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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Introdução

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Foucault e A coragem da verdade

Michel Foucault foi um destacado


pensador do século XX, nascido em 1926 em
Poitiers, França, e falecido em Paris em junho
de 1984. Sua contribuição residiu em
revolucionar a compreensão das dinâmicas de
poder, ao introduzir abordagens da microfísica.
Através disso, Foucault demonstrou que o
poder é exercido e incorporado por indivíduos,
não sendo exclusivamente resultado de macro
instituições impessoais, como defendido pelas
teorias marxistas. Além disso, Foucault realizou
análises perspicazes sobre sexualidade,
loucura e epistemologia, garantindo seu lugar
como um dos filósofos mais influentes do
século XX.
Foucault também propôs um método
denominado genealogia do poder. Inspirado na
genealogia de Nietzsche, esse método não se
restringe a buscar origens específicas e fatuais.
Visto que não existem datas ou fatos que
apontem para a origem de uma mentalidade,
não podemos determinar precisamente como
surgem modos de pensamento e
comportamento sem percorrer nas minúcias,
que muitas vezes se escondem nos
comportamentos pessoais. Portanto, é
necessário percorrer não somente eventos
históricos que revelem como as formas de

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pensar e agir em nossa sociedade foram


moldadas ao longo do tempo, mas sim as
relações pessoais, os modos de agir, as falas e
os comportamentos. Através da genealogia,
não buscamos descobrir a origem das coisas,
mas sim compreender como as mentalidades
foram gradualmente moldadas e como
características perversas persistem na
sociedade contemporânea, tendo suas raízes
no período colonial:

Fazer a genealogia dos valores,


da moral, do ascetismo, do
conhecimento não será,
portanto, partir em busca de
sua “origem”, negligenciando
como inacessíveis todos os
episódios da história; será, ao
contrário, se demorar nas
meticulosidades e nos acasos
dos começos; prestar uma
atenção escrupulosa à sua
derrisória maldade; esperar vê-los
surgir, máscaras enfim retiradas,
com o rosto do outro; não ter o
pudor de ir procurá-las lá onde
elas estão, escavando os bas-
fond; deixar-lhes o tempo de
elevar-se do labirinto onde
nenhuma verdade as manteve

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jamais sob sua guarda.
(FOUCAULT, Michel. Microfísica
do Poder, p. 19-20).

Neste sentido apresentado por


Foucault utilizaremos a genealogia como um
dos métodos para sustentar a criação de dois
Conceitos: A Mentalidade Colonizada e o
Delírio Político. Estes conceitos servirão para
compreendermos como que os grupos
familiares, que detém o poder desde o período
colonial, utilizam de diversos mecanismos do
estado para manter negros, índios, mulheres e
homossexuais numa condição de
marginalidade. Além disso, esses conceitos
têm a função de demonstrar como o modo de
se pensar o Brasil como uma nação
subdesenvolvida serve para nos manter numa
condição de colônia ainda a ser explorada
pelas metrópoles. Esse pensamento, além de
nos manter numa condição de servidão, cria o
desejo de se abandonar o país na primeira
oportunidade. E naqueles que não podem
deixar o país, o mandonismo surge como
sinônimo de demonstração de poder,
corroborando a ideia de “Hospedar o
Opressor”. Mais ainda, as oligarquias, que
dominam sobre os corpos e a vida da gente
pobre de nosso país, são responsáveis por
uma espécie de necropolítica, que, como um

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biopoder, causa um verdadeiro genocídio, há


séculos no Brasil.

Na formulação de Foucault, o
biopoder parece funcionar
mediante a divisão entre as
pessoas que devem viver e as
que devem morrer. Operando com
base em uma divisão entre os
vivos e os mortos, tal poder se
define em relação a um campo
biológico – do qual toma o
controle e no qual se inscreve.
Esse controle pressupõe a
distribuição da espécie humana
em grupos, a subdivisão da
população em subgrupos e o
estabelecimento de uma cesura
biológica entre uns e outros. Isso
é o que Foucault rotula com o
termo (aparentemente familiar)
“racismo”. (MBEMBE, Achille.
Necropolítica. São Paulo: N-1
edições, 2018)

Este biopoder, exercido pelo Estado,


personificado nas figuras dos Capitães do
Mato, causa um verdadeiro genocídio da
população brasileira marginalizada. Quando
agentes oficiais possuem o poder sobre a vida

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e a morte, independentemente da existência da
Lei, o que temos é uma política da morte.
Quem determina quem pode viver ou morrer?
No Brasil, devido a séculos de existência de
uma Mentalidade Colonizada, forjada com
sangue e perversidade, veremos que as
oligarquias inculcaram em uma grande parte da
população a ideia de que justiciamento é
sinônimo de justiça. E, independentemente da
inexistência da pena de morte em nosso código
penal e Constituição, seguimos aceitando as
chacinas em operações policiais realizadas nas
periferias brasileiras.
Neste sentido, para dizer aquilo que é
preciso e para esclarecer como uma
mentalidade perversa foi se moldando ao longo
dos séculos, não nos limitaremos a uma
análise genealógica. Por isso, para fazer uma
“filosofia a marteladas” (DELEUZE, Nietzsche e
a Filosofia), também utilizaremos a Parresia,
para que possamos dizer aquilo que é preciso
ser dito de maneira clara e objetiva.
Pouco antes de sua morte, em 1984,
Foucault ministrou suas últimas aulas no
College de France com o título de “A coragem
da verdade”. Nessas aulas Foucault abordou,
com seu método genealógico, a história
daqueles filósofos que, ao longo do tempo,
ousaram dizer a verdade mesmo que essa

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verdade causasse perigo à suas vidas. Esses


filósofos são chamados de Parresiastas.
O filósofo Parresiasta não é aquele que
fala para agradar a plateia, não é aquele que
busca, através da retórica, aprovar seus
argumentos. O Parresiasta é aquele que vive a
sua verdade, independente do tempo e da
situação a que esteja submetido. É o caso, por
exemplo, de Diógenes de Sinopa, que viveu
entre os séculos III e II A.C.. Certa vez,
Alexandre o Grande, que queria adquirir seu
conhecimento, ofereceu-lhe o mundo.
Diógenes então diz: “apenas quero que saia da
minha frente, pois me tapa o Sol”. Assim,
Diógenes demonstra que não estava
interessado no poder, nas riquezas ou na
aceitação, por isso diz o que sente sem medo
da punição a que poderia ser submetido.
Sócrates também é outro exemplo de
Parresiasta. O filósofo defendia a ideia de que
tudo pode ser questionado e ensinava os
jovens atenienses a adotarem uma postura
crítica e questionadora. Por sua ironia e
maiêutica, Sócrates, acusado de corromper a
juventude, é sentenciado à morte por ingestão
de veneno. Porém, lhe é dada a chance de
renegar seus ensinamentos e escapar de sua
pena. Mas, mesmo diante de sua morte por
ingestão de cicuta o filósofo não se abala e
defende suas ideias, defende sua crítica,

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demonstrando que aquele que acredita no que
diz não fala somente da boca para fora: ele
vive a sua verdade.
É também de Sócrates (transcrita por
Platão) a alegoria que demonstra a ignorância
como escuridão. A caverna de Platão nada
mais é que uma metáfora que demonstra que
aqueles que vivem nas sombras da ignorância
agarram se às suas verdades e não gostam
daqueles que incomodam (iluminam) as suas
ignorâncias. Para Sócrates, o filósofo deveria
ser como a mosca que pica o cavalo,
incomodado o cavalo segue adiante. Da
mesma maneira, o filósofo não deve servir para
tornar cômoda a vida em sociedade. Ao invés
disso, o papel do filósofo é incomodar,
apresentando seus problemas para que a
sociedade possa encontrar soluções. Aquele
que está acomodado não sente as cadeias que
o impedem de seguir adiante e, ao contrário,
uma sociedade acomodada, tende a regredir
para um passado inexistente e a uma crença
de que tempos passados eram melhores do
que o presente.
Na Coragem da Verdade Foucault
deixa claro que quanto mais autoritário o
regime, maior perigo ao parresiasta. Assim, os
tiranos não são apenas opositores, mas sim
verdadeiros inimigos do dizer verdadeiro.
Tiranos não aceitam críticas e se apresentam

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como únicos detentores do poder e da verdade.


Logo, aqueles que demonstram as falhas do
sistema de seu governo são vistos inimigos:

“Para que haja parresia é preciso


que, dizendo a verdade, se abra,
se instaure e se enfrente o risco
de ferir o outro, de deixá-lo com
raiva e de suscitar de sua parte
algumas condutas que podem ir
até a mais extrema violência”.
(FOUCAULT, M. A Coragem da
Verdade: O Governo de Si e dos
Outros II.).

Assim, o filósofo Parresiasta assume o


papel de causar o incomodo, ou seja, assume o
papel de dizer e demonstrar aquilo que
ninguém tem coragem de falar que vê. É neste
sentido que abrimos espaço para o
questionamento parresiasta da nossa
sociedade: o que Sócrates, Diógenes e
Foucault diriam ao observar nossa sociedade
contemporânea?
Seria muita prepotência saber com
certeza o que esses gênios do pensamento
diriam, mas, um filósofo seguidor da Parresia,
não poderia deixar de perceber o culto à
ignorância e ao enriquecimento material; o
desejo da violência como forma de vingança; o

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uso da religião como forma de enriquecimento
pessoal de pastores e a futilidade de uma
sociedade que vive das aparências. Enquanto
falsos cristãos se apoiam na tortura, uma
massa de obtusos seguiu, mugindo, um líder
que faria Hitler e Mussolini gargalhar.
Orgulhosos de suas ignorâncias mergulham
direto nos mais profundos precipícios,
arrastando junto a possibilidade de construção
de uma sociedade melhor.
O mundo precisa dos parresiastas, pois
são eles que dizem aquilo que é preciso diante
das situações mais complicadas. Eles não
ligam para as regras ou para o status quo. E,
são esses atos de coragem que empurram a
raça humana para frente (Como diria o escritor
americano Jack Kerouack em On The Road).
Em tempos sombrios esses filósofos se situam
como portadores de uma chama capaz de
iluminar o caminho em meio às trevas e a
escuridão. E a História demonstra que, mesmo
diante das sombras, existem aqueles que
possuem a coragem de enxergar. Mais ainda:
falam aquilo que precisa
Eis que, os verdadeiros filósofos não
são demagogos: Não buscam agradar (como
os sofistas que se julgavam sábios e
dominavam a arte da retórica para convencer
os atenienses de que suas vontades e
verdades pessoais estavam acima dos

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interesses da sociedade). Ao contrário, o


verdadeiro filósofo é aquele que,
independentemente do risco pessoal, alerta a
sociedade que o abismo está a apenas um
passo. Mas, enxergar o abismo e alertar a
sociedade do perigo não significa
necessariamente que exista um desvio que
seja um caminho mais seguro para o filósofo.
Ao contrário, uma massa de ignorantes tende a
empurrar os filósofos no abismo e, mesmo que
caiam junto, ainda vão rir de suas próprias
desgraças.

Deleuze e os Conceitos

Deleuze é outro filósofo francês que


utilizaremos como referencial metodológico na
construção deste livro. Nasceu em Paris em
1925, mesma cidade onde faleceu em 1995.
Era amigo de Foucault, embora não tenham
trabalhado juntos. Sua contribuição para a
filosofia é imensa, mas para iniciar podemos
citar sua tese de que a função da filosofia é a
criação de conceitos.
No livro “O que é filosofia”, escrito em
parceria com Felix Guattari, Deleuze abordou o
tema da criação conceitual como característica
própria da filosofia, explica o que é um conceito
e a relação entre os conceitos e os filósofos.

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Segundo Deleuze, a filosofia é a arte de formar,
de inventar, de criar conceitos.
Mas, antes de qualquer coisa, o que
seria um conceito? A explicação não é simples
e não se trata, simplesmente, de seguir o
sentido da origem latina da palavra (conceptus,
do verbo concipere, significa "conter
completamente", "formar dentro de si”). O
Conceito, segundo Deleuze, não contém
completamente toda a verdade e não se fecha
em si mesmo. Da mesma maneira, os
conceitos aqui apresentados não representam
verdades absolutas e não estão de maneira
alguma acabados. Pelo contrário, são
construções que estarão inacabadas, pois não
buscam ser totalizantes, embora busquem
forma e sentido.
O Conceito, segundo Deleuze, seria,
praticamente, como aquilo que o filósofo cria
para explicar o que antes era “indizível”. Por
isso são os conceitos que movimentam a
Filosofia, transformando o que era estático e
cristalizado em algo móvel e compreensível.
Para Deleuze os conceitos também surgem
para ajudar a solucionar problemas:

Todo conceito remete a um


problema, a problemas sem os
quais não teria sentido, e que só
podem ser isolados ou

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compreendidos na medida de sua


solução (DELEUZE, G.;
GUATTARI. O que é a filosofia? p.
25)

Os conceitos que criaremos nesse livro


servirão para elucidar diversos problemas
estruturais e que parecem endêmicos e
cristalizados de nosso país. Problemas esses
que, de tão naturalizados, parecem já fazer
parte de nosso cotidiano, como uma
normalidade insana. Portanto, não será apenas
a criação de conceitos por si, ou para satisfazer
egos academicistas, mas sim a criação de
conceitos para a compreensão de problemas
que precisam ser resolvidos. E são problemas
que nunca serão resolvidos sem que a
população reconheça as raízes históricas que
os sustentam.
Sendo assim, são os conceitos criados
pela filosofia que nos ajudam a compreender o
presente. Mais que isso, os conceitos nos
ajudam a questionar o stabilishment e assim
nos apresentam perspectivas de futuro. São os
conceitos que explicam as ideias dos filósofos,
portanto o verdadeiro filósofo deve criar seus
conceitos.
Claro que não se trata de uma tarefa
fácil: para criar conceitos o filósofo deve ir além
do filosofar espontâneo e mergulhar, hora no

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caos, hora na filosofia sistemática. Porém, não
pode se afogar nem no caos e nem no
academiscimo exagerado da filosofia
sistemática. No caos está o inexplicado, aquilo
que merece ser objeto de atenção. Na
sistematização está o método de extrair o
conceito do indizível e transformá-lo em
conceito compreensível. Porém, a
sistematização exagerada produz textos
técnicos e de difícil acesso para a maior parte
das pessoas.
Portanto, este texto não será
totalmente caótico nem totalmente tecnicista,
uma vez que trata de conceitos que devem ser
compreendidos pela maior parte da população.
Também não será um exemplo de prepotência
e erudição, uma vez que buscaremos uma
linguagem simples, para que este texto não
fique restrito aos círculos acadêmicos.
Ainda segundo Deleuze, os conceitos
se inter-relacionam com outros conceitos e não
são de maneira alguma estáticos. Ao contrário,
seu movimento é permanente e inerente à
própria filosofia. Também podemos dizer que
os conceitos nunca são completos, portanto,
são construções que vão se erguendo ao longo
dos anos. Por isso, em um aporte com o
método genealógico foucaultiano, utilizaremos
a História para a construção de nossos
conceitos.

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Mas, não utilizaremos a História como


uma simples ferramenta para a construção
conceitual. A História servirá como método
para evidenciar o Rizoma e para que os
conceitos se sustentem e evidenciem aquilo
que já é percebido, mas ainda não é
completamente visto. Mais ainda,
demonstraremos que a falta de conhecimento
Histórico causa distorções no presente e nos
empurram a um futuro sombrio.
Na obra “Mil Platôs” é apresentado o
conceito de Rizoma: o Rizoma seria um
sistema de raízes subterrâneas que possuem
alta complexidade e se espalham pelo solo,
tornando se extremamente difícil exterminar as
plantas com raízes rizomáticas. Da mesma
maneira, quando os conceitos filosóficos se
espalham como Rizomas pelo solo da filosofia
e, quanto mais complexos seus sistemas
rizomáticos, mais forte se torna o conceito
filosófico.

Mais uma vez, se vamos definir o


que significa o conceito de rizoma
para Deleuze e Guattari, é
importante evidenciar a diferença
entre o substantivo e o conceito.
Rizoma é uma raiz, mas não
aquela raiz padrão que
aprendemos a desenhar na

15
escola, trata-se de uma raiz que
tem um crescimento diferenciado,
polimorfo, ela cresce
horizontalmente, não tem uma
direção clara e definida.
(https://bityli.com/TC6Y7 /)

Precisaremos da multiplicidade
conceitual rizomática, uma vez que nossos
conceitos serão transpassados por diversos
outros e se conectarão na medida em que
houver prosseguimento das ideias.
Interconectados em suas complexidades,
nossos conceitos se complementam e por
vezes se destroem, mas de maneira que não
se limitem e que possam demonstrar as
origens dos “micros e macrofascismos”
nacionalistas brasileiros que de tão
cristalizados parecem obstáculos naturais.
O conceito de Rizoma Deleuziano nos
abre a possibilidade de ir além do objeto de
estudo específico do campo da História ou da
Filosofia e, neste sentido, demonstraremos
que, além do tecnicismo imposto pelo
academicismo, a História e a Filosofia não são
opostas, mas sim se complementam:

No coração de uma árvore, no


oco de uma raiz ou na axila de um
galho, um novo rizoma pode se

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formar. Ou então é um elemento


microscópico da árvore raiz, uma
radícula, que incita a produção de
um rizoma. A contabilidade e a
burocracia procedem por
decalques: elas podem, no
entanto, começar a brotar, a
lançar hastes de rizoma, como
num romance de Kafka.
(DELEUZE, G.; GUATTARI. Mil
platôs: capitalismo e
esquizofrenia.)

Porém, iremos além do Rizoma e


buscaremos as sementes de uma mentalidade,
elucidaremos suas origens, evidenciaremos os
troncos que sustentam as ideias atuais e
ramificaremos nas consequências. Além disso,
com a vontade de subverter a ordem
estabelecida, como uma erva daninha que
invade o território de uma plantação e impede o
crescimento de um cultivo, nossos conceitos
servirão como um instrumento de
desterritorialização do colonialismo e do
pensamento acadêmico limitado aos círculos
teóricos e buscará abrir brechas nos muros
cristalizados do pensamento das oligarquias
nacionais.
Assim, demonstraremos que nem todas
as flores são belas e frutos podem ser

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amargos, pois foram cultivados por meio de
uma história adubada com sangue de nosso
povo: “Ao contrário, nada é belo, nada é
amoroso, nada é político a não ser que sejam
arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o
adventício e o rizoma.” (DELEUZE, G.;
GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia.)

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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Mentalidade Colonizada

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É uma tarefa muito difícil, se não
impossível, compreender o presente sem
conhecer a História, pois toda realidade atual é
o resultado de um processo que molda o
presente com as formas do passado. Por isso,
podemos afirmar que a mentalidade brasileira
atual é o resultado de um processo histórico
cujas raízes estão fortemente fincadas no
período colonial. Ao longo da História do Brasil
Colônia são plantadas as sementes que
germinam nosso modo de pensar, assim, as
origens do conceito de Mentalidade Colonizada
são enraizadas e brotam ao longo da história,
mas começaram a ser cultivadas no período
Colonial.
Antes de prosseguir, precisamos
compreender e conceituar a Mentalidade
Colonizada como um tipo de falta de
perspectiva e desejo de desenvolvimento
nacional, pois o povo brasileiro (principalmente
as oligarquias e a classe média) não se vê
como habitante verdadeiro do país. Ao
contrário, o maior desejo é o enriquecimento
fácil para abandonar, o mais rápido possível a
colônia em direção à metrópole. Segundo uma
pesquisa realizada pelo instituto da Fundação
Getúlio Vargas (FGV) em 2021, 47% dos
jovens brasileiros desejam abandonar o país
por falta de perspectiva de futuro em um país
devastado por um governo neoliberal e neo

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fascista que governou o Brasil depois do Golpe


de 2016.
Esse desejo criou no povo brasileiro
uma falta de perspectiva de futuro como nação,
por isso, a Mentalidade Colonizada também
pode explicar a falta de planejamento e a busca
de políticas públicas que diminuam as
desigualdades sociais. A Mentalidade
Colonizada também nos ajuda a compreender
os motivos que levam as oligarquias nacionais
a preferirem políticas imediatistas em
detrimento da criação de planejamento de
desenvolvimento em longo prazo. Esta
mentalidade se enraizou tanto no pensamento
brasileiro que já faz parte até do inconsciente
coletivo, resultando em um modo de agir que,
consciente e inconscientemente, nos leva a
viver em um país que não consegue romper
com sua herança colonial.
Desta maneira, também podemos citar
a Mentalidade Colonizada como a responsável
pelo desapego de políticos, empresários e
parte da classe média, com as riquezas
nacionais e com o território brasileiro. A classe
média tem seu sonho de enriquecimento fácil
para então abandonar o país, da mesma
maneira que os colonos que vieram para o
Brasil não sonhavam com o desenvolvimento
de uma nação, mas sim com o enriquecimento
a qualquer custo:

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Nos idos de 1630, época em que
terminou de redigir o livro História
do Brazil, Frei Vicente do
Salvador, um franciscano que se
tornou o nosso primeiro
historiador, concluiu: “Nenhum
homem nesta terra é repúblico,
nem zela, ou trata do bem
comum, senão cada um do bem
particular”. (SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Sobre o autoritarismo
brasileiro p. 33)

Depois de séculos de individualismo,


de vontade de enriquecimento a qualquer custo
e do desejo de abandonar o país na primeira
oportunidade, veremos como a Mentalidade
Colonizada se enraizou no sistema de
educação pública, no sistema jurídico e
atrapalhou o desenvolvimento da Ciência e de
tecnologias nacionais.
Desta maneira, para reconhecer os
erros do presente que se moldaram ao longo
da História, buscaremos as raízes históricas
desta “Mentalidade Colonizada”, conceito que
fundamentaremos para demonstrar como o
racismo estrutural, a desigualdade social e a
educação pública brasileira são o reflexo de
uma mentalidade que vem sendo moldada há
séculos por grupos familiares que se mantém

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no poder por gerações. Esses grupos formam


as oligarquias brasileiras, que lutam de todas
as maneiras para perpetuar uma herança de
perversidade, exploração e sadismo que
mantém a maior parte da população em uma
condição análoga à escravidão.
Esta forma de escravidão moderna não
é percebida pela maior parte da população,
justamente porque são essas oligarquias, que
se mantém no poder há séculos, que
determinam o modo de funcionamento do
estado, da política e da educação pública
brasileira. E são justamente essas oligarquias
brasileiras que possuem o maior desejo de
abandonar o país rumo às metrópoles
“desenvolvidas”. Essas oligarquias estão
sempre dispostas a agradar as metrópoles,
fazendo suas vontades para que assim se
pareçam menos brasileiros e mais
estrangeiros. Para quem quiser saber como
são esses indivíduos, basta lembrar-se dos
sulistas que trabalhavam para os americanos
no filme Bacurau.
As oligarquias nacionais formam
verdadeiras castas que dominam o sistema
político, jurídico e midiático brasileiro. Estão
sempre presentes no poder executivo,
legislativo e judiciário, por isso determinam os
rumos políticos e educacionais do nosso país.
Esses grupos familiares possuem pouco

23
apreço à democracia e aos valores Iluministas,
pois tudo o que importa é a perpetuação do
poder e de seus privilégios. Por isso,
determinam os rumos da política econômica de
maneira sempre favorável às metrópoles,
gerando um atraso no desenvolvimento
industrial e científico de nosso país que sempre
permanece em uma condição de dependência.
A Mentalidade Colonizada inculca a
uma ideia de que somos um país pobre, porém,
se levássemos em conta todo o potencial de
recursos naturais de nosso país poderíamos
ser um dos países mais ricos do mundo.
Ajudaríamos a acabar com a fome mundial e
ainda conseguiríamos reduzir a tremenda
desigualdade social que hoje é uma das
maiores marcas de nosso país. Porém, para as
oligarquias é importante manter o país em uma
condição de submissão, o povo em condição
de miséria e as forças armadas, como cães
raivosos, sempre prontos a defender os
privilégios das oligarquias.

As origens do pensamento colonizado

Claro que podemos remeter a


Mentalidade Colonizada há outros tempos e
outros povos. Porém, por motivos
metodológicos e didáticos, limitaremos a
semeação de nosso conceito ao

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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

“descobrimento” e colonização do Brasil, já que


podemos situar as sementes da Mentalidade
Colonizada nos registros da formalização e da
tomada de posse pelos portugueses do
território que hoje é chamado de Brasil.
No registro do primeiro contato entre os
habitantes originais de nossa terra e os
portugueses já se apresentam traços do
pensamento que viria a germinar a Mentalidade
Colonizada. Os nativos recebem os
portugueses com presentes sem esperar nada
em troca, demonstrando que a ideia de
exploração de riquezas e recursos faz parte
pensamento Europeu e não de nossos
habitantes originais. Assim, a busca pelas
riquezas materiais é explicita na passagem da
carta de Caminha:

Até agora não pudemos saber se


há ouro ou prata nela, ou outra
coisa de metal, ou ferro; nem lha
vimos. Contudo a terra em si é de
muito bons ares frescos e
temperados como os de Entre-
Douro-e-Minho, porque neste
tempo d'agora assim os
achávamos como os de lá. Águas
são muitas; infinitas. Em tal
maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á

25
nela tudo; por causa das águas
que tem! (CAMINHA, Carta de
descobrimento)

A necessidade de se encontrar ouro,


prata ou pedras preciosas é própria do
metalismo existente no período do
descobrimento, além disso, devido ao
eurocentrismo, os portugueses não conseguem
enxergar a riqueza não material de um povo
nativo que vivia integrado na natureza. Os
portugueses são fruto da soberba bíblica e por
isso se acham o ápice da Criação.
O desejo de se encontrar ouro ou
pedras preciosas já se apresenta de maneira
muito clara no registro do descobrimento: o
primeiro registro oficial português sobre nosso
território já demonstra que o pensamento não
era um plano de desenvolvimento ou de
interação pacífica e amigável com os povos
que aqui viviam, mas sim a criação de um
documento oficial de descobrimento para
posterior de exploração. Ou seja, essa é a
semente da Mentalidade Colonizada.
Podemos dizer que o eurocentrismo faz
o europeu se encarar como “humano superior”,
logo os povos encontrados no novo mundo são
vistos como inferiores e são desumanizados
por europeus que se julgam o ápice da criação.
Esse pensamento justificou a exploração e a

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dizimação dos povos nativos do novo mundo


por europeus famintos de ouro, pedras
preciosas e qualquer tipo de matéria prima que
pudesse “gerar riqueza” para os exploradores.
A falta de “riquezas aparentes” faz com
que o início da colonização brasileira não
aconteça de maneira imediata. Claro que existe
o ciclo de exploração do Pau Brasil, mas
somente após a descoberta de ouro é que o
envolvimento Português com a colonização do
novo território se intensificará. Assim, situamos
o início da colonização portuguesa do nosso
território na década de 1530. E a instalação de
instrumentos jurídicos de dominação no final do
século XVI e não imediatamente após a
descoberta.
É importante ressaltar que o principal
símbolo da justiça portuguesa durante todo o
século XVI era o pelourinho. Erguido no centro
das vilas e cidades, o pelourinho servia como
símbolo da dominação e referência de punição
para aqueles que desrespeitassem o domínio e
o poder português. Os açoites serviam como
demonstrações de força e para reforçar a ideia
de que não seriam toleradas ações que fossem
contra a vontade da metrópole portuguesa:

O pelourinho, um símbolo de
justiça e de autoridade real,
erguia-se no centro da maior parte

27
das cidades portuguesas do
século XVI. À sua sombra as
autoridades civis liam
proclamações e puniam
criminosos. Sua localização bem
no centro da comunidade ilustrava
a crença ibérica de que a
administração da justiça era o
atributo mais importante do
governo. (SCHWARTZ, Stuart.
Burocracia e sociedade no Brasil
colonial: a Suprema. Corte da
Bahia e seus Juízes: 1609-1751,
pg 3.)

Podemos assim dizer que, sob jugo


português, nosso país germina sob a égide da
punição física e pela busca da riqueza
imediata. O planejamento da colônia se
desenvolve em torno do escoamento das
riquezas naturais e não como um projeto de
fundação de uma nação e muito menos como
uma integração entre colonos e os habitantes
originais de nosso território. Tanto é que o
processo de povoamento português se deu de
acordo com a dinâmica mineradora e da
exploração de recursos naturais. Cidades
surgiam e desapareciam em função da
mineração e da exploração desses recursos.
Caminhos eram abertos para o escoamento

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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

das “riquezas” e não visando o


desenvolvimento de uma soberania ou mesmo
de uma infraestrutura nacional. As cidades que
se desenvolviam, diretamente devido a zonas
de mineração e exploração de recursos
naturais, importavam a cultura europeia para
que seus senhores se sentissem mais
“próximos de casa”.
Assim, não foi valorizada a cultura e a
capacidade de adaptação dos nativos ao meio
ambiente. Ao contrário, os nativos foram vistos
pelos portugueses como selvagens atrasados e
como seres que não mereciam respeito.
Porém, diferentemente dos europeus, nossos
habitantes nativos sabiam encontrar o equilíbrio
entre a natureza e o homem. Claro que
moldavam a ambiente, mas nunca o suficiente
a ponto de desequilibrar totalmente o
ecossistema. Nossos povos nativos eram
formadores de florestas, caçadores, coletores e
construtores de um habitat onde se era
possível viver e ser livre:

"Para os que chegavam, o mundo


em que entravam era a arena dos
seus ganhos, em ouro e glórias.
Para os índios que ali estavam,
nus na praia, o mundo era um
luxo de se viver. Este foi o
encontro fatal que ali se dera. Ao

29
longo das praias brasileiras de
1500, se defrontaram, pasmos de
se verem uns aos outros tal qual
eram, a selvageria e a civilização.
Suas concepções, não só
diferentes mas opostas, do
mundo, da vida, da morte, do
amor, se chocaram cruamente.
Os navegantes, barbudos,
hirsutos, fedentos, escalavrados
de feridas de escorbuto, olhavam
o que parecia ser a inocência e a
beleza encarnadas. Os índios,
esplêndidos de vigor e de beleza,
viam,ainda mais pasmos, aqueles
seres que saíam do mar
(RIBEIRO, Darcy. O povo
brasileiro. São Paulo: Companhia
de Bolso, 2006.)

Aqueles que aqui viviam antes da


tomada pelos portugueses construíram suas
etnias de centenas de gerações em um
ambiente onde era possível viver e manter seu
grupo. Não havia escassez de alimentos e o
ecossistema era suficiente para manter uma
população nativa de milhões de habitantes
(segundo as estimativas atuais uma vez que
não existiu um senso, podemos apenas estimar
a real quantidade de habitantes nativos). E

30
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

havia espaço: quando o alimento escasseava


bastava desmontar seu assentamento e partir
em busca de uma nova região habitável.
Havia sim guerras, disputas e
sofrimento. Porém, era uma guerra ritual e
cerimonial. O bravo sentia orgulho ao ser
devorado depois de vencido: Seu sangue
correria nas veias do inimigo. A vida era ligada
ao ambiente, logo existia o orgulho de se
pertencer ao lugar onde se habitava. Mesmo
depois da morte, os fortes continuavam
existindo na alma, na carne e no lugar.
Natureza e humanidade se misturavam
naqueles que se viam como verdadeiros filhos
da terra:

Claro que tinham suas lutas, suas


guerras. Mas todas concatenadas,
como prélios, em que se
exerciam, valentes. Um guerreiro
lutava, bravo, para fazer
prisioneiros, pela glória de
alcançar um novo nome e uma
nova marca tatuada cativando
inimigos. Também servia para
ofertá-lo numa festança em que
centenas de pessoas o comeriam
convertido em paçoca, num ato
solene de comunhão, para
absorver sua valentia, que nos

31
seus corpos continuaria viva.
(RIBEIRO, Darcy. O povo
brasileiro. São Paulo: Companhia
de Bolso, 2006.)

Já os colonos se viam como


estrangeiros: sua vontade de retornar à
metrópole com riquezas exploradas na colônia
era o principal motivo que levava os
exploradores a embarcarem na jornada rumo
ao novo mundo. Assim, não estabeleciam
laços afetivos com a terra, mas sim nutriam o
desejo de explorar e enriquecer. Desejo esse
que justificava qualquer tipo de atitude tomada
no sentido da exploração: morte, tortura,
estupro e destruição de aldeias. Tudo era
justificável se houvesse recursos e riquezas
disponíveis.
É assim que se iniciam as bandeiras de
exploração. Os colonizadores buscavam abrir
caminhos em meio a um território novo e
desconhecido. Mas, o grande motivo que
levava os colonos a explorarem esses novos
territórios era a busca por riquezas. Aquilo que
fosse encontrado no caminho, que pudesse
servir para obtenção de algum lucro, era
explorado. Não importa se fosse ouro, madeira,
pedras preciosas ou vidas de nativos.
Podemos ainda lembrar que a
exploração portuguesa era notadamente uma

32
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

empreitada masculina. Logo, a miscigenação


entre nativos e portugueses não se estabelece
de maneira totalmente consentida. Os filhos
mestiços são filhos que nascem do estupro das
nativas pegas a “laço”. Claro que temos o
casamento consensual entre portugueses e
nativos, principalmente para fortalecer alianças
entre os dois povos. Mas, isso ocorre em uma
escala muito menor do que os estupros que
geraram a mestiçagem.

Armados de chuços de ferro e de


arcabuzes tonitroantes, eles se
sabiam e se sentiam a flor da
criação. Seu desejo, obsessivo,
era multiplicar-se nos ventres das
índias e pôr suas pernas e braços
a seu serviço, para plantar e
colher suas roças, para caçar e
pescar o que comiam. Os homens
serviam principalmente para
tombar e juntar paus- de-tinta ou
para produzir outra mercadoria
para seu lucro e bem-estar. Esses
índios cativos, condenados à
tristeza mais vil, eram também os
provedores de suas alegrias,
sobretudo as mulheres, de sexo
bom de fornicar, de braço bom de
trabalhar, de ventre fecundo para

33
prenhar. A vontade mais
veemente daqueles herói d'além-
mar era exercer-se sobre aquela
gente vivente como seus duros
senhores. Sua vocação era a de
autoridades de mando e cutelo
sobre bichos e matos e gentes,
nas imensidades de terras de que
iam se apropriando em nome de
Deus e da Lei (RIBEIRO, Darcy.
O povo brasileiro. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2006.)

O explorador português podia até ser


devoto do cristianismo. Mas, essa devoção e a
ética cristã apenas se aplicavam a aqueles que
se assemelhassem aos habitantes da
metrópole. Aos nativos e mestiços restava o fio
da espada e o peso da cruz utilizada para
dizimar toda e qualquer resistência ao
movimento de exploração. Para tanto, os
portugueses se valiam de um processo de
desumanização em que nativos passam a ser
vistos como meros animais desprovidos de
alma. A conversão ao catolicismo relegava os
nativos a um tipo de humanos de segunda
categoria, de modo que realizavam todos os
serviços desumanos que os colonizadores lhes
impunham. Estes trabalhos iam desde o cultivo
de roças até a participação como soldados em

34
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

batalhas para exterminar outros povos nativos


que não se submetiam ao domínio português.
As guerras de extermínio dizimaram
várias etnias que resistiram à dominação
portuguesa. Segundo estudos recentes, mais
de 70% da população original de nosso país foi
exterminada desde a chegada dos portugueses
em nosso território. Entre elas podemos citar os
Tupinambás e os “Tapuios”, designação dada
pelos portugueses a todos aqueles nativos que
resistiam à colonização (A Presença Indígena
na Formação do Brasil –pg 22). Mas, não se
tratou apenas de tradicionais guerras de
extermínio, as doenças trazidas pelos
portugueses também serviram como um fator
decisivo para dizimar a população nativa:

No mesmo ano de 1562, por


justos juízos de Deus, sobreveio
uma grande doença aos índios e
escravos dos portugueses, e com
isto grande fome, em que morreu
muita gente, e dos que ficavam
vivos muitos se vendiam e se iam
meter por casa dos portugueses a
se fazer escravos, vendendo-se
por um prato de farinha, e outros
diziam, que lhes pusessem
ferretes, que queriam ser
escravos: foi tão grande a morte

35
que deu neste gentio, que se
dizia, que entre escravos e índios
forros morreriam 30.000 no
espaço de 2 ou 3 meses
ANCHIETA, Padre Joseph, 1933.
Cartas, informações, fragmentos
historicos e sermões p. 356).

Até a chegada dos exploradores


portugueses não havia aqui a vergonha: havia
o orgulho de ser filho da Terra e de ser forte.
Laços familiares construíam o sentimento de
pertencer a um lugar e a amar sua terra ao
ponto de não se distinguir ser natureza ou
outro. Os estrangeiros chegam, olham com
olhos de exploradores, não de construtores,
eles não querem habitar, querem sim
enriquecer e ir embora. Eles não pertencem a
esse lugar: desejam retornar à metrópole, por
isso, pouco se importam em matar, devastar,
roubar ou estuprar.
Assim, os colonizadores não viam
nenhuma imoralidade em utilizar escravos para
a obtenção das riquezas, fossem escravos
nativos ou africanos. Da mesma maneira, os
colonos não viam nenhuma imoralidade em
estuprar mulheres e crianças nativas para gerar
filhos mestiços que poderiam trabalhar na terra
colonizada.

36
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Houve sim revoltas dos nativos que


não aceitavam um tipo de trabalho e uma
crença que não lhes fazia sentido, mas essa
resistência era esmagada com o extermínio.
Além da morte pela espada, as doenças
trazidas pelos portugueses começam a dizimar
a população e a rarear a mão de obra nativa
empreendida na exploração da colônia.
Assim, germinamos como país sob um
processo de genocídio que possui
consequências até os dias atuais. Os milhões
de nativos dizimados pelas guerras de
extermínio e pelas doenças criam um
verdadeiro cemitério indígena espalhado sob
nossos pés. Ainda assim, não acertamos as
contas com o passado e ainda, atualmente, a
mentalidade de que os indígenas atrapalham o
desenvolvimento persiste numa parcela da
população que é ignorante da História dos
verdadeiros donos da nossa terra.
Por isso podemos dizer que somos
forjados no ferro das correntes dos escravos,
na cruz que catequizou e converteu os nativos
a uma crença que não era deles e na espada
que assassinou aqueles que resistiam. O
sangue dos nativos e dos escravos africanos é
o adubo que cultivou e fez crescer as grandes
cidades. Em cada pedaço desse chão existem
manchas de sangue de extermínio e da

37
exploração do trabalho escravo, seja ele nativo
ou negro.

A Mentalidade Colonizada e a Escravidão

O navio negreiro é um dos símbolos da


desumanidade do projeto de colonização de
nosso país. Amontoados em escuros porões,
sem as condições mínimas de higiene,
centenas de pessoas foram transportadas em
navios da morte. Para muitos é preferível se
jogar ao mar e morrer afogado do que suportar
a tortura e sofrimento de ser retirado de sua
terra e transportados de maneira tão cruel e
desumana. A viagem é tão terrível que são
criadas casas de recuperação nos portos de
chegada. Essas casas servem para
proporcionar recuperação após meses de
transporte em navios negreiros. Após se
recuperarem e ganharem peso, são vendidos
para os senhores de engenhos ávidos por
lucros.
E assim, após serem comprados como
se fossem simples animais, seguiram para a
“moenda de gente” milhões de escravizados
vindos da África. Seu sangue e suor foram
usados para a obtenção de lucros para os
senhores de engenho e fizeram toda a sorte de
trabalhos que existiam na colônia. Esses
escravizados foram esmagados pelos moinhos

38
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

e por diversas práticas de torturas que fariam o


diabo dos cristãos sentir inveja da perversidade
e crueldade que os portugueses utilizavam
para “disciplinar” seus escravizados. Milhões
de seres humanos torturados e transportados
para o Brasil, além disso, fomos o último país a
abolir a escravidão:

Lembremos que o Brasil foi o


último país a abolir tal forma de
trabalho forçado nas Américas —
depois de Estados Unidos, Porto
Rico e Cuba —, tendo recebido
5,85 milhões de africanos num
total de 12,52 milhões de pessoas
embarcadas e que foram retiradas
compulsoriamente de seu
continente para essa imensa
diáspora atlântica; a maior da
modernidade. Se considerarmos
apenas os desembarcados e
sobreviventes, o total, segundo o
site Slave Voyages, foi de 10,7
milhões, dos quais 4,8 milhões
chegaram ao Brasil. Por isso
mesmo, em lugar do idílio,
escravizados conheceram por
aqui toda forma de violência, e de
parte a parte: enquanto os

39
senhores mantinham o controle
na base da força e da sevícia, os
cativos e cativas respondiam à
violência com todo tipo de
rebelião. (SCHWARCZ, Lilia
Moritz. Sobre o autoritarismo
brasileiro, p.18.)

Logo, quais tipos de sentimentos esses


escravizados nutrem? Claro que não podemos
falar de amor, uma vez que são submetidos a
um verdadeiro inferno dentro e fora dos navios
negreiros. O extermínio da população negra já
começa aí. Aqueles que se revoltavam contra
as condições desumanas a que foram
submetidos durante o transporte eram jogados
ao mar ou privados de água e alimentos no
porão do navio negreiro. Logo, só resta o
sentimento de dor e revolta por serem
submetidos a uma situação tão desumana. O
Banzo é o sentimento daquele que perdeu
todas as suas esperanças de uma vida digna.
Deixa de se alimentar e vai enfraquecendo até
morrer de inanição.
Já os senhores de engenhos e
donatários das terras que compram os
escravizados só nutrem o sentimento
econômico com os territórios da colônia. Sua
paixão é pelo lucro, não pelo desenvolvimento
de infraestruturas, a não ser que estas sirvam

40
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

para aumentar seus ganhos. Quando muito,


esses territórios buscam manter a aparência de
cidade europeia muito mais por uma questão
da vontade de retornar à metrópole do que pela
vontade de desenvolvimento do território
brasileiro. Mas, essa aparência é decadente,
uma vez que não existiam aqui as ferramentas
de manutenção bem como não existiam os
mesmos tipos de materiais que existiam na
metrópole.
Os engenhos de cana se espalharam
pelo Nordeste e utilizaram largamente a mão
de obra de escravizados africanos para
produzir a riqueza para seus senhores e os
sofrimentos para seus trabalhadores. Foram
moendas de gente, espremendo seres
humanos até a última gota de sangue para
produzir a droga que era a sensação do
momento na Europa: o açúcar.
O engenho produziu no Brasil o açúcar
com o amargo sabor do sangue dos
escravizados. Braços e pernas esmagados
faziam parte da rotina diária dos engenhos,
havendo, inclusive, facões próximos das
moendas para deceparem braços e pernas dos
escravos que, derrubados pelo cansaço da
exploração de sua mão de obra, dormissem
enquanto colocavam a cana nas moendas:

41
O feitor da moenda chama a seu
tempo as escravas, recebe a
canna, & a manda vir & meter
bem nos eixos, & tirar o bagaço,
attentando que as negras não
durmão, pelo perigo que ha de
ficarem prezas & moidas se lhes
não cortarem as mãos quando
isto succeda (ANTONIL, André
João. Cultura e opulência do
Brazil p. 25.)

O açúcar, produzido com sangue,


carne e ossos triturados, corrompia o paladar
dos europeus enquanto enchia os bolsos dos
senhores dos engenhos. Antonil, em sua visão,
não via mal algum em amputar os braços dos
escravizados para que a produção não
cessasse. Esse sentimento de exploração, que
extrai a última gota de sangue e suor, persiste
até hoje, permeando as oligarquias nacionais
com a crença de que tudo é permitido em nome
do lucro. Consequentemente, os senhores dos
engenhos não hesitavam em açoitar homens,
crianças e até mulheres grávidas:

Aos feitores de nenhuma maneira


se deve consentir o dar couces,
principalmente nas barrigas das
mulheres que andão pejadas,

42
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

nem dar com pao nos escravos,


porque na colera se não medem
os golpes, & podem ferir
mortalmente na cabeça a hum
escravo de muito prestimo que val
muito dinheiro & perdello.
Reprehendellos & chegar-lhes
com hum cipó às costas com
algumas varancadas, he o que se
lhes pode & deve permittir para
ensino. Prender os fugitivos & os
que brigarão com ferida ou se
embebedàrão, para que o senhor
os mande castigar como
merecem, he diligencia digna de
louvor. (ANTONIL, André João.
Cultura e opulência do Brazil p.
25)

A respeito dos feitores, instruções


como as de Antonil refletem uma realidade
cruel. Por exemplo, ele aconselha que os
feitores não deem coices, principalmente nas
barrigas das mulheres grávidas, devido ao risco
de causar ferimentos graves. Embora Antonil
não tenha objeções a tais práticas, é
importante contextualizar seu ponto de vista à
luz das normas éticas e humanitárias atuais.
No mesmo contexto, a contradição
surge entre a devoção religiosa e a exploração.

43
Aqueles que frequentavam missas assediavam
e estupravam escravizadas "atraentes",
gerando filhos mestiços que eram tratados
como animais domésticos dentro das Casas
Grandes. Esses filhos, muitas vezes, eram
recrutados como Capitães do Mato,
encarregados de perseguir e punir os
escravizados em fuga.
Para controlar revoltas e manifestações
de raiva, os proprietários de escravizados
adotavam diversas técnicas de tortura. Desde
chicoteamentos até restrições severas na
circulação e na alimentação dos escravos, a
opressão estava sempre presente. Apesar
disso, a resistência era iminente, uma vez que
aqueles arrancados de suas terras e forçados a
trabalhar em um ambiente estranho estavam
prontos para reagir. É crucial distinguir entre a
resistência dos oprimidos e a violência dos
opressores.
Nesse contexto, surge o Capitão do
Mato, recrutado entre os próprios escravizados
e transformado em um instrumento de
repressão. Desassociá-lo dos oprimidos e
conectá-lo aos opressores, é uma estratégia
comum da Mentalidade Colonizada. Esse
processo, discutido por Paulo Freire em
"Pedagogia do Oprimido", revela o desejo do
oprimido de se tornar igual ao opressor,

44
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

resultando na perda de identificação com sua


própria comunidade.
A correlação entre o Capitão do Mato e
os senhores de engenho reflete um aspecto
marcante da Mentalidade Colonizada: o
explorado que não se vê como explorado, mas
sim como explorador. Essa mentalidade é a
raiz da árvore genealógica da Mentalidade
Colonizada, cujos efeitos persistem na
violência policial atual contra negros, pobres e
marginalizados.
As origens do pensamento racista,
aliadas à banalidade do mal e às crueldades da
escravidão, resultam em um genocídio
contemporâneo. Estatísticas revelam que a
violência atinge principalmente negros,
evidenciando uma situação de desigualdade de
direitos e violência direcionada.
Portanto, é crucial reconhecer a história
e suas ramificações atuais, pois o passado
continua a influenciar as dinâmicas sociais,
raciais e econômicas no Brasil. A busca por
justiça e equidade requer uma compreensão
profunda e uma mudança sistêmica para
superar as sequelas desse legado.
O Capitão do Mato, amansado pela
banalidade do mal, que está acostumado a
participar ativamente como instrumento de
punição de sua própria gente é o exemplo mais
claro da ideia de que é papel das polícias

45
torturarem e matarem para promoverem a
justiçamento a qualquer preço. Mas, é uma
justiça de quem? Uma justiça que carrega o
peso da perversidade e da tortura como algo
normal? Uma justiça que serve para manter os
privilégios das oligarquias? E aqui devemos
lembrar que, segundo a Constituição Federal e
o Código Penal brasileiro, não existe pena de
morte no Brasil. Logo, agentes do estado que
praticam o extermínio em periferias são tão
criminosos quanto os nazistas que foram
julgados pelo tribunal de Nuremberg.
Por isso, devemos ressaltar que a
origem do pensamento racista, junto com a
banalidade do mal e as perversidades
herdadas do período da escravidão, produz
ainda hoje um genocídio, uma vez que a
imensa maioria das vítimas da violência são os
negros:

Se elegermos apenas o ano de


2012, quando um pouco mais de
56 mil pessoas foram
assassinadas no Brasil, desse
total 30 mil eram jovens entre
quinze e 29 anos, e desses, 77%
eram negros. Em resumo, os
números traduzem condições
muito desiguais de acesso e
manutenção de direitos, dados de

46
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

violência elevados e com alvo


claro. Revelam mais: padrões de
mortandade, que evocam
questões históricas de longa,
média e curta duração.
Para que se tenha uma melhor
proporção, basta verificar que
esses dados são compatíveis com
as taxas de homicídios
perpetrados durante várias
guerras civis contemporâneas. No
conflito da Síria, que abate o país
desde 2011, foram 60 mil mortes
por ano; na Guerra do Iêmen, que
se iniciou em 2015, contabilizam-
se cerca de 25 mil homicídios
anuais; no Afeganistão, onde os
conflitos começaram em 1978, a
média é de 50 mil por ano. Tais
taxas correspondem à ordem de
grandeza da “guerra” brasileira, o
que nos autoriza a falar num
“genocídio” de jovens negros.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o
autoritarismo brasileiro, p27)

A Mentalidade Colonizada
desempenha um papel crucial na perpetuação
do racismo estrutural no Brasil, bem como na
trágica realidade do genocídio da população

47
negra, que continua a ser vítima de um sistema
que ainda não confrontou adequadamente o
seu passado. Além de não ter havido uma
integração significativa dos escravizados na
sociedade, a qual era profundamente racista e
somente aboliu gradualmente a escravidão, a
violência e a perversidade inerentes à
sociedade escravocrata persistem até hoje.
Assim, nossas práticas de punição e
extermínio, enraizadas em um passado
sombrio, permanecem presentes na nossa
sociedade atual.
As sombras se tornam ainda mais
densas quando as elites oligárquicas incutem
na população a ideia de que um retorno ao
passado, onde os direitos trabalhistas eram
escassos, seria a melhor alternativa para gerar
empregos. No entanto, esse desejo de reviver
um passado escravocrata não passa de um
anseio por uma Era em que os empregadores
podiam explorar os trabalhadores até a
exaustão, transformando-os em meras fontes
de lucro para a elite, enquanto gerava miséria
para o povo.
É crucial reconhecer que os direitos
trabalhistas não foram generosamente
concedidos pelas elites oligárquicas; eles foram
conquistados por meio de lutas árduas. A ânsia
por acabar com esses direitos deve servir como
um alerta à população. Enquanto a

48
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Mentalidade Colonizada prevalecer,


alimentando a cobiça das oligarquias por uma
exploração implacável de vidas humanas em
busca de lucros cada vez maiores, nossos
direitos básicos permanecerão vulneráveis.
As leis que supostamente aboliram a
escravidão frequentemente caíram no vazio,
perpetuando a prática escravocrata e racista. A
Lei Eusébio de Queiroz (1850), que proibia o
tráfico de escravos, não impediu que os
senhores de escravos continuassem a
aumentar seu contingente de escravizados. A
Lei do Ventre Livre (1871) não impediu que os
filhos de escravizados crescessem nas
senzalas, ainda subjugados a trabalhos
impostos pelos senhores. A Lei dos
Sexagenários (1885) pouco fez para libertar
escravizados, considerando as péssimas
condições de trabalho que frequentemente os
levavam à morte antes dos 60 anos.
A promulgação da Lei Áurea em 1888
não veio acompanhada de políticas eficazes de
integração dos ex-escravizados no mercado de
trabalho. Como resultado, uma população já
impregnada com racismo relutava em contratar
negros, relegando-os a empregos precários
que não garantiam condições de vida dignas,
mesmo após a libertação. A liberdade, por si
só, não proporcionava uma vida melhor para

49
aqueles que, agora livres, precisavam arcar
com suas próprias despesas básicas.
O termo "marginalidade" não se
relaciona somente com a criminalidade, mas
denota a posição de quem vive à margem da
sociedade. Discriminações sociais e
geográficas empurram não apenas a população
negra, mas também os pobres, homossexuais,
índios, artistas e mulheres para essa condição,
em uma sociedade preconceituosa, racista e
sexista.
Assim, a maioria da população
brasileira é relegada à margem da sociedade,
estigmatizada e alvo de discriminação. Nas
escolas militares e quartéis, futuros agentes do
estado são ensinados a enxergar a população
negra e periférica não como uma parte
marginalizada da sociedade, mas como uma
ameaça, uma visão contaminada pelos
preconceitos históricos. Com esses olhos
enviesados, a cor da pele é muitas vezes
associada à criminalidade e à indolência. Isso
perpetua um "holocausto urbano", onde
milhares de negros e pobres são mortos
sistematicamente anualmente, principalmente
nas favelas, em ações policiais que raramente
se repetem em áreas “nobres”.
A história dos escravizados fugidos,
que se organizavam em Quilombos e resistiam
ao sistema escravocrata, serve como exemplo

50
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

da necessidade da organização popular para


resistir aos interesses opressivos das elites. No
entanto, a luta não pode ser romantizada, pois
as oligarquias frequentemente resistem às
mudanças que ameacem seus privilégios.
Apesar dos massacres e do extermínio
sistemático da população pobre, exemplos de
resistência popular persistem. Quilombos,
aldeias indígenas e movimentos de sem-terra
demonstram que, apesar das desigualdades, é
possível resistir às forças oficiais que defendem
as elites oligárquicas.
Em síntese, a Mentalidade Colonizada
continua a moldar muitos aspectos da
sociedade brasileira, perpetuando o racismo
estrutural e os problemas resultantes da
exploração histórica. No entanto, o
reconhecimento desses problemas é o primeiro
passo para enfrentá-los, buscando uma
sociedade mais justa e igualitária.

O papel das forças armadas

O capitão do mato é, sem dúvida, uma


das raízes da Mentalidade Colonizada. No
entanto, outro tronco crucial dessa mentalidade
está nas forças armadas. Inicialmente, o Brasil
colonial não possuía um exército próprio,
principalmente porque, como colônia, estava
sob a proteção da metrópole portuguesa. Com

51
a transformação do Brasil em país
independente, surgiu a necessidade de
estabelecer um exército. No entanto, esse
exército foi criado mais para conter revoltas
internas do que para defender as fronteiras. Ele
foi empregado para reprimir rebeliões, servindo
aos interesses das oligarquias, em vez de
garantir a proteção nacional contra ameaças
externas.
Inicialmente, as forças militares
coloniais se organizavam em diversas milícias
a serviço dos donatários. Essas milícias eram
formadas por pequenas unidades responsáveis
pela segurança das famílias poderosas da
colônia. Devido à dependência de armas
importadas da metrópole, a defesa do território
estava fortemente ligada à metrópole.
À medida que cresceram as revoltas
indígenas e as ameaças de outras nações
europeias, aumentou a necessidade de um
contingente militar mais robusto. No entanto,
esse contingente era consideravelmente menor
que a população nativa. Assim, a estratégia de
"dividir para conquistar", utilizada até hoje, foi
empregada pelos portugueses para subjugar
grupos indígenas que resistiam ao domínio. As
rivalidades entre as próprias etnias nativas
foram exploradas pelos portugueses para minar
a resistência indígena. O grosso das forças
militares utilizadas para controlar os nativos

52
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

revoltosos era composto por nativos de etnias


rivais, não por colonos.
Essa tática continua sendo usada pelas
oligarquias para manter seu poder: enquanto
as diferentes facções lutam entre si, a
desigualdade social gerada pelo capitalismo
permanece em segundo plano. O resultado é
que as elites oligárquicas conseguem manter
sua influência sobre o povo, enquanto a
consciência de classe é sufocada.
Com o início do tráfico de escravos e a
formação de Quilombos por negros fugitivos, as
oligarquias começaram a perceber a
necessidade de um exército mais organizado
para combater locais de resistência contra a
exploração escravista. A derrota de Palmares,
o maior Quilombo, mostrou a urgência de se
enfrentar esses movimentos de resistência.
Foi somente com a chegada da família
real em 1808 que o exército brasileiro começou
a ser verdadeiramente organizado. A criação
da Escola Real Militar em 1810 tinha como
objetivo formar um exército para garantir a
segurança da família real, que agora residia no
Brasil. Os oficiais formados nessa escola eram,
em grande parte, membros das oligarquias
locais. Essas famílias constituíram a casta
militar brasileira, que compartilhava a
Mentalidade Colonizada das oligarquias.
Dentro das escolas militares, os novos

53
soldados eram ensinados a enxergar negros,
pobres e marginalizados como inimigos a
serem combatidos.
Em resumo, a conexão entre as forças
armadas e a Mentalidade Colonizada é
complexa e varia em diferentes momentos
históricos. Ela envolveu a utilização de grupos
nativos contra outros, o papel das elites
oligárquicas na formação do exército e as
ideologias transmitidas nas escolas militares.
Reconhecer esses elementos é fundamental
para uma compreensão mais profunda das
origens e impactos da Mentalidade Colonizada
no Brasil.
No ambiente de ensino militar, observa-
se a persistência de conceitos problemáticos,
perpetuando manifestações de racismo e
influência política questionável dentro dos
quartéis. Essas questões são notáveis até os
dias atuais, onde termos como "tipo suspeito"
ainda estão associados a rostos negros. Além
disso, nas escolas militares, é transmitida a
noção de que o comunismo representa uma
ameaça constante, visando a supressão de
ideias políticas que busquem equidade e justiça
social. Tal cenário se fundamenta na
resistência das oligarquias nacionais em se
submeter às mesmas leis que regem a
população em geral.

54
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

A história revela que somente com o


retorno de D. João a Portugal e a declaração
de independência do Brasil que o exército
nacional efetivamente surge. Esse exército é
moldado primordialmente para salvaguardar os
interesses econômicos das oligarquias e para
conter de maneira vigorosa qualquer
insurgência popular que desafie a ordem
estabelecida.
Ao longo do primeiro reinado,
eclodiram diversas revoltas questionando o
poder de D. Pedro I. Essas situações
submeteram o exército brasileiro a uma série
de conflitos internos, contribuindo para a
consolidação de um sistema opressor que
reprime levantes populares em prol da
manutenção do status quo. Exceções como a
Guerra da Cisplatina apenas confirmam a
utilização das forças armadas para sufocar
revoltas internas.
No período Regencial, a eclosão de
rebeliões provinciais coloca à prova a
capacidade do exército brasileiro para suprimir
tais revoltas populares e preservar o domínio
das oligarquias. Nesse contexto, surge o mito
do "Duque de Caxias". Luís Alves de Lima e
Silva é incumbido de conter a Balaiada, uma
revolta popular contra os desmandos
governamentais na cidade de Caxias,
Maranhão.

55
A Balaiada (1838) destaca-se como um
exemplo emblemático de revolta originada de
abusos de poder perpetrados pelos próprios
agentes estatais. A partir do estupro das filhas
de Manoel dos Anjos (Balaio) por Antônio
Raymundo Guimarães, oficial de polícia,
segmentos marginalizados da sociedade
brasileira organizam-se para lutar por justiça e
pôr fim aos abusos de autoridades.
Conquistando a cidade de Caxias, os rebeldes
ameaçam as oligarquias nacionais, que temem
pela disseminação de revoltas similares. Nesse
movimento, liderado por Manoel Balaio, Cosme
Bento de Chagas e Raimundo Gomes, é
patente a capacidade das organizações
populares de resistir e desafiar a Mentalidade
Colonizada.
Todavia, uma luta contra uma
mentalidade enraizada por séculos é
inerentemente desigual. O exército sob o
comando de Luís Alves de Lima, agora armado
de modernos equipamentos e táticas bem-
definidas, avança sobre Caxias em 1841,
aniquilando os revoltosos e perseguindo os
insurgentes. A revolta da Balaiada é reprimida,
os rebeldes mortos e, por essa ação, Luís
Alves de Lima é coroado Duque de Caxias,
posteriormente declarado "Patrono do Exército
Brasileiro". Surge um patrono que se destacou
por proteger os interesses das oligarquias,

56
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

relegando ao segundo plano os abusos


cometidos por oficiais em relação à população,
desde que a "ordem" prevalecesse.
Essa trajetória traz à tona um exército
cuja função contemporânea é assegurar a
manutenção do poder e da ordem, como
historicamente fizeram as oligarquias, as mais
fervorosas promotoras da Mentalidade
Colonizada. Em diversos momentos, as forças
armadas intervêm na política nacional para
resguardar os privilégios das oligarquias,
intercedendo quando as classes populares
buscam organização política. Essas
interferências militares garantem que as elites
oligárquicas preservem seu domínio.
Ao abordar a história brasileira,
percebe-se que as forças armadas
frequentemente foram peças-chave na defesa
dos interesses das oligarquias e na
manutenção da ordem, inclusive mediante atos
repressivos. A análise cuidadosa dos eventos
históricos é essencial para compreender a
dinâmica complexa entre militares, política e
poder oligárquico.
O papel das forças armadas nas
dinâmicas políticas e sociais do Brasil é notável
ao longo de sua história, sendo frequentemente
envolvidas em momentos críticos que
moldaram o cenário político do país. No
entanto, é fundamental uma análise mais

57
aprofundada e embasada para compreender
suas ações e impactos.
Ao longo dos anos, o Brasil vivenciou
alternâncias entre períodos de democracia e
ditadura, frequentemente marcados por golpes
de estado. Esses eventos complexos e
multifacetados envolvem uma série de fatores e
atores políticos, e não podem ser simplificados
em uma narrativa linear. Exemplos concretos,
como o Golpe de 1964 ou a Ditadura Militar
subsequente, são necessários para ilustrar
esse padrão histórico.
Um marco significativo da interferência
militar na política ocorreu com a Proclamação
da República. O descontentamento com a
abolição da escravidão e o regime monárquico
foi explorado por setores das elites
oligárquicas, culminando em um golpe militar
que resultou na substituição da monarquia por
uma república. No entanto, a transição foi
marcada pela falta de participação popular e
pelo domínio das forças armadas, configurando
um início controverso para a nova república.
Esse período, conhecido como
"República das Espadas", ressalta a
capacidade das forças armadas de influenciar
as questões políticas e manter o poder
oligárquico. No entanto, é importante evitar
uma análise unidimensional, reconhecendo que

58
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

a história é repleta de nuances e contextos


variados.
Além disso, a Revolta de Canudos,
liderada por Antônio Conselheiro, emerge como
um reflexo das profundas desigualdades
sociais do Brasil pós-abolição. A falta de
perspectivas para a população excluída e
marginalizada resultou em um movimento
popular e messiânico que buscava uma vida
livre da opressão das oligarquias do Nordeste.
Canudos, em sua singularidade, representou
um desafio a essa ordem oligárquica,
proporcionando uma alternativa de organização
social.
Entretanto, é importante não exagerar
ao afirmar que Canudos se desenvolveu mais
rapidamente que outras cidades dominadas
pelas oligarquias. Embora tenha desafiado as
normas vigentes, o surgimento de Canudos
não pode ser isolado de seu contexto histórico
e dos complexos fatores que influenciaram seu
crescimento.
O episódio de Canudos, após quatro
expedições militares, resultou na quase
completa destruição da vila, que abrigava cerca
de 25 mil habitantes na época. No entorno dos
morros circundantes, o exército posicionou sua
artilharia camuflada na vegetação, conhecida
como "favela". Os disparos de canhões, feitos
por soldados frequentemente tão

59
desfavorecidos quanto os residentes de
Canudos, não distinguiram entre homens,
mulheres e crianças que, corajosamente,
resistiram ao poder avassalador das forças
armadas.
Após o devastador evento, os
soldados, utilizados como executores, muitos
dos quais eram negros, retornaram à cidade do
Rio de Janeiro. Paradoxalmente, eles
passaram a habitar os morros que receberam o
nome da vegetação que outrora camuflara a
artilharia em Canudos. Surgia, então, a Favela:
um local de morada para os marginalizados.
O massacre de Canudos, promovido
pelo exército, ilustra como as forças armadas
foram historicamente empregadas para
suprimir ameaças ao poder das oligarquias.
Todavia, esse não foi o único caso, tampouco o
último, em que as forças armadas participaram
ativamente na política brasileira e na
eliminação das vozes marginalizadas.
A interferência militar na política é
evidente também no Golpe de 1964. As forças
armadas depuseram o presidente João Goulart,
que propunha políticas de redução das
desigualdades sociais. Os generais alegavam
um serviço patriótico, mas seus atos
favoreciam as oligarquias, que se sentiram
ameaçadas pelas reformas sociais propostas

60
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

por Goulart, como a reforma agrária e reformas


estruturais.
Embora as reformas não tivessem
como objetivo a instauração de um governo
socialista, o contexto de paranoia
anticomunista durante a Guerra Fria foi usado
como pretexto para derrubar um governo que
buscava maior participação popular na política.
Ao dar o golpe em 1964, as forças armadas
acabaram por manter uma mentalidade
colonial, alinhando-se aos interesses dos
Estados Unidos e perpetuando uma condição
de colônia.
Durante a ditadura que perdurou de
1964 a 1984, os militares agiram para proteger
as oligarquias de qualquer ameaça ao seu
poder. Acostumados a décadas de violência e
repressão, recorreram à brutalidade
indiscriminada contra aqueles que pleiteavam
uma mudança na paisagem política. Propostas
de igualdade e inclusão social eram reprimidas
com prisões, tortura e perseguições, refletindo
o compromisso das oligarquias em manter sua
ordem de exploração.
A tortura, empregada como ferramenta
de controle, estava intrinsecamente ligada à
fragilidade desses governos autoritários, que
viam a crítica como ameaça à sua estrutura de
poder. A perseguição a opositores, como
músicos, artistas, jornalistas, sindicalistas,

61
estudantes e professores, foi uma
característica dessa repressão sistemática que
visava manter a exploração defendida pelas
oligarquias.
Durante a ditadura militar, a paranoia
anticomunista era uma justificativa recorrente
para a perseguição. No entanto, o verdadeiro
temor das elites oligárquicas era a perspectiva
de igualdade e democracia, que poderiam
ameaçar a estrutura de poder e a influência das
oligarquias.
Assim, a história das forças armadas
no Brasil é marcada por seu papel em manter a
ordem oligárquica, preservando os privilégios
dessa classe ao longo das gerações. A ligação
entre essas forças e a "Mentalidade
Colonizada" perpetuou a exploração das elites
em detrimento do verdadeiro desenvolvimento
nacional.
Por isso, é equivocado atribuir um
caráter nacionalista ou patriótico às forças
armadas, visto que muitas vezes elas atuaram
em prol daqueles interessados em
enriquecimento rápido, sem compromisso com
o país. As oligarquias, produtos e
perpetuadoras da "Mentalidade Colonizada",
usam as forças armadas para manter seu
domínio e exploração.
Nos institutos militares, os futuros
soldados são moldados a odiar o que poderia

62
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

ameaçar as oligarquias, reforçando a


obediência cega e inibindo o pensamento
crítico. Sem a capacidade de análise, eles
continuam a perseguir um inimigo imaginário,
ignorando que a URSS desmoronou nos anos
1990.
A ausência de uma educação crítica
impede a compreensão de que os verdadeiros
adversários do país não são os comunistas
fictícios, mas sim as próprias oligarquias,
prontas a abandonar o Brasil em busca de
lucro pessoal. Essas elites pouco se
preocupam com o desenvolvimento e futuro do
país, uma vez que o progresso social
ameaçaria sua hegemonia.

Mentalidade Colonizada e a educação


pública no Brasil

Ao explorarmos a história da educação


no Brasil, é notável a tendência de
negligenciarmos a educação indígena, uma vez
que nosso país foi colonizado por séculos por
grupos que priorizaram a memória dos
colonizadores, relegando as etnias nativas a
um plano secundário. Entretanto, não podemos
subestimar o sistema pedagógico dos povos
indígenas, mesmo que tenha sido
incompreendido pelos colonizadores
influenciados pelo eurocentrismo.

63
Os nativos não só habitavam nossas
terras, como também compartilhavam
conhecimentos transmitidos através das
gerações. A sobrevivência nesse ambiente
dependia da transmissão de saberes práticos
pelos anciãos, permitindo que prosperassem
em equilíbrio com a natureza. Essa
transmissão permitia aos nativos não só
subsistir, mas também moldar sua convivência
com o ambiente, criando comunidades
harmoniosas.
Além disso, um rico e variado universo
mitológico permitia aos nativos construir
explicações próprias sobre a origem do
universo, criando uma ligação intrínseca entre
eles e a Terra. Essas crenças eliminavam a
separação entre ser humano e natureza,
contrastando com a visão religiosa cristã de
reconexão com Deus.
As divindades indígenas eram
personificações da natureza e do ambiente em
que viviam, resultando em uma relação
próxima entre os nativos e suas divindades
cotidianas. As celebrações rituais não apenas
eram cerimônias, mas também atuavam como
ferramentas de ensino para as futuras
gerações, reforçando a importância da história
e da ancestralidade. No entanto, é importante
evitar a comparação direta dessas celebrações

64
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

com cerimônias religiosas cristãs, uma vez que


as perspectivas e conexões eram distintas.
A chegada do cristianismo,
especialmente pela empreitada jesuítica na
catequização dos nativos, gerou conflitos com
essa cosmovisão indígena. Muitos
historiadores da educação negligenciam o
sistema educacional nativo, erroneamente
atribuindo a educação jesuítica como o primeiro
sistema do Brasil. Contudo, é fundamental
reconhecer que o modelo educacional indígena
precedeu essa influência.
A educação jesuítica precisa ser
entendida no contexto da Contrarreforma e da
expansão territorial portuguesa. Inicialmente,
os jesuítas serviram aos interesses coloniais,
visando controlar a população nativa. As
missões jesuíticas buscavam controlar os
nativos e introduzi-los ao conceito de pecado e
escravidão, servindo aos interesses coloniais.
O método educacional jesuítico,
baseado em ensinamentos tradicionais, impôs
um modelo europeu aos nativos, com
professores transmitindo conhecimento aos
alunos. No entanto, esse modelo não era
adaptado à realidade prática dos nativos, que
dependiam de conhecimentos específicos para
sua sobrevivência. Assuntos como latim e
retórica eram irrelevantes para uma população

65
que seria explorada como mão de obra
escrava.
Assim, podemos dizer que o primeiro
sistema educacional europeu em nosso
território teve como função a conversão dos
nativos ao cristianismo, a destruição da cultura
e da Cosmovisão nativa, bem como funcionou
como um meio facilitador da captura de nativos
para o trabalho escravo. Este sistema de
ensino, que serve como um sistema de
“domesticação” de vidas humanas para sua
utilização no mercado de trabalho, ainda está
impregnado na mentalidade das oligarquias
nacionais que acreditam que o papel da
educação deve ser o de formar mão de obra
apta ao trabalho de forma acrítica e que aceite
baixa remuneração.
As oligarquias nacionais se
desenvolveram diretamente das famílias que
possuíam o poder no período colonial e
exploravam as riquezas naturais de nosso
território. Estes grupos estão diretamente
ligados aos ciclos econômicos do Brasil, que
buscavam o enriquecimento pessoal e familiar
acima de qualquer outra coisa. Por isso são
grupos que não desejam alavancar o
desenvolvimento nacional e na primeira
oportunidade, colocam seus filhos para estudar
no exterior. Para o povo sobra a educação de
formação de mão de obra acrítica. Prontos para

66
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

trabalhar, mas nunca para questionarem as


correntes que os prendem.
Assim, nosso sistema educacional está
atrelado a prática da exploração e da busca por
enriquecimento rápido, típico da uma nação
doutrinada dentro da Mentalidade Colonizada.
Desta maneira, temos um país que
praticamente perdeu seu sistema de educação
original dos seus povos nativos e que viu surgir
uma lógica baseada na exploração de vidas
escravas e na ideia de pecado cristão.
Enquanto os nativos foram doutrinados a crer
que eram filhos do pecado, os exploradores se
eximiam de toda ética e moral cristã ao
exterminarem diversas etnias em busca de
riqueza.
O sistema educacional jesuítico foi o
único sistema educacional autorizado pelos
portugueses durante os primeiros séculos de
exploração do território brasileiro pelos
portugueses. Para os colonos que aqui viviam
não havia a necessidade de erudição ou de
conhecimento clássico para empreenderem
sua lógica de exploração e enriquecimento.
Assim, somente com a fuga da família real
portuguesa em direção à colônia é que vemos
iniciar no Brasil um sistema de educação para
as pessoas que aqui viviam. Porém, não
devemos nos esquecer de que este sistema de
educação não era universal, ou seja, apenas

67
uma pequena parcela da população tinha
direito à educação formal oferecida pelos meios
oficiais:

Foi só com a chegada da corte


portuguesa e com a duplicação da
população em algumas cidades
brasileiras que se deixou de
contar exclusivamente com
profissionais formados em
Coimbra. Essas primeiras escolas
foram a Academia Real Militar, em
1810, o curso de Agricultura, em
1814, e a Real Academia de
Pintura e Escultura, fundada em
1820, com programas que
asseguravam um diploma
profissional, verdadeiro bilhete de
entrada para postos privilegiados
e para um mercado de trabalho
bastante restrito e de garantido
prestígio social. Foram igualmente
fundados nesse momento o Real
Jardim Botânico, a Escola Real de
Ciências, Artes e Ofícios, o Museu
Real, a Real Biblioteca, a
Imprensa Régia e o Banco do
Brasil, o qual, diziam as
testemunhas, “já nasceu falido”

68
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

(SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre


o autoritarismo brasileiro, p.11)

Por isso nosso sistema de educação


público é tardio e surge para fortalecer as
oligarquias e não para garantir educação de
qualidade para povo. O primeiro curso de
direito no Brasil surge em 1825, para que os
filhos das oligarquias não precisassem viajar
até Portugal para conseguirem sua formação
acadêmica. E, não podemos dizer que a
ideologia liberal estivesse realmente presente
neste curso de direito, pois o Brasil (assim
como Portugal) ainda vivia um regime com
bases sólidas no absolutismo
(https://bityli.com/anq3z).
Assim, também podemos dizer que o
Brasil viveu um liberalismo tardio, pois a família
real portuguesa fugiu da metrópole para a
colônia, justamente para se afastarem das
ideias liberais e iluministas que estavam sendo
espalhadas na Europa, desde a revolução
francesa e que continuaram a ser impostas aos
países dominados pelas invasões
napoleônicas. Não à toa, nossa escravidão
demorou tanto tempo para ser abolida e por
isso o racismo estrutural é ainda intrínseco ao
estado de direito brasileiro.
Nosso sistema judiciário carrega
consigo o racismo e a Mentalidade Colonizada

69
principalmente porque são os filhos das
oligarquias, formados com bases na
Mentalidade Colonizada, que vão ocupar os
cargos de juízes e promotores: serão os
algozes e carrascos de uma população
marginalizada pela Mentalidade Colonizada.
Apenas uma minoria de filhos “bastardos”, que
se formam nos cursos de direito, não pertence
às classes mais ricas, ou seja, aqueles que
carregam consigo mais preconceitos de classe.
Por isso que o nosso sistema judiciário é fruto
direto da formação de um sistema elitista que
surge para legitimar e manter o poder das
oligarquias e punir os pobres.
O sistema educacional público e
universal inicia na década de 1930. Porém,
mesmo sendo um sistema público de ensino,
ainda são poucos aqueles que conseguem
acompanhar as aulas. A maior parte das
crianças, filhos de famílias pobres, trabalha
para ajudar na renda familiar e não possuíam
roupas e materiais adequados para
acompanharem as aulas. Assim, o ensino
público e alfabetização continuariam sendo
restritos à classe média e alta até meados da
década de 1970.
A ampliação da escolarização só se
iniciou a partir da década de 1970 quando
passou a existir a necessidade de formação de
mão de obra técnica mais especializada. Daí, o

70
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

tecnicismo e formação sem criticidade, típica


do sistema educacional proposto pelos
governos militares. Além disso, as aulas de
OSPB (Organização Social e Política Brasileira)
serviam para criar uma falsa noção de
patriotismo, uma vez que ensinavam a valorizar
os símbolos nacionais, mas não a pensar
criticamente quais seriam os caminhos políticos
para se criar um país melhor.
A falta de criticidade no ensino público
é uma das ferramentas utilizadas pelas
oligarquias nacionais para cultivarem a
Mentalidade Colonizada e o Delírio Político. Por
isso que Darcy Ribeiro afirmava que a crise na
educação brasileira não se trata de uma crise,
mas sim de um projeto. Manter a maior parte
da população alienada faz parte de um
processo que garante a manutenção da ordem
estabelecida. Aqueles que não conhecem suas
correntes não lutam para se libertar. Da mesma
maneira, o povo, alienado das reais causas de
suas chagas, não consegue enxergar o mal
que os aflige.
Assim, de tempos em tempos a
educação pública brasileira é reestruturada de
forma a manter a ordem social estabelecida
bem como fornecer mão de obra especializada
e atualizada com as novas tecnologias que o
mercado necessita. Mas, estas atualizações
servem também para manter a Mentalidade

71
Colonizada, bem como servem como adubo
para o surgimento do Delírio Político.
É por isso que temos atualmente um
sistema educacional que supervaloriza o
ensino de matemática e língua portuguesa
enquanto relega às disciplinas de humanas um
papel secundário, sempre correndo o risco de
serem excluídas do currículo. Quanto menos
conhecimento histórico e social, mas fácil se
torna para as oligarquias nacionais
perpetuarem sua lógica de exploração e as
perversidades herdadas de nosso passado
colonial.
Claro que temos diversos pensadores
da Educação que desenvolveram métodos
críticos e que buscavam criar as condições de
libertação de nosso povo. Porém, as
oligarquias, que detém o poder político, nunca
permitem a real implementação de um sistema
educacional que prestigie a criticidade e a
formação de uma base científica
verdadeiramente nacional.
Ao contrário, o sistema de ensino
público é sucateado onde o acesso é universal
e valorizado onde o acesso é restrito aos filhos
das oligarquias. Por isso as escolas públicas
são cada vez mais transformadas em
verdadeiras prisões e as universidades
públicas, que possuíam os cursos elitistas,
eram disputadas e frequentadas,

72
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

predominantemente, por filhos de ricos. Isso


antes da existência da política de cotas. E por
isso mesmo, os representantes das oligarquias
atuais, estão ávidos pelo fim da política de
cotas, justamente para que as universidades
públicas retornem a ser de acesso exclusivo
aos filhos das oligarquias.
A criação da Lei de Diretrizes e bases
da Educação (LDB) foi um marco na história da
luta por uma educação pública e de qualidade.
Porém, não podemos nos esquecer de que no
Brasil, uma lei, por si só, não é o bastante para
mudar uma mentalidade construída em séculos
de exploração. Logo, a qualidade da educação
pública depende da eleição de uma base
popular no poder legislativo e que esteja
realmente envolvida com a luta pela educação
pública. Caso contrário, teremos cada vez mais
escolas militarizadas, formadoras de mão de
obra acrítica e a perpetuação da Mentalidade
Colonizada e do Delírio Político:

Até o momento em que os


oprimidos não tomem consciência
das razões de seu estado de
opressão, “aceitam” fatalistamente
a sua exploração. Mais ainda,
provavelmente assumam
posições passivas, alheadas, com
relação à necessidade de sua

73
própria luta pela conquista da
liberdade e de sua afirmação no
mundo. Nisto reside sua
“conivência” com o regime
opressor. (FREIRE, Pedagogia do
Oprimido, p. 71)

As relações de dependência industrial

Com as raízes lançadas no período


colonial e os troncos formados no período
imperial, os galhos da Mentalidade Colonizada
se ramificam com a “independência”. Para
tanto, devemos lembrar que a fuga da família
real portuguesa se deu por intermédio da
marinha britânica que forneceu escolta e navios
de transporte para que a corte portuguesa se
transferisse para a colônia. Como
contrapartida, foi ofertada a abertura dos portos
do Brasil Colônia para as nações amigas (leia
se Inglaterra). Assim, passamos de colônia de
uma única nação para uma dupla colônia. Com
isso, a Mentalidade Colonizada expande e
ramifica a vontade de fugir da colônia não só
para a metrópole portuguesa, mas agora
também para a metrópole inglesa.

A primeira medida foi a abertura


dos portos brasileiros pelo alvará
de 28 de janeiro. A partir dessa

74
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

data as embarcações estrangeiras


das nações amigas poderiam
desembarcar mercadorias nos
portos brasileiros sem passar
pelos intermediários de Portugal.
Mais do que a fidelidade a
princípios abstratos do liberalismo
econômico, essa medida
interessava aos mercadores
britânicos, que viam no comércio
direto a possibilidade de aumentar
suas vendas, um imperativo
diante do bloqueio continental.
Interessava também aos
proprietários de terras e de
escravos que visualizavam a
possibilidade de receberem
pagamento mais alto pelos
produtos exportados, se vendidos
diretamente aos importadores
europeus. (CUNHA, A Educação
na primeira Onda laica – do
Império à República, p. 35)

A falsa independência do Brasil, onde o


poder passa do rei para o príncipe, também é
marcada por uma dependência cada vez maior
do Brasil com sua nova metrópole. Uma vez
que, aqui ainda não havia infraestrutura para a
formação de uma nação, o país se torna cada

75
vez mais dependente da tecnologia inglesa
para a formação de uma base econômica.
Também devemos lembrar que neste período a
Revolução Industrial estava a pleno vapor na
Inglaterra. E aqui devemos ressaltar que a as
oligarquias brasileiras passam a reconhecer os
ideais liberais somente como uma forma de
aumentar seus lucros. Por isso não podemos
dizer que os ideais Iluministas chegam ao
Brasil como uma possibilidade de
desenvolvimento humanista e racional, mas
sim como forma de ampliar o desenvolvimento
econômico da elite e manter cada vez mais
fortes as estruturas de poder oligárquicas.
É sempre importante ressaltar que a
Mentalidade Colonizada não nos conduz a um
verdadeiro sentimento patriótico, pois nosso
desenvolvimento econômico está sempre
atrelado às vontades de uma metrópole: seja
Portugal, Inglaterra ou, mais recentemente,
Estados Unidos. Ao contrário, cultivamos um
país que estabelece suas metas e suas
vontades de acordo com o capital estrangeiro
que determina quais parâmetros de
desenvolvimento o Brasil deve seguir.
Assim, além do liberalismo e da
educação pública, a industrialização brasileira
ocorre de maneira tardia. Fruto do atraso para
a libertação dos escravos, uma vez que as
oligarquias escravagistas não conseguiam

76
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

compreender os benefícios da utilização de


mão de obra assalariada, a industrialização
brasileira ainda sofre do atraso devido a
Mentalidade Colonizada presente no
empresariado nacional. Assim como o racismo
estrutural é fruto da Mentalidade Colonizada
(cultivada em nas oligarquias que enxergam o
negro como mão de obra não especializada), o
processo de industrialização brasileira também
é fruto da vontade estrangeira em detrimento
do desenvolvimento nacional.
É devido a Mentalidade Colonizada que
não compreendemos a importância do
desenvolvimento do sistema educacional e da
ciência e tecnologia nacionais. Também,
podemos citar a Mentalidade Colonizada como
responsável pela falta de desenvolvimento da
infraestrutura básica que nos faria um país
desenvolvido. Segurança, educação, saúde e
industrialização se guiam por critérios
estabelecidos por oligarquias que não desejam
um real desenvolvimento nacional, mas sim
desejam enriquecer, manter seu poder e fugir
para as metrópoles o mais rápido possível.
Essas oligarquias são formadas pelas
famílias que controlavam a produção do
açúcar, do café, do leite e tardiamente se
instauram no ramo industrial. Mas, mesmo
avançando em direção à industrialização,
essas oligarquias ainda possuem a

77
Mentalidade Colonizada. Por isso não pensam
em nada além do lucro e a vontade de
deixarem o país na primeira oportunidade.
Por isso nosso processo de
industrialização e o sistema educacional não
permitem o desenvolvimento de tecnologias
que garantam um verdadeiro desenvolvimento
nacional. Pelo contrário, o início do processo
de industrialização brasileira buscava muito
mais uma forma de exportar matérias primas
do que a produção de bens de consumo, que
continuaram sendo importados até a década de
1990. Assim, desenvolvemos as indústrias
primárias, deixando de lado o desenvolvimento
das indústrias secundárias e terciárias no início
da industrialização brasileira.

Mentalidade Colonizada e o Mandonismo

O sistema colonial português adotado


no Brasil favoreceu, desde o início, a
concentração de terras nas mãos de poucas
famílias. O sistema que gerou os latifúndios
criou também as oligarquias, como grupos
familiares que detém o poder e que
praticamente se encaixam acima das Leis. O
sistema de capitanias hereditárias criou, desde
o princípio, o acúmulo de terras e de poder.
Bem como culminou com a criação de uma
mentalidade de uma casta que se julga no

78
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

direito de explorar vidas humanas até a última


gota de suor.
Esse tipo de mentalidade foi sendo
forjada ao longo dos séculos por meios de
práticas mandonistas que representam o
pensamento de um grupo social ávido por
demonstrar suas raízes na nobreza, mas que,
na verdade, faziam parte de uma gente
discriminada por não ter sua “pureza”
portuguesa, pois se tratava de gente nascida
no Brasil e que, por isso, era discriminada na
metrópole como sendo um tipo de gente de
segunda categoria. Assim, com a necessidade
de demonstrar o poder que possuíam, criam as
fábulas de poder patriarcal de suas famílias,
procurando sempre atribuir um poder maior do
que o que realmente existiu ao “pai”, o grande
patriarca fundador da tradição familiar:

De qualquer maneira, se
proprietários de terra não eram
nobres de origem, trataram de se
criar como tal e usaram a história,
uma certa história, como forma de
alardear sua posição destacada.
Usaram, igualmente, de um
determinado teatro do poder que
permitia, ao mesmo tempo,
justificar e sublinhar seu lugar
iminente naquela estrutura social.

79
Não são poucos os relatos que
trazem senhores desfilando à
frente de sua vasta escravaria,
montados em cavalos baios, com
traje completo, chapéus largos e
botas lustradas, mesmo nos dias
quentes do Nordeste brasileiro. E,
como “repetir” significa “conferir
certeza”, repassavam diariamente
o ritual público. (SCHWARTZ,
Sobre o autoritarismo brasileiro,
p.35)

Essa “necessidade” de se demonstrar o


poder se apresenta muito claramente naquelas
pessoas que se julgam pertencentes a uma
“elite” que estaria acima das Leis. Assim que
existem, ainda hoje, aquelas pessoas que
adoram falar “você sabe com quem está
falando?”. Ou então aqueles que, para
demonstrar poder e status social, compram
carros de luxo e se endividam pelo resto de
suas vidas. Assim, a aparência assume um
valor maior que a essência em uma parcela da
população que deseja demonstrar mais do que
são.
No Brasil, a prática do mandonismo foi
sendo moldada ao longo do tempo pela troca
de favores, pelo poder econômico e pela
manutenção de um sistema de aparências que

80
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

criavam um poder individual e à parte do


estado:

Fazia parte do “cabedal de um


senhor”, ainda, cuidar de todos
aqueles que o rodeavam e suprir-
lhes. Era desse modo que
proprietários ampliavam seus
deveres, mas também
acumulavam direitos. Enrijecia-se,
pois, uma sociedade marcada
pela autoridade do senhor, que a
exercia cobrando caro pelos
“favores” feitos e assim
naturalizava o seu domínio.
Capital, autoridade, posse de
escravizados, dedicação à
política, liderança diante de vasta
parentela, controle das
populações livres e pobres,
postos na Igreja e na
administração pública,
constituíram-se em metas
fundamentais desse lustro de
nobreza que encobria muita
desigualdade e concentração de
poderes. (SCHWARTZ, Sobre o
autoritarismo brasileiro, p.35)

81
O “senhorzinho” (ou Coronel), que
concentrava e personificava o poder, ainda
está impregnado no imaginário popular da
população brasileira. E ainda hoje é
responsável por representar o desejo de poder
em uma grande parcela da população brasileira
que vive no interior do país. Nesses locais
ainda é comum, nos festejos, a exaltação dos
grandes “vultos” e o desejo de aproximação da
população com esses “detentores do poder”
para a obtenção de favores. Por isso, não é
difícil encontrar representantes desse tipo de
mandonismo dentro da política brasileira. Mas,
como se trata de representantes do poder,
forjados dentro da Mentalidade Colonizada,
quando assumem cargos públicos, tendem
sempre a confundir a esfera pública com a
privada.

A Mentalidade Colonizada e a Rés Pública

Claro que também podemos encontrar


a Mentalidade Colonizada no povo, não
somente nos membros das oligarquias. Mas,
aqui também se trata de um processo de
assimilação e conivência com uma
mentalidade, como acontece no caso do
Capitão do Mato. Os pobres também desejam
abandonar a colônia, pois aqui não existe uma
perspectiva de futuro para o povo, uma vez

82
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

que, os governos não conseguem estabelecer


metas de desenvolvimento de futuro a curto e
em longo prazo. Assim, é mais fácil embarcar
rumo à metrópole do que destituir as
oligarquias nacionais, protegidas pelas forças
policiais e pelas forças armadas, do que lutar
para que aqui seja criada uma real
infraestrutura que garanta, verdadeiramente, o
desenvolvimento nacional.
Nossa Proclamação da República
acontece de maneira inversa: não foi o povo
que, descontente com o governo monárquico,
decretou o fim do regime, foram as forças
armadas, temendo revoltas populares que
criassem as tensões revolucionárias, que
decretaram a instauração do regime
republicano para satisfazer os desejos das
oligarquias. Mas, diferentemente de outros
países do mundo que passaram pelo processo
de destituição da monarquia e adoção do
republicanismo, no Brasil a República
aconteceu sem a participação popular até
mesmo na hora do voto. Nossa república se
iniciou como uma ditadura militar e não como
uma democracia.
As oligarquias nacionais, ao longo da
nossa História, se mobilizam em torno da
disputa política de maneira que possam
garantir a manutenção de seus privilégios e
para evitar que verdadeiros membros do povo,

83
com ideais progressistas, cheguem ao poder.
Assim, durante toda República Velha, as
eleições foram marcadas pelas fraudes e pela
violência durante o processo eleitoral. Aqueles
que são contra o poder oligárquico são
exterminados com o direito a impunidade típica
as eleições do “Cacete”, que se tornam um
símbolo da política nacional e que permanecem
até hoje nos currais eleitorais de pequenas
cidades e nas periferias das grandes
metrópoles, dominadas por milícias que se
expandiram até o ramo da política eleitoral.

Dessa maneira, e como uma


forma de ingerência dos
interesses privados na lógica
pública do Estado, fraudes
acompanhavam todas as fases do
processo eleitoral, sendo o voto
entendido como moeda de troca.
O “voto de cabresto”, por
exemplo, converteu-se numa
prática político-cultural — um ato
de lealdade do votante ao chefe
local. Por sua vez, o “curral
eleitoral” aludia ao barracão onde
os votantes eram mantidos sob
vigilância e ganhavam uma boa
refeição, dali só saindo na hora de
depositar o voto (SCHWARTZ,

84
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Sobre o autoritarismo brasileiro,


p.47)

Assim, as oligarquias se perpetuaram


na política brasileira até os dias de hoje. São
essas oligarquias que governam em benefício
de suas próprias famílias e exterminam física e
juridicamente seus adversários. São essas
oligarquias que determinam as políticas
públicas, bem como são elas que determinam
os rumos econômicos do país. E, dominadas
pela Mentalidade Colonizada, essas oligarquias
querem ficar mais próximas à metrópole do que
do nosso país que ainda é visto como uma
verdadeira colônia.
O subdesenvolvimento é uma das
principais características dos países
acometidos pela Mentalidade Colonizada. É
assim que avançamos no século XX como uma
nação predominantemente agrária, com a
desigualdade social intrínseca ao país que,
apesar de “independente”, permanece como
colônia dos países desenvolvidos. É assim que
também mantemos o racismo estrutural, que
nos leva ao extermínio da população negra e
periférica causando um verdadeiro Holocausto
Urbano.
Assim, a Mentalidade Colonizada
produz nas oligarquias nacionais uma distorção
que os leva a ver o Estado como propriedade

85
de suas famílias. Esta visão os faz acreditar
que as políticas públicas devem servir para
manutenção de seus privilégios e não para a
diminuição da desigualdade social que é
produzida pelo capitalismo e mantida pelas
próprias oligarquias. Desta maneira, o
nepotismo se torna uma prática comum para
uma “elite” que se julga “dona” do estado e que
enxerga o estado como uma extensão de suas
propriedades. É daí que vem a famosa
“carteirada” (você sabe com quem está
falando?) típica daqueles que acreditam estar
acima do estado e das Leis. Bem como é daí
que surgem as farras com as verbas públicas
utilizadas para banquetes e festas familiares.
A Rés Pública (coisa pública) brasileira
se confunde com a propriedade privada das
oligarquias que, dominadas pela Mentalidade
Colonizada, não conseguem compreender que
o verdadeiro papel do estado deveria ser a
promoção de políticas públicas e a diminuição
das desigualdades sociais. Ao contrário, as
oligarquias enxergam no estado brasileiro a
possibilidade de garantias de seus privilégios e
a manutenção do poder de suas famílias. Por
isso que as mesmas famílias se mantêm na
política por gerações, fazendo da política um
grande negócio familiar transmitido de pai para
filho.

86
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Desde o período imperial, passando


pela República Velha, Estado Novo, Ditadura
Militar e a Nova República, a política se
mantém na mão de das mesmas oligarquias
políticas. Salvo raras exceções pontuais, o
grupo predominante na política brasileira faz
parte das velhas oligarquias que existem no
país desde o período colonial. Por isso, a
Mentalidade Colonizada vai sendo transmitida,
geração após geração, como uma doença
genética que impede as futuras gerações de
pensar em como romper as velhas correntes da
escravidão e opressão.
A coisa pública vai se confundindo com
a esfera privada quando as famílias poderosas
utilizam o estado para a manutenção de seu
poder. Da mesma maneira, usam o estado para
reprimir a população periférica e a religião para
manter a condição de alienação que permite a
perpetuação do poder oligárquico.

Hospedar o Opressor

Paulo Freire é um dos maiores


pensadores da educação mundial. Nasceu no
Recife em 1921 e desenvolveu diversas teorias
sobre o processo de ensino e aprendizagem,
desenvolvendo um método chamado
Pedagogia do Oprimido. Sua contribuição para
a educação é imensa, sendo um dos brasileiros

87
mais estudados nas maiores e melhores
universidades mundiais. Porém, para governos
que se baseiam na ignorância, é importante
manter o povo no obscurantismo, logo os
educadores que pretendem romper com o
processo de escravidão por meio do
conhecimento são vistos como inimigos desses
regimes autoritários. Por isso, durante a
ditadura militar de 1964/84, Paulo Freire foi
exilado por conta de sua determinação em
erradicar o analfabetismo no Brasil.
Em seu livro “Pedagogia do Oprimido”
Freire desenvolve as bases de um método de
educação crítico, que utiliza as vivências dos
educandos como método facilitador do
processo de ensino / aprendizagem. Para
Paulo Freire, deve haver um processo de
identificação prático entre aquilo que se
aprende e o educando, caso contrário, um
objeto de conhecimento abstrato e distanciado
da realidade, torna o processo de
aprendizagem extremamente difícil,
principalmente para aqueles que são
explorados há séculos por um sistema brutal e
desumano. Por isso, é tão importante trabalhar
com a criticidade, pois a exploração a qual os
brasileiros estão submetidos produz,
propositalmente, a alienação da exploração a
qual o nosso povo é submetido há séculos.

88
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Estes séculos de exploração produzem


um tipo de comportamento que Paulo Freire
conceitua como Hospedar o Opressor. Este
conceito é abordado por Tom Zé na música
“Jardim da Política” lançada em 1984:

A gente, de tanto conviver com o


opressor, de tanto estar do lado
do opressor, de tanto ver o
opressor, no dia que nos é dada a
chance de agir diante da História
como protagonista, como ator, a
gente age igualzinho ao opressor.
A gente faz igualzinho ao
opressor.

Ou seja, sem conhecer outra realidade


que não seja a opressão, nos tornamos
opressores assim que tempos a oportunidade.
O poder transforma os oprimidos em
opressores justamente porque eles não
conheceram outra realidade se não a opressão.
Esse tipo de pensamento pode ser percebido
no comportamento da classe média brasileira
que acredita que para demonstrar nobreza
deve humilhar seus empregados. Oprimindo
aqueles que são considerados inferiores,
grande parte da população brasileira acredita
estar mais próxima da elite.

89
São diversos exemplos que podem ser
citados ao longo da História: o Capitão do
Mato, descendente de escravos e que
perseguia e punia negros a mando do Senhor
de Engenho; o policial negro que aprende a
discriminar e a abordar o “tipo suspeito” de
acordo com a cor da pele; o estudante dos
cursos de graduação que aprende na
universidade que não deve aplicar avaliações
conteudistas mas assim que se transforma em
professor apenas aplica avaliações factuais; o
escravo que quando liberto adquiria seus
próprios escravos.
O grande problema de se hospedar o
opressor é que criamos um ciclo vicioso que
nos impede de romper com a mentalidade
colonial que nos foi imposta por séculos de
dominação das metrópoles em nosso território.
Como nos libertaremos se, ao longo da nossa
história, apenas conhecemos a escravidão?
Assim, quando temos a oportunidade de agir
agimos exatamente como aqueles que nos
escravizaram.

Mentalidade Colonizada e a Religião

O Brasil nasceu do estupro e da


violência! Por mais agressiva que possa
parecer esta frase, devemos lembrar que a
mestiçagem, exaltada por Gilberto Freyre e

90
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Sérgio Buarque, é, na verdade, o resultado de


centenas de milhares de abusos que os
portugueses, devotos do cristianismo,
cometeram após passarem meses no mar e
desembarcarem em nossas praias. Sujos,
fedidos e cheios de feridas, aqueles
portugueses que aqui chegavam se viam como
o “ápice da criação” e estavam sedentos para
“emprenhar” as índias jeitosas que não cobriam
suas “vergonhas”. Seus navios, com as cruzes
estampadas nas velas, trouxeram para estas
terras a ideia de pecado e de que o trabalho
dignifica o homem. Na verdade, junto com a
cruz dos portugueses, o inferno chegou para os
habitantes originais de nosso território.
Esses portugueses, tão devotos do
cristianismo, se viam como missionários a
serviço de Deus e da fé cristã. Logo,
acreditavam na missão de catequização e
doutrinação dos nativos ao cristianismo. Em um
primeiro momento, este serviço ficou a cargo
da Companhia de Jesus, ordem jesuítica que
assumiu o papel de “domesticador” dos
“gentios” e propagador da fé cristã nos
territórios portugueses do novo mundo. Os
jesuítas criaram as “Missões” onde juntavam
diversas etnias nativas distintas para catequizar
e europeizar.
Nas missões, os nativos eram
obrigados a abandonar suas culturas, suas

91
crenças e seu modo de vestir e agir. Os
jesuítas ensinavam as “boas maneiras” dos
europeus, pouco se importando com a história
e cosmovisão dos índios. O que importava é
encher-lhes da ideia de pecado para que então
pedir a Deus perdão por viverem num
verdadeiro paraíso que aos poucos foi se
transformando num inferno. Os jesuítas
falavam aos índios que as doenças trazidas
pelos portugueses, os estupros, o extermínio, a
escravidão e a perda de seu território
aconteciam por vontade de Deus que os
castigava por terem vivido por tanto tempo sem
conhecer a palavra do Senhor. E aqui também
podemos perceber que a Mentalidade
Colonizada estava sendo inculcada na
população original de nosso país. Assim,
podemos perceber como o cristianismo
começou a ser utilizado para justificar e
legitimar a exploração e a entrega de nosso
território e recursos naturais para as
metrópoles que nos dominaram.
Da mesma maneira, o cristianismo,
ensinado aos nativos pelos jesuítas, buscava
criar a ideia de que o trabalho era um meio de
dignificar o homem. Esta ideologia ainda está
presente atualmente e serve para legitimar a
ideia de que a sua força de trabalho deve ser
oferecida, independentemente do salário, para
qualquer tipo de serviço. Cria se assim a

92
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

mentalidade de que aqueles que não trabalham


são vagabundos que não são dignos de
conviver em sociedade.
A ideia de trabalho para as populações
nativas de nosso país era totalmente diferente
da ideia de trabalho que o português conhecia.
O nativo, antes da chegada dos portugueses,
não trabalhava em troca de um salário, não
trabalhava para enriquecer. Fazia o trabalho
necessário para sobreviver e manter seu grupo,
sendo assim, não se tratava de um trabalho
para acúmulo de riqueza, mas sim o trabalho
para o bem coletivo. Os portugueses não
conseguiam entender essa lógica, pois se
guiavam exclusivamente pelo desejo de
enriquecimento individual. Logo, coube ao
cristianismo ensinado pelos jesuítas, o papel de
criar nos nativos e nos escravos africanos a
aceitação do trabalho para favorecer o
enriquecimento dos portugueses.
Desde então, o cristianismo em nosso
país serviu como um instrumento de
doutrinação a serviço da dominação. Esta
doutrinação foi utilizada para a Mentalidade
Colonizada se consolidar, uma vez que o
cristianismo serviu, por muito tempo, apenas
para consolar e criar uma aceitação da
condição de miséria a qual o povo sempre foi
submetido. Ao transmitir a ideia de que tudo
acontece por vontade de Deus, o cristianismo

93
no Brasil assumiu um papel de apaziguador
das tensões sociais, bem como ajudou a
manter a população submissa ao poder
oligárquico.
As igrejas que se espalharam sobre
nosso território demonstram bem a separação
de classes e o papel apaziguador das tensões
sociais em nosso país. A separação de classes
pode ser percebida quando observamos a
existência das igrejas dos escravos e das
igrejas dos senhores. E o papel apaziguador é
observado quando estudamos que a igreja
serviu por muito tempo como difusora da ideia
de que a escravidão existia por vontade divina.
Assim, índios e negros convertidos ao
catolicismo eram também doutrinados a crer
que faziam parte de uma raça inferior e que por
isso trabalhavam para os homens brancos para
se redimirem do pecado de terem nascido.
E assim, colonizando o pensamento, o
cristianismo foi servindo como ferramenta de
dominação e aceitação da realidade social,
sempre favorável às oligarquias que, por sua
vez, são submissas à metrópole. Isto se dá
devido ao sistema de padroado, oriundo de um
passado medieval e que se perpetuou em
Portugal e, subsequentemente, nos territórios
colonizados. Apesar do conflito de interesses
entre a Companhia de Jesus e a coroa
portuguesa, que culminou com a expulsão dos

94
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

jesuítas no Brasil, o cristianismo em nosso país


sempre esteve a serviço da manutenção da
ordem de poder estabelecida pelas oligarquias.
Claro que houve episódios onde membros da
igreja católica estiveram envolvidos com
revoltas populares. Porém, essas revoltas não
representavam a vontade oficial da igreja, mas
sim eventos isolados onde quase sempre os
religiosos envolvidos nas insurreições
populares acabavam sendo expulsos da igreja.
Com a chegada da família real
portuguesa e a abertura dos portos às nações
amigas, se iniciou um período de tolerância ao
protestantismo no Brasil. Uma das condições
impostas ao Rei D. João VI para a ajuda
inglesa à coroa portuguesa foi justamente a
possibilidade da tolerância religiosa ao
protestantismo no território brasileiro. Porém, o
protestantismo não representou uma mudança
de paradigma para a formação da Mentalidade
Colonizada. Pelo contrário, a realização de
cultos em língua portuguesa (enquanto as
missas católicas ainda eram realizadas em
latim), favorecia a doutrinação por meio da fé.
Assim, no final do século XIX e durante
todo o século XX, o protestantismo se espalha
pelo país, trazendo junto a teoria da
predestinação divina. Ou seja, ricos são ricos
por vontade divina e pobres são pobres pela
vontade de Deus e pela falta de esforço para

95
se alcançar a riqueza. Esta teoria se alastrou
ainda mais com o advento do
neopentecostalismo e do surgimento de igrejas
que funcionam como verdadeiros negócios de
enriquecimento de seus pastores. Nestas
igrejas, que vendem a fé e a salvação em
vassouras ungidas, água do rio Jordão, que
aceitam o dízimo em várias parcelas no cartão
de crédito e vendem curas milagrosas, a
Mentalidade Colonizada é inculcada o tempo
inteiro em fiéis que são levados a crer que
Israel e EUA são os paraísos dos
predestinados.
Foram estas igrejas que serviram como
um verdadeiro curral eleitoral para a eleição de
um governo genocida e miliciano. A
propaganda eleitoral, feita dentro das igrejas
evangélicas, abre espaço para políticos sem
escrúpulos que pouco se importam com a ética
e a moral cristã. Para eles, o que importa é a
criação de um eleitorado acrítico, que siga
cegamente tudo o que os pastores charlatões
dizem. Os fiéis, desesperados por salvação,
não percebem que estão sendo vítimas de
pastores inescrupulosos que só querem os
seus dízimos. São dentro dessas igrejas que
surgem os grupos de traficantes cristãos que
destroem terreiros, mas que contribuem,
fielmente, pagando o dízimo com parte de seus
lucros com a venda de drogas. Com o dinheiro

96
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

jorrando como fontes milagrosas, esses


pastores formam conglomerados de mídia que
são utilizados para arrecadar mais dinheiro e
fortalecem ainda mais o poder desses
charlatões.
Infelizmente, estas igrejas, recheadas
de charlatanismo, contribuem para a
manutenção da ordem vigente, bem como
atuam a serviço da alienação e da propagação
da ideia de culpa naqueles que são, na
verdade, vítimas da exploração. E continuarão
sendo vítimas desses charlatões enquanto as
oligarquias mantiverem seu poder e não
permitirem o desenvolvimento de um sistema
educacional crítico e de qualidade. Enquanto
isso não ocorrer, teremos o avanço da bancada
evangélica e encaminhamento do Brasil para
uma espécie de Estado Evangélico intolerante
e preconceituoso. Esses “cristãos”, formados
dentro de igrejas que ajudam a propagar o ódio
e o preconceito, são os mesmos que
crucificariam Jesus Cristo novamente, pois
enxergariam nele um militante comunista que
prega ideias de amor e de igualdade entre
todos os homens.

Mentalidade Colonizada e a Filosofia

É desta maneira que, utilizando os


elementos da história, lançamos as bases de

97
sustentação do conceito de Mentalidade
Colonizada para compreender como o atraso, o
racismo e a falta de infraestrutura para a
formação de uma nação se sustentam através
de uma mentalidade cultivada ao longo de
séculos. São essas raízes das perversidades
que se espalham pelo solo irrigado com sangue
de índios, negros e marginalizados que garante
a fertilidade que dará origem ao Delírio Político.
As raízes da Mentalidade Colonizada
se espalham pelo solo fertilizado com o sangue
de nossa gente e se ramificam em diversos
setores da nossa sociedade atual. Não se trata
de um fenômeno meramente disperso, mas sim
de um conjunto de pensamentos que impregna
a ideologia brasileira com a ideia de
enriquecimento individual a qualquer custo e a
vontade de abandonar o país na primeira
oportunidade. Bem como, molda o
comportamento de um povo, que passa a
desejar o poder ilimitado para colocar em
prática suas perversidades herdadas de um
passado obscuro.
Assim, deixamos nossa História sob
um véu que dispersa nossa visão do passado,
glorificando símbolos que deveriam servir como
um alerta da falta de escrúpulos de uma elite
oligárquica perversa, que pouco se importa
com a vida e o sofrimento do povo, ao mesmo

98
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

tempo, desconhecemos, propositalmente, a


História da luta e da resistência dos oprimidos.
A Mentalidade Colonizada nos conduz
a um tipo de escravidão moderna, bem como
uma subserviência e dependência das
metrópoles. Com isso, seguimos sem
desenvolver nosso verdadeiro potencial como
nação. Bem como não conseguimos acertar as
contas com o passado e mantemos o racismo e
o genocídio de nossa população marginalizada.
Quando estudamos a genealogia da
moral compreendemos que uma mentalidade
não se forja do dia para noite, com uma data
específica de sua fundação. Uma mentalidade
não é simplesmente construída de maneira
factual. Ao contrário, a mentalidade vai se
formando, ao longo de gerações. Por isso
buscamos demonstrar alguns dos eventos que
construíram o modo de pensar de um povo.
Claro que não se trata de fazer uma história
totalizante, pois se trata de uma empreitada
impossível. Mas, devemos ter em mente que,
ao longo da história, o modo de pensar atual foi
se moldando, cotidianamente, com práticas e
atitudes que foram se repetindo como uma
normalidade.
O conjunto de práticas e ações
cotidianas forma o Ethos brasileiro. Assim, o
conflito entre o discurso moralizante
cristianizado do povo está em conflito

99
constante com suas práticas que, se fossem
analisadas radicalmente, demonstrariam o
caráter imoral, principalmente, dos maiores
defensores da moral e dos bons costumes:

Genealogia quer dizer, ao mesmo


tempo, valor da origem e origem
dos valores. Genealogia se opõe
ao caráter absoluto dos valores
tanto quanto a seu caráter relativo
ou utilitário. Genealogia significa o
elemento diferencial dos valores
do qual decorre o valor destes.
Genealogia quer dizer, portanto,
origem ou nascimento, mas
também diferença ou distância na
origem. Genealogia quer dizer
nobreza e baixeza, nobreza e
vilania, nobreza e decadência na
origem. O nobre e o vil, o alto e o
baixo, este é o elemento
propriamente genealógico ou
crítico. (DELEUZE, Nietzsche e a
Filosofia, p. 4)

Por isso que podemos questionar a


ética e moral de um povo que surgiu apoiando
se na tradição religiosa cristã, que venera a
imagem de alguém que foi torturado até a
morte por crucificação, mas que ao mesmo

100
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

tempo chicoteava, torturava, matava e


estuprava índios, negros, mulheres e
homossexuais. É nesse sentido da contradição
que Deleuze analisa a Genealogia
Nietzschiana:

Zaratustra será seguido por seu


"macaco", por seu "bufão", por
seu "demônio", do começo ao fim
do livro; mas o macaco se
distingue de Zaratustra assim
como a vingança e o
ressentimento se distinguem da
própria crítica. Confundir-se com
seu macaco é o que Zaratustra
sente como uma das horríveis
tentações que lhe são armadas.
(DELEUZE, Nietzsche e a
Filosofia, p. 4)

Assim, podemos dizer que, por mais


devoto do cristianismo que fosse o
“sinhozinho”, mais próximo do inferno cristão
esse sujeito estava, uma vez que, apesar de
buscar uma existência cuja redenção estava no
paraíso bíblico, suas práticas cotidianas de
tortura e exploração a todo custo o
transformavam no próprio demônio encarnado
e que causava toda sorte de dor e sofrimento

101
naqueles que, porventura de sua sorte (ou
azar), caíssem sob seus desmandos.
Porém, devemos sempre nos lembrar
de Paulo Freire e o conceito de hospedar o
opressor. Quando a educação não é crítica e
inclusiva, o desejo do oprimido se transforma
em vontade de oprimir, justamente por que é
pelo meio da opressão que o opressor sustenta
seu poder. Logo, o desejo do povo não passa a
ser um desejo de libertação, mas sim o desejo
de oprimir, pois assim estaria se associando ao
poder. Por isso a prática de perversidades
herdadas do período colonial e escravocrata se
espalha entre a população que deseja o poder
de oprimir para assumir um novo patamar, um
novo status social.

102
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Delírio Político

103
Que tipos de perversidades, de
paranoias e de psicopatias podem surgir em
uma sociedade que se desenvolveu
banalizando o mal? Que tipo de futuro pode ter
uma nação cultivada com sangue? Quais os
tipos de doenças sociais que se desenvolveram
ao longo de séculos de tortura, de estupros e
de extermínios? Uma sociedade perversa se
cria quando, ao longo da história, a maldade é
utilizada, sistematicamente, pelo estado e
banalizada cotidianamente por seus cidadãos.
Hanna Arendt analisou o julgamento de
criminosos de guerra nazistas para chegar à
conclusão de que, quando a morte e a tortura
fazem parte do cotidiano, as pessoas
assimilam a maldade como algo normal. Mais
ainda, não são somente os monstros e
psicopatas que praticam os crimes mais
horrendos, mas sim aqueles “cidadãos de bem”
que, dentro de suas normalidades, não
enxergam suas perversidades, pois estas
passam a fazer parte de seus cotidianos. Logo,
tudo aquilo que deveria considerado

104
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

“desumano” passa a fazer parte do dia a dia a


ponto de não causar mais estranheza alguma
para a sociedade quando crianças negras são
baleadas pela polícia enquanto estavam a
caminho da escola, com uniforme escolar.
Este tipo de maldade se enraizou
devido a séculos de extermínios, de torturas e
de crimes contra a humanidade e a dignidade
em uma sociedade cultivada com sangue de
índios, negros, mulheres e homossexuais que
são sistematicamente eliminados ao longo de
gerações. Nosso solo é um cemitério de vidas
que foram marginalizadas por uma elite
cristianizada que não veria mal algum em
crucificar Jesus se este renascesse em nossa
época e pregasse ideais de igualdade, amor
fraterno e espiritualidade verdadeira sem apego
a riquezas materiais.
Ao mesmo tempo, essa mesma parcela
da população acredita ser portadora da
verdade e do poder de julgar os defeitos que
não conseguem enxergar em si mesmos. Essa
contradição entre o agir e o falar é um dos
maiores motivos da criação de uma existência
delirante. E, como a maior parte da população
é vítima da Mentalidade Colonizada, não
conseguem nem mesmo perceber a
contradição entre aquilo que pregam /
acreditam e aquilo que fazem.

105
A contradição é uma das maiores
marcas de nosso país. Somos, ao mesmo
tempo, um dos países mais ricos do mundo.
Por outro lado, temos uma pobreza endêmica
que é naturalizada e aplicada por oligarquias
que impregnam o imaginário com a ideologia
absurda da meritocracia. Da mesma maneira,
temos a maior população cristã do mundo ao
mesmo tempo em que a maior parte dessa
população deseja que a tortura e a pena de
morte façam parte do cotidiano: se pudessem
se deliciariam vendo programas onde
torturassem e matassem os “marginais” com
requintes de crueldades.
Não que esses programas não existam:
todos os dias, no horário do almoço, milhões de
brasileiros assistem na TV a morte, corpos
ensanguentados e violência gratuita. A
banalidade do mal chegou a tal ponto que o
sangue e violência não mais causam repulsa e
passam a ser vistos como entretenimento
apropriado para o horário das refeições. Essa
forma de “entretenimento” é o reflexo de uma
sociedade onde a perversidade e a maldade
foram normalizadas por tanto tempo que
servem como diversão.
É nesse campo, fertilizado com sangue
e ossos, que os delírios políticos se
desenvolvem. São delírios e paranoias típicos
de uma população que foi gerada, ao longo de

106
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

gerações, acostumadas com a morte, miséria e


a maldade. Junte se a isso o sentido proposital,
designado pelas oligarquias, dominadas pela
Mentalidade Colonizada, que desejam manter
um povo como refém de suas vontades
familiares, que foram moldadas também ao
longo de séculos de perversidades.
Assim, o Delírio Político surge como
uma normalidade de distorção da realidade.
Mais ainda, se trata de um fenômeno
propositalmente cultivado para manter a
população numa situação análoga à escravidão
e em uma situação de “passividade atuante”
diante da violência a que são submetidos. Por
isso, não podemos pensar no Delírio Político
como uma simples doença mental, mas sim
como um fenômeno político e social.
O Delírio Político é uma mistura de
apatia social com a ignorância. Bem como, é o
resultado da paranoia anticomunista que
domina a mentalidade da classe média
brasileira desde a intentona comunista e se
fortaleceu no período da Guerra Fria. A
dificuldade em compreender o que é
Comunismo, Capitalismo, luta de classes e
política, aliada a dominação cultural gerada
pela Mentalidade Colonizada, cria uma espécie
de doença social que chamaremos de Delírio
Político.

107
Porém, precisamos deixar claro que
não se trata de conceituar uma doença mental
ou, como Foucault, estabelecer a relação entre
loucura e exclusão. Pelo contrário, o conceito
de Delírio Político não existe para limitar um
grupo ou excluí-los de algum tipo de
participação na sociedade. Ao invés disso, o
Delirante Político participa ativamente de
discussões, manifestações e de processos
políticos, porém, sempre com uma visão
totalmente distorcida da realidade. Foucault, ao
comentar sobre a visão de Durkein sobre a
Loucura afirma:

A doença seria marginal por


natureza, e relativa a uma cultura
somente na medida em que é
uma conduta que a ela não se
integra. Virtual, já que o conteúdo
da doença é definido pelas
possibilidades, em si mesmas não
mórbidas, que nela se
manifestam: para Durkheim, é a
virtualidade estatística de um
desvio em relação a média, para
Benedict, a virtualidade
antropológica da essência
humana; nas duas análises, a
doença ocorre entre as
virtualidades que servem de

108
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

margem a realidade cultural de


um grupo social. (FOUCAULT,
Doença Mental e Psicologia, p.
50).

Também, não se trata de fazer uma


análise psicanalítica dos indivíduos acometidos
pela Delírio Político uma vez que, ao invés de
um fenômeno individual se trata de um surto
paranoico coletivo. Por isso lançamos o
questionamento: e quando a doença é o normal
para a maioria da população? No nosso caso,
analisamos uma parcela da população que
venceu as eleições de 2018, logo, se trata de
um grupo majoritário. Ainda que nem todos os
eleitores do grupo que venceu a eleição de
2018 no Brasil possam ser enquadrados como
Delirantes Políticos, percebemos que o grupo
vencedor teve forte influência do Delírio
Político. Por isso, cabe aqui mais uma questão:
Quem são os Delirantes Políticos? Deleuze e
Guattari, citando Levi Strauss, no livro O anti
Édipo fazem uma brilhante abordagem da
esquizoanálise no mito de Édipo:

O motivo inicial do mito de


referência consiste num incesto
com a mãe de que o herói se
torna culpado. Todavia, essa
culpabilidade parece existir

109
sobretudo no espírito do pai, que
deseja a morte de seu filho e se
empenha para provocá-la. Afinal
de contas, o pai, sozinho, faz
papel de culpado: culpado de ter
querido vingar-se. E ele é quem
será morto. Este curioso
desprendimento em face do
incesto aparece em outros mitos.
Primeiramente, antes de ser um
sentimento infantil e neurótico,
Édipo é uma ideia de paranoia de
adulto. (DELEUZE, G. &
GUATTARI, F. (1972) O Anti-
Édipo. p. 361,362)

Assim, podemos dizer que os delírios e


paranoias dos Delirantes Políticos dizem muito
mais sobre suas próprias sexualidades
reprimidas, suas pulsões e perversões do que
dizem sobre a esquerda. Na análise de Levi
Strauss podemos perceber muito bem que a
paranoia de Laio, pai de Édipo, encaminha o
mito para uma tragédia. Do mesmo modo, as
paranoias dos Delirantes Políticos nos
encaminham para um verdadeiro genocídio.
Quando os Delirantes Políticos atacam os
homossexuais estão, na verdade, lutando para
não demonstrarem suas próprias
homossexualidades reprimidas. Quando

110
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

atacam o Comunismo, por exemplo, estão


tentando esconder suas próprias vontades de
se tornarem déspotas e tiranos para poderem
governar de maneira ditatorial e acima das leis.
Deleuze e Guattari ainda afirmam:
Todavia, é evidente que não há um único
delírio que não possua eminentemente esse
caráter, e que não seja originalmente
econômico, político etc., antes de ser
esmagado pelo torniquete psiquiátrico e
psicanalítico (Deleuze & Guattari, O anti Édipo.
p. 362). É neste sentido que buscamos
conceituar o Delírio Político como um
fenômeno social, com raízes políticas e
econômicas que possuem um sentido. Este
sentido é voltado à direita, saudosa de suas
perversões e sadismos, que desejam a
sexualidade que reprimem e que desejam
impor suas vontades acima da vontade
coletiva.
O apelo à tradição familiar também
está presente no Delírio Político, onde o apelo
à heterossexualidade, religiosidade e valores
de direita são inculcados, desde a infância,
gerando os preconceitos, paranoias e neuroses
que impregnam o pensamento dos chamados
“cidadãos de bem”. Por isso, o Delirante
Político é aquele sujeito que, desconhecendo o
sentido de um conceito, utiliza de seus próprios
preconceitos para atacar tudo àquilo que não

111
gosta ou aquela vontade latente que reprime
dentro de si.

No campo social comum, a


primeira coisa que o filho recalca,
ou que tem de recalcar, ou que
tenta recalcar é, aparentemente, o
inconsciente do pai e da mãe. O
fracasso desse recalcamento é
que aparece como base das
neuroses. (DELEUZE, G. &
GUATTARI, F. (1972) O Anti-
Édipo. p. 365)

Também podemos dizer que aqueles


acometidos pelo Delírio Político possuem
diversas paranoias com relação a sexualidade,
conceitos e políticas de esquerda e enxergam
uma ameaça comunista em tudo aquilo que
não compreendem. Por isso, também podemos
dizer que o Delirante Político possui uma
grande tendência política de Direita e, portanto,
procura atribuir à esquerda tudo aquilo que ele
considera ser ruim. Assim, o conceito de Delírio
Político estaria muito mais ligado a uma doença
política e social. Poderíamos também vincular o
Delírio Político com diferentes períodos
históricos, porém, acreditamos que, com o
desenvolvimento tecnológico que permitiu o
surgimento das redes sociais, as raízes da

112
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Delírio Político puderam se espalhar mais


facilmente.
A difusão das redes sociais possibilitou
o reino da Doxa em seu mais amplo sentido:
Aqueles que não podiam dar suas opiniões por
desconhecerem do que falavam agora
possuem todas as ferramentas para dizer o que
quiserem, mesmo com desconhecimento total
do que dizem. E, ao mesmo tempo, a
massificação da comunicação provocada pelas
redes sociais retirou o filtro da erudição e da
necessidade de critérios rigorosos para que
argumentos fossem socialmente aceitos.
Assim, a internet deu espaço a uma geração de
palpiteiros e formadores de opinião que não
possuem necessariamente formação e mesmo
o mínimo de conhecimento para expressarem o
que desejam. Mais ainda: colocam suas
opiniões como verdades inquestionáveis.
Nesse espaço aberto pelas redes
sociais se propagam as teorias da conspiração,
as auto-verdades, as pós-verdades, as Fake
News e teorias que ganham adeptos junto a
aqueles que não tiveram uma formação
educacional sólida. Por isso que temos, em
pleno século XXI, tantos adeptos de teorias
como Terraplanismo, Anti Vacinas e
neofascistas. É nesse espaço aberto pelas
redes sociais que o Delírio Político ganhou
força.

113
Claro que já havia sinais desde a
época dos IRCs, salas de bate papos e dos
fóruns que podem ser considerados paleo
redes sociais. Mas, seu acesso era restrito a
poucas pessoas, por isso a postagem nesses
locais possuía pouco impacto social e pouca
disseminação. Porém, com a disseminação da
internet móvel, as redes sociais passam a
ocupar um papel central na vida das pessoas.
Além disso, aplicativos como o WhatsApp
colocam à mão das pessoas a possibilidade de,
literalmente, falar com o mundo. A Veracidade
das mensagens trocadas não precisa ser
verificada. A veracidade cede espaço à
quantidade de pessoas que compartilham a
mesma mensagem. É nesse mundo de pouca
verificação que surge o Delírio Político.
Pessoas com pouco (ou nenhum) grau
de instrução conseguem a mesma capacidade
de disseminação de informação que teóricos e
cientistas. Mais ainda, dependendo da
interação social, as informações simples, de
gente sem nenhuma formação, conseguem
alcançar mais pessoas do que a informação
fundamentada e técnica. Em uma sociedade
onde o sistema educacional de qualidade é
restrito, forma-se um grande campo para
palpiteiros e para a disseminação de pós-
verdade e Fake News.

114
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Neste contexto, surge o fenômeno do


Delírio Político, no qual conceitos como
Comunismo, Democracia, Socialismo e
Liberalismo são frequentemente mal
interpretados e distorcidos. Por exemplo,
durante o golpe de 2016, o termo Comunismo
foi erroneamente associado a todas as coisas
negativas por manifestantes que apoiavam o
impeachment de Dilma Roussef, sem
compreender seu verdadeiro significado. Isso
ilustra como a falta de conhecimento sobre
esses conceitos pode levar a interpretações
errôneas. Mesmo na era da informação, a falta
de compreensão sobre o fim da Guerra Fria
levou a uma paranoia infundada, tornando o
comunismo uma espécie de "bicho-papão" para
pessoas com pouca instrução.
As Fake News desempenham um
papel significativo na propagação do Delírio
Político, aproveitando a falta de qualidade do
sistema educacional e a ausência de requisitos
específicos para jornalistas. Elas são usadas
para moldar opiniões em grupos da população
com pouca educação, suscetíveis a teorias da
conspiração. As Fake News têm impacto em
eleições ao redor do mundo, não se limitando
apenas ao Brasil. No entanto, no nosso país,
as Fake News causaram um impacto tão
significativo que chegaram a ameaçar a coesão
social, exacerbando o problema do genocídio

115
étnico racial arraigado em uma sociedade
moldada pela Mentalidade Colonizada.
É importante destacar que o Delírio
Político está frequentemente ligado ao ódio de
classe, um traço característico da Mentalidade
Colonizada. Mais que isso, as Fake News
buscaram, deliberadamente, deslegitimar
professores, médicos, cientistas, ONGs, e
formatar a opinião pública de acordo com a
vontade das oligarquias nacionais. Ainda
podemos citar a ligação entre a existência de
milícias virtuais e reais que utilizaram a
distorção da realidade produzida pela Delírio
Político para a eleição de representantes
políticos que vão defender a vontade desses
grupos milicianos.
Podemos definir o Delírio Político
como uma distorção da realidade causada pela
falta de conhecimento. A baixa qualidade do
sistema educacional resulta em pessoas que
desconhecem conceitos fundamentais, o que,
por sua vez, contribui para a criação de uma
realidade distorcida. Essa realidade distorcida
tende a beneficiar as oligarquias que mantêm a
Mentalidade Colonizada.
É crucial entender que o Delírio Político
não é um fenômeno aleatório, desprovido de
posicionamento político. Ele é orientado pelo
ódio de classe, já que as oligarquias brasileiras
têm aversão ao povo e uma afinidade pelo que

116
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

é considerado estrangeiro, muitas vezes ligado


às metrópoles.
O Delírio Político ajuda a explicar
situações como as manifestações de 2013, nas
quais multidões protestaram sem compreender
totalmente o motivo. Ele também está por trás
das críticas ao comunismo em manifestações
tidas como "apartidárias" e da ascensão do
neofascismo e das milícias ao poder. Além
disso, explica a autofagia dos pobres que se
opõe a políticas sociais.

O Delírio Político e os inimigos imaginários

Os Delirantes Políticos assumem um


caráter conservador, porém se formos à raiz da
origem conceitual da Esquerda e da Direita na
política, veremos que o Delírio Político está
muito mais para o campo reacionário do que
para o campo conservador.
Os conceitos de esquerda e direita
dentro da política surgem no período da
Revolução Francesa, quando Jacobinos e
Girondinos discutiam os rumos políticos da
Revolução. Do lado esquerdo do recém-eleito
parlamento Frances pós-revolução sentavam
se os jacobinos, que defendiam,
principalmente, os interesses da burguesia
comercial. Do lado direito sentavam se os
girondinos que defendiam os interesses da

117
nobreza. Assim, os Jacobinos passam a ser
associados a ideais progressistas e os
Girondinos se associam aos ideais de retorno a
um passado medieval.
No Brasil, devido ao Delírio Político,
muitos que se consideram conservadores, na
realidade, são reacionários, ansiando por um
retorno a tempos que veem como melhores
que o presente. O verdadeiro conservador, por
sua vez, busca manter a ordem atual, sem
buscar um futuro mais liberal ou regressar a um
passado distante.
No contexto da Mentalidade
Colonizada e do Delírio Político brasileiro, a
esquerda é frequentemente associada ao
comunismo, enquanto a direita é vista como
representante da tradição, moral e religião. No
entanto, é importante notar que a tradição
moral e religiosa predominou na Idade Média.
Portanto, aqueles que defendem o
conservadorismo de direita, na realidade, estão
apoiando um retorno à Idade Média, tornando o
conservador brasileiro, de fato, reacionário.
Vale lembrar que a família real
portuguesa veio para o Brasil para escapar das
invasões napoleônicas, motivadas pelas ideias
liberais da Revolução Francesa, que marcou o
fim da Idade Média e o avanço em direção à
Idade Moderna. O pensamento reacionário,
muitas vezes impregnado de elementos

118
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

medievais, é comum entre as oligarquias que


resistem aos princípios de "Liberdade,
Igualdade e Fraternidade". A crítica aos Direitos
Humanos, frequentemente presente no cenário
político, é um exemplo desse pensamento
reacionário. Além disso, temos notado um
aumento de pessoas que questionam a
separação entre Estado e religião, bem como a
Ciência e os valores humanistas da Idade
Moderna. É por isso que, em programas de
televisão, os apresentadores frequentemente
condenam os "Direitos Humanos que protegem
bandidos", embora seja importante observar
que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos não defende criminosos, uma vez
que muitos críticos nem sequer a leram.
Devemos compreender que este tipo
de discurso apenas representa a vontade das
oligarquias saudosas da escravidão, da
exploração sem limites e da perversidade da
tortura como prática de punição daqueles que
se rebelam contra o sistema. As saudades de
um passado cruel movem as oligarquias (que
são donas dos principais meios de
comunicação do país) a moldarem a opinião
pública para a aceitação e o desejo de um
sistema de perversidades e de obscurantismo.
Neste cenário moldado pela crença de
que o passado medieval era superior ao
presente, surgem inimigos imaginários, como o

119
Comunismo, a Ciência e as Artes, vistos por
aqueles que desejam um retorno ao
obscurantismo. É por isso que vemos líderes
religiosos criticando a medicina enquanto
lucram promovendo curas milagrosas. Em uma
sociedade verdadeiramente moderna, esses
líderes deveriam ser processados por
charlatanismo, mas em um país influenciado
pela Mentalidade Colonizada e pelo Delírio
Político, testemunhamos um aumento
significativo da bancada religiosa no
Congresso.
Esse crescimento do obscurantismo
elege como inimigos imaginários aqueles que
promovem o conhecimento e a luz. Isso se
manifesta nas perseguições a professores, no
desinvestimento nas universidades públicas, na
destruição de museus e na crise do sistema de
saúde pública. Os ataques aos Direitos
Humanos, professores e movimentos sociais
são parte de um movimento reacionário que
busca levar o país de volta a um período
obscuro, semelhante a uma nova Idade das
Trevas.
Os exemplos desses inimigos
imaginários ficam evidentes quando
observamos os vídeos das manifestações de
2013. Muitos manifestantes, agindo quase
como zumbis, protestavam sem entender
claramente contra o que estavam se

120
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

manifestando. Alguns criticavam o Comunismo


ou a suposta doutrinação nas escolas, mas,
quando questionados sobre o que exatamente
esses conceitos significavam, não conseguiam
responder. Essa escolha equivocada de
inimigos impede que a população desenvolva
uma consciência de classe e, em vez de unir
forças contra os verdadeiros obstáculos ao
desenvolvimento nacional, acaba lutando entre
si. Ao fomentar a discordância, as oligarquias
garantem a perpetuação de seu poder. A
estratégia é "dividir para conquistar".

O Delírio Político e a consciência de Classe

Gilles Delleuze e Felix Guattari


abordam o tema da esquizofrenia e da
paranoia no livro “O anti Édipo”. Assim,
segundo Deleuze e Guattari, não podemos
entender os indivíduos como máquinas
isoladas. Logo, existe todo um eco sistema que
preexiste e que garante a manutenção e
reprodução dos indivíduos e do que eles são.
Porém, essa relação é uma via de mão dupla,
uma vez que os indivíduos são moldados e ao
mesmo tempo moldam o seu meio ambiente.
Logo, podemos dizer que os indivíduos criados
dentro do eco sistema da Mentalidade
Colonizada reproduzem o eco sistema que
estão acostumados a viver. E dentro do eco

121
sistema criado pela Mentalidade Colonizada o
Delírio Político aparece, não como um
fenômeno isolado, mas sim como uma
normalidade insana do sistema.

Quando em seguida, ou melhor,


por outro lado, as maquinas se
encontram unificadas no plano
estrutural das técnicas e das
instituições que lhe dão uma
existência visível como uma
armadura de aço, quando os
próprios seres vivos se encontram
também estruturados pelas
unidades estatísticas das suas
pessoas, das suas espécies,
variedades e meios, - quando
uma máquina aparece como um
objeto único, e um ser vivo como
único sujeito, - quando as
conexões devêm exclusivas e as
conjunções bi-unívocas, - o
desejo não tem necessidade
alguma de se projetar nessas
formas tornadas opacas. Estas
são imediatamente as
manifestações molares, as
determinações estatísticas do
desejo e das suas próprias
máquinas. (DELEUZE, G. &

122
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

GUATTARI, F. (1972) O Anti-


Édipo, p. 379)

Ou seja, os indivíduos reproduzem o


meio ao qual estão inseridos na mesma medida
em que constroem o meio em que vivem,
baseados na experiência vivente que é vista e
tida como normal. Assim, se temos uma
sociedade impregnada com o racismo
estrutural, esse racismo será reproduzido por
indivíduos que nem mesmo percebem o
racismo e atuam dentro de uma normalidade
insana. Da mesma maneira, criados dentro da
Mentalidade Colonizada, os indivíduos
reproduzem o Delírio Político sem ao menos
perceber que estão apenas servindo como
instrumentos de manutenção do pensamento
da ordem estabelecida para manter o poder
das oligarquias nacionais.
Reproduzindo os preconceitos das
oligarquias, mantemos as relações de poder
que são estabelecidas à força desde a chegada
dos portugueses em nosso território. Além
disso, somos vítimas de um círculo vicioso
quase impossível de se romper: A Mentalidade
Colonizada gera o Delírio Político e o Delírio
Político gera a Mentalidade Colonizada. Este
ciclo vicioso cria o sistema de exploração que
mantém nosso povo em uma situação análoga
à escravidão. Porém, se trata de uma

123
escravidão mais difícil de ser abolida, pois
zumbificados não conseguem enxergar as
correntes que os prendem.
Assim, o Delírio Político e a
Mentalidade Colonizada seguem lado a lado,
servindo como instrumentos de dominação que
nos mantém como uma Colônia a serviço das
Metrópoles. Enquanto isso, prosseguimos com
o extermínio sistemático de marginalizados que
são eliminados pela política genocida. A
política de extermínio é o resultado de uma
história banhada por sangue e tortura, mas
também é o resultado de um processo
intencional, promovido pela mídia, por pastores
e políticos que promovem um verdadeiro
holocausto da nossa população marginalizada
por séculos de Mentalidade Colonizada.

Conclusões

A história se mostra mais uma vez


imprescindível para conhecer o presente. Mais
ainda: sem o conhecimento da História
caminhamos sem rumo para o Futuro. Porém,
não se trata apenas de se conhecer a História
sem crítica social. Trata se sim de aprender a
utilizar os eventos do passado para lançar luz
ao futuro. E, para lançar essa luz ao futuro a
Filosofia é essencial, uma vez que a História
trata apenas do passado. Assim, criando os

124
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

conceitos para identificar os problemas, o


futuro se revela como possibilidade.
Claro que não se trata de uma tarefa
fácil romper com uma mentalidade cultivada há
séculos. Porém, não é uma tarefa impossível.
Para tanto, devemos estabelecer claramente
qual será nosso papel nessa luta que se
arrasta há séculos em nosso país: estaremos
do lado das oligarquias ou do lado daqueles
que são oprimidos e escravizados por grupos
familiares que pouco se importam com o
verdadeiro desenvolvimento de nosso país?
Enquanto as oligarquias manterem seu
poder, teremos um país colonizado. Enquanto
o poder das oligarquias não for questionado
não conseguiremos romper com a Mentalidade
Colonizada e com o Delírio Político. Para
romper com a dinâmica de poder e exploração
estabelecida por essas oligarquias, devemos
ter consciência de que a luta vai além do
campo político partidário. Precisamos
reconhecer quais as práticas em nossos
comportamentos pessoais que ajudam a
manter a ordem de poder oligárquico.
Além disso, devemos ter em mente
que, em uma luta contra uma ordem de poder
estabelecida, devemos esclarecer os fatos que
são obscurecidos propositalmente para manter
a população na ignorância. A falta de
conhecimento histórico é uma das maiores

125
armas utilizadas pelas oligarquias para a
manutenção de seu poder. Logo, devemos
assumir o papel de iluminar aquilo que essas
oligarquias desejam manter nas sombras.
Claro que não se trata de assumir o
papel de um professor tradicional, que ilumina
os seres sem luzes (alunos) com a luz do
conhecimento. O método tradicional de ensino
só serve de instrumento de manutenção do
status quo. O que precisamos é aprender como
trabalhar com a criticidade, mesmo que para
isso tenhamos que nos infiltrar nas brechas do
sistema criado pelas próprias oligarquias.
O sistema oligárquico brasileiro produz
tanta pressão sobre o povo que produz
rachaduras em sua base. É nessas rachaduras
que devemos nos infiltrar como ervas daninhas
que crescem nos muros e que por fim acabam
por fragilizá-los tanto que acabam ruindo. É
aqui que o papel do filósofo se apresenta como
possibilidade de rompimento do presente.
Devemos ser como aqueles que se infiltram
nas rachaduras dos muros que são criados
para manter os limites e o poder das
oligarquias. Por isso a importância do Rizoma
como conceito de propagação de ideias e
afetos.
Devemos lembrar tudo o que as “elites”
de nosso país desejam manter obscurecido
para manter a população nas cavernas. Cada

126
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

vez que alguém toma consciência da nossa


história de violência e de exploração, estamos
dando um passo rumo à saída da caverna da
ignorância construída por nossas elites
oligárquicas e que mantém nosso povo em
condição de servidão. É justamente por isso
que políticos, pastores e figuras que
representam o poder das elites desejam relegar
a História um papel secundário ou um papel
desprovido de crítica. Uma história sem
criticidade é um instrumento a serviço da
manutenção de poder.
Por isso não podemos deixar a História
ser levada apenas pela futilidade, ou pela
necessidade mercadológica de produzir uma
história de curiosidades ou uma história
esmigalhada que flerta com o mercado editorial
e abandona a postura crítica. O papel da
História deve ser crítico, pois se trata de uma
arma na luta contra o obscurantismo, contra a
crueldade e maldade das oligarquias que não
medem esforços para manter toda uma
população na condição escravizada.
Ao abandonarmos a criticidade da
História, estamos servindo como instrumentos
para a manutenção da ordem estabelecida. E a
ordem estabelecida pelo “Mercado” não se
importa com as moendas de gente, com braços
decepados, com o estupro, com a tortura em
nome do lucro ou com jovens negros

127
exterminados nas periferias das grandes
cidades. Ao assumirmos um papel acrítico
estamos deixando de utilizar a história como
ferramenta que vai ajudar a derrubar um
regime cruel e estamos atuando como
instrumentos de manutenção de poder.
Por isso as Universidades possuem um
papel central na luta de descolonização do
pensamento. Jamais conseguiremos romper
com a Mentalidade Colonizada enquanto as
Universidades não assumirem uma postura
crítica e atuante contra as oligarquias. Mas, a
Mentalidade Colonizada também está
impregnada nesses lugares que deveriam ser
os locais onde se formam os guerreiros que
vão lutar contra as trevas: é mais fácil
abandonar o país do que lutar contra todo um
sistema que existe há séculos.
É exatamente esse tipo de pensamento
que mantém a Mentalidade Colonizada.
Abandonar o país na primeira oportunidade que
se apresenta é o resquício de um pensamento
colonial, que se mantém numa população que
não possui perspectivas de mudança e que
perdeu toda a esperança de construção de um
futuro melhor do que o presente num país
dominado por oligarquias perversas, que não
medem esforços para manter a estrutura de
poder.

128
Mentalidade Colonizada & Delírio Político

E as perversidades vão criando uma


existência de delírios, onde a realidade
distorcida ajuda a perpetuar o racismo, o
machismo, a exploração e a desigualdade
social. O Delírio Político é o resultado direto de
uma história repleta de tortura, morte, estupros
e de todo tipo de violência ao qual nosso povo
foi submetido ao longo dos séculos. As
psicoses e paranoias incutidas na mentalidade
brasileira favorecem o sistema que mantém a
exploração de nossa população e ainda mais:
destina a inimigos imaginários o ódio que
deveria ser direcionado aos verdadeiros
responsáveis pela condição de miséria que
uma grande parte da população é obrigada a
viver, mesmo quando temos um país tão rico.
Ao serem direcionados pelo ódio aos
inimigos imaginários, o povo é direcionado a
uma guerra contra ele mesmo. E o exemplo
mais claro disso é a “guerra às drogas” que
coloca a população periférica em um estado de
conflito constante, onde as balas perdidas
nunca atingem os filhos dos ricos. O conflito
nas periferias e nas favelas nunca vai acabar
com o tráfico, pois as drogas nunca são
produzidas onde ocorrem as operações
policiais. Enquanto policiais e traficantes se
enfrentam numa guerra sem fim, aviões
presidenciais, helicópteros de senadores e
apartamentos de luxo seguem abarrotados de

129
drogas que, quando apreendidas, nunca se
encontram os donos. Nenhum tiro é disparado
em operações num bairro nobre enquanto as
favelas são incessantemente metralhadas.
O capitão do mato sobreviveu à
abolição e hoje se digladia contra negros e
pobres numa guerra desumana que é
impossível de ser vencida. E a guerra do povo
contra o povo é mais um dos instrumentos
utilizados pelas oligarquias para a manutenção
de seu poder. E isto demonstra que o sistema
de perversidades das elites nunca foi
interrompido desde a chegada dos
portugueses. E os capitães do mato também
são vítimas de uma classe dominante que não
se importa em mandar vidas humanas para as
moendas de gente.
A perversidade das oligarquias, que
não se importam com vidas de negros, pobres,
homossexuais e todo tipo de gente que é vista
como uma ameaça ao poder oligárquico,
banaliza a violência a um ponto onde faz com
que nosso país viva um genocídio normalizado.
Esse tipo de perversidade pode ser comparado
à Banalidade do Mal descrita por Hanna Arendt
durante o julgamento de Adolf Eichmann.
Essa existência de uma verdadeira
banalidade do mal em nossa sociedade é o
resultado de séculos de uma mentalidade que
reduz seres humanos a meros objetos, cuja

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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

única finalidade é a produção de lucro para os


patrões/senhores. Logo, essa “elite” que
domina o país não vê problema algum em
exterminar aqueles que questionam a ordem de
poder estabelecido. A ideia de limpeza étnica é
atualmente transmitida, dentro dos quartéis,
disfarçada de combate às drogas e a
marginalidade. Porém, não passa de um
extermínio sistemático da população negra,
marginalizada e periférica.
O Delírio Político é criado quando uma
população se acostuma com a prática de
extermínio, quando as elites suprimem o direito
à educação de qualidade para a população e
quando as oligarquias utilizam os meios de
comunicação para disseminar o ódio de classe
e seu preconceito racial. A ignorância é um dos
maiores instrumentos de dominação, uma vez
que, sem o conhecimento necessário para
reconhecer a exploração a que estão
submetidos, o povo passa a gostar de sua
condição de escravo moderno. Assim, sem
reconhecer sua própria condição, o povo
reproduz o ódio que as elites inculcam na
população que não vai ter acesso ao ensino
público de qualidade.
A ignorância leva a um total
desconhecimento das Leis e por isso facilita a
disseminação da necropolítica como política
pública de controle da população

131
marginalizada. Por isso, temos presídios que
são mais desumanos que alguns dos piores
campos de concentração nazistas. E por isso
temos uma grande parcela da população que
considera os encarcerados como seres
desumanizados, que podem ser submetidos a
práticas de torturas e todo tipo de violência em
nome da vingança como forma de se promover
a justiça.
A justiça elitista, formada em sua quase
totalidade por pessoas oriundas da classe
média / alta, está impregnada com os
preconceitos e o ódio que são cultivados ao
longo dos séculos. E os presídios abarrotados
de negros e pobres são o resultado de uma
política de extermínio que nunca foi rompida,
desde a chegada dos portugueses até hoje. Da
mesma maneira, o desejo por causar castigos
físicos e torturas se manteve numa população
que recebe pela mídia a banalização da
violência e por isso nutre o desejo perverso dos
castigos que eram comuns durante a
escravidão.
A persistência da existência da
Mentalidade Colonizada não acontece ao
acaso. Trata-se de uma Mentalidade cultivada,
adubada e regada com a finalidade de manter
o país em situação colonial e o povo numa
condição de escravidão. Da mesma maneira, o
Delírio Político também é o resultado de um

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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

processo intencional e não aleatório, cujo


objetivo é inculcar uma ignorância, uma
verdadeira sombra, que obscurece a visão
política de um povo. Desta forma, vivendo
dentro de uma caverna alienante, o povo não
consegue reconhecer seus algozes e muito
menos enxergar suas próprias correntes.
E enquanto não reconhecermos nossas
próprias correntes não conseguiremos acertar
as contas com o passado. Assim, os fantasmas
do passado vão se perpetuando no presente,
bem como as perversidades e maldades de
nossa história continuam se reproduzindo e vão
produzindo uma normalidade insana e uma
sociopatia que gera o holocausto normalizado.
E assim, moendo gente, espremendo o povo
até a última gota de suor e lágrimas, nossa
história vai sendo marcada pelo genocídio que
passa invisível pelos olhos da nossa
população.
E as oligarquias brasileiras se deliciam
em um banquete onde a carne humana é
devorada por aqueles que se acostumaram a
ver a tortura, estupros e assassinatos como
algo normal. E nos finais de semana, os
“cidadãos de bem”, palatinos da moral e bons
costumes, vão às missas/cultos e acreditam
que estão livres de seus pecados e suas
maldades. Mas, em seus pensamentos ainda
reinam a vontade da morte e do estupro da

133
gente inocente. Ainda desejam o mal e o
retorno a um passado onde a vida e a morte da
pobre gente eram apenas uma questão de
vontade e de poder. E ainda seremos escravos
dessa gente perversa e inescrupulosa
enquanto não conhecermos nossa História e
enquanto não chamarmos as coisas pelo que
elas são de fato.

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Mentalidade Colonizada & Delírio Político

Referências:

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Título: Cartas, informações, fragmentos
historicos e sermões ; Detalhes: Rio de Janeiro:
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