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HILTON JAPIASSU

NEM TUDO É RELATIVO


A QUESTÃO DA VERDADE

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 Editora Letras & Letras, 2000 SUMÁRIO
Equipe de Realização
Editor: Carlos José Linardi
Introdução ............................................... 5
Supervisão Gráfica: Waldenes Ferreira Japyassú Filho
Assistente Editorial: Carlos Alberto Carmignani Linardi 1. A onda relativista ...................................... 23
Revisão: Antonio Orzari - Peppino D’Ardis
Capa: Peppino D’Ardis
2. O relativismo em questão ........................ 79
3. A questão da verdade .............................. 125
4. Notas ....................................................... 181
Ficha Catalográfica
Conclusões ............................................. 229
Japiassu, Hilton 5. Apêndice: Como alguns filósofos conce-
Nem Tudo é Relativo beram a verdade ..................................... 259
A Questão da Verdade — São Paulo: Editora Letras 6. Bibliografia Básica ................................... 267
& Letras, 2000

Bibliografia
ISBN 85-85387-95-5

1. Filosofia

Letras & Letras


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INTRODUÇÃO

Um dos sintomas da crise intelectual de nosso


mundo reside no fato de não pôr-se explícita e luci-
damente em questão. De um modo geral, os grandes
desafios ficam fora de todo fim racional ou razoavel-
mente discutível. Nessas condições, torna-se um
lugar comum se dizer que a atividade do intelectual
consiste num trabalho crítico, na medida em que de-
ve quebrar todas as evidências, denunciar tudo o
que parece impor-se como “normal” ou “natural” e
não pode renunciar ao saber sem abandonar o que
faz dele um ser livre e autônomo. Diante da incapaci-
dade da sociedade contemporânea de criar novas
significações sociais e de pôr-se a si mesma em
questão e suas próprias instituições, compete ao filó-
sofo, além de impedir que a questão da liberdade
se subordine à do progresso das ciências, tentar criar
novos pontos de vista e novas idéias, mesmo a partir
de questões bastante antigas, mas ainda atuais e
desafiadoras, como a que opõe verdade e relati-
vismo.
Historicamente, foi assim. Mas uma precisão
se impõe. No momento do nascimento da filosofia
(na Grécia), é verdade que os primeiros filósofos
questionaram as representações coletivas estabele-
cidas, criticaram as idéias sobre o mundo, sobre os
deuses e o bom funcionamento da Cidade (Pólis).
Mas logo esta atividade crítica sofre uma degeneres-
cência. A maioria dos pensadores trai seu papel
crítico. Muitos se convertem em racionalizadores do
que é (do status quo), em justificadores da ordem
estabelecida. O exemplo mais eloqüente é o de
Hegel, proclamando que “tudo o que é racional é
real” e que “tudo o que real é racional”. Ao surgir, a
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filosofia nasce em profunda comunhão com a idéia Em nossas sociedades há uma espécie de
de um logon didonai universal, de uma busca da conspiração capaz de abafar, neutralizar ou simples-
verdade e de um questionamento do que aparece mente desqualificar a eficácia de toda crítica. É com
como representação e procurando ultrapassar todos o desmoronamento das ideologias da esquerda e a
os limites geográficos, de raça, língua e comunidade ascensão do “monoteísmo do mercado”, com o triun-
política. Assim, a universalidade do pensamento é fo da sociedade de consumo e a crise das signifi-
uma invenção grega. Contudo, a universalidade polí- cações imaginárias, que se manifesta a atual crise
tica, mesmo como simples idéia, é uma invenção do sentido. Ao estabelecer os valores econômicos
da Europa moderna. Os gregos criam as formas da como seus valores centrais (ou únicos) e ao estabe-
democracia. Mas não a universalidade política. lecer a economia como o fim da vida humana (não
Costuma-se dizer que vivemos hoje um mo- meio), a sociedade atual lhe propõe, como objetivo,
mento de crise. Se a krisis (no verdadeiro sentido a corrida desenfreada para um consumo sempre
do termo) constitui um momento de decisão, entre maior e um culto à divindade “mercado”. Não tendo
os elementos opostos que se combatem, creio que mais necessidade de indivíduos autônomos, ela os
vivemos muito mais uma fase de decomposição, atomiza para melhor conformá-los. E se esquece
posto que nossas sociedades cada vez mais se de colocar no centro da vida humana outras significa-
caracterizam pelo desaparecimento do conflito so- ções, distintas da expansão da produção e do consu-
cial e político. Assim, a crise que o mundo ocidental mo. Num momento em que as ideologias cientificis-
vive pode ser entendida como o esquecimento de tas e os movimentos irracionalistas parecem consti-
colocar-se verdadeiramente em questão e autocriti- tuir as duas faces de uma mesma medalha, não é
car-se. Sempre soube criar, apesar de suas atrocida- de se estranhar que o pensamento se torne desfigu-
des e horrores, em nome justamente de uma dis- rado e perca bastante de sua audácia. Por isso,
cussão racional e aberta entre seres humanos, e torna-se urgente redescobrirmos um pensamento de
rejeitando todo dogma último, esta capacidade de liberdade, capaz de zombar, não somente dos dog-
contestação interna e questionamento de suas pró- matismos, integrismos e moralismos, mas de todos
prias idéias e instituições. No entanto, perdeu essa os ceticismos relativistas, a fim de fazermos de nosso
capacidade. A ponto de reduzir o “indivíduo” livre e
esforço de conhecimento uma aventura infinita de
autônomo a uma simples marionete realizando es-
busca da verdade. Trata-se de um pensamento sem
pasmodicamente os gestos que lhe impõe o campo
dogmas, voltado para o futuro, que só progride des-
sócio-histórico: ganhar dinheiro, consumir e gozar.
truindo suas próprias certezas, mas que não abre
As vozes discordantes ou dissidentes não são mais
mão de buscar a verdade.
abafadas pela força bruta nem pela censura direta,
mas por uma violência simbólica e pela comercia- Vivemos uma época de conformismo generali-
lização generalizada: “Há uma capacidade terrível zado, não somente no plano do consumo, mas no
da sociedade contemporânea de abafar toda verda- da política, das idéias e da cultura. Talvez estejamos
deira divergência, seja calando-a, seja fazendo dela vivendo no momento mais conformista da história
um fenômeno entre outros, comercializado como os moderna. De que adianta o indivíduo acreditar-se
outros”(Castoríadis). “livre” quando, na realidade, todos recebem passiva-
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mente o sentido único que lhes é proposto ou impos- às interpretações. Há toda uma corrente social e
to pelas instituições e pelos campos sociais? Quase histórica fazendo com que tudo se torne insignifi-
todo mundo hoje se converte em “teleconsumidor” cante. A televisão nos fornece um exemplo ilus-
de bens materiais e de produtos culturais. Seu “pra- trativo, na medida em que promove o culto do efême-
zer”, diferentemente do que ainda é capaz de sentir ro. A este respeito, P. Bourdieu é enfático: “Os fatos
o espectador, ouvinte ou leitor de uma obra de arte, diversos têm por efeito provocar o vazio político,
só comporta um mínimo de sublimação: a satisfação despolitizar e reduzir a vida do mundo à anedota e
vicariante das pulsões por um avatar de “voyaeu- à tagarelice (que pode ser nacional ou planetária,
rismo”, “prazer de órgão” bidimensional, acompanha- com a vida das estrelas ou das famílias reais),
do de um máximo de passividade. Seja “belo” ou fixando e retendo a atenção sobre acontecimentos
“feio” o que apresenta a mídia, é recebido na sem conseqüências políticas, dramatizadas para
passividade, na inércia e no conformismo, impedindo delas se “retirar lições” ou transformá-las em “proble-
os indivíduos de exercitarem seu pensamento na mas de sociedade” (...) Alguns filósofos de televisão
abertura ao imprevisto, às idéias novas, ao questio- são chamados em socorro para restituir sentido ao
namento das certezas estabelecidas e à necessi- insignificante, ao anedótico e ao acidental”(Sur la
dade de mudar seus modos de ser, pensar e agir. Iélévision, Liber Éditions, 1996, p.59).
Nossa sociedade está se esquecendo de que Responsável pela emancipação da multipli-
a cultura não pode ser reduzida ao simples funcional cidade dos horizontes de sentido, por nossa renúncia
ou instrumental, pois apresenta uma dimensão dos megarrelatos filosóficos e ideológicos, por nosso
imperceptível positivamente investida pelos indiví- adeus ao “fim da história”, vale dizer, aos mitos do
duos. Esta dimensão se manifesta no imaginário Progresso, da Emancipação e da Salvação, a mídia
“poético”(no sentido grego de poiein: fazer), tal como faz-nos viver hoje num quadro sem referências. Os
se encarna nas obras e nas atitudes (comportamen- fatos e os acontecimentos são fragmentados, são
tos e condutas) que ultrapassam o simples funcional. observados de todos os ângulos, carecendo de uma
A cultura contemporânea corre o risco de converter- referência a uma totalidade que lhes dê sentido. De
se numa mistura de impostura “modernista” e de todos os acontecimentos, só vemos os detalhes.
museísmo. Nos últimos anos, o “modernismo” tem Consumimos milhões de notícias sem reflexão. Os
se transformado numa velharia freqüentemente efeitos especiais e secundários nos escondem o fun-
repousando em plágios que só são admitidos graças damental. Não sabemos mais distinguir o importante
a um crescente neo-analfabetismo do grande públi- do trivial. A informática, as redes de comunicação e
co. Nossa cultura passada, ao invés de continuar a mídia se convertem num grande acelerador de par-
viva numa tradição, torna-se objeto de um saber tículas impedindo-nos de perceber a órbita referen-
museico, de curiosidades mundanas e turísticas cial das coisas. E com a perda do horizonte histórico,
reguladas pelas modas. perdemos também o sentido da história. Vivemos
Nessas condições, não é de se estranhar que, na imediatez e na dinâmica do provisório. Não distin-
no domínio da reflexão, o pensamento criador dê guimos mais entre o objeto e sua imagem. Estaría-
lugar às reportagens históricas, aos comentários ou mos vivendo uma escatologia do tempo cumprido?
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A saída da história suporia a libertação das aliena- pragmática, consistindo em estabelecer o modo o
ções que nela ocorrem? Estaríamos totalmente en- mais eficaz de coordenar meios para a obtenção de
tregues ao esteticismo do presente? Ou estaríamos fins.
assistindo à chance de uma superação da irraciona- Desde os Gregos, a razão constitui o traço mais
lidade tecnocientífica pelas manifestações mais ou característico do ser humano. Seus dois caracteres
menos ultrametafísicas? são: a) sua capacidade de conhecer o universal e o
É neste contexto que devemos compreender abstrato; b) sua exigência de conhecer o “por que”
a ciência e sua produção de verdades. Defrontamo- das coisas (exigência que conduz o homem a argu-
nos com um processo de sua ideologização compor- mentar dedutivamente, isto é, a estabelecer vínculos
tando dois elementos dinâmicos: a) o primeiro, de conseqüência lógica entre enunciados). Por se-
promovendo-a ao nível de valor supremo de nossa rem típicos de todo ser humano, esses dois caracte-
civilização; b) o segundo, considerando essa promo- res fundam seu modo próprio de intencionalidade.
ção como intrinsecamente justificada pelo fato de a Só ele pode intencionar (“voltar-se para” e “tornar
ciência constituir a mais alta expressão da racionali- presente a si”) as coisas e suas imagens. É o único
dade humana. Não resta dúvida que, em nossa men- ser capaz de intencionar o abstrato: tomar consciên-
talidade corrente, o conceito de “ciência” sempre vem cia do que é puramente possível. E é justamente
associado ao de “progresso”. Esta identificação con- essa capacidade de intencionar ou “visar” que funda
firma, não somente a importância culturalmente por a busca do “por que”. Ora, colocar a questão do “por
ela adquirida, mas a conotação de valor que lhe é que” de um fato, significa reconhecer ou postular a
atribuída. Quando falamos de “progresso”, não nos existência de algo que no momento ignoramos (um
referimos apenas a uma mudança, mas a uma mu- puro possível ou um abstrato), mas graças ao qual
dança “para melhor”. E é sempre um valor que nos poderemos compreendê-lo e explicá-lo. E nesta ati-
permite julgar esse “melhor”. tude profunda da razão humana, não há apenas uma
As razões que o homem contemporâneo alega capacidade de intencionar o abstrato, mas a convic-
para emitir um juízo incondicionalmente positivo so- ção de que o imediato não constitui o originário.
bre a ciência e identificá-la quase sempre à sua di- Donde a necessidade de elucidarmos o que não
mensão de progresso são de natureza essencial- vemos, se queremos compreender e fornecer a
mente prático-instrumentais. Se merece, por parte razão do que vemos. E é justamente esta exigência
do grande público, tanta estima e consideração, isto de compreensão e justificação (“exigência do Lo-
se deve, não propriamente à sua racionalidade, a gos”) que constitui a mais distintiva característica
seus aspetos cognitivos de rigor e de objetividade de nossa racionalidade humana.
(condição que parece bastante intelectual e desliga- Por mais que tenha desejado viver na mais
da do concreto), mas a seus resultados, às suas plena autonomia, conferindo-se suas próprias re-
inegáveis conquistas em todos os domínios, notada- gras, o saber científico não consegue escapar do
mente ao poder que confere ao homem sobre a duplo olhar da filosofia e da história. Nos anos 1940,
natureza e a sociedade. Não é por acaso que vem também os sociólogos começam a se interessar pelo
assumindo a forma típica de uma racionalidade funcionamento da comunidade científica. Logo distin-
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guem aquilo que, em sua atividade, representa as das ciências para mostrar como as prioridades da
qualidades que lhe são próprias (objetividade, desin- pesquisa, as formas de sua prática e o estilo de suas
teresse, transparência, etc.), e o que depende de expressões são estreitamente determinadas pelas
suas condições concretas de exercício e funciona- condições sociais, os outros se esquecem completa-
mento (instituições, meios, etc.). Posteriormente, mente de que, apesar da contingência dessas deter-
alguns sociólogos e historiadores (notadamente bri- minações, os saberes produzidos demonstram uma
tânicos), animados por um aguçado espírito crítico, extraordinária robustez epistemológica e inquestio-
decidem se comportar, em relação à ciência, como nável eficácia técnica. Ademais, diante da questão:
etnólogos diante de uma cultura estrangeira. Ao tem a ciência condições de nos dar acesso à verdade
adotarem uma postura cética, põem-se a descrever das coisas?, duas posições se opõem: uma defende
a ciência em vias de se fazer e descobrem que, por que sua vocação é a de nos fornecer um conheci-
vezes, vários preconceitos, interesses, concorrên- mento objetivo e completo do mundo; a outra afirma
cias, persuasão e negociações desempenham o pa- que só pode fornecer-nos um saber parcial e subjeti-
pel de explicação. O grande mérito desses pensado- vo, porque humano.
res foi o de levantar, no interior mesmo das ciências, Na contemporaneidade, a questão do relativis-
o debate do relativismo. Contrariamente à imagem mo vem se pondo a partir da década de 70 quando,
habitual da ciência (feita de rigor, desinteresse, obje- do confronto entre a filosofia das ciências e a sociolo-
tividade, transparência), puseram-se a questionar, gia do conhecimento, impõe-se a questão: “existe a
através da observação meticulosa das atividades verdade científica”? Surgem (notadamente na Ingla-
científicas, o rigor dos métodos e a evidência dos terra) os chamados social studies que, reagrupan-
resultados. do várias disciplinas interessadas na atividade cien-
Já se disse que, na ciência, o que menos co- tífica (história, sociologia, epistemologia, economia),
nhecemos é a própria ciência. Para nos darmos mudam as fronteiras do debate, envolvendo sociólo-
conta disso, basta olharmos os dois pólos extremos gos, historiadores e filósofos em torno do conteúdo
dos discursos sobre ela: o cientificismo e o relativis- mesmo das ciências exatas. Cada um radicalizando
mo. De um lado, temos a afirmação da validade cog- suas posições ou pontos de vista, logo a oposição
nitiva absoluta e intrínseca dos saberes científicos, se transforma numa verdadeira batalha entre o racio-
do outro, a depreciação de seu alcance, referida à nalismo e o relativismo. Entre os que afirmam uma
pregnância da organização social e do contexto ideo- validade cognitiva absoluta e intrínseca dos saberes
lógico. Diante de um problema concreto, cada campo científicos (e freqüentemente, no grande público, de
pode até atenuar suas teses e sofisticar seus argu- seu valor ético) e os que tentam desqualificar seu
mentos. Mas quando surge um problema político (o alcance, por causa da pregnância da organização
debate sobre os organismos geneticamente modifi- social e do contexto ideológico.
cados) ou um enfrentamento cultural (o affaire Desde o século passado, a representação cien-
Sokal), as questões voltam a se radicalizar e a pola- tificista da ciência vem apresentando-a como estan-
rizar o campo da discussão. Enquanto uns lançam do presente, não somente no domínio temporal, mas
mão das análises da sociologia e da antropologia no espiritual, na medida em que interfere nas
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questões fundamentais que as sociedades enfren- sistema de enunciados capaz de explicitá-los e
tam: o que é o homem? de onde ele vem? para onde libertá-los das demais formas de saber. O problema
vai? como deve agir? como deve organizar a socie- não consiste tanto em saber como as proposições
dade? etc. A superioridade intrínseca dos conheci- dos cientistas se tornam verdadeiras ou em resgatar
mentos científicos passa por um fato adquirido. Eles como sua legitimidade é negociada na comunidade
se fundam na rocha do método experimental e na científica, mas em descrever como enunciados,
análise meticulosa e rigorosa dos fatos. E como seus através dos objetos e das práticas, impõem-se na
produtores se consideram “objetivos”, admitem que competição para sua sobrevivência (social e cogniti-
a ciência constitui o único caminho seguro para nos va). Sendo a ciência um dispositivo que produz e
conduzir à Verdade. Mas é concebida, neste final inventa uma ordem, e não que “desvela” a ordem
de século, não só como um saber que é absoluta- oculta da natureza, seus enunciados precisam ser
mente verdadeiro, portanto, indiscutível e fora de socialmente contextualizados.
alcance do espírito crítico, mas como um saber que, Em outras palavras, os relativistas contemporâ-
ultrapassando os erros antigos, é susceptível de neos defendem a seguinte tese: para o problema
revelar-se, por sua vez, absolutamente falso. Este da verdade científica, nenhuma solução pode ser
paradoxo nos faz compreender que o desabrochar logicamente necessária e coercitiva ou impor-se no
dos conhecimentos científicos e sua difusão ao sentido absoluto do termo, posto que todo encerra-
grande público não conseguem deixar de conviver mento de um debate ou todo consenso só pode ser
com o resssurgir de toda uma gama de conheci- local por natureza, devendo ser compreendido no
mentos pseudocientíficos e de comportamentos contexto preciso de sua elaboração. Por isto, a apa-
irracionais que nos invade. rente universalidade dos enunciados científicos, o
Qual a imagem da ciência que os relativistas fato de serem descritos como “verdadeiros em toda
questionam? Reagem contra o discurso dominante parte” e compreendidos por todos “nos mesmos ter-
segundo o qual as ciências são apresentadas como mos”, não pode constituir o melhor ponto de partida
sistemas de proposições ou de enunciados podendo para a compreensão das ciências em sua história.
e devendo ser falsificados pelo confronto com a ex- Se os saberes científicos circulam, não é por serem
periência. Como os procedimentos que caracterizam universais. É porque circulam, quer dizer, são reutili-
a ciência podem ser explicitados (fala-se de “método zados por outros, em outros contextos, e atribuindo-
científico”), posto que o grande elemento é a repro- lhes um sentido, que são descritos como universais.
dutibilidade sempre possível dos resultados experi- Os partidários do relativismo mostram que sua
mentais, é apresentada como o Saber por excelên- tomada de posição está ligada a sociedades pluralis-
cia, como o meio privilegiado de acesso ao conheci- tas e desencantadas. Reatualizam as palavras de
mento do mundo e capaz de produzir verdades Pascal: “as únicas regras universais são as leis do
universais transcendendo o tempo ordinário dos país às coisas ordinárias e a pluralidade às outras”;
historiadores. E isto, como se a categoria “ciência”, que conclui: “Verdade aquém dos Pirineus, erro
uma vez reificada, pudesse ser utilizada sem colocar além”, justificando que costumes, hábitos, direito,
nenhum problema maior; como se constituísse um práticas sociais são incomensuráveis uns aos outros,

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portanto, relativos a cada país. Conhecem também fica se apresenta como antidogmática e sempre dis-
a proclamação de Protágoras: “o homem é a medida posta a reconhecer seus erros.
de todas as coisas”; e o ditado popular: “a cada um Parece que tanto os cientistas humanos e so-
sua verdade”. Fundadas nesses modelos, são as ciais quanto os filósofos de nossa modernidade, que
proposições relativistas: a verdade de nossas idéias tanta importância deram à sua racionalidade formal,
ou de nossos valores é relativa a um lugar, a um funcionando sob o influxo do Mercado, da Ciência
tempo e a um sujeito. Enquanto a discussão se limita e do Estado-nação burocrático, encontram-se ainda
ao domínio das “opiniões”, no nível do cotidiano, não desarmados para pensar nosso futuro. Com o ad-
produz graves conseqüências. Contudo, quando se vento da chamada “pós-modernidade”, que teria de-
situa no campo das ciências, o debate se torna cretado o fim da historicidade, surge a questão: a
acirrado. Nos dias de hoje, os chamados “comunita- quem compete a responsabilidade de pensar a so-
ristas” americanos retomam esses argumentos ciedade mundial que se encontra em gestação? Por-
relativistas, renovando seu conteúdo: o universal não que tudo indica que está nascendo privada de uma
passa de uma referência inconsistente. Uma das inteligibilidade teórica, ética e política. Um dos pro-
conseqüências de sua justificação do relativismo é blemas que se destaca é o que opõe Universalismo
que elaboram uma teoria intelectual terminando por e Relativismo. Pode ser formulado assim: será que
também justificar o fechamento das sociedades mais a atual Globalização pode ou não ser considerada
ricas nelas mesmas, tornando-se mais ou menos como uma Ocidentalização do mundo? Como a uni-
indiferentes à “sociedades das Nações” ou à espécie versalização dos valores ocidentais tem sido ou está
humana. sendo feita? Tais valores estão sendo aceitos espon-
Todo o esforço da filosofia das ciências tem taneamente, ou sendo impostos pela violência? Se
sido o detectar em que consiste a ciência, em eluci- o Ocidente não encarna a “naturalidade” nem esgota
dar seu verdadeiro estatuto e demonstrar que, dife- a “racionalidade”, claro que a ocidentalização só po-
rentemente dos outros modos de conhecimento (filo- de ser feita pelo uso da força ou da violência. A me-
sóficos, estéticos, religiosos, míticos e ideológicos), nos que pensemos em formas culturais e políticas
é autônoma por seu método e objetiva por seus susceptíveis de transcender a versão européia do
resultados. Todo mundo acreditava que “a ciência” universalismo, bastante apegada à idéia de que o
só nos fornece conteúdos confiáveis, objetivos e uni- universal não pertence à ordem do fato ou do resul-
versais. E isto, mesmo que possam ser considerados tado de um recenseamento empírico, mas depende
“verdades aproximadas”, provisórias e sempre revi- da ordem do direito e do conceito, pois se estenderia
sáveis. Porque seus enunciados, em qualquer hipó- a todo o universo (como a gravitação universal), a
tese, são sempre mais sólidos que uma opinião, que todos os espíritos (como os princípios universais da
um desejo ou uma convicção. Por isso, merecem razão) e a toda uma classe de objetos (como a
ser cridos, pois são verdadeiros. No entanto, uma proposição: “todos os homens são mortais”).
proposição científica deve sempre fundar-se na base O âmago do debate se situa na oposição radi-
da teoria e da experiência. E tal fundamento sempre cal entre universalistas (racionalistas) e relativistas.
pode ser posto em questão. Por isso, a atitude cientí- O questionamento atinge o princípio racionalista em

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sua validade fundamental. Se entendemos por racio- aos princípios utilitários da economia liberal? Por que
nalização a construção de uma visão coerente e devemos aceitar resignadamente a idéia segundo a
globalizante do mundo, mas a partir de uma princípio qual a “boa” sociedade é a que se organiza em total
único ou em função de um único aspeto das coisas, conformidade com a razão, vale dizer, segundo a
somos forçados a reconhecer: historicamente, a ordem, a harmonia e o cálculo? Por que é superior
Razão tem sido entendida e apresentada como uma às outras a visão do mundo afirmando um perfeito
das mais poderosas formas de racionalização do acordo entre o “racional” e a “realidade”? Como se
etnocentrismo ocidental ou europeu. E a universali- justifica a universalidade de uma ética afirmando que
dade tem sido apresentada como a camuflagem as ações e as sociedades humanas precisam ser
ideológica de uma visão parcial do mundo e de um racionais em seu princípio, em suas condutas e em
conjunto de práticas conquistadoras, dominadoras, sua finalidade? Por que a ciência moderna e sua
colonizadoras e destruidoras de várias culturas e de racionalidade própria tiveram necessidade de elimi-
muitos valores “alienígenos”, “bárbaros” ou simples- nar, de seus materiais de construção, o oculto, o
mente não-ocidentais. passional, o irracional e o a-racional? Por que fechou
Ao surgir como força de emancipação univer- todos os canais de comunicação entre a inteligência
sal, a Razão Esclarecida (da Aufklärung) vem se e a afetividade? Por que sempre mascarou esta reali-
impondo como o mais forte princípio universalizante dade profunda, que o homem não é simplesmente
capaz de justificar racionalmente a supremacia e a um ser-sapiens, mas sapiens/demens?
hegemonia de uma cultura, de uma sociedade e de Claro que não temos respostas para essas
uma economia sobre as outras. Há alguns anos questões. Mas não aceitamos as que nos estão sen-
atrás, Karl Popper proclamava: “Pretendo que viva- do propostas ou impostas. O que pretendemos é
mos num mundo maravilhoso. Nós, os Ocidentais, fornecer alguns elementos de reflexão susceptíveis
temos o insigne privilégio de viver na melhor socie- de “ampliar nossa razão para torná-la capaz de com-
dade que a história da humanidade jamais conheceu. preender aquilo que, em nós e nos outros, precede
É a sociedade a mais justa, a mas igualitária, a mais e excede a razão” (Merleau-Ponty). E o real sempre
humana da história”. A grande força do relativismo excede o racional. O problema é que, enquanto o
consiste em repudiar a “deusa” Razão, vale dizer, realismo afirma que o conhecimento científico tem
toda razão absoluta, fechada e auto-suficiente e, ao condições efetivas de descrever o real em si, inde-
mesmo tempo, em reconhecer seu caráter histórico pendente de toda observação, posto que uma teoria
e evolutivo, vivo e biodegradável. Porque ela não científica validada constitui também uma verdade
pode mais constituir o grande mito unificador do sobre o mundo; enquanto o construtivismo defende
saber, da ética e da política, a não ser que continue que a atividade científica constrói modelos dos fenô-
seu processo perverso de desqualificar, repudiar e menos observados, não se contentando em descre-
recalcar todos os apelos da paixão, da fé e das vê-los, aceitando que os fatores sociais participam
emoções (da subjetividade). desse processo de construção; enquanto o racio-
Em nome de quê devemos aceitar que a vida, nalismo proclama que o saber válido é apenas o
conforme os cânones da razão precisa, obedecer que se conforma às regras da razão; que o saber
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científico explica verdadeiramente o mundo, posto Se devemos dialogar, é porque nossa verdade
repousar em enunciados consistentes e na experiên- precisa ser concebida como um processo de cons-
cia; enquanto o relativismo defende a tese geral: tante construção e não somos detentores de princí-
todo conhecimento ou toda norma só possui sentido pios absolutamente fundamentais nem tampouco
relativamente ao sujeito individual ou coletivo que podemos nos valer de critérios absolutos permitindo-
os enuncia ou os considera verdadeiros, defende- nos instalar-nos num reino qualquer de segurança
mos a seguinte posição: como diria Sócrates, uma ou num porto seguro. Ademais, é porque possuímos
vida sem exame (interrogação) ou uma paixão apreensões diferentes da verdade. Não estamos cer-
(busca amorosa) pela verdade, é uma vida que não tos, de antemão, de sua existência. Nossa verdade
merece ser vivida. Jamais a possuiremos. Mas ali- é um tornar-se verdade. Não podemos dizer, uma
mentamos sempre a crença e a esperança de poder vez por todas, o que ela seja. Em sua construção,
encontrá-la. Se não procedermos assim, nossa iden- conhece momentos de profunda hesitação. É atra-
tidade estará em questão: o homem tem tanta ne- vés de uma experiência que a descobrimos e pode-
cessidade de conhecer quanto de crer. mos atingi-la de modo parcial e progressivo. Todavia,
está fundada na crença racional (a que não é imposta
Tentarei abordar nosso tema no contexto do
pela força das armas ou pela força da autoridade e
assim chamado “diálogo com a epistemologia”.
da tradição) de que existe a verdade e na esperança
Pessoalmente, tenho certa desconfiança desse
de que pode ser atingida. Em última instância, o
termo. Porque muitas vezes tem servido para camu-
diálogo é a metodologia dessa experiência: no plano
flar a ideologia da conciliação a todo preço. Por um
especulativo, opõe-se à sofística, que é a arte da
lado, podemos ser tentados a fazer os fatos entra-
argumentação enganadora; no prático, opõe-se à
rem, pela força, em nossas próprias esquematiza- violência, que é a recusa absoluta do outro. Donde
ções, em nossas concepções mais ou menos cegas excluir tanto o relativismo quanto o ceticismo.
e falsificadoras impedindo-nos de reconhecer a ver-
dade, a nossa e a do outro. Por outro, podemos ser
tentados a negar, tanto na teoria quanto na prática,
a riqueza e a fecundidade dos conflitos, quer relegan-
do-os do lado do mal, quer recusando-nos sistemati-
camente a fazer apelo a uma estratégia conflitual.
Em todo caso, o diálogo, para nós, significa o esforço
mútuo tendo em vista chegar, mediante a palavra, a
um encontro na verdade. Neste sentido, é equivalen-
te de uma discussão construtiva na qual ninguém
possui a palavra final nem tampouco é proprietário
exclusivo de princípios intangíveis e acabados, cada
ponto de vista devendo ser ultrapassado em direção
a outro sempre mais rico e englobante.

20 21
1. A ONDA

1
RELATIVISTA

Por “onda relativista”, entendemos todo este


modo de pensamento segundo o qual as teorias
científicas nada mais são que construções repousan-
do em pressupostos arbitrários e constituindo um
modo de conhecimento tributário das paixões sociais
ou de convicções religiosas. Não há nenhuma lógica
capaz de impor-se como absoluto de referência. Não
somente na ordem do conhecimento, mas nos domí-
nios religioso, moral ou político, tudo o que é propos-
to como “verdade universal” ou norma geral deve
ser considerado como dogmático, autoritário e con-
trário à tolerância e ao pluralismo. Identificados como
pensadores “pós-modernos”, pois pretendem ques-
tionar, não somente as noções clássicas de verdade,
razão, identidade e objetividade, mas a idéia de pro-
gresso ou emancipação universal, os sistemas úni-
cos, os megarrelatos ou os fundamentos definitivos
de explicação, os relativistas atuais formam um movi-
mento “radical” negando a unidade (isto é, a univer-
salidade) da verdade, da razão, da realidade e da
ciência. A ciência não pode mais ser entendida como
um conhecimento universalmente válido sobre o
mundo natural, mas como um construto particular
ou “étnico” da sociedade ocidental. Para esse cons-
trutivismo social, todas as crenças são igualmente
justificadas pelo consenso da comunidade, não
havendo nenhuma verdade objetiva sobre o mundo
real ou capaz de transcender o contexto social lo-
cal. Como não existe a verdade correspondendo a
uma realidade independente da mente, as alegações
de conhecimento devem ser explicadas “simetrica-
mente”, qualquer que seja sua verdade ou falsidade.
22 23
De forma que a verdade se reduz ao que se ajusta lando seu “ser” e seu “destino” à exploração da
a um dado sistema de crenças. natureza e dos homens. Donde a insurreição dos
Aliás, para o pensamento comum, a expressão relativistas, que não mais se limitam a uma crítica
“tudo é relativo” significa: todas as opiniões se equi- da ciência (exterior e de eficácia limitada), mas
valem, cada um tem sua percepção das coisas, cada desenvolvem uma crítica de ciência, pretendendo
um possui seus valores, não podemos julgar os ou- atingir o cerne mesmo da atividade científica. É o
tros, cada um tem razão de pensar como pensa, que constata o físico Lévy-Leblond quando nos
ninguém tem o direito de ditar aos outros o que de- garante que, para entendermos por que a imagem
vem pensar e fazer, etc. As opiniões diferentes se da ciência não corresponde à sua realidade, precisa-
explicam pelo ponto de vista de cada pessoa, condi- ríamos levar em conta quatro paradoxos definindo
cionada por sua educação, sua época, sua cultura, sua situação atual:
sua família, etc. No domínio das preferências
! Paradoxo econômico: “Nunca a ciência funda-
pessoais, a maioria dos indivíduos adota esta filoso-
mental esteve tão intimamente vinculada ao siste-
fia espontânea segundo a qual todas as opiniões se
ma técnico e industrial; mas seu peso econômico
equivalem. O fato de fulano adorar doce de coco e
próprio está, doravante, em regressão”;
de sicrano detestar, é relativo, pois “gosto não se
discute”: cada um tem direito à sua opinião.(1) ! Paradoxo social: “Nunca o saber tecnocientífico
Nos dias de hoje, sabemos que a ciência não atingiu tanta eficácia prática; mas mostra-se cada
pode ser entendida como um progresso contínuo e vez menos útil face aos problemas (saúde, ali-
cumulativo de “verdades”, como uma espécie de mentação, paz) da humanidade em seu con-
“religião leiga” em cujo poder todos depositam uma junto”;
confiança cega e cuja autoridade intelectual merece ! Paradoxo epistemológico: “Nunca o conheci-
um respeito quase universal, mas como uma série mento científico atingiu tal grau de elaboração e
de “revoluções”. A teoria epistemológico-racionalista de sutileza; mas se revela cada vez mais lacu-
de Popper mostra-nos que não podemos provar a nar e fragmentado e cada vez menos capaz de
verdade de uma teoria científica, mas tão somente síntese e de reformulação”;
sua falsidade. Por sua vez, os primeiros frankfurtia- ! Paradoxo cultural: “Nunca a difusão da ciência
nos (Adorno), ao enfatizarem as condições histórico- dispôs de tantos meios (mídia, livros, museus,
culturais da produção do saber, deram uma contribui- etc.); mas a racionalidade científica permanece
ção decisiva para se relativizar a racionalidade cien- ameaçada, isolada e sem controle sobre as ideo-
tífica ocidental. Por essência, é “tecnológica” (Mar- logias que a recusam ou (pior) a recuperam”.(1a)
cuse), pois só apreende o mundo em sua instru-
mentalidade; e o logos que a anima se revela funda- A oposição entre racionalistas (universalistas)
mentalmente técnico, dominador e manipulador. O e relativistas é muito antiga. De Platão aos modernos
que podemos ler, em seu empreendimento, é uma positivistas, os racionalistas acreditam que existe um
lógica da dominação, uma visão do mundo típica de fundo comum de realidade imutável acessível à ra-
uma sociedade que se constrói e se expande vincu- zão. Quanto aos relativistas, proclamam que as coi-
24 25
sas mudam em função do contexto social, que não racional varia segundo o contexto social. Assim, o
existe uma verdade única e universal, pois varia em que um grupo social reconhece como prova pode
função do observador e da sociedade. Do ponto de não ser aceito por outro. Por depender de um contex-
vista epistemológico, o âmago do debate é travado to local e de um sistema de crenças, toda prova é
em torno das noções de prova e consenso. Os racio- relativa. O observador não tem o direito de pronun-
nalistas defendem que a prova deve impor-se por si ciar-se sobre o que é racional ou irracional, pois não
mesma, pelo menos às pessoas competentes e dispõe de nenhum critério de avaliação universal.
desprovidas de preconceitos: pelo fato de retirar sua Ao utilizar a imagem do tribunal, B. Latour denomina
força da estrutura mesma do raciocínio e da relação racionalistas os advogados de acusação. Em contra-
com a experiência, não há razão ou motivo para que partida, os corajosos, hábeis e obstinados advoga-
não acarrete necessariamente o consenso. Quando dos de defesa que conseguem convencer os mem-
não é alcançado, devemos buscar a causa de seu bros do júri que “todos os casos de irracionalidade
insucesso na falta de informações suficientes e nos patente têm numerosas circunstâncias atenuantes”
preconceitos ideológicos. Porque o consenso se ex- e que “todos os casos de comportamento racional
plica pelo valor empírico-lógico da prova. O não-con- manifestam sinais de irracionalidade patente”, são
senso, por fatores exteriores (psicológicos e socioló- relativistas. Sua grande força consiste em nos con-
gicos). Assim, diante dos sistemas de pensamento vencer, no domínio da forma, que não podemos reco-
e de crença, defrontam-se duas posições: nhecer nenhuma assimetria entre os raciocínios dos
indivíduos, pois as diferenças procedem do domínio
Racionalismo: da matéria. Mas não explicam por que, neste domí-
nio, não partilhamos todos as mesmas convicções
! Comparação possível (La Science en Action, Gallimard, 1989, p. 471s).
! critério = a razão universal Por sua vez, o eventual consenso não é a con-
! superioridade do sistema de pensamento seqüência de nenhuma necessidade lógica ou de
científico uma prova capaz de impor-se a todos, mas tão-so-
mente o resultado dos critérios das provas que deter-
Relativismo: minado grupo se dá e reconhece. O que é uma pro-
! Não há comparação possível va, senão aquilo que o grupo reconhece como tal?
Por isso, os critérios de sua aceitação dependem
! não há razão universal
dos grupos e de uma explicação sociológica. Sendo
! não há superioridade de um sistema assim, todo consenso é social, pois resulta das
! a ciência é um sistema entre outros interações e negociações entre pessoas dispondo
de recursos, poderes e interesses cognitivos diferen-
A posição dos relativistas é radical: não reco- tes, mas participando de um mesmo sistema de
nhecem, a priori, nenhum critério universal e absoluto crenças. Até mesmo essas crenças, quando partilha-
de racionalidade nem de verdade. Tudo o que pode- das, resultam de negociações e consensos anterio-
mos aceitar como argumento válido ou qualificar de res. Quando sua origem social é ocultada, aparecem
26 27
como verdadeiras, objetivas ou naturais para o grupo Em síntese, o que afirmam os relativistas é que
que as aceita. Neste sentido, não há uma distinção nem a lógica nem a evidência desempenham um
radical entre crença e conhecimento. papel importante na construção e na transmissão
Aliás, os termos “prova”, “razão”, “validade”, do conhecimento, pois tal processo é inteiramente
“objetividade”, etc. nada mais são que categorias social. As problemáticas que guiam o conhecimento
utilizadas pelos autores, não constituindo uma consistem, ora em saber como debates científicos
realidade capaz de transcendê-los. Tomados neles terminaram, ora em determinar como cientistas
mesmos, nada explicam. O que precisa ser explicado chegam a decidir sobre a validade dos resultados
é seu uso no interior dos diferentes sistemas de obtidos, quando seus métodos não explicam ou só
crenças. Tudo é social. Nada há de universal. Não explicam parcialmente os resultados da pesquisa.
há pontos de vista absolutos. Nenhum sistema de Quanto ao que determinam os resultados da pesqui-
crenças pode ser considerado como verdadeiro. sa, os relativistas fazem valer exclusivamente causas
Uma teoria só é científica em função do consenso externas, a saber, o consenso e a persuasão obtidos
social que a torna aceitável. A verdade repousa na dos colegas e de seu público. Tal relativismo deve
força dos que a impõem. O fundamento de um enun- ser compreendido como determinismo social.
ciado científico só pode ser sócio-histórico. Os con- Enquanto o sofista Protágoras proclama que
ceitos, os métodos e os critérios de validação, utili- “o homem é a medida de todas as coisas”, a Bíblia
zados pelos cientistas, nada mais são que meios confia ao homem o cuidado de “submeter a terra e
permitindo-lhes criar consensos em torno de seus dominar os peixes, os mares, as aves do céu e todos
enunciados e do valor científico de suas provas. O os animais”. Tanto a corrente judaico-cristã quanto
êxito científico de um enunciado resulta do sucesso a greco-romana, que constituem a base de nossa
social de seu autor. Donde as duas posições antagô- civilização e a alimentam, juntam-se para estabele-
nicas diante da questão da prova e do consenso: cer uma orientação. E ao fundar a ciência moderna,
Galileu lhe fornece os meios de realizá-la. Assim,
através dos princípios epistemológicos de uma
Racionalismo:
ciência pretensamente “pura” e indiferente às suas
Lógica, natureza, experiência " Prova " Con- aplicações, não é a Razão eterna e universal que
senso que se impõe (quando não há influência se exprime, mas sua racionalidade específica, porta-
de fatos psicológicos e sociais) dora por excelência do projeto de uma sociedade
dominadora e apresentando-se como a detentora
Relativismo: exclusiva de uma verdade universal e conquistadora.
Enquanto a máxima de Protágoras exprime um
Grupo social (= sistema de crença + critérios
relativismo a respeito dos indivíduos, os autores con-
locais de prova)
temporâneos, quando afirmam (como Kuhn) que
+ negociações " Consenso social “não há nenhuma autoridade superior ao assenti-
Tudo é relativo, inclusive os termos “prova”, mento do grupo interessado”, exprimem um
“razão” e “objetividade” relativismo a respeito das comunidades: tanto as ca-
28 29
racterizações do progresso quanto os diversos crité- absoluta, pois suas leis são exatamente iguais às
rios de julgamento de validade das teorias são relati- que o real obedece. Contemporaneamente, o
vos, seja ao indivíduo, seja às comunidades. Se os racionalismo abandona a idéia do absoluto, embora
critérios para julgarmos os méritos das teorias de- mantenha, para a Razão, a possibilidade de atingir
pendem dos valores ou dos interesses do indivíduo o real, notadamente pelo conhecimento elaborado
ou da comunidade, também a distinção entre o que cientificamente. Trata-se de um racionalismo aberto
depende da ciência e o que dela se separa varia do ou dialético (à maneira de Bachelard), levando em
mesmo modo. Diferentemente do racionalista, o conta a historicidade mesma da Razão.(1b)
relativista extremado considera arbitrária a distinção Portanto, quando falamos de “onda relativista”,
entre ciência e não-ciência. Nega a existência de estamos nos referindo às correntes de pensamento
uma categoria única, “a ciência”, capaz de impor uma que, nas últimas décadas, notadamente no campo
superioridade intrínseca, de direito e de fato, às da sociologia das ciências, negam peremptoriamen-
outras formas de saber, embora não ignore o fato te qualquer critério de verdade universal. Um dos
de indivíduos e comunidades conferirem um valor pioneiros da sociologia das ciências (Karl Manheim),
elevado ao conhecimento científico. Para compreen- ao excluir os conhecimentos científicos do campo
dermos a razão pela qual “a ciência” goza de uma da sociologia, afirma que, por serem verdadeiros e
altíssima estima em nossa sociedade, precisaríamos provados, não podem ser explicados por fatores
analisar nossa sociedade, não a natureza da própria sociais. Claro que podem dar conta dos problemas
ciência. que nos colocamos em determinado momento e em
A questão da verdade e do relativismo é muito certa sociedade, mas de forma alguma do que
antiga. Desde sua origem grega, a filosofia se cons- consideramos como verdadeiro. Somente as teorias
tituiu reconhecendo a Razão como faculdade de falsas podem ser explicadas pelo contexto sócio-
conhecimento das coisas e de domínio de si. Ao histórico, pela ideologia dos pesquisadores ou por
referir-se ao Logos como à luz mesma da verdade, suas crenças pessoais. Quanto ao conteúdo mesmo
ela renuncia às revelações das místicas supranatu- de uma teoria verdadeira, só se explica por seu valor
rais e aos ensinamentos práticos da experiência. E intrínseco: métodos rigorosos, observações corretas,
passa a afirmar que, do ponto de vista metafísico, experimentação concludente e sólidos raciocínios.
nada existe sem razão de ser. Assim, tem início a O papel do contexto social é apenas o de criar condi-
aventura racionalista ocidental, acreditando que todo ções favoráveis ou desfavoráveis para se chegar a
conhecimento humano é precedido de princípios a esse resultado.
priori. Neste caso, distinguimos um racionalismo Outro fundador da sociologia das ciências,
absoluto (Platão, Descartes), não reconhecendo ne- Robert Merton, preocupado, não tanto em estabele-
nhum lugar para a experiência, e um racionalismo cer os vínculos entre os cientistas e as outras
crítico (Kant), para o qual, aos a priori da razão, instituições, mas em estudar a sociologia da comu-
corresponde uma experiência que eles pré-definem nidade científica, em compreender os usos e cos-
e organizam. A filosofia de Hegel radicaliza: o tumes dos pesquisadores, seus modos de organizar-
pensamento racional é capaz de atingir a verdade se, sua maneira de entrar em competição, suas
30 31
ambições, etc., defende que a atividade científica ção das produções científicas deve ser realizada
precisa ser regulada por um conjunto de normas sistematicamente por meio de critérios empíricos e
específicas. Distingue dois tipos de normas: as éticas lógicos.
e as técnicas. As primeiras devem regular os com- Merton foi um dos primeiros a elaborar um
portamentos sociais e profissionais dos cientistas. conjunto de teorias susceptíveis de explicar o funcio-
As segundas (regras lógicas e metodológicas) se namento da ciência enquanto instituição ou “esfera
referem aos aspetos cognitivos da ciência. Compete distinta e autônoma”. Seu objetivo é o de descrever
à sociologia estudar as primeiras e, à epistemologia, os comportamentos individuais e coletivos dos cien-
as segundas. Porque o papel do sociólogo é o de tistas bem como tudo o que os explica: as normas,
analisar as regras éticas e descrever a moral uni- os hábitos sociais e profissionais, os valores e as
versal da ciência. Quatro são as normas éticas ou idéias. A instituição social da ciência torna possível
imperativos institucionais: a prática da racionalidade científica, o acúmulo dos
a) o universalismo: as afirmações dos pesqui- conhecimentos e sua difusão na sociedade. O cresci-
sadores e suas descobertas não devem ser julgadas mento dos conhecimentos é o objetivo dessa institui-
em função de quem as propõe, mas de critérios ção particular. Para ser atingido com eficácia, normas
impessoais impondo-se a todos. Em outras palavras, e regras precisam reger o comportamento dos cien-
o etos da ciência deve opor-se ao particularismo e tistas. O conjunto dessas normas constitui a estrutura
ao individualismo que privilegiam a utilização de social da ciência, fazendo dela uma instituição so-
critérios pessoais ou de grupo (religião, sexo, etc.); cial autônoma:
b) o desinteresse: o único objetivo do pesqui-
# um objetivo: o progresso do conhecimento
sador é o conhecimento dos conhecimentos, não
sua satisfação pessoal; as produções científicas têm # um conjunto de regras normativas (universalismo,
um caráter público e controlado; o cientista deve etc.)
estar interessado apenas na busca da verdade, em # a adesão às normas é reforçada por um sistema
produzir resultados reprodutíveis; de gratificações simbólicas
c) o comunialismo: todos os conhecimentos # o controle social é feito pelos pares
devem ser públicos e partilhados com a comunidade; # um modelo de democracia.
as descobertas são bens coletivos, produzidos em
colaboração e destinados ao progresso da socieda- Em 1962, com a publicação de A Estrutura
de. Por isso, o etos da ciência se opõe à apropria- das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn, a
ção privada e ao segredo; sociologia da ciência passa a ser dominada pela
d) o ceticismo organizado: o objetivo dos pes- noção de “paradigma”. Sua concepção do saber
quisadores é o de produzir conhecimentos válidos científico rompe com o racionalismo dos estudos
e manter o debate público permitindo que só seja precedentes. A tese fundamental de Kuhn consiste
mantido o que resistir ao exame crítico aprofundado em dizer que a ciência só consegue pôr suas
e evitar o dogmatismo. Em outras palavras, a avalia- hipóteses e teorias à prova por ocasião de crises

32 33
excepcionais ou de “revoluções”. No restante do sociais protegidas por convenções. O que pode ser
tempo, os cientistas praticam a “ciência normal”: uma resumido conforme a seguir (cf. D. Vinck, Sociologie
ciência que todos aceitam sem muito questionar des Sciences, A Colin, 1995, p. 98):
suas aquisições, seus resultados, seus conceitos,
suas normas, seus métodos, etc. Esses elementos Paradigma = modelo de pensamento e de ação
constituem paradigmas e se organizam em matrizes
# transmitido pela educação e pela aprendizagem
estáveis no interior de cada disciplina. O apego ao
paradigma, vale dizer, ao conjunto de crenças da # composto de elementos heterogêneos (conceito,
comunidade científica, não é completamente racio- por exemplo)
nal. E os diferentes paradigmas que se sucedem, # estrutura a maneira de ver o real e de fazer a
na história das ciências, são “incomensuráveis”, quer ciência
dizer, não-comparáveis, cada um possuindo seus # corresponde a uma forma de vida e a uma estru-
critérios de validade. tura social
A noção de “incomensurabilidade” põe um pro- # impõe uma tradição normativa nos planos social
blema: se duas teorias são incomensuráveis, não e cognitivo
podem ser traduzidas uma na outra. Ora, objeta # domina na fase de ciência normal (= resolução
Popper, duas línguas tão diferentes quanto o chinês de enigmas postos pelo paradigma)
e o inglês podem ser traduzidas uma na outra, posto
que as pessoas que falam uma têm condições de # incompatível com outro paradigma (incomensura-
dominar a outra, os conceitos de uma podem ser bilidade): a mudança de paradigma (ligada a fato-
traduzidos adequadamente em outra. Se conceitos res extracientíficos) se faz por revolução; não há
são traduzíveis de uma cultura à outra, torna-se verdade universal.
possível a existência de verdades universais e locais.
Algumas crenças pertencem à razão universal, ou- Com a noção de paradigma, os sociólogos
tras a culturas particulares. A resposta de Kuhn con- começam a perceber que os próprios conteúdos das
siste em dizer que o tradutor (segundo seu quadro ciências são estruturados em torno de projetos,
de referência: paradigma) pode fazer várias tradu- preconceitos e condicionamentos sociais. O que se
ções possíveis, não havendo apenas uma que seja evidencia é o aspeto institucional desses conteúdos.
universal. Porque os conceitos encontram-se intima- Contudo, num primeiro momento, os sociólogos se
mente ligados a seu contexto. Apoiando-se nessa interessam pela influência dos fenômenos sociais
tomada de posição, os relativistas (Barnes, Bloor) sobre o paradigma e as práticas científicas. Mas pre-
afirmam: além de não haver razão universal, tampou- servando, como uma idéia reguladora, a existência
co há a mínima possibilidade de distinguirmos pen- de um núcleo duro das ciências: no cerne mesmo
samentos racionais e irracionais. Porque cada siste- do trabalho científico há elementos que representam
ma de pensamento possui seu próprio modelo e seu uma objetividade absoluta, mesmo que, na periferia,
quadro de referência composto de convenções so- possamos perceber os condicionamentos das disci-
ciais. A realidade e o saber constituem construções plinas e sua relatividade histórica.
34 35
A grande “revolução” de Kuhn foi a de abalar a de de seus resultados. Neste sentido, os estudos
imagem da ciência, a representação que ela se sócio-históricos examinam as práticas científicas não
propunha do mundo. Abalou as colunas do templo diferenciando entre os cientistas que tiveram “razão”
da razão. A partir dele, a ciência não pode mais ser e os que historicamente erraram. Vieram mostrar
descrita como um jogo cujos objetivos seriam perfei- ainda que a ciência atual coloca mais questões que
tamente claros e se fundiriam na única preocupação pode resolver, elimina mais falsas respostas que
de conhecer. As regras às quais obedecem os pode fornecer verdadeiras.
pesquisadores para evoluir, endossar ou repelir as De um ponto de vista teórico, quase todos os
teorias científicas não são desprovidas de ambigüi- sociólogos da ciência passam a reclamar de Kuhn
dade nem partilhadas por todos. Toda decisão cien- e a pôr em questão os dois elementos sobre os quais
tífica é influenciada por fatores sociais e inspirada se funda o paradigma mertoniano: a representação
por motivações e objetivos extracientíficos. As certe- positivista da ciência e a idéia de um etos científico.
zas do cientista freqüentemente são crenças que D. Bloor apresenta seu ponto de vista como uma
ele abraça por razões subjetivas. Toda pesquisa alternativa às concepções extremas do empirismo
científica se situa no interior de quadros intelectuais. e do racionalismo; B. Barnes rejeita o que chama
Esses “paradigmas” são comparáveis aos “sistemas de concepção “contemplativa” da atividade científica;
culturais” de que falam os antropólogos, vale dizer, M. Mulkay se opõe à concepção standard da ciên-
a esse conjunto de princípios, crenças e valores cole- cia. Todos questionam a concepção positivista da
tivos sobre os quais se apoia a identidade de toda ciência. Tentam desenvolver, em sua sócio-episte-
comunidade humana. Como as “culturas”, seriam mologia, determinado número de temas kuhnianos
“incomensuráveis”. (a crítica do positivismo lógico e de seu critério de
Sendo assim, a história e a sociologia das ciên- verificação dos enunciados, a crítica de Popper e
cias são capazes de falar de tudo o que gira em de seu critério de falsificabilidade). Ademais, tentam
torno desse núcleo. Mas a racionalidade científica, representar, numa perspectiva cética, a famosa tese
enquanto tal, fica ao abrigo das pesquisas psicológi- “Duhem-Quine”: devemos julgar nossos enunciados
cas e sociológicas, pois depende apenas da razão de vocação referencial, não um a um, mas em seu
pura. Num segundo momento, vários filósofos, histo- conjunto.
riadores e sociólogos das ciências (Feyerabend, Assim, os defensores da Sociology of Scien-
Bloor...) começam a mostrar que, na própria raciona- tific Knowledge rejeitam a idéia de normas interio-
lidade científica, estão presentes elementos psicoló- rizadas, a idéia de um etos único para o conjunto
gicos e sociológicos. E que as ciências constituem das ciências permitindo-nos conferir um estatuto
um produto da história, estando a ela indissociavel- particular à sua atividade, não podendo esta ser com-
mente ligadas. Os próprios conteúdos das ciências preendida a partir de normas gerais. A ciência não
aparecem como criações humanas devendo ser es- deve ser considerada como uma comunidade homo-
tudadas como uma atividade qualquer, sem a priori gênea produzindo conhecimentos a partir de um
sobre seu valor. Portanto, com pressupostos agnósti- consenso que se realizaria em torno de determinado
cos quanto à natureza das ciências e quanto à verda- número de valores, mas como um conjunto hetero-
36 37
gêneo, como uma multidão de culturas locais no seio cos são determinados por uma realidade objetiva
das quais a produção de conhecimentos encontra- que se trata de descobrir. Ao ganhar força a partir
se diretamente ligada a normas particulares submeti- dos anos 1970, o relativismo, até então crítico da
das à influência de fatores contingentes. A análise ideologia dominante, volta-se para o questiona-
sociológica da ciência não deve mais partir do exame mento da própria ciência. Paradigma da objetividade,
do sistema social, com suas normas e regras globais, da neutralidade e da universalidade, ela se vê objeto
mas centrar-se no ator, em seu comportamento, em de suspeita e passam a ser denunciados seu elitismo
suas práticas empiricamente observáveis. institucional, seu autoritarismo hierárquico, seu con-
Apesar de julgada por muitos como bastante formismo intelectual, sua submissão política, seu im-
radical, esta concepção da incomensurabilidade dos perialismo cultural e até sua hegemonia ideológica.(2)
paradigmas exerceu uma forte influência: como os Os fundadores da sociologia da ciência preten-
pesquisadores não se comportam de modo tão racio- dem evidenciar as correlações entre o conhecimento
nal assim face às suas idéias, cabe aos sociólogos e os fatores existenciais, culturais e sociais. Estudam
e historiadores estudar mais concretamente a manei- as relações existentes entre a atividade cognitiva e
ra como devem estabelecer e interpretar seus resul- o contexto social operando nos diversos meios e
tados. Porque o conhecimento científico não é intrin- em suas particularidades. Surge o problema: como
secamente verdadeiro. As teorias devem ser trata- estudarmos sociologicamente um saber (a ciência)
das como sistemas de crenças submetidos às mes- com pretensões universais, desvinculado do tempo
mas determinações sociais e ideológicas que os de- e das contingências, indiferente às relações sociais
mais setores da cultura. E a ciência não deve mais nas quais os homens se integram? A esta questão,
ser vista como a fonte sagrada e infalível da verdade duas respostas foram dadas: uma internalista, a do
teórica e da eficácia prática. Porque nenhuma essên- “programa clássico/ou fraco”; outra externalista,
cia epistemológica pode imunizá-la contra a multipli- apresentada em duas versões: do “programa forte”
cidade das contingências e contradições de toda e do “programa duro”:
atividade social.
Donde a atitude radical e agnóstica de alguns ! a primeira resposta é minimalista: há enunciados
pesquisadores. David Bloor, por exemplo, preconiza universais (exemplos: 5x5=25; a velocidade é
que devemos tratar da mesma maneira o que é con- uma quantidade expressa pela relação de uma
siderado como verdade ou como erro, vale dizer, distância com o tempo a ser percorrido...) e enun-
procurar, para ambos, os mesmos determinantes. ciados relacionais (exemplos: as taxas de juros,
Esta tomada de posição desemboca diretamente no a pena de morte, os papéis masculinos e femini-
relativismo, quer dizer, nesta idéia segundo a qual o nos...). A sociologia se ocupa dos enunciados
conteúdo das ciências não tem o direito de apresen- relacionais, não devendo estudar os enunciados
tar-se como intrinsecamente verdadeiro ou falso, universais, pois deve limitar-se ao exame dos
pois depende do consenso sobre ele estabelecido. condicionamentos dos valores morais, da estrutu-
Em outras palavras, a posição relativista não aceita ra social e das instituições científicas sobre as
a hipótese segundo a qual os conhecimentos científi- atividades e as produções dos pesquisadores.
38 39
Embora haja uma forte influência da sociedade ! mostrar a flexibilidade interpretativa das pro-
sobre a ciência, de forma alguma ela põe em risco duções científicas: a natureza autoriza sempre
a autonomia, a objetividade, a universalidade ou várias interpretações possíveis, mas só uma se
o caráter desinteressado da atividade dos cientistas; impõe; se isto ocorre, é porque há um consenso
! a segunda resposta (externalista) é maximalista: social entre os cientistas;
não há saber objetivo; a universalidade da ciência ! descrever os mecanismos sociais limitando a fle-
é uma ilusão, da mesma forma como a noção de xibilidade interpretativa bem como a construção
verdade. A sociologia deve tratar a ciência do dos consensos explicando o encerramento das
mesmo modo como os conhecimentos comuns controvérsias;
ou ordinários. A autonomia da ciência é um engo-
! ligar os mecanismos de encerramento às es-
do. A distinção entre ciência e técnica é uma
truturas sociais e políticas: o objetivo do progra-
ilusão...
ma é o de mostrar como os conceitos científicos
se encontram ligados às sociedades e aos inte-
Desde essa época, a onda relativista passa a
invadir a sociologia das ciências e considerá-las co- resses políticos nos quais são elaborados. Não
mo sistemas de crenças entre outros e relativos aos basta mostrar que elementos científicos são con-
grupos sociais que a eles aderem. Não há nenhuma gruentes com culturas particulares, mas como “o
razão universal permitindo compará-los nem de- método científico” conduz a resultados diferentes
monstrar sua superioridade, porque todo critério de em circunstâncias sociais distintas. E o objeto
avaliação é relativo a determinado sistema de cren- privilegiado de estudo que alimenta tal programa
ças. A natureza, a lógica e as provas não falam por é o das disputas e controvérsias entre cientistas.
elas mesmas. Se há consenso, vem da sociedade,
devendo ser explicado sociologicamente. Baseados Antes mesmo da criação do “programa forte”,
em vários estudos empíricos, alguns jovens sociólo- alguns sociólogos britânicos, entre os quais Barry
gos começam a analisar a construção social das Barnes (Scientific Knowledge and Sociologic Theory,
ciências. E propõem programas de pesquisa: o “pro- Routledge and Kegan Paul, 1974), abandonando o
grama forte”(strong programme) da sociologia das domínio até então reservado da epistemologia, criam
ciências e o “programa empírico”(empirical program- a revista Social Studies of Sciences, exercendo forte
me) do relativismo. Preocupados em analisar os influência nos franceses Michel Callon e Bruno
próprios conteúdos científicos, tentam demonstrar Latour. As três obras que permitiram a criação da
que fatores sociais intervêm na construção dos antropologia das ciências são as de B. Latour e S.
enunciados, chegando mesmo a dissolver o núcleo Woolgar, La Vie de Laboratoire (La Découverte,
das ciências no social.(3) 1988), a de Karin Knorr, Manufacture of Knowledge
Se o objetivo do programa forte consiste em (Pergamon, Oxford, 1981) e a de Michael Lynch,
advogar a existência de princípios metodológicos publicada mais tarde, Art and Artifact in Laboratory
gerais, o programa empírico, ao precisar o objeto Science (Pergamon, Oxford, 1981). Eis como Latour
de estudo e seu tratamento, distingue três etapas: descreve o início desse movimento:
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“Há uns vinte anos, meus amigos e eu estuda- A tese central desse “programa” consiste em
mos essas situações estranhas que a cultura intelec- anunciar: o próprio conteúdo da ciência constitui um
tual em que vivemos não sabe onde situar. Nós nos fato socialmente determinado. Nele se encontram
denominamos, por falta de melhor termo, sociólogos, enunciados, os princípios: causalidade: a sociologia
historiadores, economistas, politólogos, filósofos, an- do conhecimento deve ser causal (as análises de-
tropólogos. Todavia, a essas disciplinas veneráveis, vem detectar as causas e razões às quais obedecem
acrescentamos cada vez o genitivo: das ciências e as descobertas científicas); imparcialidade: a socio-
das técnicas. Science Studies é a expressão inglesa, logia do conhecimento deve ser imparcial do ponto
ou esta bastante pesada: “Ciências, técnicas, socie- de vista da verdade ou da falsidade (o cientista não
dades”. Qualquer que seja a etiqueta, trata-se sem- deve prejulgar sobre a verdade ou a falsidade, a
pre de reatar o nó górdio atravessando, tantas vezes racionalidade ou irracionalidade dos conhecimentos
quantas necessárias, a ruptura que separa os conhe- que estuda); reflexividade: a explicação deve ser
cimentos exatos e o exercício do poder, digamos, a reflexiva e poder aplicar-se a si mesma (os argumen-
natureza e a cultura”.(4) tos que o sociólogo utiliza para estudar as ciências
O “programa forte” de Bloor, enunciado em devem ser aplicados à sociologia); e o princípio de
1976 (em Knowledge and Social Imagery, Routledge simetria: a explicação deve ser simétrica, o mesmo
and Kegan Paul, Londres), é a mais radical e influen- tipo de causa devendo explicar o erro e a verdade
te corrente relativista. O que afirma enfaticamente é (a análise do sociólogo deve utilizar os mesmos tipos
que a totalidade da prática científica, inclusive a dis- de explicações para justificar as crenças verdadeiras
tinção entre verdade e erro, é da alçada da análise e as falsas, os sucessos e os fracassos), pois deve-
sociológica e que a adesão a uma teoria científica mos explicar do mesmo modo a emergência do
depende do mesmo tipo de explicação (psicológica, verdadeiro e a do falso, as crenças menos sólidas e
social, econômica, política, etc.) que qualquer cren- os saberes racionais e objetivos, as hipóteses que
ça. Na base de sua demarche encontra-se a seguinte têm êxito e as que fracassam.
tese epistemológica, conhecida como o teorema Os quatro princípios do “programa forte” pres-
Duhem-Quine: para determinado conjunto de infor- supõem a existência de uma natureza precedendo
mações empíricas podem existir vários sistemas a ciência e a religião e propondo que sejam tratadas
teóricos capazes de compreendê-los; mas é por de modo equivalente. Ora, se a ciência é o produto
fatores extra-empíricos (sociais e ideológicos) que das estruturas sociais, econômicas e políticas, não
decidimos por este ou aquele sistema explicativo; pode fundar-se na natureza. Converte-se na exterio-
entre esses fatores, devemos enfatizar um fato so- rização da sociedade e de seus princípios de organi-
cial: a “negociação” entre os pesquisadores precede zação, em sua simples expressão. Em ambos os
as decisões científicas. Em outras palavras, as nor- casos, natureza e ciência são reificadas. A argumen-
mas distinguindo a ciência da não-ciência variam tação de Bloor decorre do postulado segundo o qual
no espaço e no tempo, pois sofrem modificações “a verdade, a racionalidade e a validade” constituem
importantes no decorrer dos anos, impostas pelos “objetivos naturais do homem” e “orientam certas
fatores sociais extracientíficos.. tendências naturais”. O homem “raciocinaria natu-
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ralmente de modo justo e se ligaria à verdade lógica segundo o tempo e as culturas, não gozando de ne-
quando esta se apresentasse a ele”. Este postulado nhum direito à transcendência. No entanto, esta to-
pressupõe a existência de uma natureza humana mada de posição não será defensável enquanto não
universal. Todavia, se dizemos que a experiência é enfrentar corajosamente o problema do estatuto da
o produto de influências e fatores sociais, a raciona- ciência. Eis o grande desafio que os relativistas como
lidade deixa de ser um elemento constitutivo da Feyerabend, Bloor e Latour, cada um a seu modo,
natureza humana, convertendo-se numa construção tiveram que enfrentar: ou conseguiriam demonstrar
social, arbitrária e relativa. Assim, afirmar a impossi- que todo o desenvolvimento do pensamento científi-
bilidade de uma demarcação entre ciência e não- co é imputável, cada vez, a contextos sociais e histó-
ciência é postular que a razão e a racionalidade se- ricos particulares, ou teriam que admitir um mínimo
jam transformadas em ideologias, que a ciência e a de realidade a uma lógica específica do conhecimen-
magia sejam saberes comparáveis. to emergindo para além das condições particulares
Opondo-se radicalmente ao ponto de vista de sua produção.
racionalista, o princípio de simetria põe em questão
David Bloor, mesmo correndo o risco de certo
a demarche clássica da história das ciências consis-
sociologismo (com seu “programa forte”), sustenta
tindo em procurar explicações ideológicas ou sociais
corajosamente o projeto de explicar cientificamente
apenas para os erros ou impasses científicos, posto
que os sucessos se imporiam por eles mesmos. Cla- a produção científica. Defende vigorosamente um
ro que há saberes mais sólidos que outros. Mas “hiperrelativismo” culminando num “hiperracionalis-
precisamos reduzir a importância da racionalidade mo” ou, mesmo, num “hipercientificismo”: Este
nos êxitos dos cientistas. Assim, ao postular que hiperrelativismo hiperrarionalista seria, no dizer de
devemos analisar com as mesmas causas o êxito e A. Caillé, também hiperdemocrático. Com efeito,
o fracasso, as crenças verdadeiras e as falsas, as repousa no princípio de simetria postulando que, “do
que ganham e as que perdem, o princípio de sime- ponto de vista de uma sociologia do conhecimento,
tria não somente se opõe às teses racionalistas, mas não temos o direito de, a priori, conferir privilégio ao
afirma que, na aplicação aos produtos da atividade conhecimento científico moderno sobre as outras
científica, não devemos privilegiar nenhum tipo de formas de conhecimento. A priori, todos os conheci-
explicação. E como precisa ser tomado como uma mentos devem ser tratados nas condições da mais
regra de método, não postula que as crenças aceitas perfeita igualdade(La Démission des Clercs, La
e rejeitadas sejam equivalentes nem que todas as Découverte, 1993, p. 200). Para explicar os conheci-
posições possuam o mesmo valor. mentos científicos aceitos como verdadeiros e as
Qual o nó do problema, para os relativistas? crenças consideradas falsas, devemos fazer apelo,
Consiste em dizer que os homens vivem em univer- da mesma maneira, aos fatores sociais. Ademais,
sos bastante diferentes para que seja possível qual- devem ser tratados do mesmo modo os ganhadores
quer definição de normas universais (ou universalizá- e os perdedores, os êxitos e os fracassos, o conheci-
veis) do verdadeiro e do justo, posto que os próprios mento verdadeiro e o falso, a ciência e a não-ciência,
critérios da verdade e da justiça também variam o conhecimento e a crença.
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Por sua vez, em conformidade também com o agnosticismo do observador se dirige às ciências
princípio de simetria, Latour explica que os epistemó- naturais e sociais. Trata-se de registrar as incertezas
logos racionalistas tomam o efeito pela causa e se referentes à identidade dos atores, quando é contro-
limitam a qualificar de racionais as crenças que triun- vertida, e de se evitar emitir juízos de valor sobre o
faram, acreditando estar explicando a vitória da ra- modo como analisam sua sociedade. Ora, por pre-
cionalidade. Por exemplo, no conflito opondo Pas- tenderem ser os únicos em condições de falar vali-
teur e Pouchet, dois sábios honestos, sérios e racio- damente, não somente a respeito da sociedade, mas
nais, a vitória do primeiro não se deveu a seu maior das outras ciências, os sociólogos ousam englobar
grau de racionalidade, mas de credibilidade. Não as ciências como objeto de sua disciplina. E adotam
podemos separar completamente a verdade de uma a tese segundo a qual as ciências sociais podem
proposição de sua credibilidade. A questão funda- explicar as outras e seu processo de produção. Co-
mental consiste em sabermos se o conjunto das pro- mo se, em sua luta contra a hegemonia das ciências
posições verdadeiras é suscetível de certa invariân- “duras”, devessem impor seus modelos, sua lógica
cia ou, melhor, de certa cumulatividade para além e sua racionalidade à atividade científica. Se nem a
da diversidade dos sistemas de credibilidade. Nem natureza nem a lógica podem explicar o consenso,
Bloor nem Latour negam que certas crenças sejam apenas a sociedade, não ficam as produções cientí-
verdadeiras e outras falsas. Porque a sociologia da ficas reduzidas a meras construções sociais? Para
ciência não se pergunta sobre o que determina a explicar as ciências, os relativistas fazem apelo a
verdade, mas sobre o que produz a crença segundo elementos sociais tratados sem relativismo.(5)
a qual certas proposições são verdadeiras. Portanto, Insatisfeitos com a seguinte tese: não podemos
postulam a igualdade entre crenças, não do ponto identificar concretamente o efeito da sociedade so-
de vista de sua verdade, mas do ponto de vista de bre os conteúdos de uma lei científica, o que fazem
sua credibilidade. os defensores da teoria do efeito dos interesses so-
Ao adotarem o “princípio de agnosticismo”, se- ciais nesses conteúdos? Simplesmente fazem apelo
gundo o qual não temos o direito de privilegiar ne- à noção de “caixa preta”: se não conseguimos perce-
nhum ponto de vista dos atores estudados (natureza ber as marcas do social nos conteúdos das ciências,
ou sociedade), os relativistas como Latour e Callon é porque seus traços se apagaram. Assim, a ativida-
sustentam que os cientistas podem e devem manter de científica não consiste apenas em produzir conhe-
a controvérsia quando se trata da natureza. Mas não cimentos, mas em apresentá-los como “caixas pre-
admitem que seja estendida à sociedade e à sua tas”. Fatores externos penetram na produção dos
constituição. Ao mesmo tempo que negam ao cien- conteúdos. Por detrás dos conceitos ocultam-se
tista qualquer privilégio à razão, à verdade, ao méto- crenças, valores e forças sociais. De qualquer forma,
do e à eficácia, atribuem a si mesmos um suplemento nenhum conhecimento científico surge e se desen-
de razão na explicação que fornecem da sociedade. volve sem esta influência positiva vindo da socie-
Explicam a pluralidade das descrições da natureza, dade, pois toda produção científica é impulsionada
mas não põem em questão a da sociedade, como e modelada por forças sociais. Nestas condições,
se apenas a natureza fosse incerta. Ademais, o não podemos negar que a gênese da verdade
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científica se explica pelos mesmos fatores sociais Claro que não podemos fazer a sociologia das
intervindo nas pseudociências. ciências ou da religião negando a pertinência de
Uma das contribuições do “programa forte”, ao ambas. Dizer que algo é relativo, não implica em
desenvolver uma sociologia suficientemente rigorosa cair num “relativismo desencantado”. Tanto a ciência
para ser capaz de detectar as “causas” sociais dos quanto a religião podem ser estudadas sociologica-
“conteúdos” das ciências, consiste em ter dado ao mente sem perderem sua autenticidade nem se
projeto relativista um objetivo bastante radical: bus- tornarem o que delas diz a sociologia, embora alguns
car o “por que” dos saberes científicos para além cientistas e cristãos tenham medo, não só do
das práticas dos cientistas, na sociedade mesma. relativismo, mas do “relativo”. A este respeito, o cris-
Donde a idéia corrente entre os relativistas poste- tianismo poderia trazer uma elucidação interessante:
riores: o conteúdo mesmo das ciências responde a segundo sua doutrina da encarnação, uma realidade
determinados “interesses” sociais. O interesse seria pode muito bem ser submetida às condições sócio-
uma noção que se apresenta como o substituto históricas sem deixar de veicular uma mensagem
explicativo da racionalidade do conhecimento. Trata- de transcendência vinculada às suas condições
se de uma noção ambígua, recobrindo tanto os in- históricas.
teresses cognitivos (o fato de se “crer em algo”) Ao insistir na necessidade imperiosa de uma
quanto os sociais (busca de reputação, de poder, absoluta neutralidade moral em matéria de conheci-
de dinheiro). Ao invés de serem considerados como mento, Bloor pretende mostrar que tal neutralidade
inimigos da ciência ou como fontes de erros, os coincide, paradoxalmente, com a introdução, no
interesses devem ser vistos como aliados, fontes domínio da verdade e do erro, de uma moralização
de resultados válidos. É por causa deles que um constante exprimindo-se numa permanente convo-
pesquisador busca certos conhecimentos em detri- cação (diante da oposição entre violência e racio-
mento de outros e que a comunidade científica aco- nalidade) à tolerância. No entanto, como salienta
lhe melhor alguns resultados que outros. Um intere- corretamente H. Gellner (Legitimation of Belief, Cam-
sse do pesquisador pode ser: geral, quando relativo bridge University Press, 1982; Relativism and So-
ao poder da ciência, ou específico, quando ligado à cial Sciences, Cambridge University Press, 1978),
sua posição social e profissional, ou então, às suas não temos o direito de construir um sistema científico
crenças morais, religiosas e políticas.(6) ou intelectual fundados numa noção tão frágil quanto
O que os relativistas negam, contundentemen- a de tolerância. Não devemos confundir a tolerância
te, é a pretensão de se separar o que seria “pura e com o que é simplesmente designado pela expres-
objetivamente científico” do que é historicamente são figurada de “ética científica”. Se insistirmos em
condicionado. Ora, comparando o estudo sócio-his- reduzir a teoria científica ao social, cairemos no
tórico das ciências com o estudo sociológico de ou- convencionalismo epistemológico e, com isso, esta-
tros fenômenos (como o religioso, por exemplo), po- remos abrindo as portas para o ingresso do irracio-
demos constatar uma certa resistência a essa abor- nalismo.
dagem sociológica, pois produziria o efeito de ofus- Ao retomarem o princípio de simetria das expli-
car o caráter sagrado das ciências e da religião. cações do desenvolvimento científico (de Bloor),

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Michel Callon e Bruno Latour o radicalizam e o gene- essencial da ciência, pois é aí que a imaginação
ralizam numa perspectiva relativista kuhniana, abrin- inventa o mundo. Claro que os procedimentos que
do uma via sociologista da história do conhecimento. caracterizam a ciência propriamente falando são
Limitada a uma igualdade de tratamento entre ven- explicitados (fala-se de “método científico”), um ele-
cedores e vencidos, a noção de simetria passa a mento fundamental sendo a reprodutibilidade sem-
ser estendida, na antropologia das ciências, a uma pre possível dos resultados experimentais. Mas não
igualdade semelhante entre os elementos da nature- resta dúvida que a ciência constitui o saber por exce-
za e os da sociedade. Renunciando decididamente lência, o meio de acesso privilegiado ao conhe-
postular uma distinção entre verdade e erro, esse cimento do mundo, pois seria o único que transcende
princípio limita o recurso a toda metalinguagem. O o tempo dos historiadores.
antropólogo não pode passar de um registro de expli- Posicionando-se contra essa imagem, os relati-
cação a um outro como se costuma fazer quando vistas formulam, entre outras, as seguintes contra-
se explica a realidade exterior pela sociedade ou a proposições:
sociedade pela realidade exterior. Devemos partir
da explicação simultânea da natureza e da socieda- a) precisamos abandonar a categoria “Ciência”,
de. Por isso, precisamos questionar as “grandes de- com tudo o que ela implica de reificação, em proveito
marcações”, tanto a que é constitutiva da modernida- de campos disciplinares e de múltiplas práticas mate-
de (opondo natureza e sociedade) quanto a que riais e cognitivas. Nada nos obriga a aceitarmos o
opõe os processos sociais às descobertas científi- postulado da unidade das ciências apoiada num
cas. A antropologia das ciências deve ser o autêntico modo particular de tratar os problemas. A noção de
porta-voz da sociedade e da natureza. Converte- ciência precisa ser historicizada;
se, assim, numa sociologia dos representantes, dos b) contrariamente à idéia de que a ciência seria,
porta-vozes e das testemunhas que se manifestam antes de tudo, um sistema de enunciados, segundo
na cadeia de tradução através da qual é formado o a qual se tipificaria por sua capacidade de explicitá-
enunciado científico ou instaurada a inovação téc- los plenamente e extraí-los dos saberes-fazer não
nica. E o lugar privilegiado para revelar essa cadeia formalizáveis que caracterizam as outras práticas,
de tradução é o laboratório. É aí que o pesquisador precisamos reconhecer que, tanto nas ciências teóri-
faz a natureza falar. cas quanto nas experimentais ou instrumentais, de-
No fundo, o que mais contestam os relativistas vem ser privilegiados os saberes tácitos, os saberes-
é a imagem dominante das ciências no Ocidente. O fazer, os modos de fazer e de tratar concretamente
que diz o discurso dominante, elaborado por cientis- os problemas, pois o prático da ciência também é
tas e filósofos das ciências? Freqüentemente apre- alguém que possui uma cultura, não podendo ser
senta as ciências como sistemas de proposições ou reduzido a um puro sujeito cognoscente: constitui
de enunciados podendo ou devendo ser falsificados parte integrante de uma comunidade, de um grupo,
pelo confronto com a experiência. Como, na maioria de uma escola ou de uma tradição;
das vezes, valoriza mais sua dimensão abstrata, c) contrariamente à imagem dominante da ciên-
considera que é no domínio “teórico” que se joga o cia, o fato de os saberes científicos aparecerem
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como bastante cumulativos não resulta do simples sua concorrência que surge o progresso científico.
emprego de um conjunto de regras lógicas (“o mé- Já os membros da Escola de Frankfurt, defensores
todo científico”) nem tampouco de comportamentos de uma racionalidade crítica, são os primeiros a
éticos ou sociais particulares, pois precisamos estar denunciar a “Razão instrumental”: ao converter-se
conscientes de que toda atividade científica constitui em “Mestra” absoluta, teria imposto uma concepção
uma atividade prática de interpretação e de invenção unidimensional e se transformado numa racionaliza-
que, além de implicar saberes e saberes-fazer, ção de caráter totalitário. No dizer de Horkheimer e
certezas formalizadas e convicção íntima, consiste Adorno, “a razão se comporta, em relação às coisas,
em formular juízos sempre contextualmente situa- como um ditador em relação aos homens: ele os
dos. Precisamos tomar consciência de que a Nature- conhece na medida em que pode manipulá-los. A
za nunca fala: somos nós que falamos em seu nome; razão é mais totalitária que qualquer outro sistema”.
tudo o que promovemos são nossas construções, Por isso mesmo, ela oculta, em seu interior, uma
inseparáveis da cultura; boa dose de irracionalidade. Ou então, o que é pior,
d) a análise das controvérsias nos mostra que pode até mesmo tornar-se louca. Fica louca, declara
não podem ser encerradas apenas pelo chamado E. Morin, quando esse irracionalismo se manifesta
“consenso” entre os especialistas: nenhuma solução e passa a comandá-la:
é logicamente necessária e coercitiva nem se impõe “A razão se enlouquece quando se torna ao
de modo absoluto. Todo encerramento de um de- mesmo tempo instrumento do poder, dos poderes e
bate ou todo consenso é local, só podendo ser com- da ordem; quando se torna fim do poder e dos pode-
preendido no contexto de sua elaboração. A análise res, vale dizer, quando a racionalização se converte,
histórica das ciências nos faz perceber que a aparen- não somente no instrumento dos processos bárbaros
te universalidade dos enunciados científicos e o fato da dominação, mas quando ela mesma se destina
de serem descritos como “verdadeiros em toda par- à instauração de uma ordem racionalizadora, onde
te” e compreendidos por todos “nos mesmos termos” tudo o que a perturba torna-se demente ou crimi-
não constitui o melhor ponto de partida. Se os sa- noso. Nessa lógica, produz-se, não somente uma
beres científicos circulam, não é porque são univer- burocracia para a sociedade, mas também uma so-
sais. Pelo contrário, é porque circulam, porque são ciedade para esta burocracia; não somente se
reutilizados em outros contextos, que são descritos produz uma tecnocracia para o povo, mas se constrói
como universais.(7) um povo para esta tecnocracia (...) E a loucura ex-
plode quando todos esses processos de racionaliza-
Aberto o debate, muitos passam a contestar a ção irracional se convertem, mediata ou imediata-
universalidade da Razão e a defender as mais varia- mente, em processos que conduzem à morte” (Sci-
das formas de relativismo. Paul Feyerabend, como ence avec Conscience, Fayard, 1982, p. 261).
veremos, chega mesmo a pregar um “anarquismo Antes de prosseguir, elucidemos um pouco
epistemológico”: nenhuma teoria tem o direito de melhor a complexa noção de relativismo. De um
vangloriar-se de qualquer privilégio de verdade sobre modo geral, podemos dizer que pode ser definido
as outras. Cada uma funciona mais ou menos. É de como a doutrina que, ao negar a existência de uma
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verdade absoluta ou a possibilidade, para o espírito talece sua esperança de aproximar-se cada vez mais
humano, de conhecê-la, afirma a relatividade do co- de sua natureza objetiva e de revelar seu segredo”
nhecimento e considera as diferentes civilizações (Planck). Em síntese, eis as principais teses do
como variedades culturais equivalentes quanto a seu relativismo epistemológico:
valor. É dito moral quando, ao tomar consciência da
pluralidade dos conjuntos de prescrições e interdi- ! não existe uma linguagem puramente observa-
ções no plano das ações humanas, recusa todo prin- cional, que seria neutra, suscetível de julgar, com
cípio ético suscetível de propor regras universalmen- independência, determinada tomada de posição
te válidas para guiá-las. Neste sentido, o ceticismo teórica;
kantiano constitui uma forma de relativismo moral, ! não dispomos de um método seguro para de-
pois afirma nossa impossibilidade de atingirmos o monstrar que, no processo de passagem de uma
absoluto (as coisas em si) e de ultrapassarmos os teoria a outra, haja a produção de um acúmulo
limites, impostos a nosso conhecimento, pela estru- de conhecimento;
tura a priori do espírito humano. É dito cultural quan-
! os critérios segundo os quais julgamos as teorias
do se toma consciência da diversidade das culturas,
variam de uma época a outra, de tal forma que,
de que toda sociedade humana é dotada de uma
em última instância, a decisão depende do que
cultura específica, fruto de uma história passada e
crê a comunidade científica de determinado mo-
futura, de que a cultura, apesar de universal, as-
mento histórico;
sume formas extremamente variáveis no tempo e
no espaço, não havendo critério de classificação per- ! as grandes teorias constituem universos inco-
mitindo-nos ordenar hierarquicamente as diferentes mensuráveis, sendo impossível a elaboração de
culturas. um dicionário capaz de traduzir um no outro;
Outra forma de relativismo é o científico ou epis- ! a ciência não constitui um reino de puras idéias,
temológico. Consiste em dizer que jamais podemos mas tão-somente uma atividade social, estrutu-
atingir uma verdade definitiva, pois constitui tão-so- rada institucionalmente e atravessada por inte-
mente uma abordagem progressiva e uma constru- resses excedendo as regras da lógica.
ção inteligível do mundo, sempre submetida a ques-
tionamentos. Em outras palavras, designa o caráter O maior inimigo desse e de todos os relativis-
de uma ciência que, partindo do mundo sensível, mos é o racionalismo absoluto que jamais renun-
em estreita ligação com o concreto, constrói uma ciou ao dogma segundo o qual compete exclusiva-
“imagem do mundo real” apresentando um máximo mente à Razão universal impor-se como a condição
de coerência e de lógica interna, mas incessante- necessária e suficiente de todo conhecimento.
mente modificada pela pesquisa, permitindo ao Assim, todo conhecimento deriva dos princípios a
cientista a elaboração, como um objetivo inacessível, priori da Razão, o valor da experiência sendo o de
mas sempre buscado, de uma concepção definitiva constituir um conteúdo particular para suas idéias.
do universo. Esta falsa crença num real absoluto na Há uma identidade entre o mundo e o pensamento.
natureza constitui a condição de seu trabalho: “for- Tudo o que existe possui sua razão (objetiva) de
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ser que a razão (subjetiva) pode compreender. O Chegados a esse estádio, confessamos que a reali-
universo é regido pela Razão: são as mesmas as dade do devir é a única realidade; e interditamo-nos
leis do pensamento racional e as da natureza. todos os caminhos desviados que conduziriam à
Observemos que há ainda duas outras formas crença em outros mundos e em falsos deuses. Não
de relativismo: positivista e perspectivista. O suportamos mais este mundo, a ponto de não termos
relativismo positivista se baseia na doutrina filosófico- vontade de negá-lo (...) Chegamos ao sentimento
científica de Comte permitindo-nos afastar, “como do não-valor da existência”(Nietzsche, A Vontade
necessariamente vã, toda e qualquer busca das de Poder).
causas propriamente ditas, primeiras ou finais, para Portanto, são denominados relativistas todos
nos limitar ao estudo das relações invariáveis que os que admitem a irredutibilidade das culturas, pois
constituem as leis efetivas de todos os fenômenos nada existe de suficientemente comum entre elas,
observáveis”(Curso, lição 58). “Todo estudo da e negam toda possibilidade de verdades ou de valo-
natureza íntima dos seres, de suas causas primeiras res absolutos ou universais. Nem mesmo a ciência
e finais, deve, evidentemente, ser sempre absoluto, é portadora de verdade universal, posto não haver
ao passo que toda busca apenas das leis dos fenô- uma fronteira fixando os limites entre os vários cam-
menos é eminentemente relativa, pois supõe imedia- pos do saber. Ela se define como um fato, como um
tamente um progresso contínuo da especulação, conjunto de proposições e de práticas. Deste ponto
sem que a exata realidade jamais possa ser perfei- de vista, a globalização e, a fortiori, a ocidentaliza-
tamente desvelada”(lição 48). Quanto ao relativismo ção, em nome da Razão e da Ciência, implicam
perspectivista, coincide praticamente com a concep- necessariamente a utilização de uma violência.
ção nietzcheana segundo a qual o critério da verdade Posição oposta é tomada pelos universalistas (racio-
se reduz à utilidade biológica pela qual o homem, nalistas): para além da diversidade das culturas,
tomando-se pelo sentido e pela medida de todas as existe um núcleo que lhes é comum. A civilização
coisas, projeta ilusoriamente certas perspectivas de européia representa o desenvolvimento de todas as
utilidade bem definidas na essência das coisas. A virtualidades nela contidas. E a ocidentalização do
esta ilusão, que também é a da ciência e da religião, mundo não somente é necessária, mas desejável.
devemos opor a apoteose da vida e do indivíduo Porque constitui o correlato de um processo de
desenvolvendo ao máximo sua vontade de poder. emancipação da espécie humana: das necessidades
Trata-se de um relativismo que desemboca no niilis- materiais, graças ao Estado democrático; da
mo (cujas etapas são: o ressentimento, a má cons- ignorância e dos obscurantismos religiosos, místicos
ciência, o ideal ascético e a morte de Deus): “A partir ou metafísicos, graças à Ciência e à sua racionalida-
do momento em que o homem descobre que este de própria. O fundo da questão é o da universalidade
mundo só é construído sobre suas próprias bases da Razão.
psicológicas e que não possui nenhum fundamento Lembremos que há uma forma de racionalismo
para crer nele, vemos manifestar-se a última forma “redutor” e bastante autocrítico que não defende in-
do niilismo que implica a negação do mundo metafí- condicionalmente os valores propriamente racionais
sico e que nos proíbe de crer num mundo verdadeiro. e universais (científicos e lógicos). Apesar de seu

56 57
relativismo, Nietzsche vincula os conceitos da ciência ao reconhecer que nenhuma teoria pode escapar
à utilidade vital, os valores morais e religiosos à ao relativismo. Pelo contrário, todas as teorias consti-
satisfação desviada dos instintos. Por sua vez, Marx tuem pontos de vista sobre o real. Assim, ao recusar
relaciona as modalidades do direito e as ideologias ao marxismo todo acesso privilegiado ao real, não
culturais aos interesses de classe. Quanto a Freud, lhe reconhece o estatuto de ciência, mas apenas o
afirma que o princípio de condutas aparentemente de um “tipo-ideal”. Em seguida, Manheim radicaliza
morais é desmascarado pelo recalque e pela essa lógica e proclama: todo ponto de vista é par-
derivação das pulsões. Assim, esta forma de ticular a certa situação definida. Ambos nossos auto-
racionalismo luta, não somente contra seus velhos res estão preocupados com o problema da verdade
adversários (misticismo, empirismo, pragmatismo, de uma teoria. Se todas as teorias são relativas e
etc.), mas contra ele mesmo. Se os valores de dependem da situação social de seus autores, o que
universalidade e de humanidade não passam de acontece com a verdade? A resposta de Weber: na
valores burgueses das sociedades mercantis; se esfera das ciências sociais, as demonstrações cientí-
toda a cultura é feita de instintos recalcados, de defe- ficas, rigorosamente corretas, devem atingir um co-
sas inconscientes contra a angústia, a culpabilidade nhecimento objetivo e, por conseguinte, verdadei-
e a morte, o que sobra da Razão? Apesar de perma- ro, posto que são isentas de juízos de valor. Quanto
necer ainda bastante atual tal combate racionalista a Manheim, distingue relativismo de relacionalismo:
contra os medos, os preconceitos, os interesses, as o relativismo está ligado à subjetividade de seu autor,
violências, as arbitrariedades, as desmedidas, etc., mas todo conhecimento histórico é um conhecimento
perde muito de sua significação caso se limite a uma relacional, só podendo ser formulado em relação
atividade de “desmistificação”, pouco se importando com a posição do observador.
com a determinação de autênticos valores. Ao con- O que nos interessa ressaltar é que a racionali-
verter-se em racionalismo social e político, facilmente dade científica ocidental, à custa de buscar um sa-
se radicaliza e desemboca no niilismo. A este respei- ber para poder (dominar), construiu uma representa-
to, merece ser lembrada a observação de Bachelard: ção do mundo fundada apenas nas modalidades
“o homem ordena a natureza colocando ao mesmo lógicas do pensamento, convertendo seus hábitos
tempo ordem em seus pensamentos e em seu tra- e referências culturais num obstáculo à apreensão
balho”. Se queremos ordenar as sociedades, não de algumas de suas significações. Não levou em
deveríamos também colocar ordem em nossos conta outras alternativas teóricas, indispensáveis a
corações e mentes? nosso saber para pensar-se e criticar-se. Sempre
No início do século XX, sob o impulso da teoria considerou como um fato normal e inelutável a difu-
weberiana dos valores, o relativismo aparece como são mundial da ciência ocidental e a aculturação
uma crítica radical dos vários positivismos sociológi- brutal que ela provoca. O que se encontra em jogo,
cos em vigor. Contra certo marxismo, pretendendo nesse confronto entre universalismo e relativismo,
condenar o pensamento de seus adversários políti- é a visão própria Natureza. A este respeito, pode-
cos ou das classes sociais opostas ao proletariado, ríamos dizer que nossa cultura ocidental, não só
Weber toma uma posição bastante antidogmática gerou a ciência, mas desvitalizou, desencantou e
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dessacralizou completamente o Cosmos para redu- dos meios e a contradição dos interesses, pois
zi-lo a um sistema puramente mecânico. O Oriente, estaria apta a converter todo discurso e toda norma
ao contrário, por ter preservado uma concepção na expressão de uma “Entidade” impessoal e uni-
organicista da Natureza, está na origem de algumas versal: a Razão.
das revisões propostas às nossas teorias científicas.
Ora, ao apresentar-se como o equivalente geral
Fiel à sua tradição cultural, privilegia a solidariedade
do discurso moderno, como o regime de pensamento
e a harmonia do mundo natural. Razão pela qual
de todo homem (e de todos os homens), o racionalis-
não aceita, por exemplo, como uma verdade uni-
versal, os princípios darwinianos da “luta pela vida” mo nada mais faz que universalizar a particularidade.
e da “competição”, pois está muito mais interessado Até mesmo o marxismo, ao condenar a burguesia
em defender o “princípio da coexistência” entre os por julgá-la insuficientemente racional, postulou a
indivíduos, só aceitando uma evolução funcionando criação de uma nova ordem mais conforme à Razão.
no nível das espécies. Sob este aspeto, aceitou o projeto da política moder-
Quando afirmamos que “o Ocidente é um aci- na: o de construir, não a “Cidade de Deus”(santo
dente”, não estamos enfatizando os limites de nossa Agostinho), mas a Cidade da Razão. Mas fazendo
cultura? E denunciando, ao mesmo tempo, o mito da Razão um atributo de Deus. Se o mundo é racio-
de uma ciência, certamente com carteira de identi- nalmente inteligível, é porque obedece às chamadas
dade ocidental, mas que seria, por essência, trans- “leis da natureza” ditadas por algum distante “Deus
cendente e desencarnada? Ademais, não estaria racional”(o famoso Dieu des Philosophes et des Sa-
ela, a pretexto de defender sua universalidade, afir- vants, Engenheiro, Arquiteto, Relojoeiro, etc.).
mando seu caráter espontânea e naturalmente colo- Só que, em seguida, o atributo se revela mais
nialista? De uma coisa temos certeza: nossa ciência, precioso que a própria essência, na medida em que
enquanto modo de conhecimento bastante particu- a figura da Razão autoriza uma nova representação
lar, nasceu e se desenvolveu na Europa, num con- da sociedade, não devendo esta submeter-se mais
texto sócio-histórico-cultural bastante preciso. Eis
a nenhuma lei preexistente. Doravante, a Razão é
seu “pecado original”, que a impede de atribuir-se
considerada como imanente à História, devendo en-
qualquer pureza espiritual ou de reivindicar não se
sabe quê “imaculada concepção”. Porque é inegável contrar, no modo como abole o sagrado tradicional,
que a história nela imprimiu uma cicatriz indelével o fundamento mesmo de sua nova sacralidade. Para
de contingência. Por isso, não tem o direito de reivin- compreendermos esse paradoxo da Razão e seu
dicar um saber puro e universal. Muitos foram os inegável êxito histórico, bastaria refletirmos sobre o
fatores que determinaram ou condicionaram o come- fato: sempre se apresentou como totalmente profana
ço histórico e o desenvolvimento do empreendimento (situada “deste lado do mundo”) e, ao mesmo tempo,
científico. Uma das características fundamentais do como inteiramente sagrada (situada “do outro lado”),
racionalismo ocidental consiste no fato de ter-se como se absolutamente tudo devesse ser pensado
agarrado ao fantasma de uma “política racional” sus- em seu nome (como o cristão, que só pensa sob a
cetível de abolir a divisão social, a heterogeneidade égide de Deus”.(8)
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É importante lembrarmos que, historicamente, indissolúvel vínculo matrimonial entre Razão, Ciên-
todas as vezes que a Razão triunfou, houve uma cia, Democracia e Ocidente, como se estas entida-
demissão do pensamento. No fundo, a pretensa des fossem consubstanciais, devendo legitimar-se
lógica democrática do racionalismo esconde uma umas pelas outras. Para eles, há uma verdade indis-
espécie de regime teocrático preocupado em cutível: foi no Ocidente que surgiram e se desenvol-
assimilar a lei civil à lei religiosa e em ritualizar a veram as sociedades racionais, científicas e demo-
existência de cada indivíduo. Ao fazer da ciência cráticas. Para nos convencermos disso, basta anali-
uma referência absoluta, o racionalismo universalis- sarmos os fatos. A Razão é autoprodutora e autole-
ta, além de transformá-la num sistema explicativo gitimante, não fazendo nenhuma concessão à violên-
total, põe a ciência a serviço de uma concepção cia nem tampouco à autoridade. Por sua vez, a Ciên-
política que a torna semelhante à religião. E não foi cia nasce e se desenvolve apoiando-se, de direito,
por simples acaso que a ciência moderna, ao curvar- em sua própria força. Quanto à Democracia, afirma-
se às ordens de uma política que deveria justificar, se como esta forma de poder repousando unicamen-
forneceu as bases de uma moral universal desempe- te no consenso, não mais na violência ou na auto-
nhando o papel de uma religião. ridade.
E foi desta forma que o racionalismo, ao gerar Nestas condições, questionar a universalidade
o cientificismo, portador (contra a Igreja e o clericalis- da Razão e a pretensão do Ocidente de encarná-la
mo) de uma moral visando congregar o povo em seria, pelo fato mesmo, renunciar à Ciência e à
torno do Estado, contribuiu para a fetichização da Democracia. Por conseguinte, fazer a apologia da
ciência e para a sacralização da política. E o cientifi- violência e do arbítrio da autoridade (ou da tirania).
cismo atual, em nome das mesmas pretensões éti- Na verdade, os ocidentais são os únicos que procla-
cas ou políticas, reina mais ou menos tranqüilamente mam a universalidade da igualdade e da raciona-
sob a fisionomia de um tecnologismo calculador lidade. Evidentemente, não são mais iguais e mais
bastante impotente para mobilizar os afetos dos racionais que os outros povos. Porque os homens e
cidadãos, a serviço de um ideal, a não ser sob as as culturas só são iguais e racionais de direito, não
formas lúdicas e moralizantes da ciência-ficção. de fato. Neste sentido, a Razão se torna irracional
Podendo ser descrito como a mania da ciência, o quando se crê realizada. E ao definir-se como uma
cientificismo apresenta os seguintes sinais distinti- quase-substância, converte-se em racionalismo.
vos: a) tem o hábito de dividir o pensamento em Deste ponto de vista, os próprios racionalistas se
duas categorias: o conhecimento científico e o non convertem em relativistas quando passam a afirmar
sens; b) o ponto de vista segundo o qual as ciências que somente uma cultura é verdadeiramente racio-
teóricas e o grande laboratório oferecem os melhores nal. Por sua vez, nada mais racionalista que a posi-
modelos para se obter êxito no funcionamento do ção relativista afirmando que todas as culturas são
espírito ou na organização dos esforços; c) a identi- ou deveriam ser igualmente racionais.
ficação da ciência com a tecnologia. A posição racionalista encerra uma contradi-
A grande força dos racionalistas (universalistas) ção: se somente uma cultura é racional, não tem o
consiste em terem instaurado uma espécie de direito de declarar-se universal. Se o atributo fun-
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damental da Razão é justamente a universalidade, absurda: o nazismo vale tanto quanto a democracia.
seria irracional uma cultura racional. Por outro lado, Se nenhuma verdade é mais verdadeira ou justa que
se todas as culturas são ou deveriam ser igualmente as outras, teríamos que considerar, como desprovi-
racionais, torna-se praticamente impossível qualquer das de fundamento, todas as tomadas de posição
discriminação da racionalidade. Não é por acaso que éticas e políticas. Porque dizer que tudo é possível,
Feyerabend prega, em nome justamente de uma so- significa reconhecer que tudo é verdadeiro da mes-
ciedade livre, cujo desabrochamento se vê abafado ma maneira. Esta atitude não se chama mais curiosi-
pela instituição científica, uma completa separação dade intelectual, mas sincretismo.(9)
entre Ciência e Estado. Porque uma sociedade O que podemos dizer é que a posição de Feye-
fundada na racionalidade não é completamente livre. rabend e dos demais relativistas convictos (Bloor,
Só é livre a sociedade em que todas as tradições Latour, entre outros) só se sustenta se conseguirem
tenham os mesmos direitos e poderes. Todas as enfrentar com êxito o problema do estatuto da ciên-
“tradições” e todos os “saberes” deveriam reivindicar cia. O que parece não ser bem o caso: de um lado,
um direito igual à institucionalização. Enquanto insti- afirmam enfaticamente que o pensamento científico
tuição, a ciência não goza de nenhuma relação privi- depende profundamente dos contextos sociais e his-
legiada com a verdade. Tanto as tradições quanto tóricos; do outro, defendem ardorosamente o chama-
as ciências precisam ser julgadas em função de um do “princípio de simetria” segundo o qual, do ponto
mesmo e igual direito à existência institucional. Eis de vista da sociologia do conhecimento, nenhum
uma posição relativista extremada, postulando até privilégio pode ser conferido ao conhecimento cientí-
uma abolição da ciência como instituição para que fico sobre as outras formas de conhecimento, posto
seja instaurado o advento de uma verdadeira ciência, que todos os conhecimentos devem, a priori, ser tra-
embora nosso autor não proponha nenhum outro tados em perfeito pé de igualdade. Claro que os rela-
modo de existência das ciências nem mesmo das tivistas não negam que certas crenças possam ser
tradições. verdadeiras e outras falsas. Porque o princípio de
De um ponto de vista sóciocultural, a posição simetria não é um princípio de equivalência. A grande
relativista não se cansa de proclamar que os homens questão da sociologia da ciência deixa de ser: “o
vivem em universos culturais tão diferenciados que quê determina a verdade”? Deveria ser formulada
constitui uma verdadeira aberração a defesa de nor- assim: o quê produz a crença permitindo-nos dizer
mas universais ou universalizáveis sobre o verdadei- que certas proposições são verdadeiras? Não deve-
ro ou o justo. Também os critérios de Verdade e ríamos buscar a verdadeira igualdade entre as cren-
Justiça variam historicamente e se alteram no inte- ças do ponto de vista de sua verdade, mas de sua
rior das diversas culturas. Por isso, não pode haver credibilidade.
normas universais suscetíveis de regular o verda- Posto este princípio, os relativistas afirmam:
deiro e o justo. Ora, se é verdade que toda verdade acreditar em proposições verdadeiras é tão misterio-
é relativa a uma cultura, a uma época ou a uma so quanto crer em proposições falsas. Não podemos
classe social; se é verdade que tudo se equivale, separar completamente a verdade de uma proposi-
então poderíamos chegar à seguinte conclusão ção de sua credibilidade. O problema que se põe é
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o de sabermos se o conjunto das proposições verda- nossos desejos subjetivos. Não existe nenhum crité-
deiras é capaz de certa invariância, para além da rio objetivo permitindo-nos dizer que a ciência cons-
diversidade dos sistemas de credibilidade. Pouco titui um saber superior à astrologia, aos saberes mito-
importa, respondem os relativistas, aquilo que a so- lógicos e aos demais saberes do mesmo tipo. Neste
ciedade explica da ciência. O que realmente inte- sentido, seria ilusória a pretensão universalista da
ressa é sabermos o que a existência da ciência nos ciência.
ensina sobre a sociedade que a tornou possível. A A história das ciências nos mostra que a ciência
esta posição, devemos contrapor aos relativistas: não é a depositária do universal nem tampouco a
afirmamos a existência de verdades de credibilida- detentora exclusiva do poder de federalizar as inteli-
des potencialmente transcendentes em relação às gências. E o próprio consenso científico desaparece
variabilidades históricas e culturais; e contrariamente quando ocorrem as revoluções científicas. É uma
aos racionalistas, defendemos a necessidade de “ideologia profissional” dos cientistas que vem ten-
historicizarmos e particularizarmos a Razão, em vez tando normalizar as práticas e as referências e,
de fazermos dela um absoluto ou algo transcen- assim, impor uma ortodoxia adaptada aos interesses
dente.(10) da corporação científica. Nada há de racional nesse
Os relativistas são contundentes: se a ciência entendimento. Aliás, todo sistema (científico, filosófi-
moderna se impôs universalmente aos demais co, mítico, etc.) tende a fechar-se em si mesmo e a
saberes, não foi por sua pretensa superioridade, mas apresentar-se como verdadeiro e irrefutável. Se as
tão-somente pela força e pela violência. Assim, na teorias reinantes se impõem, não é tanto por sua
cultura européia, esmagou os saberes ditos “popula- verdade quanto por seu sucesso. Previamente, des-
res” e, nas colônias, os autóctones. Por isso, diante qualificam toda refutação. Conservadoras, transfor-
dessa ambição de tudo cientificizar e de tanta arbitra- mam-se em “ideologias rígidas”, em espécies de
riedade da Razão, insurgem-se os que brandem e “portos seguros” de verdades inquestionáveis. Como
defendem o princípio da incomensurabilidade segun- se o consenso científico merecesse uma credibilida-
do o qual não temos o direito de comparar logica- de maior que qualquer outra concepção do mundo.
mente teorias ou sistemas de representação diferen- O grande defeito das unanimidades e das teorias
tes, posto que cada um constitui seu próprio domínio consagradas é que facilmente se convertem em mito.
de referência, tendo o direito de reivindicar seu pró- Por isso, como, no domínio do conhecimento, não
prio “paradigma” no qual adquirem sentido os fatos há nem Deus nem mestre, ganha sentido o protesto
de observação, as interpretações e os modos de de Feyerabend quando nos recomenda: “libertemos
pensar. Sobre o real, não há ponto de vista privilegia- a sociedade do poder de constrangimento de uma
do. Diferentes pontos de vista são legítimos. Não ciência ideologicamente petrificada, exatamente
há nenhum critério racional e objetivo suscetível de como nossos ancestrais nos libertaram do poder de
determiná-lo de uma vez por todas. O que pode- estrangulamento da verdadeira-e-única-religião”.(11)
mos fazer é escolher entre sistemas incomensurá- Não são poucos os epistemólogos (Bachelard,
veis. Mas nossa escolha não é objetiva, pois se ba- Lakatos, Holton entre outros) que, por mais diferen-
seia em juízos estéticos ou de gosto, quer dizer, em tes que sejam suas posições, reforçam essa ten-

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dência à relativização das teorias científicas no que notadamente o templo da Ciência, nada mais fazem
diz respeito aos critérios a priori de verdade univer- que reagir veementemente contra a prepotência e o
sal ou de realidade em-si. Se pretendemos distinguir imperialismo de uma racionalidade ocidental apre-
um discurso delirante (irracional, não-razoável ou sentando-a como universal e a única verdadeira.(12)
desadaptado ao real) de um discurso não-delirante Contudo, a renúncia ou a rejeição de tal impe-
(racional, razoável ou adaptado ao real), precisamos rialismo racionalizador não pode converter-se numa
lançar mão de critérios distintos dos que nos permi- espécie de “má consciência” povoada por senti-
tem distinguir entre o discurso da realidade (imposto mentos de remorso ou de culpa por um colonialismo
pelos fatos) e a simples projeção racionalizadora que abusivo e condenável. O proclamado “direito à dife-
sobre ela elaboramos. Aliás, deste ponto de vista, rença” não tem o direito, ao postular a impossi-
todas as teorias (científicas ou não) seriam deliran- bilidade de toda pretensão ao universal, de eliminar
tes, pois nada mais são que projeções interpreta- todo e qualquer sentido das hierarquias ou dos valo-
doras de determinada realidade: qual o discurso res nem tampouco de confundir simplesmente “dife-
racional sobre os fatos que não se reduz, em última rença” e “equivalência”. Porque o resultado dessa
instância, a uma racionalização? O que mais importa atitude seria uma defesa do retorno aos velhos obs-
não é o caráter racional ou irracional desse discurso, curantismos vindo ofuscar ou apagar as Luzes que
mas o uso que fazemos da razão e da experiência. tantos nos têm iluminado. A proclamação de um uni-
Não resta dúvida que o anarquismo epistemoló- versal (valor moral, estético ou político) não pode
gico relativista, em sua alergia a todo critério univer- pura e simplesmente ser considerada um anacronis-
sal de demarcação entre ciência e não-ciência, não mo nem muito menos denunciada como uma simples
somente nega que as concepções científicas atuais “violência simbólica”.
sejam superiores às científicas do passado, às teo-
Claro que nenhuma província cultural se identi-
rias filosóficas e aos mitos, mas chega também a
fica com o mundo e que nenhuma “diferença” pode
considerar a ciência como “um conto de fadas como
ser considerada um “valor” absoluto. Por isso, para
os outros”. Ora, por mais interessantes e fecundas
se combater ou negar o universalismo inerente ao
que sejam as análises relativistas, por mais que pre-
pensamento científico, não basta contrapor-lhe uma
tendam relativizar a “Grande Demarcação” (Great
Divide) ainda bastante aceita pelo Ocidente, é ine- posição de princípio (ética ou cética) considerando
gável que tampouco podem ser tomadas como ver- igualmente válidos e respeitáveis todos os saberes,
dadeiras. Pelo contrário, precisam ser relativizadas, todas as culturas e todos os valores. A posição
pois são portadoras de algumas fraquezas. Por outro epistemológica segundo a qual “tudo é bom” não
lado, por mais que pretendam reabilitar os chamados pode ser aceita, pelo menos, por uma razão histórica:
“saberes primitivos”, freqüentemente desprezados as teorias científicas que se impuseram foram as
e desconhecidos (Lévi-Strauss), e que declarem que, que se revelaram as mais fecundas, sintéticas e
em matéria de método, “tudo vale” (o anything goes preditivas.
de Feyerabend), o fato é que esses relativistas, ao O que significa dizer que “todos os saberes são
tentarem “profanar” os mais caros valores ocidentais, relativos” ou equivalentes? Que a variedade diz
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respeito aos homens e às suas diferentes culturas? sociologia do conhecimento: teríamos que optar en-
Ou que a multiplicidade a eles se apresenta sob for- tre, de um lado, o realismo ingênuo no qual se mani-
mas distintas e legítimas? Os relativistas freqüente- festaria a Verdade una e inelutável e, do outro, o
mente se esquecem, em sua reivindicação da ceticismo niilista no qual tudo se equivaleria, só se
igualdade de todas as culturas, que o Ocidente tem impondo a Verdade dos poderosos. A este respeito,
sido esta parte do mundo que incessantemente vem são interessantes as análises epistemológicas de
proclamando essa igualdade universal. Se apro- J. Habermas. Tanto em seu famoso texto Conheci-
priou-se da racionalidade científica, como poderia mento e Interesse (1965) quanto em seu livro A
ela ser restituída a todos os povos que também se Técnica e a Ciência como Ideologia (1968), ao
julgam no direito de fazê-la sua? Para se combater criticar a atitude objetivista do positivismo, que
o racionalismo, defendendo a universalidade da ciên- escamoteia o quadro axiológico no interior do qual
cia, não bastam afirmações de princípios (como o os enunciados teóricos adquirem seu sentido,
da igualdade de todos os homens) nem tampouco demonstra que o sentido só é apreendido se tais
justificações formais (como a da incomensurabilida- enunciados são compreendidos relativamente ao
de). Os relativistas teriam, para combater a ideologia sistema de referência inter-subjetivo regulando sua
imperialista e cientificista ocidental e erigir a racio- construção. Melhor ainda: só podemos apreender o
nalidade instrumental em modelo único, que de- sentido relativamente ao sistema de interesses que
monstrar como seria possível o diálogo das culturas comanda o conhecimento.
e como nossa tradição científica poderia abrir-se às Não resta dúvida que todo conhecimento é
outras formas de saber. Donde, mais uma vez, a guiado por um interesse, isto é, por certas orienta-
pertinência da questão: o futuro da civilização mun- ções fundamentais enraizadas nas condições bási-
dial passa pela ocidentalização (com todas as violên- cas de autoconservação da espécie. Os interesses
cias que tal redução implica) ou pela convergência constitutivos do conhecimento devem ser compreen-
das múltiplas culturas e de seus saberes? didos no quadro cultural da conservação da espécie
Nos dias de hoje, ninguém mais nega que o humana. Comandam a autoconservação de nossos
conhecimento científico seja condicionado por vários conhecimentos na vida social. As ciências empírico-
interesses, não somente da Razão, mas dos grupos formais procedem de um interesse de ordem técnica;
de pressão próximos das estruturas do poder políti- as histórico-hermenêuticas são guiadas pelo inter-
co, de decisão e de financiamento. Neste sentido, a esse da comunicação inter-subjetiva: a pesquisa
prática científica constitui uma prática social e, como hermenêutica explora a realidade orientada por um
tal, deve ser julgada. Já foi suficientemente desmisti- interesse suscetível de manter ou aplicar as comu-
ficada a imagem de uma Ciência pura e desencarna- nicações inter-subjetivas tendo em vista a ação; as
da, em progresso constante para a descoberta de- ciências críticas, enfim, são guiadas por um inte-
sinteressada da Verdade sobre o Universo e obede- resse emancipatório (sociologia crítica, psicanálise
cendo apenas a uma racionalidade interna transpa- e crítica filosófica das ideologias) suscetível de dis-
rente. Por outro lado, não faz mais sentido o velho tinguir, entre os enunciados teóricos das outras ciên-
dilema ao qual nos parecia condenar uma ingênua cias, os que apreendem as leis invariantes da ativida-
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de social e os que só exprimem relações fixas em Enquanto racionalidade típica do Ocidente, encontra-
vista de promover os interesses dos grupos domi- se profundamente aberta a todos os demais saberes.
nantes. Como não há uma única forma de se fazer ciência,
O objetivo da “Grande Demarcação”, ao sepa- tampouco podem ser demasiado rígidas as fronteiras
rar radicalmente a racionalidade científica de todas entre o científico e o não-científico. Sem perder sua
as demais formas de saber, consiste em atribuir-lhe identidade, a ciência está apta a dialogar com todos
uma relação privilegiada com a Verdade. Claro que, os demais saberes e de, com eles, promover trocas
com o declínio do positivismo, essa dicotomia se interfecundantes.
atenua bastante. E a ciência começa a aparecer co- Como só pode haver Ciência racional e como
mo o resultado de uma cultura particular, da cultura só pode haver Razão universal, impõe-se a questão:
produzida pelas sociedades ocidentais. Surge então como concebermos uma universalidade da Razão
toda uma crítica sociológica da ciência culminando sem cairmos, seja numa forma de imperialismo, im-
num relativismo radical, a ponto de negar, à lógica e pondo a racionalidade ocidental como modelo uni-
às matemáticas, seu caráter de verdades necessá- versal, seja no relativismo, vendo e proclamando ra-
rias. Também elas se tornam produções de socieda- zão em tudo e em toda parte? Assim como Ulisses
des particulares e, até mesmo, produções de um teve que amarrar-se ao mastro de seu navio para
saber reduzido aos resultados de lutas de influência resistir ao canto das sereias, da mesma forma a Ra-
e de relações de forças sociais. Neste sentido, zão, para não naufragar nas ondas do relativismo e
nenhuma ciência teria direito à pretensão de verdade do ceticismo (inclusive, do cinismo e do irracionalis-
universal. Porque, como qualquer outro saber, cons- mo), precisa descobrir um princípio sólido que a
titui um produto da sociedade em que se desenvolve. impeça de entrar em deriva. Tal princípio precisa ser
O terreno para este relativismo social foi preparado ao mesmo tempo de relatividade, capaz de dissolver
pela crítica do método científico realizada por Pop- todos os falsos absolutos, e de invariância, suscetí-
per que culminou no relativismo epistemológico de vel de evitar o ceticismo e o ecletismo.
Lakatos e Feyerabend. Apesar de Popper jamais Ao questionar a visão aristotélica e kantiana
ter renunciado a uma esfera relativamente autônoma de uma Razão autônoma e imutável, Bachelard (Le
do verdadeiro, mesmo que se manifestando de modo Rationalisme Appliqué) se insurge contra “este racio-
negativo (pela prova do falso).(13) nalismo fixista que formula as condições de um con-
Em nosso entender, a racionalidade ocidental, senso dos homens de todos os países e de todos
enquanto discursiva, abstrata, instrumental e con- os tempos diante de qualquer experiência”. Sob esta
quistadora, não tem condições de encarnar ou esgo- forma, seu relativismo diz mais respeito à globalidade
tar a Razão humana, posto constituir apenas uma da experiência que ao consenso, pois continua de-
forma bastante específica de sua realização históri- fendendo a idéia de uma ciência una e universal.
ca. Mas é justamente sob essa forma que pode ser Exige apenas que a Razão seja capaz de adaptar-
considerada um patrimônio universal da humanida- se às estruturas próprias de cada setor do real. De
de. E o que a torna tal é o fato de dizer respeito “à forma alguma pode exprimir-se diversamente, se-
espécie humana em seu conjunto” (Habermas). gundo os vários contextos históricos e sócioculturais.
72 73
Esta tomada de posição ignora que o enraizamento Razão, herdeira das Luzes. Porque não podemos
sóciocultural não somente relativiza nossa ciência, mais confundir o universal com o ponto de vista par-
mas sua racionalidade própria. Ademais, não perce- ticular que dele tem o observador ocidental. Em
be que a complexidade do real e a diversidade huma- nome de quê tal ponto de vista, enraizado num
na possam postular outras formas de racionalidade. espaço-tempo cultural bem preciso, tem validade
Como são múltiplos os caminhos conduzindo para observadores possuindo outros sistemas de
à verdade, por que não teríamos o direito de falar referência? Um ponto de vista universal só se torna
de um universalismo relativista? Parece uma contra- efetivamente possível quando somos capazes de
dição, mas a teoria de Einstein, ao mesmo tempo transferir o absoluto dos pontos de vista particulares
desestabilizando as noções de tempo, espaço, movi- para o sistema de suas relações. Talvez o grande
mento e massa, e relativizando as leis da mecânica erro da Razão ocidental tenha sido o de esquecer-
(elas variam conforme mudam a posição do obser- se de que nasceu, como nos mostra Sócrates, do
vador e seu sistema de observação), pode ajudar- diálogo: ao invés de buscar ter razão contra os ou-
nos a compreendê-lo. No fundo, a teoria einsteiniana tros, ela sempre busca dar razão, busca a verdade
não é “relativista”, pois faz da velocidade da luz uma com o outro e diante dele. Porque surge como rela-
constante universal. Seu objetivo explícito: congre- ção e regulação do relacionamento com o outro, não
gar todos os pontos de vista possíveis a fim de como proprietária exclusiva do universal. O que não
salvaguardar o determinismo da natureza, a inva- a impede de, como uma idéia reguladora de si mes-
riância das leis e uma descrição completa do univer- ma, orientar-se sempre para o universal.
so. Para salvar a esperança da física, rompe com a Quando, no plano conceitual, analisamos as
imagem newtoniana de um tempo e de um espaço relações entre Razão, Ciência e Democracia, logo
absolutos. As leis da natureza se alteram segundo nos damos conta de que a redução da Razão ao
os lugares onde se exercem. Como não são sempre racionalismo sempre esteve indissociável da redu-
idênticas, devemos relativizar o tempo e o espaço. ção da Ciência ao cientificismo e da redução da De-
Neste sentido, a teoria da relatividade não é relati- mocracia a certo tecnocratismo mais ou menos utili-
vista. tarista. Ao tomar o exemplo do reducionismo cogni-
Enquanto a teoria einsteiniana estabelece que tivista e economicista, o sociólogo Caillé (La Démi-
a possibilidade de sintetizar e acumular as informa- ssion Des clercs, La Découverte, 1993) constata que
ções precisa levar em conta o conjunto das informa- é no cognitivismo atual e na teoria das escolhas
ções transmitidas pelo conjunto dos informadores, racionais (dominantes nas ciências humano-sociais)
o universalismo racionalista (que é uma forma de que se manifesta de modo bastante claro esse redu-
reducionismo) privilegia o ponto de vista de um ob- cionismo racionalista: de um lado, o cognitivismo
servador como se fosse válido para todos os demais reduz o pensamento ao cálculo lógico, do outro, a
e como se sua referência espácio-temporal ou his- teoria das escolhas racionais reduz a ação ao cálculo
tórico-cultural valesse para todo o universo. Ora, se estratégico. Mas em nome de quê temos o direito
queremos afirmar a possibilidade de uma ciência de reduzir o Pensamento à Razão, a Razão ao En-
universal, precisamos desabsolutizar nossa idéia de tendimento e o Entendimento ao Cálculo? Por que
74 75
o pensamento só pode existir na discursividade? E bates da agorá. Foi aí que rompeu com os mistérios
por que só é legítimo o uso da razão recorrendo a da palavra revelada e dos mitos, desalojando as
tal discursividade? Ora, se admitimos que pensar é autoridades tradicionais dos porta-vozes celestes.
levantar a questão, para o sujeito, do sentido, não Contra os segredos dos saberes ancestrais, reivindi-
temos o direito de reduzir o pensamento ao cálculo cou a publicidade e a transparência dos argumentos.
lógico, pois ultrapassa, de muito, o jogo dos concei- Contra o mundo fechado das certezas e da obediên-
tos. Ao lembrar-nos que o símbolo nos leva a pensar cia incondicional, contrapôs o mundo aberto das
mais que a razão discursiva, porque não obedece à questões e da liberdade. Por isso, desde sua origem,
ordem discursiva, o filósofo Paul Ricoeur (Le Conflit a Razão foi democrática. E a Ciência, sua legítima
des Interprétations, Seuil, 1969) nos mostra, não herdeira, precisa afirmar-se abrindo-se ao confronto
somente por razões conceituais, mas éticas e huma- e ao afrontamento, fazendo do espaço em que exer-
nas, que não podemos identificar Pensamento e ce sua atividade, o espaço mesmo da discussão e
Razão discursiva. Porque não podem ser conside- da tolerância.
rados seres pensantes apenas os que sabem se
expressar segundo os cânones da lógica discursiva.
Se a quase totalidade da espécie humana não pen-
sa, pois não reduz o pensamento à razão e ao
conhecimento, “os homens seriam irresponsáveis
por seus atos, e Eichmann não seria culpado” (H.
Arendt).
A diversidade dos saberes e das culturas não
nos obriga a aceitar globalmente as teses relativistas.
Mas como possuem, pelo menos um valor de antído-
to contra toda espécie de dogmatismo racionalista,
talvez possamos sublimá-las a fim de que possam
colaborar para se produzir, sem impostura, violência
ou imperialismo, uma Ciência com vocação univer-
sal, sem dúvida, mas suscetível de responder às
exigência de uma Razão aberta. Porque, numa so-
ciedade concorrencial, competitiva e agressiva como
a nossa, precisamos estar conscientes de que a
Ciência, ao invés de impor-se como combate, deve-
ria apresentar-se como diálogo. Desde sua origem,
entre os gregos, a racionalidade surge como comu-
nicação: raciocinar significa “dar razão”, levar em
conta e reconhecer a alteridade, a posição do inter-
locutor. O Logos surgiu na praça pública, nos de-
76 77
2
2. O RELATIVISMO
EM QUESTÃO

De tudo o que vimos até agora, podemos dizer


que, de um modo geral, são consideradas relativistas
as teses ou tomadas de posição defendendo que
os homens vivem em mundos e culturas bastante
diferenciados para que seja possível qualquer defi-
nição de normas universais ou universalizáveis do
verdadeiro e do justo. Porque os próprios critérios
de verdade e justiça também variam no tempo e no
espaço, não sendo suscetíveis de nenhuma trans-
cendência. Assim resumido, o relativismo esbarra
com uma série de dificuldades, não somente fatuais
e pragmáticas, mas lógicas e teóricas. Em todo caso,
um de seus méritos consiste em permitir-nos romper
com o velho racionalismo que, por não perceber a
historicidade da Razão, fez dela um absoluto sobre
o modelo do tempo e do espaço absolutos da física
clássica. O grande defeito do universalismo raciona-
lista consiste em ter pretendido falar do ponto de
vista universal, mas confundindo-o com o ponto de
vista particular do observador ocidental reduzindo a
Razão ao racionalismo e a Ciência ao cientificismo.
Mas não podemos relativizar a Razão sem, ao mes-
mo tempo, racionalizar a relatividade.
A partir dos anos 1980, a questão do relativismo
é posta de outro modo e ganha outros interlocutores.
As discussões propriamente epistemológicas sobre
a verdade mudam de rumo com a introdução, na
reflexão filosófica, dos dados e resultados analisados
pela antropologia filosófica, pela psicologia experi-
mental de cunho behaviorista e pela epistemologia
de tipo lógico. Entre as teorias filosóficas da verdade
78 79
tentando dissolver as fronteiras entre as disciplinas por ele como bode expiatório de todos os erros e de
científicas e os demais saberes, ganha importância todas a idiotices acumuladas pela história do pensa-
o pragmatismo, notadamente de Richard Rorty. Por mento, nosso defensor do pragmatismo neoliberal
vezes considerado como um historicismo, preten- demonstra um profundo desconhecimento da filoso-
dendo fundar a verdade em práticas de justificação fia de Platão. E ao declarar que Nietzsche “convidou-
consensuais dependentes dos contextos sócio-his- nos explicitamente a abandonar toda idéia de conhe-
tóricos, o pragmatismo cada vez mais tem se imposto cer a verdade” (Contingency, op. cit., p. 53), ignora
como uma teoria relativista negando toda e qualquer o que nos declara em Ecce Homo: “Quanto de ver-
idéia de verdade universal ou eterna. Diferentemente dade um espírito sabe suportar, sabe ousar? Eis que,
do ceticismo, visa pôr em questão a idéia de uma cada vez mais, torna-se para mim o verdadeiro crité-
verdade utópica, escapando a toda perspectiva par- rio dos valores” (Prefácio).
ticular, a fim de substituí-la por uma concepção de
Ao reduzir a verdade à utilidade ou aos efeitos
verdades plurais, cada uma relativa a uma situação
que os pensamentos, palavras e conceitos podem
diferente.
ter sobre nossas condutas e atitudes, o objetivo pri-
Diria que uma das ambições desse neoprag- meiro do pragmatismo relativista não é tanto o de
matismo relativista é o de negar a história e decretar desafiar a filosofia, questionando o bem-fundado de
o fim do político. Há alguns anos atrás (1989), Po-
todo juízo crítico, mas o de estender a “revolução
pper fazia a seguinte declaração: “Pretendo que vive-
copernicana”, proclamada por Kant no domínio do
mos num mundo maravilhoso. Nós, os ocidentais,
conhecimento, aos demais domínios do saber huma-
temos o insigne privilégio de viver na melhor
no, notadamente das ações ética, política e estética.
sociedade que a história da humanidade jamais co-
Para ele, as crenças éticas, políticas e estéticas
nheceu. É a sociedade a mais justa, a mais igualitá-
precisam ser submetidas a uma dúvida e a um méto-
ria, a mais humana da história”. Em toda lógica e,
do tão eficazes quanto os da dúvida e do método
em conformidade com sua epistemologia conferindo
valor de verdade científica apenas às proposições científicos. Ocorre que, ao reduzir a verdade a uma
refutáveis, ele conclui que as ciências sociais em simples convicção de ordem prática, devendo incli-
geral deveriam se limitar a um papel bastante modes- nar-se diante da instância do consenso, essa teoria
to. Deveriam renunciar a toda e qualquer interroga- termina por neutralizar todo juízo crítico e admitir
ção sobre a justiça e as formas desejáveis das rela- como evidentes e incriticáveis as crenças dominan-
ções sociais e exercer, doravante, uma atividade de tes. Não é por acaso que confunde democracia com
assistência social. E esta posição também é defendi- liberalismo e prazer estético com boa consciência
da por Rorty. Ao tentar efetuar uma síntese entre moral. Ademais, ao definir-se essencialmente por
Dewey, Heidegger e Wittgenstein, conclui dizendo oposição à metafísica, acreditando ter acesso a uma
que, se a história já terminou (como teria demonstra- verdade transcendente, o relativismo se constrói se-
do F. Fukuyama), não deveríamos tentar reinventá- gundo uma concepção bastante dogmática e a priori.
la nem tampouco reanimá-la. Ao caricaturar explícita Porque a metafísica que rejeita e contra a qual se
e sistematicamente a filosofia platônica, considerada define, se não é imaginária, possui sua própria histo-

80 81
ricidade. Opor-se a ela, é adotar uma postura a- de direito e de fato, com vocação universal. Esta
histórica. reivindicação constituiu um poderoso álibi para as
Talvez falte ao relativismo um pouco mais de conquistas que só se efetivaram graças à força (ideo-
ceticismo. De uma coisa, não se dá conta: para nós, lógica) e à violência (simbólica).
crer na Razão significa, antes de tudo, crer na razão Uma das convicções fundamentais do cientifi-
dos outros. Porque a essência mesma da racionali- cismo consiste em crer no valor universal do conheci-
dade científica, como tem mostrado Habermas, re- mento objetivo das ciências. A Ciência, obra da
side no desejo de comunicar-se e de só encerrar Razão, teria permitido ao Ocidente sair do obscuran-
um debate pelo consenso. Neste sentido, o que real- tismo e dos particularismos a fim de assumir sua
mente define a racionalidade e a objetividade da identidade e sua responsabilidade universais. Entre
ciência não é tanto seu conteúdo, mas sua forma outros, o filósofo inglês Whitehead assim defende
social, quer dizer, ao mesmo tempo sua formulação esse universalismo: “A ciência moderna nasceu na
e sua difusão permitindo-lhe superar a prova do Europa, mas seu hábitat é o mundo. Torna-se cada
confronto público. Esta é a exigência fundamental. vez mais evidente que aquilo que o Ocidente pode
Contudo, para sua efetivação, ela se faz acompanhar mais facilmente dar ao Oriente é sua ciência, bem
de outras exigências. Destacaremos algumas: como sua mentalidade científica. Estas são transferí-
1. Precisamos abandonar as convicções funda- veis de um país a outro, de uma raça a outra, a toda
mentais do cientificismo que tanto esforço tem feito parte onde existe uma sociedade que pensa” (La
para pregar o valor universal da racionalidade cien- Science et le Monde Moderne, Payot). Se a verdade
tífica. Esta racionalidade, embora de origem ociden- das ciências deve substituir toda forma de conheci-
tal, seria válida em todos os tempos e lugares; trans- mento, seu império se estende a todos os domínios
cenderia as sociedades e as formas de cultura parti- da vida e da ação. Portanto, deve ocupar o lugar
culares; embora fruto de uma Razão, patrimônio co- original de onde pretende tudo fundar e tudo reger.
mum da humanidade, deveria ser considerada como Temos aí, entre muitas outras, uma proclama-
uma espécie de esperanto do universo, de um uni- ção universalista diretamente derivada do mito das
verso que teria abandonado o obscurantismo e os Luzes e que levou o Ocidente, nos últimos séculos,
particularismos para assumir sua verdadeira identi- a considerar-se e a apresentar-se como o “salvador”
dade planetária e sua responsabilidade universal. E ou “preceptor” do resto do mundo. O Ocidente (até
o que constatamos é que tais proclamações de uma bem pouco tempo sinônimo de Europa) enviou, ou-
universalidade fundada no mito das Luzes, tiveram trora, para o “outro mundo”, para o mundo “bárbaro”,
o efeito perverso de conduzir o Ocidente a uma ou não-europeu, seus soldados, seus missionários,
postura de “salvador” e “regente” do resto do mundo. seus comerciantes e seus conquistadores. Não es-
Sobretudo quando, levando os ocidentais a acredita- taria ele hoje bastante mais ampliado, tentando
rem que detinham a supremacia e o monopólio da manter sua política imperialista ou sua supremacia,
racionalidade científica, fizeram-nos adotar uma polí- enviando seus cientistas e seus experts para difun-
tica ao mesmo tempo colonialista e imperialista. Se- direm uma racionalidade com vocação universal(14)?
riam os únicos depositários de uma racionalidade, Não estaria convertendo a verdade científica num

82 83
absoluto na ordem do saber e do poder? Não teria espécie de “nova aliança” com os valores e os sabe-
vendido essa idéia a toda sociedade pretendendo res das culturas não-ocidentais, mas de reconhecer
garantir sua identidade e sua unidade? Não teria o irracional e de com ele inaugurar um fecundo diálo-
convertido a ciência numa verdadeira religião? go. Enquanto fenômeno evolutivo, a Razão não pro-
Nas últimas décadas, imagem tradicional da gride de modo contínuo e linear, mas por mutações
ciência foi bastante afetada. Surge uma nova socio- e constantes reorganizações. Ao reconhecer seu ca-
logia contestando cada vez mais suas “pretensões”. ráter “genético”, J. Piaget declara que ela não cons-
O que não quer dizer que a discussão tenha termi- titui um invariante absoluto, mas “elabora-se por uma
nado. Ou que os “relativistas” ganharam a “guerra”. seqüência de construções operatórias, criadoras de
Desde já, podemos constatar duas ambigüidades novidades e precedidas por uma série ininterrupta
fundamentais nas posições dos relativistas, notada- de construções pré-operatórias dizendo respeito à
mente dos que adotam um liberalismo europeucen- coordenação das ações e remontando à organização
trista intransigente: a) com muita freqüência, decla- morfogenética e biológica” (Biologie et Connaissan-
ram que suas tomadas de posição se situam fora ce). Tal evolução se assemelha bastante às mudan-
de toda reivindicação de cientificidade: não somente ças de “paradigma” (no sentido kuhniano).
se situam no exterior da “Grande Demarcação” e, Não resta dúvida que precisamos relativizar a
mesmo, contra ela, mas esperam poder ter um “Grande Demarcação”. Mas certas precauções são
acesso privilegiado à verdade, cujo estatuto perma- indispensáveis. Por mais que tenhamos os olhos
nece inteiramente indeterminado; b) freqüentemente fixos na massa impressionante dos conhecimentos
nos dão a entender que a necessidade da busca de acumulados e do poder de suas “aplicações” tecnoló-
um além, de uma “transcendência” da metafísica re- gicas, precisamos continuar a nos interrogar sobre
sulta apenas de um trabalho histórico do pensamen- a ciência. Não devemos nos contentar com um pro-
to ocidental. Ora, o que podemos constatar é que cesso que já forneceu tantos resultados inegavel-
essa denúncia da Razão é feita justamente em nome mente eficazes. Nem todos foram benéficos. Ao ve-
de um europeucentrismo tão poderoso quanto o do nerar a ciência, o mundo moderno perdeu de vista,
racionalismo. Chega mesmo a converter-se numa por assim dizer, o pensamento. Ora, jamais vimos a
espécie de hiperracionalismo, pois permite a seus Razão triunfar quando, antes, o pensamento se de-
partidários se convencerem de que são tão racionais mitiu. Assim, o filósofo Alain Finkielkraut denuncia a
que sabem denunciar a Razão. “derrota do pensamento” (La Défaite de la Pensée,
2. A racionalidade científica ocidental precisa Gallimard, 1987). Constata que nós, ocidentais, en-
tornar-se crítica e autocrítica a fim de ultrapassar os venenados por uma má-consciência e pelo remorso
aspetos formalistas, instrumentais e calculadores de um pesado passado colonial, além de insatisfeitos
nos quais se encerrou. Isto implica que não somente com o relativismo das ciências humanas, às voltas
deve renunciar ao cientificismo que tanto a tem com o pretenso “direito à diferença”, estamos per-
marcado, mas que se disponha também a relativizar dendo o sentido das hierarquias e dos valores. Ade-
os valores tecnocientíficos nos quais tanto acreditou, mais, estamos nivelando as diferenças na equivalên-
para que seja capaz, não somente de instaurar uma cia. E ao desenvolvermos um terrível “espírito

84 85
paroquial”, certo “patriotismo” territorial, estaremos conhecimento que se libertou de todos os dogmatis-
renunciando ao “espírito universal”. Assim, um novo mos e das autoridades tradicionais para responder
obscurantismo estaria surgindo e ameaçando as energicamente ao apelo de um horizonte que recua
Luzes que tanto nos têm iluminado.(15) sem cessar. Porque, como nos lembra E. Morin,
Ora, se toda proclamação de um universal (va- diante do desencadeamento dos obscurantismos e
lor moral, estético ou político) parece anacrônica e das mitologias, deveríamos “salvaguardar a raciona-
deve ser denunciada como “violência simbólica”, en- lidade como atitude crítica e vontade de controle
tão o pensamento ocidental precisa reconhecer sua lógico”, mas acrescentando-lhe a autocrítica e o re-
derrota. E se nesta “derrota” subsiste apenas o nú- conhecimento dos limites da lógica. A grande tarefa
cleo duro das ciências, ou seja, o universalismo ine- é a de “ampliar nossa razão para torná-la capaz de
rente ao pensamento científico; e se é apenas na compreender aquilo que, em nós e nos outros, pre-
ciência que o homem se eleva acima dos esquemas cede e excede a razão” (Merleau-Ponty). Lembre-
perceptivos nele depositados pela coletividade, será mos: o real excede sempre o racional. Mas a razão
que tudo o mais (costumes, instituições, crenças, pode desenvolver-se e complexificar-se. “A transfor-
produções artísticas, etc.) ficaria atrelado à sua cul- mação da sociedade, que exige nosso tempo, revela-
tura? Não estaríamos tentando vender nossa alma se inseparável da auto-ultrapassagem da razão”
para obter a paz de nossa consciência? Não estaría- (Castoríadis Science avec Conscience, Fayard,
mos tripudiando nossos valores ao invés de aperfei- 1982, p. 266).
çoá-los a fim de enriquecermos sempre mais o pa- 3. A racionalidade científica precisa confrontar-
trimônio comum da humanidade? Não continuamos se, não somente com os saberes exóticos ou estra-
ainda mais ou menos dominados por toda uma nhos, com as demais tradições de cultura e de pen-
ideologia cientificista mantendo insidiosamente nos samento (mais contemplativas, místicas, metafísicas
espíritos uma confiança cega no poder da ciência e ou estéticas), mas com as formas de racionalidade
um respeito quase universal de sua autoridade ditas “dialéticas” ou “sintéticas” que privilegiam, não
intelectual? Não temos um surdo medo do pensa- as quantidades, mas as qualidades, não as separa-
mento científico, que se apresenta a nós sem dog- ções, mas a união, não as identidades, mas as opo-
mas, voltado sempre para o futuro, obtendo seus sições e não os conceitos, mas as imagens. Teria
resultados pela utilização de um método universal? muito a ganhar caso viesse a reconhecer tudo o que
Pelo fato de não mais idolatrarmos a ciência e sempre fez questão de ignorar ou de recalcar. Ao
sua racionalidade técnica, não quer dizer que deva- adotar tal postura, certamente se tornaria mais co-
mos optar pelas teses relativistas. A nova sociologia nhecida e reconhecida por todos os que ainda a des-
das ciências soube levantar as boas questões. Mas conhecem ou dela suspeitam. Não nos esqueçamos
nem sempre soube fornecer as boas respostas. Ao de que, “na aurora de sua longa viagem, a Ciência
invés de aceitarmos as teses propostas pelos diver- aparece sob a forma de Janus, o deus de dupla face,
sos relativismos, deveríamos trabalhar para uma guardião das portas: uma abre para o horizonte seus
maior abertura de nossa Razão e uma mais pro- olhos claros, a outra deixa errar na direção oposta
funda compreensão do que seja a ciência, este um olhar de ferro, um olhar de sonho” (A. Koestler).
86 87
Em A Dialética da Razão, Adorno e Horkheimer de uma classe determinada, de uma situação sus-
afirmam que a razão ocidental só conseguirá esca- ceptível de ser ultrapassada. Assim como a idéia de
par de sua tentação totalitária quando for capaz de uma Nova Técnica, a forma de uma Nova Ciência
retornar às suas fontes gregas de partilha da palavra não resiste a uma análise conseqüente” (La Tech-
e de instaurar um fecundo diálogo com as culturas nique et la Science Comme Idéologie, Gallimard,
e as civilizações. Porque, em sua essência, completa 1975, p. 15).
Habermas (Teoria do Agir Comunicativo), a razão é 4. O racionalismo ocidental não pode mais
comunicacional. Por isso, só levando muito a sério apresentar-se como universal. A este respeito, a
o debate aberto e franco ela terá condições de fazer- posição de Popper é bem mais moderada: o raciona-
se reconhecida pelos outros e, por conseguinte, lismo não é uma teoria filosófica, mas a convicção
compensar sua função instrumental e aspirar a um de que “podemos aprender pela crítica de nossas
universal não implicando nenhum imperialismo. faltas e de nossos erros e, de modo especial, pela
Segundo Habermas, a Razão só pode livrar-se da crítica dos outros e pela autocrítica”. Porque um ra-
tentação totalitária resgatando a partilha do Logos cionalista é simplesmente “alguém a quem importa
que lhe deu origem e abrindo-se ao diálogo das civili- mais aprender que ter razão”. No fundo, “quando
zações. Por ser essencialmente “comunicacional”, falo em Aufdlärung, penso sobretudo na idéia de
faz apelo ao debate como única mediação capaz emancipação pelo saber e penso no dever de todo
de garantir-se a si mesma e de fazer-se reconhecida intelectual de ajudar os outros a se emanciparem
pelos outros. E é assim que pode aspirar a um uni- intelectualmente e a compreenderem a atitude críti-
versal desprovido de qualquer ambição imperialista. ca” (Toute Vie est Résolution de Problèmes, Actes
Pois se define como um diálogo que faz progressiva- Sud, 1994, 23). Todavia, de tanto afirmar que falam
mente emergir suas próprias normas e ultrapassar do ponto de vista do universal, mas sempre confun-
a divisão ou a divergência das opiniões e das repre- dindo este universal com o ponto de vista de um
sentações. Quanto à Ciência, é única e universal, observador privilegiado (o ocidental), os racionalistas
mas somente enquanto saber técnico: não-críticos se convertem em reducionistas e
“Ao invés de tratar a natureza como um objeto, passam a acreditar que seu ponto de vista deve ter
podemos ir a seu encontro como um parceiro, numa validade para todos os demais observadores, como
interação possível. Podemos buscar uma natureza se sua temporalidade e especificidade próprias
fraterna, em vez da natureza explorada (...) A alterna- constituíssem a única referência espácio-temporal
tiva proposta à técnica existente, isto é, o projeto da do universo. Esquecem-se de uma coisa: a filosofia
natureza como parceira, e não mais como objeto, pode até ser juiz de uma época; grave seria se, ao
remete à alternativa de uma outra estrutura de ação: invés disso, pretendesse apresentar-se como sua
remete à interação mediatizada pelos símbolos, por expressão.
oposição à atividade racional relativamente a um fim. Ora, tal racionalismo precisa rejeitar de vez sua
Quer dizer: esses dois projetos são projeções do mania de converter-se num verdadeiro panóptico
trabalho e da linguagem, projetos da espécie huma- capaz de tudo ver, prever, prover e controlar, pois
na em seu conjunto, e não de uma época particular, não tem as prerrogativas da divindade. Esta arro-

88 89
gância de pretender enunciar, de modo unívoco, as devemos admitir a hipótese contrária afirmando que
normas da verdade e da justiça transformou a Razão não existe nenhuma verdade universal, mas tão-so-
numa “Entidade” devendo assumir tonalidades estra- mente verdades. A maior crítica que podemos fazer
nhamente religiosas e fideístas. E, o que é pior, usur- a essas três hipóteses, a primeira afirmando a exis-
pando o direito de julgar todos os negócios humanos tência de “uma verdade única”, a segunda, que “não
como se fosse o substituto ou o equivalente moderno há nenhuma verdade” e, a terceira, que “tudo é ver-
de Deus, de um deus leigo, “desdeificado” ou “des- dadeiro”, é que têm em comum uma estranha pro-
teologizado”. Creio que deveríamos assumir, contra priedade: anular toda interrogação e neutralizar a
o racionalismo, o fato de não podermos ser Deus; e capacidade crítica, como se devêssemos renunciar
contra o relativismo, o de não podermos deixar de à atividade mesma do pensamento.
raciocinar de Seu ponto de vista. Como superar esta
5. Precisamos superar a concepção do relativis-
contradição? Os grandes sofistas relativistas, nota-
mo cultural elaborada e difundida a partir dos tra-
damente Protágoras, ao afirmarem que “o homem
balhos de Lévi-Strauss. Em La Pensée Sauvage
é a medida de todas as coisas” e que “todas as me-
didas se valem”, não se compraziam em constatar (Plon, 1962), defende a tese segundo a qual os po-
a relatividade da verdade, mas pretendiam afirmar vos ditos “primitivos” foram capazes de construir um
a verdade da relatividade. A solução dessa contradi- saber bastante preciso, rigoroso e sistemático tendo
ção passa, sem dúvida, por uma relativização da por finalidade, não proporcionar magicamente satis-
Razão, mas também por uma racionalização da rela- fações às necessidades da vida cotidiana, mas ins-
tividade. Nossa idéia de Razão é estritamente regula- taurar uma ordem no mundo, vale dizer, uma classifi-
dora. Quando a cremos realizada, convertemô-la em cação dos objetos e das funções. Trata-se de um
racionalismo e, ipso facto, transformamos a Ciência saber perspicaz e operacional que, antes de preten-
em cientificismo e passamos a identificar a Demo- der fornecer receitas práticas, impõe-se como apto
cracia com a tecnocientocracia. a responder a uma exigência de ordem teórica. Por
Se a Razão é um “deus desdeificado”, autono- isso, nosso antropólogo reivindica, para os sistemas
miza-se como sua própria idéia reguladora e não de pensamento mágico, a validade de um saber ver-
temos mais o direito, como pretendia o racionalismo, dadeiro que, do ponto de vista epistemológico, esta-
de dizer: somente é universal a interpretação par- ria bastante próximo do saber fornecido por nossas
ticular que o Ocidente dela se faz. De forma alguma teorias científicas. Fundados nessa concepção, não
isto significa que devamos adotar o relativismo. Por- foram poucos os sociólogos da “cultura popular” e
que nos parece totalmente inaceitáveis: na ordem dos meios modernos de comunicação que se deixa-
do conhecimento, seu parti pris fundamental do “tudo ram seduzir pela regra de ouro desse relativismo
é bom”; na ordem ética, seu princípio maior do “tudo etnológico, passando a tratar todos os comporta-
se equivale”; na ordem social, seu princípio segundo mentos culturais como se o valor que lhes reconhe-
o qual “todas as crenças são plausíveis”. Assim como cem os diferentes grupos não fizesse parte de sua
não devemos aceitar a hipótese da existência de própria realidade; e como se não fosse preciso, para
uma única verdade (a nossa, ocidental), tampouco restituir a esses comportamentos seu sentido pro-
90 91
priamente cultural, referi-los aos valores aos quais de seu valor cognitivo, as historiografias liberal, con-
efetivamente se referem. tra-revolucionária, jacobina e socialista? Qual a inter-
De forma alguma estamos pretendendo ignorar pretação mais válida (ou menos válida), a de Jo-
ou negar as diferenças de valor que os sujeitos so- seph de Maistre, explicando os acontecimentos de
ciais atribuem às obras de cultura. Desconhecê-las 1789 como um castigo divino infligido aos franceses
seria “operar uma transposição ilegítima (porque in- por causa de seus abomináveis pecados, ou a de
controlada) do relativismo ao qual se obriga o etnó- Jaurès, explicando-os em termos de luta de classes?
logo quando considera culturas pertencentes a so- Assim, levado até o fim, o relativismo absoluto se
ciedades diferentes”(Bourdieu). As diferentes cultu- revela absurdo. Por isso, somos obrigados a reco-
ras de uma sociedade estratificada “são objetiva- nhecer que certos pontos de vista são relativamente
mente situadas umas em relação às outras, pois os mais favoráveis à verdade objetiva que outros e que
diferentes grupos se situam uns em relação aos ou- determinadas perspectivas permitem um grau relati-
tros”. Em contrapartida, “a relação entre culturas de vamente superior de conhecimento que outras.
sociedades diferentes só existe na e pela compa- 6. Contrariamente ao que se costuma dizer, o
ração que opera o etnólogo”. Por isso, o resultado a relativismo é uma teoria intolerante. Se a tolerância
que chega o relativismo integral é o mesmo do designa um conjunto de práticas de saber que se
alcançado pelo etnocentrismo ético: “em ambos os inscrevem na ambição de “fazer ciência, tolerante é
casos, o observador substitui a relação que aqueles aquele que avalia quão dolorosamente pagamos pe-
que ele observa mantêm objetivamente com seus la perda das ilusões, das certezas que atribuímos
valores, por sua própria relação com os valores” àqueles que pensamos “crerem””(I. Stenghers).
(Métier de Sociologue, Mouton, 1968, p. 76). Como vimos, ao considerar a verdade como aquilo
Portanto, uma das principais razões pelas quais que constitui o objeto de uma “crença local”, o relati-
a tese relativista se torna inaceitável, pois insiste vista só é tolerante de um ponto de vista lógico. So-
cialmente, é até bastante intolerante, pois não é ca-
em afirmar que todo conhecimento da sociedade,
da história, da economia e da cultura é relativo a paz de utilizar argumentos apenas com objetivos de
determinada perspectiva, orientada para determina- persuasão. Ao transpor-se para o domínio de uma
teoria social, esquece-se de aplicar a si mesmo suas
da visão social de mundo, vinculada ao ponto de
vista de uma classe social e num determinado mo- próprias premissas. Com muita freqüência, lança
mento histórico, é que ela conduz necessariamente mão dos artifícios de dissimulação: toma como solu-
ção o que os outros consideram um problema.
à tese cética negando toda possibilidade de um
conhecimento social objetivo. A este respeito, é Este modo de inverter o problema em solução
interessante notarmos como cada classe social inter- tem muito a ver com o pensamento mágico. Se o
pretou, em função de sua visão social de mundo, de relativismo constitui uma espécie de duplicação teóri-
sua ideologia ou de sua utopia política, a história da ca do que se apresenta como diverso, termina por
Revolução Francesa. Será que todas essas interpre- substancializar o diverso imediato e por contribuir,
tações diferentes são igualmente válidas (ou igual- indiretamente, para a emergência das teorias irracio-
mente falsas)? Seriam idênticas, do ponto de vista nalistas que, freqüentemente, desembocam nas

92 93
mais variadas formas de misticismo. Como? Na se referem à mesma realidade, chegaremos à con-
medida em que nega a “Grande Demarcação” está, clusão: uma teoria afirmando que tudo é indiferen-
pelo fato mesmo, abrindo o caminho para todos os ciado e que qualquer proposição deve ser valorizada
possíveis. Porque é justamente essa demarcação como possuindo os mesmos direitos à verdade que
que separa a racionalidade científica de todas as as outras, necessariamente desemboca num ceticis-
demais formas de saber e que diferencia as socieda- mo mais ou menos niilista. Mesmo que nos disfarce-
des ditas modernas, guiadas por “razões”, das socie- mos com o rótulo da “contracultura” e reivindique-
dades tradicionais. mos atitudes de espontaneidade, autenticidade e
Sabemos que nossa ciência moderna, ao sepa- reabilitação das experiências individuais, não nos
rar o homem do universo, passou a descrever a reali- livramos do risco de abrir as portas a vários dogma-
dade com um determinismo rigoroso e objetivo, dele tismos e facilitar a emergência de certo obscurantis-
retirando leis baseadas na reprodutibilidade dos mo mais ou menos dogmático e monista.
fenômenos. No entanto, para compreendermos o Foi por temer esta possibilidade que Gellner
mundo nos dias de hoje, tanto de ponto de vista defendeu ardorosamente (Legitimation of Belief) a
cosmológico quanto do subatômico, cada vez menos manutenção da Grande Demarcação. Podemos
podemos separar o homem do universo ou o “siste- entendê-la de dois modos: a) o primeiro consiste
ma-homem” dos outros sistemas. O homem aparece em reconhecer que, sendo o mundo moderno funda-
como o ponto de junção entre a realidade visível do do na ciência e em suas aplicações, precisamos
cosmos, submetido às leis determinantes da macrofí- definir o que constitui a cientificidade da ciência:
sica, e o campo quântico revelando uma verdadeira problema de delimitação; b) o segundo consiste em
espontaneidade da matéria (se é que podemos falar determinar as características do pensamento primiti-
assim). De tal forma que aparece como a interface vo; procede da convicção de que nossa civilização
entre essas duas escalas de grandeza. Não é por é única, diferente das civilizações ditas primitivas.
acaso que a ciência atual constata uma interdepen- E a razão é a seguinte: nossa civilização industrial
dência universal dos sistemas entre si, na qual o moderna é a única que se distingue absolutamente
homem se encontra incluído. (não relativamente) das que são diferentes. Quando
O que devemos responder ao relativismo epis- a ciência perde seus critérios intrínsecos de verdade
temológico não somente negando toda validade à e passa a ser considerada apenas como uma prática
Grande Demarcação, mas afirmando que a verdade social submetida às mais disparatadas avaliações
científica não passa de ilusão e que nossas socie- extracientíficas, sua normatividade passa a ser re-
dades não diferem das sociedades mágicas pois, gulada e exercida política e ideologicamente. Por
em ambas, realizam-se práticas sociais múltiplas e outro lado, se as teorias científicas dependem unica-
indiferenciadas? Os “demarcacionistas” não se limi- mente das necessidades e dos interesses sócio-
tam a pensar que a ciência constitui uma cultura culturais ou histórico-econômicos, os cientistas se
radicalmente distinta: nem mesmo a consideram tornariam moralmente responsáveis, não somente
uma cultura. Se não podemos mais reconhecer uma quando elaboram suas teorias, mas quando seus
ciência das outras formas de saber e de ação que saberes são aplicados ou utilizados.(16)
94 95
Ao criticar a racionalidade científica e o princípio como autoridade educativa; c) o uso dos experts
demarcatório, o relativismo corre o risco de instaurar nas questões sociais e políticas. De um modo geral,
uma verdadeira confusão dos saberes. Porque os sua crítica se limita a convidar todos nós à vigilância
problemas da demarcação da ciência e o da defini- e a nos mostrarmos céticos face à crença de que a
ção da mentalidade primitiva constituem um único e ciência tem sempre razão, quer dizer, a não mais
mesmo problema. Só há uma Grande Demarcação. acreditarmos no sonho baconiano de uma total orga-
Ao descrever o avanço do conhecimento como uma nização racional da sociedade garantida pelas ciên-
espécie de caos pragmático ou de enfrentamento cias naturais. No fundo, trata-se muito mais de uma
de interesses, o relativista chega à conclusão de que disputa de território que de uma divergência profunda
não existe nenhum método científico digno desse sobre as formas e o valor do saber.(17)
nome. Donde ser extremamente fácil se passar 7. Nos dias de hoje, o etnocentrismo, esta
desse tipo de descrição à idéia segundo a qual não centração dos indivíduos em sua etnia, precisa ser
devem existir distinções claras a serem estabeleci- criticado. Porque designa a atitude que repudia todas
das entre os “sistemas de crenças” e os “sistemas as formas culturais (morais, religiosas, estéticas,
de conhecimento”, entre a ciência e as superstições. sociais) diferentes daquelas com as quais nos identi-
Para os racionalistas, esta tomada de posição, não ficamos. Repousando em sólidas bases psicológicas
somente desacredita o espírito científico, mas abre (“minha cultura é a melhor”), essa atitude se revela
as portas a todos os tipos de “obscurantismo”, à gra- particularmente perigosa e intolerante quando se põe
fologia, à astrologia, ao fanatismo religioso e político. a negar o direito do outro à diferença. Com isso,
Numa palavra, abre as portas a certo irracionalismo: pode mesmo chegar ao racismo, ao genocídio (exter-
não tanto ao irracionalismo científico ou direto, quan- minação sistemática de populações humanas) ou
do os físicos extrapolam sobre a possibilidade de ao etnocídio (destruição da identidade cultural de
se viajar através do tempo, mas ao irracionalismo um grupo étnico). Em 1985, ao elaborar um relatório
epistemológico ou sociológico (indireto), autorizando pretendendo traçar as diretrizes da escola e o ensino
uma anulação progressiva dos limites da cientifici- do futuro (Propositions pour l’Enseignement de
dade e postulando uma desqualificação do teórico. Demain), o Collège de France proclama, no primeiro
Deste ponto de vista, é possível que os raciona- dos dez princípios, a unidade da ciência e a plura-
listas atribuam à ciência um poder que ela não lidade das culturas. O objetivo visado é a construção
possui. Mas não resta dúvida que muitos se confor- de um ensino harmonioso suscetível de conciliar o
mam com causas espiritualistas e com certas práti- universalismo inerente ao pensamento científico e
cas heterodoxas. Isto não quer dizer que os relati- o relativismo que ensinam as ciências humanas em
vistas adotem uma posição anticiência. Nos anos geral, “preocupadas com a pluralidade dos modos
1970, criticaram o compromisso dos cientistas com de vida, das sabedorias e das sensibilidades cul-
o complexo militar-industrial e o uso militar da ciên- turais”.
cia. Nos dias de hoje, põem em questão seu uso Mas por que as ciências humanas são respon-
social, notadamente sobre três pontos: a) a respon- sabilizadas pelo relativismo? Em primeiro lugar, por-
sabilidade do homem face à natureza; b) a ciência que levam em conta o que é arbitrário em nosso

96 97
sistema simbólico; em seguida, porque mostram a estariam transferindo a universalidade da religião
historicidade de nossos valores; em terceiro, porque para a cultura? Não estariam delegando à ciência o
estudam as obras e os autores em seu contexto, privilégio de universalidade outrora reservado à Pala-
impedindo-nos de conformar o mundo à nossa ima- vra divina? A este respeito, são esclarecedoras as
gem; em quarto, porque consideram o “europeu”, palavras de M. Kundera: “quando o Deus medieval
não mais como uma missão ou um motivo de orgu- se transformou em Deus absconditus, a religião ce-
lho, mas como um simples sistema de vida e de deu o lugar à cultura que se tornou a realização dos
pensamento entre outros, não ousando mais afirmar valores supremos pelos quais a humanidade euro-
as idiossincrasias particulares ao nível da universali- péia se comprazia, se definia e se identificava”. E
dade; enfim, por não identificarem uma “província” uma vez Deus eclipsado, o que pregam os racionalis-
com o mundo, tampouco um momento histórico com tas ocidentais? Que as Luzes representam o triunfo
a eternidade, jamais tomam a diferença por um valor inconteste da Razão nos domínios das ciências, das
absoluto, posto não acreditarem na existência de artes e das técnicas que podemos colocar a serviço
um universal concreto ao lado do universal abs- do Progresso e da felicidade da humanidade; pre-
trato.(18) gam a universalidade das Luzes da Ciência, o com-
Evidentemente que não podemos mais aceitar pleto desenraizamento da Razão, o livre exercício
a visão etnocêntrica da humanidade, fazendo da Eu- do entendimento, a unidade do gênero humano e a
ropa a sociedade que se encontra na origem de derrota dos particularismos. A este respeito, são
todas as descobertas e de todos os progressos, quer significativas as palavras do filósofo lituano Lévinas.
dizer, a sociedade-modelo-de-referência para se jul- Ao emigrar para a França (1923), abre seu coração:
gar as outras sociedades ou demais povos. Contudo, “Optei por este país porque é um país onde o apego
ao proclamar a pluralidade das culturas e ao respon- às formas culturais parece equivaler ao apego à
sabilizar as ciências humanas pelo relativismo, os terra. Seu patrimônio é composto de valores ofereci-
“sábios” do Collège de France, bastante fiéis ao espí- dos à inteligência e ao pensamento universais dos
rito do velho colonialismo, proclamam mais ou menos homens”. No fundo, este ardoroso ideal universalista
dogmaticamente a universalidade da Ciência, ex- nada mais faz que ocultar certa arrogância naciona-
cluindo-a por completo da chamada “lei” da relativi- lista ou chauvinista, na medida em que define o país
dade. Ao adotar tal postura, procedem à maneira que lhe deu abrigo (por extensão, a Europa) por sua
de Goethe em sua tentativa romântica de convencer cultura.
os homens de seu tempo da impossibilidade de 8. Ao renunciar ao europeucentrismo e ao
existir uma arte ou uma ciência patrióticas, posto criticar o etnocentrismo, precisamos tomar todas as
que “tanto a arte quanto a ciência (como tudo o que precauções para não cairmos num relativismo sus-
é bem) pertencem ao mundo”. cetível de desembocar numa forma de irraciona-
Cento e cinqüenta anos mais tarde, o que dizem lismo. Porque no momento em que a ciência, repen-
nossos “sábios”? Continuam a reservar à Ciência o sada pelos relativistas, aparece apenas como uma
privilégio de emancipar-se por completo de suas con- “bricolagem”, como um conjunto de ações oportunis-
dições históricas e culturais. Assim procedendo, não tas ligadas a idiossincrasias locais, como uma lógica
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contextualista situacional fazendo do método cientí- plural e ao reconhecimento do seguinte fato: as
fico um método qualquer ou dissolvendo a racionali- sociedades só existem instituídas politicamente”
dade científica, qualquer tipo de investigação ou de (Caillé, op. cit., p. 220).
raciocínio pode ser usado sem nenhuma contra-indi- A fim de negar a universalidade dos Direitos
cação científica. A partir do momento em que a no- do homem, os relativistas utilizam argumentos de
ção de cientificidade é identificada e substituída pela natureza histórica, geográfica, etnográfica e socioló-
de cultura x, que defendemos o fato social total, o gica. Grosso modo, sua tese consiste em afirmar:
fato humano total, a ciência tanto pode produzir as há uma pluralidade de culturas, mas não existe
formalizações mais estritas quanto as extrapolações nenhum critério objetivo permitindo-nos afirmar a
místicas. Ademais, precisamos reconhecer que a superioridade de uma sobre as demais. E quanto à
democracia, em sua essência, não é apenas uma tese da possível universalidade dos Direitos do ho-
descoberta, mas uma invenção ocidental. Nestas mem, dela retiram duas conseqüências: a) ao defi-
condições, dificilmente pode ser negada a universali- nirem uma cultura (a ocidental), não podem ser invo-
dade dos Direitos do homem, por exemplo. Ora, uma cados para julgar ou criticar certos aspetos de outras
vez postulada a universalidade dessa “pulsão demo- culturas; b) as práticas não-ocidentais (usos, cos-
crática”, teremos condições de escapar da seguinte tumes, ritos, etc.) devem ser justificadas no interior
alternativa: ou não temos o direito de julgar, em nome mesmo de uma cultura possuindo sua coerência pró-
da equivalência de todas as crenças e instituições, pria. Por isso, em nome da recusa do etnocentrismo,
ou devemos julgar, de modo unilateral, afirmando a não temos o direito de julgar. E a compreensão do
inferioridade de todas as culturas relativamente à universo cultural em questão constitui, para nós, a
nossa (ocidental). adoção de uma atitude de profunda tolerância. Na
Mas novamente estamos diante da questão: medida em que não tenho o direito de atribuir
sobre o quê se funda o processo de globalização? nenhum valor absoluto à minha própria tradição, sou
A resposta de Max Weber nos parece insatisfatória: obrigado a aceitar todas as culturas e a respeitar
precisamos reconhecer a existência de valores suas reais diferenças. Deste ponto de vista, as ciên-
últimos que não se fundam na razão, porque a demo- cias humanas (história, sociologia, etnologia, etc.),
cracia comporta dosagens diferentes de igualdade, mesmo permitindo-nos tomar consciência da relativi-
liberdade e comunidade. Nem todos os “valores últi- dade das culturas, deveriam fazer um esforço para
mos” são, pelo fato mesmo de serem últimos, aceitá- promover a autonomia e a coexistência pacífica dos
veis. Só são aceitáveis os que forem capazes de, indivíduos.
tendencialmente, desembocar na constituição de Apesar da força desse argumento, continua-
uma sociedade democrática em escala planetária. mos ainda admitindo que somente a ciência é uni-
Tais valores últimos, evitando um universalismo de- versal e que a tolerância e a aceitação das diferenças
masiado abstrato e os particularismos excessiva- constituem os dois únicos valores morais aceitáveis.
mente concretos, precisam inspirar “um universalis- Nenhum outro critério poderia ser invocado para
mo relativista”, vale dizer, “um universalismo que permitir-nos escolher entre os diferentes modos de
seria coextensivo à aspiração por uma democracia viver. Porque não haveria nenhum outro meio
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permitindo-nos julgar ou recusar qualquer coisa. Se concretamente irrealizáveis. E quanto aos Direitos
a tolerância não deve ser entendida apenas em seu do homem, fundam-se justamente nessa certeza da
sentido primitivo (século XVI: guerras de religião) liberdade e no dever de se preservá-la. Como os
de indiferença à verdade dos dogmas religiosos e direitos do cidadão e a relatividade das culturas não
respeito às doutrinas hereges, mas como a disposi- se situam no mesmo plano, nosso modo de ver com-
ção do espírito permitindo a todo indivíduo ou grupo porta sempre algo de arbitrário: nenhum princípio
a liberdade de exprimir suas opiniões ou de viver de ordem lógica ou biológica tem o direito de impor-
com hábitos com os quais não partilhamos, surge a nos tal “arbitrário” como o único modo de viver, posto
questão: devemos tolerar e aceitar qualquer sistema que seria um absurdo admitirmos que somente
político, mesmo o que se opõe frontal e radicalmente nossos modos de viver, pensar, trabalhar, consumir,
aos direitos do cidadão? Em outras palavras: deve- etc. podem vangloriar-se de ser humanos, livres e
ríamos adotar a mesma atitude diante do nazismo, sensatos.
da democracia, dos integrismos religiosos e dos fun- Nem todos os princípios de juízo, fundados no
damentalismos? Todos esses regimes se equi- respeito da pessoa humana, devem ser colocados
valeriam? no mesmo plano, pois deles nos servimos para julgar
Claro que não temos condições de provar racio- nosso próprio modo de viver. O fundamento mais
nal e objetivamente (cientificamente) que a liberda- radical dos direitos do cidadão deve ser buscado no
de, a autonomia e o respeito da pessoa humana respeito incondicional à pessoa. O fato de haver regi-
constituem valores universais e que, por isso mesmo, mes e Estados diferentes de forma alguma invalida
transcendem as diferentes culturas. Tampouco a a aceitação desses princípios gerais como princípios
ciência é capaz de demonstrar a veracidade do relati- de uma ética universal, mesmo que, aqui e ali,
vismo. As ciências humanas (sociologia, etnografia, possam eventualmente ser criticados. Enquanto prin-
etc.) não põem em dúvida a existência de normas cípios de avaliação crítica, nada nos prometem.
(por exemplo, a objetividade e a universalidade do Apenas permitem-nos determinar o que é inaceitável
discurso científico) capazes de “transcender” as cul- e inadmissível. Não nos propõem nenhum programa
turas. Afirmam que a objetividade não é total e que de ação. Apenas nos fornecem critérios permitindo-
a liberdade do pesquisador é sócioculturalmente de- nos fazer um juízo e denunciar o ética e humana-
terminada. Mas esses condicionamentos não anu- mente inadmissível. Apesar da diversidade das civili-
lam a existência de certas “normas transcendentes”, zações, a Declaração Universal (1948) foi aceita por
pois não se definem como um fato, mas tão-somente praticamente todos os Estados: celebraram, pelo
como um ideal a ser constantemente buscado e menos, um acordo formal admitindo a possibilidade
construído. de uma ética universal suscetível de fornecer os
Por outro lado, contra uma exigência de liber- princípios formais permitindo que as culturas possam
dade, as ciências humanas nada têm a demonstrar. ser julgadas.
Fundam-se na certeza indemonstrável da possibili- Segundo a visão tradicional ou racionalista da
dade mesma da liberdade e da universalidade, mes- objetividade da ciência, os méritos de uma teoria
mo que se apresentem sob formas imperfeitas e científica são independentes de todos os condiciona-

102 103
mentos de classe social, de raça, de sexo ou de mente o rejeita em bloco; ou como Lakatos que,
qualquer outra característica dos indivíduos ou gru- em nome de sua metodologia dos programas de
pos. Porque a evolução e a avaliação da ciência pesquisa científica, instaura uma cruzada contra o
não dependem de nenhuma explicação social. Ao marxismo, como se fosse apenas uma “poluição
contrário, segundo a visão dos relativistas, se as leis intelectual”. (19) A este respeito, a posição mais
científicas são protegidas e estabilizadas, elas o são, sensata consiste em dizer: se devemos nos pronun-
não por razões internas à própria ciência, mas em ciar sobre esta ou aquela versão do marxismo, deve-
razão de sua utilidade suposta para fins de justifica- ríamos nos interrogar sobre seus objetivos, procurar
ção, legitimação ou controle social. Uma das conse- saber se conseguiu alcançá-los ou não e conhecer
qüências da crítica da racionalidade é que ela conduz os fatores que agiram em seu desenvolvimento.
à confusão dos saberes. Descrever o avanço do co- Somente então, teremos condições de avaliar se
nhecimento como uma espécie de caos pragmático aquilo para o qual tal visão foi concebida é ou não
pode levar-nos a crer que não existe nenhum método desejável; e avaliar até que ponto seus métodos lhe
científico digno desse nome. Facilmente podemos permitem atingir seus objetivos bem como julgar os
passar dessa descrição à idéia segundo a qual não interesses aos quais ela serve.
têm razão de ser as distinções cuidadosamente esta- Por isso, podemos afirmar: não é verdade que
belecidas entre os “sistemas de crenças” e os “siste- todo ponto de vista seja tão bom quanto um outro. A
mas de conhecimento”, entre a ciência e as supersti- melhor maneira de proceder, para dispormos dos
ções. meios de transformar determinada situação (de um
Claro que não há um critério absoluto permi- ramo do saber ou de um aspeto da sociedade) con-
tindo-nos avaliar ou julgar as teorias. Tampouco exis- siste em apreendermos tal situação e dominar os
te a categoria geral “ciência” ou um conceito de ver- meios de sua transformação. Como esta ação deve
dade cuja busca seria seu objetivo. Cada domínio ser feita por cooperação, claro que a política do “tudo
do saber deve ser julgado segundo seus próprios é bom” deve ser rejeitada, pois nos leva à impotên-
méritos e interrogar sobre seus próprios objetivos. cia. “Tudo é bom” significa, na prática, “tudo se
Ademais, os juízos dizendo respeito a esses objeti- mantém”. Se as verdades científicas são verdades
vos são relativos a determinada situação social. Por- com responsabilidade limitada, o critério popperiano
que não existe uma concepção universal e eterna põe em jogo a responsabilidade dos que as profe-
da ciência ou de seu método podendo estar a serviço rem. A refutabilidade se define como uma espécie
de seus objetivos. Não dispomos de nenhum meio de contrato social garantindo a livre circulação do
para atingir esse estádio. E nada nos autoriza a acei- pensamento. Em outras palavras, a comprovação
tar ou a rejeitar um conhecimento pela simples razão de uma teoria científica é um processo de comunica-
de conformar-se ou não com determinado critério ção, um meio de partilharmos visões do mundo. Ao
de cientificidade. Se, por exemplo, tivermos que nos proclamar que “o mundo científico é nossa verifica-
pronunciar sobre o marxismo, não devemos pro- ção”, Bachelard enfatiza a dimensão essencialmente
ceder como Popper que, a pretexto de não se confor- social da prova e nos garante que cada um de nós
mar com sua metodologia falsificacionista, simples- pode, pelo menos em princípio, refazer as experiên-

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cias anunciadas, comprovar as conseqüências das racionalidade interna que seria transparente. Porque
novas e partilhar o mesmo pensamento. Portanto, resulta também das lutas de influências e de relações
verificar não significa tanto tornar verdadeiro, mas de forças sociais. Todo o problema consiste em cons-
tornar partilhável, socializar. truirmos uma ponte entre certo realismo científico
Nessas condições, se o relativismo nos parece ingênuo, acreditando na manifestação da verdade
inaceitável, é porque, em sua tentativa de dissolver una e inelutável e o ceticismo niilista, acreditando
a questão da “verdade” e da “realidade”, transforma- que tudo se equivale, “tudo é bom” e que a Verdade
se em ceticismo e passa a adotar uma atitude de só pode ser a verdade dos poderosos de plantão.
dúvida permanente e universal e a negar a possibili- Contrariamente aos relativistas, afirmando que
dade de podermos conhecer algo com certeza. Se a ciência não tem direito a nenhuma pretensão a
não nos resignamos a tal postura, é porque, apesar uma verdade universal, porque, como qualquer outra
de tudo, continuamos acreditando que a ciência se forma de saber, constitui um simples produto da so-
nos apresenta como um saber muito mais “verdadei- ciedade onde foi elaborada, e nada mais exprimindo
ro” que as crenças supersticiosas e que inúmeras senão o resultado de conflitos de interesses e de
outras formas de “conhecimento”. Para além de to- relações de força que caracteriza tal sociedade, pre-
das as mudanças, o empreendimento científico con- cisamos afirmar uma esfera relativamente autônoma
serva sua coerência profunda. Seu rumo fundamen- do “verdadeiro”, de uma Verdade como objeto de
tal sempre foi e continua sendo a evolução das idéias uma aspiração e de uma busca necessariamente
essenciais. Mesmo que julguemos essa formulação indefinida. Por outro lado, não podemos renunciar
um pouco exagerada, é menos extravagante que completamente a uma reflexão global sobre o
as profecias apocalípticas dos que anunciam regular- conteúdo do conhecimento e sobre seus critérios
mente a crise da Razão e o fim do Saber Objetivo. de verdade. Porque tal reflexão nos conduz a uma
Se há crise, não é tanto de racionalidade: somos visão unitária das coisas, na qual o “verdadeiro” não
muito mais ameaçados pela bomba atômica, pelo tem condições de subsistir separado do que efetiva-
uso abusivo das manipulações genéticas, etc. que mente existe. Toda análise sobre a questão do real,
pela implosão do racionalismo. O processo da inven- mas conduzindo ao relativismo, constitui um desafio
ção científica não se encontra em perigo, mas a ao poder de nosso conhecimento.
humanidade sim. Porque a crença numa verdade global e unifica-
Ademais, o relativismo freqüentemente resvala dora funciona como o fundamento mesmo do con-
para certo idealismo desencarnado, na medida em senso social. Enquanto tal, prescinde de fundação.
que faz apelo à existência de realidades fora do co- No plano da ciência, por exemplo, funciona por des-
nhecimento que possamos ter delas. O conheci- locamento: a eficácia técnica serve de fundamento
mento científico é condicionado por outros interesses à crença na verdade de seus resultados; e o êxito
que não os da própria razão. De forma alguma cons- técnico, no domínio material, constitui a “prova” da
titui um saber puro e desencarnado, em progresso veracidade de seu método. Mesmo quando aplicado
constante para a descoberta desinteressada da Ver- a outros objetos, o método científico constitui uma
dade sobre o universo e obedecendo apenas a uma garantia de “verdade”, não somente das teorias, mas

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das crenças que podem induzir. O resultado desse projeto, como nos lembra Wittgenstein, no interior
deslocamento é uma “crença que se acredita verda- de regras estabelecendo o jogo no qual pode haver
deira, isto é, uma visão do mundo na qual se crê erro. Para que uma proposição seja falsa, ainda é
porque se tem razão para acreditá-la verdadeira preciso que não seja absurda, que respeite as regras
(cientificamente), ao invés das ilusões do mito e da de formação da linguagem na qual é enunciada e
religião. Para Freud, é a razão que vai dissipar as as regras do jogo constituídas pelo uso da lingua-
ilusões da religião, sem que precisemos, em seguida, gem: “Quando nenhum erro é possível, é porque a
dissipar as ilusões da razão” (H. Atlan, A Tort et à possibilidade de erro não faz parte da regra do jogo.
Raison, Seuil, 1986, p. 200). Numa partida de xadrez, distinguimos os bons e os
Veremos que todos nós buscamos a Verdade. maus deslocamentos de peças. Consideramos um
Mas não devemos vê-la nem como uma realidade erro expor a rainha a ser tomada por um cavalo;
metafísica nem tampouco como um puro e simples mas que possamos confundir um pião com o rei,
ser epistemológico. Limitando-nos, no momento, à isto não pode constituir um erro” (Le Cahier Bleu).
chamada “verdade científica”, diríamos que, a seu O pensamento ocidental tem sido acusado de
respeito, o grande erro consiste em considerá-la co- ser bastante dualista, dicotômico ou esquizofrênico.
mo algo caído do céu, e não como um produto terre- No entanto, essa dicotomia não é consubstancial à
no e humano. Nas verdades das “sabedorias tradi- Razão, mas tão-somente à sua representação par-
cionais” ou reveladas, não há lugar, pelo menos em ticular, o racionalismo. Em economia política, são
princípio, para a crítica, posto que facilmente se con- dicotômicas as oposições entre valor de uso e valor
vertem em dogmas nos quais tudo é dado de uma de troca; na lingüística, entre significante e significa-
vez. Em contrapartida, o método científico, até por do; na sociologia, entre natureza e social, entre
seu caráter de construção progressiva, deve sem- meios e fins, etc. Sem falarmos da dicotomia que
pre estar aberto à crítica, nenhum cientista deven- temos utilizado entre pensamento ocidental e pen-
do cair na tentação de repouso na contemplação de samento oriental. Todos esses rótulos, não muito
suas verdades. Claro que há certas cosmogonias adequados, remetem a conjuntos bem mais amplos,
científicas acreditando, com o objetivo de desemba- difusos e heterogêneos e a longos períodos de tem-
raçar-se das ilusões e dos erros das falsas crenças po. O Oriente possui escolas de pensamento racio-
do passado, na possibilidade de uma Verdade sobre nalistas e dicotomizantes. Por sua vez, o Ocidente
a Realidade Última das coisas. Assim procedendo, não é necessariamente dicotômico. No longo prazo,
devem ser chamadas às falas: os filósofos e episte- o que marca a especificidade dominante de cada
mólogos aí estão para lembrar-lhes que toda teoria uma dessas culturas é, no Ocidente, a referência
científica é portadora apenas de uma função opera- permanente ao “princípio de razão” e, no Oriente, a
cional e provisória num contexto limitado pelas busca constante da não-dualidade. Enquanto nesta
técnicas e linguagens utilizadas. parte do mundo a verdade, por ser eminentemente
Ora, se a busca da Verdade nada mais é que a não-discursiva, reside para além das categorias do
busca das possibilidades de erros que precisamos entendimento, na outra, embora seja essencialmente
eliminar, diremos que só podemos realizar esse discursiva e também pretender ultrapassar as
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categorias do entendimento, não abre mão do cias individuais (místicas, artísticas, religiosas, etc.),
simbólico e da História. O pensamento ocidental, as mais variadas e injustificáveis formas de obscu-
com a ambição prometéica que confere às ciências, rantismo. Porque, levado às suas últimas conse-
apropria-se da verdade no plano da dualidade, só qüências, o relativismo termina por justificar, no que
tornando-a acessível ao pensamento dicotômico. diz respeito às implicações sociais e éticas do sa-
O homem moderno sempre demonstrou grande ber, certa atitude ou ideologia fazendo a apologia
obsessão por este grito de vitória: “Nós, os ociden- do wishfull thinking (tomar seus desejos por reali-
tais, somos totalmente diferentes dos outros”. O que dades) como o método privilegiado de escolha nas
significa esta Grande Partilha entre “Nós” e os pesquisas. Ao conferir um estatuto quase emotivo
“Outros”? Nada mais que a seguinte oposição: de ao termo “ciência”, o relativismo também lhe atribui
um lado, a Cultura, do outro, as culturas. No cerne um valor de certeza quase ético. Claro que podemos
dessa questão encontra-se a ciência. Como os ou- aderir a esse valor. Mas é tão-somente no domínio
tros, os ocidentais praticam o comércio, conquistam, da convicção. Quando a história e a sociologia se
pilham, exploram, etc. Mas temos algo de especial: distanciam da epistemologia racionalista, sabem que
inventamos a ciência, esta atividade completamente se trata apenas de um modelo ideal de ciência, em
distinta da conquista, da política, do comércio e da geral encarnado nas grandes teorias físicas de
moral, mas que nos permite instaurar uma diferença Galileu, Newton, Einstein... Mas há outras ciências,
radical entre Natureza e Cultura, entre Saber e So- indo da biologia à psicologia, que não partilham ne-
ciedade. Quanto aos “outros”, não conseguem sepa- cessariamente os mesmos métodos. Se queremos
rar o que é verdadeiramente conhecimento e o que falar da ciência, precisamos saber onde ela pára. E
é sociedade, o que é signo e o que é coisa, o que sobre este ponto, ninguém está de acordo. Por isso,
são as palavras e o que são as coisas. Ao fazerem seria melhor admitirmos que existem ciências e que
tal confusão, ficam prisioneiros do social e da lingua- variadas são suas modalidades de realização.
gem. Nós, não, graças ao conhecimento científico, Quanto ao relativismo, diremos que, ao elevar-
já nos libertamos da prisão do social e da linguagem se a uma postura filosófica, esbarra sempre em difi-
e, por isso, temos acesso às coisas mesmas. A pre- culdades insuperáveis. Com efeito, é bastante limita-
tensão dessa barreira, instaurada pela Grande De- da a posição de alguém que, por um motivo ou outro,
marcação, é a de erigir a Ciência como o único sa- ou que, por uma questão de “suspensão de crença”,
ber capaz de fornecer o quadro universal onde a deixa o terreno do comentário e penetra no domínio
Verdade se manifestaria, as demais formas de sa- das responsabilidades históricas, políticas ou jurídi-
ber constituindo apenas aproximações balbuciantes cas. O recurso crescente dos tribunais ou dos gover-
e ilusórias. nos às perícias científicas constitui um notável exem-
Por outro lado, o grande risco do relativismo plo de terreno onde as práticas sociais freqüente-
radical é o de converter-se num ceticismo niilista de- mente confinam com as preocupações dos sociólo-
fendendo o “tudo é bom” freqüentemente condu- gos das ciências. Em certos países, constata N.
zindo, a pretexto de valorização dos mais diversos Journet, “os experts citados nos tribunais não são
“espontaneísmos” ou de reabilitação das experiên- chamados apenas a fornecer seus resultados: po-
110 111
dem ser submetidos, pela parte adversa, a um inter- E quando as duas perspectivas se combinam,
rogatório completo sobre todas as etapas de sua surge a possibilidade de um obscurantismo dogmáti-
argumentação. Esta regressão às fontes do saber co e monista. Porque, quando se despoja a ciência
termina por chegar a um termo: enfim, o juiz deve de critérios intrínsecos de verdade, abre-se o espaço
decidir. O mesmo ocorre quando se julga as ques- para ser preenchido por critérios extracientíficos, on-
tões de patente, de sangue contaminado ou de vaca de a normatividade será exercida política e ideologi-
louca. Uma das coerções da vida social é a de ter camente. De um ponto de vista ético, se uma teoria
que tomar decisões em função de convicções. Sem científica é totalmente dependente de necessidades
dúvida é frutuoso e útil, para o sociólogo, suspender e interesses extracientíficos, a responsabilidade mo-
sua crença; todavia, a menos que mantenha uma ral do cientista não diz respeito apenas às aplicações
missão contemplativa, um dia ou outro ele é levado de seu saber, mas também à elaboração de suas
a pesar as conseqüências de seu propósito” (Sci- teorias. Como os relativistas se situam, na maioria
ences Humaines, n. 67, dezembro de 1996, p. 35). das vezes, nos confins ou no exterior do empreendi-
Neste ponto da discussão, gostaria de insistir mento científico, na esperança de poder gozar de
na seguinte questão: ao negar peremptoriamente a um acesso privilegiado à verdade, cujo estatuto
“Grande Demarcação”, conhecida pelo nome inglês permanece indeterminado, surge a questão: de que
de Great Divide, o relativismo (epistemológico e so- modo podemos integrar o relativismo no seio mesmo
ciológico) pode conduzir a certo irracionalismo e, da demarche da ciência, uma vez que esta não se
mesmo, às correntes místicas. Na medida em que reduz ao cientificismo? Em que medida pode ali-
tenta abolir as fronteiras da validade teórica, duas mentar o também movimento da razão, nada tendo
soluções são possíveis, no caso das ciências huma- a ver com o racionalismo? Podemos colocar em
nas e sociais: a) ou deslocamos o limite da Grande dúvida a certeza da superioridade do Ocidente sobre
Demarcação e, neste caso, não passaria mais en- todas as outras culturas sem renunciarmos, ao mes-
tre o científico e o não-científico, mas entre a mo tempo, ao projeto democrático?
sociologia e as demais ciências, cabendo a uma A ciência moderna, ao retomar o antigo projeto
antropologia social desempenhar o papel de um de Platão, criou uma relação com a verdade em
meta-saber isento do método crítico que ela aplica nome da qual todos os sofistas devem ser expulsos
às outras, como se fosse capaz de desempenhar da cidade. Como nos lembra Latour, “se os ociden-
uma função unificadora; b) ou relativisamos a teoria tais tivessem se limitado a comerciar ou conquistar,
social do próprio saber e, neste caso, tal relativismo a pilhar e a subjugar, não se distinguiriam radical-
corre o risco de desembocar num ceticismo niilista mente dos outros comerciantes e conquistadores.
onde tudo seria indiferenciado e qualquer proposição Mas eis que inventaram a ciência, atividade total-
seria valorizada como tendo os mesmos direitos que mente distinta da conquista e do comércio, da política
as demais. Neste caso, sob a forma de “contracultu- e da moral” (Nous n’Avons Jamais été Modernes,
ra”, de espontaneísmo ou de reabilitação da expe- La Découverte, 1991). Com isto, quer nos dizer duas
riência individual, correríamos o risco de justificar coisas: a) não declara que a ciência constitui “uma
os mais perigosos dogmatismos. atividade inteiramente distinta”, mas questiona a
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crença permitindo-nos, a nós ocidentais, acreditar história humana, faz-nos lembrar do dilema do Pe-
que sejamos tão diferentes assim dos outros povos; queno Príncipe de Saint-Exupéry tentando descobrir
b) explicita que nossa crença na ciência como “intei- a existência de milhares de rosas semelhantes à
ramente distinta” constitui uma temível arma garan- “sua”: só depois de certo tempo ele aceita que o
tindo-nos um acesso privilegiado e diferente ao mun- importante não se encontra numa propriedade intrín-
do e à verdade. Claro que qualquer povo pode se seca especial que possuiria sua rosa, mas na relação
considerar diferente dos outros. Todavia, como ob- histórica, concreta e única que mantém com “sua”
serva pertinentemente I. Stenghers: “nossa crença rosa.
nos permite ao mesmo tempo definir os outros como O que nos parece intrigante é que, tanto do
interessantes e como previamente condenados em ponto de vista filosófico quanto do antropológico, o
nome da terrível diferenciação de que somos vetores debate sobre o racionalismo e o relativismo vem se
entre o que pertence à ordem da ciência e o que limitando a estabelecer uma comparação entre os
pertence à ordem da cultura, entre objetividade e ocidentais e os “outros”, como se não pudessem ter
ficções subjetivas. Por isso, precisaríamos inventar boas “razões” para admitir suas crenças, como se
um antídoto à crença que nos torna temíveis, a que apenas os racionalistas pudessem ser racionais ou,
define verdade e ficção em termos de oposição, em então, que todas as culturas devessem ser igualmen-
termos do poder que tem uma de destruir a outra, te racionais. A grande insuficiência dessas três
crença mais antiga que a invenção das ciências hipóteses: uma verdade única, não há verdade e
modernas, mas da qual esta invenção constituiu um tudo é verdadeiro, é que neutralizam e desqualificam
recomeço”(L’Invention des Sciences Modernes, op. toda interrogação e estancam a atividade mesma
cit., p. 185). do pensamento.Lembremos que a filosofia nasce
Se é verdade que, para deixarmos o terreno consubstancialmente vinculada à idéia de uma busca
do racionalismo, precisamos abandonar a idéia se- da verdade e de um questionamento de tudo o que
gundo a qual só seria efetivamente universal a inter- estava estabelecido como representação, ignorando
pretação particular que o Ocidente se dá do univer- os limites geográficos, de raça, língua e comunidade
sal, também é verdade que, se não queremos de- política.(19a)
fender uma teoria relativista, precisamos renunciar Num artigo recente, “Universalisme et Tri Éco-
ao parti pris de impotência teórica e ética levando- nomique” (Diogène, 173, 1996), o filósofo americano
nos a afirmar que toda crença é tão plausível quanto Rorty, ao recusar toda forma de universalismo,
qualquer outra ou que tudo se equivale de um ponto proclama que o conceito de “universal” nada mais
de vista ético. O que implica essa dupla renúncia? é que uma “invenção dos ricos”, vale dizer, o resul-
Que nos desembaracemos da hipótese implícita, tado do sonho de abastados dispondo de tempo e
postulando que só existe uma verdade (a nossa) ou de muita imaginação para se acreditarem responsá-
que não existe nenhuma verdade impondo-se como veis pela humanidade. Precisamos pensar “uma
objetiva ou universal. Esta dificuldade de crermos ética sem obrigações universais” (L’Espoir au Lieu
que o essencial pode não residir numa racionalidade du Savoir, 3a parte). Somos solidários apenas de
ou numa objetividade absoluta, mas no relativo da nosso grupo, embora uma evolução futura da

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humanidade possa ampliar nosso grupo ao grupo Observemos que esse pragmatismo relativista,
humano como tal. Mas esta esperança ainda é utópi- ao pregar uma “ética sem obrigações universais”,
ca. Devemos proscrever a expressão “nós, o povo parece desconhecer a natureza mesma do univer-
das Nações unidas”, enquanto remete a “uma comu- sal. Confunde a referência ao universal com uma
nidade moral, a uma comunidade que poderíamos aceitação ingênua de uma natureza humana idêntica
identificar com a espécie humana”. Referir-se ao a si mesma através das épocas, de uma essência
universal seria postular que existe sempre e em toda do homem bem conhecida e perfeitamente identificá-
parte uma identidade humana perfeitamente defi- vel. Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filóso-
nida. fos do passado, Rorty não se dá conta de que, pelo
Se, do ponto de vista epistemológico, o relativis- menos depois de Kant, não podemos mais confundir
mo culturalista concebe a ciência como um valor o conceito de universal com a dedução de uma teoria
equivalente aos outros, vale dizer, relativo a determi- completa do homem nem com a conseqüência do
nada cultura, não resta dúvida que passa a defender conhecimento perfeitamente garantido de uma
a idéia segundo a qual o reino da racionalidade cien- essência humana. Porque o universal se afirma,
tífica nada mais é que a conseqüência “normal” do antes de tudo, como um movimento, como um dina-
triunfo de nossa cultura ocidental, técnica e materia- mismo, como uma universalização do que cada um
lista. É o que faz Rorty: sua postura anti-universalis- é e como a abertura para o outro. Sem ele, não tenho
ta, de estilo culturalista, afirma que os valores morais condições de compreender-me a mim mesmo, inti-
só fazem parte de nossas tradições locais contingen- mamente ligado ao singular, um não podendo ser
tes. Em sua obra Contingency, Irony and Solidarity apreendido sem o outro. O exemplo da linguagem é
(Cammbridge, 1989), expõe o seguinte argumento: ilustrativo: diferentemente de uma língua sempre
todas as pessoas que ajudaram os judeus durante particular, a linguagem é um fenômeno humano irre-
a perseguição nazista na última guerra mundial não dutível a um grupo. Ninguém consegue se exprimir,
o fizeram pelo fato de serem human beengs, como no que tem de mais íntimo, sem passar por esta
seres humanos seus pares, mas porque pertenciam mediação universalizante. E o que faz o próprio
à mesma cidade ou à mesma profissão que elas. E Rorty, senão empenhar-se em difundir seus próprios
diante da questão: será que os liberais americanos valores a outras culturas e a outros homens diferen-
modernos deveriam ajudar os negros americanos tes dele, aos quais tenta comunicar uma verdade?
oprimidos?, responde categoricamente: essas Ao fazer isto, contradiz ao mesmo tempo seu exclusi-
pessoas precisam ser ajudadas porque são nossos vismo cultural e seu relativismo. Mesmo que a idéia
companheiros seres humanos. Mas conclui com uma de universal possa revelar-se travestida, mal com-
ressalva: “Em termos morais como políticos, é muito preendida e repleta de ambigüidades, nem por isso
mais convincente descrevê-los como nossos compa- significa que perca todo sentido e não constitua o
nheiros americanos – insistir que é ultrajante que indício da seguinte realidade existencial: todos parti-
um americano viva sem esperança”. Em última análi- cipamos de uma comum humanidade e todos os
se, a moralidade não passa de uma espécie de nossos “nós” particulares encontram-se comprometi-
patriotismo. dos com a mesma aventura comum.(20)
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Para Rorty, o termo “nós” ou o termo “homem” que se opõe às suas idéias. Numa palavra, estanca
nada tem a ver com a “humanidade”. Isto não é a sede de absoluto inculcando o mais amplo relativis-
possível, pois não existe “natureza humana”. A única mo. Trata-se de uma sociedade que “se admite tal
“referência” para esse “nós” é a da “comunidade”. como é, com a moral que possui e a linguagem que
O “nós” designa comunidade. E o termo “comunida- fala (...) sociedade portadora de uma utopia liberal
de”, “nossa própria comunidade”. A forma da relação onde os homens se aceitam tais como são”(ver
plenamente afirmativa a si liga-se a um “conteúdo”: L’Espoir au Lieu de Pouvoir, op. cit., p. 120s). Seu
“incumbe-nos, na prática, privilegiar nosso próprio valor consiste em não possuir valor, a não ser o de
grupo”. Por esta adequação se realiza o ideal: “apro- uma mais ampla discussão. Aliás, apenas um valor
fundarmos nosso sentido da comunidade”, desenvol- se impõe absolutamente: a recusa da crueldade.
vermos nosso “desejo de trocas livres e abertas entre
Não resta dúvida que o relativismo (notada-
seres humanos”. A “solidariedade”, compreendida
mente o cultural) representa uma atitude positiva de
como “contato com a comunidade”, é o objetivo últi-
tolerância a respeito das opiniões divergentes das
mo dos homens. Viver em comunidade consiste em
outras pessoas. Inúmeras vezes já ouvimos a se-
“fazer corpo” com seu “grupo” para experimentar a
guinte afirmação: “você tem razão de pensar do mo-
vida em comum como uma “vida vivida como um
bem-estar”. Individualmente, este vínculo produz o do como pensa; e eu tenho as minhas de pensar
sentimento fundamental da “confiança em si/self- como penso; cada um tem o direito de pensar o que
reliance” (ver Objectivity, Relativism and Truth, 1991). pensa, ninguém tendo o direito de ditar aos outros o
que devem pensar ou fazer”. Claro que esta própria
Observemos que esse relativismo pragmatista
idéia segundo a qual deveríamos ser tolerantes
possui uma vertente política. Como insiste em dizer
constitui um juízo moral não podendo ser utilizado
Rorty, é graças à sociedade liberal que nossos con-
para justificar o relativismo. Porque seria incoerente
temporâneos (entenda-se: os cidadãos americanos)
pretendermos buscar justificá-lo baseando-nos nu-
são pouco a pouco curados das inquietações meta-
ma regra moral que se subtrairia às exigências
físicas e religiosas que vêm “atormentando” os ho-
mens e levando-os a aderirem aos diversos idealis- relativistas. No entanto, poderíamos contrapor ao
mos essencialistas da tradição. E esta sociedade relativismo a seguinte tese: as pessoas que o ado-
considera a metafísica um saber vigindo apenas tam estão engajadas num inaceitável conformismo
numa época ultrapassada da humanidade, quando social ou legal. E numa sociedade conformista, não
púnhamos problemas insolúveis por falta de meios há lugar para os inconformistas, reformadores, ino-
lógicos para resolvê-los. Ora, uma sociedade liberal vadores ou revolucionários. Numa sociedade onde
não procura outro fundamento senão ela mesma. todo mundo é conformista e as leis são unanimemen-
Porque vive na mais ampla troca das idéias num te aceitas, perde qualquer sentido a crítica (ou con-
“confronto livre e aberto” e aprende a aceitar-se testação) individual. Nestas condições, não há pro-
como é. Sua cultura a prepara para a aceitação das gresso moral possível. A história da humanidade está
idéias mais contrárias umas às outras. Ademais, re- repleta de exemplos de reformadores, anticonfor-
cusa as condenações e as indignações diante do mistas ou revolucionários que, no início, adotaram
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pontos de vista isolados, mas que, em seguida, em- moral e social indispensáveis à construção de uma
polgaram multidões. sociedade estável. Quando ele se aplica a domínios
Numa sociedade relativista não haveria lugar não-científicos, geralmente se apóia em analogias
para um Sócrates, um Jesus Cristo, um Lutero, um meio desastradas. A teoria da relatividade, por exem-
Marx, um Gandhi, etc. Teria fracassado completa- plo, não descobriu que a verdade depende do ponto
mente a luta de tantos heróis contra a escravidão e de vista do observador. Pelo contrário, descobriu que
a opressão dos desfavorecidos. A humanidade não as leis da física são elaboradas de tal maneira que
teria progredido em seu reconhecimento dos Direitos valem para todos os observadores, qualquer que
do Homem (dos Negros, das Mulheres, etc.). Todos seja seu movimento ou sua posição. Sua significação
esses (e outros) reformadores criticaram as leis, os fundamental: os valores considerados como os mais
hábitos, os usos e os costumes de suas respectivas elevados na ciência são independentes do ponto de
sociedades. Se os criticaram, é porque os julgaram vista. Neste sentido, Einstein não provou que a obra
moralmente inaceitáveis, em nome de princípios mo- de Newton era falsa. Apenas forneceu um contexto
rais admitidos como universais. Afirmar que o funda- mais amplo no interior do qual desaparecem certas
mento do que é bem e correto reside naquilo que o limitações, contradições e assimetrias da física an-
grupo (ou a sociedade) ao qual pertencemos autoriza terior.
ou sanciona, e defender a idéia segundo a qual o Finalmente, quando dizemos que todas as
que é moral (bem ou mal) é o que é conforme à lei nossas representações constituem conceitos histori-
(o que é legal), significa ser conformista. Se agir mo- camente construídos, num determinado contexto,
ralmente é agir em conformidade com a normalidade portanto, que são conceitos relativos, não absolutos,
e a legalidade, e se o moral se identifica com o so- de forma alguma estamos querendo diluir tudo no
cialmente aceitável e legal, posto que a moral não relativo. Não resta dúvida que a afirmação do con-
seria outra coisa senão o conjunto das regras às dicionamento histórico de nossos conceitos pode
quais a maioria das pessoas de uma sociedade se acarretar, em alguns, um reflexo de temor afetivo.
submete em determinado momento histórico, então Se nossas representações são relativas, nada mais
o relativismo só pode ser conformista. Neste tipo de haveria de absoluto? Seriam o amor, a justiça, a
sociedade, o indivíduo se torna privatizado, quer di-
amizade, etc. sempre noções relativas? Ora, afirmar
zer, perde sua capacidade de indivíduo livre, sobe-
o caráter relativo de algo de maneira alguma
rano e autárquico e passa a viver como uma espécie
significa que devamos julgá-lo sem importância,
de marionete realizando espasmodicamente os ges-
como irrelevante. Dois exemplos podem ser ilustra-
tos que lhe impõe o campo sócio-histórico: ganhar
tivos:
dinheiro, consumir e, quando possível, “gozar”.
O grande feito do relativismo cultural, ao negar a) nossa experiência amorosa nos mostra que
a necessidade e a possibilidade de se postularem o “relativo” pode ser extremamente importante. Com
verdades imutáveis, consiste em dissolver a verdade efeito, o fato de alguém poder encontrar dezenas
em enunciados probabilistas e indeterministas e, de pessoas compatíveis consigo de forma alguma
assim, minar as velhas fundações da autoridade suprime a importância do amor. Amar alguém é viver
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uma experiência essencialmente relativa (podería- uma coisa que ela é boa (posso desejar mentir,
mos amar outras pessoas). Mas é justamente o fato matar, roubar, etc.). É por ser boa que devo desejá-
de amarmos esta pessoa que é importante. Este la. Independe de mim que 2 e 2 sejam 4. Da mesma
simples caso, onde a experiência relativa reveste forma, não compete a mim escolher ou determinar
uma importância essencial, mostra que a consciên- que, no plano moral, constituem males a tortura, o
cia da relatividade “não dilui tudo no relativo”. Mais seqüestro ou o racismo. Esta “verdade” se impõe a
uma vez, foi o que percebeu o Pequeno Príncipe: o mim de modo evidente, não como uma emanação
importante, em sua rosa, não é o fato de ser absolu- de meus desejos subjetivos, mas como algo vindo
tamente única, mas o tempo que ele passou com do exterior. Quando dizemos que cada um de nós
ela; possui a idéia de um dever “absoluto”, de forma
b) o cristianismo nos mostra a importância do alguma defendemos qualquer forma de
relativo, pois se funda na seguinte fé: é na relativida- “dogmatismo”. Estamos simplesmente dizendo que
de e no contexto histórico de uma época e de uma certos interditos não dependem das circunstâncias,
pessoa (Jesus) que se manifesta o Absoluto. Contra- são indiferentes ao contexto. Tanto as “verdades”
riamente a outras crenças religiosas, não se baseia morais quanto as científicas são descobertas por
num Deus abstrato, mas num Deus pessoal manifes- nós, pensadas e vividas por nós, e não a nós
tando-se na relatividade da história. Neste sentido, impostas por uma revelação qualquer. Se “trans-
parece compatível com um encontro com o Absoluto cendem” a humanidade, é porque não se reduzem
que só se realiza em experiências sempre relativas a nenhuma cultura empírica particular.
a um contexto histórico. Aliás, como ressalta o sociólogo R. Boudon, “a
noção de transcendência exprime a idéia de uma
Ao afirmarmos, por exemplo, que a moral é realidade dos valores”. E esta idéia explicaria a ade-
puramente humana, não estamos dizendo que seja são coletiva da qual esses valores constituem o obje-
“relativa e histórica”, mas simplesmente que já to. Donde se poder concluir: o “desencantamento”,
superamos seu estágio “teológico-ético” fundando- no sentido do desaparecimento da crença na trans-
a numa revelação divina. Na medida em que é exte- cendência, “conduz inevitavelmente à anarquia poli-
rior à natureza e à história, possui um caráter teísta dos valores: se os valores não possuem reali-
“supranatural” e, por isso mesmo, “transcendente”. dade exterior, não são mais valores; ora a extinção
Diga o que quiser o relativismo histórico, de algo da transcendência é indissociavelmente a extinção
estamos absolutamente certos: da inacreditável da exterioridade dos valores; a extinção da transcen-
invariância de certos valores. Que eu saiba, não dência implica a dos valores” (Le Juste et le Vrai,
existe nenhuma religião, nenhuma moral capaz de Fayard, 1995, p. 294). Quer dizer: sem uma trans-
fazer a apologia do assassinato, da mentira, do cendência fundadora, os valores desaparecem.
egoísmo, etc. Embora pertencentes a ordens Claro que a filosofia dos valores prescinde da trans-
distintas, as “verdades” morais (ou “princípios” cendência, mas cai no relativismo. Por isso, não se
morais) e as verdades matemáticas se impõem a torna indispensável reafirmarmos a força da trans-
todos nós. Não as escolhemos. Não é porque desejo cendência para novamente termos condições de
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fornecer à vida humana as bases sem as quais ela
perde sentido? Segundo o slogan sempre repetido,
sem Deus, não seria tudo permitido?
O grande preconceito levando os relativistas a
recusarem todo universal consiste em identificá-lo
a uma idéia congelada, fria e inflexível, ignorante
da rica diversidade dos valores culturais e, por conse-
guinte, destruidora da humanidade concreta em no-
me de uma humanidade ideal. Na arena internacio-
nal, essa desvalorização se manifesta pela crítica
cultural dos direitos do homem: jamais encontramos
essa abstração que é o Homem, dizem. O que impli-
ca esse abandono do universal? Entre outras coisas,
consagra as tradições culturais, tais como são, tais
como servem de álibis a projetos perversos, a vonta-
des de poder, a estruturas de opressão veladas e
desprezíveis para o homem. Ademais, consagra a
tese da comunicação impossível entre homens de
culturas diversas. Sem esse pressuposto segundo
o qual os homens podem se intercomunicar, não há
vida humana comum possível. Aliás, deixa de haver
humanidade.
Portanto, longe de constituir uma abstração rí-
gida ou de fazer corpo com uma “concepção do
homem” inteiramente formada, a idéia de universal
precisa ser entendida, antes de tudo, como essa
pressuposição segundo a qual os homens pressen-
tem que, apesar de todas as suas diferenças, podem
e devem ser comunicar. De um modo mais preciso,
trata-se de uma idéia devendo ser entendida como
uma tarefa, portanto, como um dever que os indiví-
duos assumem de se compreenderem uns aos ou-
tros. Antes de ser um conteúdo ou uma norma, an-
tes de ser um juízo sobre a humanidade em si e
para si, essa idéia de universal constitui este a priori
segundo o qual o outro não me é tão estranho ou
que eu não lhe sou tão estranho. Numa palavra, que,
entre nós, a comunicação é possível.(20a)
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