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A EUGENIA COMO BIOPOLÍTICA: REFLEXÕES SOBRE O EUGENISMO E
SEUS IMPACTOS NO BRASIL NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
INTRODUÇÃO
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Psicanalista e pesquisadora. Pós graduanda em teoria psicanalítica na Faculdade Venda Nova do
Imigrante FAVENI. Pesquisa as áreas de sabjetividades, questões raciais e de gênero e trauma
precoce. marcellabrito.psic@gmail.com.
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recortes e contornos nas políticas e dinâmicas sociais, em especial no Brasil. A
partir dos anos 1980 a interlocução entre ciência, política e sociedade no que
tange os estudos sobre a eugenia entrou na agenda da história das ciências
(SOUZA; WEGNER, 2018, p.332) ampliando um vasto campo para este objeto de
pesquisa, inclusive na area da saúde.
Com o lançamento do livro The Wellborn science: eugenics in Germany,
France, Brazil and Russia escrito por Mark Adams e colaboradores (dentre eles
Nancy Stepan) no início da década de 1990, novas concepções e perspectivas
acerca da historiografia do eugenismo começam a ser pensadas.
Nesse sentido, o filósofo Michael Foucault (1926-1984) nos traz o conceito
biopolítica para engendrar o processo de governabilidade sobre os corpos
utilizando a biologia e a medicina, enquanto instrumento político de dominação e
poderio sobreos processos sociais.
Num primeiro momento é necessário contextualizarmos o cenário
brasileiro no início do período republicano para empreendermos acerca dessa
janela temporal. Na primeira década do século XIX, a ideia de aprimoramento da
raça ganha um grande número de simpatizantes, uma vez que no senso comum
havia a atribuição das mazelas sociais, problemas de saúde pública e o retrocesso
do país à população negra e mestiça. Nessa direção, a teoria eugênica se mostra
como uma espécie de salvação nacional (MACIEL, 1999), sendo absorvida
rapidamente pela medicina, intelectuais e posteriormente pela política como
abordaremos mais adiante.
A prova desse pensamento é o surgimento em 1918 da primeira sociedade
eugenista da América Latina em solo brasileiro: a Sociedade Eugênica de São
Paulo, organizada e presidida pelo médico Renato Kehl (SOUZA, 2016).
A seguir abordaremos a década de 1920. Após a institucionalização do
projeto biológico de regeneração racial, o eugenismo adquiria também um status
O início do século XX foi marcado por uma grave crise que transpassava a
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esfera política, econômica, social e sanitária. O fim da escravização no final do
século XIX representou um duro golpe num país que tinha como principal pilar
econômico, a mão-de-obra escravizada. A velha república (1889-1930) enfrentou
grandes e profundos desafios para se estabelecer: decadência econômica, atraso
no modelo de meios de produção, epidemias de malária, cólera, varíola e febre
amarela, além de uma grande população ex-escrava vivendo em condições
insalubres.
Após o trabalho e pioneirismo de cientistas como Oswaldo Cruz (1872-1917),
Carlos Chagas (1879-1934), Adolfo Lutz (1855-1940) no enfrentamento das
chamadas doenças tropicais que assolavam as camadas mais pobres do país; a
ciência e a medicina passaram a ser vista
nacional de modernização (SOUZA; WEGNER, 2018).
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como foi o que obteve maior sucesso em sua institucionalização, tendo sua
primeira sociedade fundada em 1918, a Sociedade Eugênica de São Paulo
(SOUZA, 2016).
A institucionalização da eugenia.
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designava intervir no aprimoramento eugênico na mente em indivíduos que
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instrumentalizou medidas segregacionistas em diversos segmentos da sociedade
brasiliense.
O discurso racista de Kehl pulverizou se nas políticas públicas das décadas
sanitaristas dos anos 1920. Inserindo o Brasil numa posição no mínimo peculiar
frente à proposição de por Stepan.
Ou seja, no caso brasileiro, a eugenia adiquiria uma característica mais
sociológica que biológica, por perder sua essência puramente cientificista, ligada a
ordem genética e de seleção de indivíduos.
O movimento eugênico aqui foi rapidamente absorvido por diversas frentes como a
saúde, especialmente a mental, a educação, direito, educação sexual e a esfera
A era Vargas foi marcada por intensas reformas na saúde e educação, entre
elas a criação do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública em 1930;
além de iniciativas visando proteger a maternidade e a criança, além da
regulamentação das questões trabalhistas (DA SILVA, 2019) o que assegurava ao
Getulismo um caráter populista.
Embora houvesse avanços no que tange a cidadania através de uma
legislação social que assegurava direitos, havia pouca participação popular no
aparelho político, sendo este um terreno fértil para a sedimentação da eugenia na
coisa pública brasileira.
O ápice desse atravessamento se deu nas constituições de 1934 e 1937,
talvez a legislação mais emblemática nesse sentido esteja na constituinte de 1934
em seu artigo 138. A carta magma brasileira institui a educação eugênica e o
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nacionais, numa referência ao alcoolismo e as doenças que assolavam as ditas
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Contudo, o discurso dos representantes da eugenia negativa representados
por Renato Kehl, que incluíam à esterilização dos
higienização racial, a proibição dos casamentos inter-raciais e consanguíneos e
controle através de exames pré-nupciais foi perdendo força e credibilidade durante
a década de 1930, principalmente por se familiarizar com os ideais nazistas; nesse
tempo, as políticas de extermínio alemãs impactaram o mundo (SOUZA, 2012)
sendo consideradas anti-populares.
Portanto, desvincular a eugenia em sua versão mais radical do discurso
nacionalista, bem como o seu avanço passou a ser uma necessidade
1930. Todavia, o espectro
eugênico continuou permeando as camadas populares através da educação,
saúde e esportes.
Segundo Rocha (2011) o objetivo da permanência de medidas eugênicas
nessas pastas seria o cidadão brasileiro segundo os moldes desenvolvidos
em países europeus, tendo como proposta para o desenvolvimento físico, a
contribuição efetiva para a formação moral e disciplinar do
2011, p.171) viabilizando seu corpo e mão-de-obra para as necessidades do
Estado.
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(YAMAMOTO, 2011).
População esta, que em sua maioria, é atravessada pela violência obstétrica
e falta de assistência pós-parto. Leal et al (2017) cita que ao analisarem os
dados de uma pesquisa com 6.689 mulheres, concluiu se que as mulheres negras
recebem menos anestesia na hora do parto em comparação às mulheres brancas.
Podemos pensar que a biopolítica com viés eugenista, se evidencia também
durante a pandemia da Covid19 com a desproporcionalidade de acesso a
equipamentos, tratamento adequado e vacinas. O aparelho eugênico se
reorganiza e [re]articula diante de novas demandas sociais e subjetividades, visto
que as periferias e subúrbios permanecem desprivilegiados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
no Brasil; refletido nos processos sociais, nos dispositivos públicos e no flerte com
o totalitarismo aportado em biopolíticas de segregação, silenciamento e
negligenciamento do portador de necessidades especiais, negros e/ou em
sofrimento mental.
A contemporânea pode ser vista através da necropolítica
institucionalizada, direcionada a população negra, periférica e menos abastada, ou
seja, os ensejos das classes dominantes.
Países com sistemas políticos totalitários lideram o ranking mundial de
mortes pelo Sars-cov2. Em geral, estes se valem de um discurso negacionista,
negligenciando a promoção de saúde e assistência aos vulneráveis,
empreendendo um recorte social que perpassa questões de cor, idade e gênero,
característico do Darwinismo social enquanto um dos tentáculos do eugenismo
vigente no séc. XX.
Para fins de conclusão, compreende se que cabe a academia [re]pensar a
história já produzida; inserindo-a num cenário multidisciplinar, uma vez que sua
abrangência perpassa pelos campos da ciência, política e saúde.
Em consonância com Assunção et al (2020, p.8) compactuamos que a
historiografia visa cooptar também registros de um tempo em suas nuances,
especificidades e recortes et al, 2020, p.8)
interligando experiências pregressas ao tempo presente, afim de evitarmos que
retrocessos se repitam.
incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do
(Mark Bloch)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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