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Toxicomania e Identidade Queer: William Burroughs e a apropriação transviada

Como identidades dissonantes à matriz que inventou/fabricou a lógica heterossexual surgiram,


espalharam-se e consolidaram-se como resistência à dominação dos corpos? Em quais frentes
ou segmentos sociais a diferença se acentua, prolifera e adquire o caráter de identidade?
Quem nomeia os corpos dissidentes e os arrastam para o domínio público para serem
delimitados enquanto tais?
Pelo presente, pretende-se investigar os questionamentos a partir da leitura de três obras
publicadas no período próximo ao encerramento da segunda guerra mundial e início da
segunda metade do século XX por William Burroughs, sequencialmente Junky (1953), Queer
(1985) e Almoço Nu (1959), aproximando as obras das propostas críticas psicanalíticas e do
manejo clínico das toxicomanias por essa abordagem. Ao final, pretende-se dialogar com a
diferença e o lugar que esta ocupa na busca de identidades lógicas ou abjetas.

Segundo Michel Foucault em História da Sexualidade I: a vontade de saber, o século


XIX fez emergir uma explosão discursiva a respeito do sexo e da sexualidade humana, a
medida em que novos dispositivos de regulação da vida foram se instalando e perpetuando os
poderes Estatais-governamentais, jurídico-legais e médico-nosográficos. Essas novas alianças
assumiram o poder de reger, fazer cumprir e delimitar as potencialidades/possibilidades dos
corpos que lhes são dóceis enquanto propriedade.
Na esteira discursiva a respeito dessas possibilidades ou inteligibilidade dos corpos, as
três alianças se consolidaram e perpetuaram a crença de que faz saber o que é possível, o que
é celebrado e incentivado, bem como o oposto, ou o que não pode ser concebido, o que é
proscrito ou ilegal, o que é ultrajante, o que não é salubre.
Porém, chama a atenção do filósofo estruturalista que, na seara contrária ao
pensamento freudiano, de que há uma repressão sexual cultural no ocidente, mais
especificamente europeu e hegemônico, que reprime o desejo sexual em nome de um bem
maior que é o convívio social, o qual Foucault nega, por afirmar que não há uma repressão
sexual por parte das alianças soberanas e sim, grande incentivo que deve convencer, por
intermédio de repetidos e incisivos discursos sobre o que é o sexo, o que pode um corpo
sexual e de que maneira esse corpo precisa ser docilizado para o bem comum.
A onda de poder discursivo sobre o sexo, faz crer em suas verdades, e prossegue
sistematicamente produzindo novos arranjos pelos segmentos estatais, jurídicos e médicos. O
século XX iniciou-se sob a égide consolidada das formas e das verdades engendradas no
auspicioso século XIX. A nosografia médica juntamente com a colaboração de cientistas
sociais, filólogos, e outros segmentos científicos começaram a desenvolver, utilizar e debater
terminologias na busca de uma inteligibilidade do sexo.
Quando Freud publicou seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade em 1905, não
estava tratando temas que já não fossem conhecidos pela comunidade acadêmica e científica
da época; termos como inversão sexual e perversão já eram bastante conhecidos e abordados
pela medicina, pelo Estado e pelo sistema judiciário e penal, alcançando o pensamento
coletivo.
A importância da psicanálise freudiana foi aproximar o discurso médico da
coexistência entre o que poderia ser considerado normal ou patológico, pelo vencimento do
uso de terminologias segregantes em uma pluralidade possível, a exemplo das análises
freudianas do caso da jovem homossexual, da resposta à carta da mãe de um jovem
homossexual e da análise da vida e obra de Leonardo da Vinci.
O nascimento da clínica psicanalítica é dedicado ao sofrimento humano, sofrimento
estruturado por uma “moral sexual civilizada”, que segundo Freud, é a causa da “doença
nervosa moderna”, pois os dispositivos de poder regulam a vida num enquadre nuclear
conformista e procriativo. Delimitando e incentivando por inúmeras repetições discursivas
quais devem ser as performances esperadas pelos corpos e quais são reprocháveis ou passíveis
de penalização.
Se a virada do século XIX para o século XX viu a consolidação e popularização de
terminologias e conceitos que nomeiam os corpos segundo critérios supostamente anatômicos,
mesmo com toda a problematização de corpos insurgentes, como Herculine Barbin, uma regra
passou a valer, o regime de estatística, aquele que lê que se a maioria dos corpos está em
conformidade com a norma Estado-jurídico-nosográfica, então a norma é soberana e deve ser
celebrada como legítima, superior e excludente de outras possibilidades, embora todos saibam
que marcada diferença é extremamente útil e necessária, pois esta faz valer a lógica
normativa.
Há um forte estabelecimento da conformidade de corpos segundo as representações
esperadas para o que se convencionou masculino-feminino, a binaridade e seus derivados,
como exemplo, o que se espera do comportamento de um corpo nascido com gônadas
escrotais e pênis que é denominado homem, e o que se espera de um corpo nascido com
órgãos vulva-vagina útero e ovários denominado por mulher, que segundo Butler serão
incisivamente interpelados pela cultura a desempenhar papéis que se adequam a lógica da
norma soberana.
Pelo exposto, é perceptível que para perpetuar a matriz hegemônica, ou a lógica dos
sexos, muitos corpos precisam ser violentados e punidos exemplarmente por uma política de
vigilância e austeridade. Celebra-se as boas performances e pune-se as más conformidades.
A segregação no século XX é naturalizada, internalizada pela cultura; dos manicômios
para as histéricas do século XIX e das prisões para os degenerados de muitos séculos
anteriores, contrapõe-se a imagem de um centro citadino higienizado distanciado dos
arrabaldes sempre muito próximos da condição de pobreza, muitas vezes racializados, e com
inúmeros problemas sociais, dentre eles o consumo excessivo de bebidas alcóolicas, outras
substâncias e a proximidade destas com violências e crimes em suas cercanias.
Em todas as classes sociais os chamados vícios e desvios sexuais estarão presentes,
mas na sociedade capitalista, os mais ricos e abastados detêm o poder de manter um efeito de
normalidade e discrição de seus excessos, de sua degenerescência frente à norma e por fim,
podem pagar pela manutenção da hipocrisia.
Seguindo uma tendência mundial, o século XX viu surgir nos subúrbios e nos espaços
centrais decadentes de Nova Iorque muitos despossuídos da “América” cruzando a fronteira
para fora da margem do dispositivo familiar nuclear reconhecido por norma saudável. São
corpos prostituídos, racializados, homossexuais, expatriados imigrantes, sem parentescos, e
usuários de substâncias com comercialização ilegal, sem ocupação formal, empobrecidos e
falidos pelo sistema capitalista e, desassistidos por políticas públicas.
No mundo pós-segunda guerra mundial, necessitando se reerguer das vergonhas e
horrores que a mesma deixou, os Estados Unidos criaram inúmeras campanhas de combate às
populações marginalizadas pelo sistema, reafirmando preconceitos sociais contra as classes
periféricas, essas campanhas causam um efeito de que o poder público estaria trabalhando
para melhorar as condições de vida de alguns segmentos populacionais, não de todos, claro.
Nesses espaços marginalizados, verdades discursivas se tornam evidentes e fica mais
difícil usar de recursos que dissimulem o enredo dos corpos. Uma mulher prostituída
dificilmente conseguiria esconder sua ocupação e levar uma vida de mulher casada com filhos
e dona de casa em localidade próxima de seu gueto de prostituição. Mas há um frequente
fluxo dos corpos em posições dominantes que circulam os espaços periféricos em busca de
diversão e gozo.
É neste contexto cultural que, William Burroughs, que provém de classe média e foi
estudante de Letras em Harvard também é um expedicionário pela condição queer, pela
apropriação de guetos, de segmentos populacionais e de identidades as quais poderia negar, o
que se espera da sua condição de classe é a posição de violência e foraclusão dos corpos
marginalizados, uma posição cômoda e hipócrita da sociedade narcocapitalista que incentiva
o uso de substâncias tóxicas; desde o consumo de cigarros pelas grandes indústrias tabagistas,
à glamourização das bebidas alcoólicas, ao uso excessivo e desenfreado dos barbitúricos,
antidepressivos e anorexígenos, todos regulamentados pelo Estado e incentivados pelos
veículos de publicidade e de entretenimento.
Há uma verdade para consigo mesmo em Burroughs, pois ao ser fagocitado para as
entranhas da abjeção, exerce voluntarioso o desejo por si, por observar as reações físicas
fisiológicas, dos sentidos despertados pelas substâncias e pelas relações sociais que delas
advém. Não há nenhuma necessidade em se tornar uma pessoa melhor, em progredir, em
acumular ou fazer algo grandioso ou deixar qualquer legado, pelo contrário, há uma dispensa
dos ideais capitalistas e de suas adjacências como dispositivos de controle e de subjugação.
“O americano de classe média é um conjunto de negativas. Ele se define basicamente
por aquilo que ele não é.” (p. 62). Para Bill, o ideal de passabilidade não seria apenas uma
soma de negativas, seria ser positivamente invisível por uma presença vaga que o tornasse
então respeitável. Sua incursão pela toxicomania o liberta da condição medíocre e mediana do
homem branco de classe média, realiza o sonho ao contrário, pois o despe de todo o pudor
capitalista, errôneo de si, sem pretensão nenhuma ou ideal de futuro que possa projetar.
O ser voluntarioso em Junky é o homem intoxicado pela cultura. Intoxicado por
inúmeras interpelações desde o seu nascimento, que o inserem em um conjunto de limitações,
possibilidades e inteligibilidade para seu corpo. A ascensão ao mundo das drogas o reserva da
(de)nominação do Outro, possibilita uma saída, uma escapada do lugar subalterno. Incorrer no
crime de tráfico e na contravenção de usuário torna-se aqui uma forma de libertar-se da moral
sexual civilizada e da doença nervosa moderna, e não há outra forma que não adicionando
novas substâncias à química do cérebro.
Ao assumir a identidade junky, Burroughs e todos os seus pseudônimos se fundem,
seu universo de ação se expande a medida em que suas limitações culturais e do desejo
perdem a força reativa. O drogado escapa à norma das leis civis e culturais e então,
agenciando-se em seu mundo de escape às leis, escapa também à norma cis heterossexual,
pode então sentir o corpo pulsar o desejo abjeto, o desejo do outro, que não é o outro
inoculado pelo apagamento da memória, e sim, o outro descoberto no presente e no real.
Os corpos queer têm lugar de nascimento? A abjeção é determinada pela condição de
classe, de raça ou de origem? Em Burroughs veremos um autotratado imersivo do
apagamento da limitação da classe hegemônica, branca e heterossexual que transita para a
agência queer e, por uso contínuo e intensivo de substâncias prescritas e proscritas, dialoga
com a alteridade. No segmento junky, corpos de diferentes condições sociais podem
encontrar-se, podem reconhecer-se ou tratar lutas comuns à toda a espécie.

Para a agenda queer, que dialoga com a redução de danos e encontros com o real, é
preciso pensar que as drogas não são um inimigo a ser combatido, pois elas têm seu lugar de
importância e de uso por ambas as localizações, e que uma boa parte de nossas vidas é
dedicada à elas, mesmo que em pequenas doses homeopáticas; a exemplo o uso do elixir
paregórico, o qual, em suas microdoses de morfina é capaz de retirar a dor física e amainar
sentimentos aflitivos, e para finalizar, termino com a aclamação citada em Almoço Nu que
diz: “Bebês paregóricos de todo o mundo, uni-vos.” (Almoço Nu).

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