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Estudo de
Filosofia
Jurídica
Prof. Marco Antônio Correia Bomfim
FILOSOFIA PRA QUÊ?
AULA 2
“[...] em comum com a revelação, a filosofia conforme elaborada por Platão representava um “salto no ser”. Como a
revelação, a filosofia é “mais do que um aumento de conhecimento da ordem do ser; é uma mudança na própria
ordem”. Ao lado da revelação, a filosofia, “longe de ser um ponto de vista subjetivo, é um evento ontologicamente real
na história. [...] “é não somente uma verdade sobre o Ser; é a Verdade do Ser proclamada pelo ‘homem que sabe’ [...]
como Parmênides nos mostrou, é “uma encarnação na Verdade do Ser”.” Eric Voegelin, Ordem e História Vol. III
1
Cf. Otto Maria Carpeaux, Ensaios Reunidos – Vol “ I A idéia da universidade e as idéias das classes
médias” p 211-218.
doutrinações político-ideológicas, os cerceamentos do moralismo politicamente correto
e os reducionismos ideológicos. Como nos diz Otto Maria Carpeaux (1999, p. 211),
2
Cf. a este respeito a análise crítica feita pelo filósofo Mário Ferreira dos Santos em seu livro Invasão
vertical dos bárbaros, um manifesto sobre como na contemporaneidade se dá a tragédia da condição
humana esmagada sob a superficialidade, um modo da barbárie. Invasão vertical por se dá através da
cultura, solapando seus fundamentos e preparando o caminho para a corrupção mais fácil do ciclo
cultural. Manifesto escrito em meados doo século passado, mas com atualidade e vigência de tempos
hodiernos.
3
Cf. as seguintes obras: Maquiavel Pedagogo: Ou o ministério da reforma psicológica – Pascal
Bernardin e Poder Global e Religião Universal – Juan Claudio Sanahuja. Ambas, fruto de pesquisas ao
longo de uma década com indicação das fontes primárias e, A espiral do silêncio: opinião pública: nosso
tecido social – Elizabeth Nolle Neuman,
Em sua Reflexões autobiográficas – Eric Voegelin relata acerca da sua
formação intelectual, da Universidade de Viena na década de 20 e todo processo que
vivenciou da deterioração do ambiente cultural pela ascensão e chegada ao poder do
Nacional Socialismo – Nazismo. O processo de tomada de consciência de sua vocação,
ou seja, o seu filosofar vem da seguinte inquietação (2007, p 79-80):
Não consigo ver nenhuma razão para a escolha das ciências sociais –
ou das ciências humanas em geral – como área de atuação se não
existe a intenção honesta de examinar a estrutura da realidade. as
ideologias, seja o positivismo, o marxismo, ou o nacional socialismo,
constroem edifícios intelectualmente insustentáveis. [...] De que a
ideologia é uma manifestação de desonestidade intelectual não resta a
menor dúvida; todas as várias ideologias, afinal, já foram submetidas a
rigoroso exame crítico. Basta ler a bibliografia pertinente para saber
que são insustentáveis. Se, mesmo assim, o indivíduo opta por aderir a
uma delas, impõe-se de imediato a suposição de sua desonestidade
intelectual. O fenômeno patente da desonestidade intelectual suscita
outra questão: o que leva um homem a adotar esse tipo de atitude?
Este é um problema geral que me motivou a complexa pesquisa de
que tenho me ocupado nos últimos anos, tentando determinar a
natureza, as causas e a persistência dos estados de alienação.
Somos o ente para quem a pergunta é o caminho que rastreia o ser. Com
propriedade podemos dizer que a linguagem é a casa do ser! Que é através do
conhecimento que o ser se mostra. Não por acaso, o pensamento deste ente chamado
homem está no interesse do ser. Como bem dissera o filósofo grego Parmênides “pensar
é ser”. Ou seja, o nosso pensamento está na necessidade de ir ao encontro do ser das
coisas. A vida humana é intrinsecamente esta ponte que necessita a partir de si ir para
além de si em busca do real. E nesta investigação do real por meio do pensar alcança a
consciência de ser um eu que participa do ser (diferentemente do eu solipsista
moderno/pós-moderno).
Desde nossa mais tenra idade nos enredamos com o questionar acerca do ser
das coisas. Pois, o pensamento que rastreia o ser é movido pela intensa vontade de
perquiri-lo. Deste modo está sempre e em toda parte na amabilidade necessária do ser. E
essa amabilidade que nos filósofos se transformou em questão fundante e modo
existencial (a filosofia enquanto amor à sabedoria tão bem atualizada por Sócrates-
Platão-Aristóteles e todos aqueles que estão nessa seara enquanto existências
impactadas pelo ser e, por isso, convocados a participar de sua experiência originária) se
nos apresenta como busca, investigação que procura compartilhar o ser dos entes.
A isso se designa ontologia ou a questão do ser cuja tarefa consiste no
esclarecimento do ser dos entes. E já na polêmica entre Sócrates e os sofistas pode-se
perceber que a atividade do filosofar procura apurar o significado e o horizonte do
saber, que se destina à busca das razões últimas da existência, da realidade, do ser dos
entes.
Na condição de seres humanos percebemos, intuímos, racionalizamos, etc. que
o ser nos rodeia, sua presença é inelutável, irrefutável! Ela nos cerca de todos os lados e
formas, assim como nos perfaz e compõe. Não somente estamos rodeados de ser, mas a
nossa própria existência é composta e originada no ser! – fora dele: o nada! A
inexistência total. Nele estamos, participamos e somos. Daí que a questão do ser é a
mais intrinsecamente humana, e por que não dizer a única com real sentido enquanto
consistência para o nosso existir uma vez que tudo o mais que existe está no ser. Mas
nós privilegiadamente participamos desse universo de ser. Estamos enquanto partícipes
na condição singular de termos consciência de estarmos na totalidade do Ser.
A nossa ignorância, engano, fuga, revolta, etc. não apaga o ser. Pelo contrário,
aliena-nos e nos coloca em processo de auto-destruição uma vez que tudo mais,
naturalmente está no ser e nós, seres humanos estamos na condição de partícipes do ser.
Fugirmos, revoltarmo-nos, desta questão fulcral representa individual e coletivamente
alienar-mo-nos da nossa situação de ser consciente para decairmos numa ignóbil
situação de presença dispersa. Quando o nosso existir (modo de ser) exige participação
consciente da realidade; de existência inautêntica quando o nosso existir é uma
constante participação e descoberta do ser para por meio dele alcançar o status de
presença reencontrada. Uma vez que a vida do espírito é uma cumplicidade com o ser e
a posse do ser é o fim de toda ação particular.
E por incrível que pareça é nesta atividade do questionar, perquirir pelo sentido
e por quê das coisas – mais precisamente na forma como lidamos com este encaminhar
– que nós seres humanos “dotados de racionalidade”, na maioria das vezes nos
distanciamos do seu real sentido e nos aprisionamos nas fórmulas, nos conceitos vazios
de conteúdo e sentidos reais dos fenômenos que nos circundam. Nossos discursos, o uso
corrente da linguagem não passam de usos de signos e as respectivas atribuições de seus
significados, não vamos às coisas mesmas (fenomenologia de Edmund Husserl), aos
referentes reais que nossos discursos tratam.
As palavras, os signos, significados boiam assim no plano dos sentimentos, das
emoções ou de meras abstrações, raciocínios lógicos. A transposição entre mundo dos
fatos, fenômenos existenciais vivenciados, etc. para o mundo da linguagem que não se
dá pelo simples jogo de linguagem, mas tem uma complexidade de perspectivas que
exigem educação da percepção, vivência real da coisa concreta, capacidade de
utilização da linguagem com a riqueza de nuances, perspectivas, níveis de
expressividade, clareza que façam o indivíduo compreender o referente e não, fique no
plano do discurso e do aprisionamento da realidade ao âmbito da emotividade,
sentimentalismo4.
E como nossa época é devedora dessas fugas do real e aprisionamentos à
racionalidade abstrata, burocrática; aos ditames das corporações profissionais de
intelectuais; aos sistemas que gestam sociedades, culturas, pessoas nati-mortas. Tudo
arquitetado pelas mentes desconexas da realidade, pelos filodoxos que buscam bem-
estar e acima de tudo o poder à custa de aprisionar as massas alienadas ao mundo de
suas sensações, dos meros jogos de linguagem. Negando aos mesmos a capacidade de ir
às coisas, de transmutar tais experiências em linguagem efetivamente rica de
objetividade e clareza acerca daquilo que se almeja dizer, descrever, mostrar.
Deste modo é que nos distanciamos da realidade e nos aprisionamos aos
sentimentalismos, ao reino das emoções, desejos e agimos como histéricos; nos
aconchegamos com a “posse” e segurança das regras, dos modelos definidos, dos
sistemas! realidade tão aconchegada a nós, homens hodiernos. Não por acaso: Sócrates,
Platão e Aristóteles nos demonstraram enquanto Filósofos que o laborar filosófico é
uma forma de prevenir contra a dogmatomaquia5 que almeja destituir, suplantar e criar
uma nova realidade (reengenharias sociais).
Daí nos dizer Márcio Bolda da Silva em sua Metafísica e assombro: curso de
ontologia (1994, p. 10-11)
4
Cf. em Platão como tal intento já é trabalhado em sua obra República enquanto uma Paidéia.
5
A imposição de uma segunda realidade criada a partir da razão humana e que fundamenta, explica e
condiciona o ser e todas as coisas existentes. Obscurecendo assim a realidade e impedindo ao mesmo
tempo de se experienciar a mesma de forma filosófica. Como uma cegueira da alma. Neste sentido, a filo-
sophia em oposição à filo-doxia é o elemento mais latente do existir e laborar destes três filósofos e que,
se encontra tão magistralmente demonstrado nos escritos platônicos (Diálogos).
Assim, enquanto sabedoria, a filosofia não é um saber apenas teórico,
abstrato, parcial. Está endereçado à globalidade da vida. Não tem um
valor de utilidade técnica imediata, por estar fundado sobre valores
essenciais e pontos referenciais últimos. O saber filosófico, diante
dessa exigência, implica em:
Então, a seara aberta pelo logos grego no campo da descoberta do ser trilha por
perguntas que serão respondidas de modo diverso. Em um primeiro plano pode-se dizer
que as perguntas básicas se dão em três níveis: 1º no campo da filosofia da linguagem
que investiga sobre a possibilidade de dizer se a coisa, o ente, o fenômeno é
verdadeiramente assim; 2º no campo desenvolvido pela gnoseologia ou teoria do
conhecimento (epistemologia) que procura investigar acerca da possibilidade do
conhecimento sobre a coisa, o ente, o fenômeno tal como ele é. A distinção entre objeto
e sujeito, a relação entre objeto e sujeito. A questão do ser e a perspectiva da
participação enquanto unidade no mistério do ser (perspectiva gnoseológica do ser
enquanto ato e potência, ser-sendo). 3º no campo da ontologia que investiga acerca da
possibilidade de que a coisa, o ente, etc. seja possível, cognoscível, real (perspectiva
ontológica do ser enquanto ato que torna possível todo ser do/nos entes).
Com relação à investigação ontológica, ela pode acontecer de modos
diferentes: investigação do ser dos entes particulares, observadas aqui as suas diferenças
específicas, que é chamada de ontologia regional (Edmund Husserl). Exemplo de tais
investigações: a cosmologia estudada pelos primeiros filósofos (physikoi), a
antropologia desenvolvida por Sócrates, a teodiceia ou filosofia primeira em Aristóteles
6
A Filosofia não é uma cosmovisão! Como bem compreenderam Platão e Aristóteles, esta advém da
cultura enquanto material absorvido nos mitos, religião, tragédias, etc.. A Filosofia ao contrário, é o árduo
laborar que o filósofo elabora enquanto busca de desvelamento, clarificação das cosmovisões existentes.
Conferir tal exercício nos Diálogos platônicos e Filosofia aristotélica (Platão e Aristóteles, não por acaso
são os mestres do Ocidente).
(Philosofia proté), etc.. Mas, há também a investigação que se dá no nível do ser
enquanto ser, ou ontologia geral que procura desvelar a possibilidade de ser enquanto
princípio fundante de todo e qualquer ser particular (ser enquanto ato criador constante
e não enquanto objeto).
O logos filosófico se apresenta assim como este laborar que almeja desvelar,
apreender, compactuar com o ser dos entes. E não por acaso Aristóteles nos dizer em
seu livro primeiro da Metafísica (Livro A) “Todos os homens, por natureza, tendem ao
saber”... não obstante, não se pode negar que a história da humanidade é um repositório
de fatos que demonstram períodos excessivamente longos de domínio das
dogmatomaquias, ideologias e concomitante alienação dos homens acerca da realidade
de si e dos fatos circundantes. E mesmo em épocas onde o terreno não fora fértil para tal
pensamento e postura, ali de certo modo existia o íncubo ideológico.
Exatamente por este motivo vermos na antiguidade clássica, homens da
estatura de Sócrates, Platão e Aristóteles; no período medievo-renascença Agostinho,
Boécio, Tomás de Aquino, Jean Bondin; em período moderno-contemporâneo Leibniz,
Schelling, Edmund Husserl, Xavier Zubiri, Constantin Noica, Bernard Lonergan, Louis
Lavelle, Eric Voegelin [...].
Como bem dissera o filósofo Olavo de carvalho em sua obra O jardim das
aflições (2000, p. 31),
7
Mário Ferreira se utiliza do termo Kratos, na acepção de poder (a superioridade da Força sobre o
Direito). Ou seja, o que sofremos é o retorno à barbárie. No entanto, potencializada! Uma vez que agora
os bárbaros possuem os meios tecnológicos, as instituições, governos, etc. os bárbaros estão a constituir
um novo ethos que é “a sua imagem e semelhança”. Os bárbaros estão nas instituições democráticas e
impõem suas concepções, valores, sua desmesura moral, psíquica, intelectual, etc. como medida moral,
psíquica e intelectual da sociedade.
8
Conferir o atual momento em que vive o Brasil. Não por acaso, os filósofos Mário Ferreira dos Santos,
cuja obra citada é um manifesto contrário a tal invasão vertical dos bárbaros e, Olavo de Carvalho, que
destina uma parte de suas obras à análise do que ele chama de “imbecilização coletiva” serem tratados de
maneira hostil pela “intelectualidade” dominante no meio artístico, universitário e intelectual brasileiro.
explicação do real segundo a sua própria exigência de veracidade e
segundo o nível alcançado por seus antecessores; um philosophe
busca explicações na estrita medida do mínimo que o mundo exige
daqueles a quem segue.
9
Cf. a obra Aristóteles em nova perspectiva, de Olavo de Carvalho, pois a mesma é não só esclarecedora
acerca da questão acima colocada. Mas, trata do processo e domínio dos tipos de discursos necessários
para filosofar. Tese que o autor apresenta como sendo implícitas nas obras do filósofo grego. A mesma
foi apresentada no V Congresso Brasileiro de Filosofia, em São Paulo, 6 de setembro de 1995 (seção de
Lógica e Filosofia da Ciência).
E continua Olavo de Carvalho acerca da técnica filosófica utilizada pelos
filósofos ao longo dos séculos. Diz o mesmo (2012, p. 133),
Com tudo o que fora dito até aqui, pode-se compreender que a real intenção
enquanto proposta de reflexão acerca do para que da filosofia, não pode residir na
medida do que é posto como útil, pragmático, etc.; mas sim, reside no árduo labor de
resgatar a realidade do plano de alienação o qual em nosso tempo é obscurecido por
todo tipo de ideologias: progressistas, positivistas, liberais, socialistas, marxistas (de
diversas matizes), cientificistas, etc..
Dentro deste quadro originário/dialético de explicação da realidade e busca da
ordem (filodoxia-filosofia) serão apresentados dois momentos singulares e
paradigmáticos, no tocante à personalidade filosófica, naquilo que a mesma tem
enquanto capacidade para delinear de forma concreta e autêntica o real significado da
transcendência humana para além dos condicionamentos: físico-temporais, econômico-
sociais, psicológico-morais, etc. são eles Sócrates e Eric Voegelin.
Se fizermos uma leitura atenta da Apologia de Sócrates não será difícil
perceber uma característica bastante peculiar quanto ao quê e por quê da Filosofia. O
filósofo inicia a sua fala exortando os ouvintes para o fenômeno do acobertamento,
velamento da realidade por meio de discursos sofismáticos e persuasivos proferidos por
seus acusadores junto à comunidade (cidadãos, povos). Assim como, deixa transparecer
que a causa real da sua condenação não tem ligação alguma com o desejo de educar
virtuosamente os cidadãos atenienses, de fazer justiça, ou buscar a verdade dos fatos.
Mas que tal acusação é motivada por sentimentos mesquinhos e execráveis como a
inveja, a dissimulação, o ódio!
Isto é colocado em meio à sua maiêutica, onde o filósofo procura demonstrar
(através do logos filosófico) perante os cidadãos ali presentes a fragilidade e incoerência
dos argumentos apresentados por seus detratores. A tensão da investigação se torna um
conflito que traz para o filósofo a compreensão de que investigar a realidade, des-velar
os véus superpostos nos fenômenos forjados pelos sofistas, buscar a sabedoria gera
consequências como: inimizades, rancores, ódios, calúnias, perseguições, etc.
O importante a ser salientado aqui é que Sócrates procura a todo o momento
fazer vir a tona a verdade por trás dos fatos, independente se a sua absolvição será
conseguida ou não. Como o próprio réu diz. O filósofo tem a compreensão que age por
algo mais sublime que interesses próprios, mesquinhos, etc. Sócrates está a nos mostrar
que a atividade do filosofar, a busca pelo saber é sempre saber das causas, dos
princípios que se tornam no filósofo “unidade do conhecimento na unidade da
consciência/existência e vice-versa” (representação – existência/representação –
verdade).
Dando um salto de milênios, no entanto, ainda dentro da seara aberta e
constituída pela filosofia clássica grega encontramos o filósofo germano-americano Eric
Voegelin em meio ao fenômeno de ascensão dos regimes totalitários. Eric Voegelin
colocou aí o que seria o problema e a missão de sua vida, pois, como o mesmo entende:
para o intelectual, pensador, filósofo o problema é a vocação! E se você não encontra o
problema da sua vida você não encontra a sua vocação; você apenas estará exercendo
uma profissão10.
Eric Voegelin procura tornar claro que aquilo que anima desde o mais íntimo a
vida intelectual, que dá o sentido, o valor e o espírito, é exatamente ali que está o
problema. E este – faz-se aqui importante salientar – não é mais fruto de mera
curiosidade intelectual, especulação deslocada do real, cumprimento das “necessidades”
do sistema, etc., mas sim, tem na sua raiz a verdade interior do ser humano; em outros
termos é um chamado, um imperativo cognitivo e ético que a sua vida tem que
responder11.
Em meio a uma sociedade que se afundava intelectual, moral e
espiritualmente12 – as ideologias de massa estavam estendendo a sua sombra destruidora
por cima de milhões de vidas – Eric Voegelin, seguiu atento à sua vocação e exatamente
por esta sintonia com o seu ser, foi capaz de ouvir o chamado e não sucumbir aos
sussurros sedutores do maligno tão abundantemente distribuídos em nossa sociedade e
que espreitam em esquinas e vielas de nossas existências, invadem nossas residências,
estupram nossos sentidos, deformam nossas percepções, etc., etc.13.
E o que faz o filósofo Eric Voegelin face ao ambiente desestruturado e
seduzido pelo discurso ideológico que começa a vigorar em sua pátria? Começa por
fazer uma lista, um repertório da sua ignorância. Tendo em mente, é claro! Diante do
problema que se avoluma a necessidade para enfrentá-lo seriamente (compreender a
10
Em nosso país chegamos ao cúmulo do rebaixamento, uma vez que, em boa parcela dos universitários,
nem mesmo a profissão é almejada, mas, apenas um diploma que possibilite o acesso à aposentadoria
“segura” via concursos públicos. Ou um status que será colocado na parede e ostentado enquanto poder.
Ou ainda, um símbolo negativo e, não compreendido! de um “estudo” que não cumpriu com o novo status
tão ambicionado e, propagandeado, alardeado pelo sistema.
11
Cf. na vida e filosofia de Sócrates o sentido da sentença “uma vida sem reflexão não merece ser
vivida”. Ou, na resposta de Jesus Cristo ao discípulo Pedro [...] “Afasta-te de mim, Satanás! Tu me serves
de pedra e tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens!” (Mt 16, 21- 23).
12
Para um maior entendimento acerca de tal fenômeno denominado “crise da civilização”. Faz-se
importante a leitura das seguintes obras que foram escritas entre o início do século XX e a Segunda
Guerra Mundial: 1919 – Oswald Spengler, Der Untergang des Abendlandes (“A queda do Ocidente”);
1919 – Max Scheler, Vom Umsturz der Werte (“Sobre a Derrocada dos Valores”); 1927 – René Guénon,
La crise du monde moderne (“A Crise do Mundo Moderno”); 1928 – José Ortega y Gasset, La rebelión de
las masas (“A rebelião das massas”); 1936 – Jan Huizinga, In de Schaduwen van Morgen (“Nas sombras
do amanhã”); 1936 – Edmund Husserl, Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die
transzendentale Phänomenologia (“A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental”);
1937 – Hillaire Belloc, The crisis of civilization (“A crise da civilização”).
13
Em O Diabo na História: comunismo, fascismo e algumas lições do século XX, o historiador (romeno)
do comunismo Vladimir Tismaneanu relata as devastações produzidas pelas religiões seculares do século
XX.
diferença entre o filósofo e o filodoxo). Daí começa o seu itinerário, o qual não se
restringe ao ambiente acadêmico.
Nos cafés, restaurantes e outros ambientes boêmios ele busca as influências de
literatos da estatura de Stefan George e Karl Kraus enquanto repositórios vivos da
língua pátria [...] tendo a oportunidade de estudar nos EUA, o mesmo observa que o
ambiente político naquele país ainda resguardava uma conexão real e orgânica entre a
vida diária das comunidades e a discussão política. Daí ele perceber que diferentemente
do ambiente europeu tomado pelas filosofias niilistas e pelas ideologias de massa, nos
EUA ainda havia uma influência marcante dos clássicos (Platão, Aristóteles).
A busca pelo entendimento do legado da Tradição é a sua nova empreitada daí
o mesmo travar contato com tesouros do conhecimento antigo, da filosofia Medieval
Cristã (Patrística, Escolástica, Antropologia cristã). Dentre tantas idas e vindas, sempre
delineadas pela questão fulcral da sua vocação, Eric Voegelin vai adensando em
experiência e conhecimento do real. É exatamente nesta vida de estudo que o mesmo
vai compondo aos poucos os materiais com os quais atacará de forma magistral o
problema da origem e da razão de ser das ideologias revolucionárias modernas que se
prendem de algum modo a antigas correntes gnósticas e ao elemento messiânico.
Raça e Estado e A idéia de raça na história das idéias são as primeiras obras
de Eric Voegelin, que são constituídas no objetivo de fazerem uma análise
pormenorizada da idéia de raça que estavam em veiculação no ambiente acadêmico e na
vida política européia. Obras de vigor intelectual e espiritual marcante, des-velaram
todo conteúdo sofismático por trás das pretensas explicações “científicas” (recurso
bastante utilizado pelos adeptos das ideologias totalitátias) que buscavam dar
sustentação às atividades políticas de matiz totalitárias. Por desmascarar e alertar aos
seus concidadãos Voegelin é perseguido e tem seus livros abortados na imprensa ou
queimados pelas tropas de assalto do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães – Partido Nazista ou Nazi.
Pode-se perceber diante do que fora acima mencionado que cabe à filosofia e
ao amante da sabedoria estar atento à realidade dos fenômenos, fatos buscando como
um verdadeiro amante não desviar nem tampouco subtrair os dados e fatos que denotam
e descrevem a realidade. Deste modo, à pergunta Para que filosofia? Pode-se apreender
no discurso e vida destes dois filósofos aqui brevemente destacados, que o real sentido
do filosofar está na busca consciente de resgatar a realidade em meio a uma cultura em
que homens forjam e vivem em um segundo plano; uma segunda realidade que é
eminentemente hostil e aversa ao mundo real.
Como nos diz o filósofo Eric Voegelin em sua obra Ordem e História vol. I –
Israel e a revelação (2009, p.9) acerca do discernimento da perspectiva histórico-
filosófica em que se situa:
[...] Cada sociedade leva sobre si o peso da tarefa de criar uma ordem
que dará ao fato de sua existência histórica um sentido de fins divinos
e humanos.
Enquanto Sócrates, nos adverte que “uma vida sem exame (reflexão) não
merece ser vivida”, pois bem entendera o Filósofo grego que pode haver várias
maneiras de o homem “conduzir” a sua vida, não obstante, somente quando
compreendida e vivida na integralidade do seu ser é que o homem alcança o estatuto da
dignidade de sua existência. Isso está documentado nos diálogos de Platão e de maneira
implícita aos seus ensinamentos filosóficos, o mesmo procura nos apresentar a filosofia
como uma forma simbólica em que a alma em meio ao turbilhão de sensações, etc.
procura ascender em direção à Deus.
Sendo a existência humana uma participação no ser e a verdade do ser um
eterno fluir na verdade da existência. A filosofia não pode deixar de ser – como nos diz
o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho – “a busca constante da unidade da vida na
unidade da consciência e vice-versa”, uma vez que a verdade da existência – como bem
nos apresentara o filósofo francês, Louis Lavelle – é partícipe da verdade do ser.
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ATIVIDADE
Fazer a leitura do capítulo 22 Para que filosofar? Para resgatar realidade! (p.139-149),
obra Reflexões autobiográficas de Eric Voegelin procurando observar:
a) De que modo o projeto socrático (tradição filosófica ocidental) pode ser
observado na aula 2 e texto de Eric Voegelin?
b) Estabeleça a relação entre a Apologia de Sócrates – Platão e Para que filosofar?
Para resgatar realidade! – Eric Voegelin.
c) Como Eric Voegelin apresenta o problema das ideologias e qual o papel do
filósofo, homem de ciência?
d) A partir da leitura da aula 2 e texto anexo de Voegelin como classificar o
ambiente intelectual nas faculdades?
e) É possível formar profissionais (tecnicamente competentes e eticamente
conscientes) a partir de dogmatomaquias (ideologias)?
Obs. Justifique sua resposta nas aulas 1 e 2 e respectivos textos anexos