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19/06/2020 Descivilização e indiferença: Bolsonarismo na crise da Covid - SOS Brasil Soberano

ARTIGOS E DOCUMENTOS

Descivilização e
indiferença:
Bolsonarismo na
crise da Covid
POR SOS BRASIL SOBERANO · PUBLISHED 18 DE JUNHO DE 2020 ·
UPDATED 18 DE JUNHO DE 2020

Foto: Altemar Alcantara/Secomcom/Fotos Públicas

Pedro Felipe Muñoz*

No livro “Segurança, Território e População” (1) , Michel


Foucault mostra que a noção de população substituiu a ideia de

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coleção de súditos – força produtiva do


mercantilismo, propriedade de um soberano
(rei absoluto), que detém também um território
(seu reino). Mas população precisou deixar de
ser um valor negativo e, muitas vezes,
associada à noção de depopulação – como em
Montesquieu (da diminuição populacional como problema) ou
no malthusianismo (pela relação entre população e meios de
subsistência) –, para se tornar objeto de saberes – medicina,
criminologia, biologia, filologia, economia, etc. – e da gestão do
Governo. A população se torna, assim, um sujeito-objeto das
relações de poder, que precisa ser vigiado (princípio do
panóptico), defendido e administrado, passando a ser pensada
como poderio e riqueza do Estado, não mais em termos
quantitativos apenas, mas também em termos qualitativos.

O nascimento da população entre os séculos XVIII e XIX


ocorreu também com um triplo processo: da inversão da teoria
da soberania (isto é, a constituição da soberania popular nas
sociedades civis), da invenção das nações modernas e da
entrada do povo na arena da política. No século XIX, esse novo
ator político passou a ser visto, ora como uma ameaça à ordem
e ao status quo, ora como uma massa a ser mobilizada para a
ação política – seja pela afirmação do conceito de classes de
Marx, seja por sua negação nos fascismos –, através de
modernas técnicas de comunicação de massa, como bem
observou Marshall Berman. Por essa razão, Foucault inclui na
noção de população o surgimento de um público (opinião
pública) e um sujeito de desejos a serem geridos.
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Portanto, é a partir desse jogo histórico e político ligado à noção


de população que podemos entender a constituição dos
sistemas nacionais de segurança e saúde. No livro de Foucault,
a população surge, assim, como objeto de uma arte de
governar (governamentalidade liberal) que centralmente investe
nos corpos (biopoder). Trata-se de uma nova forma de Governo
dos Homens, que tem por base mecanismos disciplinares e
dispositivos de segurança responsáveis, respectivamente, por
uma normação (normalização disciplinar) e uma normalização
(no sentido mais estrito do termo). Diferentemente da disciplina
(cujo fundamento é a norma/lei), a segurança tem o suporte da
matemática e é fruto de uma normalização produzida pela
estatística moderna, que passou a instrumentalizar diferentes
saberes que têm a população e a sociedade (globalmente)
como objeto de conhecimento e de exercício de poder. Com o
apoio da estatística e de seus cálculos probabilísticos, dados
criminológicos e índices de morbidade são produzidos e
analisados para se determinar o normal. O fundamento é a
prevenção.

Isto quer dizer, é necessário organizar um conjunto de dados


através de uma distribuição normal e de uma curva normal-
padrão (sendo média = moda = mediana), que transforma algo
desconhecido em algo conhecido, generalizável e previsível. E
é através dessa veridicção normalizadora que toda a sociedade
é organizada, incluindo aí a montagem dos sistemas de
segurança e saúde públicos, assim como a produção de
vacinas e as estratégias de combate às epidemias.

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A curva normal-padrão não normaliza somente os dados e os


fenômenos naturais, mas o próprio corpo social globalmente,
pois é através dela que são estabelecidos os dispositivos de
segurança que norteiam saberes e governos, isto é,
procedimentos, protocolos, estratégias de ação e critérios para
a mobilização de recursos que são, obviamente, finitos. Em
suma, quantidade de hospitais e sua distribuição geográfica.
Nesse processo, há todo um cálculo, bem como as noções de
caso, crise e risco. Poderíamos dizer, gestão dos riscos.

Foucault logo percebeu que tudo isso, grosso modo, versa


sobre a economia – o que explica o fato do seu curso seguinte
no Collège de France, “Nascimento da Biopolítica” (2), ter se
dedicado ao liberalismo e ao neoliberalismo econômicos. Em
suma, podemos dizer que não há como se pensar em saúde
sem a economia, ou vice-versa. Ambos fazem parte do mesmo
sistema de relações e da mesma teia de exercício do poder.

E o que isso tudo tem a ver com a pandemia da Covid-19 e com


o caso brasileiro? Uma epidemia (de grande e rápido contágio,
principalmente) altera sensivelmente a taxa de morbidade de
um país no tempo, isto é, a curva normal-padrão (um gráfico de
mortes/tempo) que previamente instrumentalizou não somente
os sistemas de saúde – incluindo os recursos empregados,
como a quantidade de pessoal (médicos, biólogos e demais
profissionais de saúde) e o número de leitos, de UTIs, de
respiradores e de itens de segurança como máscaras e luvas –,
mas também a nossa sensibilidade em relação à morte. A
adoção do isolamento social (quarentena ou lockdown) visa,

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assim, não somente o controle do número de mortes – como


único recurso de combate à epidemia, tal como ocorria no
mundo pré-moderno e pré-pasteuriano –, mas, principalmente,
o controle do tempo e o reposicionamento dos recursos
empregados no combate ao vírus, no que tange à capacidade
de atendimento por infectados (leves e graves) e aos meios de
tratamentos, como testes de diagnóstico, fármacos e vacinas.

Se, por um lado, o isolamento social permite a readaptação do


sistema de saúde e de segurança (ainda que à custa de um alto
impacto econômico no curto prazo), por outro lado, seu objetivo
é ganhar tempo para se refazer as estatísticas, achatar a curva
epidêmica e reorganizar toda a governamentilidade, incluindo aí
a proteção e o replanejamento do sistema econômico no médio
e longo prazo. Sendo a população um sujeito-objeto da gestão
governamental, isto quer dizer que o seu declínio brusco
(depopulação) também gera um impacto significativo para
macroeconomia de um país. Portanto, cabe ao Governo
defender a sociedade contra todo e qualquer tipo de ameaça. O
problema é quando inimigos reais são secundarizados ou
substituídos por inimigos ideologicamente criados, como na
gestão bolsonarista da Covid-19.

Além do controle do tempo, a crise da Covid-19 toca em outro


aspecto que é especialmente caro ao caso brasileiro: nossa
relação cotidiana com a morte. Em primeiro lugar, pode-se dizer
que a pandemia altera a taxa de morbidade normal dos países,
portanto, o que consideramos mortes esperadas por região, por
faixa etária e por período de tempo, mas também mortes

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aceitáveis. Como bem nos mostra Foucault, essa morbidade


normal (um número, uma estatística) não tem a ver apenas com
a característica inelutável do Homem de morrer um dia. Essa
morbidade normal tem a ver com a constituição do monopólio
do saber médico, mas, sobretudo, com a nossa sensibilidade
em relação à morte, considerando diversos fenômenos, tais
como fatores criminológicos, socioeconômicos e endêmicos.
Em suma, trata-se da gestão ordinária pelo moderno Estado
liberal acerca da população e de seu perecimento.

Na última semana de maio, a Covid-19 já havia vitimado nos


Estado Unidos mais de 100 mil pessoas – a primeira morte é de
29 de fevereiro. Embora esse número por si só mostre a
gravidade do que estamos nesta crise global, nem todos se
mostram sensíveis ao drama dos familiares estado-unidenses
que perderam seus entes queridos. No dia 30 de abril, grupos
armados se manifestaram contra as medidas de isolamento
social naquele país(3). No Brasil, observamos algo semelhante.
Ainda que o país tenha se tornado o epicentro da pandemia,
muitos brasileiros permanecem anestesiados. Tais pessoas
vociferam nas redes sociais e fazem carreatas e protestos de
rua com grande aglomeração, pregando o fim do isolamento, o
golpe militar e o retorno do AI-5 (ato institucional mais duro da
ditadura de 1964-1985). Há no Brasil de Bolsonaro uma
revolução conservadora em andamento, que é parte de um
movimento internacional maior. E não é a primeira na História –
basta lembrarmos do estudo de Annie Dymetman sobre a
emergência do nazismo na República de Weimar (1918-1933).
Em suma, o trumpismo e o bolsonarismo são faces sombrias do
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processo descivilizador que estamos vivendo, como parte do


que Castells chamou de crise das democracias liberais do
século XXI.

Os pronunciamentos de Jair Bolsonaro ao longo da pandemia


da Covid-19, mas sobretudo a insignificância dada a ela,
mostram-nos exemplos cristalinos da linguagem política
operada. Ela tem por base criar uma lógica de desinvestimento
no diálogo, através de uma narrativa axiomática. A arquitetura
da indiferença e da banalização da morte foi produzida por meio
de uma estratégia de comunicação (política e autoritária na Era
digital), que estimula o conflito permanente, a crise, a
instabilidade, a desagregação, a divisão, a fragmentação, mas,
principalmente, provoca o medo e a desesperança nos inimigos
ideologicamente criados. A fonte do bolsonarismo é sempre o
ódio, a violência e a morte. Não há recuos.

O messianismo de Bolsonaro extrapola o populismo de direita,


pois ele precisa corroer diariamente as bases da democracia e
perverter a ideia moderna de verdade, que não é mais da
ordem das verdades absolutas do mundo da tradição do Antigo
Regime, mas sim de conhecimentos produzidos por acordos
formalizados e limitados pela ética civilizada, tal como ocorre
nos discursos científicos e jurídicos basilares do Estado de
direito. O negacionismo bolsonarista busca tornar crível e
aceitável a sua visão caluniosa de mundo, fabricando
acontecimentos. Mas, ele é, sobretudo, uma estratégia política
de ataque à diversidade (política, partidária, sexual, racial, de

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gênero, etc.) e aos direitos humanos. Portanto, o alvo principal


é civilização.

Em seu livro “O processo civilizador”, de 1939, Norbert Elias


narra uma longa história para mostrar como ocorreu a
transformação da economia pulsional dos homens, que
deixaram o livre exercício da violência (nobre medieval) para
desenvolverem o autocontrole (homem civilizado). Para Elias, o
autocontrole é a introjeção da lei social (penal e cultural), numa
fase posterior ao controle social do Estado que detém o
monopólio da violência e o poder de polícia. Grosso modo, a
história do processo civilizador mostra como e por que nós
abrimos mão da satisfação de desejos agressivos (como na
paixão pela guerra e pelos duelos). Ela narra o processo de
desarmamento de boa parte da população. Em nome de
promessas de satisfação, a civilização cobra seus preços: uma
acentuada descarga da agressividade no interior do psiquismo,
segundo Elias, em claro diálogo com Freud.

O ethos civilizado, composto por um conjunto de valores


aparentemente inquestionáveis, está hoje em crise. Elias
reconhece que o processo civilizador possa retroagir. Ele fala,
inclusive, de anomalias, sem, no entanto, explicá-las
profundamente. Em termos marxistas, poderíamos dizer que
essas anomalias são as contradições inerentes do sistema
capitalista liberal causadoras de suas crises cíclicas. Joel
Birman chamou isso de um mal-estar provocado pela
distribuição desigual do gozo nas sociedades neoliberais de
consumo de massas, sendo a violência em países como Brasil

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um produto do precário Estado de bem-estar. Trata-se de um


país em que tais anomalias têm proporções dramáticas:
profunda desigualdade social; racismo (produto histórico de
nossa cultura escravista, segundo Jessé de Souza); a omissão
do Estado; os excessos policiais e o brutal número de mortes
violentas nos centros urbanos. Em um estudo sobre os
chamados “autos de resistência”, Orlando Zacon mostrou que o
número de pessoas mortas nas favelas do Rio de Janeiro por
ano supera os números da Guerra das Malvinas de 1982 (4).

Observamos, assim, um acúmulo de anomalias (avessos da


civilização normalizados) que precedem à pandemia. São,
muitas vezes, microfascismos cotidianos (uma banalização do
mal anterior ao bolsonarismo) que agora foram ressignificados,
amplificados e difundidos, por meio de uma gestão dos medos.
Portanto, o messianismo de Bolsonaro é um produto senão da
profunda crise dos nossos tempos. Nela, os consensos básicos
(como valor à vida humana) são pulverizados, tornando
“normal” o
que outrora era indizível. Nas palavras de Hannah Arendt, é
quando as forças subterrâneas da modernidade vêm à tona.
Desde o impeachment de Dilma Rousseff, o Brasil foi dividido e
essa divisão – bem representada no filme “Democracia em
Vertigem”, de Petra Costa – transformou os semelhantes em
inimigos a serem combatidos e aniquilados, sem compaixão,
como no caso do capoeirista Mao do Katendê e da vereadora
Marielle Franco.

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* Pedro Felipe Muñoz é professor do Departamento de


História da PUC-Rio, doutor em História das Ciências e da
Saúde pela
Fiocruz, com doutorado-sanduíche na Freie Universität
Berlin.

NOTAS

(1) Referente ao curso no Collège de France ministrado entre


1977-1978. Ver sobretudo a aula de 25 de
janeiro de 1978.

(2) Curso no Collège de France ministrado entre 1978-1979.

(3) Sobre isso ver portal G1,


30/04/2020 https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/30/com-
manifestantes-armados-grupo-protesta-contra-isolamento-
social-no-congresso-do-michigan-nos-eua.ghtml

(4) Sobre isso, ver O Dia, 07/06/2015. Disponível


em https://odia.ig.com.br/_conteudo/noticia/rio-de-janeiro/2015-
06-06/apos-analise-delegado-conclui-que-sociedade-aceita-
violencia-policial.html

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