além do
mais, para a década de 1920, o período que interessa nesta pesquisa, ele é o jornal com o maior
número de edições publicadas, e com uma um tiragem mensal que variava entre 1000 e 2000
exemplares. Para entendermos o quão significativo é esse número, podemos comparar o Clarim
com o jornal A Voz do Trabalhador, um periódico de inserção nacional que era destinado à
classe operária, e tinha em 1912 uma tiragem de 4000 exemplares (Domingues, 2008, p. 37).
Estes, são alguns dos pontos que fazem com que a análise do jornal paulistano O Clarim da
Alvorada, seja essencial para qualquer estudo sobre o “escol negro” da cidade. Denotam também
como ele foi influente para o seu público alvo, já que “No universo dos alfabetizados, estimamos
que entre 4% a 8% da ‘população de cor’ de São Paulo mantinha contato com O Clarim da
Alvorada” (Domingues, 2008, p. 38).5
Após percebermos a importância da gazeta que publica a notícia, devemos ficar atentos
para outro ponto que valoriza ainda mais o artigo, o fato de ter sido impresso na edição
comemorativa do 39º aniversário da abolição. Nestas edições especiais, O Clarim carregava toda
uma dimensão simbólica, pois voltava sua pauta especialmente para a comemoração e para os
assuntos relacionados ao processo abolicionista. No caso do fragmento analisado, o título deixa
claro que o mesmo possui ligação com a história, com o que ela tem a dizer, e com o presente
dos “pretos modernos”.
Para o exame do terceiro ponto, é importante deter-se a expressão “daquelles primitivos
tempos”. Ela se refere ao passado visto como rudimentar, que consequentemente se opõe ao
presente da época, visto como moderno. O raciocínio é que o negro já prestava sua contribuição
ao Brasil desde os remotos tempos e por isso foi um dos formadores da nacionalidade brasileira.
O argumento nacionalista tem por consequência a contraposição aos imigrantes, que chegaram
ao país num período muito mais recente e, portanto, deveriam ser tratados como estrangeiros, e
não possuírem os mesmos direitos dos nacionais. Desse modo, o artigo estava reivindicando os
direitos que os herdeiros da “raça titânica” possuem, já que eram preteridos pelos estrangeiros.
Este é um protesto contra a falta de oportunidades para o negro que, como veremos, foi
prejudicado em detrimento dos imigrantes.
O quarto e último ponto que devemos observar, é a preconização de que para gozar dessa
herança, deveriam demonstrar dignidade no convívio com a sociedade moderna. Acreditavam
assim, que “Procedendo desta forma perante a collectividade, o negro moderno saberá vencer,
dentro da paz e da ordem, sem deixar atraz da sua victoria o rosto do odio.” (A voz da historia e
os pretos modernos, O Clarim da Alvorada, São Paulo, 13.05.1927, p. 12). O discurso do artigo
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chama atenção para os direitos que os negros possuem, mas neste ponto em específico, atenta
para as obrigações da “classe dos homens de cor”. Ou seja, afirma que há um determinado tipo
de conduta social que deveria ser seguida para conseguir seus direitos, obter respeito e participar
dignamente da sociedade moderna.
Após esses quatro pontos, o questionamento a ser feito agora é: Qual seria então o
comportamento ideal do “negro moderno”, na visão da “elite negra” de São Paulo na década de
1920? O objetivo é que ao demonstrarmos algumas formas de atuação desse grupo, possamos
responder a esta interrogação. No entanto, faz-se necessário entendermos que a proposta da “elite
negra” funciona dentro de uma lógica própria do grupo, que veio a responder a uma realidade
histórica específica. A atuação desses homens e mulheres não pode ser vista através da
concepção essencialista de cultura e identidade negra, que entende como legítimas apenas as
manifestações de matrizes africanas, pois, essa visão nos conduzirá a infeliz interpretação do
“branqueamento cultural”. Para alcançar nosso objetivo, faz-se necessária uma breve discussão
sobre a cidade de São Paulo e a sua população na década de 1920.

São Paulo, a cidade cosmopolita


No início do século XX, enquanto o Rio de Janeiro era a capital política do país e seu
desenvolvimento tinha como base a área de serviços voltados ao setor burocrático-
administrativo; São Paulo, baseada no poder econômico do café, se configurava como uma
cidade industrial, que se modernizava e, dessa forma, pretendia estar em pé de igualdade com as
grandes metrópoles mundiais. Um afã modernista proliferou na cidade um esforço
propagandístico em construir a imagem do paulistano cosmopolita. A construção imagética desse
homem e dessa cidade se deu fortemente através da grande imprensa e do cinema, que ao mesmo
tempo em que divulgavam os produtos e a cultura do mundo moderno, eram eles próprios um
sinal deste cosmopolitismo. O peso que estas mídias tiveram ao divulgar os ícones da
modernidade estrangeira é imensurável, porém é possível identificar algumas situações da vida
paulistana que foram transformadas por causa desta propaganda. No que se refere ao lazer, São
Paulo, em 1913, já possuía mais de quarenta e seis cinemas e casas de espetáculo, que em grande
parte buscavam reproduzir, filmes, atrações e ambientes das casas européias e americanas (Silva,
1990, p. 37).6 O comércio também foi fortemente influenciado, pois era comum encontrar nas
lojas da cidade, artigos importados como gêneros alimentícios, roupas e produtos de higiene e
beleza, muitos destes, divulgados nos jornais e revistas da paulicéia. Quanto aos objetos de maior
valor monetário, como os automóveis, um anúncio da revista A Cigarra informa: “Devido á
enorme procura que teem tido os automoveis Jordan pedimos ás pessoas interessadas a fineza de
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fazerem seus pedidos com a possivel antecedencia.” (A Cigarra, São Paulo, 02.01.1920, nº
128).7 Percebemos assim que, o que não existia em São Paulo era possível comprar através de
encomendas, desse modo a cidade possibilitava, a quem tinha poder econômico, viver
plenamente os prazeres da vida moderna. Para as classes médias e baixas, se a compra de um
automóvel, por exemplo, era algo muito distante, certamente estavam em contato direta e/ou
indiretamente com estes e outros símbolos de status e modernidade.
O projeto de tornar São Paulo uma cidade cosmopolita e moderna se refletiu nas ações
higienizadoras da cidade, como a implantação de sistemas de água e esgoto, modernização do
transporte público (destacando-se os bondes elétricos), e o surgimento de bairros para os nobres
e para os cidadãos pobres. Segundo Silva:

Os bairros populares, eram habitados geralmente por imigrantes, migrantes de outros


estados e do interior, entre os quais encontravam-se os negros. Nas primeiras décadas,
os movimentos migratórios e imigratórios transformaram então a metrópole em um
espaço etnicamente plural e o seus bairros refletiam de alguma forma esta diversidade.
(1990, p. 28)

Desse modo, higienizar significava dividir os ambientes por classe e discriminar as etnias
adequadas para a cidade. Do enorme contingente populacional imigrante, os preferidos foram os
italianos, pois através deles pretendia-se branquear a cidade. A política de primazia pelos
estrangeiros se refletiu nas seguintes estatísticas. Nos anos de 1920, o estado de São Paulo
possuía uma população total de 4.588.330 pessoas, sendo que 18,1% destes eram imigrantes.8 Já
na cidade de São Paulo, a participação dos imigrantes na população é muito maior, num total de
579.033 pessoas, 205.245 eram estrangeiras, ou seja, aproximadamente 35,45% dos habitantes
da cidade.9 Outro indicativo da preferência pelos forasteiros, foi a substancial participação no
mercado de trabalho da capital, sendo responsáveis, em 1920, por 49,6% do total. Além dos
números totais, convém ainda observar a ocupação por áreas da economia.10

Distribuição Percentual de Brasileiros e Imigrantes na Força de Trabalho da Cidade de São Paulo,


em 1920, por Áreas Selecionadas da Economia
Brasileiros Imigrantes N

Total da População economicamente ativa 50,4 49,6 240.045

Indústria 48,9 51,1 100.375


Comércio 37,5 62,5 30.580

Serviço doméstico 63,1 36,9 15.467

Transporte 41,1 58,9 13.912

Forças armadas, polícia e bombeiros 90,7 9,3 5.783

Fonte: Directoria Geral de Estatística, Recenseamento do Brasil realizado em 1º de setembro de 1920 (Rio
de Janeiro, 1927), 4, pp. 170-173.
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Como podemos perceber a população imigrante só é superada nos setores de serviço


doméstico e da segurança pública, áreas de menor remuneração. Os estrangeiros, que eram
maioria nos setores da indústria, comércio e transportes, tinham ainda a seu favor um fato que os
dados não revelam.

...mesmo no emprego industrial, mais da metade (51,6 por cento) dos trabalhadores
fabris nascidos no Brasil tinham menos de 21 anos de idade, e evidências variadas,
incluindo o testemunho daqueles que trabalharam nas fábricas de São Paulo na época,
indicam que muitos deles, se não a maioria, eram filhos de imigrantes. Apresentados
aos chefes e aos proprietários das fábricas por seus parentes, eles em geral recebiam
preferência na contratação... (Andrews, 1998, p. 112)

Com a preferência pelos imigrantes, para os negros restava concorrer às vagas com piores
remunerações e, principalmente, sobreviver a partir do trabalho informal.11 Antes que se
justifique a preferência pela massa imigrante no mercado de trabalho, devido a uma suposta
melhor qualificação dos estrangeiros, cabe afirmar que esta hipótese é errônea.12 A seguir,
apresentaremos algumas evidências de discriminação e perceberemos a atuação do “escol negro”
paulistano.

A denúncia do preconceito
Ante a dificuldade encontrada pelos “homens de cor” para conseguir emprego, os órgãos
de imprensa da “elite negra” protestaram e fizeram diversas denúncias. Uma das mais
interessantes é uma série intitulada “Os pretos em São Paulo”. Os artigos foram motivados pela
reclamação do negro Bernardo Vianna "... que por ser preto não encontra emprego em parte
alguma!". Para o Benedicto Florêncio, o autor do artigo, “Esse repudio de que nos fala o sr.
Vianna, é um phenomeno social muito conhecido em S. Paulo, não só na capital como em quasi
todas as cidades do interior paulista...”. Florêncio classifica a discriminação como uma “...
guerra muda e odiosa...” que tinha amplitude para além da capital. Para combater neste campo de
batalha seria necessário que seus “irmãos de cor” seguissem o exemplo de Vianna e
denunciassem, senão “... a continuar essa inercia qualquer dia teremos tambem aqui, os terriveis
monstros mascarados da famosa sociedade secreta da Klu-Klux-Klan!...” (O Kosmos, São Paulo,
19.10.1924, p. 1).13 O tom combativo do artigo, que chega a falar em KKK, não é exagero de
Benedicto Florêncio, pois foram registrados casos de violência física contra negros no interior de
São Paulo (Monsma, 2004). Continuando a trilhar o caminho dos homens de cor em busca de
emprego, José Correia Leite diz:

Eu me lembro que se um negro chegasse na construção civil, vamos supor, e dissesse


que era pedreiro, ele tinha de provar que era “bom pedreiro”. Eles nunca confiavam. O
negro para trabalhar tinha de se sujeitar a um determinado tempo de prova. E sempre o
6
 
ordenado dele era inferior, porque não havia a lei do salário mínimo. Quando um branco
ia contratar um negro para ser empregado dele, a primeira coisa que ele queria saber é
se se tratava de um bêbado. E o negro:
- Não, eu não bebo.
- Então, solta um bafo aí.
O indivíduo tinha de soltar um bafo para ver se ele, de fato, não era cachaceiro. Porque
cachaça, era bebida de negro. (Leite, 1992, p. 55)14

Se nos setores privados o acesso do negro ao mercado de trabalho era difícil, no setor
público não era muito diferente. Em 1929, por exemplo, negros foram impedidos de participar de
uma seleção para ingressar na Guarda Civil de São Paulo (Silva, 1990, p. 115).15 Para os que
conseguiam emprego, Leite relata que entre trabalhadores brancos e negros, estes últimos não
eram tratados de forma igualitária. E mesmo os imigrantes, não agiam de forma diferente, pois,
“Eles também tinham suas restrições ao negro, à moda deles. O italiano adotou diretinho o
modelo brasileiro de tratar a gente. Eles sabiam até onde podiam ir.” (Leite, 1992, p. 53). Assim,
era comum, por exemplo, os italianos chamarem os negros de “tizune” (tição), porém, “Não
podiam criar um tipo de linha de cor, porque os próprios mandões brasileiros não iam permitir.”
(Leite, 1992, p. 52). Estas foram algumas das situações de preconceito por quais os “homens de
cor” de São Paulo passaram, inúmeras outras ocorreram, abordou-se apenas a busca por
emprego, porém as dificuldades existiram em outras áreas, como educação e lazer.16 Diante
destas situações, os jornais da “elite negra” protestaram e conclamaram os seus irmãos a
denunciarem, mesmo que, em muitas ocasiões, “A procura de acomodação e ascensão social na
sociedade inclusiva implicou a adoção de uma linha editorial conciliatória, fundada num discurso
racial pacífico e ordeiro.” (Domingues, 2008, p. 51). Porém, a atuação deste grupo ultrapassou as
denúncias, o “escol negro” traçou outras estratégias para serem aceitos nos espaços da sociedade
e assim conseguirem ascender.

As associações
“Então, um grupo mais ou menos esclarecido entendia que o negro devia ir a campo para
se conscientizar e combater com a mesma arma do branco: cultura e instrução (o grifo é nosso),
o que o negro não tinha e nem se preocupava em ter.” (Leite, 1992, p. 19). Com esta fala do
velho militante José Correia Leite, iniciamos a discussão sobre a atuação da “elite negra” através
das suas sociedades. Primeiramente é importante perceber que o depoente demonstra clara
consciência sobre a importância que foi dada a estes temas. Também é significativo, o
entendimento de que cultura e instrução eram “armas” específicas do branco, e que os negros
estavam se apropriando destas “armas” para poderem conseguir seus objetivos. Essa forma de
pensar é reflexo da experiência do velho militante, que foi contemporâneo de uma época onde os
homens de cor, incluído ele próprio, tinham imensa dificuldade de acesso a educação.
7
 

Tendo em vista o ideal ressaltado por Leite, o “escol negro” da cidade de São Paulo
escreveu diversos artigos que tinham como objetivo fomentar práticas educativas. A promoção
destas iniciativas deveriam ser responsabilidades das associações, porém a grande maioria destes
grupos se voltou somente à promoção de festividades.17 Fugiu a esta regra o Centro Cívico
Palmares, uma associação fundada em 1926 e que tinha como propósito principal a educação
dos negros. O Palmares tinha por princípio não organizar bailes, e entre as diversas realizações
da entidade estão, a criação de uma biblioteca, a fundação de escolas, a promoção de palestras,
peças teatrais e audições de canto e piano. Além do Palmares, encontramos menção de que o
Kosmos também promovia atividades beneficentes e educativas.

Havia nessa sociedade um corpo cênico e um jornal. O presidente era funcionário da


Faculdade de Direito, um grande homem chamado Frederico Baptista de Souza. Ele
chegou a vender uma casa dele para manter a sociedade dentro dos padrões de
seriedade, onde não se tinha ambiente para ir buscar mulher ou tomar bebedeira. Era
uma sociedade pra família e aquela postura dava um cunho intelectual, literário. (Leite,
1992, p. 33)

Quanto a maioria das sociedades que, como afirmamos, se voltavam à promoção de


bailes, independentemente das muitas críticas existentes sobre esta característica, também
cumpriram uma importante função, pois nestes ambientes festivos se desenrolava a vida pública
destes homens e mulheres.18 Para Silva estas associações

...permitiram à elite negra experimentar também na cidade um nível de sociabilidade e


de troca de experiências, com tal intensidade que somente seria possível no interior do
próprio grupo. (...) Assim, puderam no âmbito das suas associações étnicas, romper com
a dimensão privada da vida familiar e exercitar em seu interior a condição de homens
públicos. É com certeza isto que explica o incrível número de “sociedades dançantes”
que surgiram naquela época. (1990, p. 106)

Na impossibilidade de frequentar os ambientes de lazer da elite paulistana, a “elite de cor” criou


seus próprios espaços e dentro deles existiam rituais, símbolos e normas muito rígidas, que
funcionavam como ícones de status e diferenciavam as diversas associações.
O grande número de agremiações possibilitava a “elite de cor” dançar praticamente todos
os dias, porém existiam os bailes mais concorridos, como as chamadas festas de “partida”. Estas
festividades obrigatórias funcionavam como uma comemoração de aniversário da associação
promotora, “... tinham sessão solene, toda aquela cerimônia para os convidados de certa
importância. Os membros da imprensa, diretores dos pequenos jornais, eram recebidos na porta
por uma comissão de damas que os levava aos lugares já destinados.” (Leite, 1992, p. 45). Além
do ritual, as cerimônias festivas primavam pela elegância e refinamento dos objetos utilizados,
numa delas, organizada por uma associação mantida por cozinheiras, Leite relata que:
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Nessa festa do “Brinco de Princesa” eu percebi que na mesa dos convidados especiais
havia só talheres de cristófer e louças de porcelana. Eram utensílios que as diretoras da
sociedade emprestavam das famílias para quem trabalhavam. Depois de terminada
aquela primeira mesa, tudo foi recolhido com o maior cuidado. (Leite, 1992, p. 46)

É importante ressaltar que a sofisticação dos eventos promovidos nas associações da


“elite negra”, não é uma mera reprodução da alta sociedade paulistana. Entender a
“modernização dos costumes” destes “pretos modernos” deve considerar a possibilidade da
influência direta dos países europeus e dos EUA, ou seja, sem necessariamente precisar da
mediação da elite econômica da cidade. Assim, os membros do “escol negro” estavam
amplamente conectados com as novidades da sua cidade e do mundo, “Qualquer coisa que surgia
na moda, o negro dava um jeito à sua maneira. Fosse o que fosse: dança, roupa... (...) Todo
aquele que freqüentava baile tinha sua calça listrada, um paletó preto ou azul marinho, um colete
branco, uma camisa de peito engomado...” (Leite, 1992, p. 45). O mesmo depoente afirma que
“A dança que os negros utilizavam nos salões era a dança francesa. A dança americana veio
depois, com o ragtime. Samba era dança de terreiro. Por volta de 1920 e pouco, se dançava
valsa.” (Leite, 1992, p. 45). Quanto à vestimenta, para manter o padrão mínimo, eles recorriam a
casas de roupas usadas. “Ali na Rua XV de Novembro tinha uma casa que vendia de tudo:
bengala, palheta, sapato, vestido, polaina, calça, colete, camisa, chapéu, luva – tudo usado.
Muitas vezes você fazia uma boa compra porque eram roupas penhoradas, em bom estado.”
(Leite, 1992, p. 45). Para os negros que não tinham nenhuma condição, restava a alternativa de
vestir roupas baratas, porém não podiam frequentar as sociedades dançantes, pois as normas dos
clubes e a moralidade desse grupo social exigiam um comportamento exemplar, e a vestimenta
era um dos itens indispensáveis. Enquadrar-se nesses padrões rendia prestígio, que facilitava
inclusive nos relacionamentos amorosos, “O indivíduo, que freqüentava salões de baile, acabava
se tornando popular, pois o baile era algo indispensável. (...) As damas acabavam disputando o
chamado “negro de salão”, que em geral se vestia muito bem e era pouco dado à bebida.” (Leite,
1992, p. 45).
O campo dos relacionamentos abre espaço para ressaltar outra forte característica da
“classe de cor”, um profundo comportamento moralista, onde a falta de polidez, o alcoolismo e a
promiscuidade eram consideradas falhas terríveis. Buscando corrigir estas infrações morais,
alguns jornais como o A Sentinella e O Alfinete, faziam jus aos títulos, e como sentinelas da
moral, alfinetavam nominalmente os infratores, principalmente as mulheres.

Com a Maria Carioca, sabemos que esta negrinha brevemente ficará suspensa de dançar
no salão do Glycério, por ser donzella desordeira e faladeira. Nao seja tao escandalosa.
(Critica, A Sentinella, São Paulo, 10.10.1920, p. 4)
9
 
Zica tristonha por ter deixado o seu predilecto nos ensaio do "Pendão". CIUME (...)
Belmira zangada com o seu "pequeno nos ensaios do "13 de Maio". FITA (Phrases
apanhadas, O Alfinete, São Paulo, 28.08.1921, p. 2)

Projetado publicamente em sua comunidade, o negro que freqüentava as associações


estava sujeito a esse tipo de vigilância e exposição. Em contrapartida, o ato associativo conferia a
“elite de cor” uma noção de pertencimento a um grupo seu, que afirmava sua negritude ao
mesmo tempo em que os alinhava aos costumes da “boa sociedade” paulistana. A existência por
parte da “elite negra”, da identificação com a sua etnia, e negação de uma possível pretensão de
branqueamento, fica clara quando José Correia Leite relata como começou a participar do meio
negro.

Fui levado pelos amigos italianos a um teatro na Rua Boa Vista. (...) Assim passei a
falar com novas pessoas, a ter um relacionamento diferente daquele de carroceiro da
família. (...) Eles queriam me pôr num clube chamado Duque de La Bruse, na Rua
Glicério. (...) Eles estavam pensando que faziam favor de me introduzir no meio
daquela sociedade onde jovens italianos aprendiam a dançar. (...) Quando terminou,
notei que ia começar o baile de uma sociedade negra de nome Elite Flor da Liberdade.
Então começaram a chegar moças muito bem vestidas, aqueles negrinhos bem
trajados... Eu fui ficando espantado. Os italianos foram desocupando o espaço. Chegou
a diretoria, a orquestra, e o baile começou. Fui indagar e me disseram:
- Essa é a sociedade “Elite Flor da Liberdade”. Faz baile todo domingo, das 3 às 6. É
uma sociedade de família...
Eu disse comigo: “Estou perdendo tempo com esses italianos. Eu tenho uma
sociedade que é minha, meu povo, minha gente”. (o grifo é nosso) Fui procurar e
encontrei gente conhecida. (Leite, 1992, p. 26) 19

É verdade que o comportamento social do “escol negro” estava muito distante das
camadas populares, e que ele compartilhava mais valores e símbolos com a elite branca da
cidade, porém, isso não significou uma negação da sua negritude. Ocorre que, “A elite negra
procurava, portanto, afirmar-se como negra, mas de forma oposta ao negro pobre dos porões.
Procuravam marcar a alteridade e estabelecer suas fronteiras, a partir da afirmação contraditória
da condição negra, porém, sob os padrões brancos de conduta social.” (Silva, 1990, p. 112).
Estes homens e mulheres se distinguiram da “ralé” e se aproximaram da elite, porém propagaram
o entendimento de que era preciso que todos os “homens de cor” assimilassem as “regras do
jogo”, para que ascendessem socialmente. Com o objetivo de ascender a raça, criaram seus
jornais, associações, protestaram contra a discriminação, combateram o alcoolismo, o
analfabetismo e diversos outros males que consideravam prejudiciais ao grupo negro da cidade.
Em suma, cabe reavaliar as interpretações essencialistas, que vêem a cultura como algo
puro e desconectado das influências e pressões exercidas pelo meio social. A “elite negra” forjou
um modo diferente de “ser negro”, que não fosse necessariamente apegada as práticas vernáculas
africanas que estavam totalmente desconectadas do seu momento histórico, uma forma moderna,
10
 

que pudesse lhe garantir a possibilidade de ser contemporânea, no caso em questão, de serem
“pretos modernos”.

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SILVA, José Carlos Gomes da. Os Sub-urbanos e a outra face da cidade – Negros em São Paulo
(1900-1930): cotidiano, lazer e cidadania. 1990. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas.
                                                                                                                         
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O termo “elite negra” será usado sempre entre aspas para lembrar a particularidade da expressão. O grupo social
objeto deste estudo, é uma parcela da população negra de São Paulo que recebeu esta denominação por se
diferenciar da grande massa dos negros de São Paulo. O critério diferenciador não é exatamente o econômico, pois
as pessoas deste grupo estiveram longe de serem os detentores dos meios de geração de riqueza da capital, a maioria
trabalhava nos setores burocráticos, domésticos e de serviços. A “elite negra” tinha como principal critério
diferenciador das massas, o papel intelectual e cultural desempenhado por seus membros que se engajaram em um
projeto sócio-político diverso que pretendia galgar uma ascensão social. Será utilizada também as expressões, “elite
de cor”, “escol negro” e “classe de cor”.
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O Clarim da Alvorada teve sua 1ª edição em 06.01.1924, e até a quarta edição, em 06.04.1924, o jornal era
chamado apenas de O Clarim.
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As citações dos documentos respeitarão a grafia original.
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Sobre as dificuldades da imprensa negra, Cf. (Pinto, 1996, p. 67); Sobre a quantidade de jornais desta imprensa
vale a pena conferir as tabelas exibidas em: (Pinto, 1996, p. 62) e (Domingues, 2008, p. 33-35).
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Outro argumento que demonstra o êxito e a importância do Clarim da Alvorada é o fato de na década de 1930 ele
ter representantes nos estados do Rio de Janeiro e Bahia. Sabemos também que o periódico foi solicitado pelo
diretor da biblioteca pública do Recife, Cf. (O Clarim da Alvorada, São Paulo, 23.08.1930). Esta informação
também pode ser consultada em (Domingues, 2008, p. 36).      
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O cosmopolitismo paulistano era profundamente identificado com a vida parisiense, isso era propagado
principalmente pelo cinema francês (Pinto, 1999, p. 140). Alguns dos espaços de lazer demonstravam no nome a
intenção de ser uma “Nova Pariz”, casa de espetáculo fundada em 1902. Outras, como o “Café Concerto”, atuavam
como uma réplica de cabarés da cidade luz (Silva, 1990, p. 38).
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Na revista encontramos uma enorme quantidade de propagandas de produtos importados como: tecidos ingleses;
perfumes franceses; pneus americanos.  
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Fonte: BASSANEZI, Maria; SCOTT, Ana; BARCELAR, Carlos; TRUZZI, Oswaldo. Atlas da Imigração
Internacional em São Paulo 1850-1950. São Paulo: Editora Unesp, 2008. p. 22. Dados disponíveis em:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/imigracao/estatisticas.php  

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A mesma pesquisa indica que 1.412 pessoas tiveram nacionalidade não declarada. Fonte: IBGE, Censos
Demográficos. Dados disponíveis em: http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/historico/tabelas/pop_nac.php  
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Dados dos anos de 1893, 1902, 1912 e 1913 indicam uma participação ainda maior de estrangeiros. Sobre a tabela
apresentada e mais informações sobre períodos anteriores a 1920, Cf. (Andrews, 1998, p. 111-113)  
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Nos jornais da imprensa negra facilmente são encontrados anúncios de pessoas oferecendo estes serviços básicos,
os mais comuns eram de alfaiates, sapateiros, serviços domésticos e burocráticos. Cf. as edições dos Jornais O
Clarim da Alvorada e Auriverde. Sobre o trabalho informal dos negros, Cf. (Silva, 1990, p. 45-72).
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Não é o objetivo aprofundar esta discussão, porém convém ressaltar que um dos principais autores que defendem
a tese da melhor qualificação é Fernandes, em Integração do negro na sociedade de classes. Andrews, rebate com
bastante propriedade essa afirmação, um de seus argumentos, é que muitos dos imigrantes, principalmente italianos,
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eram originariamente do meio rural, dessa forma não possuíam nenhuma experiência industrial que lhes garantissem
vantagem inicial sobre a população negra. Para conhecer melhor estes argumentos, Cf. (Andrews, 1998, p. 118-134).
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A série completa com os três artigos foi publicada no jornal O Getulino, da cidade de Campinas. Um dos motivos
da republicação no O Kosmos (nos dias 19 de out., 16 de nov. e 21 de dez. de 1924) foi o fato de Benedicto
Florêncio ser fundador do Gremio Kosmos, clube responsável pelo jornal de mesmo nome.  
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A questão da bebida foi muito tratada nos jornais da imprensa negra. Se a população branca via os “pretos” como
alcoólatras em potencial, os jornais da “elite negra” condenaram de forma voraz o alcoolismo dos “homens de cor”,
pois além de prejudicar a si mesmos, o vício era danoso a toda coletividade negra.
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Sobre a distribuição populacional por setores de trabalho, rever a tabela apresentada na pg. 4. O artigo que
denúncia a proibição da participação dos negros na seleção para a Guarda Civil, tinha como critérios “...idade
mínima, 22 annos, preferindo-se homens robustos maiores de 25 annos e de cor branca.” (O Clarim da Alvorada,
São Paulo, 14.07.1929, p. 1).
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José Correia Leite, pouco tempo antes de fundar o Clarim da Alvorada tomava aulas com Jayme de Aguiar, o
outro fundador do jornal. Sobre a dificuldade do acesso a educação ele diz: “Quando comecei a tomar consciência
das coisas, percebi que era um menino sem poder entrar em escola porque não tinha quem se responsabilizasse por
mim. No (sic!) podia fazer o que a maioria das crianças bem-educadas da época podiam fazer. Eu era um menino
prejudicado porque tinha de enfrentar sérios problemas da minha vida.” (Leite, 1992, p. 23). Sobre conflitos e
atitudes agressivas contra negros no interior de São Paulo, Cf. as pesquisas de Monsma.
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Além da “elite negra”, os grupos mais populares desta etnia também fundaram associações na cidade de São
Paulo. Segundo Pahim Pinto, “O negro brasileiro sempre desenvolveu uma intensa vida associativa, seja na forma
de sociedades de ajuda e irmandades, que já existiam desde antes da Abolição, seja na forma de outras associações.”
(Pinto, 1993, p. 56). Para conhecer mais sobre a vida associativa das camadas populares de negros paulistanos, Cf.
(Silva, 1990, p. 45-72). Sobre uma relação das associações de São Paulo, Cf. (Pinto, 1993, p. 78).
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Parte da própria imprensa negra criticou o fato de a enorme maioria das associações se destinarem a promover
exclusivamente bailes e festas. Os críticos alegavam que era necessário que as associações também promovessem
atividades educacionais e beneficentes.  
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Quando jovem, Correia Leite trabalhou para italianos, inicialmente como ajudante de lenheiro e como cocheiro,
depois tomando conta de crianças e fazendo pequenos serviços, assim durante muito tempo conviveu com
imigrantes. Cf. (Leite, 1992, p. 25).

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