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Filosofia e ética

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Filosofia e ética
João Mattar
Mestrado em tecnologia educacional pela Boise State University
Doutorado em letras pela USP
Pós-doutorado pela Stanford University
Professor de filosofia na Universidade Anhembi Morumbi
Pesquisador e orientador de doutorado no TIDD (Programa de
Pós-Graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital) – PUC/SP

Maria Thereza Pompa Antunes


Bacharel em administração pela PUC/RJ
Contadora pela FEA/USP
Mestre e doutora em ciências contábeis pela FEAUSP
Professora e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Contábeis da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Pesquisadora do CNPq. Medalha Frederico Herrmann Júnior – CRC/SP – 2009

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Redação: Bruno Félix e Rafael Mileo
Preparação: Cássia Pires e Lara Milani
Revisão: Adriane Schirmer e Entrelinhas Serviços Gráficos Ltda.
Capa: Alexandre Mieda e Solange Rennó
Projeto gráfico e diagramação: Casa de Ideias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mattar, João
Filosofia e ética / João Mattar, Maria Thereza Pompa Antunes. – São Paulo : Pearson
Education do Brasil, 2014. – (Série Bibliografia Universitária Pearson)

Bibliografia.
ISBN 978-85-430-0290-3

1. Ética 2. Ética empresarial 3. Filosofia I. Antunes, Maria Thereza Pompa. II.


Título. III. Série.

14-00644 CDD-170

Índice para catálogo sistemático:


1. Ética: Filosofia 170

Fevereiro 2014
Direitos exclusivos para a língua portuguesa cedidos à
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uma empresa do grupo Pearson Education
Rua Nelson Francisco, 26 – Limão
CEP: 02712-100, São Paulo – SP
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sumário

Apresentação.............................................................................................. VI

Unidade 1  Filosofia geral.......................................................................... 1


Introdução......................................................................................................1
O que é filosofia?......................................................................................2
Filosofias brasileiras.................................................................................9
Filosofia hoje........................................................................................... 17

Unidade 2  História da filosofia........................................................ 27


Introdução................................................................................................... 28
Filosofia antiga....................................................................................... 28
Filosofia medieval................................................................................. 43
Filosofia moderna.................................................................................. 50
Filosofia contemporânea.................................................................... 60

Unidade 3  Introdução à Ética........................................................... 75


Introdução................................................................................................... 76
O homem em sociedade.................................................................... 77
O conceito de ética............................................................................... 84
Fontes das regras morais e comportamento ético................... 89
Algumas doutrinas éticas................................................................... 96

Unidade 4  Ética empresarial...........................................................103


Introdução.................................................................................................104
A urgência da ética nos negócios..................................................104
Definindo ética empresarial............................................................108
Dilemas e conflitos éticos empresariais......................................112
Questões éticas da prática empresarial: problemas
recorrentes.............................................................................................116

Unidade 5  Gestão da Ética empresarial.....................................125


Introdução.................................................................................................126
A empresa ética....................................................................................126
O modelo da empresa ética............................................................132
A dinâmica da empresa ética..........................................................134
Instrumentos de gestão da Ética empresarial...........................138

Referências bibliográficas..................................................................143

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a p r e s e n ta ç ã o

Nos catálogos de livros universitários, há vários títulos cuja pri-


meira edição saiu há 40, 50 anos ou até mais. São livros que, graças à
identificação da edição na capa (e somente a ela), têm sua idade reve-
lada. E, ao contrário do que muitos podem imaginar, isso não é um
problema. Pelo contrário, trata-se de obras conhecidas, adotadas em
diversas instituições de ensino, usadas por estudantes dos mais dife-
rentes perfis e reverenciadas pelo que representam para o ensino.
Qual o segredo de sucesso desses livros? O que eles têm de di-
ferente de vários outros que, embora tenham tido boa aceitação em
um primeiro momento, não foram tão longe? Em poucas palavras,
esses livros souberam se adaptar às novas realidades ao longo do
tempo, entendendo as mudanças pelas quais a sociedade – e, con-
sequentemente, as pessoas – passava e as novas necessidades que se
apresentavam.
Para que isso fique mais claro, vamos pensar no seguinte: a
maneira como as pessoas aprendiam matemática na década de
1990 é igual ao modo como elas aprendem hoje? Embora os alicer-
ces da disciplina permaneçam os mesmos, a resposta é: não! Nesse
intervalo de tempo, ocorreram mudanças significativas – a Internet
se consolidou, os celulares se popularizaram, redes sociais surgi-
ram etc. E todas essas mudanças repercutiram no modo de vida das
pessoas, que se tornou mais rápido e desafiador, mudando os fun-
damentos do processo de ensino/aprendizagem.
Foi com base nisso que nasceu a Bibliografia Universitária
Pear­son (BUP). Concisos sem serem rasos e simples sem serem
simplistas, os livros que compõem essa série são baseados na pre-
missa de que, para atender sob medida às necessidades tanto dos
alunos de graduação como das instituições de ensino – independente­
mente­de eles estarem envolvidos com ensino presencial ou a dis-
tância –, é preciso um processo amplo e flexível de construção do
saber, que leve em conta a realidade em que vivemos.
Assim, as obras apresentam de maneira clara os principais
conceitos dos temas propostos, trazendo exatamente aquilo que o
estudante precisa saber complementado com aprofundamentos e

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Apresentação VII

discussões para reflexões. Além disso, possuem uma estrutura didática que propõe uma di-
nâmica única, a qual convida o leitor a levar para seu dia a dia os aspectos teóricos apresen-
tados. Veja como isso funciona na prática:
A seção “Panorama” aprofunda os tópicos abordados ao mostrar como eles funcionam na
prática, promovendo interessantes reflexões.

Panorama

Leia o texto abaixo para responder às questões 1 e 2. disso, esse posto cobrava preços mais elevados
Marcos Sampaio, gerente de Recursos Huma- que os demais postos da cidade.
nos da empresa Modelo, companhia que atua Ora, por que então eles escolhiam aquele posto
no setor de vendas de planos de saúde, está para abastecer e fazer a manutenção do carro?
enfrentando um dilema. Marcos recentemente Simples: em razão do alto número de abasteci-

Saiba mais Exemplo Ao longo do livro, o leitor se depara com


vários hipertextos. Classificados como “Saiba
mais”, “Exem­plo”, “Fique atento” e “Link”,
Fique atento Link
esses hipertextos permitem ao aluno ir além em
suas pesquisas, oferecendo-lhe amplas possibi-
Introdução
lidades de aprofundamento.
O ambiente empresarial é um cenário que propicia o surgimento de
problemas éticos. Em um meio em que circula tanto dinheiro, poder e
status, é de se imaginar que os conflitos de interesse que caracterizam
A linguagem dialógica aproxima o estu-
a formação de dilemas éticos apareçam com muita frequência. E apa- dante dos temas abordados, eliminando qual-
recem mesmo!
Dê uma olhada nas capas dos jornais ou dos portais de notícia da In- quer obstáculo para seu entendimento e
ternet dos quais você mais gosta. É muito provável que encontre no-
tícias sobre escândalos empresariais, atos de corrupção ou incentivando o estudo.
personalidades sob suspeita de uso de recursos públicos ou empresa-

A diagramação contribui para que o estu-


78 Filosofia e ética
dante registre ideias e faça anotações, intera-
É possível que você diga que vive em uma sociedade chamada
Brasil. Nesse caso, estaria definindo a sociedade segundo suas
fronteiras geográficas nacionais. De forma semelhante, você po‑
gindo com o conteúdo.
deria citar o estado, a cidade ou o bairro em que mora, baseando
a sua resposta também nos limites geográficos de um território.
As pessoas que vivem em um país podem ter objetivos comuns,

Todas essas características deixam claro


como a defesa do território nacional ou a prosperidade da econo-
mia da nação. Os moradores de um mesmo estado, por sua vez,
também podem buscar metas coletivas, como promover o turismo
na região ou eleger um governador. A mesma lógica aplica-se a
cidades e bairros.
Uma terceira forma de responder à pergunta “Você poderia citar
uma sociedade da qual você faz parte?” seria mencionar o rela-
que os livros da Bibliografia Universitária
Pearson constituem um importante aliado
cionamento de cooperação mútua estabelecido com o seu cônjuge
ou com um parceiro de atividades profissionais. Em ambos os ca-
sos, você possui sócios, que são, respectivamente, o seu cônjuge e

para estudantes conectados e professores ob-


o seu parceiro de negócios. As relações estabelecidas nesses casos
são as de sociedade matrimonial e profissional.
Seguindo essa perspectiva, uma pessoa pode participar de so-
ciedades esportivas, de lazer ou religiosas, por exemplo, sempre
que se reunir com pelo menos mais de uma pessoa com o objetivo
comum de praticar esportes, atividades de recreação ou de adora-
ção a entidades divinas.
jetivos – ou seja, para o mundo de hoje – e
certamente serão lembrados (e usados) por
Ficou mais claro agora que nós sempre participamos de algu-
ma sociedade? De um jeito ou de outro, todos convivemos com
outras pessoas e, para realizar nossos desejos e satisfazer nossas

muito tempo.
necessidades, fazemos uso dessas relações sociais. Somos parte
da sociedade mais ampla chamada humanidade, interagimos com
outras pessoas que habitam na mesma região geográfica que nós.
Além disso, desenvolvemos relacionamentos específicos com de-
terminadas pessoas para também alcançar objetivos. Assim, pode-
mos dizer que o homem participa de várias sociedades ao mesmo
tempo, em diferentes níveis e tipos, dos objetivos e interesses que

Boa leitura!
mantêm a sua sobrevivência.

Relacionamentos sociais e conflitos


Uma vida sem contato com outras pessoas seria uma vida sem
relacionamentos. Ao vivermos em espaços comuns, nós natural-
mente desenvolvemos relações com outras pessoas. Pense em al-
gumas pessoas com quem tem algum tipo de relacionamento. É

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unidade 1
Filosofia geral
Objetivos de aprendizagem
Entender o conceito de filosofia.
Conhecer a trajetória da filosofia brasileira.
Conhecer algumas aplicações práticas da filosofia no mundo atual.

Temas
1 – O que é filosofia?
Você certamente já ouviu falar em filosofia, mas talvez não saiba ao
certo defini‑la. No primeiro capítulo deste livro, você vai conhecer o
significado da palavra filosofia, além de entender sua importância
para a evolução do conhecimento.
2 – Filosofias brasileiras
Você sabia que existe filosofia também no Brasil? Apesar de ser me-
nos conhecida, a filosofia brasileira é importante para nossa trajetó-
ria histórica. Neste tema, você vai conhecer os principais pensadores
da filosofia brasileira, suas influências e seu papel no desenvolvimen-
to das ideias no Brasil.
3 – Filosofia hoje
Neste tema, você vai ver um panorama da filosofia hoje, no mundo e
no Brasil, com destaque para algumas áreas de aplicação, sua relação
com as profissões e a maneira como ela é ensinada.

Introdução
Você sabe o que é filosofia? Certamente é algo de que já ouviu falar,
mas talvez não saiba, com exatidão, explicar o que é. Isso é normal − até
porque cada um tem sua própria definição do que é filosofia.

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2 Filosofia e ética

Nesta unidade, você vai conhecer um pouco mais sobre filosofia: o


que é, para que serve, qual é sua importância histórica, entre vários
outros aspectos.
Além disso, você vai aprender sobre a filosofia de alguns países asiáti-
cos, como Índia, China e Japão. Nesses países milenares, a filosofia
existe há muito tempo.
Você ainda vai ver a fragilidade da produção filosófica brasileira. Em
parte, a filosofia nacional não se desenvolveu pelo fato de o conheci-
mento filosófico por aqui ser muitas vezes importado de países euro-
peus e dos Estados Unidos.
Por fim, você vai entender a importância de ensinar filosofia para
crianças. A filosofia pode ajudar na preparação de melhores profissio-
nais? Você certamente terá essa resposta ao final da unidade.

O que é filosofia?
Filosofia em 140 caracteres
“O que é filosofia para você?” Ao fazer essa pergunta a
variadas pessoas, certamente ouviríamos respostas bem distin-
tas. Procure redigir você mesmo sua resposta, em poucas pala-
vras. Depois, você pode retornar a ela, revisá‑la e compará‑la
com as apresentadas a seguir. Elas foram enviadas por canais
de comunicação na Internet e o desafio era responder em 140
caracteres:
@holanda74: É o exercício de criatividade e de terapêutica
sobre as eternas dúvidas da condição humana.
@educacaoonline: Filosofia é a oportunidade de pensar sobre
o que realmente existe, na esperança de saber quem se é. (Fer-
nando Pimentel)
@pgentil: É descobrir a realidade através de questionamentos
importantes da nossa existência utilizando a razão.
@retorta: É a capacidade de construir raciocínios lógicos e
sustentáveis.
@Luciano Gamez: Apoiando-se na história do pensamento
ocidental, a filosofia nasce na Grécia (séc. VI a.C.) e promove a
passagem do saber mítico ao racional.
@RenataKordeiro: Filosofia é a arte de pensar quando tudo
parece ser vão e encontrar uma finalidade para tudo o que
ocorre.

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Filosofia geral 3

Marise Diniz: Filosofia não é ciência. Os conhecimentos filosó-


ficos constituem a base de todas as ciências. A filosofia discute a
essência do pensamento realizando perguntas que levam o ser hu-
mano a entender as coisas do mundo e a si próprio. É o saber que
não se aquieta, que se indigna, que admira os fenômenos da natu-
reza e da cultura. É um saber permanentemente em expansão, pois
é aberto à evolução constante do ser humano, às suas criações. O
saber filosófico não aceita o imposto, não é simplista, busca a to-
talidade de cada fenômeno, as relações que se tecem para com-
pô‑lo, entendendo‑o na sua complexidade. Usa a reflexão para
provocar o sair de si e ter uma visão do todo sem perder o entendi-
mento de cada parte. É o que faz o pensamento humano evoluir.
Alguns, claramente, passaram dos 140 caracteres, outros res-
ponderam com perguntas ou foram irônicos, mas essa brincadeira
serve para mostrar a você como cada um tem sua própria interpre-
tação do que é filosofia.

O que é filosofia?
Como você deve desconfiar, a origem da palavra filosofia está
no grego. Repare no significado dos elementos que a formam:
phílos = amigo + sophía = sabedoria, conhecimento, saber
Na Grécia antiga, o filósofo era considerado amigo ou amante
da sabedoria. Filosofia significava amor ao saber. Para os gregos
antigos, o espanto e a admiração em relação à vida e à realidade
levavam os homens a filosofar.
Entretanto, o que hoje chamamos de filosofia mudou ao longo
da história da humanidade. Na Antiguidade, as diferenças entre
ciência e filosofia não eram muito claras, e os primeiros filósofos
foram também os primeiros cientistas. Pode‑se dizer que a filoso-
fia é a “ciência‑mãe”, da qual pouco a pouco foram se separando
formas de pensar e métodos que mais tarde se especializaram e se
tornaram independentes − essas formas de pensar e métodos são
aquilo que hoje você chama de ciência.
Como afirma Lindberg (1983, p. 511):
Não existia nada na Antiguidade correspondendo à ciência mo-
derna como um todo, ou a ramificações da ciência moderna tais
como a física, a química, a geologia, a zoologia e a psicologia. Os
temas dessas disciplinas modernas pertenciam todos à filosofia
natural e, portanto, a um projeto filosófico mais amplo.

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4 Filosofia e ética

Um dos maiores patrimônios da filosofia é sua própria história.


A filosofia ocidental nasceu como um tipo de saber que procura
diferenciar‑se dos mitos, da retórica, das tragédias e dos poetas,
estabelecendo‑se até hoje como um espaço de exercício de refle-
xão. Assim, para compreender o que é filosofia, precisamos estu-
dar a história desse campo do saber, o que vamos fazer com mais
profundidade nas próximas unidades.

Filosofia e outros níveis de conhecimento


A filosofia faz parte das ciências humanas. Hoje, você pode
diferenciá‑la de outros níveis de conhecimento, como senso co-
mum, teologia, conhecimento espiritual, artes e ciências. A inte-
gração entre eles é necessária, mas você precisa fazer um exercício
teórico para distingui‑los.
O conhecimento que chamamos senso comum é aquele ad-
quirido no contato direto e diário com a realidade. São crenças e
opiniões empregadas com objetivos práticos. É basicamente de-
senvolvido por meio dos sentidos e não tem intenção de ser pro-
fundo, sistemático ou infalível.

Exemplo
Quer um exemplo de senso comum? Todo cozinheiro sabe que não pode
ficar abrindo o forno enquanto um bolo assa, senão fica solado. Como a
pessoa aprende isso? Fazendo um curso de física para conhecer o efeito
do ar frio sobre a massa? Não. Simplesmente ouvindo amigos e familiares
mais experientes. O conhecimento do senso comum é construído por
tentativa e erro e passado pelo boca a boca, de geração a geração.

Teologia é o conhecimento religioso, a fé. As verdades religio-


sas estão registradas em livros sagrados ou são reveladas pelos
deuses (ou outros seres espirituais) por meio de seres humanos
iluminados, santos ou profetas. Em geral essas verdades são con-
sideradas definitivas, e não aceitam uma revisão decorrente da
reflexão ou da experiência. Nesse sentido, é possível diferenciar o
conhecimento divino do conhecimento humano.
Paralelamente ao conhecimento teológico, pode‑se falar de um
conhecimento espiritual, que não está necessariamente ligado à

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Filosofia geral 5

ideia de Deus, mas de autoconhecimento e de uma percepção total


do Universo.
As artes podem também ser consideradas um tipo de conheci-
mento. Afinal, você aprende quando lê um grande romance, assis-
te a um bom filme ou contempla um belo quadro. Refletir sobre
nossas produções culturais é função de um ramo da filosofia, a
estética. Entretanto, ao contrário da filosofia e da ciência, a arte
não pretende ser sistemática nem racional.
Diferentemente do senso comum e das artes, a ciência é racio-
nal e sistemática. As noções de experiência e verificação são es-
senciais para ela. O conhecimento científico deve ser justificado,
sendo sempre passível de revisão, desde que se possa provar sua
inexatidão.
O ciclo do conhecimento científico (especialmente o das
ciências empíricas) inclui observação, produção de teorias para
explicar a observação, teste dessas teorias e seu aperfeiçoamen-
to. Há nas ciências um movimento ondular, que parte da obser-
vação da realidade para a abstração teórica, retorna à realidade e
direciona‑se novamente à abstração, num constante fluxo entre a
experiên­cia e a teoria, como mostra a Figura 1.1.
No Quadro 1.1, vemos um breve resumo dos níveis de conhe-
cimento comentados até agora.
Uma definição interessante de filosofia é proposta por Deleuze
e Guattari (1992, p. 11, 13, 34): a arte de formar, inventar, criar e
fabricar conceitos, além de remanejar e modificá‑los. Grandes fi-
lósofos produzem novos conceitos.
Uma das funções da filosofia é discutir conceitos. Assim, res-
ponder à pergunta “O que é filosofia?” já é um exercício filosófi-
co, já é filosofar. Refletir sobre conceitos problematizados e

  Figura 1.1  Movimento ondular das ciências. 

Teoria Aperfeiçoamento
(abstração) (abstração)

Observação Teste
(realidade) (realidade)

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6 Filosofia e ética

  Quadro 1.1  Os níveis de conhecimento e sua aplicação no dia a dia. 

Empírico (senso comum) – conhecimento que usamos para orientar nossas ações no dia a dia. É o que
nos leva, por exemplo, a não tirar algo do forno quente sem nos protegermos.
Teológico – conhecimento religioso, que em geral não aceita ser questionado. É o que guia as crenças
religiosas.
Espiritual – conhecimento que algumas pessoas utilizam com mais habilidade que outras, nas decisões
intuitivas e que não se baseiam em lógica, mas em elementos pouco tangíveis. Possibilita, por exemplo,
que uma pessoa tenha pressentimentos em relação a situações, pessoas etc., guiando assim suas ações.
Artístico – conhecimento relacionado à produção e apreciação de obras de artes. Permite, por exemplo,
que artistas como Tom Jobim componham músicas lindas e que críticos possam produzir leituras instigan-
tes de obras de arte.
Científico – conhecimento que normalmente os cientistas utilizam em suas descobertas e teorias. Possibi-
litou, por exemplo, que Einstein produzisse sua teoria da relatividade.
Filosófico – conhecimento que vamos explorar neste livro. Ele inspirou brilhantes pensadores como Nietz­
sche, Sartre e Platão.

investigados pela tradição filosófica, relacionando‑os com seu


mundo e sua realidade, é também um exercício de filosofia que
você vai desenvolver durante a leitura deste livro.
A atitude filosófica implica, portanto, uma postura crítica per-
manente, uma consciência crítica sobre o conhecimento, a razão e a
realidade, levando em consideração fatores sociais, históricos e
políticos. Espera‑se que, ao filosofar, você desenvolva seu senso
crítico. Mas o que significa senso crítico?
David Carraher (1993) define que uma pessoa dotada de senso
crítico tem a capacidade de analisar e discutir problemas de forma
inteligente e racional, sem aceitar automaticamente as próprias
opiniões ou as opiniões alheias. O senso crítico envolve uma pos-
tura receptiva e crítica, sempre predisposta a questionar.
Se tiver senso crítico, você pode ser caracterizado como uma
pessoa continuamente indagadora, convencido de que é sempre
possível dar um passo atrás, recuar para questionar os fundamen-
tos, a veracidade e a lógica das informações. Em seus estudos, o
filósofo alemão Nietzsche (1983, p. 150) afirmou:
Daquilo que sabes conhecer e medir, é preciso que te despeças,
pelo menos por um tempo. Somente depois de teres deixado a
cidade verás a que altura suas torres se elevam acima das casas.

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Filosofia geral 7

O pensar crítico compreende a autorregulação e a autocorre-


ção do processo do pensamento. Você não pensa criticamente se
Fique atento
outra pessoa orienta o processo, passo a passo. Portanto, há ne- A filosofia não ensina
cessariamente um elemento de autonomia envolvido no ato de verdades, mas métodos
filosofar. de raciocínio; não
A filosofia pode ser compreendida como o conhecimento so- ensina resultados ou
bre o conhecimento, o conhecimento que toma o próprio conheci- soluções de problemas,
mento como seu objeto. Nessa direção, Charbonneau (1986, mas formas de
p. 15-16) aponta a diferença entre as ciências e a filosofia: explorá‑los,
investigá‑los e procurar
A diferença entre o cientista e o filósofo é [...] fácil de perceber. O suas soluções. Não
cientista se fixa sobre o objeto sem olhar a maneira com que o ensinamos filosofia:
atinge. [...] O filósofo centraliza sua atenção sobre o sujeito que co- ensinamos o filosofar.
nhece e sobre as atividades do espírito, acionadas para apreender
seu objeto.
Seu conhecimento pode (e deve) ser objeto de seu filosofar.
Filosofar envolve pensar investigando reflexivamente sobre si
próprio e seu conteúdo de conhecimentos elaborados e conceitua-
dos, ou em via de elaboração. O objetivo: compreender o processo
de elaboração desses conhecimentos e proporcionar segurança e
orientação adequada à sua utilização prática.
O que importa efetivamente na postura crítica é o caminho in-
telectual que você percorre, e não a propriedade de suas ideias e
afirmações. Ao filosofar, você precisa ser continuamente crítico,
estando sempre pronto a realizar o movimento do passo atrás em
relação a seu próprio conhecimento. Daí a imagem de um pensa-
mento circular, que parece não avançar, frequentemente associada
à filosofia.
Você precisa de esforço e conflito no exercício da filosofia. Fique atento
Existe um trabalho mental considerável envolvido nas elabora-
ções e nos julgamentos necessários ao pensar crítico. De acordo A palavra cognitivo tem

com Carraher (1993), enquanto pensador crítico, você precisa to- a mesma raiz de
conhecer. Ela diz
lerar e mesmo preferir estados cognitivos de conflito, em que o
respeito a nossos
problema ainda não esteja totalmente compreendido. Se ficar an-
processos mentais
sioso por não saber “a resposta correta”, isso pode impedir a ex-
relacionados à
ploração mais completa do problema.
aprendizagem, à
Como dito, o senso crítico exige tolerância a estados cognitivos
percepção, à memória e
de conflito, ou seja, a capacidade de permanecer em dúvida enquan-
ao próprio raciocínio.
to se exploram conceitos. A luz não aparece de imediato, ela pode

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8 Filosofia e ética

demorar, obrigando você a permanecer na penumbra por um bom


tempo; em seguida, ela pode se mostrar sorrateiramente, fugir mais
uma vez, mostrar‑se com mais intensidade, e assim por diante.
Ainda segundo Carraher, não é necessário apenas tolerância
a essas situações, mas também predileção: o pensar crítico ca-
racteriza‑se como uma tendência, uma opção, uma escolha, uma
perspectiva adotada. A filosofia envolve o amor ao saber; o filó-
sofo é um amante da sabedoria. É necessário praticar a dúvida,
tomar distância em relação aos objetos e aos conceitos analisa-
dos, e até mesmo em relação à própria linguagem, para o exercí-
cio da filosofia.
O exercício sistemático da dúvida força você a encarar os
problemas por vários ângulos. O trabalho intelectual amadurece
com a descoberta da necessidade das múltiplas perspectivas: é
preciso sempre deslocar o pensamento e torná‑lo multiperspec-
tivo, evitando fixá‑lo em apenas um ponto de vista. Muitos pro-
blemas exigem que se adote mais de um ponto de vista e que se
estabeleça um diálogo entre eles, de onde surgiria uma possível
solução.
O pensar crítico tende também a ser complexo, já que o cami-
nho todo não é visível (mentalmente falando) de nenhum ponto de
observação isolado. Essa complexidade, porém, não se caracteriza
necessariamente por um pensamento demasiado complexo, mas
pelo fato de que a realidade só pode ser apreendida se observada
de diversos pontos de vista. Com este livro, você vai perceber que
os filósofos em geral discordam, têm pensamentos diferentes. No
entanto, mais do que adotar a visão de um deles, desqualificando
os demais, seu desafio criativo vai ser conseguir enxergar o mun-
do pelos olhos de muitos deles, observar com vários olhos simul-
tâneos, de perspectivas diferentes; enxergar vários mundos,
ampliando assim sua capacidade de análise.

O exercício de filosofar no dia a dia


Para que serve, então, a filosofia? De um lado, para ampliar
sua compreensão sobre a realidade, permitindo a você observar
coisas que não enxergava antes.
Filosofar é um exercício de abrir fissuras no contexto da reali-
dade, que inicialmente parecia compacto. É um exercício de ilu-
minar parcelas ocultas da realidade, de enxergar o mundo de uma
maneira mais complexa. Embora possa parecer paradoxal, em

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Filosofia geral 9

alguns casos a filosofia serve para acalmar, para colocar um pouco


de ordem no mundo, para organizar a bagunça do real e ajudar
você a compreender melhor o sentido e o significado da própria
existência.
Em alguns casos, a filosofia pode ser a lanterna utilizada para
iluminar a realidade, para que você possa enxergá‑la melhor. Em
outros, serve para embaralhar as coisas, sendo uma razão para
você passar mais tempo no escuro, tateando‑o e explorando‑o de
Link
diferentes maneiras, multiplicando os sentidos do escuro. É, as- O site Só Filosofia

sim, um exercício e uma ferramenta múltipla. apresenta várias dicas


para os estudantes
Por tudo o que foi dito até agora, percebe‑se que não há limites
desta disciplina. Faça
para o filosofar. Praticamente qualquer problema, qualquer situa-
uma visita: <www.
ção, qualquer conceito, qualquer porção da vida e da realidade
filosofia.com.br>.
podem ser tomados como objetos da filosofia.

Filosofias brasileiras
Neste tema, você vai conhecer os principais pensadores da fi-
losofia brasileira, suas influências e seu papel no desenvolvimento
das ideias no Brasil.

Existe filosofia no Brasil?


Você sabe algo sobre a filosofia no Brasil? Mesmo sendo brasi-
leiro, provavelmente conhece pouco. A razão disso é que as refle- Saiba mais
xões brasileiras não fazem parte dos manuais oficiais de história A crítica à falta de
da filosofia ocidental. O país também não tem presença destacada na originalidade da
filosofia latino‑americana. filosofia brasileira nos
Quando se fala em filosofia brasileira, é comum a discussão a faz lembrar o Manifesto
respeito de sua originalidade, porque, para muitos, nossa filosofia antropofágico, do
seria uma repetição das filosofias estrangeiras, especialmente a escritor modernista
francesa, a alemã, a inglesa e a norte‑americana. Estas foram, de paulista Oswald de
fato, influências marcantes no país. Andrade. Em certo

Em Crítica da razão tupiniquim, obra de 1977, Roberto Go- trecho, ele ergue o
brado “contra todos os
mes discute a falta de originalidade da filosofia brasileira, que re-
importadores de
fletiria nossa colonização e dependência cultural. Gomes aponta a
consciência enlatada”.
ausência de uma tradição filosófica e de um pensamento brasilei-
ro: temos autores de obras filosóficas, não filósofos. O pensamen-
to do brasileiro não estaria baseado na realidade brasileira, mas,
ao contrário, na mera assimilação de ideias estrangeiras, estranhas
à nossa realidade.

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10 Filosofia e ética

Mas, afinal, o que significaria fazer filosofia em um país fora


Fique atento dos centros de poder do capitalismo? Para Gomes, a verdadeira
Ecletismo é a qualidade filosofia brasileira não se faz na excessiva seriedade das univer-
de quem é eclético. E o sidades, que impedem o desenvolvimento de uma “razão tupini-
que significa ser quim”. A filosofia brasileira só será original quando abandonarmos
eclético? Significa reunir o formalismo importado e descobrirmos o Brasil. Quando levar-
características de várias mos em conta a situação concreta e dermos voz aos filósofos
culturas, doutrinas ou marginais, como Nelson Rodrigues e Lima Barreto, e ao ecletismo­
estilos. Por exemplo: característico da cultura brasileira.
uma banda que mistura
rock, samba e rap em
sua música é uma
banda eclética. Saiba mais
Nelson Rodrigues (1912-1980) foi dramaturgo, escritor e jornalista. O adul-
tério e os dramas familiares eram seus temas preferidos. Suas histórias pi-
cantes, quase sempre passadas no Rio de Janeiro, podem ser conferidas
nas peças Vestido de noiva e Beijo no asfalto − que também têm versões
para o cinema. Já Lima Barreto (1881-1922) foi autor de vários contos e
Saiba mais
romances, entre os quais se destaca Triste fim de Policarpo Quaresma. O
Um dos principais questionamento às tradições culturais e políticas brasileiras é a principal
pesquisadores sobre a marca de sua obra.
filosofia no Brasil,
Antônio Paim nasceu na
Bahia, em 1927. Estudou Isso não quer dizer, entretanto, que não tenhamos uma interes-
filosofia na década de sante história da filosofia nacional, com correntes e pensadores de
1950 na Universidade destaque, inclusive originais, no sentido sugerido por Roberto Go-
Lomonosov, em mes. Você vai ver neste tema um resumo da história da filosofia no
Moscou, e na Brasil, que está diretamente relacionada ao desenvolvimento his-
Universidade do Brasil, tórico e político do país. Por isso, não serão destacados apenas
no Rio de Janeiro. Sua alguns filósofos e suas ideias, mas também pensadores e movi-
carreira universitária mentos que contribuíram ativamente para a cultura nacional, as-
iniciou-se no Rio de sim como alguns acontecimentos importantes em áreas como
Janeiro, na década de política, ciências, educação, artes e literatura.
1960. Foi Paim quem
Segundo um dos principais pesquisadores da filosofia brasilei-
organizou o curso de
ra, Antônio Paim, um dos pontos em que a filosofia nacional se
mestrado em
desenvolve com mais intensidade é na reflexão sobre a liberdade
Pensamento Brasileiro,
e a consciência da pessoa humana. Vamos estudar esses dois as-
na Pontifícia
pectos neste tema.
Universidade Católica
Na discussão sobre a pessoa humana, Paim (2007) destaca Ál-
do Rio de Janeiro.
varo Vieira Pinto (1909-1987), autor de Consciência e realidade

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Filosofia geral 11

nacional (1960, dois volumes), o espiritualista Henrique Lima


Vaz (1921-2002) e os culturalistas Djacir Menezes (1907-1996) e
Miguel Reale (1910-2006), estudioso de Kant e de filosofia do
direito. A ética de Kant é essencial na reflexão sobre o ser huma-
no, e a filosofia do direito também se debruça intensamente sobre
o tema.
Na busca de uma filosofia política no Brasil, Paim enxerga
três vertentes: o liberalismo, o conservadorismo e o tradiciona-
lismo. O liberalismo é uma doutrina baseada na obra do filóso-
fo inglês John Locke, que critica o governo fundado no poder e
na violência, propondo um pacto social que legitime o poder do
Estado por consentimento da sociedade. O liberalismo foi in-
corporado de maneira peculiar pelo pensamento brasileiro, no
final do século XVIII e início do XIX, fundando as bases filo-
sóficas para o movimento de independência, a concepção de
governo e de política que se seguiram e mesmo o movimento
republicano.
A segunda vertente da filosofia política brasileira, para Paim, é
a ascensão das correntes autoritárias e conservadoras na Repúbli- Link
ca, de inspiração positivista, que triunfaram com o Estado Novo, Várias obras de Antônio
marcado pela hegemonia do castilhismo. Paim e de outros
Júlio Prates de Castilhos (1860-1903), governador do Rio Gran- autores que estudam a
de do Sul entre 1893 e 1898, repudiava o sistema de voto popular e filosofia no Brasil estão
defendia que o poder fosse centralizado nas mãos do chefe do Poder disponíveis para
Executivo. Inspirada no positivismo contra o liberalismo, essa dou- download gratuito em
trina política autoritária ficou conhecida como castilhismo. <www.institutode
O governo de Getúlio Vargas e dos presidentes da ditadura mi- humanidades.com.br/
litar representou uma transposição, para o plano nacional, das conselho_academico/
ideias básicas do castilhismo gaúcho. obras_ obrass.php>.
Paim identifica como a terceira e última vertente na filosofia
política brasileira o tradicionalismo político associado à reli-
gião. Baseado em valores tradicionais, como a ideia de autorida-
de, o tradicionalismo (ou conservadorismo) refuta doutrinas Fique atento
contratua­listas, opondo‑se ao liberalismo e ao sistema repre- O positivismo será
sentativo. No Brasil, essa corrente demonstrou uma preferência discutido na Unidade 2.
pela monarquia em relação à república. Sua manifestação mais
radical foi o movimento fascista da Ação Integralista Brasileira,
na década de 1930.

PB Filosofia e Etica Book.indb 11 11/1/12 2:22 PM


12 Filosofia e ética

Saiba mais
Chamamos de doutrinas contratualistas aquelas que defendem a ideia de que os
seres humanos estão em pé de igualdade: ninguém “pode mais” do que o outro
apenas porque nasceu rico, ou porque pertence à nobreza ou a determinada et-
nia. Quem pensa desse modo acha que as pessoas devem estabelecer contratos
(explícitos ou não) para viver em sociedade. A representação política, por exem-
plo, é uma forma de contrato: você vota em um deputado e fica “combinado” que
ele vai representá‑lo na Câmara.

Por fim, Paim divide a história das relações entre filosofia e


ciência no Brasil em quatro fases:
1. a conceituação da ciência como saber operativo, no final do
século XVIII;
2. um novo conceito de ciência, guiado pelo ecletismo e pelo
positivismo;
Fique atento 3. a crítica ao positivismo, com a qual contribuem a Escola de
Recife, a Escola Politécnica do Rio de Janeiro e a Academia
Os neotomistas
Brasileira de Ciências (fundada em 1916 como Sociedade Bra-
retomam a obra de
sileira de Ciências);
Tomás de Aquino
4. conceitos contemporâneos de ciência elaborados pelos neoto‑
(1225-1274), um
mistas, neopositivistas (com destaque para a obra de Leônidas
pensador que vamos
Hegenberg) e culturalistas (com destaque para os textos de Mi-
conhecer na Unidade 2.
guel Reale).
Vamos ver agora como essas e outras questões se desenvolve-
ram na história do Brasil.

Período colonial
A história da filosofia nacional deveria começar com as cos-
movisões (visões do Cosmos), os costumes, a mitologia e a arte
dos índios que habitavam nosso país antes da chegada dos portu-
gueses. Você conhece algum registro escrito das crenças ou da
“filosofia” indígena brasileira?
A filosofia indígena chegou até nós oralmente, por meio da vi-
são de intérpretes, o que pode carregar distorções e interpretações
equivocadas. Ainda precisamos aguardar que a filosofia dos “brasi-
líndios” seja reconstruída com o estudo de documentos históricos.

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Filosofia geral 13

No período colonial, a filosofia portuguesa é que dava as cartas


no Brasil. O ensino e a filosofia dos jesuítas portugueses estavam
subordinados a uma teologia que defendia o catolicismo ortodoxo
como reação à Reforma Protestante. Eles seguiam as ideias de To-
más de Aquino, o que impediu a abertura da filosofia portuguesa
às ideias da filosofia moderna de outras correntes europeias.
Sabe qual era a referência para a pedagogia jesuítica dos por-
tugueses? Um livro chamado Ratio studiorum (1599), que conti-
nha orientações para o educador. O ensino jesuíta em nosso país
se limitava ao ensino médio, com cursos superiores somente de
Teologia e Ciências Sagradas. Durante esse período, não exis-
tiam estímulos para a produção intelectual. Como consequência,
o pensamento brasileiro permaneceu por praticamente três séculos
alheio aos efeitos da filosofia moderna.
O que predominava por aqui era o “saber da salvação”. Tente
imaginar, pelo nome, o que significa esse conceito. O saber da sal-
vação era um tipo de conhecimento marcado por extrema religio-
sidade e desprezo pela condição humana: o indivíduo só precisava
saber o necessário para “salvar” sua alma.
Como a colônia não tinha capacidade para editar livros, as pu-
blicações eram apenas esporádicas. Os textos “filosóficos” se re-
sumiam a manuais para cursos superiores de Teologia e teses para
candidatura ao magistério, enquanto a maior parte das publicações
eram sermões que faziam apologia ao saber da salvação.

Período imperial
Você sabe quem foi Frei Caneca? O pernambucano Joaquim
da Silva Rabelo, também chamado Frei Joaquim do Amor Divi-
no Rabelo, ou simplesmente Frei Caneca (1774-1825), foi uma
personalidade de destaque na transição da Colônia para o Impé-
rio. Ele criticava o absolutismo e a concentração de poder na
figura do imperador, propondo a independência e um governo
constitucional.
Reivindicava, ainda, a participação ativa do clero na vida
política brasileira, com o argumento de que as sociedades ci-
vis nasciam do mandamento divino. Em defesa dessas ideias,
Frei Caneca se envolveu intensamente em diversos movimen-
tos políticos radicais, como a Revolução Pernambucana (1817)
e a Confederação do Equador (1824), além de ter atuado como
jornalista.

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14 Filosofia e ética

Fique atento
Depois que os jesuítas foram expulsos, na segunda metade do século XVIII, en-
trou em voga uma nova concepção de filosofia, que se reduzia à ciência aplica-
da. Era o chamado empirismo mitigado. Mas, no Império, o empirismo mitigado
também ficou para trás, e a filosofia brasileira passou a ser dominada pelo ecle‑
tismo espiritualista, inspirado nos pensadores franceses Maine de Biran (1766-
1824) e Victor Cousin (1792-1867). O ecletismo espiritualista (ou espiritualismo
eclético), que pode ser considerado a primeira corrente filosófica estruturada no
Brasil, procurou fundir ideias de vários sistemas filosóficos, incorporando‑as à
tradição brasileira. A filosofia intuicionista de Maine de Biran buscava conciliar o
sensualismo e o racionalismo; Victor Cousin, por sua vez, pregava a fusão do
historicismo, do psicologismo e do espiritualismo como método.

A partir da superação do empirismo mitigado, o ecletismo es-


piritualista, formulado por Biran e divulgado por Cousin, é então
absorvido no Brasil no início do século XIX. Sua capacidade de
superar a antítese entre ciência e cristianismo, baseando‑se em
uma visão espiritualista do ser humano, é o que mais interessa à
filosofia brasileira. Esse espiritualismo, entretanto, é adaptado às
circunstâncias históricas do Brasil na época, que envolviam a ne-
cessidade de construção de um sentimento de nação, a organiza-
ção do Estado e a prática da representação política.
O ecletismo espiritualista acabou sendo superado pela crescen-
te influência de novas ideias na transição para a República, como
o darwinismo, o determinismo e o positivismo.
Acompanhado de vários acontecimentos – entre eles a funda-
Fique atento
ção do Partido Republicano e da Sociedade Positivista, a reforma
Muitos dos nomes e do Colégio D. Pedro II, a organização da Escola Politécnica e a
conceitos filosóficos fundação da Escola de Minas de Ouro Preto −, o período imperial
citados aqui serão foi fortemente marcado pela emergência de novas ideias e por um
detalhados na espírito crítico. Isso começou principalmente a partir da década de
Unidade 2.
1870, com a repercussão das ideias de Comte, Darwin e dos hege-
lianos de esquerda, associados a uma crítica religiosa.
O movimento filosófico brasileiro de maior destaque nesse tem-
po foi a Escola de Recife, que, inspirada na filosofia de Kant, não só
reagia contra o ecletismo espiritualista, mas também contra o posi-
tivismo. Seu principal representante foi o jurista, ensaísta, crítico,
filósofo, jornalista e poeta sergipano Tobias Barreto (1839­‑1889).

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Filosofia geral 15

Segundo Antônio Paim, as obras de Barreto criticam e procuram


superar o determinismo de Comte e restaurar a metafísica − enten-
dida como a parte da ciência preocupada exclusivamente com a teo-
ria do conhecimento. Para Paim, o principal questionamento da
filosofia de Barreto é: “O que posso eu saber?”.

Período republicano
Com a Proclamação da República, o país começou a se rees-
truturar do ponto de vista administrativo. A partir de então, surgi-
ram importantes instituições culturais no país. No final do século
XIX, foram fundadas escolas superiores, institutos de pesquisa
(como o Instituto Butantan, em São Paulo, e o Instituto Oswaldo
Cruz, no Rio de Janeiro, ambos em 1899) e comissões geográficas
e geológicas. Além disso, um grande número de faculdades pas-
sou a oferecer o ensino superior de filosofia.

República Velha e positivismo


Se você tivesse vivido no período da República Velha (1890­
‑1930), poderia ter acompanhado a ascensão do positivismo no
pensamento brasileiro. Nesse período, ele foi mais do que uma fi-
losofia técnica: suas ideias se espalharam amplamente, o que fica
claro pela inclusão delas na primeira Constituição republicana.
O principal representante da corrente militar positivista foi
Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891), professor
da Academia Militar e fundador da Sociedade Positivista no Rio
de Janeiro. Benjamin Constant foi um dos líderes do movimento
militar que proclamou a República e autor de uma importante re-
forma do ensino primário e secundário.
Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1956), que defendia
o naturalismo e o cientificismo, também precisa ser mencionado.
Rondon ficou conhecido pela exploração de Mato Grosso e da
Bacia Amazônica e pela defesa das populações indígenas.
O desdobramento mais decisivo do positivismo foi a formulação
de uma doutrina política autoritária em substituição ao liberalismo.
O castilhismo, conforme comentamos há pouco, tornou‑se a doutri-
na dominante durante os governos de Getúlio Vargas (1930-1945 e
1951-1954). Como vimos, o castilhismo pregava a tutela do Estado
sobre os cidadãos e a concentração de poderes no Executivo.

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16 Filosofia e ética

Vinculadas ao positivismo estão as reformas do ensino primá-


Saiba mais rio e secundário baseadas na primazia da ciência, assim como a
Antônio Paim aponta manutenção do ensino superior restrito aos cursos profissionali-
um fato curioso no zantes, com a proibição da criação de universidades.
Brasil: as ideias Podemos ainda citar o positivismo ilustrado, que funcionou
marxistas tornaram‑se como uma espécie de resistência ao castilhismo, posicionando‑se
muito populares, mas, politicamente a favor da democracia liberal.
ao mesmo tempo, A partir da década de 1920, marcada por importantes reformas
pouca gente se estaduais, começaram as articulações para a consolidação de uma
interessou em estudar a cultura científica no país, inclusive com a ideia da universidade
teoria marxista
como reação ao positivismo.
propriamente dita. A
razão para isso,
segundo ele, é que no Estado Novo
Brasil se desenvolveu A partir da década de 1930, começamos a assistir no Brasil a um
uma versão positivista declínio da influência do positivismo. O governo Vargas restaura a
do marxismo, aliança com a Igreja Católica, diminuindo assim o prestígio da Igreja
caracterizada pela Positivista (fundada em 1881 para divulgar a religião da humanidade
combinação entre proposta por Comte). É importante também o papel da Academia de
algumas teses de Marx
Ciências, ligada ao pensamento científico contemporâneo.
e de Comte. O profundo
Em 1932, foi publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educa-
desenvolvimento do
ção Nova, liderado por Fernando de Azevedo e assinado por Afrâ-
positivismo em nosso
nio Peixoto, Anísio Teixeira, Júlio de Mesquita Filho e Cecília
país, que você viu neste
tema, e a excessiva
Meirelles, entre outros. A obra defende a educação obrigatória,
simplificação da teoria
pública, gratuita e laica como dever do Estado.
marxista teriam Em algumas passagens, fica clara a defesa da substituição de
garantido, no Brasil, a uma aprendizagem passiva pela construção do conhecimento por
constituição desse parte do educando. Isso inclui a ideia de personalização da educa-
“marxismo positivista”. ção, além da crítica à redução do ensino superior à formação tec-
nicista, com destaque para a importância da formação humanista.
Todos esses aspectos fazem parte, ainda hoje, de um debate inten-
so sobre a filosofia da educação no Brasil.
Nessa época, houve também um movimento de valorização da
ideia de universidade, com a participação da Associação Brasilei-
ra de Educação (ABE) e a criação da Universidade de São Paulo
(1934) e da Universidade do Distrito Federal, na então capital Rio
de Janeiro (1935, que durou somente até 1939).
Paralelamente ao declínio do positivismo, o marxismo se de-
senvolveu no Brasil na década de 1930, tanto no plano político
quanto no acadêmico.

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Filosofia geral 17

Filosofia brasileira contemporânea


Não é tarefa simples definir o início da filosofia contemporâ-
nea brasileira. Você pode considerar como contemporâneas as
correntes filosóficas que se opõem ao cientificismo positivista do-
minante na República Velha. Esse é o mesmo critério utilizado por
Paim (2007), que considera que a reação ao positivismo marca
nosso ingresso no período contemporâneo da filosofia.
Nesse sentido, contemporâneo tem muito mais o sentido de
novas ideias do que de tempo corrente. Por isso, você vai perceber
que alguns autores mencionados nesta seção foram contemporâ-
neos de pensadores já estudados nesta unidade.
Podemos identificar pelo menos quatro grandes tendências da
filosofia contemporânea brasileira:
Neopositivismo – originou‑se da revisão da teoria da ciência
do positivismo em decorrência de progressos, principalmente
na área da física.
Escola Católica – Inicialmente, era ligada ao movimento neo-
tomista, que resgatava o conjunto de doutrinas e pensamentos
filosóficos de Tomás de Aquino. Hoje, a filosofia católica bra-
sileira apresenta múltiplas correntes, não mais ligadas exclusi-
vamente ao neotomismo. Uma dessas vertentes tem procurado
enfrentar os problemas das desigualdades sociais e da pobreza,
e um de seus mais famosos representantes é Paulo Freire
(1921-1997), referência mundial em filosofia da educação.
Fenomenologia/existencialismo – influenciados em grande
parte no Brasil pelo método filosófico de Husserl, pensador
que propõe a filosofia como uma descrição da experiência vi-
vida da consciência. A influência do existencialismo se conso-
lidou com uma série de conferências de Jean‑Paul Sartre, um
dos maiores pensadores mundiais do existencialismo e da fe-
nomenologia, ocorridas no Rio de Janeiro, em 1961.
Culturalismo – fundamenta‑se no pensamento de Kant, de-
fende a pluralidade de perspectivas em filosofia e busca recu-
perar a tradição filosófica nacional.

Filosofia hoje
Neste tema, você vai ver um panorama da filosofia hoje, no
mundo e no Brasil, com destaque para algumas áreas de aplicação

PB Filosofia e Etica Book.indb 17 11/1/12 2:22 PM


18 Filosofia e ética

da filosofia, sua relação com as profissões e a maneira como ela


é ensinada.

Filosofia para crianças


Você gostaria de que seu filho aprendesse filosofia? Parece in-
Link teressante? Pois saiba que há um movimento mundial voltado ao
Quer conhecer um ensino de filosofia para crianças, inaugurado com os trabalhos de
pouco mais sobre o Matthew Lipman.
Instituto para o Avanço Ao lado de Ann Margareth Sharp, Lipman dirige o Ins­tituto para
da Filosofia para o Avanço da Filosofia para Crianças (IAPC, na sigla em inglês),
Crianças (IAPC)? Visite o vinculado à Universidade do Estado de Montclair, nos Estados Uni-
link <cehs.montclair. dos. Reconhecido pela Associação Americana de Filosofia (APA,
edu/academic/iapc/>.
na sigla em inglês) por sua excelência e inovação, o IAPC fornece
materiais curriculares para o engajamento de crianças e jovens na
investigação filosófica, além de formar professores para o ensino da
matéria. O IAPC também conduz pesquisas filosóficas e empíricas
sobre o ensino pré‑universitário de filosofia e os usos da filosofia
para objetivos educacionais, incluindo o pensamento crítico e cria-
tivo, a democracia social e o julgamento ético. Desde 1974, o IAPC
e seus centros afiliados em todo o mundo têm sido os grandes res-
ponsáveis pelo encontro entre crianças e a filosofia.
Mas qual seria a utilidade da filosofia para crianças? O IAPC
responde que até recentemente se pensava que a filosofia era mui-
to difícil e desinteressante para os pequenos. No entanto, repare
quantas questões filosóficas são tipicamente feitas por crianças a
partir dos 4 ou 5 anos:
Fantasmas são reais?
Quando papai me diz para ser bom, o que isso quer dizer?
O que faz alguém se tornar o melhor amigo?
O que as pessoas querem dizer quando falam que me amam?
Para onde foi meu avô? (em situação de morte)
Por quê? (em situações em que a criança acha que algo não é
justo)
Por que o tempo é às vezes tão lento?
Por que meus pais dizem que eu devo dizer a verdade?
Por que as pessoas acham que minha boneca é uma coisa? (a
criança acredita que sua boneca é uma pessoa)
Muitas dessas questões não são apenas “perguntas de criança”,
porque, como adulto, você continua a se fazer questionamentos
semelhantes. Durante a leitura deste livro, você vai perceber que

PB Filosofia e Etica Book.indb 18 11/1/12 2:22 PM


Filosofia geral 19

elas podem ser feitas e respondidas de diversas maneiras, de acor-


do com os pensamentos dos diferentes filósofos e movimentos.
A experiência dos últimos 30 anos em pensar filosofia para
crianças e adolescentes tem mostrado ao IAPC que as crianças
não apenas são capazes de filosofar, mas também apreciam a filo-
sofia e precisam dela, assim como os adultos.
Elas pensam e refletem sobre seus pensamentos. A filosofia
lhes oferece a oportunidade de explorar conceitos comuns, mas
intrigantes, para melhorar sua forma de pensar. Além disso, possi-
bilita que deem mais sentido a seu mundo e descubram por si mes-
mas o que deve ser valorizado e estimado na vida.
No terceiro quarto do século XX, a ciência passou a reconhe-
cer que as crianças são capazes de pensar crítica e criativamente.
O início do movimento de filosofia para crianças coincide com
esse momento.
Você percebe, então, a importância de melhorar o raciocínio e o
julgamento dos pequenos por meio do ensino da filosofia? Segundo
o IAPC, esses benefícios não vêm pelo aprendizado da história da
filosofia ou dos filósofos, e sim com o envolvimento ativo na inves-
tigação filosófica rigorosa.
A filosofia também inclui a disciplina de Ética. Desse modo, a
filosofia para crianças pode ser um programa ideal para a educação
de valores.
A experiência infantil é repleta de preocupações e questões éti-
cas, embora as crianças tenham apenas vaga consciência disso.
Televisão, Internet e outros meios de comunicação expõem a elas
ideias e imagens que normalmente são reservadas somente a adul-
tos. Em vez de impor um conjunto de valores prescritos para os
pequenos, a filosofia para crianças pretende ajudá‑las a fortalecer
sua própria capacidade de avaliar e responder às alternativas pos-
síveis, a autocorrigir seus hábitos de pensamento, sentimento e
ação por meio da investigação ética. Além disso, a natureza igua-
litária, o compromisso com diferentes pontos de vista e a insistên-
cia sobre o valor inerente de todos os participantes, na filosofia
para crianças, ajuda a promover empatia e comportamento pró‑so-
cial como base essencial para a educação de valores.
Você tem ideia de como seria uma aula de filosofia para crian-
ças? O IAPC explica que os alunos começam as sessões lendo em
voz alta ou representando uma história tipicamente filosófica,
que retrate crianças ficcionais descobrindo e explorando questões

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20 Filosofia e ética

filosóficas e aplicando seu raciocínio a situações da vida. Os alu-


nos então identificam na história as questões que estão interessa-
dos em discutir, colaborando na construção da agenda ou plano
de aula.
Para o restante da sessão, e para as próximas, eles deliberam sobre
essas questões como uma comunidade de investigação filosófica. As
investigações podem originar projetos de ação ou obras de arte, mas,
em qualquer caso, devem resultar na reflexão e possível correção das
crenças, dos sentimentos ou valores prévios dos participantes.
A comunidade de investigação é o material de estímulo mais
eficaz na prática central da filosofia para crianças. Participar de
uma comunidade de investigação envolve os jovens em importan-
tes movimentos cognitivos, como criar hipóteses, esclarecer ter-
mos, solicitar e fornecer boas explicações, oferecer exemplos e
contraexemplos, questionar as suposições dos outros, fazer infe-
rências e seguir a investigação aonde ela levar.
Mas a investigação é também um empreendimento social, que
exige que os alunos partilhem suas próprias perspectivas, escutem
uns aos outros, “leiam” seus rostos, se desafiem e criem sobre o
pensamento dos outros, procurem perspectivas que estejam fal-
tando e reconstruam suas próprias ideias. Dessa forma, habilida-
des cognitivas e sociais são adquiridas naturalmente e em contexto,
e não em exercícios isolados.
As crianças que estão tendo seu primeiro contato com a fi-
losofia precisam da ajuda de um facilitador. Ele atua como um
coinvestigador ao lado delas. No entanto, quando se trata de pro-
cedimentos de investigação, o facilitador tanto orienta as crian-
ças quanto serve de modelo para elas, fazendo perguntas abertas,
propondo pontos de vista alternativos, buscando esclarecimento,
questionando pensamentos e demonstrando comportamento au-
tocorretivo. É por meio desse tipo de modelagem que as crianças
internalizam os procedimentos da investigação. Os facilitadores
são ensinados a não impor opiniões oficiais para os alunos nem
tentar validar todas as opiniões de forma relativista, como se
“valesse tudo”.
O objetivo dessas sessões de filosofia não é encontrar res-
postas definitivas para as questões levantadas nem chegar a um
acordo completo entre os membros da comunidade. Assim, um
diálogo verdadeiro e produtivo acontece, deixando de ser simples
conversas animadas.

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Filosofia geral 21

A filosofia para crianças tem dois tipos de objetivo: progresso


em lidar com as questões filosóficas, o que pode incluir crenças
adaptadas, novas hipóteses para o experimento ou mesmo esclare-
cimentos sobre perguntas; e crescimento nos procedimentos cog-
nitivos e sociais de investigação.
Hoje, além da metodologia do IAPC, existem várias aborda-
gens para esse trabalho, muitas das quais não derivam do trabalho
precursor desenvolvido pelo IAPC.
No Brasil, merece destaque o Centro Brasileiro de Filosofia
para Crianças (CBFC), afiliado ao IAPC. O CBFC oferece, por
exemplo, material didático, como diversas histórias filosóficas
traduzidas para o português.
Cabe ainda lembrar que a filosofia, assim como a sociologia,
tornou‑se recentemente disciplina obrigatória no ensino médio no
Brasil.
Conhecendo um pouco mais sobre a filosofia e seu ensino para
crianças, você acredita que ela pode ser útil na educação infantil?
A filosofia ajuda a formar jovens, desenvolver­seu senso crítico e
contribuir para uma sociedade mais democrática, marcada pela
cidadania e responsabilidade social.

Filosofia para adultos


Você já leu o livro O mundo de Sofia, escrito pelo professor
norueguês Jostein Gaarder? Lançado em 1991, esse romance con-
ta a história da filosofia. O mundo de Sofia tornou‑se um best‑sel-
ler mundial, vendendo milhões de exemplares, o que demonstra o
interesse do público jovem e adulto pelo tema. Se a filosofia é
importante para as crianças, imagine para os adultos...
Várias universidades oferecem também uma ou mais disci-
plinas de filosofia em seus cursos de graduação e pós‑graduação­.
Também existem, é claro, cursos de graduação e pós‑graduação
de filosofia, oferecidos em geral por universidades públicas ou
católicas no país. Em muitos casos, profissionais que já fize-
ram outros cursos superiores, e inclusive já têm uma posição
profissional definida e uma idade mais avançada, optam por
filosofia como um segundo curso para completar e solidificar
sua formação.
Vejamos agora exemplos de relações entre a filosofia e algu-
mas profissões.

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22 Filosofia e ética

Administração
Saiba mais
Você acha estranho que um administrador precise ter conheci-
Uma dica de leitura mentos sobre filosofia? A princípio, pode parecer que sim. Afinal,
especial para os a administração deve sempre estar atenta ao mercado, não é mes-
administradores mo? E o filósofo não vive no mundo da lua, nas nuvens?
interessados em Ao contrário, Roberto de Mello e Souza defende a ideia de que
filosofia é: MATTAR, o executivo, no mundo moderno, precisa ampliar seus horizontes
João. Filosofia e ética na intelectuais para não correr o risco de se tornar apenas um técnico,
administração. 2. ed. São em vez de um verdadeiro administrador.
Paulo: Saraiva, 2010.
Para tema, escolhi algumas notas sobre história da filosofia cujo
estudo tanto me tem alegrado, formado e desenvolvido, me
tem ensinado literalmente a “pensar” melhor e portanto a enxer-
gar mais claramente meu mundo de administrador profissional,
a tomar decisões mais adequadas, a ter mais equilíbrio, a ser
Link mais criativo, a julgar com mais sabedoria. (Mello e Souza,
Para compreender um 1992, p. 15)
pouco mais como
funciona a filosofia
clínica, você pode ler Filosofia clínica
on‑line o livro Filosofia Você conhece a filosofia clínica? É um interessante campo
clínica − Propedêutica de de atuação para filósofos, próximo da atuação dos psicólogos.
Lúcio Packter, disponível A filosofia clínica é parte da filosofia acadêmica direcionada
em: <www. ao consultório, à clínica. É uma atividade realizada em hospi-
filosofiaclinica.com.br/
tais, escolas e instituições por todo o país. Com base nos traba-
Filosofia_Clnica_-_
lhos do filósofo gaúcho Lúcio Packter, desde o final dos anos
Propedeutica.pdf>.
1980, essa vertente se difundiu no Brasil e no exterior.
Há diversos centros pelo país que oferecem cursos de filoso-
fia clínica. Eles são autônomos uns dos outros, ainda que todos
respeitem o código de ética e o estatuto do filósofo clínico. Todos
eles também têm um programa em comum: historicidade, exames
das categorias, estrutura do pensamento, procedimentos clínicos,
Fique atento planejamento clínico e ética profissional. A partir dessa base, cada
centro coloca algumas disciplinas complementares que digam
A filosofia clínica é um
bom exemplo da
respeito às peculiaridades da região onde funciona. Por exemplo:
aplicação direta da antropologia filosófica, lógica, tradição regional etc.
filosofia em uma A parte teórica do curso de formação em filosofia clínica cos-
profissão que, aliás, foi tuma durar de 18 a 24 meses. Se o aluno tiver interesse em ser um
criada em nosso país. pesquisador, sem atividade de consultório, pode acompanhar as
aulas, fazer os trabalhos solicitados e depois se registrar na

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Filosofia geral 23

Associação Nacional de Filosofia Clínica como pesquisador. No


entanto, se desejar exercer a atividade clínica, enquanto estuda a
parte teórica, pode iniciar uma clínica didática com seu professor
ou com um profissional indicado por ele. Depois, após passar por
todos os procedimentos, estágios e exames cabíveis, o estudante
recebe o certificado de habilitação à clínica.
Você pode ser filósofo clínico se tiver formação em filosofia e
cursar a pós‑graduação em filosofia clínica. Médicos, psicólogos,
dentistas, fisioterapeutas e outros profissionais podem utilizar
parte do que aprenderam em filosofia clínica em suas atividades,
como pesquisadores ou especialistas em filosofia clínica, mas não
podem se intitular filósofos clínicos.
Links
Outros exemplos A filosofia clínica tem
Há inúmeros outros exemplos da aplicação da filosofia em dife- site no Brasil: <www.
rentes profissões. A filosofia dialoga constantemente com todas as filosofiaclinica.com.br>.
ciências humanas. A filosofia do direito, por exemplo, é um ramo E os filósofos clínicos
têm entidade
essencial que se confunde com a jurisprudência geral. A ética pro-
representativa no país.
fissional é comum a todas as profissões reconhecidas. No caso de
Conheça: <www.anfic.
profissões ligadas às ciências biológicas, a bioética e a ética médica
org>.
são campos com os quais a filosofia contribui decisivamente.

Exercícios de fixação
1. Qual é o significado etimológico da palavra 4. Em quais períodos históricos a filosofia brasi-
filosofia, isto é, o significado ligado à sua ori- leira pode ser dividida?
gem, na língua grega? 5. Quais são as principais vertentes da filosofia
2. O que é filosofia para você? brasileira contemporânea?
3. Além do conhecimento filosófico, que ou- 6. O que é filosofia clínica?
tros níveis de conhecimento poderíamos 7. Mencione uma razão para ensinar filosofia
citar? para crianças.

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24 Filosofia e ética

Panorama
A morte, como experiência humana, também familiares ou de seu representante legal, e estaria
pode ser investigada filosoficamente. O que a fundamentada nos princípios constitucionais da
morte representa para você? Ela é o fim, ou ape- dignidade e de que ninguém pode ser subme-
nas um passo para uma vida diferente? Você acei- tido a tortura nem a tratamento desumano ou
taria fazer um aborto, ou desligar os aparelhos degradante.
que mantêm seu pai ou sua mãe vivos? Como você pode imaginar, a resolução do CFM
Leia o primeiro artigo da Resolução 1.805/2006 provocou e continua a provocar muita polêmica.
do Conselho Federal de Medicina (CFM), publica- A resolução foi elogiada por médicos e até por
da em 28/11/2006, no Diário Oficial da União: setores da Igreja Católica, mas foi também criti-
É permitido ao médico limitar ou suspender cada principalmente por advogados, pois, se-
procedimentos e tratamentos que prolonguem gundo eles, seria imoral e ilegal. Para muitos, a
a vida do doente, garantindo‑lhe os cuidados resolução significaria a legalização do assassina-
necessários para aliviar os sintomas que levam to e possibilitaria que pessoas fossem mortas por
ao sofrimento, na perspectiva de uma assistên- interesses diversos, em condições bastante dife-
cia integral, respeitada a vontade do paciente rentes das que o CFM teve em mente quando
ou de seu representante legal. elaborou a resolução.
O CFM defende que não se trata de eutanásia, o
que seria um crime no sentido de provocar a morte
do doente. Para o CFM, a resolução trataria da orto- Exercício
tanásia (ou eutanásia passiva), o ato de não usar Após a leitura deste panorama, realize uma dis-
recursos que prolonguem artificialmente a vida. cussão filosófica com os colegas a respeito da
A decisão de suspender o tratamento deve- morte e do que ela representa na sociedade
ria respeitar a vontade do paciente, de seus contemporânea.

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Filosofia geral 25

Recapitulando

N
esta unidade, você aprendeu um tido, a filosofia foi fundamental para o desenvol-
pouco sobre o que é filosofia, sua uti- vimento das ciências.
lidade enquanto atividade humana e No Brasil, como você pôde ver, a filosofia não é
sua importância para o desenvolvimento do muito desenvolvida. O país é muito influenciado
conhecimento. por conceitos e conhecimentos de países estran-
Filosofia é uma palavra criada na Grécia antiga e geiros, o que limita a criação de uma tradição filo-
significa “amor ao saber”. Filosofar, portanto, é sófica própria.
uma atividade de diálogo com o conhecimento. Ao final da unidade, você pôde conhecer um pou-
O filósofo precisa conversar consigo mesmo para co o trabalho de ensino de filosofia para crianças e
aprimorar seu próprio conhecimento. Nesse sen- a aplicação dessa disciplina em outras profissões.

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unidade 2
História da filosofia
Objetivos de aprendizagem
Analisar a filosofia ocidental do ponto de vista histórico.
Diferenciar as diversas escolas filosóficas ocidentais.
Conhecer os grandes filósofos ocidentais da Antiguidade.
Entender a importância da religião para a filosofia medieval.
Conhecer os principais filósofos medievais.
Diferenciar as principais correntes filosóficas modernas.
Analisar aspectos da passagem da Idade Média para a Idade Moderna.
Conhecer os maiores nomes da filosofia moderna.

Temas
1 – Filosofia antiga
Você já ouviu falar em Sócrates, Platão e Aristóteles? Eles são os três
grandes nomes da filosofia antiga, surgida na época em que as mais
importantes civilizações do mundo eram a grega e a romana. Neste
tema, você vai conhecer a passagem da mitologia à filosofia na Gré-
cia Antiga, os filósofos pré‑socráticos, os sofistas e os três grandes
pensadores mencionados no início do parágrafo.
2 – Filosofia medieval
Neste tema, você vai conhecer detalhes sobre a filosofia na Idade
Média, com destaque para alguns filósofos, como Santo Agostinho e
Tomás de Aquino.
3 – Filosofia moderna
Você conhece autores como Descartes, Pascal, Spinoza e Leibniz?
Neste tema, você vai conhecer a filosofia moderna, cujos autores
mencionados são os principais expoentes, e suas principais corren-
tes, como empirismo, iluminismo e idealismo.
4 – Filosofia contemporânea
Apesar de historicamente mais próxima de nós, a filosofia contem-
porânea é de mais difícil entendimento. Vamos discuti‑la no último
tema desta unidade.

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28 Filosofia e ética

Introdução
Quando falamos em filosofia antiga, estamos nos referindo àquela
produzida no período histórico conhecido como Antiguidade. A
maior parte dos filósofos antigos escreveu (ou relatou, porque boa
parte dessa produção não está documentada) seus pensamentos en-
tre os séculos VI a.C. e IV d.C.
A filosofia ocidental nasceu na Grécia Antiga (mas isso não significa
que não se filosofava antes dos gregos). Você vai conhecer, nesta uni-
dade, os filósofos pré‑socráticos, os sofistas e os três principais nomes
Saiba mais
da filosofia antiga: Sócrates, Platão e Aristóteles.
Pela comparação entre Na Idade Média, período marcado pela forte influência da Igreja, a fi-
duas palavras gregas, losofia abordava basicamente um assunto: a religiosidade. Aqui, você
mýthos e lógos,
vai conhecer melhor a filosofia medieval e dois de seus principais no-
podemos entender a
mes: Santo Agostinho e Tomás de Aquino.
transição da mitologia
Na sequência, veio o Renascimento, período de decadência da in-
para a filosofia. No
início, a palavra mýthos
fluência religiosa e de ascensão das artes e das ciências. Empiris-
(mito) não tinha o mo, iluminismo e idealismo − essas são as principais correntes
significado de lenda dessa fase.
que tem hoje, e sim o A filosofia moderna, que você também vai conhecer melhor nesta
de “explicação para o unidade, é representada pelos pensamentos de autores como Des-
mundo”. Aos poucos, na cartes, Pascal, Spinoza e Leibniz.
Grécia Antiga, ela A filosofia contemporânea, cujo início gera discordância, também
perdeu lugar para a será discutida em detalhes.
palavra lógos (razão), Nesta unidade, você vai estudar um pouco da obra de Schopenhauer,
que assume esse Nietzsche e Marx, alguns dos principais filósofos contemporâneos.
sentido de explicação
Prepare‑se. Essa longa viagem no tempo começa agora!
da realidade, enquanto
mýthos passa a
significar lenda, fantasia.
Vemos, assim, que a
Filosofia antiga
razão, o pensamento Pré‑socráticos
racional – essa forma de
Os filósofos pré‑socráticos são assim denominados porque vi-
pensar que nos parece
veram e desenvolveram seu pensamento antes de Sócrates (mas
única, natural – surge
esse não é o caso de todos), e principalmente porque possuíam
em certo momento
histórico como forma
uma unidade temática. Considerados os primeiros filósofos oci-
de explicar a realidade.
dentais, os pré‑socráticos escreviam por aforismos ou máximas, de
forma profética.

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História da filosofia 29

Suas preocupações básicas não eram os deuses ou heróis, mas


a origem e o destino do Universo e as transformações das substân-
cias. Eles procuravam definir um elemento primordial (arché) Fique atento
para o Cosmos, que passou a ser compreendido pela razão huma- Quase todos os filósofos
na. Eram observadores e estudiosos da natureza, por isso são tam- pré‑socráticos surgiram
bém chamados “filósofos da natureza”. em uma cultura
Nos próximos itens, você vai conhecer os filósofos pré‑socrá‑ pré‑alfabetizada. Não há
ticos mais importantes, por meio de alguns comentários gerais informações muito
sobre suas ideias. O complemento ao nome dos filósofos refere‑se confiáveis sobre a vida
à cidade em que cada um nasceu. desses homens, a não
ser alguns fragmentos
Tales de Mileto (século VI a.C.) de suas obras, o que
impossibilita uma
Você imagina a vida humana sem a água? Para Tales de Mile-
compreensão mais
to, considerado o primeiro filósofo, o princípio absoluto de todas
profunda de seu
as coisas era a água. Assim como Anaximandro e Anaxímenes,
pensamento. Os
Tales é classificado como monista (de mónos, único), ou seja, para
fragmentos são
ele, a origem da realidade se reduz a apenas um elemento. Ele
conhecidos
acreditava que todo ser provém do estado de umidade e que a
indiretamente, por
própria Terra flutuava sobre a água.
citações e paráfrases de
autores que viveram
Anaximandro de Mileto (século VI a.C.) muito tempo depois
Para Anaximandro, discípulo de Tales, o elemento determinan- deles.
te para a origem do Universo era diferente: áperion, o indetermi-
nado, infinito, indefinido ou ilimitado. Aqui, já podemos perceber
uma diferença essencial na cosmologia: a origem do Universo não
é mais um elemento sensível, material, observável, mas um ele-
mento intelectual. Anaximandro explorou também a biologia e a
astronomia.

Anaxímenes de Mileto (século VI a.C.)


Para Anaxímenes, o ar (pneuma) era o elemento que determi-
nava a origem do Universo. Segundo o filósofo, as coisas nascem
do ar e a ele retornam quando se corrompem, por diversos proces-
sos, como a rarefação e a condensação. O ar seria um princípio ao
mesmo tempo invisível e físico, intelectual e sensível. O sopro da
respiração é identificado com a vida, em seu sentido mais amplo,
e o Cosmos seria criado e mantido por um movimento de respira-
ção gigante.

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30 Filosofia e ética

Pitágoras de Samos
(aproximadamente 550-500 a.C.)
Você conhece o teorema de Pitágoras? Se não lembra exata-
mente, certamente você se recorda do nome do autor. Pitágoras foi
um importante nome da Grécia Antiga.
Nenhum de seus escritos, no entanto, chegou até nós. No sécu-
lo V a.C., seu discípulo Filolau começou a registrar por escrito
seus ensinamentos, mas suas obras também se perderam. As pri-
meiras biografias de Pitágoras foram registradas apenas oito sécu-
los depois de sua existência, por Iamblichus e Porfírio.
A partir do século IV a.C., a influência de Pitágoras diminuiu,
vindo a renascer no século I a.C., com o chamado neopitagorismo,
que abrigou vários escritores cujas obras sobreviveram.
Além de escola filosófica, o pitagorismo foi uma seita política,
religiosa e moral que exerceu muita influência na Antiguidade. No
Renascimento, Pitágoras foi retomado como um homem ilumina-
do e até hoje é cultuado pelas seitas esotéricas.
Para os pitagóricos, os números explicariam o Universo. Tudo
tem relação com os números − assim, a matemática e a geometria
tornam‑se elementos essenciais para a compreensão do mundo.
É importante destacar o caráter formal e abstrato do número,
em comparação com outros elementos concretos adotados como
princípios da realidade pelos pré‑socráticos (água, ar, terra etc.).
Entretanto, devemos lembrar que a concepção de números e de
unidade, para os pitagóricos, é distinta da que temos hoje.
A crença na imortalidade e na reencarnação da alma (metempsi-
cose) também marca o movimento, exercendo influência posterior-
mente na obra de Platão. O interesse de Platão pela matemática (por
conceitos, não pela realidade empírica) tem origem pitagórica.

Heráclito de Éfeso (séculos VI‑V a.C.)


Conhecido na Antiguidade como “o Obscuro”, dada a dificul-
dade de interpretação de seus escritos, Heráclito acreditava que o
fogo (pyr) era o elemento primordial para explicar o mundo. Para
ele, a tensão, o combate entre os opostos, a mudança e a dialética
são os princípios do Universo, enquanto a razão governa o mundo
e mantém sua ordem. Podemos considerar Heráclito o primeiro
antropólogo, porque, para ele, o homem é também objeto de sua
própria filosofia.

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História da filosofia 31

Parmênides de Eleia (século V a.C.)


Escrita em versos, a obra de Parmênides tinha estilo diferente
do dos mitos – ela afirmava a identidade entre o ser e o pensamen-
to. Para esse filósofo, o ser é uno, inalterável, eterno, imóvel e
indivisível. Por isso, ele é classificado como monista.
Para ele, tudo o que existe sempre existiu, e nada pode se trans-
formar em algo diferente de si mesmo. A mudança e a diversidade
seriam apenas ilusões dos sentidos.
Parmênides é considerado o principal representante da filosofia
do ser, que se opõe à filosofia do vir a ser de Heráclito. A oposição
entre os dois é a mais rica e importante entre os pré‑socráticos,
instauradora e definidora de diversas questões que marcariam pos-
teriormente a filosofia ocidental.

Zenão de Eleia (século V a.C.)


Zenão, assim como seu mestre Parmênides, defendia o monis-
mo e o imobilismo do ser. É conhecido por seus paradoxos, discu-
tidos até hoje, que criticam o pluralismo. Um deles é o paradoxo
de Aquiles.

Exemplo
O paradoxo de Aquiles imagina uma corrida de 100 metros entre o herói e
uma tartaruga. Como Aquiles é dez vezes mais veloz que a tartaruga, ela co-
meça a corrida 80 metros na frente. Quando Aquiles percorrer os 80 metros
iniciais que o separam da tartaruga, ela terá percorrido 8 metros e, portanto,
continuará na frente.
Quando Aquiles percorrer mais 8 metros, a tartaruga terá percorrido mais 0,8
metro, e assim por diante. Dessa maneira, seria impossível Aquiles ultrapassar a
tartaruga, pois sempre que chegar perto dela, ela terá andado mais um pouco.

Os paradoxos de Zenão chegam a conclusões teóricas que


contradizem o senso comum e a experiência. Zenão pode ser con-
siderado o fundador da dialética, no sentido de confrontar teses
opostas, de refutar as teses de um interlocutor, partindo dos princí-
pios admitidos como verdadeiros pelo próprio interlocutor.

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32 Filosofia e ética

Empédocles de Agrigento (século V a.C.)


Empédocles de Agrigento, ao contrário de Zenão, é considera-
do pluralista. Para ele, a origem do Universo seria determinada
por quatro elementos ou raízes: água, ar, terra e fogo. As transfor-
mações da natureza seriam, na verdade, movimentos de combina-
ção e separação entre esses elementos. Além dos elementos
Saiba mais naturais, existiriam também forças naturais.
Arquelau, discípulo de O amor (philia) e o ódio (neikos) seriam as forças responsáveis
Anaxágoras, foi mestre pelos processos de união e separação entre as raízes. A máxima
de Sócrates e é “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, de
considerado o primeiro Lavoisier, tem origem clara em Empédocles. A teoria do conheci-
filósofo de origem mento e a fisiologia têm também papel de destaque no pensamen-
ateniense. Entretanto,
to desse filósofo antigo.
nenhum fragmento de
suas obras resistiu ao
tempo. Anaxágoras de Clazômena (500-428 a.C.)
Hoje, graças à física, você sabe que todas as substâncias são
compostas de átomos. Na Antiguidade, Anaxágoras já acreditava
que elas poderiam ser divididas ao infinito e que tudo, na verdade,
Fique atento poderia ser dividido em partículas minúsculas e invisíveis. Plura-
Para os gregos antigos e lista, ele afirmava que vários elementos são responsáveis pela ori-
para os filósofos gem do Universo. O noûs (razão, espírito ou inteligência) regeria
atomistas, o significado a combinação entre esses elementos. O nous seria ilimitado, eter-
de átomo é muito no, governaria a si próprio e a nada se misturaria.
distante do sentido
desse termo na ciência
Leucipo e Demócrito de Abdera (século V a.C.)
moderna.
Os gregos não tinham Leucipo e Demócrito são tidos atomistas, pois admitem os
capacidade de átomos (partículas indivisíveis e invisíveis) como os elementos
observação primordiais do universo. Ambos admitiam partículas indivisíveis
experimental. Hoje, e invisíveis como os elementos primordiais do Universo.
você sabe, por exemplo, Segundo eles, os átomos estariam em constante movimento,
que a fusão dos átomos entrando em colisão, às vezes se unindo, às vezes se separando. O
é possível e que existem funcionamento do Universo seria puramente mecânico, sem qual-
partículas subatômicas. quer força influindo sobre os átomos. Por isso, ambos são denomi-
nados materialistas.

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História da filosofia 33

Sofistas
No século V a.C., a Grécia passou por profundas transformações Saiba mais
sociais, políticas, econômicas e culturais. Você conhece o grau de
desenvolvimento artístico e jurídico alcançado pelos gregos na época? Os sofistas não
formaram uma escola,
Naquele tempo, foram criadas tragédias até hoje encenadas,
não tinham uma
como Édipo rei, de Sófocles, Prometeu acorrentado, de Ésquilo, e
doutrina comum nem
Medeia, de Eurípides. Na Grécia, a tragédia ganhou um caráter de
estavam organizados.
cerimônia cívica, em comparação com suas características religio-
Menos do que um
sas anteriores. A comédia, por sua vez, principalmente com Aris- movimento, eles
tófanes, assumiu um papel de crítica social. representam a
Além disso, o direito tornou‑se essencial, como princípio fun- substituição do espírito
dado na lei, num sentido universal e abstrato. Surgiu também nes- racional e científico dos
sa época a história científica em substituição ao saber mitológico, pré‑socráticos por
com as obras de Tucídides e Heródoto. outros interesses,
Todas essas transformações marcaram o estabelecimento da pedagógicos e sociais.
democracia na cidade de Atenas, onde discussões práticas sobre as Muitas vezes
relações entre o homem e o Estado tornaram‑se centrais. Assim, a classificados como
política, a ética e a teoria do conhecimento ganharam importância céticos, porque
na filosofia, em contraposição à cosmologia e à ontologia (ciência desprezavam as

que estuda o ser enquanto ser), que dominavam o interesse dos discussões filosóficas
para as quais não se
pré‑socráticos.
poderiam encontrar
Os sofistas surgem, portanto, em um cenário em que a arte da
soluções, eles fundaram
argumentação tornou‑se essencial. Mestres da oratória, eles ensina-
na filosofia um reino de
vam a desenvolver argumentos a favor e contra uma mesma posi-
relativismo e subjetivismo.
ção. Eles viajaram por toda a Grécia, fazendo conferências e Nesse reino, o homem é
fundando uma forma de ensino itinerante e remunerada. São os pri- a medida das coisas, da
meiros professores da história. Essa nova forma de educação, que se natureza e de todos os
iniciou com os sofistas, deveria acompanhar o homem da infância valores. É do sofista
até a idade adulta. A dialética, a poética, a linguagem, a retórica e a Protágoras a conhecida
gramática ocupavam lugar de destaque entre os sofistas. máxima: “O homem é a
A partir dos sofistas, o homem substitui a natureza como obje- medida de todas as
to principal da reflexão filosófica. Podemos considerar que a filo- coisas”. Daí surge a ideia
sofia tornou‑se antropológica. Os sofistas mais conhecidos que de que com os sofistas
viveram no século V a.C. são Protágoras, Górgias, Hípias, Pródi- iniciou‑se o verdadeiro
co, Crítias, Antífon, Trasímaco e Licófron. humanismo ocidental.

Sócrates (469-399 a.C.)


Sócrates, que nasceu e morreu em Atenas, é uma das figuras
mais importantes da filosofia ocidental e talvez a mais polêmica e

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34 Filosofia e ética

enigmática. Sua filosofia, seus ensinamentos e sua vida foram


transmitidos por seus discípulos, principalmente nos diálogos de
Platão e em alguns diálogos de Xenofonte.
Você pode ouvir falar de vários Sócrates, entre eles o Sócrates
histórico, que teria realmente existido; o Sócrates platônico, per-
sonagem dos diálogos de Platão; e o Sócrates personagem de Aris-
tófanes, na comédia As nuvens.
Condenado à morte aos 70 anos, por corromper a juventude
com seu pensamento, introduzir novas divindades e não venerar
os deuses da cidade, Sócrates morreu em Atenas como mártir após
tomar um cálice de veneno na frente de seus discípulos, defenden-
do a filosofia.
A Defesa de Sócrates, um dos diálogos escritos por Platão, é
um dos documentos jurídicos, sociológicos, psicológicos, filosófi-
cos e poéticos mais belos e importantes da filosofia. Ele reproduz
sua defesa diante da assembleia ateniense, que o condenou à mor-
te. A serenidade de Sócrates no texto de Platão é impressionante.
Após a defesa e a análise da votação, Sócrates dirige suas palavras
aos que o acusaram:
Talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos com
que vos poderia convencer, se na minha opinião se devesse tudo fa-
zer e dizer para escapar à justiça. Engano! Perdi‑me por falta, não de
discursos, mas de atrevimento e descaro, por me recusar a proferir o
que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo
uma multidão de coisas que declaro indignas de mim, tais como
costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não
justificava nenhuma indignidade, tampouco me pesa agora da ma-
neira por que me defendi; ao contrário, muito mais folgo em morrer
após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê‑la daquele
outro modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não
deve ninguém lançar mão de todo e qualquer recurso para escapar
à morte. Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se
pode escapar à morte arrojando as armas e suplicando piedade aos
perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros meios de esca-
par à morte quem ousar tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil
escapar à morte, porque muito mais difícil é escapar à maldade; ela
corre mais ligeira que a morte. Neste momento, fomos apanhados,
eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, e os meus
acusadores, ágeis e velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, va-
mos partir; eu, condenado por vós à morte; eles, condenados pela
verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles

PB Filosofia e Etica Book.indb 34 11/1/12 2:23 PM


História da filosofia 35

igualmente. Por certo, tinha de ser assim e penso que não houve
excessos. (PLATÃO. In: PESSANHA, 1980, p. 25)
Saiba mais
Sócrates posicionava‑se contra os sofistas, seus contemporâ-
Metalinguagem é uma
neos, buscando valores absolutos por meio de uma forma de co-
linguagem usada para
nhecimento científica. Ele questionava o senso comum, as crenças
descrever algo sobre
e as opiniões, opondo o conhecimento à opinião.
outra linguagem
O processo de questionamento a que expunha seus interlocu-
(linguagem objeto). De
tores nos debates, denominado maiêutica, talvez seja sua maior modo mais amplo, a
herança para a filosofia. Ao contrário dos sofistas, Sócrates uti- metalinguagem pode
lizava um método pelo qual não se propunha a ensinar, mas ape- referir‑se a qualquer
nas a aprender, por meio de perguntas que levavam seus terminologia usada para
interlocutores a reconhecer que não sabiam o que achavam que descrever uma
sabiam. Seus diálogos podem ser considerados aporéticos, pois linguagem em si
geram apenas impasse, sem conclusão. Indicam um caminho, mesma. Descrições
não a resposta. Por meio de seu método de exame e refutação, gramaticais ou uma
ele não procurava produzir vitórias nos debates, como os sofis- discussão sobre o uso
tas, mas fazer o parto de conceitos (em seus interlocutores) e da linguagem são
chegar à verdade. exemplos de
Com Sócrates, a linguagem tornou‑se o fundamento do discur- metalinguagem.
so filosófico, apesar da importância também da ética e da lógica
em seu pensamento. A filosofia passou a ser encarada, em sua es-
sência, como um método linguístico de construção conceitual.
Os diálogos de Platão (próximo filósofo a ser estudado) são Fique atento
exercícios de metalinguagem riquíssimos. As próprias ideias e as Paralelamente à era de
palavras são tomadas como objetos do filosofar. A linguagem pas- Sócrates, no mesmo
sa a ser um dos assuntos centrais do discurso filosófico. período surgiram três
Sócrates, assim como os sofistas, contribuiu para o movimento outras escolas filosóficas
da mudança de foco da filosofia: da natureza para o homem. Ele na Grécia: a escola
não refletia sobre a natureza, mas sobre o ser humano. Não busca- megárica (de Mégara;
va os princípios do Universo, mas os fins para o homem. fundada por Euclides,
“Conhece‑te a ti mesmo” é um dos ensinamentos que Sócrates trouxe importantes
deixou para a posteridade. A ele estão também associadas máximas contribuições para o
como “Só sei que nada sei” e “A virtude é o conhecimento; nin- desenvolvimento da
guém erra ou pratica o mal intencionalmente, mas por ignorância”. lógica), a escola cínica e
a escola cirenaica. Essas
Platão (c. de 427-347 a.C.) escolas tiveram vida
A conhecida expressão “amor platônico” tem sua origem em longa, prolongando sua
Platão, que foi um dos maiores filósofos da Grécia Antiga. Platão influência até o período
foi tão importante que até hoje sua obra influencia a filosofia. posterior a Platão e
Aristóteles.

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36 Filosofia e ética

Ele nasceu em Atenas. Aos 28 anos, desiludido com a conde-


nação e a morte de Sócrates, abandonou a cidade natal e fez várias
viagens, durante as quais teve contato com a filosofia dos eleatas
(isto é, pensadores da cidade de Eleia) e foi influenciado pelos
pitagóricos.
De volta a Atenas, em 387 a.C. fundou sua famosa Acade-
mia, que pode ser considerada a primeira universidade do mundo
e cujo aluno mais ilustre foi Aristóteles, que lá permaneceu por
mais de 20 anos.
Inicialmente as ideias de Platão eram muito próximas das de
Sócrates, mas aos poucos ele se descolou de seu mestre e desenvol-
veu uma teoria própria, interessada não apenas na ética individual,
mas também na política, na prática e em questões mais universais.
Com as influências de Pitágoras, Platão desenvolveu a teoria
da reminiscência, que defende o conhecimento latente da alma:
você pode relembrar e trazer à consciência conhecimentos que
carrega desde o nascimento. Em Fédon, por exemplo, Platão ex-
Fique atento põe a teoria de que a alma é independente de seu suporte físico.
A obra de Platão
Ainda com base nas ideias de Pitágoras, Platão aproximou os
exerceu influência sobre objetos matemáticos, que existem na inteligência, dos objetos do
inúmeros movimentos, conhecimento buscados por Sócrates.
inclusive artísticos. A Platão não se interessava pelo utilitarismo e o relativismo dos
filosofia platônica foi, sofistas, mas pelo mundo das ideias, das formas e dos conceitos. As
por exemplo, muito formas seriam eternas, imutáveis, incorpóreas e imperceptíveis.
importante no “Idealismo platônico”, “espiritualismo” ou “realismo das es-
simbolismo, movimento sências”: assim você pode se referir à obra de Platão. Filosofia e
artístico do final do dialética se identificam como processo e método de discussão
século XIX. Movimentos para dissipar as contradições, superar o senso comum e alcançar
denominados as formas e os valores absolutos.
neoplatônicos, que Como Sócrates, Platão tinha a maiêutica como método filosó-
procuram ressuscitar a fico. Ele seguia algumas etapas definidas: das imagens atingimos
filosofia de Platão, uma definição, ainda que provisória; em seguida, devemos proce-
surgiram em diversos der à divisão dialética, que busca a espécie e o gênero próprios do
momentos da história
objeto procurado; finalmente atingimos a ciência, chegando à de-
do pensamento e são
finição mais perfeita do objeto.
essenciais para a
Apesar da tradição sofística e socrática, foi somente com Pla-
compreensão da
tão que os diálogos tornaram‑se verdadeiramente um gênero lite-
filosofia medieval e
rário. A discussão ou dialética são a alma dos diálogos.
mesmo do
Renascimento.
Platão é o primeiro filósofo do qual você pode acessar, ainda
hoje, uma obra substancial, que possibilita analisar e estudar seu

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História da filosofia 37

pensamento como um todo. Entretanto, pelo próprio caráter literá-


rio de sua filosofia, não é simples resgatar um sistema filosófico
Saiba mais
de todos os seus diálogos.
A interpretação de sua obra pela história da filosofia é polêmica – A palavra metafísica
como no caso dos sofistas e do próprio Sócrates. Hauser (1982), vem de meta (“depois
por exemplo, vê na filosofia de Platão um excessivo conservado- de”, “além de”) e physis
rismo a favor de uma minoria política e uma rejeição à arte. (“natureza” ou “física”),

Após seu falecimento, seus discípulos Espeusipo e Xenócrates ou seja, significa “além
da natureza ou da física”.
o sucederam na Academia, continuando seu trabalho em metafísi-
Uma das disciplinas
ca, lógica e matemática. Depois, com Arcesilau e Carnéades, a
fundamentais da
“Nova Academia”, ou “Academia Helenista”, adotou o ceticismo,
filosofia, a metafísica
questionando os conceitos absolutos de verdade e mentira, basean­
trata de problemas
do‑se nos diálogos platônicos aporéticos, aqueles que terminam
centrais da filosofia
sem conclusão.
teórica: as tentativas de
Posteriormente, o neoplatonismo antigo, ou platonismo médio, descrever os
abandonou o ceticismo e procurou combinar o pensamento de Pla- fundamentos, as
tão com outras posturas, como o estoicismo, o aristotelismo e o condições, as leis, a
judaísmo. estrutura básica, as
causas ou os princípios
primeiros, bem como o
sentido e a finalidade
Saiba mais
da realidade como um
Estoicismo é uma doutrina filosófica que afirma que todo o Universo é corpó- todo, isto é, dos seres
reo e governado por um logos (ou razão universal) que ordena todas as coi- em geral. Algumas de
sas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele; graças a ele o mundo é um suas questões são: há
kosmos (”harmonia”, em grego). Aristotelismo é a escola filosófica adepta das um sentido para a
doutrinas de Aristóteles (384-322 a.C.), que influenciaram a criação da lógica existência do mundo?
formal e da ética, e exerceram e ainda exercem enorme influência no pensa- Existe um Deus? Se
mento ocidental. Judaísmo é uma das três principais religiões abraâmicas, existe, como podemos
definida como a “religião, filosofia e modo de vida” do povo judeu. conhecê‑lo?

A partir da Idade Moderna, ocorreu um movimento de rejeição


ao neoplatonismo e de volta aos textos do próprio Platão. Apesar
de o platonismo deixar de existir como doutrina, Platão influen-
ciou inúmeros pensadores, como Kant, Schelling e Hegel. Além
disso, muitos filósofos modernos e contemporâneos definem suas
ideias em relação às de Platão.
Platão utilizava mitos em seus diálogos, mas em sentido dis-
tinto do que observamos na mitologia grega: para o filósofo, eles

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38 Filosofia e ética

tinham uma função alegórica, isto é, ilustravam um conceito ou


ideia. Segundo o próprio Platão, assuntos muito complexos só po-
deriam ser expressos por metáforas, símbolos ou imagens.
A seguir, você pode ver um trecho do mito da caverna, extraído
do livro VII da República. Ele complementa o mito da linha divi-
dida e procura mostrar que enxergamos apenas sombras, como se
vivêssemos acorrentados no interior de uma caverna, enquanto a
luz, a verdade e a realidade não estariam visíveis − seria necessá-
rio o exercício da filosofia para nos libertar da prisão.
− (...) Suponhamos uns homens em uma habitação subterrânea
em forma de caverna, com uma entrada aberta para a luz, que se
estende a todo o comprimento dessa gruta. Estão lá dentro desde
a infância, algemados de pernas e pescoços, de tal maneira que só
lhes é dado permanecer no mesmo lugar e olhar em frente; são
incapazes de voltar a cabeça, por causa dos grilhões; serve‑lhes de
iluminação um fogo que se queima ao longe, em uma eminência,
por detrás deles; entre a fogueira e os prisioneiros há um caminho
ascendente, ao longo do qual se construiu um pequeno muro, no
gênero dos tapumes que os homens colocam diante do público,
para mostrarem as suas habilidades por cima deles.
[...]
− Visiona também, ao longo deste muro, homens que transpor-
tam toda espécie de objetos, que o ultrapassam: estatuetas de
homens e de animais, de pedra e de madeira, de toda espécie de
lavor; como é natural, dos que os transportam, uns falam, outros
seguem calados.
− Estranho quadro e estranhos prisioneiros são esses de que tu
falas − observou ele.
− Semelhantes a nós − continuei. – Em primeiro lugar, pensas que, nes-
tas condições, eles tenham visto, de si mesmos e dos outros, algo mais
que as sombras projetadas pelo fogo na parede oposta da caverna?
− Como não − respondeu ele −, se são forçados a manter a cabeça
imóvel toda a vida?
− E os objetos transportados? Não se passa o mesmo com eles?
− Sem dúvida. (Platão, 1983, p. 317-321)
Como você pôde observar, no mito de Platão os prisioneiros
estão amarrados e enxergam apenas as sombras dos objetos carre-

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História da filosofia 39

gados pelos indivíduos que estão fora e acima da caverna, projeta-


das no fundo dela pelos objetos iluminados pelo fogo.
Os prisioneiros acreditam que as sombras projetadas e os ecos
das vozes das pessoas que estão fora da caverna são a realidade.
O prisioneiro que consegue escapar da caverna inicialmente não
consegue enxergar nada, pela força da luz do sol. Aos poucos vi-
sualiza as sombras dos objetos, em seguida consegue distinguir os
objetos e por fim consegue mirar o próprio sol. Se ele voltasse à
caverna, certamente não seria compreendido por seus companhei-
ros e seria morto, como Sócrates.
Com esse mito, um dos mais belos, influentes e duradouros da
humanidade, Platão aproxima o conhecimento da visão, como se
conhecer implicasse adequar nosso olhar ao objeto.
Muitas das obras atribuídas a Platão têm origem duvidosa.
Além de muitos diálogos, acredita‑se que o filósofo tenha escrito
também 13 cartas.
A leitura dos diálogos de Platão, mesmo hoje em dia, mos-
tra‑se crítica e reveladora diante dos problemas que enfrentamos.
Para ilustrar o que estamos dizendo sobre os diálogos e sua capa-
cidade crítica, veja no Quadro 2.1 os diálogos de Platão e seus
temas principais. Na verdade, foi graças a esse filósofo que a ra-
cionalidade ocidental se constituiu. Tanto Sócrates quanto Platão,
  Quadro 2.1  Diálogo de Platão e seus temas principais. 

Apologia de Sócrates: defesa de Sócrates perante Laques: coragem.


tribunal em Atenas. Ion: Ilíada.
Banquete (Simpósio): amor. Leis: novas ideias políticas em
Cármides: prudência. relação ao diálogo República.
Crátilo: linguagem. Lisis: amizade.
Crítias (inacabado): mito da Atlântida. Menexeno: oração fúnebre à esposa de
Críton: moral. Péricles, sátira contra a retórica.
Eutidemo: eurística. Mênon: virtude.
Eutifron: piedade. Parmênides: ser.
Fédon: imortalidade da alma. Político: política.
Fedro: retórica; discute as relações Protágoras: sofistas.
entre o pensamento e a escrita. República: justiça.
Filebo: ética. Sofista: sofista.
Górgias: retórica. Teeteto: conhecimento.
Hípias Maior: beleza. Timeu (inacabado): física e cosmologia.
Hípias Menor: falsidade.

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40 Filosofia e ética

e posteriormente Aristóteles, fundaram o filosofar racional, prati-


camente como o conhecemos atualmente.
Segundo Châtelet (1997), Platão teria elaborado a lógica da
razão, enquanto a civilização industrial teria organizado sua práti-
ca. Assim, a leitura de seus diálogos é uma experiência única e
valiosa para qualquer ser humano de nosso tempo.

Aristóteles (384-322 a.C.)


Fique atento Filho de médico, Aristóteles nasceu em Estagira, no norte da
Grécia. Com 17 anos, mudou‑se para Atenas para estudar na Aca-
Você costuma classificar
sempre os objetos e/ou
demia de Platão. Permaneceu lá por quase 20 anos, onde se desta-
as pessoas? Uma das
cou a ponto de ser chamado por Platão de “a inteligência da
curiosidades do escola”.
pensamento de Depois de abandonar a cidade após a morte de Platão, retornou
Aristóteles era sua a Atenas aos 49 anos, quando fundou sua própria escola filosófica,
paixão pelas o Liceu (335 a.C.). Seus ensinamentos eram transmitidos enquan-
classificações. Animais, to caminhava, por isso seu método é chamado peripatético (peri-
vegetais, minerais, patos significa “caminho”, “local do passeio”).
virtudes, paixões, O objeto da filosofia de Aristóteles não é apenas o homem,
faculdades psicológicas mas o Universo, incluindo seus processos naturais. Daí o porquê
e intelectuais, nada de uma física, uma geografia, uma astronomia, uma medicina e
escapava de sua uma biologia aristotélicas. Graças a ele, filosofia e ciência natural
vontade de classificar e, se reencontraram. A psicologia, a metafísica, a lógica, a teoria do
por consequência, conhecimento, a linguagem, a teoria literária, a retórica, a ética e
descobrir leis entre os a política são também essenciais no pensamento de Aristóteles.
objetos classificados. Apesar de muitas obras provavelmente terem se perdido, dis-
Pela primeira vez na
pomos de dezenas de livros escritos pelo filósofo grego. Muitos
filosofia, surgiu uma
deles são, na verdade, anotações para suas aulas, e até mesmo ano-
ambição enciclopédica
tações de seus alunos. Sob o mesmo título, estão agrupados textos
de agrupar a totalidade
escritos em datas bastante distantes.
dos saberes e construir
Sua obra teve um destino incrível. Você acredita que os discí-
um sistema. Sua obra
aborda todos os campos
pulos de Aristóteles esconderam seus textos mais profundos numa
do conhecimento,
adega em Atenas? Os escritos ficaram guardados por quase três
catalogando sempre o séculos sem ser lidos por ninguém. Depois, foram compilados por
máximo de informações Andrônico de Rodes, em Roma, transferidos para a biblioteca de
e opiniões sobre os mais Alexandria, traduzidos pelos árabes, censurados pela Igreja e in-
diversos assuntos. terpretados por Tomás de Aquino.
A crítica de Aristóteles à teoria das ideias em Platão é essen-
cial, sobretudo em Metafísica, na qual ele aborda questões relati-
vas ao ser − ou ontologia. Ao contrário do que pensava Platão,

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História da filosofia 41

para Aristóteles as ideias não existiriam antes da experiência.


Apesar de terem uma existência real (não sendo apenas produções Saiba mais
da mente humana), as ideias não preexistiriam a seu objeto. As- Em O nome da rosa, livro
sim, os sentidos voltam a ser importantes, em comparação com o de Umberto Eco
privilégio dado por Platão à razão. Para Aristóteles, uma terceira adaptado para o
faculdade, a imaginação, serviria de ponte entre a sensibilidade e cinema, um livro de
a razão. Aristóteles intitulado
Na filosofia aristotélica, o universal corresponderia à forma, e Comédia (que várias
o individual e mutável, à matéria. Tanto a forma quanto a matéria evidências indicam ter
sido realmente escrito,
estariam no próprio objeto, no próprio mundo sensível, e não em
apesar de desaparecido)
outro mundo, como o das ideias de Platão. Separar forma de ma-
é encontrado num
téria seria, então, um exercício intelectual, daí a importância da
mosteiro, mas
lógica para Aristóteles, ao estudar as leis do pensamento.
posteriormente
Os conceitos de ato e potência, assim como os de causa, são queimado. A
essenciais para a melhor compreensão das ideias de forma e maté- justificativa para a
ria. A forma é enérgeia, ato ou atualidade, a essência da coisa destruição do exemplar
como ela é aqui e agora. A matéria é dýnamis, potência ou poten- é que o riso acaba por
cialidade, o que a coisa pode vir a ser. A matéria não recebe uma tirar o temor do
forma inteiramente pronta, acabada, atualizada, mas inacabada, homem. Rindo, o
como uma possibilidade, uma potencialidade que deve ser homem deixaria de
atualizada. temer até mesmo a
A semente, por exemplo, é em potencial uma árvore. Quando Deus, não havendo, a
partir de então, mais
macho e fêmea se unem, surge na matéria a forma do feto, que é o
necessidade da fé.
ser futuro em potência. Essa energia potencial será atualizada no
tempo pela dýnamis da matéria até se tornar uma criança, depois
um adolescente e, por fim, um adulto, realizando inteiramente a
forma potencial. A criança é ato e, em potência, é jovem; o jovem Saiba mais
é ato e, em potência, é adulto. Para Aristóteles,
Aristóteles desenvolveu também uma teoria das causas. Ha- dýnamis e enérgeia são
veria quatro tipos de causas: formais, materiais, eficientes e fi- opostos. Dýnamis é
nais. A essência de um objeto, que tem uma forma, está relacionada possibilidade,
à causa formal, seu modelo. É a forma de um objeto que orienta, potência. Enérgeia é
por exemplo, um escultor a produzir uma estátua de uma deusa. atualidade, realidade,
ou plena realidade,
A causa material, por sua vez, está relacionada à matéria utiliza-
diferentemente de
da, a matéria de que é constituído o objeto, por exemplo, bronze
dýnamis, que
ou mármore. Já a causa eficiente relaciona‑se à energia emprega-
representa o que ainda
da durante o processo, a fonte para a mudança, o agente da trans-
pode vir a ser.
formação, aquilo que faz com que a estátua adquira forma; no
caso, o trabalho do escultor com suas ferramentas. E a causa final

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42 Filosofia e ética

representa a finalidade, o objetivo, o propósito do objeto; no caso


Saiba mais da estátua, poderia ser o culto à deusa.
Aristóteles foi o Com Aristóteles, a dialética já não era mais o método primor-
fundador da lógica dial para a compreensão do real. Para ele, a lógica era um instru-
formal como ciência. mental para todas as ciências. Por isso, seria formal, já que não
Alguns de seus escritos estudaria nenhum conteúdo específico − pois não possuía objeto
que tratam do de investigação definido −, mas apenas as regras do raciocínio. O
raciocínio foram estudo das ciências, portanto, deveria começar pela lógica.
reunidos por seus Em suas obras Ética a Nicômaco e Metafísica, Aristóteles in-
alunos após sua morte, troduz outra interessante distinção: de um lado, a poiesis, arte ou
com o nome de
técnica, como a agricultura, a navegação, a pintura, a escultura,
Organon, considerado o
a arquitetura, a tecelagem, o artesanato, a poesia e a retórica, ou
primeiro e um dos mais
seja, ações que têm como fim a produção de uma obra; de ou-
importantes tratados de
tro lado, a práxis, ações que têm um fim em si mesmas, como
lógica.
a economia, a ética e a política. A ciência (ou epistéme) não se
caracterizaria como ação, mas como conhecimento. Mas ciência e
filosofia não eram pensadas separadamente.
Para Aristóteles, assim como para Platão, o indivíduo e o Esta-
do são inseparáveis um do outro. Para Aristóteles, o Estado ideal
é a democracia, enquanto para Platão ele é representado por um
sistema de castas.
Aristóteles classificou as formas de governo existentes em: mo-
narquia, aristocracia e democracia constitucional (que admitia a es-
Saiba mais cravidão e, portanto, não era um governo de todos). A perversão
O livro O mundo de dessas formas de governo levaria, respectivamente, à tirania, à oli-
Sofia, de Jostein garquia e à democracia (contra a qual Aristóteles tinha reservas, por
Gaarder, é um romance considerar que não seria suportável por todas as cidades e não dura-
mundialmente ria se não fosse bem constituída em suas leis e seus costumes).
conhecido que aborda A finalidade de toda ação, o bem do homem, é a felicidade:
a história da filosofia viver bem, ter uma vida boa. Aristóteles associa essa atividade à
com rápidas passagens razão e à virtude, o que exige o controle das paixões para evitar
sobre seu desenrolar no que se transformem em vício. Para o filósofo, o homem é um ani-
Ocidente. As principais mal naturalmente político, e a finalidade do Estado é promover a
questões estudadas felicidade de todos os indivíduos, o bem comum, de maneira que
pelos pensadores de todos vivam bem. Nesse sentido, os governantes devem ser
todos os tempos são
virtuosos, para servirem de exemplo aos cidadãos.
mencionadas, como a
Com base no que vimos até agora, você pode entender que a
busca por referenciais
polaridade entre o pensamento de Platão e o de Aristóteles, bem
de conduta: Deus, o
como seus desdobramentos posteriores em platonismos e aristote-
Universo, o homem, a
lismos, marcaram decisivamente a história da filosofia.
sociedade e a história.

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História da filosofia 43

Filosofia medieval
Filosofia e cultura na Idade Média Link
A Escola de Atenas
O pensamento medieval distingue‑se radicalmente do pensa-
(Scuola di Atene), famosa
mento da Grécia Antiga pela preponderância do cristianismo, que,
pintura do renascentista
como estrutura sociopolítica e religiosa, estabeleceu os parâmetros
italiano Rafael,
dentro dos quais a filosofia pôde se desenvolver (Giles, 1995).
representa a Academia
A filosofia medieval foi precedida pela filosofia patrística (sé-
de Platão e alguns
culos I‑VII), que inclui a doutrina dos padres da Igreja, que fazem filósofos que estudamos
apologia do cristianismo. Com as filosofias ligadas à religião, até agora: Zenão de
como a escola neoplatônica cristã da Alexandria, São Clemente de Eleia, Pitágoras,
Alexandria e Orígenes, surge a noção, desconhecida pelos gregos Parmênides, Sócrates e
antigos, de verdades reveladas. Na Idade Média, houve resistência Heráclito. Bem no
ao uso da filosofia pagã grega, e o conflito entre razão e fé marcou centro da pintura
a filosofia desse período. aparecem Platão e
“Idade das Trevas.” Você já conhecia esse termo que se refere Aristóteles. Platão está
à Idade Média? Bem negativa e hoje tida como obsoleta, essa ex- segurando o Timeu e
pressão indica que no período medieval, quando comparado com apontando para cima;
a Grécia e a Roma antigas e com a Idade Moderna, nada de muito Aristóteles está
importante foi produzido, não apenas em filosofia, mas nas artes segurando a Ética e tem
em geral. Esse conceito hoje é muito controverso. Estudos mostram a mão na horizontal,
que, na verdade, não se trata de um período pobre intelectual e artis- indicando o mundo
ticamente. Você pode questionar, inclusive, a própria continuidade terreno. Nesses gestos,
do que se chama Idade Média. Costumeiramente, fala‑se de movi- Rafael consegue
resumir essa polaridade
mentos de renascença − a carolíngia (durante o reinado de Carlos
que construiu o campo
Magno) e a do século XII, por exemplo − em plena Idade Média.
para as filosofias
A Idade Média ocidental inclui duas civilizações bastante distin-
sucessoras dos dois
tas. A primeira vai de aproximadamente 400 (decadência do Império
grandes nomes da
Romano) até 800. Nesse período, dominado pela cultura dos bárba-
filosofia grega. Você
ros que invadiram a Europa Ocidental, houve uma baixa sensível da
pode ver essa pintura
atividade intelectual e econômica. A segunda civilização começa de Rafael no link: <en.
com a Renascença carolíngia do século IX e vai até o fim do século wikipedia.org/wiki/
XIII, com realizações consideráveis na literatura, na filosofia e na File:Sanzio_01.jpg>.
arte e um alto grau de prosperidade e liberdade (Burns, 1966).
Hauser (1982), em História social da literatura e da arte, divi-
de a Idade Média em três períodos: a economia natural da primiti-
va Idade Média, a cavalaria galante da alta Idade Média e a cultura
burguesa urbana da última etapa.
Com a destruição do Império Romano e as invasões bárbaras,
ocorreu uma alteração radical na história europeia ocidental tanto

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44 Filosofia e ética

na organização sociopolítica quanto intelectual. A cultura urbana


transformou‑se em cultura rural, e as cidades foram substituídas
pelos castelos (depois as cortes e os mosteiros). A filosofia gre-
ga, já diluída no Império Romano, praticamente desapareceu do
cenário na Idade Média, pois pouquíssimas traduções dos gregos
chegaram a esse período, embora ele tenha sido marcado pelo
neoplatonismo.
Na Idade Média, as artes eram divididas em trívio (liberais):
gramática, dialética e retórica; e quadrívio (matemáticas): aritmé-
tica, geometria, música e astronomia. Esses conhecimentos eram
considerados profanos, já que o período medieval foi dominado
pela teologia. A Igreja tornou‑se a instituição detentora do saber, e
a fé estabeleceu‑se como padrão de conhecimento.
De acordo com Nascimento (1992), para realizar uma divisão
no espírito filosófico da época, podemos falar de uma teologia sob
o regime da gramática (século IX), considerada importante para a
melhor compreensão das Escrituras; teologia sob o regime da dia-
lética (século XI), principalmente no estilo de Pedro Abelardo; e
teologia sob o regime da filosofia (século XIII).
A reflexão filosófica aparece na Idade Média quase sempre de-
terminada em função da teologia, ligada ou subordinada a ela. Nes-
sa época, o conhecimento era de natureza filológica, ou seja, todas
as artes e técnicas serviam para auxiliar a leitura das Escrituras,
para desvendar a palavra de Deus por trás das palavras das Escritu-
ras. A própria realidade era reflexo da mente divina. A verdade es-
tava escrita no mundo e deveria ser desvendada nas Escrituras.
Convém lembrar que, paralelamente ao desenvolvimento do
espírito medieval “oficial”, várias outras manifestações culturais
sobreviveram ou afloraram na Idade Média: as civilizações sarra-
cena (muçulmana) e bizantina (cristã) − em que os conhecimentos
ditos “profanos” encontram‑se bem difundidos; uma cultura po-
pular; superstições; ciências ocultas como a alquimia; uma música
secular distinta do canto gregoriano, mais ritmada, representada
no fim da Idade Média pelos trovadores.
A riqueza dessa cultura popular teria sido abafada pelo poder
do cristianismo e hoje você pode conhecê‑la melhor por meio de
vários estudos, e assim realizar quase que um “trabalho arqueoló-
gico de escavação” para desenterrar formas de vida e de expressão
que não foram contadas, porque não era permitido registrar, ou

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História da filosofia 45

porque essas diferentes manifestações culturais eram orais e, por


isso, muito pouco sabemos sobre elas.
Saiba mais
Você pode falar de folclore e superstição na Idade Média ape-
nas porque existia um modelo ou padrão (o discurso do cristianis- De certa forma, você
mo) contra o qual havia uma resistência cultural. Hilário Franco até pode considerar

Júnior (1996), por exemplo, divide os “mitos” medievais (e aqui que houve uma história
subterrânea na Idade
os mitos bíblicos são incluídos) em alguns tipos: os que tratavam
Média, reprimida em
da origem do mundo, do homem, dos fenômenos naturais e so-
sua fala. O cantochão,
ciais; os que narravam as manifestações de personagens divinos
ou canto gregoriano,
ou semidivinos, heróis e feiticeiros; os que apresentavam persona-
por exemplo, era
gens históricos ou imaginários, como salvadores da sociedade registrado em
cristã; os que criticavam o presente histórico, descrevendo fenô- partituras, mas o
menos e/ou personagens ligados ao fim dos tempos; e os edênicos, mesmo não ocorria
que falavam do Éden perdido ou de um Paraíso a ser recuperado com a música profana.
e/ou conquistado. Decamerão, de Giovanni
Boccaccio (1313-75),

Cultura bizantina registra um mundo de


exuberância carnal e
Embora a civilização bizantina tenha se desenvolvido no pe- anticlerical, que não
ríodo medieval, seu padrão cultural era bem diferente do que do- aparece no discurso
minava a Europa Ocidental, pois apresentava um caráter muito oficial da Idade Média.
mais oriental. Constantinopla se ligava ao Oriente, e muitos terri- Algumas dessas
tórios do império estavam localizados fora da Europa, como Síria, histórias foram
Ásia Menor, Palestina e Egito. Além disso, elementos gregos e adaptadas e filmadas
helenísticos participaram da formação da cultura bizantina muito por Pier Paolo Pasolini
mais intensamente do que na Europa Ocidental. em O Decameron (Il
A língua predominante era o grego, e as tradições literárias, Decameron, 1970), que,
artísticas e científicas eram helenísticas. Além disso, o cristianis- mesmo para os padrões
mo do Império Bizantino diferia do cristianismo da Europa Latina morais do século XXI,
por ser mais místico, abstrato e pessimista, além de estar mais mostra‑se libertino.

sujeito ao controle político (Burns, 1966).


Uma das contribuições mais importantes da civilização bizanti-
na foi a codificação das leis romanas durante o reinado de Justinia-
no (527-565), por meio de uma comissão de juristas supervisionados
por seu ministro Triboniano, a qual deu origem ao Corpus juris
civilis, ou “corpo do direito civil”.
Embora conservasse grande parte da teoria antiga, foram in-
troduzidas mudanças fundamentais. O jus civile alcançou uma
completa desnacionalização, desconhecida nos tempos romanos,
tornando‑se aplicável aos cidadãos das mais diversas origens.

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46 Filosofia e ética

O jus naturale passou a ser considerado divino e, portanto, su-


perior a todos os decretos humanos, concepção que teve ampla
Saiba mais
aceitação na filosofia medieval posterior.
O jus civile é o direito Houve também uma tendência dos juristas de Justiniano para
próprio e peculiar dos falar do imperador como único legislador, para quem o povo teria
cidadãos romanos. É
entregado todo o seu poder. Assim, o direito clássico romano foi
mais antigo, mais
revisado para atender às necessidades de um monarca oriental cuja
restrito e mais rígido. O
soberania só era limitada pela lei de Deus (Burns, 1966). Foi o
jus naturale é o direito
comum a todos os seres
Corpus juris de Justiniano que serviu como ponte entre o direito
racionais, abrangendo romano, a segunda metade da Idade Média e a Idade Moderna.
escravos e bárbaros,
mesmo fora do mundo
Filosofia e fé
romano. O Corpus juris é Santo Agostinho (354-430), além de ter sido um personagem
o conjunto ordenado religioso, foi também filósofo. Ele buscou uma conexão entre a
das regras e dos filosofia clássica e o cristianismo. Influenciado por Plotino, foi
princípios jurídicos, propagador do neoplatonismo cristão na época medieval. Para ele,
reduzidos a um corpo a mente humana possuiria uma centelha do intelecto divino. Ele
único, sistemático, desenvolveu a concepção do tempo histórico, com um destino e
harmônico. Implantado
um objetivo: o juízo final. Suas ideias de que o homem é um pe-
pelo imperador
cador por natureza foram extremamente importantes na Reforma,
Justiniano, de
influenciando Lutero e Calvino. Agostinho desenvolveu também
Constantinopla, foi um
monumento jurídico da
a noção de interioridade, que prenuncia o conceito de subjetivida-
maior importância, que de moderno. É dele a máxima: “Não procure fora. Entra em ti
atravessou os séculos e mesmo: no homem interior habita a verdade”.
tornou‑se a base do Boécio (cerca de 475-525) é o autor da conhecida De consola-
Direito Civil moderno. tione philosophiae (A consolação da filosofia), que explora o con-
ceito de eternidade e procura relacionar a felicidade humana com
a busca de Deus, ao mesmo tempo que busca preservar a filosofia
antiga. O texto foi escrito na prisão, enquanto ele aguardava a
Saiba mais execução por motivação política.
Plotino (205-270) John Scotus Erígena (cerca de 810-877), em A divisão da na-
nasceu no Egito e é tureza, buscou também a fusão do cristianismo com o espírito
considerado o fundador neoplatônico. Santo Anselmo de Canterbury (1033-1109), conhe-
do neoplatonismo. cido pelo argumento ontológico para provar a existência de Deus,
procurou o equilíbrio entre fé e razão.
O nominalista Pedro Abelardo (1079-1142), autor de Dialética,
estabeleceu um método de dúvida e questionamento de argumentos
baseados na autoridade, fundamentado no trívio, que se tornou es-
sencial na filosofia medieval. As “questões” no estilo de Abelardo

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História da filosofia 47

se tornaram essenciais nas universidades do século XIII; a partir


de então, tudo seria “posto em questão” (Nascimento, 1992).
O funcionamento da universidade medieval envolvia o comba-
te e regras lúdicas, como as intermináveis querelas que correspon-
dem, hoje, às discussões científicas e filosóficas em revistas, por
exemplo. O místico São Bernardo (1091-1153), por exemplo, era
inimigo de Abelardo e criticava a dialética como forma de discus-
são das Escrituras e de acesso a Deus.

Aristóteles e o século XIII


Você já viu como a cultura grega se expandiu para o Oriente.
Quando os árabes invadiram e se estabeleceram em parte da Pe-
nínsula Ibérica e da Itália (séculos VIII‑XV), houve contato entre
as culturas pagã e cristã. Passaram a circular traduções do árabe
para o latim de Aristóteles, conhecido então como “o Filósofo”. Saiba mais
São figuras de destaque nesse processo Al‑Farabi (cerca de 870­
O filme O destino,
‑950), Avicena (980-1037) e Averróis (1126-1198), tão influente dirigido por Youssef
por seus comentários a Aristóteles que era conhecido como “o Chahine e lançado em
Comentador”. 1997, está ambientado
O século XIII, portanto, é marcado por uma redescoberta das na cidade de Córdoba
obras de Aristóteles, que voltaram a ser lidas e estudadas na Euro- (Espanha), no século XII,
pa Ocidental. Esse período é caracterizado pelo ecletismo, com e conta parte da vida de
múltiplas correntes. São figuras de destaque: Guilherme de Au- Averróis.
vergne (1190-1249); Roberto Grosseteste (1168-1253); Alberto
Magno (cerca de 1200-1280), importante comentador de Aristóte-
les; Roger Bacon (1214-1294); São Boaventura (1221-1274) e
Siger de Brabante (cerca de 1235-1281), entre outros.

Tomás de Aquino, o santo filósofo (1225-1274)


Quando se firmou a escolástica − cujo nome se deve aos ensi-
namentos que eram oferecidos nas escolas medievais, utilizando
técnicas didáticas −, com Tomás de Aquino, o mais importante
filósofo‑teólogo medieval, o cenário da Idade Média estava mo-
dificado. Naquela época já se liam diversas traduções dos gregos,
particularmente de Aristóteles; a liberdade de espírito e de pensa-
mento surgiu nas universidades, no século XIII, representando o
deslocamento dos centros de estudo das abadias para as catedrais e
as cidades; começaram a surgir as primeiras monarquias nacionais;
alguns movimentos realizaram reformas no catolicismo, como a
cluniacense e a cisterciense; as ordens de frades − principalmente

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48 Filosofia e ética

franciscanos e dominicanos − pregavam a simplicidade e acaba-


ram por influenciar o próprio ambiente universitário.
Saiba mais
Tudo isso colocou em xeque a doutrina cristã não apenas na
Dos séculos X ao XII, o forma de sua interpretação (para a qual a gramática e a dialética
Mosteiro de Cluny, na serviam), mas também em seu conteúdo. E, nesse cenário, a obra
França, ficou conhecido
de Aristóteles mostrou‑se mais adequada que a de Platão.
pela influência
Em sua obra magistral, a Suma teológica, Tomás de Aquino
moralizadora de seus
buscou unificar filosofia e teologia, o pensamento de Aristóteles e
membros no seio da
Igreja Católica,
as Escrituras, valorizando o mundo sensível como fonte de conhe-
movimento que foi cimento. É um dos principais representantes da escolástica. Deno-
chamado reforma de mina‑se neotomismo a retomada da filosofia de Tomás de Aquino
Cluny. Os cluniacenses na contemporaneidade.
conseguiram conter
parte do relaxamento A querela dos universais
de costumes que havia Você sabe o que é uma querela? Segundo o dicionário Houaiss,
invadido a vida uma das definições de querela é “debate inflamado sobre pontos
monástica e eclesiástica de vista contrários”.
europeia, à época, A querela dos universais, talvez uma das questões mais rele-
reflexo da intromissão
vantes na Idade Média, pode ser tomada como referência para boa
da política e suas
parte da discussão filosófica moderna e contemporânea. Seu iní-
manipulações no seio
cio remonta a Porfírio (c.234−c.305), neoplatônico que, numa in-
da Igreja. A Ordem de
Cister, também
trodução às Categorias de Aristóteles, faz as seguintes perguntas:
conhecida como ordem (a) são os gêneros e as espécies realidades subsistentes em si mes-
cisterciense, é uma mas ou simples concepções do espírito?; (b) admitindo que sejam
ordem monástica realidades substanciais, são eles corporais ou incorporais?; (c)
católica reformada que sendo incorporais, são eles separados das coisas sensíveis ou sub-
promoveu o ascetismo, sistem apenas nas coisas sensíveis e implicados nelas?
o rigor litúrgico e, em Você pode usar a palavra homem para se referir a todos os ho-
certa medida, o mens, e não apenas a um homem individual, correto? Homem é,
trabalho como valor portanto, um conceito universal. Levando isso em conta, Pedro
fundamental, conforme Abelardo acrescentou uma às três de Porfírio: (d) é necessário que
comprovam seu
os gêneros e as espécies tenham alguma denominação, um concei-
patrimônio técnico,
to universal, ou, se essas coisas denominadas fossem destruídas,
artístico e arquitetônico.
poderia, ainda, o universal consistir apenas na significação? Por
exemplo, a palavra rosa, quando não existisse mais nenhuma rosa
à qual esse termo pudesse ser aplicado (apud Nascimento, 1983).
Fica, portanto, o questionamento: os conceitos universais têm
uma existência objetiva, para além da mente do sujeito que o uti-
liza em sua linguagem?

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História da filosofia 49

A corrente realista respondia a essa questão afirmando que os


universais têm algum tipo de existência na realidade, além do pró-
prio pensamento. Já os nominalistas afirmavam que os universais
são apenas características da linguagem, do pensamento, e não
possuem existência na própria realidade. Para os nominalistas, só
os indivíduos existem. Os conceitos teriam apenas existência
mental, subjetiva, e não objetiva. Essa discussão arrasta‑se, desde
então, por toda a reflexão ocidental.
Contemporaneamente, Hauser oferece uma explicação social,
mais ampla e radical, para a discussão sobre os universais. A
transformação da filosofia medieval, do realismo para o nomina-
lismo, e a querela dos universais não se resumiriam a uma questão
filosófica, mas se explicariam em função de um importante pano
de fundo social. O realismo era adequado a uma ordem social não
democrática, a uma hierarquia na qual só contavam os grandes, as
organizações absolutistas que transcendiam o individual e confi-
navam a vida dentro do âmbito da Igreja e do feudalismo, sem
permitir qualquer liberdade de movimento. O nominalismo, por
sua vez, refletia a dissolução dessas formas sociais autoritárias. O
realismo exprimia um conservadorismo estático, enquanto o no-
minalismo, um aspecto progressivo, dinâmico e liberal. O nomi-
nalismo corresponde a uma ordem social em que até os elementos
das camadas mais baixas têm possibilidade de ascensão (Hauser,
2000, p. 319-320).

Fim da Idade Média


Em março de 1277, o bispo de Paris, Estêvão Tempier, conde-
nou 219 teses sobre os mais diversos assuntos que, segundo ele,
seriam contrárias à fé católica. Esse fato foi um marco simbólico
na Idade Média. Professores influenciados por Aristóteles e o pró-
prio Tomás de Aquino estavam entre os atingidos. Os temas abor-
dados pelas teses dividiam‑se em dois grupos: questões filosóficas
(como a ética e o funcionamento do intelecto) e questões teológi-
cas (a vida após a morte, por exemplo). Como curiosidade, uma
das teses proibidas tinha o título “Não se deve rezar”.
Duns Scott (1266-1308) e o nominalista Guilherme de Ockham
(cerca de 1290-1349) são figuras de destaque a partir de então,
exercitando a separação entre filosofia e teologia e lançando as
bases para o progresso científico da Idade Moderna.

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50 Filosofia e ética

Ockham propõe um princípio lógico conhecido como a nava-


lha de Ockham, ou lei da parcimônia. Ele defende que as entida-
des não devem ser multiplicadas além da necessidade, ou seja, se
houver várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a
melhor. O princípio recomenda, assim, que se escolha uma teoria
que implique o menor número de entidades e premissas. Afinal, a
própria natureza é econômica, escolhendo a via mais simples.
Ainda hoje, a navalha de Ockham é utilizada em ciência como
princípio de economia e simplicidade para a escolha das teorias
científicas, eliminando conceitos supérfluos.
Com base em novos conceitos filosóficos como o de Ockham,
surgiram estudos que resultaram na mecânica e na dinâmica, apre-
sentando relações com a obra de Galileu Galilei. A decadência da
teologia e o desenvolvimento dos fundamentos necessários para o
Renascimento foram processos simultâneos.
Embora não seja propriamente uma obra filosófica, devemos
destacar a importância da Divina comédia, de Dante Alighieri, como
representação das tensões e contradições do espírito medieval.
É importante você saber que o romantismo resgatou, nas últi-
mas décadas do século XVIII, o interesse pela Idade Média, mas
foi apenas no final do século XIX que se intensificaram os estudos
sobre o período, incluindo a publicação de edições críticas.

Filosofia moderna
Filosofia do Renascimento (séculos XIV‑XVI)
O conceito de Renascimento, assim como o de Idade Média,
vem sendo cada vez mais discutido e criticado. O nominalismo
medieval, por exemplo, tem sido destacado como essencial para o
espírito naturalista e científico do Renascimento.
Na segunda metade da Idade Média, já se anunciavam os fatos
que seriam determinantes do espírito renascentista. São eles: as
civilizações sarracena e bizantina (cujos monges e sábios trouxe-
ram manuscritos helênicos para o Ocidente após a tomada de
Constantinopla pelos turcos, renovando, assim, o interesse pelos
estudos clássicos nos mosteiros e nas catedrais), o crescimento do
comércio e das cidades, o desenvolvimento das universidades e de
suas bibliotecas e o surgimento da impressão tipográfica.

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História da filosofia 51

Você consegue agora imaginar a importância histórica da po-


pularização dos livros? O livro fácil e abundantemente reproduzi-
Saiba mais
do significava a possibilidade do livre exame, do espírito científico
e objetivo, da discussão de todos os problemas. A tipografia é o
A utilização do papel como substituto do pergaminho pode ser processo de
destacada como uma das mais importantes inovações do Renasci- composição de um
texto, física ou
mento. A introdução e a vulgarização do papel na Europa determi-
digitalmente. Tipos
naram os destinos da civilização ocidental, pois ele atendia as
móveis rudimentares
necessidades de um material barato, praticamente inesgotável,
foram inventados pelos
capaz de substituir com infinitas vantagens o pergaminho.
chineses. No século XV,
A democratização da cultura e o humanismo renascentista po-
foram redescobertos
dem ser associados ao resultado dessa substituição. Com o Renas-
por Johann Gutenberg,
cimento, o homem voltou a ocupar o lugar central do pensamento, que criou a prensa
por isso é possível falar em humanismo renascentista. O homem tipográfica. A diferença
prático, como o artista e o artesão, predomina sobre o homem me- entre os tipos chineses
ditativo. Os filósofos são menos importantes nesse período e, con- e os de Gutenberg é
siderando a filosofia, talvez não seja possível afirmar, como em que os primeiros não
muitos outros campos, que houve progresso em relação à Idade eram reutilizáveis.
Média. A reutilização dos
Apesar disso, podemos distinguir algumas correntes filosófi- mesmos tipos para
cas do período. São elas: neoplatonismo (principalmente com compor diferentes
Marcílio Ficino); averroísmo (os averroístas liam Aristóteles textos constituiu a base
como um filósofo naturalista); os sábios ou cientistas − cujo mo- da imprensa durante
delo é o grego Arquimedes (287-212 a.C.), considerado o maior muitos séculos. Essa
matemático da Antiguidade −; os moralistas; e os políticos (cujo revolução, que deu

expoente é Maquiavel, que estudaremos mais à frente). início à comunicação


em massa, foi definida
Giordano Bruno (1548-1600) é uma figura de destaque do neo­
por Marshall McLuhan
platonismo italiano, não apenas por sua filosofia, mas principal-
(1972) como o início do
mente por sua história de vida, de constante confrontação com a
“homem tipográfico”.
Igreja. Bruno criticava tanto os reformadores quanto o catolicismo
e o judaísmo. Assim, como precursor da ciência moderna, defendia a
tese do heliocentrismo do astrônomo polonês Nicolau Copérnico,
a ideia de mundos infinitos e da eternidade do Universo, além de
reviver o atomismo (corrente filosófica pré‑socrática que propunha
que toda matéria era formada por inúmeras e minúsculas partículas
sólidas e indivisíveis − os átomos). Por suas ideias, Giordano Bru-
no passou oito anos preso, até ser condenado a morrer na fogueira.
Até aqui, você pôde perceber a importância das correntes filo-
sóficas na história antiga e na medieval. No Renascimento, no
entanto, o que se destaca mesmo são:

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52 Filosofia e ética

o progresso da anatomia e da medicina;


Saiba mais
o novo método científico e empírico de livre exame;
O filme Giordano Bruno a substituição da visão geocêntrica pela heliocêntrica (aperfei-
(1973), do diretor çoada por Kepler);
Giuliano Montaldo, as obras de Isaac Newton;
mostra, além dos a Reforma Protestante associada a interesses comerciais, com
percalços de sua vida, Lutero na Alemanha, Calvino na Suíça, Henrique VIII na In-
toda uma estrutura glaterra e John Knox na Escócia − contribuindo para um clima
religiosa em pleno de maior tolerância religiosa e individualismo;
desmoronamento e a a Revolução Comercial, o mercantilismo e os Grandes Desco-
tentativa de controlar e brimentos;
reprimir quaisquer o espírito nacionalista, precursor do absolutismo;
ideias que viessem a o surgimento das línguas nacionais em substituição ao latim;
questionar as regras e a incrível personalidade de Leonardo da Vinci;
doutrinas da Igreja. O as descobertas de Galileu Galilei;
enredo ilustra o o desenvolvimento das artes (principalmente pintura, escultura
nascimento do espírito e música).
individualista
renascentista que Filosofia moderna
caracterizaria a Idade
As discussões filosóficas a partir da Idade Moderna (século
Moderna.
XVI) encontram‑se, em geral, bem mais próximas das necessida-
des e experiências do homem contemporâneo, em comparação
com a filosofia antiga e medieval. A pergunta “O que é o real?”,
Fique atento feita pelos antigos, foi substituída na filosofia moderna por:
“Como é possível o conhecimento do real?”.
O Renascimento é um
A seguir, vamos apresentar a você um panorama da filosofia mo-
movimento essencial na
derna, com destaque para alguns filósofos e movimentos que serão,
história da razão
em sua maioria, estudados com mais detalhes em outros temas.
ocidental, mas a
filosofia, em seu sentido
mais estrito, parece ter Descartes (1596-1650)
ficado de fora de seu O matemático e filósofo René Descartes, pai da geometria ana-
desenrolar. O lítica, pode ser visto como o marco da filosofia moderna. Coube a
individualismo, que Descartes checar a fundação do conhecimento herdado da Idade
começou a se delinear Média e buscar para ele uma nova justificação, defendendo a ra-
no discurso filosófico de zão como princípio do conhecimento.
Descartes e marcou Você já ouviu a frase “Penso, logo existo”? Ela é de autoria de
toda a Idade Moderna e Descartes, que utilizou a matemática e a geometria como modelos
a Contemporânea, já de raciocínio para edificar seu sistema.
aparece de forma Depois de estudar no colégio jesuíta La Flèche e Direito na
decisiva nas mais Universidade de Poitiers (França), ele iniciou, aos 22 anos, uma
diversas manifestações série de viagens pela Europa. Em 10 de novembro de 1619, na
do Renascimento.

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História da filosofia 53

  Figura 2.1  Sistema de coordenadas no plano cartesiano. 

Y
6
B (6,5)
O esquema baseado nos eixos 5
x e y que aprendemos no ensino 4
médio é chamado sistema de A (–5,3)
3
coordenadas no plano cartesiano
2
(ou espaço cartesiano) por causa
de seu criador, Descartes, o pai da –6 –5 –4 –3 –2 –1 1
D (0,0)
geometria analítica. x
–1 1 2 3 4 5 6
–2
–3
–4 C (4,5;–3,5)
–5
–6

Alemanha, teve um sonho indicando que sua missão seria fundar


um novo sistema científico e filosófico.
Uma de suas obras mais importantes é Discurso sobre o méto-
do, enquanto as Meditações apresentam suas respostas às críticas
feitas à obra anterior.
Sua ênfase na razão e no mundo sensível como fontes de co-
nhecimento determinou o futuro da reflexão filosófica, tanto que
sua teoria do conhecimento será estudada na Unidade 3. São tam-
bém importantes para Descartes a metafísica, as ciências físicas e a
ética. O filósofo construiu uma metáfora do conhecimento, compa­
rado a uma árvore cujas raízes seriam a metafísica; o tronco, a fí-
sica; e os galhos, as diversas ciências, sendo as três principais a
medicina, a mecânica e a moral.
O método cartesiano apoia‑se na recusa de qualquer fundamento,
princípio ou verdade recebida da tradição e da experiência. O sujeito,
segundo Descartes, deve fundar as bases e as condições para a cons-
trução do conhecimento. Assim, o “edifício” das opiniões recebidas
deve ser demolido para uma nova construção. Um dos princípios ló-
gicos que Descartes adotou em seu exercício é o de não admitir como
verdade qualquer coisa que pudesse ser colocada em dúvida. Descar-
tes estende a dúvida à própria existência dos objetos e até mesmo de
seu corpo, até que atinge uma certeza inquestionável:
De há muito observamos que, quanto aos costumes, é necessário às
vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como

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54 Filosofia e ética

se fossem indubitáveis (...); mas, por desejar então ocupar‑me so-


mente com a pesquisa da verdade, pensei que era necessário agir
exatamente ao contrário, e rejeitar como absolutamente falso tudo
aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se,
após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente
indubitável (...). E enfim, considerando que todos os mesmos pensa-
mentos que temos quando despertos nos podem também ocorrer
quando dormimos, sem que haja nenhum, nesse caso, que seja ver-
dadeiro, resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então ha-
viam entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilu-
sões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto
eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente
Fique atento que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verda-
de: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais
Descartes também é
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a aba-
classificado como
lar, julguei que podia aceitá‑la, sem escrúpulo, como o primeiro prin-
racionalista, ao lado de
cípio da Filosofia que procurava. (Descartes, 1973, p. 39)
Spinoza e Leibniz. O
racionalismo é um O dualismo entre mente e corpo é uma das heranças do pensa-
movimento que mento de Descartes para a história da filosofia.
destaca a importância
da razão no ser Pascal (1623-1662)
humano.
Blaise Pascal foi outro importante filósofo moderno, que se dedi-
cou também à teologia. Desenvolveu ainda trabalhos inovadores em
geometria, matemática e física, contribuindo para a criação de cam-
pos de estudo como geometria projetiva e teoria das probabilidades.

Exemplo
O princípio de Pascal (ou lei de Pascal) é representado pela fórmula:
ΔP = ρg(Δh)
onde:
ΔP = pressão hidrostática ou diferença de pressão entre dois pontos da colu-
na de fluido, devido ao peso do fluido;
ρ = densidade do fluido;
g = aceleração da gravidade da Terra ao nível do mar;
Δh = altura do fluido ou diferença entre dois pontos da coluna de fluido.

O filósofo construiu também a primeira máquina de calcular


mecânica, denominada Pascaline. A linguagem de programação
Pascal, criada em 1970, faz uma homenagem ao filósofo francês.

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História da filosofia 55

Quando se converteu ao jansenismo, uma corrente religiosa


católica inspirada no bispo Cornélio Jansen, Pascal se recolheu na
Abadia de Port Royal, em Paris, onde escreveu uma de suas prin-
cipais obras, Pensamentos, uma apologia ao cristianismo.
Nessa obra, Pascal desenvolveu seu conhecido argumento da
aposta na existência de Deus. Se não podemos decidir racional-
mente sobre a existência ou não de Deus, devemos apostar em sua
existência. Afinal, se quem aposta na existência de Deus estiver
certo, ganhará a salvação e a vida eterna; já, se estiver errado, não
perderá nada com a aposta. De outro lado, se quem aposta na ine-
xistência de Deus estiver certo, não ganhará nada com a aposta;
mas, se estiver errado, será castigado após a morte.

Spinoza (1632-1677)
O filósofo holandês Baruch Spinoza é outro nome de destaque
na história da filosofia moderna. A ética e a metafísica são os tra-
ços mais importantes de sua obra. Ética, publicada depois de sua
morte, é um trabalho bastante influente na filosofia ocidental. Ela
é apresentada como um sistema dedutivo, à maneira de Euclides,
geômetra da Grécia Antiga que viveu no século III a.C.
Spinoza defendia uma metafísica monista, baseada na noção
de substância e tendo Deus como princípio, identificado com a
natureza. Por isso, seu sistema é denominado panteísta ou natura-
lista. Vários autores chegam a interpretar sua filosofia como mís-
tica. Por isso, ele exerceu influência não só na história da filosofia,
mas também na da literatura.

Leibniz (1646-1716)
Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo e matemático alemão, é
outro nome que deve ser lembrado nesse período. Para ele, a mô-
nada é a substância simples que compõe tanto o mundo espiritual
quanto o material. O processo cognitivo, segundo Leibniz, dá‑se
por meio da memória, da razão e dos sentidos. O pensamento de
Leibniz foi essencial para o desenvolvimento do cálculo e da lógi-
ca, principalmente a lógica simbólica.
Durante sua vida, pouco de seu trabalho foi publicado. Além
da filosofia, Leibniz deixou contribuições importantes nos cam-
pos da geologia, linguística, historiografia e física.

PB Filosofia e Etica Book.indb 55 11/1/12 2:23 PM


56 Filosofia e ética

Outros nomes
Vários outros nomes poderiam ser apontados na história da
filosofia moderna, que em geral também se destacaram em outros
ramos do conhecimento, como Galileu Galilei (1564-1642), Pier-
re Gassendi (1592-1655), Nicolas Malebranche (1638-1715) e
Isaac Newton (1643-1727).

Empirismo
Para esclarecer o conceito de empirismo, você pode imaginar
uma cena simples, na qual uma mãe diz ao filho que não se apro-
xime do fogão para que não se queime. A criança não segue a
orientação e só acredita que o fogão é de fato quente quando “tes-
ta” o que foi dito pela mãe, colocando a mão na chama acesa do
fogão. Assim, ela usa um dos sentidos − o tato − para adquirir, por
meio da experiência, um conhecimento.
O empirismo afirma que a única fonte de nossas ideias é a
experiência sensível. Em geral, para os empiristas, tudo o que está
Saiba mais no intelecto passou antes por nossos sentidos, que são então valo-
O método empírico e rizados. Assim, os empiristas ingleses destacam a importância da
experimental sensação e da experiência, discutindo temas como o uso de hipó-
caracterizou as ciências teses, a estrutura do raciocínio indutivo e a probabilidade.
modernas e O empirismo se coloca, portanto, contra o racionalismo de Des-
contemporâneas. cartes, Leibniz e Spinoza, chamando a atenção para o mundo em-
Por meio da observação
pírico. Não interessa para os empiristas, como interessava para os
e da indução,
racionalistas, o aspecto analítico e racional das proposições, mas
formam‑se hipóteses
sua relação com a realidade. A experiência (empeiria, em grego)
que devem ser então
verificadas e testadas
deve ser o guia e o critério de validade para nossas afirmações.
por experiências. Se o O empirismo desenvolveu‑se principalmente na Inglaterra,
empirismo não que, no final do século XVI, passava por um intenso crescimento
determinou econômico, o qual deu origem à Revolução Industrial. Em 1660,
o desenvolvimento por exemplo, foi fundada a Royal Society of London for the Impro-
das ciências naturais ou vement of Natural Knowledge (Sociedade Real de Londres para o
empíricas, ajudou, sem Progresso do Conhecimento da Natureza), interessada na aplica-
dúvida, a construir uma ção prática do conhecimento, com a qual muitos empiristas tive-
atmosfera intelectual
ram ligações estreitas.
apropriada para os
Francis Bacon (1561-1626) pode ser considerado o introdutor
métodos dessas
do método experimental indutivo moderno. Outros nomes impor-
ciências.
tantes do empirismo são John Locke (1632-1704), que desenvolveu

PB Filosofia e Etica Book.indb 56 11/1/12 2:23 PM


História da filosofia 57

interessantes discussões sobre filosofia da linguagem; George


Berkeley (1685-1753); e David Hume (1711-1776).
John Stuart Mill (1806-1873) é considerado por alguns um re-
Saiba mais
presentante tardio do empirismo. Ele desenvolveu a teoria do libe-
A história do filme
ralismo na economia e do utilitarismo na ética.
Danton: o processo da
revolução (1982),
Iluminismo
dirigido por Andrzej
No século XVIII, estabeleceu‑se uma forte crença no poder da Wajda, começa em
razão como instrumento para o ser humano e a sociedade alcança- 1794 e mostra a Fase do
rem a liberdade e a felicidade, assim como na noção de progresso Terror que se instaurou
da civilização. Houve uma tentativa de conciliar o empirismo e o na França após a
racionalismo, além de uma preocupação intensa com o Estado e revolução. O foco do
enredo é o
com o desenvolvimento da filosofia política e social.
enfrentamento entre o
Esse movimento político, social, cultural e filosófico é conhe-
jacobino Maximilien
cido como Século das Luzes, ou iluminismo. Ciências, psicologia, Robespierre, que estava
teoria do conhecimento, religião, história, direito, Estado e estéti- no poder, e o dissidente
ca são alguns dos temas explorados pelos filósofos iluministas. Georges Danton, que
Entre os principais representantes do iluminismo, estão tem o apoio do povo.
Jean‑Jac­ques Rousseau (1712-1778), Voltaire (1694-1778), Mon- Em julho de 1794, os
jacobinos Robespierre e
tesquieu (1689-1755), Diderot (1713-1784) e D’Alembert (1717-
Saint‑Just são presos,
1783). São também considerados iluministas David Hume (já
julgados e
mencionado como empirista) e Kant (mencionado a seguir como guilhotinados, o que
idealista). marcou o retorno dos
A Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des girondinos e da alta
arts et des métiers (Enciclopédia ou Dicionário racional das ciên- burguesia ao poder.
cias, das artes e dos ofícios), talvez o projeto que mais bem repre- Sabemos que a
sente os ideais do iluminismo, foi publicada entre 1751 e 1772 e Revolução Francesa e a
Fase do Terror não se
editada por Diderot, com verbetes de mais de 140 colaboradores,
resumem ao confronto
como o próprio Diderot, Voltaire, D’Alembert, Rousseau e Mon-
entre Robespierre e
tesquieu. A Enciclopédia pretendia ser a síntese do saber da época Danton, pois outras
e chegou a 28 volumes, mais de 70 mil artigos e quase 3 mil ilus- forças estavam
trações, incluindo informações sobre filosofia, artes, ciências e envolvidas e
tecnologia. completavam o
Os ideais do iluminismo tiveram influência na Declaração de panorama do período
da história europeia que
Independência dos Estados Unidos (1776), na Revolução France-
se refletiu no mundo
sa (1789) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
todo.
(1789), entre vários outros movimentos.

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58 Filosofia e ética

Idealismo
O idealismo alemão, principalmente com o iluminista Immanuel­
Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770­‑1831),
este último classificado por alguns como contemporâneo, é um
movimento essencial na história da teoria do conhecimento, res-
saltando a importância do sujeito no conhecimento. A arquitetura
da mente, mais do que a própria realidade, passou a ser tema cen-
tral da filosofia dos idealistas.
Kant pode ser considerado um marco na filosofia moderna,
com sua tentativa de superar a dicotomia entre racionalismo e em-
pirismo. Entre suas principais obras, podemos citar: Fundamenta-
ção da metafísica dos costumes, Crítica da razão pura, Crítica da
razão prática, Crítica do juízo (ou Da faculdade de julgar, que
discute estética e teve grande influência sobre o romantismo ale-
mão) e Metafísica dos costumes (que aborda questões relaciona-
das à liberdade e à moralidade).
Enquanto a razão pura lida com a epistemologia e a razão prá-
tica se ocupa da moral, a razão possuiria ainda para Kant uma
terceira faculdade, responsável pela produção de conceitos puros
como Deus, alma, mundo e liberdade.
O pensamento de Kant foi retomado no final do século XIX e
início do século XX pelo movimento que ficou conhecido como
neokantismo, ou neocriticismo, principalmente como reação ao
hegelianismo. Seu lema era “Retorno a Kant!”.
Formaram‑se duas grandes escolas neokantianas, nas quais se
destacaram Hermann Cohen e Paul Natorp (Escola de Marburgo),
Windelband e Ricker (Escola de Baden) e Ernst Cassirer, autor de
Antropologia filosófica e da importante Filosofia das formas sim-
bólicas, em que propõe uma interpretação do conhecimento e da
cultura por processos históricos de simbolização. O neokantismo
foi um movimento influente na história da filosofia contemporâ-
nea e se estendeu para além da Alemanha.
Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), outro importante
nome do idealismo, desenvolveu um pensamento específico,
denominado idealismo transcendental, que exerceu profunda
influência no romantismo. Ele se dedicou também à filosofia da
religião, o que gerou a acusação de ateísmo. A edição crítica de
suas obras está sendo publicada desde 1962, em um projeto que
prevê 40 volumes.

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História da filosofia 59

Friedrich Wilhelm Schelling (1775-1854) desenvolveu o idea­


lismo absoluto, uma filosofia da natureza, mais holística, dedi-
cando‑se também à estética e à filosofia da religião. Sua obra
Investigações filosóficas sobre a essência da liberdade humana
antecipa algumas discussões que apareceram posteriormente no
existencialismo, como a questão do mal e da liberdade. Suas obras
finais, não publicadas em vida, dedicam‑se à filosofia da revela-
ção e à mitologia.
Hegel desenvolveu um pensamento sistemático, para muitos o
último grande sistema da história da filosofia, com um vocabulá-
rio técnico e complexo. Seu sistema cobre inúmeras áreas, como
ética, metafísica, filosofia da natureza, filosofia do direito, lógica,
estética, filosofia da história, filosofia da religião e filosofia polí-
tica. Suas principais obras são Fenomenologia do espírito, Enci-
clopédia das ciências filosóficas e Ciência da lógica. Anotações
de seus alunos deram origem a várias outras obras, publicadas
após sua morte.
A história da filosofia, para Hegel, é a história do espírito hu-
mano em desenvolvimento, superando o indivíduo. Esse desen-
volvimento é marcado pela dialética, que move o Universo. Dessa
perspectiva, ele escreveu uma influente história da filosofia, desde
Tales de Mileto. Hegel também criticou a teoria do conhecimento
de Kant, pois a teoria do conhecimento (epistemologia), segundo
ele, funde‑se com a teoria do ser (metafísica). Hegel destacou‑se
também pela interpretação dos eventos econômicos e políticos de
sua época, como a Revolução Francesa.
No final do século XIX e início do século XX, assistimos a um
ressurgimento do pensamento de Hegel, o neo‑hegelianismo. Sua
filosofia exerceu forte influência em diversos autores e movimen-
tos, como Marx e o marxismo, Wilhelm Dilthey e as filosofias
que enfatizam a natureza histórica e social da existência humana,
o existencialismo, a hermenêutica e a Escola de Frankfurt, a pon-
to de ter criado duas escolas, os neo‑hegelianos de direita e de
esquerda.
Por fim, cabe lembrar que o idealismo exerceu profunda in-
fluência no romantismo e nos autores e pensadores românticos.
Destaques da filosofia estética do romantismo são as Cartas sobre
a educação estética do homem, de Friedrich Schiller (1759-1805),
e as obras filosóficas de Friedrich Schlegel (1772-1829).

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60 Filosofia e ética

Filosofia contemporânea
Definir onde termina a filosofia moderna e onde começa a fi-
losofia contemporânea é uma tarefa que gera discordâncias entre
os estudiosos. Nesta obra, consideramos como contemporânea a
filosofia posterior ao idealismo alemão.
A filosofia contemporânea é quase toda uma reação ao idealis-
mo, incluindo desde posições solitárias como a do espanhol Geor-
ge Santayana (1863-1952) até movimentos como o neotomismo.
É difícil categorizar ou separar em escolas a filosofia contem-
porânea, pois seus autores e obras estão muito próximos de nós,
faltando‑nos o distanciamento necessário para uma melhor avalia-
ção. De qualquer maneira, podemos lembrar que vários aconteci-
mentos marcaram a história contemporânea e, consequentemente,
sua filosofia. Charles Darwin (1809-1882), autor de A origem das
espécies, com sua teoria da evolução que defende que as espé-
cies biológicas desenvolvem‑se primordialmente por variações
casuais­e seleção natural, já havia abalado a crença de que os ho-
mens eram seres separados da evolução dos animais.
A teoria da relatividade embaralhou nossa visão de tempo e es-
paço, a psicanálise colocou em xeque a crença de que atuamos de
acordo com nossa consciência, o marxismo mostrou que nossas de-
cisões são determinadas por condições materiais e relações de po-
der, a inteligência artificial veio questionar se a inteligência humana
é a única forma de inteligência possível, e a engenharia genética nos
apontou um mundo em que será possível clonar seres humanos, in-
fluindo decisivamente em seu futuro antes mesmo de seu nascimen-
to. Além disso, é importante lembrar que no século passado vivemos
duas grandes guerras mundiais, o que também refletiu na filosofia.
E, por fim, o impressionante desenvolvimento das ciências naturais
também marcou o pensamento contemporâneo.

Schopenhauer (1788-1860)
Ímpar e extemporâneo na história da filosofia é o pensador
alemão Arthur Schopenhauer. Sua filosofia pessimista influen-
ciou, por exemplo, tanto o simbolismo francês quanto a literatura
portuguesa. Para ele, o pessimismo só poderia ser superado pela
arte e pela experiência estética. Sua importância sobre o pensa-
mento de Nietzsche é também decisiva.

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História da filosofia 61

Escrito em 1818, O mundo como vontade e representação é


sua obra‑prima, na qual ele desenvolve o conceito de vontade em
filosofia. Vejamos um trecho extraído do início dessa obra:
“O mundo é minha representação.” Esta é uma verdade que vale em
relação a cada ser que vive e conhece, embora apenas o homem pos-
sa trazê‑la à consciência refletida e abstrata. E de fato o faz. Então nele
aparece a clarividência filosófica. Torna‑se‑lhe claro e certo que não
conhece sol algum e terra alguma. Que o mundo a cercá‑lo existe
apenas como representação, isto é, tão somente em relação a ou-
trem, aquele que representa, ou seja, ele mesmo. — Se alguma verda-
de pode ser expressa a priori, é essa, pois uma asserção da forma de
toda experiência possível e imaginável, mais universal que qualquer
outra, que tempo, espaço e causalidade, pois todas essas já a pressu-
põem; e, se cada uma dessas formas, conhecidas por todos nós como
figuras particulares do princípio da razão, somente vale para uma
classe específica de representações, a divisão em sujeito e objeto, ao
contrário, é a forma comum de todas as classes, unicamente sob qual
é em geral possível pensar qualquer tipo de representação, abstrata
ou intuitiva, pura ou empírica (SCHOPENHAUER, 2005, p. 46).

Bergson (1859-1941)
Outro nome importante da filosofia contemporânea, que não
se vincula diretamente a nenhum movimento, é o do filósofo fran-
cês Henri Louis Bergson. Sua obra é crítica do intelectualismo, da
razão e das concepções puramente mecânicas do mundo. A reali-
dade, segundo ele, não deveria ser apenas analisada (pela ciência),
mas também intuída (pela arte ou pela filosofia).
Bergson discute também os conceitos de memória e de tempo
em filosofia, opondo o fluxo da duração à divisão do tempo em
entidades numéricas discretas, como segundos, minutos etc. Suas
ideias influenciaram diversos movimentos artísticos, literários,
sociais e políticos. Em 1927, ele recebeu o Prêmio Nobel de Lite-
ratura. Leia a seguir um trecho em que o filósofo diferencia a ciên-
cia da metafísica:
(...) a ciência positiva se dirige à observação sensível. Ela obtém
assim materiais cuja elaboração confia à faculdade de abstrair e
de generalizar, ao juízo e ao raciocínio, à inteligência. Tendo par-
tido, no passado, das matemáticas puras, ela continuou através
da mecânica, depois da física e da química; chegou tardiamente

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62 Filosofia e ética

à biologia. Seu domínio primitivo, que permaneceu como o pre-


ferido, é o da matéria inerte. Ela está menos à vontade no mundo
Saiba mais
organizado, onde somente caminha com passo seguro apoian-
Pascal denominou do‑se na física e na química; ela prende‑se ao que há de físi-
espírito geométrico co‑químico nos fenômenos da vida mais do que ao que é pro-
(esprit geométrique) a priamente vital no vivente. Mas seu embaraço é grande quando
razão que, com suas chega ao espírito. Isto não quer dizer que ela não possa obter aí
meditações, procura dar algum conhecimento; mas este conhecimento torna‑se tanto
ao homem o exato, o mais vago quanto mais ela se distancia da fronteira comum ao
lógico, o pensável. O espírito e à matéria. Neste novo terreno não se avança, como no
espírito da finura (esprit antigo, fiando‑se unicamente na força de lógica. Sem cessar é
de finesse), por outro preciso passar do “esprit geométrique” ao “esprit de finesse”: ain-
lado, é representado
da resta algo de metafórico nas fórmulas, por mais abstratas que
pela emoção, pelo
sejam, que utilizamos, como se a inteligência fosse obrigada a
coração, pela religião e
transpor o psíquico no físico para compreendê-lo e exprimi-lo
pela moral: elementos
(BERGSON, 1984, p. 119).
que, se reunidos,
podem transcender o
mundo físico. Filosofia da linguagem
Você pode perceber, principalmente na filosofia contemporânea,
uma preocupação genérica com a linguagem, associada à lógica e à
filosofia das ciências. Essa preocupação, na verdade, vem desde os
gregos e se estende até as teorias linguísticas contemporâneas.
Costumamos chamar esse movimento de virada linguística (lin-
guistic turn), nome genérico utilizado numa antologia editada por
Richard Rorty (1992), The linguistic turn. Essays in philosophi-
cal method. Podemos dividir esse movimento em várias correntes,
como você vai ver a seguir.

Filosofia analítica
Surgiu inicialmente na Alemanha, estendendo‑se posterior-
mente para a Inglaterra, um movimento fundamentado na lógica
matemática que procura desenvolver uma filosofia analítica da
linguagem, centrada na análise do significado de conceitos e de
proposições.
O filósofo e matemático alemão Friedrich Ludwig Gottlob
Frege (1848-1925) pode ser considerado o precursor da filosofia
analítica. Ele foi essencial no desenvolvimento da lógica matemá-
tica, graças ao cálculo dos predicados, e criou um sistema de re-
presentação simbólica para a lógica.

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História da filosofia 63

O filósofo e matemático britânico Bertrand Russell (1872­


‑1970) é um dos expoentes da filosofia analítica. Ele descobriu um
Link
paradoxo no sistema de Frege, que ficou conhecido como parado-
xo de Russell, para o qual propõe a teoria dos tipos, um dos pontos Confira o site da
Bertrand Russell Society:
principais de seu logicismo, que defende que a matemática pura
<www.users.drew.
pode ser derivada de princípios lógicos. Além de se dedicar tam-
edu/~jlenz/brs.html>.
bém à filosofia política, social, e à teoria do conhecimento, Rus-
sell contribuiu decisivamente para o desenvolvimento da lógica
simbólica.
O austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951) é o outro grande
nome da filosofia analítica, que explora a filosofia e a lógica da lin-
guagem. Wittgenstein tem estilo próprio, em geral com aforismos
curtos e numerados. Leia a seguir um pequeno trecho de sua obra:
5.6 Os limites de minha linguagem significam os limites de meu
mundo.
(...)
5.641 Assim, há realmente um sentido em que se pode, em filoso-
fia, falar não psicologicamente do eu. O eu entra na filosofia pela
via de que “o mundo é meu mundo”. O eu filosófico não é o ho-
mem, não é o corpo humano, ou a alma humana, de que trata a
psicologia, mas o sujeito metafísico, o limite − não uma parte − do
mundo (WITTGENSTEIN, 1994).
Como diferenciação em relação à filosofia analítica, que se es-
tabeleceu principalmente na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados
Unidos, foi criado o termo filosofia continental para se referir a
vários movimentos que se desenvolveram na Europa continental
no século XX, como fenomenologia, existencialismo, estruturalis-
mo, marxismo e Escola de Frankfurt, que você vai estudar a seguir.

Círculo de Viena e neopositivismo


De todas as correntes filosóficas da contemporaneidade, a
que mais influenciou o Brasil foi o positivismo. Como exemplo,
podemos citar que a expressão “Ordem e Progresso”, gravada
em nossa bandeira? Tem origem na filosofia positivista.
O francês Auguste Comte (1798-1857), maior filósofo do po-
sitivismo, foi importante para definir as diretrizes filosóficas do
século XX, principalmente em suas relações com a Revolução In-
dustrial e o início da sociologia enquanto ciência.

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64 Filosofia e ética

Ao positivismo associa‑se o ideal de neutralidade das ciências.


Para Comte, a ciência seria o conhecimento por excelência. Con-
ceitos e expressões têm significado se, e apenas se, puderem ser
relacionados a eventos reais por meio de operações de mensura-
ção, ou seja, se forem operacionalizados.
O neopositivismo (positivismo lógico ou empirismo lógico)
foi uma extensão do positivismo que também destacou a impor-
tância da operacionalização. Caracteriza‑se pela combinação de
ideias empiristas com a lógica moderna de Frege, Russell e Witt-
genstein, presentes nesta unidade, além de Hilbert e Peano.
O movimento surgiu na Áustria com o “Círculo de Viena”, um
grupo de filósofos e cientistas que se reuniam periodicamente para
discussões, entre 1922 e 1938, e estendeu‑se para a Alemanha e a
Polônia.
Um dos promotores do movimento foi o filósofo inglês Alfred
Jules Ayer (1910-1989). Em 1934, o Círculo de Viena começou
a se desfazer, com a morte e dispersão de muitos membros do
grupo, fugindo do nazismo, o que levou vários de seus princi-
pais filósofos a emigrar para os Estados Unidos ou a Inglaterra.
Associados ao Círculo de Viena, Kurt Gödel (1906-1978), Ernest
Nagel (1901-1985) e Karl Rudolf Carnap (1891-1970) migraram
para os Estados Unidos, e assim o neopositivismo acabou influen-
ciando a filosofia norte‑americana, como na obra de Willard van
Orman Quine (1908-2000), que já tinha visitado o grupo.
O neopositivismo defende a fundamentação do conhecimento
na lógica das teorias científicas. Para os neopositivistas, a veri-
ficabilidade seria o critério de significação de um enunciado. O
sentido das proposições científicas dependeria, portanto, de sua
verificabilidade empírica. Assim, a lógica, a matemática e as ciên-
cias empíricas esgotariam o conhecimento possível do real. O
neopositivismo destaca‑se também pelas investigações centradas
num critério de demarcação, que separaria as proposições cientí-
ficas das não científicas.

Filosofia da linguagem ordinária


Uma variação da filosofia analítica da linguagem ficou conhecida
como filosofia da linguagem ordinária, ou filosofia linguística, que
explora a linguagem que utilizamos no dia a dia, em contraposição
ao movimento anterior, às vezes chamado de filosofia da linguagem

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História da filosofia 65

ideal. Para a filosofia da linguagem ordinária, o significado dos con-


ceitos, incluindo aqueles centrais à filosofia tradicional, é fixado pela
prática linguística, e a filosofia, portanto, tem que prestar atenção
aos usos ordinários das palavras associadas a esses conceitos, em
vez de estudar essas palavras e conceitos fora de seu contexto de uso.
Para estudar filosoficamente conceitos como verdade e realidade,
por exemplo, temos que avaliar como essas palavras são utilizadas
na linguagem ordinária.
O movimento teve início em Oxford (Inglaterra), nos anos
1940, com Gilbert Ryle (1900-1976) e John Langshaw Austin
(1911-1960). Podem ainda ser citados Peter Frederick Strawson
(1919-2006), John Searle (1932-) e Herbert Lionel Adolphus Hart
(1907-1992). Os últimos trabalhos de Wittgenstein, filósofo analí-
tico, podem também ser classificados aqui.

Hipótese Sapir‑Whorf
Você entende a realidade a seu redor por meio da linguagem?
Ou acredita que a linguagem não interfere em sua interpretação
pessoal da realidade? Edward Sapir (1884-1939) e seu aluno Ben-
jamin Lee Whorf (1897-1941) escreveram sobre a hipótese de que
nossa percepção, pensamento e comportamento são influenciados
pela língua que falamos. A realidade seria de alguma maneira
construída pela linguagem.
As línguas possuem sistemas de representação distintos e, em
alguns pontos, não equivalentes, o que implicaria distinções na
forma de ler o mundo entre as diferentes culturas. Assim, as ma-
neiras como as pessoas percebem e classificam os objetos da rea-
lidade seriam determinadas pelas estruturas de seus sistemas
linguísticos.
As categorias características das línguas influenciariam as ca-
tegorias que construímos do mundo, nossa memória, percepção e
cognição em geral.

Gramática da linguagem natural


Noam Chomsky (1928-), linguista, filósofo e ativista políti-
co do Instituto de Tecnologia de Massachussetts (Massachussetts
Institute of Technology − MIT), é um dos representantes do inte-
resse pela filosofia da linguagem. Em Estruturas sintáticas, segui-
da de várias outras obras, ele apresenta sua teoria, que identifica

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66 Filosofia e ética

universais linguísticos comuns a todas as línguas, assim como a


nossos processos cognitivos e representacionais. Haveria um con-
junto inato de princípios linguísticos compartilhados por todos os
seres humanos. O cérebro teria uma faculdade da linguagem gra-
vada com uma gramática universal, que determinaria as línguas.

Hermenêutica
Você sabe interpretar textos, sinais, gestos, falas e outras ativi-
dades humanas dotadas de algum significado? A hermenêutica
destaca a importância da interpretação não apenas no caso de tex-
tos, mas em nossa relação com a realidade.
Além de significar arte ou teoria da interpretação, a herme-
nêutica é também um movimento filosófico que se iniciou com o
teólogo e filósofo Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e se de-
senvolveu com Martin Heidegger (1889-1976) e Wilhelm Dilthey
(1833-1911), que se destacou também em filosofia da história e
crítica literária, tendo em H. G. Gadamer (1900-2002), autor de
Verdade e método, seu principal representante contemporâneo.
O que ficou conhecido como círculo hermenêutico indica não
apenas que a interpretação de cada parte depende da interpretação
do todo, mas também que, como cada interpretação está ela mes-
ma baseada em interpretação, não se pode escapar da circularida-
de da interpretação.

Pragmatismo
O pragmatismo está associado ao filósofo, matemático, lógico
e cientista norte‑americano Charles Sanders Peirce (1839-1914),
que desenvolveu uma teoria geral dos signos, ou semiótica, que
teve grande influência no século XX. Além de Peirce, há outros
pragmatistas de destaque na história da filosofia, incluindo os
clássicos William James (1842-1910), John Dewey (1859-1952) e
George Herbert Mead (1863-1931).
Para os pragmatistas, a clareza das ideias implica conceber
seus efeitos de tipo prático, ou seja, sensações e reações associa-
das com o objeto do pensamento. A máxima pragmática diz que,
para clarificar, para desenvolver o significado de uma concepção,
você deve determinar quais hábitos ela produz, pois o que uma
coisa significa é simplesmente os hábitos que ela envolve. O
pragmatismo busca os resultados, mais do que as origens, em nos-
sa compreensão das ideias.

PB Filosofia e Etica Book.indb 66 11/1/12 2:23 PM


História da filosofia 67

Saiba mais
Além de movimento filosófico, o pragmatismo se difundiu para outras áreas,
como política, educação e crítica literária. Houve um ressurgimento do prag-
matismo, a que muitos dão o nome de neopragmatismo, depois da impor-
tância que assumiram algumas escolas, como o positivismo lógico, a filosofia
analítica e a filosofia da linguagem. Dois dos filósofos neopragmatistas con-
temporâneos mais importantes são Hilary Putnam (1926-) e Richard Rorty
(1931-2007), que foi professor da Universidade Stanford.

Estruturalismo
Você sabe, por exemplo, que um edifício é composto de estru-
turas até chegar a seu desenho final. Um carro pode servir de
exemplo também nessa comparação.
O estruturalismo defende que a realidade como a entendemos
também é composta de estruturas. Assim, seria possível encontrar
e estudar estruturas em arquitetura, no corpo, nas línguas, na psi-
cologia, na matemática, na geologia, na anatomia e até mesmo nas
ciências humanas e sociais. O método das ciências, portanto, teria
que identificar essas estruturas e explicar como suas partes se or-
ganizam numa totalidade, formalizando‑as.
Desenvolvido na França, entre os anos 1950 e 1960, o estrutu-
ralismo envolveu a filosofia, os campos da psicanálise e da psico-
logia, a antropologia, a linguística, as ciências sociais, a crítica
literária, a semiótica, além da matemática e da lógica, da física e
da biologia.
Nomes de destaque no movimento, incluindo os pós‑estrutura-
listas, são os linguistas Ferdinand de Saussure (1857-1913) – com
seu clássico Curso de linguística geral, Roman Jakobson (1896­
‑1982), A. J. Greimas (1917-1992) e Louis Hjelmslev (1899-1965);
o antropólogo Claude Lévi‑Strauss (1908-2009); os filósofos Mi-
chel Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1930-2004) e Michel
Serres (1930-); o estudioso da cultura grega Jean‑Pierre Vernant
(1914-2007); o psicólogo Jacques Lacan (1901-1981); além de
Roland Barthes (1915-1980), Louis Althusser (1918-1990), Gérard
Genette (1930-), Pierre Bourdieu (1930­‑2002) e George Dumézil
(1898-1986).

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68 Filosofia e ética

A estrutura não deveria ser entendida como algo estático, mas


sim como uma totalidade que se transforma e se autorregula. Fou-
cault, por exemplo, autor de obras como História da loucura e que
explora a constituição dos micropoderes na sociedade, exerceu
grande influência no Brasil. Derrida, por sua vez, desenvolveu um
complexo projeto chamado desconstrutivismo.
Entre os considerados pós‑estruturalistas, podemos ainda
destacar Jean‑François Lyotard (1924-1998), que desenvolveu o
conceito de pós‑modernismo, e Gilles Deleuze (1925-1995), que
defende a revalorização do corpo e do desejo, por considerá‑los
excluídos da história da filosofia.
Estão também associados ao estruturalismo, mesmo que in-
diretamente, nomes importantes como Jean Baudrillard (1929­
‑2007), Judith Butler (1956), Félix Guattari (1930-1992), Fredric
Jameson (1934-) e Julia Kristeva (1941-).

Fenomenologia existencial
A fenomenologia existencial, ou o existencialismo, destaca a
existência do homem como um dos mais importantes fenômenos
filosóficos, questionando o sentido e significado da vida.
Muitos consideram o escritor russo Fiodor Dostoievski (1821­
‑1881) o iniciador do existencialismo. Mas há outros nomes
importantes, como Heidegger, já citado no tópico sobre herme-
nêutica; Jean‑Paul Sartre (1905-1980), que se destacou também
no romance e teatro; o escritor e filósofo francês Albert Camus
(1913­‑1960); Maurice Merleau‑Ponty (1908-1961); o filóso-
fo‑dramaturgo e músico Gabriel Marcel (1889-1973); o filósofo e
psicólogo alemão Karl Theodor Jaspers (1883-1969); entre outros.
Heidegger se destacou por retomar a ontologia e a discussão
sobre o ser − o que somos e o ser‑aí (Dasein) −, fazendo releituras
de Heráclito e Parmênides. Segundo ele, acostumamo-nos com o
ser e, então, não nos lembramos mais de perguntar sobre seu sig-
nificado. Para o filósofo alemão, a noção de verdade seria anterior
à relação linguagem/objetos, identificada com o Dasein. Em sua
obra, Heidegger realizou também uma interessante reflexão sobre
a morte. Ele exerceu influência sobre a filosofia contemporânea
em várias correntes.
Sartre, autor de O ser e o nada, entre várias outras obras, foi
um dos mais populares intelectuais do século XX. Seu pensa-
mento é baseado em duas noções fundamentais: a liberdade e a

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História da filosofia 69

responsabilidade pessoal. Ao contrário do ser em‑si − coisas que


não têm consciência −, o homem é um ser para‑si; ou seja, so-
mos conscientes e responsáveis pelo que fazemos de nós mesmos
e, justamente por sermos livres, somos também responsáveis por
nossos atos.
Os filmes dirigidos pelo cineasta sueco Ingmar Bergman (1918­
‑2007) também podem ser classificados como existencialistas, pois
abordam temas como a angústia do ser humano, a liberdade, as
escolhas que fazemos e a morte.
Woody Allen, em seu filme Crimes e pecados (1989), também
se aproxima do existencialismo ao discutir as escolhas que fazemos
do ponto de vista moral. Depois de assistirmos aos dramas (ou co-
médias) vividos pelos dois protagonistas, encontramos na última
cena uma reflexão existencialista de que o homem é o conjunto das
escolhas que faz durante a vida:
Somos todos confrontados ao longo de nossa vida com decisões
agonizantes, escolhas morais. Algumas são em grande escala, a
maioria é sobre pontos menores. Mas nós nos definimos pelas es-
colhas que fizemos. Somos, na verdade, a soma total de nossas
escolhas. Acontecimentos se desdobram de maneira tão imprevi-
sível, tão injusta. A felicidade humana parece não ter sido incluída
no design da criação. Somos apenas nós, com nossa capacidade
para amar, que damos sentido ao universo indiferente. E, mesmo
assim, a maioria dos seres humanos parece ter a habilidade de
continuar tentando e inclusive encontrar alegria nas coisas sim-
ples, como sua família, seu trabalho, e na esperança de que gera-
ções futuras possam compreender mais.

Marxismo
Você acha que a filosofia apenas interpreta e entende o mundo,
ou é preciso também mudá‑lo? Para Karl Marx (1818-1883), os
filósofos haviam se limitado até então a interpretar o mundo, mas
o importante seria transformá‑lo.
Nesse sentido, ele se propõe a inverter o homem do idealista
Hegel. Seu materialismo dialético defende que o homem é um ser
social e o conhecimento é socialmente determinado. O capital foi
uma obra que exerceu enorme influência no pensamento e na prá-
tica do século XX, explorando o universo do trabalho, da luta de
classes e das relações de poder.

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70 Filosofia e ética

O marxismo é um amplo movimento que inclui desde Ludwig


Andreas Feuerbach (1804-1872) e Friedrich Engels (1820-1895)
até Lenin (1870-1924), Mao Tsé‑Tung (1893-1976), o revisionista
Antonio Gramsci (1891-1937), Georg Lukács (1885-1971) e Louis­
Althusser (1918-1990), entre vários outros nomes.
Na antiga União Soviética, entre 1917 e 1990, por exemplo,
imperou uma política baseada no marxismo‑leninismo. É impor-
tante, entretanto, distinguir o marxismo como corrente filosófica
do marxismo como programa social.
Na sequência, discutiremos dois aspectos do marxismo en-
quanto método. Em primeiro lugar, ele descreve o movimento da
realidade e do próprio pensamento por meio de uma dialética tese/
antítese/síntese. Nesse sentido, o marxismo defende a necessidade
do trabalho com a negação e com a contradição: pela confrontação
entre as ideias, seria possível gerar uma síntese, que por sua vez
deveria ser submetida a uma nova contradição, e assim por
diante.
Em segundo lugar, o marxismo é importante por defender que
os níveis econômico, jurídico‑político e ideológico devem ser estu-
dados no processo de construção do conhecimento. Assim, o mar-
xismo insiste que essas perspectivas devem ser levadas em conta,
nas ciências humanas, para a análise e interpretação dos fenôme-
nos relacionados ao ser humano e, em relação às ciências empíri-
cas, introduz uma perspectiva de estudar a verdade científica em
sua exterioridade, ou seja, não apenas o desenvolvimento interno
das ciências, seus métodos e sua lógica, mas também as influências
socioeconômicas que determinam seu progresso.

Escola de Frankfurt
Em 1924, foi fundado o Instituto de Pesquisas Sociais em
Frankfurt, onde se formou o movimento que ficou conhecido
como Escola de Frankfurt, logo se expandindo para outros países,
como França e Suíça. Entre seus membros, podemos destacar os
filósofos alemães Herbert Marcuse (1898-1979), Max Horkhei-
mer (1895-1973), Theodor W. Adorno (1903-1969) e Walter
Benjamin (1892-1940).
Fundamentada no marxismo, a Escola de Frankfurt desen-
volveu uma filosofia social, ou sociologia crítica, influenciada
também pela psicanálise. O psicanalista alemão Erich Fromm
(1900-1980), por exemplo, aproximou‑se, mas depois se afas-
tou do movimento. Em Eros e civilização, Marcuse aproximou o

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História da filosofia 71

marxismo das ideias de Freud. A produção da Escola de Frankfurt


destacou‑se também nas reflexões sobre a estética. Jürgen Haber-
mas (1929-) pode ser considerado um herdeiro da postura crítica
da Escola de Frankfurt, representando sua segunda geração.

Nietzsche (1844-1900)
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche é um dos nomes mais
importantes da filosofia contemporânea, principalmente por sua
crítica à filosofia tradicional e ao cristianismo. Na passagem da
mitologia para a filosofia na Grécia Antiga, segundo Nietzsche,
teríamos abandonado o espírito dionisíaco em favor do espírito de
retidão apolíneo. Escrevendo por aforismos e fragmentos, ele cha-
ma a atenção para a vida na Terra, em oposição ao mundo das
ideias ou à vida cristã pós‑morte.

Saiba mais
Uma boa opção para conhecer a filosofia de Nietzsche é Dias de Nietzsche em
Turim (2001), de Júlio Bressane. O filme se desenrola por meio de uma narra-
tiva in off com textos de Nietzsche e lindas imagens que representam sua
passagem por Turim, entre abril de 1888 e janeiro de 1889, onde escreveu
suas últimas obras. A história termina com uma cena de Nietzsche − em uma
crise de loucura − dançando com a máscara de Dionísio. Depois desse episó-
dio, até sua morte em 1900, o filósofo ficou sob a tutela da mãe e da irmã, que
viria a falsificar alguns de seus textos, em favor do nazismo.

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72 Filosofia e ética

Exercícios de fixação
1. Quem é considerado o primeiro filósofo grego? 9. O que é iluminismo?
2. Diferencie mýthos (mito) e lógos (logos). 10. Mencione características do idealismo.
3. Quem foi Sócrates? 11. Cite alguns dos principais filósofos contem-
4. O que é sofista?
porâneos.
5. Mencione algumas diferenças da filosofia de
12. Quem foi Schopenhauer?
Platão e de Aristóteles.
13. O que é a hermenêutica?
6. Qual é a principal característica da filosofia
medieval? 14. O que é estruturalismo?
7. Quem foi Tomás de Aquino? 15. Cite características do marxismo.
8. O que é empirismo? 16. Quem foi Nietzsche?

Panorama
Platão diria: “Este animal não tem nenhuma exis‑ de conhecimento real”. Kant diria: “Este animal é
tência verdadeira, mas apenas uma aparente, cons‑ um fenômeno no tempo, no espaço e na causali‑
tante vir a ser, uma existência relativa, que pode ser dade, formas que, por sua vez, são as condições a
chamada tanto não‑ser quanto ser. O que é verda‑ priori completas da experiência possível, presentes
deiramente é apenas a Ideia estampada naquele em nossa faculdade de conhecimento, não deter‑
animal, o animal em si mesmo, que não depende minações da coisa‑em‑si. Por consequência, este
de nada, mas é em si e para si, nunca veio a ser, nun‑ animal, tal qual o percebemos neste determinado
ca se extingue, mas sempre é da mesma maneira. tempo, neste dado lugar, como vindo a ser no en‑
Enquanto reconhecemos nesse animal a sua Ideia, cadeamento da experiência – isto é, na cadeia de
é por completo indiferente e sem significação se te‑ causas e efeitos, e por conta disso necessariamente
mos aqui e agora diante de nós este animal ou seu indivíduo que perece – não é coisa‑em‑si, mas um
ancestral que viveu há milhares de anos; também fenômeno válido apenas em relação ao nosso co‑
é indiferente se ele se encontra aqui ou num lugar nhecimento. Para conhecer o que ele possa ser em
distante, se se oferece desta ou daquela maneira à si, por conseguinte independentemente de todas
consideração, nesta ou naquela posição, ação, se, as determinações encontradas no tempo, no espa‑
finalmente, é este ou algum outro indivíduo de sua ço e na causalidade, seria preciso um outro modo
espécie. Tudo isso é nulo e tais diferenças têm signifi‑ de conhecimento além daquele que unicamente
cado apenas em relação ao fenômeno. Unicamente nos é possível pelos sentidos e pelo entendimento”.
a Ideia do animal possui ser verdadeiro e é objeto (Schopenhauer, 2005, p. 239.)

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História da filosofia 73

Exercício
1. Como Schopenhauer e baseando‑se no tex-
to dele, escreva um texto para diferenciar a
filosofia de Platão da de Kant.

Recapitulando

S
e você apenas conhecia a frase “Só sei que período foram Santo Agostinho e Tomás de
nada sei”, nesta unidade você pôde apren- Aquino.
der um pouco mais sobre o autor dela, Na filosofia moderna, surgiram nomes importan-
Sócrates. tes como Descartes, Pascal, Spinoza e Leibniz. Após
Platão e Aristóteles, outros dos principais filósofos o Renascimento, os sistemas sociais evoluíram em
antigos, interessavam-se pela ética individual e favor do processo de criação do conhecimento,

pela política. Além disso, Aristóteles tinha uma livrando‑se das amarras da religiosidade. Você tam-
bém aprendeu detalhes, por exemplo, de algumas
paixão pelas classificações. Animais, vegetais, mi-
das principais correntes filosóficas do período,
nerais, virtudes, paixões, faculdades psicológicas
como empirismo, iluminismo e idealismo.
e intelectuais, nada escapava de sua vontade de
A filosofia contemporânea é mais complexa. En-
classificar. O objeto de sua filosofia não era ape-
volve disciplinas como a psicologia e a comunica-
nas o homem, mas o Universo, incluindo seus
ção. Alguns dos autores desse período merecem
processos naturais.
destaque especial, como Marx e Schopenhauer.
Na Idade Média, a filosofia perdeu o foco científi- O materialismo e a luta de classes de Marx, que
co iniciado com Aristóteles. Seu objetivo passou influenciaram a Revolução Comunista na União
a ser confirmar os ensinamentos disseminados Soviética, ajudam-no a entender o mundo como
pela Igreja Católica. Os principais nomes desse ele é hoje.

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unidade 3
Introdução à Ética
Objetivos de aprendizagem
Entender a importância da vida em sociedade para o homem.
Compreender o conceito de ética.
Verificar como são criadas as regras éticas.
Analisar o que é caracterizado como um comportamento ético e os
meios que possibilitam a sua ocorrência.
Conhecer algumas doutrinas éticas históricas centrais.

Temas
1 – O homem em sociedade
Inicialmente, vamos mostrar a importância da vida em sociedade e
algumas consequências centrais que essa forma de viver traz para os
seres humanos. Discutiremos alguns conflitos de interesses que ten-
dem a ocorrer nos diversos níveis e tipos de sociedade em que nos
situamos.
2 – O conceito de Ética
Neste tema, apresentaremos as origens da Ética e seus objetivos
como ramo científico do conhecimento.
3 – Fontes das regras morais e comportamento ético
O próximo passo será a discussão de onde nascem as regras éticas e
como o comportamento alinhado a essas regras é produzido nas
sociedades.
4 – Algumas doutrinas éticas
Esta unidade termina com a apresentação de uma revisão históri-
ca das concepções que diferentes correntes filosóficas possuem a
respeito da ética.

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76 Filosofia e ética

Introdução
Você consegue pensar em um mundo onde as pessoas não acredi-
tem na ética? Já imaginou como seria viver em uma sociedade em
que ninguém se preocupa em adotar comportamentos éticos? Que
consequências isso traria para cada integrante dessa sociedade?
Ao propor esse cenário, convidamos você a imaginar uma situação
em que diversas pessoas interagem, cada uma com seu próprio inte-
resse. Elas fazem parte de uma sociedade em que seus componentes
decidem que não haverá normas éticas ou comportamentos espera-
dos. Cada um será livre para buscar e alcançar seus próprios interesses
de acordo com os meios que julgarem mais adequados.
Agora, vamos imaginar mais uma coisa. Nessa comunidade, pense
em um cruzamento movimentado, onde todos os motoristas querem
chegar o mais rápido possível a seu destino. Por um lado, pode pare-
cer que os membros dessa sociedade são pessoas mais livres, não é?
Eles nem precisam esperar o sinal verde!
Entretanto, como todos os motoristas acabam tendo o mesmo racio-
cínio – defender os seus interesses à custa dos alheios –, em poucos
minutos, carros que vêm da direita, esquerda, norte e sul se embara-
lham no cruzamento. Vemos então um bando de condutores irritados
uns com os outros, ouvimos buzinas ensurdecedoras e gritos de ofen-
sas mútuas. Opa, algo deu errado!
O que aconteceu? Eles são livres! Vivem em uma sociedade em que
todos têm a liberdade para buscar seus objetivos sem se preocupar
com ética ou outros conceitos que aparentemente limitam o nosso le-
que de ações. Embora essa seja a impressão inicial, no fim das contas,
percebemos que uma sociedade sem padrões éticos de conduta seria
um grande fracasso. Nas cidades reais, como as que vivemos, mesmo
cheias de semáforos, guardas de trânsito, legislações e a expectativa
de sermos gentis com o outro no trânsito, você provavelmente che-
garia ao seu destino antes dos habitantes dessa fictícia terra sem ética.
Nesta unidade, vamos estudar a ética e aprender mais sobre alguns
dos aspectos que se encontram nessa reflexão inicial. O que signifi-
ca viver em sociedade? Que consequências a vida coletiva traz para a
nossa forma de viver? Abordaremos também a Ética como ciência. De
onde vêm as regras morais? O que leva uma pessoa a assumir um com-
portamento ético? Esses são questionamentos que vamos explorar.
E aí, vamos iniciar a nossa viagem? O sinal verde está aberto!

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Introdução à Ética 77

O homem em sociedade
Vamos imaginar que você acaba de ser transportado sozinho
para um planeta onde não há vida humana. Foi designado para
passar dez dias nesse lugar coletando informações que serão usa-
das em pesquisas futuras. Após fazer seu trabalho, recebe um co-
municado da equipe que lhe enviou para a missão, informando
que, por causa de um problema técnico, não será possível resgatá-
-lo desse planeta. Em outras palavras, você acaba de saber que
passará o resto de sua vida isolado em um lugar distante, sem
comunicação com outros seres humanos. Tudo o que você recebe-
rá serão alimentos que lhe possibilitarão viver por mais algumas
décadas.
Embora essa situação seja extremamente pitoresca e distante
da nossa realidade, ela serve para nos fazer pensar a respeito de
uma questão filosófica importante: como seria viver sem o conta-
to com outras pessoas? O que mudaria na sua forma de pensar e
viver? As respostas a essas perguntas nos conduzem a outras ques-
tões a respeito do mundo e da sociedade em que vivemos: como a
vida em conjunto com outras pessoas influencia a nossa forma de
ver o mundo e os dilemas que enfrentamos no dia a dia? Neste tó-
pico, vamos discutir a respeito dos níveis de sociedade e procurar
entender um pouco mais profundamente as consequências que a
vida social traz para todos nós. Vamos lá?

Níveis e tipos de sociedades


Você poderia citar uma sociedade da qual faz parte? Essa per-
gunta poderia ser respondida de muitas formas. Podemos enten-
der sociedade como uma integração entre duas ou mais pessoas,
que buscam, conjuntamente, alcançar metas comuns (FIPECAFI,
1996). Dessa forma, para responder à pergunta do início deste
parágrafo, você poderia adotar diversas perspectivas. Por isso,
vamos entender os diferentes níveis de sociedade usando três res-
postas possíveis para a questão.
Você pode dizer que vive na sociedade dos seres humanos.
Se der essa resposta, sua ênfase vai estar na sociedade como o
conjunto de todas as pessoas que vivem na face da Terra. Como
toda a população mundial busca objetivos comuns, a exemplo da
preservação da vida no planeta, a humanidade pode ser entendida
como uma grande sociedade. Entretanto, essa não é a única res-
posta possível. Você consegue pensar em outra resposta?

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78 Filosofia e ética

É possível que você diga que vive em uma sociedade chamada


Brasil. Nesse caso, estaria definindo a sociedade segundo suas
fronteiras geográficas nacionais. De forma semelhante, você po-
deria citar o estado, a cidade ou o bairro em que mora, baseando
a sua resposta também nos limites geográficos de um território.
As pessoas que vivem em um país podem ter objetivos comuns,
como a defesa do território nacional ou a prosperidade da econo-
mia da nação. Os moradores de um mesmo estado, por sua vez,
também podem buscar metas coletivas, como promover o turismo
na região ou eleger um governador. A mesma lógica aplica-se a
cidades e bairros.
Uma terceira forma de responder à pergunta “Você poderia citar
uma sociedade da qual você faz parte?” seria mencionar o rela-
cionamento de cooperação mútua estabelecido com o seu cônjuge
ou com um parceiro de atividades profissionais. Em ambos os ca-
sos, você possui sócios, que são, respectivamente, o seu cônjuge e
o seu parceiro de negócios. As relações estabelecidas nesses casos
são as de sociedade matrimonial e profissional.
Seguindo essa perspectiva, uma pessoa pode participar de so-
ciedades esportivas, de lazer ou religiosas, por exemplo, sempre
que se reunir com pelo menos mais de uma pessoa com o objetivo
comum de praticar esportes, atividades de recreação ou de adora-
ção a entidades divinas.
Ficou mais claro agora que nós sempre participamos de algu-
ma sociedade? De um jeito ou de outro, todos convivemos com
outras pessoas e, para realizar nossos desejos e satisfazer nossas
necessidades, fazemos uso dessas relações sociais. Somos parte
da sociedade mais ampla chamada humanidade, interagimos com
outras pessoas que habitam na mesma região geográfica que nós.
Além disso, desenvolvemos relacionamentos específicos com de-
terminadas pessoas para também alcançar objetivos. Assim, pode-
mos dizer que o homem participa de várias sociedades ao mesmo
tempo, em diferentes níveis e tipos, dos objetivos e interesses que
mantêm a sua sobrevivência.

Relacionamentos sociais e conflitos


Uma vida sem contato com outras pessoas seria uma vida sem
relacionamentos. Ao vivermos em espaços comuns, nós natural-
mente desenvolvemos relações com outras pessoas. Pense em al-
gumas pessoas com quem tem algum tipo de relacionamento. É

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Introdução à Ética 79

provável que tenha pensado em pais, filhos, amigos de trabalho,


companheiros de estudos ou parceiros para a prática de esportes,
ou de algum hobby. É possível que você também tenha pensa-
do em outros relacionamentos menos pessoais, como os eventu-
ais que temos com taxistas, vendedores ou recepcionistas. Pense
bem: o que esses relacionamentos têm em comum?
O seu relacionamento com qualquer uma dessas pessoas é
firmado em objetivos, que podem ser individuais ou coletivos.
Objetivos individuais referem-se aos seus interesses pessoais, en-
quanto os objetivos coletivos dizem respeito àquilo que grupos de
pessoas buscam em conjunto. Como você possui diversos relacio-
namentos na sociedade em que vive, é normal que seus objetivos,
individuais ou coletivos, sejam conflitantes com os de outras pes-
soas ou até mesmo entre si.

Exemplo
As competições esportivas são exemplos de conflitos entre objetivos de
diferentes pessoas ou grupos. Em uma partida de tênis, os dois atletas que
se enfrentam buscam o mesmo anseio individual, o de vencer a partida. Em
um jogo de futebol, os jogadores de cada time envolvido têm metas cole-
tivas que se conflitam. No entanto, jogadores de um mesmo time também
podem possuir objetivos antagônicos. Dois atacantes podem ter o mesmo
intento de serem artilheiros de uma competição. É possível também que os
diferentes objetivos de um mesmo jogador se conflitem. Um atleta pode,
ao mesmo tempo, querer que sua equipe vença uma partida, mas também
desejar perder, caso a vitória de seu time beneficie uma equipe rival da
mesma cidade.

Quando você se relaciona com outra pessoa que possui obje-


tivos conflitantes com os seus, é necessário que haja uma nego-
ciação. Você já passou por um processo seletivo para um emprego
alguma vez? Se já, é provável que você tivesse uma pretensão
salarial, uma expectativa com relação ao tipo de trabalho a desem-
penhar e quanto ao horário de trabalho. Porém, em um processo
de seleção, você não é o único a ter objetivos. O selecionador
também possui uma expectativa quanto aos candidatos. Ele ge-
ralmente tem em mente um valor que poderá pagar ao futuro

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80 Filosofia e ética

contratado, uma descrição do trabalho que será desempenhado e


uma definição do horário de expediente. Mas raramente todos os
objetivos do selecionador e do candidato à vaga de emprego coin-
cidem plenamente.
Para lidar com esse recorrente conflito de interesses causado
pelas diferentes expectativas do candidato e do selecionador, as
pessoas envolvidas buscam assumir posições que julgam ser ade-
quadas para a situação. Ao confrontar seus posicionamentos, elas
discutem os pontos relevantes de negociação e buscam alcançar
um entendimento que satisfaça ambas as partes.
No entanto, esse entendimento se torna muito mais difícil
quando uma das partes adota um comportamento que desrespeita
os direitos do outro. Quando um candidato a uma vaga de em-
prego mente a respeito de sua formação educacional em uma en-
trevista, a negociação de interesses passa a correr maior risco de
não se concretizar em resultados positivos para ambas as partes.
O mesmo ocorre quando o entrevistador promete possibilidades
de crescimento profissional que não poderão ser cumpridas pela
empresa.
Por essas razões, a preservação da convivência pacífica e pro-
dutiva entre pessoas ou entre sociedades depende de que as pes-
soas ajam de forma a respeitar os direitos do outro e as normas
de convívio social que regem aquele ambiente. A ética é, por-
tanto, uma condição não só para o convívio saudável entre pes-
soas, mas para a própria sobrevivência da sociedade (ARRUDA­
et al., 2001).

Valores humanos e Ética


Uma grande dificuldade que encontramos na busca por resol-
ver conflitos de interesses é que nem sempre as pessoas concor-
dam sobre quais comportamentos são considerados respeitosos.
Frequentemente, elas discordam no que é considerado certo ou
errado, justo ou injusto e bom ou mau. De fato, em algumas situa-
ções, nas quais duas pessoas discordem sobre como agir diante de
um conflito de interesses, não é possível definir quem está corre-
to e quem está errado. Nesses casos, podemos entender que cada
pessoa possui a sua interpretação da situação, baseada em seus
próprios valores.

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Introdução à Ética 81

Exemplo
Fons Trompenaars, um pesquisador alemão, realizou uma ampla pesquisa na
qual ele apresentou dilemas a pessoas de diferentes nacionalidades e pediu
que elas dissessem como reagiriam diante da situação apresentada. Em uma
das questões, ele mostrou a seguinte situação: imagine que você acaba de
presenciar um acidente de carro no qual o seu melhor amigo – que é uma
pessoa que você considera justa e confiável – dirigia acima da velocidade
permitida na via e atropelou outra pessoa. Seu advogado lhe informa que, se
você jurar no tribunal que seu amigo estava dentro da velocidade permitida,
poderá livrá-lo de problemas sérios. Diante disso, você acha que seu amigo
deve esperar que você minta perante a justiça? A pesquisa de Trompenaars
(1994) mostra que enquanto 96% dos canadenses acreditam que o amigo
não deve esperar por uma mentira no tribunal, apenas 26% dos sul-coreanos
apresentaram a mesma opinião.

Por que nós não concordamos sempre com relação ao que


é certo ou errado? Isso ocorre porque as pessoas são diferentes
umas das outras. Elas conferem valores distintos às situações e
objetos. O valor das coisas não está nelas próprias, mas em como
as enxergamos. O significado de cada objeto não está no próprio
objeto, mas em quem atribui valor a ele. Você já foi a alguma
churrascaria? Se já, se sentiu fazendo algo errado? Provavelmen-
te, não. No entanto, se perguntar para um grupo de indianos o
que eles pensariam de uma pessoa que passa cerca de uma hora
comendo carnes, é provável que eles veriam a situação como um
grande problema, uma vez que a vaca é um animal sagrado em seu
país. Quem está certo e quem está errado? O brasileiro ou o india-
no? Ninguém. Simplesmente, cada um, ou cada sociedade, atribui
um valor diferente àquele animal. No Brasil, para a maioria das
pessoas, a vaca é uma fonte de alimentos. Na Índia, é vista como
um animal sagrado. Interessante, não é mesmo?
Se pensarmos em sociedade como o conjunto de todos os seres
humanos que habitam o planeta, percebemos que ela é formada
por grupos de sociedades menores, que podemos entender como
países, por exemplo, que possuem valores culturais que diferem
entre si. Essas diferenças impedem que qualquer pessoa defina, em
diversas situações, um conceito universal de certo ou errado. Uma
mulher árabe provavelmente se assustaria com as vestimentas que

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82 Filosofia e ética

as mulheres brasileiras usam nas praias. Por sua vez, uma mulher
brasileira se assustaria ao visitar o norte da Nigéria e conhecer as
diversas famílias polígamas que habitam aquela região.
Mais uma vez, não é possível apontar nessa situação quem está
certo ou errado – as mulheres brasileiras, árabes ou nigerianas.
  Saiba mais Se você está mais habituado à cultura brasileira, é provável que
O hijab é o vestuário não se espante com os biquínis usados pelas brasileiras. É comum
cujo uso é ensinado também que brasileiros, ao encontrarem mulheres muçulmanas
pela doutrina islâmica. vestindo hijabs ou mulheres nigerianas que compartilham o mes-
Segundo essa religião, mo esposo, sintam algum nível de estranheza.
Deus revelou ao Profeta Dessa forma, os valores que você confere às situações e ob-
Muhammad que as jetos e a sua concepção de justiça social não são um produto
mulheres muçulmanas exclusivo seu. Todos somos influenciados, durante o nosso de-
deveriam se cobrir com senvolvimento, pelas formas compartilhadas de agir e pensar que
um véu ao sair de sua predominam no local onde nascemos. No entanto, nós não somos
casa, de forma a
um mero produto do meio em que vivemos. Dentro de um mesmo
preservar a sua honra e
país, as pessoas nascem em estados, cidades e bairros diferentes
castidade.
e chegam ao mundo nos braços de famílias que possuem hábitos,
religiões e condições financeiras e educacionais distintas.
Além disso, cada indivíduo também realiza escolhas. Por essa
razão, pessoas que cresceram em uma mesma imediação geográ-
fica, família ou sob condições financeiras e educacionais seme-
lhantes podem apresentar várias percepções a respeito do que vem
a ser bom ou mau, justo ou injusto e certo ou errado. Ao longo
do tempo, as pessoas podem também alterar suas visões a partir
dos caminhos que decidiram seguir. É bastante provável que, ao
pensar em como você era há cinco anos, se lembrará de algumas
situações que considerava justas, mas que hoje soam de forma
diferente. Todos nós mudamos, e você não seria uma exceção, não
é mesmo?
Como você pode ver, as diferenças que as pessoas e as socie-
dades possuem entre si podem ser explicadas pelo fato de que
possuímos valores distintos. Nós não damos o mesmo valor às
coisas. E é justamente essa diferença que faz com que tenhamos
conflitos na sociedade. Somos um conjunto de pessoas que bus-
cam alcançar objetivos, às vezes conflitantes, e que se baseiam
em diferentes valores. Não é nada fácil e simples viver em so-
ciedade! Essa situação nos conduz frequentemente a problemas
de natureza moral.

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Introdução à Ética 83

Conflitos morais
Você já deu uma olhada nas notícias que estão sendo transmi-
tidas hoje na Internet, jornais e canais de televisão? Independen-
temente do momento em que estiver lendo este livro, podemos
imaginar que o noticiário do dia apresente denúncias de fraudes,
escândalos, subornos e outros atos que consideramos moralmente
inaceitáveis. Por que isso acontece?
Embora não tenhamos uma resposta única, óbvia e definitiva,
é possível apontar algumas razões. Primeiro, é preciso entender
que cada sociedade possui alguns entendimentos compartilhados
por seus integrantes no que diz respeito ao que é e o que não é
moralmente aceitável. Como dissemos, as pessoas são diferentes
umas das outras. Entretanto, existem certas definições morais que
são compartilhadas pelos membros de sociedades. Esses são os
chamados valores culturais.

Exemplo
No Brasil, há uma característica cultural que é conhecida internacionalmente:
o famoso jeitinho brasileiro. Trata-se da informalidade e da improvisação no
agir diante de situações imprevisíveis ou complicadas. As soluções encontra-
das por meio de um jeitinho não se baseiam em uma aplicação universal de
regras ou normas, mas em uma flexibilização destas em prol da resolução
de problemas.

Enquanto no Brasil aceitamos amplamente como criativo e


inovador o comportamento baseado no jeitinho, em outros paí-
ses ele pode ser visto como uma forma de afrouxamento moral.
Da mesma forma, outras nações possuem características culturais
que definem o que é moralmente aceito por aquela sociedade e que
podem ser malvistas pelos demais povos.
Assim, vemos que uma das razões para explicar os proble-
mas de ordem moral que diariamente são noticiados é o fato de
que as sociedades podem apresentar diferentes ambientes morais.
O clima moral que predomina em uma sociedade pode estimular
ou inibir comportamentos vistos como inadequados naquela ou
em outras sociedades. Como consequência, podemos ver con-
flitos morais entre indivíduos de diversas sociedades, entre um

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84 Filosofia e ética

indivíduo e uma sociedade diferente da que ele pertence e também


entre sociedades.
Independentemente da esfera em que um conflito de interesses
morais ocorra, caso uma das partes tome uma decisão que viole o
acordo negociado, existe uma grande chance de haver consequên-
cias prejudiciais tanto ao tomador da decisão como a quem teve
seus interesses violados.
Diariamente, sabemos de situações que se enquadram na des-
crição apresentada no último parágrafo. Em acidentes de trânsito
causados por pessoas que dirigem alcoolizadas, não apenas o in-
frator, mas também uma eventual pessoa inocente que seja afetada
pela imprudência do motorista, pode sofrer as consequências de
uma violação moral cometida por apenas uma das partes. Da mes-
ma forma, quando um casal se divorcia por causa de uma relação
extraconjugal de um dos cônjuges, ambos – marido e mulher –
podem passar por sérios problemas psicológicos e financeiros em
decorrência da decisão tomada.
Em resumo, podemos notar que, ao vivermos em sociedade,
estamos sujeitos a interagir em um mundo onde nem sempre é
possível desenvolver relações harmônicas. Quanto mais diferen-
tes forem os valores de duas pessoas, mais complicada se torna a
convivência pacífica entre elas.
Assim, você poderá se perguntar: se as pessoas são diferentes
umas das outras e isso faz com que elas tenham conflitos e proble-
mas de cunho moral, será impossível definir o que é certo, justo
e bom para todas as pessoas? Esse questionamento nos leva ao
conceito que vamos discutir no próximo tópico.

O conceito de ética
Certamente você já ouviu as pessoas usarem a palavra ética
em várias situações do cotidiano. As frases “Está faltando
ética neste país” e “Essa pessoa não agiu de forma ética” são
exemplos de situações comuns em que o termo é empregado em
conversas informais que temos com amigos. Podemos enten-
der ética em seu uso popular como princípios de conduta que
orientam a ação de uma pessoa ou grupo. Entretanto, neste livro,
vamos buscar também entender a Ética como um ramo do conhe-
cimento filosófico.

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Introdução à Ética 85

Origens
A palavra ética possui sua origem no grego ethos, que quer
dizer costume, maneira habitual de agir ou índole. Seu significado
é muito próximo ao de moral, palavra que vem do latim mos e
moris, que significa normas que representam o comportamento
esperado. Neste livro, usamos ambos os termos como sinônimos.
A palavra moral às vezes é usada com um sentido associado à
religiosidade, mas aqui entenderemos esse termo como as normas
que exprimem as formas de agir e que são consideradas desejáveis
em uma sociedade.
Como acontece com diversos outros termos, ética é uma pala-
vra que possui um significado um pouco diferente quando tratada
no âmbito de uma área científica. A ética é um ramo da filosofia,
ciência na qual o termo é visto como o estudo dos padrões de jul-
gamentos morais. Físicos estudam os padrões das interações que
ocorrem na natureza. Psicólogos analisam os comportamentos e
os processos mentais típicos dos seres humanos. Sociólogos se
dedicam a compreender o coletivo como um aspecto da vida indi-
vidual e os padrões que podem ser encontrados nas relações entre
as pessoas. Já os filósofos que se dedicam ao estudo da ética têm
como objeto de estudo a ação e a conduta humana sob um olhar
filosófico. Assim, podemos ver que a ética é uma ciência como
tantas outras que conhecemos.

Ética como ciência


A ética é vista como a filosofia da moral. O que é bom e mau?
O que é certo e errado? O que é justo e injusto? Essas são algumas
das perguntas centrais que os estudiosos da ética se propõem a res-
ponder. Para estudar a moral, a ética utiliza como objeto de análise
os atos humanos, que podem ser entendidos como as ações que as
pessoas decidem colocar em prática ou omitir conscientemente.
Não inclui ações involuntárias, que escapem do domínio da von-
tade humana e do arbítrio moral humano (FIPECAFI, 1996).
Você toma diariamente algumas decisões de caráter moral com
plena consciência. Quando você decide se devolve uma carteira
que encontrou na rua ou se denuncia uma pessoa que está come-
tendo um ato ilícito na empresa em que trabalha, está tomando
decisões conscientes que, portanto, são objetos de análise da ética.
No entanto, uma pessoa que não tem condições mentais plenas de

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86 Filosofia e ética

tomar decisões conscientes ou o que uma pessoa fala quando está


dormindo não podem ser consideradas quando estudamos a ética
nas ações humanas.
Se o objetivo da ética é estudar a moralidade humana, talvez
você esteja se perguntando qual é a sua finalidade. Ela pretende
apenas descrever o que é considerado moral ou tornar o homem
mais ético? Podemos dizer que a ética é uma ciência filosófica
prática. Não dá para negar que, ao estudar a moralidade do com-
portamento humano, no fim das contas o que queremos é que esse
conhecimento ajude as pessoas a saberem quais são os comporta-
mentos esperados em diferentes ambientes culturais. É desejável
que elas usem o conhecimento gerado pela ética no sentido de
tornar o seu próprio conhecimento o mais alinhado possível ao
que as sociedades entendem como certo, bom e justo. O conheci-
mento não tem sentido em si mesmo. Ele pode influenciar a ação,
buscando o bem do homem.
No entanto, a ética não é essencialmente prática. Ela não existe
com o objetivo principal de mudar o comportamento humano. Se
o conhecimento que ela produz levar pessoas e sociedades a um
melhor viver, ótimo! Mas a meta da ética concentra-se na defini-
ção de regras socialmente desejáveis para ação, e não no processo
de execução dessas regras (FIPECAFI, 1996).
Dessa forma, podemos ver a Ética como uma ciência norma-
tiva. Ela fornece ao homem as normas que apontam para a ação
correta e, também por isso, é importante para o Direito. Enquanto
a ética possibilita que você saiba o que as sociedades nas quais
vive julgam como o comportamento esperado em certo momento,
é o Direito que vai transformar algumas dessas normas sociais
em leis e certificar-se de que elas sejam postas em prática. Apesar
de nem todas as condutas éticas se tornarem leis – e nem todas
as leis serem consideradas éticas pelas sociedades – é importante
ressaltar que o Direito, e não a Ética, pode ser apontado como
uma área de estudos que tem como objetivo central influenciar o
comportamento humano.
Embora a palavra grega ethos signifique costume e hábito, a
Ética não é um estudo da ação rotineira humana. Você já deve
ter visto pessoas que possuem o hábito de agir de determinadas
formas, mas que não se sentem confortáveis. Elas acreditam em
algo como o certo, mas praticam ações que estão em desacordo
com suas crenças.

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Introdução à Ética 87

Apesar de nossas ações serem, geralmente, um reflexo das


nossas crenças, nem sempre é assim. É o famoso “faça o que eu
digo, mas não faça o que eu faço”! Não podemos dizer que a Ética
se refere ao estudo de princípios que guiam o que as pessoas cos-
tumam ou se habituaram a fazer. Ela diz respeito aos princípios
que as pessoas julgam ser corretos, não importando se elas agem
ou não de acordo com essas crenças.
O conceito de ética pode assumir diferentes conotações, depen-
dendo do contexto em que é aplicado. No ambiente de negócios,
se refere às normas morais que ditam o comportamento esperado
em termos de atividades e metas de organizações empresariais e
indivíduos. Não é uma questão de criar uma moral exclusiva para
o ambiente dos negócios, mas, sim, de estudar como esse meio
cria os seus próprios problemas e dilemas morais.

Exemplo
No ambiente empresarial, diversas empresas enfrentam alguns problemas de
caráter ético que não se apresentam na sociedade em geral. Por exemplo,
várias empresas possuem funcionários que desempenham atividades de tra-
balho fora da cidade, estado ou país em que vivem. Com isso, as empresas
precisam pagar passagens aéreas para que esses profissionais possam se
deslocar a trabalho. Ao longo do tempo, com tantos voos, esses profissionais
acumulam milhas junto às companhias aéreas que podem ser trocadas por
voos de interesse particular. De fato, há profissionais que viajam todos os
anos com a família para o exterior usando a pontuação acumulada em voos
realizados com fins profissionais. No entanto, é comum que alguns colegas
de trabalho dessas pessoas considerem esse fato como um privilégio injusto.
Há quem defenda que, nesses casos, o correto seria distribuir ou sortear as
milhas entre todos os funcionários, para que não haja benefícios extra a de-
terminados funcionários em razão de sua função exigir o deslocamento a
trabalho. Por outro lado, há quem defenda que esse privilégio seja uma com-
pensação justa, uma vez que o funcionário passa vários dias do ano longe de
sua rotina familiar.

Julgamentos normativos
Se a Ética é um ramo da filosofia que busca estudar a mora-
lidade, tente refletir sobre a seguinte questão: como um cientista

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88 Filosofia e ética

da Ética realiza suas pesquisas? Essa é uma pergunta interessante


cuja resposta você encontrará neste tópico.
Para encontrar o padrão moral existente em uma sociedade,
os filósofos que estudam a Ética buscam conhecer os julgamen-
tos normativos existentes naquele ambiente. Tratam-se dos valo-
res que se encontram presentes nas condutas que se esperam das
pessoas em uma dada sociedade. Esses julgamentos indicam os
comportamentos esperados em um certo momento em determina-
do meio social. Complicou? Então, vamos simplificar!
Lembre-se por um instante de sua infância. Provavelmente,
essa foi uma fase de sua vida em que você recebeu muitos julga-
mentos, especialmente de familiares e professores, que indicavam
como deveria se comportar. Pare de me interromper, você não vê
que eu estou conversando? Não fique tão perto da televisão, isso
vai prejudicar a sua vista! Se não comer tudo, você não vai ter so-
bremesa! Você concorda que essas frases, apesar de representarem
ordens, revelam também comportamentos esperados?
Quando você ouvia essas frases, ouvia também um julga-
mento. Você estava sendo avaliado(a). Além disso, essas frases
também apontavam alguns comportamentos desejados. Seus fa-
miliares e professores estavam, no fim das contas, dizendo que
você não devia interromper outras pessoas quando elas estivessem
conversando, ver televisão com os olhos muito próximos à tela
e deixar comida no prato. Vamos chamar esses comportamentos
esperados de normas.
Essas recomendações, ao mesmo tempo que representavam
uma avaliação de seu comportamento (julgamento), indicavam
formas de agir que eram esperadas de você (normas). Assim, en-
tendemos que se tratavam de julgamentos normativos.
Conforme dissemos anteriormente, a Ética, como ciência,
busca estudar a moralidade por meio do conhecimento dos jul-
gamentos normativos que ocorrem de forma recorrente em uma
sociedade. Uma pessoa que pesquisa a ética em uma sociedade,
portanto, deve buscar conhecer, a partir dos relatos dos membros
de um grupo social e de observações, quais são os julgamentos
morais recorrentes naquele contexto.
Pare agora por um instante e tente pensar em alguns dos julga-
mentos normativos que ocorrem nas sociedades em que você vive.
Não se deve jogar lixo na rua. É necessário pagar seus impostos cor-
retamente. Espera-se que todos sigam as leis de trânsito. Esses são

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Introdução à Ética 89

exemplos de comportamentos esperados que encontramos no Bra-


sil. Se as pessoas colocam em prática os valores que se encontram
implícitos nesses julgamentos ou não, é outra história. Mas ninguém
pode negar que esses são comportamentos esperados nesse país.
Às vezes, os julgamentos normativos aparecem de maneira in-
direta. Quando alguém diz que o governo cobra impostos altos
demais, no fundo está dizendo também que os impostos deveriam
ser menores. Quando uma pessoa diz que o computador que você
comprou foi uma boa escolha, está também afirmando que você de­
veria realmente tê-lo comprado. Assim, muitas vezes, ao julga­
rem como correta ou incorreta uma ação ou decisão do outro, uma
pessoa pode estar também revelando o que ela acredita ser o com-
portamento correto, bom ou justo naquela situação.
Alguns julgamentos não são normativos e geralmente estes
não são estudados pela Ética. Os julgamentos não normativos são
aqueles em que não há uma indicação de um comportamento es-
perado, mas apenas uma descrição de como as coisas são ou estão.
Por exemplo, se o gerente do seu banco disser que a sua conta está
negativa, ele está apenas lhe dando uma informação que descreve a
situação de sua conta. Ele não está sugerindo como você deve agir.
Entretanto, às vezes, as pessoas podem usar julgamentos não
normativos não apenas para descrever, mas também para expressar
que determinados comportamentos são mais desejáveis que outros.
Se alguém de sua família lhe disser que a sua conta está negativa,
provavelmente você ouvirá essa informação de forma diferente da
que ouviria se a mesma frase viesse de seu gerente. No caso de
um familiar, provavelmente ficaria mais claro que essa informação
traz consigo uma certa cobrança – uma norma – para que a conta
volte a ficar positiva. Apesar de estar apenas descrevendo a situa-
ção da conta, fica implícito que, nesse caso, o seu familiar também
está lhe fazendo uma recomendação de um comportamento espe-
rado e, portanto, expressando um julgamento normativo.

Fontes das regras morais e


comportamento ético
Até aqui, você aprendeu a respeito das implicações que a vida
em sociedade traz para o ser humano e também o conceito de éti-
ca. Pôde perceber que o homem precisa viver em sociedade e, ao

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90 Filosofia e ética

interagir com outros, acaba se deparando com situações em que


seus interesses se conflitam com os de outras pessoas.
Quando isso acontece, as pessoas podem tentar negociar para
encontrar uma solução que seja considerada moral por ambas as
partes. Há também a possibilidade de impor a sua vontade, mesmo
que ela leve o outro, a própria pessoa ou a sociedade da qual eles
fazem parte à possibilidade de prejuízo.
Nesse processo de resolução de conflitos de interesses, as pes-
soas aprendem ao longo da vida quais são os comportamentos
aceitos e esperados, e quais são as formas de ação que são malvis-
tas e consideradas más, erradas ou injustas. A Ética como ciência
busca estudar de que modo se formam e quais são as normas de
comportamentos considerados morais em dada sociedade.
Neste tópico, vamos dar um passo à frente para buscar compre-
ender como e onde surgem esses padrões morais que se encontram
presentes nas sociedades em que vivemos? Como eles nascem,
se consolidam e se modificam ao longo do tempo? Além disso,
você poderá aprender também a respeito dos aspectos que envol-
vem a prática do comportamento ético. Por que alguns respeitam
e outros violam o comportamento visto como ético. Interessante,
não é mesmo? Então, vamos em frente!

Fontes das regras éticas


Você certamente já se deparou com diversas expectativas de
comportamento no meio em que vive. Alguns devem ter parecido
bastante razoáveis, enquanto outros, nem tanto. Se alguém dis-
ser que é esperado que você ceda o lugar em um ônibus a uma
pessoa idosa, não é difícil imaginar como essa norma social foi
  Saiba mais
criada. Vários fatores ao longo do tempo levaram à formulação
Os Amish são um grupo desse comportamento esperado em diversas culturas do mundo.
religioso cristão que No entanto, nem sempre é tão fácil identificar como se originaram
possui a maior parte de determinadas regras éticas.
seus fiéis na América do
Norte. São considerados
um grupo cristão
Exemplo
conservador e restritivo,
uma vez que preferem Em grande parte das sociedades mundiais, o arroto é visto como um compor-
viver afastados do tamento indesejado, que simboliza falta de educação ou rebeldia. Entretanto,
restante da sociedade e na cultura Amish, arrotar após uma refeição é interpretado como um sinal de
sem contato com educação. O arroto é a liberação de parte dos gases que o nosso organismo
tecnologias. absorve quando nos alimentamos, portanto, um mecanismo natural.

PB Filosofia e Etica Book.indb 90 11/1/12 2:23 PM


Introdução à Ética 91

Para entendermos como essas diferentes normas morais são


construídas ao longo do tempo, uma questão essencial para o es-
tudo da Ética é: quais são as fontes das regras? De onde elas sur-
gem? Essa é uma pergunta que não pode ser respondida com o
apontamento de uma só causa. Parece haver mais de uma fonte
para as regras morais. Você consegue pensar em algumas possí-
veis respostas? Vamos apresentar a seguir alguns dos campos que
são entendidos como origens para aquilo que hoje defendemos
como certo, justo e bom.
A primeira fonte possível para as normas éticas seriam alguns
valores humanos típicos do homem bom, sadio e puro. Se refletir-
mos dessa forma, inevitavelmente pensamos também no conceito
de que existe um ideal humano. Uma natureza humana verdadeira
e essencial que serviria de fonte para sabermos quais são as for-
mas corretas de agir.
De acordo com essa maneira de pensar, existem algumas virtu-
des humanas que são universais. Elas seriam aspectos de caráter,    Saiba mais
como integridade e retidão, que seriam valorizadas e desejáveis
Émile Durkheim
em todas as culturas e sociedades. Haveria então uma univer-
(1858-1917) foi um
salidade ética. Esse pensamento tem como origem as ideias de
sociólogo francês que
pensadores como Durkheim. Ele defendia que existem elevados
defendeu a ideia do
valores humanos por meio dos quais as sociedades se expressam.
estudo dos fenômenos
Esses valores, portanto, poderiam ser considerados uma das fon-
sociais de forma
tes das regras éticas.
objetiva. Ele acreditava
Uma segunda fonte seria a reflexão que todos nós fazemos a
que para se conhecer as
respeito dos nossos comportamentos. Com o passar do tempo e
causas determinantes
com o acúmulo de experiências que vivenciamos, todos podemos
de um fato social, seria
pensar a respeito das consequências das ações tomadas por nós e
necessário buscar
por aqueles com quem interagimos. Observando e refletindo a res- conhecer os fatos
peito das ações humanas, somos capazes de criar preferências por sociais que os
determinados valores e comportamentos em detrimento de outros. antecederam, e não o
De maneira bem simples, tendemos a ver como éticas as normas pensamento de cada
sociais que nós vimos funcionar no passado. indivíduo.
A terceira origem das normas éticas está nos textos que regem
explicitamente o comportamento dos indivíduos em determinadas
sociedades. A legislação de cada país é um exemplo. No Brasil,
o Governo Federal investiu durante anos em campanhas de pu-
blicidade incentivando o uso do cinto de segurança. Entretanto,
somente após a instituição da lei que obrigou o seu uso nas es-
tradas brasileiras é que as pessoas realmente se atentaram para a
importância dele.

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92 Filosofia e ética

Além das leis, outro texto que regula as interações entre as


pessoas são os Códigos de Conduta que são criados em ambientes
empresariais. Trata-se de uma declaração formal de quais valores
e ações são consideradas adequadas em um ambiente de negó-
cios (HANASHIRO, TEIXEIRA e ZACCARELLI, 2007). Outra
forma seriam textos redigidos em foros internacionais, que visam
regular a interação entre as nações.
Em resumo, as regras éticas podem ser criadas em diversas ori-
gens. Aqui, citamos os valores universais humanos, o julgamento
humano a partir da experiência e os textos normativos. Entretanto,
ainda precisamos entender melhor as razões pelas quais algumas
pessoas decidem adotar comportamentos vistos como éticos, en-
quanto outras preferem contrariar essas normas.

O comportamento ético
Em qualquer sociedade, as regras éticas são violadas. Seja por
governos, empresas, família ou pessoas, sempre há indivíduos ou
grupos que agem em desacordo com o comportamento que se es-
pera naquele ambiente. Nesses casos, podemos dizer que há falta
de ética.
Em geral, podemos afirmar que as sociedades e seus indiví-
duos são prejudicados quando há falta de ética nas ações huma-
nas. Você é prejudicado a cada vez que um cidadão não paga seus
impostos, quando um policial deixa de executar suas atividades
profissionais e usa o seu tempo de trabalho para resolver proble-
mas pessoais ou quando um político usa os recursos públicos para
fins individuais. Por essa razão, as sociedades buscam organizar
formas de penalidades para aqueles que forem identificados como
transgressores às leis.
Caso a falta de ética ocorra por meio da violação de uma lei,
o infrator deverá sofrer as consequências previstas na legislação.
Algumas vezes, as pessoas não violam leis, mas ainda assim agem
em desacordo com o comportamento esperado. Nesse caso, é co-
mum as pessoas dizerem que o ato não é ilegal, mas imoral. Ape-
sar de não correr o risco de sofrer algum tipo de penalidade na
Justiça, a pessoa pode passar por outros tipos de penalidade, como
a desaprovação pública.
As penalidades são essenciais para a produção do comporta-
mento ético em uma sociedade. Todos nós nos deparamos com
situações em que temos que optar por cumprir ou violar uma

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Introdução à Ética 93

regra. Provavelmente você já viveu essa situação por diversas ve-


zes. Nesses momentos, as pessoas geralmente comparam o que
poderão ganhar caso violem a regra com as penalidades que ela
provavelmente sofrerá caso seja descoberto (FICAPEFI, 1996).

Exemplo
Em várias avenidas de cidades brasileiras, foi criada a faixa exclusiva para ôni-
bus, com o objetivo de estimular o uso de transporte público e diminuir o
trânsito de carros. Essa faixa faz com que, em horários de pico, os ônibus cir-
culem pela cidade com mais rapidez que os carros. Caso um motorista de um
veículo particular de passeio decida usar a faixa exclusiva, ele poderá ser mul-
tado. Geralmente esses motoristas, preocupados com a fiscalização e as pos-
síveis penalidades, respeitam a lei e se mantêm nas faixas dedicadas a carros.
Entretanto, se um dia você estiver com uma mulher de sua família a caminho
do hospital para ter um bebê, é provável que reavalie a relação entre o bene-
fício e as penalidades que a transgressão poderia causar. A transgressão que,
em um dia comum, poderia representar o benefício de apenas alguns minu-
tos a menos no trânsito, nesse caso, significaria a proteção da vida da mãe e
de seu bebê.

Um ponto a ser levado em consideração nessa questão é o fato


de que nem sempre a penalidade é colocada em prática quando
uma pessoa transgride regras éticas. A impunidade é uma carac-
terística de todas as sociedades, embora ela seja mais comum em
umas do que em outras. Quanto menos as pessoas são punidas
em uma sociedade quando violam normas morais, menor o risco
que elas perceberão ao se depararem com dilemas éticos. Dessa
forma, maior será a chance de que elas assumam comportamentos
não éticos.
A partir da avaliação que confronta os benefícios e riscos de-
correntes do comportamento não ético, algumas pessoas optam
por seguir as regras morais, enquanto outras as desobedecem.
Dentre o seu círculo de amigos, deve haver pessoas que violariam
certas normas morais e outras que agiriam de acordo com elas,
mesmo após confrontar os mesmos ganhos e riscos decorrentes
da violação da conduta ética. Por que isso ocorre? Essa é uma
questão intrigante, não é mesmo?

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94 Filosofia e ética

Uma forma de responder a essa pergunta seria considerar o


fato de que cada vez que uma pessoa aproveita uma oportunidade
para quebrar uma regra moral com o objetivo de alcançar bene-
fícios, ela entende que possui um motivo suficientemente forte
para correr o risco. Algumas pessoas estão mais dispostas a correr
riscos, enquanto outras possuem uma aversão maior a se colocar
em situações em que enfrentem a possibilidade de ser penalizadas.
Talvez você esteja pensando que algumas pessoas extrema-
mente honestas parecem estar menos propensas a realizar esse
balanço entre os benefícios e os riscos da transgressão a normas
morais. A predisposição a adotar comportamentos éticos é uma
característica individual que faz com que algumas pessoas vejam
a ação moral como um fim em si mesma. Isso é o que explica
os casos de surpreendente honestidade que não chegam a vir à
imprensa, mas que você provavelmente já vivenciou em sua roti-
na, de pessoas que veem outras perderem dinheiro e que decidem
devolvê-lo ao dono, e não o guardarem para si. No entanto, até
essas pessoas realizam a comparação entre benefícios e riscos en-
volvidos em uma transgressão moral.
No caso das pessoas que devolvem o dinheiro que veem cain-
do do bolso de alguém na rua, a penalidade em caso de transgres-
são seria o desconforto com a própria consciência, caso ela não
devolvesse o dinheiro encontrado. O benefício da satisfação por
ter sido honesto, nesses casos, é considerado maior que a recom-
pensa que o dinheiro poderia trazer.
Como ressaltamos anteriormente, diversas oportunidades de
obter algum tipo de benefício por meio de condutas não éticas se
apresentam para todos nós diariamente. O mercado de trabalho,
por exemplo, é um cenário em que os profissionais se defrontam
com muitas oportunidades desse tipo.

Assimetria de informações
A assimetria de informações refere-se ao diferente conheci-
mento que duas ou mais pessoas possuem com relação a aspectos
de negociação em um conflito de interesses. Vamos explicar esse
conceito de maneira mais detalhada.
Você já pegou um táxi em uma cidade ou bairro desconhecido?
Se sim, já viveu uma situação em que houve assimetria de infor-
mações. Enquanto o taxista provavelmente dominava os trajetos
principais da região, você deve ter se sentido perdido e, até certo

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Introdução à Ética 95

ponto, refém das intenções do taxista. Ele possuía informações


que você não tinha.
O mesmo ocorre quando você vai a um médico ou leva um car-
ro para ser avaliado por um mecânico. Se você não tiver conheci-
mentos de medicina ou mecânica de carros, ficará dependente do
conhecimento desses profissionais. Por essa razão, podemos dizer
que a assimetria de informações se apresenta como uma oportu-
nidade para que a pessoa que detém o conhecimento adote uma
conduta não ética. Uma vez que o cliente não possui o conheci-
mento necessário para avaliar se o diagnóstico ou a intervenção do
médico ou do mecânico foram éticas, o profissional especializado
pode se aproveitar de sua posição privilegiada para desrespeitar
normas morais ao prestar seu serviço.
Evidentemente, nem todos os profissionais que possuem as-
simetria de informação em relação aos seus clientes adotarão
posturas não éticas. Alguns profissionais podem ter um padrão
pessoal de conduta que valoriza a honestidade. Outros podem fi-
car receosos de um dia serem descobertos por clientes que tenham
conhecimento suficiente para avaliar a qualidade e honestidade de
seu trabalho. Por fim, há também os que considerem o risco de ser
penalizados por órgãos de fiscalização como conselhos e comitês
profissionais ou até mesmo de ser expostos em uma matéria de
denúncia na mídia.

Líderes e o comportamento ético


Todas as sociedades possuem sua ética. Mesmo que alguns
membros de uma sociedade possam estranhar e considerar não
éticas as normas sociais desejadas em outro grupo, cada grupo
tem um conjunto de comportamentos esperados validados por
seus participantes ao longo do tempo.
Entretanto, algumas sociedades vivenciam mais frequente-
mente situações em que suas normas morais são desrespeitadas.
Isso sugere que alguns grupos sociais conseguem proteger melhor
seus valores éticos.
Uma das formas de se evitar os comportamentos não morais
é a punição. Contudo, como você já sabe, as penalidades à trans-
gressão à ética não eliminam a ocorrência de ações que violam a
moral de uma sociedade. As pessoas sempre avaliam o custo da
penalidade, e algumas optam por transgredir as regras.

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96 Filosofia e ética

Outra forma importante para que uma sociedade consiga re-


duzir o número de incidentes de violação às suas normas éticas
se encontra no exemplo de seus líderes. Para que um grupo social
adote os padrões esperados de conduta, é necessário que cada inte-
grante veja em seus comandantes um espelho do comportamento
desejado. Isso vale tanto para países como para outros tipos de
organizações.

Algumas doutrinas éticas


Neste tópico, vamos estudar algumas doutrinas éticas, que
são teorias a respeito da moral. Essas doutrinas não devem ser
consideradas de forma isolada, mas, sim, como um corpo de co-
nhecimento que se formou ao longo do tempo. Por essa razão,
apresentaremos quatro correntes éticas seguindo uma ordem ló-
gica e buscando articular algumas de suas ideias centrais. Essas
correntes que vamos apresentar são: as Éticas na Grécia Clássica,
a estoica e a epicurista, a kantiana e o utilitarismo.
  Saiba mais
Ética na Grécia Clássica
Sócrates (469 a.C–399
a.C.) foi um filósofo Apesar de ainda nos dias de hoje, as ideias de Sócrates serem
grego considerado um discutidas em muitos meios, o pensador grego não registrou suas
dos mais importantes ideias por escrito. Sócrates andava pelas ruas e fazia perguntas às
para a história da pessoas a respeito de temas como a vida, a ética e a virtude. Se
Filosofia. Foi professor você já ouviu falar dele, isso se deve ao fato de que seus discípulos
de Platão e se registravam suas ideias e diálogos. Curioso, não é mesmo?
caracterizava por seu Sócrates entendia a ética como uma conquista de uma vida
método de investigação virtuosa. Ele defendeu que os homens deveriam cuidar menos do
baseado na realização corpo e das riquezas e mais da alma. Ele acreditava que não era o
de perguntas que ter que elevava a alma do homem, mas o contrário. Se você possui
levavam seus alunos a a alma elevada, você consequentemente tem o que necessita. Vá-
um processo de rios moradores de Atenas se incomodaram com o ponto de vista
reflexão e encontro de de Sócrates e, após espalharem falsas acusações a respeito dele,
seus próprios conseguiram vê-lo ser condenado à morte.
posicionamentos. No diálogo Criton, Sócrates, então condenado a morrer por ra-
Como não deixou zões injustas pela sociedade ateniense, recebe uma possibilidade
escritos, não se sabe
de fugir da prisão, de forma a evitar a sua execução. Mesmo sendo
precisamente se ele
inocente, Sócrates defendeu que se fosse desonesto e fugisse, ele
existiu ou se era um
estaria dando razão aos seus acusadores. Assim, ele preferiu não
personagem de Platão.
devolver o mal com o mal, não responder ao erro injusto com

PB Filosofia e Etica Book.indb 96 11/1/12 2:23 PM


Introdução à Ética 97

outro erro injusto. Sócrates defendeu a importante ideia de que


os mais prejudicados quando uma conduta não ética é posta em
prática são os próprios transgressores, e não as vítimas.
Nos dias anteriores à sua morte, Sócrates seguiu defendendo o
posicionamento de se manter honesto e virtuoso. Para ele, a filo-
sofia não era apenas um mundo de ideias paralelo, mas uma fonte
de inspiração para viver de forma virtuosa. Ele defendia o equi-
líbrio em todas as ocasiões. A vida de virtudes era uma vida de
moderação, em que as paixões deveriam estar em segundo plano.   Saiba mais
O excesso ao comer, ao falar, ao vestir e ao beber, por exemplo,
Platão (428-427
afastavam o homem da vida virtuosa.
a.C–348/347 a.C.) foi um
Sócrates também acreditava que a divindade não necessitava filósofo e matemático
das pessoas. Assim, como o homem virtuoso deveria tentar se as- grego. Discípulo de
semelhar à divindade, ele deveria ser modesto e buscar não se Sócrates e mestre de
tornar dependente das coisas materiais terrenas. Aristóteles, fundou a
Além de Sócrates, Platão também ofereceu contribuições im- Academia de Atenas, a
portantes para o desenvolvimento da corrente grega de pensamen- primeira instituição de
to a respeito da ética. Você já ouviu falar em amor platônico? Essa ensino superior grega. É
expressão significa o amor impossível, distante, inalcançável ou caracterizado por seu
pertencente a outro mundo. Essa expressão possui origem no fato estilo de redação em
de que Platão ensinava que o mundo que vivemos é uma reprodu- forma de diálogos.
ção do mundo real: o das ideias.
No mundo ideal, chamado platônico, o homem possui retidão
e é virtuoso. Cada pessoa deve usar sua inteligência, entusiasmo e
vontade para retornar a esse mundo. Para Platão, o comportamen-   Saiba mais
to ético significa agir de acordo com os valores do homem pla- Aristóteles (384 a.C.–322
tônico, que vive em um mundo virtuoso. O homem ético é sábio a.C.) foi um filósofo
e procura o ideal, procurando sempre se corrigir quando comete grego que estudou
algum erro. diferentes assuntos,
Platão reafirma sua condição de discípulo de Sócrates ao re- indo da física à música,
produzir sua ideia de que sofrer uma injustiça é pior do que reali- passando pela lógica e
zá-la. Ele reafirma as ideias socráticas de que a injustiça impede o pela biologia. Foi o tutor
homem de ser feliz e de que as pessoas não devem buscar o prazer, de Alexandre de
mas o bem. Macedônia, que mais
Um dos alunos de Platão, chamado Aristóteles, também con- tarde se tornaria o
tribuiu de maneira relevante para a evolução das doutrinas éticas conquistador de maior

no mundo ocidental. Para Aristóteles, a ética é a ciência da prática reputação do mundo


antigo.
do bem. O homem deve buscar ser feliz e, para alcançar esse obje-
tivo, ele deve ter uma meta a alcançar: fazer o bem.

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98 Filosofia e ética

Os bens da alma são os mais importantes que o homem pode


alcançar, pois conduzem à real felicidade. Os outros bens, cha-
mados por Aristóteles de bens do corpo e exteriores, são apenas
meios para que se atinjam os bens da alma. Na visão aristotélica,
não é possível fazer o bem sem os devidos recursos intermediá-
rios. Assim, Aristóteles apresentou uma mudança em relação à
visão de Sócrates e Platão quanto aos bens considerados secun-
dários. Enquanto esses últimos os viam como empecilhos à virtu-
de, Aristóteles reconheceu a necessidade desses bens como meios
para se alcançar a felicidade trazida pelos bens da alma.

Ética estoica e epicurista


Saiba mais Para os estoicos, a ética não se centrava na conquista, mas
O estoicismo é uma na compreensão intelectual. As emoções são vistas como um ca-
escola de filosofia minho para o erro nos julgamentos, o que, portanto, afastaria o
fundada em Atenas no homem da ética. Assim, o estoicismo defendia que o homem vir-
século III a. C. Sua tuoso deveria manter uma vontade alinhada à natureza e que a
doutrina foi importante virtude conduzia à felicidade.
desde a Grécia Antiga A ética estoica é oposta à epicurista, uma vez que defende a
até o Império Romano.
ética do prazer. Para Epicuro, a felicidade se encontra no prazer
O epicurismo é um
que a ausência de preocupações e dores é capaz de trazer. Nessa
sistema filosófico
corrente de pensamento, o homem deve buscar satisfazer alguns de
fundado por Epicuro de
seus prazeres associados à preservação da vida, como se alimentar
Samos, filósofo grego
e descansar. Em paralelo, deve limitar os prazeres não essenciais,
do século IV a.C.
como o uso de roupas ornamentais e de bebidas refinadas. Já os
não necessários, como o poder e as riquezas, devem ser evitados.
Nessa perspectiva, o homem deve buscar o prazer com tran-
quilidade e domínio próprio. Percebe que, ao longo do tempo, os
  Saiba mais
conceitos de ética foram se alterando de acordo com as diferentes
Immanuel Kant
correntes de pensamento que estamos apresentando?
(1724-1804) foi
considerado o último Ética kantiana
grande filósofo da era
Dando um salto na História, viajamos ao século XVIII para
moderna. É visto como
compreender os aspectos centrais da visão de Kant a respeito da
um dos pensadores que
ética. Enquanto os filósofos da Grécia antiga viam a ética predo-
mais influenciaram o
pensamento
minantemente como uma questão associada ao bem, Kant defen-
contemporâneo deu uma ligação com a ideia de dever.
ocidental a respeito da Para Kant, quando você busca o bem, no fim das contas
ética. está sendo egoísta. Segundo ele, somente ao cumprir um de-
ver por obrigação, o homem está se baseando na razão. Ao agir

PB Filosofia e Etica Book.indb 98 11/1/12 2:23 PM


Introdução à Ética 99

por obrigação e cumprir deveres, o homem se fundamenta na re-


tidão e se aproxima do comportamento ético. Mas o que é o de-
ver? Trata-se da lei que possui origem na razão e se impõe sobre
os homens, seres racionais. Assim, para Kant, ser ético significa
cumprir os deveres definidos racionalmente por uma sociedade.

Utilitarismo
Segundo o utilitarismo, o comportamento ético é aquele que Saiba mais
propicia a felicidade – aqui entendida como a presença dos pra-
O utilitarismo é uma
zeres superiores e ausência de dor – a um maior número possível
doutrina ética
de pessoas. As ações justas são as que promovem a felicidade e as
formulada
injustas afastam o homem de ser feliz. principalmente pelos
De acordo com essa corrente de pensamento, a ética é relativa. filósofos Jeremy
Ela se altera ao longo do tempo, não havendo uma ética universal, Bentham (1748-1832) e
superior e permanente: ela é vista como um conceito socialmente John Mill (1806-1873).
construído.

Exercícios de fixação
1. Cite três exemplos de sociedades que se en- 7. “Alguns profissionais prestam serviços sobre
quadrem em cada um dos três níveis apre- os quais seus clientes não conseguem ava-
sentados no texto. liar a qualidade, o que pode ser visto como
2. Por que, em algumas situações em que há uma oportunidade para o comportamento
conflitos de interesses entre pessoas ou gru- não ético”. Você concorda com essa afirma-
pos, não é possível definir quem está certo ção? Justifique.
ou errado? 8. Discorra a respeito do conceito de ética na
3. Diferencie o conceito de ética apresentado no Grécia antiga.
senso comum da ideia de ética como ciência. 9. Compare as principais doutrinas éticas da éti-
4. O que são julgamentos normativos? ca estoica, epicurista, kantiana e utilitarista.
5. Explique quatro fontes de onde se originam 10. Faça um resumo dos três novos conheci-
as regras morais. mentos a respeito de Ética que você adqui-
6. Comente a relação entre penalidades e riu durante o estudo desta unidade.
comportamento ético.

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100 Filosofia e ética

Panorama
Leia o texto a seguir para responder às questões contas para a empresa, Sérgio mente, dizendo
1 e 2. que gasta diariamente os R$ 300 aos quais tem
Marcos Sampaio é o gerente de Recursos Huma- direito, quando na verdade ele gasta apenas R$
nos da empresa Modelo, uma companhia que 150 e embolsa sem o conhecimento da empre-
atua no setor de vendas de planos de saúde. Re- sa os outros R$ 150. Rui está indignado, pois,
centemente, Marcos se deparou com um sério mesmo sabendo que Sérgio é um dos melhores
problema com alguns funcionários da empresa. A vendedores da empresa, não concorda com a
Modelo paga para seus funcionários uma diária sua ação, uma vez que ele e outros funcionários
de R$ 150 para alimentação e transporte quando são honestos e sempre devolvem à empresa o
eles estão trabalhando fora da sua cidade. Além dinheiro não gasto.
disso, paga R$ 150 para hospedagem em hotéis.
Rui, um dos vendedores com melhor desem- 1. A partir dessa situação, o que você faria se fos-
penho da empresa Modelo, resolveu contar a se o gerente Marcos Sampaio?
Marcos um problema do qual ele tomou conhe- 2. Você acha que as pessoas em geral agiriam
cimento. Ele descobriu que Sérgio, outro vende- como você? Justifique sua resposta.
dor com ótimo desempenho, tem se hospedado 3. Como a empresa Modelo pode agir preventi-
em um hotel cuja diária custa R$ 50, e gastado vamente de forma a evitar problemas morais
apenas R$ 100 diários com transporte e alimen- como esse?
tação quando está viajando a serviço. Ao prestar

Recapitulando

I
niciamos esta unidade discutindo diversos ní- Nesse processo, faz-se necessário respeitar os di-
veis de sociedade. A humanidade como um reitos e interesses do outro, de forma que possa
todo, a área geográfica na qual você habita e haver uma convivência pacífica e harmoniosa.
as pessoas com quem você possui um relaciona- Entretanto, como nós possuímos origens variadas
mento de cooperação mútua podem ser enten- em termos culturais, educacionais e econômicos,
didas como diferentes formas de sociedade. Em por exemplo, muitas vezes possuímos valores dife-
comum, todos esses grupos são formados por rentes. Julgamos de forma distinta o que vem a ser
duas ou mais pessoas que se relacionam e que bom ou mau, justo ou injusto. Como consequên-
podem apresentar objetivos conflitantes. cia, essas diferenças trazem à tona conflitos mo-
Você aprendeu que o conflito entre os desejos e rais, que dizem respeito a situações em que duas
as metas dos componentes de uma sociedade de- ou mais pessoas ou sociedades se deparam com
vem ser resolvidos por meio de uma negociação. um impasse ao negociar objetivos conflitantes.

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Introdução à Ética 101

Como você pôde estudar, comentamos que desde É possível notar diariamente, ao se informar sobre
a Grécia antiga muitos pensadores têm se dedicado as sociedades em que vive, que as regras éticas
a estudar a moralidade humana. Sócrates, Platão, são frequentemente desrespeitadas pelos seres
Aristóteles, os estoicos e epicuristas, Kant e, mais re- humanos. Ao nos depararmos com a oportu-
centemente, os filósofos utilitaristas, contribuíram, nidade de obter ganhos pessoais por meio de
cada um no seu tempo, para a formação do ramo comportamentos não morais, comparamos esse
da filosofia que hoje chamamos de Ética, que pode ganho potencial com os riscos que corremos de
ser conceituada como a filosofia da moral. sermos pegos transgredindo os padrões éticos e
Nesta unidade, também vimos que a ciência Ética sofrermos as penalidades decorrentes desse ato,
busca conhecer as diferentes origens das regras sejam elas legais ou apenas morais.
morais e compreender como ocorre o comporta- Bem, chegamos ao fim da primeira unidade. Es-
mento ético. Valores humanos universais, a refle- peramos que você tenha avançado em termos
xão a partir da experiência acumulada, os textos de conhecimento a respeito da Ética e esteja
formais produzidos nas sociedades são algumas curioso para desvendar o que ainda vamos dis-
das fontes para a construção de normas éticas. cutir neste livro.

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PB Filosofia e Etica Book.indb 102 11/1/12 2:23 PM
unidade 4
Ética empresarial
Objetivos de aprendizagem
Entender a importância da ética no mundo corporativo atual.
Compreender o conceito de ética empresarial.
Descobrir alguns dilemas e conflitos éticos enfrentados por gestores.
Conhecer problemas éticos recorrentes nas empresas e visões alter-
nativas para lidar com eles.

Temas
1 – A urgência da ética nos negócios
Começamos discutindo a relação entre ética e ambiente de negó-
cios e introduzindo as razões pelas quais esse tema tem recebido
tanta atenção nos meios corporativo e acadêmico. Apresentamos
instituições e personalidades que atuam como expoentes no mer-
cado atual como defensores da ética empresarial.
2 – Definindo ética empresarial
Seguimos analisando o conceito de ética empresarial, seu status
como disciplina autônoma do conhecimento e os níveis de análise
em que devem se concentrar os estudos sobre o tema. Apresenta-
mos também uma evolução histórica dos assuntos de interesse no
ramo da ética nos negócios.
3 – Dilemas e conflitos éticos empresariais
Neste tópico, avaliamos as consequências do uso do lucro como
principal critério para a tomada de decisão nas empresas e os dile-
mas éticos mais frequentes que podem advir dessa escolha.
4 – Questões éticas da prática empresarial: problemas
recorrentes
Finalizando esta unidade, apontamos alguns problemas comuns
referentes à ética nos negócios. Apresentamos também questio-
namentos que representam formas alternativas de lidar com esses
problemas.

PB Filosofia e Etica Book.indb 103 11/1/12 2:23 PM


104 Filosofia e ética

Introdução
O ambiente empresarial é um cenário que propicia o surgimento de
problemas éticos. Em um meio em que circula tanto dinheiro, poder e
status, é de se imaginar que os conflitos de interesse que caracterizam
a formação de dilemas éticos apareçam com muita frequência. E apa-
recem mesmo!
Dê uma olhada nas capas dos jornais ou dos portais de notícia da In-
ternet dos quais você mais gosta. É muito provável que encontre no-
tícias sobre escândalos empresariais, atos de corrupção ou
personalidades sob suspeita de uso de recursos públicos ou empresa-
riais para fins pessoais.
Esse fenômeno social não poderia ser ignorado pelo mundo acadê-
mico. Essas situações se tornaram tão frequentes em nossa socieda-
de que talvez você mesmo já tenha se visto diante de alguns desses
dilemas. Diversos pesquisadores têm tentado compreender as ra-
zões, os processos e as estratégias de solução para essa avalanche de
problemas e dilemas éticos que chegam ao nosso conhecimento
diariamente.
Nesta unidade, aprofundaremos o nosso entendimento sobre ética,
mas desta vez focalizando o ambiente empresarial. O que caracteriza
a ética nos negócios como uma disciplina autônoma? Por que esse
tema tem merecido tanta atenção? Quais temas têm sido discutidos
nas últimas décadas no que se refere à moralidade nas empresas?
Que dilemas e problemas éticos os empresários enfrentam mais regu-
larmente em suas atividades profissionais? Que formas alternativas
podemos adotar para encarar essas situações? Provavelmente, você já
pensou em algumas dessas questões e, agora, poderá estudar com
mais detalhes esses assuntos de grande importância para a formação
de qualquer profissional e cidadão.

A urgência da ética nos negócios


“Amigos, amigos; negócios, à parte.” Quem nunca ouviu essa
frase? A ideia de separar amizade e negócios – amplamente aceita
nas sociedades ocidentais – parece ser uma tentativa de evitar que
relações e influências pessoais interfiram em atividades que deve-
riam ser consideradas impessoais, isentas de qualquer lógica que
não a profissional. Assim, entende-se que, ao negociar uma venda

PB Filosofia e Etica Book.indb 104 11/1/12 2:23 PM


Ética empresarial 105

com um amigo, a operação não deve ser realizada por motivos de


interesse pessoal ou favores. Se aquele que compra disser que
merece um desconto por ser um amigo, aquele que vende poderá
usar o mesmo artifício para pedir que o valor de venda seja maior.
Essa lógica não faz sentido, não é mesmo? Tal incoerência faz
com que muitas pessoas aceitem sem problema a afirmação que
inicia este parágrafo.
No entanto, experimente trocar a palavra negócios por ética
naquela frase inicial. Teríamos “Amigos, amigos; ética, à par-
te”. Você concorda com ela? Provavelmente, não. É pratica-
mente um consenso a crença de que devemos tratar nossos
amigos de acordo com princípios éticos. Mas esse mesmo en-
tendimento se estende à maneira como tratamos outras pessoas
em geral ao fazermos negócios? Pense bem: as pessoas que
você conhece concordariam com a frase “Negócios, negócios;
ética, à parte”? Saiba mais
Embora muitos acreditem que é necessário adotar comporta- Stakeholders são
mentos considerados éticos ao realizar atividades profissionais, indivíduos ou grupos
esse pensamento é altamente questionável, se levarmos em conta que afetam ou podem
a prática dos negócios. Atualmente, diversos executivos manifes- ser afetados pelo
tam um certo desprezo diante de questionamentos de caráter mo- alcance de objetivos
ral para a prática profissional. Aqueles que defendem que deve organizacionais
haver integridade nos negócios frequentemente são apontados (FREEMAN, 1984). Há
como inocentes ou ingênuos. No meio de tantas visões conflitan- stakeholders internos,
tes, algumas perguntas não param de surgir na mente de executi- como funcionários ou
terceirizados que atuam
vos: afinal de contas, o comportamento ético conduz ao lucro?
no ambiente da
Leva ao prejuízo? É possível unir ética e prosperidade no ambien-
empresa, e stakeholders
te dos negócios?
externos à organização,
Independentemente das respostas, uma coisa está clara: o as-
como clientes,
sunto ética nos negócios chegou para ficar no ambiente corporati- comunidade, mídia,
vo. Hoje ela é recorrente em corredores de empresas, salas de ONGs, governo,
reunião, anúncios de marketing, palestras empresariais e livros fornecedores e
didáticos sobre gestão. Os códigos de conduta estão mais presen- sociedade em geral.
tes que nunca e líderes empresariais têm procurado transmitir uma
imagem ética aos seus stakeholders.

A discussão sobre ética no ambiente corporativo


No Brasil, diversas organizações têm surgido para fomentar
a discussão sobre a ética dos negócios. O Instituto Ethos, por

PB Filosofia e Etica Book.indb 105 11/1/12 2:23 PM


106 Filosofia e ética

exemplo, é uma associação sem fins lucrativos, criada para aju-


dar empresas a gerir seus negócios de forma ética. Dentre as suas
diversas ações, ela desenvolve pesquisas regulares sobre o perfil
social, racial e de gênero nas organizações brasileiras, além de
promover o Prêmio Ethos, que incentiva a produção de conheci-
mento sobre o tema nas universidades do país.
No cenário mundial, personalidades como Al Gore e Bill Gates
têm sido expoentes na propagação de discursos em favor de con-
dutas éticas por parte das empresas. Aproveitando essa onda de
discursos sobre ética, diversas empresas e escolas de negócios têm
comercializado livros, cursos e palestras sobre os mais variados
aspectos em que a ética se relaciona com o mundo empresarial.
Seja por intenções sinceras ou oportunismo, o fato é que o discur-
so da ética nos negócios despertou um mercado extremamente
lucrativo.

Saiba mais Saiba mais


Bill Gates, empresário Al Gore é um político estadunidense que defende de maneira enfática o
estadunidense, foi um combate ao aquecimento global. Sua palestra “Uma verdade inconveniente”,
dos fundadores da que em 2006 se tornou um documentário, é um alerta especialmente às
empresa de programas empresas de seu país, no sentido de tentar despertar em seus executivos
de computador uma maior consciência a respeito dos impactos de sua atuação nas condi-
Microsoft. Conhecido ções do planeta. Em 2007, sua luta pelo meio ambiente junto às empresas
como um dos homens lhe rendeu um Prêmio Nobel da Paz.
mais ricos do mundo,
ele se tornou um dos
maiores filantropos e Você pode estar se perguntando: o que justifica essa onda cres-
um grande incentivador cente da valorização de questões éticas nos negócios? Embora
de ações sociais seja praticamente impossível apontar uma única razão, não é difí-
empresariais. cil perceber um dos principais fatores para a formação desse mo-
vimento: os gestores perceberam que, quando escândalos
relacionados a condutas não éticas são divulgados pela imprensa,
as empresas tendem a ser duramente afetadas. Ninguém quer que
sua empresa seja vista como antiética. Essa é uma ideia que dá
calafrios nos gestores do mundo atual!
Os clientes, ao verem afetada a reputação da empresa, podem
perder a confiança nela. Os funcionários, ao perceberem que es-
tão em uma empresa com condutas desalinhadas aos seus valores

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Ética empresarial 107

pessoais, podem ter seu comprometimento afetado e planejar dei-


xar a empresa. Fornecedores podem não gostar de ver sua imagem
associada a uma empresa envolvida em escândalos e, por essa ra-
zão, encerrar relações de parceria. É, parece que ser ético deixou
de ser só uma questão de decisão pessoal. Agora está claro que,
pelo menos até certo ponto, se trata também de uma questão de
sobrevivência no mundo dos negócios.

Exemplos
Na década de 1990, a empresa de materiais esportivos Nike teve seu nome
divulgado negativamente por causa de suposta conduta inadequada em fá-
bricas na Indonésia. Naquele país, os ganhos de um funcionário da empresa
que trabalha no setor de produção gira em torno de um dólar por dia. Apro-
ximadamente 85% dos trabalhadores distribuídos nas 25 fábricas da Nike na
Indonésia são mulheres jovens com idade média de 23 anos. Segundo uma
reportagem da BBC inglesa, um relatório demonstrou que a empresa forçava
os funcionários a realizar horas-extras e limitava o acesso deles a cuidados de
saúde, por exemplo. Apesar de não termos como assegurar a veracidade des-
sas informações, um fato não pode ser negado: uma notícia desse tipo divul-
gada internacionalmente por um meio de comunicação tão popular como a
rede de notícias BBC gera grandes prejuízos a qualquer empresa.

Os desafios à conduta ética no ambiente de


negócios
Apesar de todo esse movimento em favor de uma transforma-
ção no teor ético das ações no meio corporativo, ninguém seria
inocente a ponto de acreditar que estamos vivendo em um mundo
onde a honestidade e a transparência orientam as ações empresa-
riais, não é? E, se as empresas podem ter tantos problemas de re-
putação caso sejam divulgadas informações negativas a respeito
de condutas não aprovadas pelos stakeholders, por que ainda são
recorrentes os casos de corrupção, exploração de empregados, tá-
ticas para enganar clientes e tantas outras práticas que revelam
falta de ética?
A resposta está em um princípio que você estudou na Unida-
de 1, quando discutíamos a respeito de comportamentos éticos.
É de se imaginar que muitas condutas não éticas de empresas

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108 Filosofia e ética

nunca tenham chegado ao conhecimento da mídia, de órgãos pú-


blicos de fiscalização e da população em geral. Lembre-se: em
geral, quanto menos as pessoas e as organizações são punidas
em uma sociedade quando violam normas morais, menor é o
risco identificado por elas ao se depararem com dilemas éticos.
Por essa razão, maior será a chance de que elas adotem compor-
tamentos não éticos.

Definindo ética empresarial


Na Unidade 1, nós discutimos o conceito de ética e agora, na
Unidade 2, você começa a aprender sobre a ética nos negócios
como um ramo de conhecimento. Mas o que a caracteriza? Trata-
-se apenas de uma aplicação dos conceitos gerais de ética no âm-
bito do contexto empresarial? Ou a ética dos negócios forma um
ramo do conhecimento com características suficientemente pró-
prias, a ponto de torná-la uma área à parte?
É inegável a associação entre a ética nos negócios e a ética
em geral. Entretanto, neste livro, tratamos ambas como distin-
tas. A primeira é apresentada aqui como uma disciplina autôno-
ma, formada a partir dos dois campos que a compõem (ética e
administração).

Definição de ética nos negócios


A ética nos negócios pode ser entendida como uma disciplina
que se dedica a estudar as normas morais envolvidas nos níveis
individual, organizacional e sistêmico que permeiam as atividades
de organizações empresariais.
Você pode perceber que, nessa definição, incluímos três níveis
de análise: o micro (indivíduos), o meso (as organizações) e o
macro (o contexto social e econômico). Se estamos discutindo éti-
ca organizacional, em qual desses três níveis de análise você acre-
dita que o estudo da ética nos negócios deve se concentrar? Nós
entendemos que a ênfase deve estar na organização, ou seja, no
nível chamado meso. Entretanto, o que tem ocorrido quando as
pessoas falam de ética nos negócios?
De um lado, temos um grupo de pessoas que se limita a dis-
cutir a ética empresarial sob o olhar da moralidade dos indivíduos
no ambiente de negócios. Nesse caso, discute-se dominantemente
a integridade dos profissionais e seus valores ou virtudes, como

PB Filosofia e Etica Book.indb 108 11/1/12 2:23 PM


Ética empresarial 109

honestidade, comprometimento, excelência, dedicação, transpa-


rência, confiança e responsabilidade.
Por outro lado, há também os que enfatizam prioritariamente
os aspectos econômicos e sociais, analisando os efeitos da estrutu-
ra mais ampla em que as empresas se situam nas normas morais
que estão presentes na atividade organizacional. Essa ênfase prio-
riza a responsabilidade social da empresa em relação aos seus
stakeholders. Procura-se responder a questionamentos a respeito
de como a atuação empresarial afeta clientes, empregados, socie-
dade, acionistas e comunidade, por exemplo.
Apesar da importância dos níveis micro e macro para a ética
nos negócios, entendemos que, ao direcionarmos o seu foco para o
nível da organização, evitamos os erros de personalizar os proble-
mas éticos ou tratá-los apenas como um fenômeno que se limita
a questões de relacionamentos entre empresas e outras coletivi-
dades. O direcionamento da ênfase para o nível meso de análise Saiba mais
possibilita concentrar a atenção no comportamento da empresa Antropomorfização é a
ao buscar cumprir seu propósito de alcançar o lucro. Assim, nem atribuição de
adotamos a visão micro, que ignora a visão estrutural da empresa características humanas
como um ente social que interage com outras coletividades, nem a elementos não
seguimos a perspectiva micro, que limita as organizações a agru- humanos. Uma
pamentos de pessoas, não se atendo ao fato de que empresas são organização empresarial
entidades que existem em função de pessoas, mas independente não existe como um ser
de qualquer indivíduo especificamente. individual. Ela é uma
A opção por direcionar a ênfase ao nível meso de análise (foco entidade abstrata,
na organização) poderia gerar alguns questionamentos. Um dos formada a partir da
mais comuns é: o objetivo último da ética empresarial não deveria ação coletiva de um
ser o indivíduo (nível micro de análise)? Ao definirmos a organi- grupo de indivíduos
zação como o foco dessa disciplina, não estamos caindo no erro da com um objetivo
antropomorfização? comum. Essas pessoas
Entendemos que a antropomorfização como uma opção para se organizam, criam
a discussão da ética nos negócios não representa um erro em si. símbolos, memórias
Ao tratarmos uma empresa – uma entidade não humana – como comuns, objetivos
compartilhados e,
humana, não estamos dizendo que a empresa é uma pessoa, mas,
assim, criam e mantém
sim, reconhecendo que aqueles que formam uma organização não
uma entidade coletiva
são apenas uma aglomeração de pessoas. Eles formam algo mais,
que, apesar de ser
algo que continuará existindo mesmo após a saída de qualquer
formada por pessoas,
um dos integrantes dessa organização. Dessa forma, quando di-
independe de qualquer
recionamos o foco da ética nos negócios ao nível organizacional
pessoa em específico.
de análise não estamos negando que as pessoas sejam o objetivo

PB Filosofia e Etica Book.indb 109 11/1/12 2:23 PM


110 Filosofia e ética

dessa disciplina. Na verdade, estamos conferindo a elas, como co-


letividade – e não como indivíduos –, o status de objetivo último
dessa disciplina do conhecimento.
A ética empresarial concentra-se em analisar três questões cen-
trais da tomada de decisão organizacional (NASH, 1993). Primei-
ro: quais devem ser as leis que regem o comportamento da
organização? Essa questão envolve a formulação de códigos de
conduta e políticas que orientam o comportamento nas organiza-
ções. A segunda questão é: como proceder em questões que vão
além do domínio da lei? Por exemplo, uma empresa de telefonia
que deve, por lei, realizar o atendimento telefônico de clientes em
um tempo estipulado pode decidir internamente adotar como pa-
drão um prazo ainda menor para esse serviço. A terceira questão
se refere aos conflitos entre interesses pessoais e organizacionais:
as tomadas de decisão são feitas em função de interesses organi-
zacionais ou pessoais? Essas questões mantêm a análise da ética
empresarial centrada em aspectos organizacionais, embora envol-
vam elementos micro e macro.

A evolução da ética empresarial ao longo das


décadas
Como ocorre em qualquer área do conhecimento, os estudio-
sos da ética empresarial deram ênfase, em diferentes momentos da
Saiba mais História, a tópicos distintos. Durante os anos 1950, os preços pra-
Tempos Modernos é um ticados pelas empresas e a mecanização dos processos de produ-
filme, de 1936, dirigido ção foram os temas que centralizavam as discussões sobre ética
e estrelado por Charles nos negócios. Nesse período, ganhou força também a discussão
Chaplin. Ele vive o papel sobre a alienação do trabalhador decorrente dos movimentos repe-
de um operário que titivos de produção industrial, já em vigor desde a década de 1930.
vivencia situações de O filme Tempos Modernos é um exemplo de como o tema era
conflito no trabalho e
abordado nessa época.
em sua vida pessoal
Na década de 1960, a participação do trabalhador nos conse-
decorrentes das
lhos de administração das organizações passou a ser um assunto
condições a que é
de ampla discussão na Alemanha. No campo dos negócios inter-
submetido na empresa
onde trabalha. Divertido
nacionais, a agressividade demonstrada pelas forças militares nor-
e dramático, o filme é te-americanas diante de um país de pequena expressão militar e
considerado um econômica na Guerra do Vietnã levantou questões sobre a despro-
clássico do cinema. porcionalidade de forças nas políticas de expansão internacional
de algumas empresas. Aspectos ambientais e sociais envolvidos

PB Filosofia e Etica Book.indb 110 11/1/12 2:23 PM


Ética empresarial 111

nos processos de expansão de empresas provenientes de países


desenvolvidos começaram a receber maior atenção nesse período.
Os anos 1970 foram testemunhas da consolidação do interesse
em aspectos éticos envolvidos na internacionalização de empresas
dos Estados Unidos e Europa. A recém-descoberta dos mercados
da Ásia e do Oriente Médio provocou um cenário de choque de
padrões culturais com relação à forma de realizar negócios. Além
disso, nesse período, percebeu-se o crescimento de um movimen-
to crítico por parte dos clientes, o que levou diversas empresas a
revisões nas políticas de relacionamento com consumidores, en-
volvendo aspectos de marketing como criação, propaganda, em-
balagem e apresentação final de produtos.
Os temas de interculturalidade e relacionamento com clientes
continuaram a ser debatidos nos anos 1980. No entanto, na segun-
da metade dessa década, a ênfase também se direcionou à capaci-
dade moral dos indivíduos. O enriquecimento ilícito de homens de
negócios, que envolvia esquemas de corrupção na Bolsa de Valo-
res e Fundos de Investimento, estendeu a discussão tanto à mora-
lidade dos indivíduos como à existência de uma estrutura que
favorecia a conduta moralmente indesejada.
Nos anos 1990, foram criadas e divulgadas revistas acadêmi- Saiba mais
cas que tiveram papel essencial no processo de edificação da éti- A ECO-92 (também
ca nos negócios como disciplina autônoma. A Business Ethics conhecida como Rio-92
Quarterly e a Business Ethics: an European Review são exem- ou Conferência das
plos de publicações que passaram, a partir desse período, a con- Nações Unidas sobre o
tribuir para a sistematização dos conhecimentos que eram gerados Meio Ambiente e o
sobre o tema. Elas permitiam que os principais pesquisadores do Desenvolvimento) foi
assunto em todo o mundo pudessem relatar suas descobertas e uma cúpula
ideias em um veículo de amplo acesso internacional. Esse movi- internacional realizada
mento abriu espaço para que diversas perspectivas não ocidentais no ano de 1992 na

fossem apresentadas e divulgadas globalmente. Outro fenômeno cidade do Rio de


Janeiro com o objetivo
de destaque nessa década foi a formação de ONGs (Organizações
de buscar formas de
Não Governamentais), instituições que passaram a ter grande
conciliar o
importância no desenvolvimento econômico e social de vários
desenvolvimento
países. Nesse período, ganhou força também a discussão sobre os
econômico e
impactos ambientais da atuação das empresas. A realização da
empresarial das nações
ECO-92 pode ser considerada um marco importante para a dis-
com a preservação dos
cussão sobre a ética em termos ambientais.
ecossistemas do
A popularização da Internet trouxe para a discussão sobre planeta.
o tema nos anos 2000 questionamentos a respeito do uso que

PB Filosofia e Etica Book.indb 111 11/1/12 2:23 PM


112 Filosofia e ética

empresas fazem das informações de clientes e funcionários. Con-


Saiba mais dutas inadequadas como vender informações de clientes para a
O e-commerce, ou prática de e-commerce e o uso de tecnologias que limitam a priva-
comércio eletrônico, se cidade do trabalhador no ambiente de trabalho foram adicionadas
refere a transações às discussões sobre éticas nos negócios. Além disso, a crise eco-
comerciais feitas por nômica global de 2008 levantou questionamentos sérios a respeito
meio eletrônico. As de como as empresas e outras instituições lidam com o conceito
compras e vendas feitas de crédito. Outro fator relevante nessa década foram os ataques
pela Internet são um terroristas ocorridos contra países como Estados Unidos, Espanha
exemplo de operações e Inglaterra. Esse tema levanta uma série de discussões sobre o
de e-commerce. relacionamento entre nações e empresas de diferentes partes do
mundo, a exemplo da indústria bélica.
Como os contextos sociais macro nos quais as empresas se
inserem se alteram ao longo do tempo, podemos ter certeza de que
novos dilemas surgirão nas décadas seguintes. Provavelmente,
quando estiver lendo este livro, você poderá perceber alguns te-
mas novos surgindo na área da ética nos negócios. Afinal de con-
tas, o tempo não para, não é verdade?

Dilemas e conflitos éticos empresariais


Mesmo se alterando ao longo do tempo, os temas de interesse
da ética nos negócios apresentam algumas características em co-
mum. Seja na adoção de processos alienantes de produção, na
agressividade ao expandir os negócios para além das fronteiras
nacionais, na maneira de lidar com clientes, com questões am-
bientais ou com a tecnologia na relação com consumidores e em-
pregados, é possível identificar um padrão nos dilemas enfrentados
pelas organizações empresariais. Em todos esses casos, há pessoas
que enfatizaram os resultados financeiros das empresas nas quais
trabalham a ponto de ignorar os meios usados para se alcançar tais
resultados.
Nas diversas áreas da vida, os seres humanos possuem um ins-
tinto de busca pela vitória. As pessoas querem conquistar, dar pas-
sos à frente e às vezes esse impulso envolve competir com o outro.
Ninguém duvida de que esse instinto seja essencial para a realiza-
ção na vida: ser competitivo está relacionado a ter metas e a bus-
car alcançar resultados.
No meio empresarial, esse estímulo se faz presente de forma
avassaladora. Todas as pessoas que você conhece que trabalham

PB Filosofia e Etica Book.indb 112 11/1/12 2:23 PM


Ética empresarial 113

em empresas certamente sabem do que estamos falando. O merca-


do exige que, para sobreviver, as companhias busquem alcançar
uma vantagem sustentável sobre seus concorrentes. Não dá para
negar que se trata de um ambiente competitivo. Nesse processo,
um desafio importante que os donos de empresas e acionistas en-
frentam é o de transmitir aos funcionários o mesmo senso de com-
petitividade que eles próprios possuem.
Vamos pensar juntos: como os proprietários das corporações
fazem para despertar nos seus empregados o senso de urgência e
competitividade necessários para o alcance dos lucros? É simples:
de uma forma ou de outra, esses empresários transmitem aos seus
funcionários a ideia de que, quanto maior for o lucro, maiores são
as possibilidades de ganhos para eles próprios. Esse senso de vitó-
ria coletiva pode ser criado por meio de distribuição dos lucros,
oferecimento de benefícios, promoções de cargo ou até com uma
simples perspectiva de não perder o emprego. É uma troca que
costuma dar certo: o empregado oferece um desempenho compe-
titivo e a empresa oferece algum tipo de benefício que recompen-
se todo o esforço realizado.
Essa relação faz com que tanto a empresa – como instituição
coletiva – quanto seus componentes tenham como horizonte quase
exclusivo os resultados financeiros alcançados. Entendam: não es-
tamos dizendo que uma empresa não deva buscar o lucro – sem
dúvida, ela deve fazê-lo e não há nada de errado nisso. A nossa
ressalva diz respeito à fixação quase exclusiva conferida à dimen-
são financeira pelas pessoas que estão envolvidas em um negócio.

Consequências éticas da fixação pelo resultado


Qual é o valor moral do lucro de uma empresa? Nenhum, você
concorda? Quando analisamos o balanço de uma empresa e iden-
tificamos o valor de lucro ou prejuízo que ela obteve em um dado
período, não é possível dizer, somente com base nessa informa-
ção, como o lucro foi obtido. E quais seriam, então, as consequên-
cias da adoção de uma gestão baseada unicamente no lucro?
Segundo Nash (1993), a ética do lucro pode oferecer a perigo-
sa solução de fechar os olhos para eventuais dilemas morais que
uma empresa venha a enfrentar. Quando há objetivos de lucro
muito sólidos e rígidos, é natural que as pessoas se sintam pressio-
nadas, estressadas, mas, ao mesmo tempo, motivadas a alcançar o

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114 Filosofia e ética

resultado desejado. Em empresas com essas características, os re-


lacionamentos entre os funcionários são construídos com base ex-
clusiva nessa sede por desempenho. Outros valores ficam de fora:
o que se tem é uma relação instrumental, com o fim de alcançar
resultados financeiros.
Essa união de pressão pelo lucro, motivação para o alcance de
metas e relacionamento pouco firmado em valores é a química
perfeita para o aparecimento de condutas antiéticas em empresas.
Essa combinação gera, frequentemente, o comportamento de indi-
ferença quanto aos meios que as pessoas usam para alcançar suas
metas.
Sabe o que é mais interessante nesse processo? Pesquisas mos-
tram que, quando as pessoas se envolvem em discussões como a
que estamos fazendo neste momento, é comum acharem que nada
se aplica a elas. Pensam que, como possuem em sua vida pessoal
fortes valores de honestidade e integridade, nunca cometeriam
atos de corrupção, roubo, desvios de dinheiro ou omissão de infor-
mação, por exemplo, em seu trabalho.
Mas aí é que mora o problema! O que se vê na prática é que a
lógica da fixação no lucro produz uma ética profissional que des-
toa da ética que a pessoa possui em sua vida particular. Começam
então a surgir pensamentos como: “Eu nunca mentiria para uma
pessoa para possuir o dinheiro dela desonestamente. Entretanto,
nesse caso, se eu falar para o cliente que a empresa em que traba-
lho o enganou, eu seria demitida ou não conseguiria bater a minha
meta. Sendo assim, acabo mentindo. Afinal, trabalho é trabalho”.
É difícil reconhecer, mas grande parte das pessoas já se envol-
veu em situações não éticas no ambiente de trabalho sob a lógica
de que não restava outra alternativa. Elas racionalizam e acabam
argumentando que não têm culpa, pois se trata apenas de trabalho.
Assim, separando o trabalho da vida pessoal, elas perdem a inte-
gridade. Afinal, ser íntegro é ser inteiro, integral. Significa ser um.
Em todas as ocasiões.

Dilemas éticos mais comuns


Embora cada pessoa e cada empresa tenha suas particularida-
des, pode-se identificar alguns dilemas éticos que surgem com
mais frequência nas organizações em geral. A seguir, citaremos
alguns tipos de situações que envolvem a ética e que as pessoas
costumam enfrentar nas empresas.

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Ética empresarial 115

Uma das situações mais comuns é a mentira, que pode aconte-


cer por meio da omissão ou da declaração explícita de inverdades.
O primeiro caso está presente em situações em que funcionários
não revelam a clientes, por exemplo, determinadas caracterís-
ticas de um produto que, se fossem tornadas públicas, prejudi-
cariam suas vendas. Outro exemplo seria a falha em denunciar
condutas desonestas identificadas na empresa. No segundo caso,
o de mentiras declaradas, podemos destacar a alteração de dados
de relatórios de desempenho e gerenciais e o exagero consciente
ao descrever as propriedades de um produto, com o intuito de en-
ganar clientes.
Esses dois primeiros exemplos podem ser entendidos como
função de uma terceira prática antiética recorrente nas empresas:
o estabelecimento de políticas e práticas que induzem outros fun-
cionários a mentir. Nesse caso, as pessoas que idealizam essas
práticas criam um sistema de trabalho que faz com que os empre-
gados designados para executar tais procedimentos fiquem prati-
camente sem saída: ou adotam práticas mentirosas ou correm o
risco de ser desligados da empresa.
Outro caso recorrente é o de oportunismo diante de um
stakeholder que não possui conhecimento suficiente para julgar a
justiça no relacionamento. Esse comportamento oportunista faz,
por exemplo, que um vendedor aumente o preço de acordo não
com o produto, mas com o grau de ignorância do cliente quanto ao
produto. Essa situação também se dá quando um empregador dei-
xa de conceder um benefício exigido por lei a um funcionário em
razão deste ter aparentado ignorância quanto a seus direitos.
O uso de influência pessoal ou de outras pessoas para subir
degraus da carreira corporativa pode ser igualmente apontado
como um dilema ético comum. No Brasil, país de cultura alta-
mente personalista e relacional, esse parece ser um caso muito
recorrente. Você possivelmente já ouviu frases como “Não é tão
importante saber as coisas; o importante é ter o telefone de quem
sabe” ou “O que importa é ter QI: quem indique”. Elas mostram
uma característica típica da nossa cultura: o desenvolvimento de
relações de trabalho que se confundem muitas vezes com laços
pessoais. Com isso, é comum que as pessoas se aproximem de in-
divíduos de influência nas empresas com o intuito de ter um bom
desempenho no jogo político que ocorre em muitas corporações.
Quando esse jogo envolve passar por cima de outras pessoas ou

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116 Filosofia e ética

tomar decisões que prejudicam a empresa, o jogo relacional passa


a ser desonesto.
Esses exemplos citados não formam uma lista exaustiva dos
dilemas éticos, mas certamente podemos incluir grande parte
dos que enfrentamos nessa lista. É possível que você já tenha sido
exposto a situações como essas no trabalho. Se isso ainda não
aconteceu, é muito provável que venha a acontecer. Embora as
pessoas reajam de diferentes formas a esses dilemas, poucas são
aquelas que nunca afrouxaram seus padrões morais diante de tais
circunstâncias. A justificativa mais comum? O bom e velho “tra-
balho é trabalho, fazer o quê?”.

Questões éticas da prática empresarial:


problemas recorrentes
Neste tópico, vamos apresentar alguns dos problemas recor-
rentes que os gestores enfrentam em suas atividades profissionais.
Ao mesmo tempo, mostraremos também um modelo mental alter-
nativo, proposto por Nash (1993), para lidar com as situações
apresentadas por meio de sugestões de perguntas que podemos
fazer e que nos ajudam a ver a gestão além dos simples e imedia-
tos resultados financeiros. Essas perguntas têm o objetivo de au-
mentar o repertório de solução de problemas éticos que os gestores
possuem ao enfrentar dilemas morais.

Primeiro problema: lidar com práticas antiéticas


na indústria
Um dos problemas mais recorrentes que os gestores enfrentam
é perceber que o setor em que atuam se encontra corrompido. Você
consegue se imaginar trabalhando em um ramo de negócios em
que todos os seus concorrentes praticam atos não éticos e, com
isso, a competição parte de um pressuposto de desonestidade? Pois
é, esse é o cenário que diversos administradores enfrentam em de-
terminadas indústrias. O que você faria em um caso similar?
Nesses casos, não participar do esquema de um mercado pros-
tituído já é uma postura rara. No entanto, ainda mais incomum
seria vermos um executivo que, além de não aceitar fazer parte de
uma indústria corrompida, denuncie essa rede de negócios não
ética aos órgãos competentes.

PB Filosofia e Etica Book.indb 116 11/1/12 2:23 PM


Ética empresarial 117

Por que é tão raro encontrar pessoas que agiriam de forma


ética nesses casos? Provavelmente, uma das respostas mais ade-
quadas para essa pergunta se refere ao fato de que a maioria das
pessoas não estaria preocupada primordialmente em ser ética.
Quando o lucro é a prioridade absoluta, acima dos valores morais
a partir dos quais ele é conquistado, as pessoas só assumem pos-
turas éticas se as decisões gerarem impactos positivos no balanço
financeiro. Alguns executivos fixados no lucro até tomariam a
decisão de denunciar o esquema desonesto existente no ramo,
mas somente se eles acreditassem que esse posicionamento trou-
xesse ganhos para a empresa em termos de imagem diante da
sociedade. Ainda que uma decisão ética sempre seja melhor que
uma decisão não ética, nesse caso, a decisão não estaria sendo
tomada com base em valores morais, mas na velha e conveniente
ética do lucro.
Uma forma alternativa de encarar situações desse gênero seria
perguntar-se: “Quem, além de nós, poderia ser prejudicado?”. De
acordo com vários estudiosos da ética empresarial, não fazer o
mal é o mínimo que se espera de um ser humano. O uso dessa
máxima levaria as pessoas que trabalham em um setor corrompido
a não aceitar fazer a sua parte para que um sistema desonesto se
mantivesse em operação. Se um gestor se omitir diante de uma
indústria prostituída, ele estará dando a sua parcela de contribui-
ção para que alguém seja prejudicado. Dessa forma, perguntar-se
se a conduta a ser tomada prejudica alguém ou perpetua um siste-
ma que causa danos a outra(s) pessoa(s) pode ser um caminho in-
teressante para uma mudança de modelo mental a respeito de
questões empresariais éticas.

Segundo problema: dar voz ao cliente


O relacionamento com o cliente é visto como uma das condi-
ções essenciais para o desempenho financeiro satisfatório de uma
empresa. Sem cliente, não há receita. E sem dinheiro, você já sabe
o que ocorre com as empresas: as portas se fecham! Sendo assim,
lançar produtos que satisfaçam as necessidades dos clientes e ofe-
recê-los a preços competitivos são objetivos que praticamente to-
das as empresas perseguem.
No entanto, o que ocorre com os produtos ou serviços ofe-
recidos quando um gestor ignora a condição ética do negócio?
Em geral, o que se observa nesses casos é um comportamento

PB Filosofia e Etica Book.indb 117 11/1/12 2:23 PM


118 Filosofia e ética

de tentar enganar o cliente por meio de mentiras com relação à


qualidade, quantidade ou prazo oferecidos na comercialização de
um bem ou serviço.
A troca de um ingrediente por outro de má qualidade sem a
devida redução no preço e aviso ao cliente é uma dessas práticas
enganosas. A diminuição do número de biscoitos em um pacote ou
da quantidade de iogurte em uma embalagem remodelada é outro
exemplo. Prometer entregar um produto ou serviço em um deter-
minado prazo, mesmo estando ciente de que não terá a capacidade
de cumprir o combinado, também pode ser entendido como uma
conduta não ética na relação com clientes.
Pode parecer tentador para um gestor, ao ver um concorrente
oferecendo um produto similar ao seu, adotar algum tipo de con-
duta enganosa na qualidade, quantidade ou prazo do benefício
ofertado. As práticas desonestas podem ser vistas, também nessas
situações, como o velho atalho para o sucesso financeiro. Entre-
tanto, elas se baseiam na visão da administração focada exclusiva-
mente no lucro.
A pergunta sugerida por Nash (1993) para ver essa questão sob
outro ângulo é: “Estou considerando as necessidades do cliente?”.
Essa é uma questão-chave. Ao mentir sobre qualidade, quantidade
ou prazo no que se refere a um produto ou serviço, o administra-
dor coloca as suas necessidades em primeiro lugar, e não as dos
clientes. A tão pregada e declarada política de foco no cliente não
pode ser apenas um chavão repetido de forma vazia. Ela deve ser
praticada.

Terceiro problema: necessidade de redução de


custos
Quando uma empresa define em sua estratégia que deve redu-
zir custos, você pode ter certeza de que dilemas éticos surgirão
para seus gestores. A dificuldade, nesse caso, consiste em reduzir
os custos sem que o cliente seja prejudicado. Não é nada fácil en-
contrar uma saída para oferecer bens ou serviços gastando menos,
mas preservando o valor percebido pelo cliente. Além do mais, a
empresa também deve se preocupar em desenvolver uma relação
justa e sustentável com seus fornecedores.
Diversos gestores, preocupados em reduzir os custos em épo-
cas de pressão de competitividade, criam estratégias de redução
de custos que podem simplesmente aniquilar o pensamento ético

PB Filosofia e Etica Book.indb 118 11/1/12 2:23 PM


Ética empresarial 119

na organização. Um caso comum é o de empresas do ramo de


alimentos que substituem ingredientes por outros mais baratos sa-
bendo que tal troca gerará uma mudança indesejada no sabor de
seus produtos. Confiando que os clientes não percebam tal altera-
ção, esses gestores quebram a confiança na relação com os consu-
midores, adotando, assim, uma conduta não ética.
Uma forma alternativa para avaliar uma situação como essa é
perguntar-se: “Essa decisão de redução de custos comunica valo-
res que eu desejo associar à minha marca?”. Reduzir a qualidade
de um produto por motivo de custos é uma quebra de confiança na
relação com o cliente. Uma marca media a satisfação consistente
de expectativas de clientes ao longo do tempo. Produtos de uma
mesma marca devem ter um padrão semelhante de qualidade, que
deve se preservar ao longo do tempo. Ao romper essa relação de
confiança com o cliente, um administrador passa a comunicar va-
lores incoerentes com aqueles que foram construídos e comunica-
dos ao longo de anos.

Quarto problema: eliminar conflitos de


interesses
Outro problema ético recorrente em empresas se refere a con-
flitos de interesses. Basicamente, a ideia é a seguinte: um funcio-
nário obtém algum tipo de benefício pessoal ao realizar uma
atividade em nome da empresa, o que pode gerar contestações a
respeito de seu real motivo para determinada ação.
Pense no caso de um gerente de compras de uma empresa de
construção civil. Para realizar as obras, a empresa precisa comprar
materiais, como ferro, cimento, tijolos, tinta, encanamento etc. Para
adquirir os materiais de construção, o gerente tem que obter três
orçamentos com fornecedores e contratar aquele que oferece o me-
nor preço. Vamos imaginar que, no fim do ano, na época de festas
de Natal, um dos fornecedores de cimento que costuma participar
das concorrências para o fornecimento desse material entre em con-
tato com o gerente e decida presenteá-lo com algumas garrafas de
vinho nobre. Você veria algum problema nisso?
A princípio, não haveria nada de errado se o gerente aceitasse
o presente. Seu trabalho de compra de materiais não favorece
qualquer um dos fornecedores e ele não interpreta esse presente
como uma tentativa de obter vantagens não éticas. Entretanto,
quando se trata de ética, é preciso pensar além de como as coisas

PB Filosofia e Etica Book.indb 119 11/1/12 2:23 PM


120 Filosofia e ética

são. Faz-se necessário pensar em como as coisas parecem ser ou


influenciam outros a ser.
Se os funcionários da empresa em questão ficarem sabendo do
presente que seu gerente recebeu de um fornecedor, o que poderá
acontecer? Que riscos a empresa estará correndo nessa situação?
Você consegue perceber que, por mais que o gerente não tenha a
intenção de ser desonesto, ele pode estar incentivando ou inspi-
rando um comportamento de corrupção na empresa?
Pode ser que outros funcionários vejam na conduta do gerente
um precedente para a aceitação de presentes de fornecedores.
Uma vez criado o hábito de aceitar esses agrados, abre-se o espaço
para que, no futuro, algum empregado acabe favorecendo um for-
necedor de quem recebe presentes. São comuns os casos de em-
presas que são abertas por compradores para participar de
processos de concorrência de fornecimento de material de cons-
trução, por exemplo. O funcionário, que precisa de três propostas
para realizar uma compra, emite orçamentos com valores proposi-
talmente elevados para um determinado produto por meio de duas
empresas das quais é proprietário. Dessa forma, abre-se o cami-
nho para que uma terceira empresa, mesmo com um preço razoa-
velmente acima do mercado, tenha seu orçamento aprovado. A
contrapartida para o funcionário corrupto seria o recebimento de
benefícios pessoais ou até dinheiro em troca do favorecimento à
empresa vencedora do processo de licitação ou concorrência.
Nesse caso, o problema teria começado a partir de uma ação
permissiva do gerente de compras, que teria aceitado um presente
de um fornecedor. Mesmo sem intenções desonestas, o gestor
abriu o espaço para a conduta não ética. Sendo assim, em casos
semelhantes, ele poderia se perguntar: “Minha conduta pode levar
alguém a tomar decisões motivadas por interesses pessoais?”.
Caso responda afirmativamente, essa pergunta revela casos em
que, mesmo de caráter inocente, certas condutas que representam
conflitos de interesses devem ser evitadas.

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Ética empresarial 121

Exercícios de fixação
1. Por que razões a ética tem se tornado um 7. Que consequências podem surgir caso um
tema tão corrente no ambiente corporativo? gestor adote o lucro como único critério para
2. O que são stakeholders? Como esse conceito a tomada de decisões?
se relaciona com o de ética nos negócios? 8. Descreva dois dilemas éticos recorrentes nas
3. Defina ética nos negócios. organizações contemporâneas.
4. A disciplina ética nos negócios deve concen- 9. Cite dois problemas comumente enfrentados
trar o foco no nível micro, meso ou macro de por empresas em termos de ética e descreva
análise? Justifique. uma forma de encarar tais problemas por
5. Explique quais foram os principais interesses do meio de uma visão de negócio que não seja
campo da ética nos negócios durante as déca- fixada apenas no lucro.
das de 1950, 1960, 1970, 1980, 1990 e 2000.
6. Com base nos noticiários que você tem visto,
aponte quais são, a seu ver, os novos focos de
interesse da ética nos negócios.

Panorama
Leia o texto abaixo para responder às questões 1 e 2. disso, esse posto cobrava preços mais elevados
Marcos Sampaio, gerente de Recursos Huma- que os demais postos da cidade.
nos da empresa Modelo, companhia que atua Ora, por que então eles escolhiam aquele posto
no setor de vendas de planos de saúde, está para abastecer e fazer a manutenção do carro?
enfrentando um dilema. Marcos recentemente Simples: em razão do alto número de abasteci-
se deparou com um sério problema com alguns mentos e outros serviços que eles contratavam
funcionários da empresa. Ele ficou sabendo que para o carro da empresa, eles ganhavam do pos-
alguns vendedores que trabalhavam visitando to, como cortesia, manutenção gratuita e des-
clientes e usavam carros da empresa para reali- conto no abastecimento de combustível de seus
zar suas vendas estavam adotando uma condu- carros pessoais.
ta inadequada. Eles estavam abastecendo esse Ao receber essa denúncia de um funcionário que
carro e realizando sua manutenção sempre no soube desse desvio de conduta, Marcos se trancou
mesmo posto de combustíveis. Esse posto fica- em sua sala e, pensativo, se aproximou da janela e
va longe tanto da sede da empresa como das se deu conta do erro que havia cometido. Ele mora
regiões em que os vendedores atuavam e mo- a duas ruas do referido posto de combustíveis.
ravam, o que fazia com que esses funcionários No caso dele, apesar do preço do posto ser mais
gastassem muito combustível – que era reem- elevado que o dos concorrentes, a proximidade
bolsado pela empresa – para chegar até lá. Além de sua residência em relação ao posto fazia com

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122 Filosofia e ética

que a manutenção fosse mais vantajosa naquele ficou sabendo do que Marcos fazia. Ele se sentiu
lugar. Ele precisaria gastar muito tempo e um valor no direito de fazer o mesmo e, pouco a pouco,
considerável de combustível para abastecer o car- outros funcionários deram continuidade à mes-
ro que a empresa lhe cedia para fins profissionais ma prática. No entanto, como moram longe do
em outros postos da cidade. Assim, no caso dele, posto, o benefício pessoal que recebiam era re-
não havia desvantagem para a empresa, caso ele sultado de uma escolha que prejudicava financei-
abastecesse o carro naquele posto. Depois de um ramente a empresa.
tempo sendo cliente de tal estabelecimento, o ge-
rente do posto ofereceu para ele o benefício de Exercícios
fazer gratuitamente a manutenção de seu carro 1. Avalie a conduta do gerente Marcos Sampaio
pessoal, que ele usava nos fins de semana com sua em termos de ética.
família. Na ocasião, Marcos ficou relutante, mas de- 2. Como você lidaria com essa situação se esti-
cidiu aceitar o benefício, uma vez que não estaria vesse no lugar de Marcos?
fazendo nada de mal para a empresa. 3. De que forma a empresa poderia evitar que
O que ele não sabia é que, certo dia, um de seus casos semelhantes ocorram?
funcionários, que era amigo do gerente do posto,

Recapitulando

N
esta unidade, começamos discutindo a próprios objetivos e interesses. Você apren-
importância da ética no ambiente dos deu que esse ramo do conhecimento deve
negócios. Apresentamos diversos moti- centralizar suas atenções nos fenômenos que
vos pelos quais esse tema desperta a atenção de ocorrem no nível organizacional de análise.
acadêmicos e profissionais. Em um mundo em Dessa forma, não individualizamos o compor-
que casos de corrupção, suborno, roubos e ou- tamento nas empresas nem reduzimos esse
tros de condutas antiéticas nas organizações fenômeno ao relacionamento entre empresas
empresariais tornam-se cada vez mais frequen- e stakeholders.
tes, não podemos deixar de reconhecer a impor- Os interesses das pessoas que buscam discu-
tância de pessoas e empresas que rompem com tir a ética empresarial se alteram ao longo dos
o padrão de relativização da ética e adotam prá- anos. Como estamos em um mundo dinâmico,
ticas exemplares em suas atividades. onde estruturas sociais, valores culturais, demo-
Apesar de reconhecermos a importância de grafias e tecnologias mudam constantemente,
discutir sobre a ética nos negócios, sabemos os problemas e dilemas éticos também se alte-
que, muitas vezes, esse é um tema tratado de ram. Apresentamos algumas das preocupações
forma pouco acadêmica, baseada no senso centrais dessa área do conhecimento em dife-
comum. Ela é, por outro lado, uma disciplina rentes momentos históricos. Começamos pelas
autônoma do conhecimento, que possui seus discussões sobre alienação do trabalhador nos

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Ética empresarial 123

processos de produção nos anos 1950, passamos Encerramos esta unidade com a apresentação de
pelos questionamentos sobre a maneira pela qual dilemas e problemas, e formas alternativas de en-
as empresas de países desenvolvidos exploravam cará-los na rotina empresarial. Espero que você
os novos mercados asiáticos e do Oriente Médio tenha avançado em termos de conhecimento so-
nos anos 1970. Fomos até os desafios ambientais bre a ética nos negócios e permaneça animado
e relacionados à informação digital na Internet para continuar a sua jornada de aprendizagem nas
nos anos mais recentes. próximas unidades deste livro.

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PB Filosofia e Etica Book.indb 124 11/1/12 2:23 PM
unidade 5
Gestão da Ética empresarial
Objetivos de aprendizagem
Conhecer a tríplice finalidade da empresa ética, ressaltando a im-
portância da conciliação dos objetivos financeiros com os de caráter
ambiental e social.
Avaliar a relação entre valores na empresa ética e mudanças estrutu-
rais que ela demanda.
Compreender a dinâmica existente na empresa ética e os desafios
que levam o ser humano a resistir a essa forma organizacional.
Entender como ocorre a implantação dos códigos de ética empresariais
e qual a importância deles para a formação da empresa ética.

Temas
1 – A empresa ética
Iniciaremos apresentando os objetivos centrais da empresa ética.
Apesar de as pessoas geralmente a associarem a metas de responsa-
bilidade social e ambiental, você aprenderá que a sustentabilidade
financeira é importante para a existência da empresa ética.
2 – O modelo de empresa ética
Em seguida, destacaremos como os valores característicos nas em-
presas éticas geram mudanças estruturais que viabilizam a conduta
ética coletiva dos empregados dessas empresas.
3 – A dinâmica da empresa ética
Uma empresa ética funciona de forma diferente das empresas não
éticas. Nesse tópico, discutiremos como a estrutura da empresa ética
traz implicações para sua dinâmica de trabalho.
4 – Instrumentos de gestão da Ética empresarial
O livro chega ao fim no tópico em que abordaremos instrumentos de
gestão da ética empresarial. Mostraremos como os códigos de ética
empresarial podem ser ferramentas úteis para o processo de transfor-
mação de uma empresa não ética em uma empresa ética.

PB Filosofia e Etica Book.indb 125 11/1/12 2:23 PM


126 Filosofia e ética

Introdução
Embora muito se fale sobre a necessidade de criar empresas éticas,
diz-se pouco a respeito de como fazer isso. Alguns podem achar que
é muito simples: basta dizer às pessoas que não façam nada que é
considerado errado e pronto! Está aí uma empresa ética!
Será que é isso mesmo? Se é tão simples assim, por que tantas em-
presas têm problemas de caráter ético? Nesta unidade, você estudará
os desafios enfrentados pelas empresas que buscam desenvolver um
conjunto de valores de caráter ético. Em um mundo em que muitos
competidores obtêm lucros por meio de políticas e práticas informais
desonestas, ser ético definitivamente não pode ser considerado algo
simples. No entanto, também não é impossível.
Como em qualquer processo de profunda mudança cultural, a tran-
sição em direção à ética empresarial exige habilidades gerenciais dos
administradores. Quais desafios são enfrentados e que ferramentas
existem para lidar com eles? Ao fim desta unidade, você fechará com
chave de ouro a sua empreitada de leitura deste livro, pois entenderá
os elementos práticos que fazem parte do processo de transformação
moral de uma empresa.
Bons estudos!

A empresa ética
Frequentemente, quando realizamos discussões a respeito da éti-
ca no meio empresarial, várias pessoas contestam a questão da
rentabilidade financeira. Se tivesse que escolher entre ter uma em-
presa rentável ou ética qual escolheria? Essa pergunta guarda em
si um problema que combateremos nesse tópico: a oposição entre
sucesso financeiro e ética.
Já mostramos de diversas maneiras que a ética é essencial para
qualquer empresa. Usando três dimensões como base, podemos
notar que a conduta empresarial ética é importante por refletir um
conjunto de padrões morais considerados indispensáveis na so-
ciedade em que vivemos. Esses padrões devem ser interiorizados
de forma a se tornarem hábitos individuais e coletivos que con-
tribuem para uma vida em sociedade mais coerente com as cren-
ças que temos a respeito dos comportamentos que são desejáveis
ou não. Além disso, a ética também é essencial por nos permitir

PB Filosofia e Etica Book.indb 126 11/1/12 2:23 PM


Gestão da Ética empresarial 127

avaliar as consequências das nossas ações para o entorno no qual


estamos inseridos.
No entanto, nenhuma empresa sobrevive no mercado somente
por ser ética. Ela também precisa ser rentável. A viabilidade eco-
nômica é um requisito essencial para a simples sobrevivência de
qualquer empresa. Não estamos dizendo que a razão de existência
das empresas seja apenas econômica, mas também não queremos
que você cometa o erro comum de ver a ética com certo roman-
tismo inocente e perigoso. É preciso vê-la dentro de um contexto
maior, que permita que a empresa seja economicamente saudável.
A questão não é optar por lucro ou ética. O ponto é vê-los como
características inseparáveis de uma organização.
A empresa ética possui objetivos sociais, econômicos e am-
bientais. Esses fins tornam a organização ética distinta daquelas
que não possuem essa característica. Seja na dimensão social, eco-
nômica ou ambiental, a sustentabilidade torna-se a espinha dorsal
da empresa que possui tal orientação.

A finalidade econômica da empresa ética


A prosperidade financeira é um requisito para uma empresa ser
ética. Uma organização malsucedida em termos econômicos po-
derá enfrentar dificuldades para pagar seus impostos, honrar seus
compromissos com os funcionários e entregar produtos de quali-
dade aos clientes. O empresário que possui vários funcionários e
fecha as portas de sua empresa batendo no peito e bradando que
“pelo menos, minha empresa morreu sendo ética” está ignorando
que ele acaba de deixar seus empregados sem um trabalho. Onde
está a ética da responsabilidade nesse caso?
Quando as empresas chegam à falência e precisam encerrar
suas atividades, muitos stakeholders podem ser prejudicados. O
caso mais tradicional refere-se ao empregado que perde a fonte de
renda e às vezes precisa ir à justiça para receber os seus direitos.
Percebe como a empresa, para ser ética, também precisa tomar
cuidado com a sua saúde financeira?
Outro caso que pode ocorrer e que prejudica o empregado é
aquele em que duas empresas passam por um processo de fusão
ou aquisição e a gestão da nova empresa resultante decide cor-
tar custos, demitindo um número razoável de funcionários. Como
esse processo acaba levando a empresa a ter alguma sobreposição

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128 Filosofia e ética

de cargos (por exemplo, dois profissionais de recrutamento e se-


leção – um de cada empresa – quando só há necessidade de um),
alguma ação torna-se necessária, afinal, a empresa precisa ser viá­
vel economicamente. Mas, embora a demissão dos empregados
excedentes seja a opção mais fácil, recomenda-se que, nesse caso,
a empresa proteja a sua viabilidade financeira por meio de um
programa de outplacement.

Saiba mais
Outplacement é uma prática empresarial que visa conduzir processos de
demissão de forma a preservar a honra e a dignidade do funcionário demitido.
Envolve apoiar o empregado que está passando pelo processo de demissão
na atividade de se preparar para processos seletivos em outras empresas,
envolvendo a confecção do currículo e contatos com agências de recolocação
e outras organizações. Seu objetivo principal é assegurar que o profissional que
está sendo demitido se reposicione no mercado.

Os clientes também correm o risco de ser prejudicados caso


uma empresa não seja responsável em relação à sua saúde finan-
ceira. Imagine uma empresa que lança um produto que demanda
serviços de manutenção ou assistência técnica. Se ela encerrar
suas atividades, o que ocorrerá quando o cliente necessite solicitar
serviços de manutenção ou assistência? Sim, é possível que ele
fique a ver navios, o que não seria justo!
O mesmo ocorre com fornecedores que habitualmente ofe-
recem produtos ou serviços para uma empresa que acaba de fe-
char as portas. Nesse caso, claro que é da responsabilidade desse
fornecedor encontrar outros clientes. No entanto, é inegável que
quando uma empresa de grande porte encerra suas atividades, ou
simplesmente enfrenta sérias dificuldades financeiras, ela acaba
trazendo problemas para todas as outras empresas que fazem parte
da sua cadeia de produção.
E as comunidades? Como as pessoas que moram em uma
região podem ser afetadas caso uma empresa não consiga ad-
ministrar satisfatoriamente seus recursos financeiros? Pense nas
empresas que estão situadas em cidades ou bairros cuja atividade
econômica de seus moradores ocorra primordialmente em função
de tais empresas. O que acontece se os moradores criarem lojas de

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Gestão da Ética empresarial 129

roupas, mercados, restaurantes ao redor da sede de uma empre-


sa e ela passa por uma séria crise financeira ou decide fechar as
portas? Certamente, será um grande prejuízo para quem vive na
comunidade, uma vez que o comércio local, planejado em função
dos funcionários da empresa, deixará de existir, afetando a vida de
diversas pessoas.
Assim, mostramos que ser ético em termos organizacionais
envolve ser responsável e próspero em aspectos financeiros. Ado-
tando a perspectiva da ética da responsabilidade, notamos que a
empresa que não consegue sobreviver economicamente acaba afe-
tando de maneira negativa a vida de diferentes stakeholders – em-
pregados, clientes, fornecedores e comunidade, por exemplo – o
que contesta seu caráter ético.

A finalidade ambiental da empresa ética


Obviamente, apesar da importância do aspecto financeiro para
a ética empresarial, a organização ética também deve apresentar
outras características. Uma delas é o zelo pelo meio ambiente.
A grande preocupação que temos hoje com relação ao aspec-
to ambiental da atuação das empresas se deve à mudança no po-
tencial que elas têm de afetar a sustentabilidade do planeta. No
passado, as organizações empresariais atuavam muito mais local-
mente e com certas limitações de tecnologia. Com o advento da
globalização e do desenvolvimento tecnológico, que se acentua
principalmente desde a década de 1970, as empresas se alteraram
profundamente em dois aspectos.
O primeiro refere-se às empresas terem se tornado capazes de Saiba mais
atingir mercados mundiais. As maiores empresas do mundo ga-
PIB (Produto Interno
nharam força e hoje conseguem atuar nos cinco continentes. Em
Bruto) é a soma de
uma lista das 100 maiores entidades econômicas no mundo, 51
todos os bens e serviços
são empresas e 49 são países. Isso significa que há empresas que
produzidos em uma
possuem uma receita de vendas que supera o PIB da maioria dos
determinada região em
países do mundo. Isso confere a elas um grande poder de influen-
um certo período de
ciar o mundo em seus diferentes aspectos, inclusive em termos tempo.
ambientais (PATRUS-PENA; CASTRO, 2010).
O segundo diz respeito ao poder de influência das empresas,
além dele ter se tornado mais abrangente, ficou mais forte. Essa
força é decorrente do crescimento do poder de transformação das
empresas em relação ao seu entorno. Se no passado civilizações
demoravam séculos para serem extintas, hoje há empresas capazes

PB Filosofia e Etica Book.indb 129 11/1/12 2:23 PM


130 Filosofia e ética

de causar estragos ambientais que poderiam colocar, em poucos


anos, meses ou dias, a vida de toda a humanidade em risco.
Preocupada em incentivar a conciliação entre desempenho
econômico e responsabilidade ambiental nas empresas, as Nações
Unidas organizaram, em 1972, a Conferência Internacional so-
bre Meio Ambiente Humano, na cidade de Estocolmo, na Suécia.
Nessa conferência, debateu-se as formas de conciliar o crescimen-
to industrial e econômico com a necessidade de reduzir os danos
causados à camada de ozônio, aos rios e o aumento da temperatura
no planeta. A partir dessa reflexão, foi criado o conceito de de-
senvolvimento sustentável, que destaca que o crescimento econô-
mico deve ocorrer de modo a respeitar os direitos e a vida de um
stakeholder inusitado: as gerações futuras.
Consideramos esse um stakeholder atípico porque ele é o úni-
co que não está vivo. Na verdade, ainda nem nasceu. Estamos
falando das pessoas que nascerão daqui a uma, duas, três ou mais
décadas. Se formos imprudentes na maneira como lidamos com
o meio ambiente, elas pagarão a conta do nosso comportamento
desprovido de ética.
O grande problema para as gerações futuras reside no fato de
que essas pessoas ainda não estão aqui, presentes, para reclamar
seus direitos. O empregado pode se organizar por meio de greves
ou recorrer ao sindicato, caso seus direitos estejam sendo viola-
dos. O cliente possui um código de defesa do consumidor que
estipula seus direitos que, se violados, podem ser reclamados na
esfera jurídica. O direito e o diálogo também podem ser um cami-
nho para a solução dos problemas de fornecedores e comunidades.
Todos estes podem agir para fazer valer seus direitos. Mas e o
stakeholder chamado “gerações futuras”? Sua voz só poderá ser
ouvida se falarmos por eles. Os não nascidos não possuem poder.
Nós, os nascidos e vivos, o possuímos. Portanto, podemos notar
que estamos em um mundo com empresas com poder de influên-
cia abrangente e elevado. A empresa ética deve usar de maneira
parcimoniosa esse poder, de forma a preservar os direitos e a dig-
nidade dos stakeholders presentes no mundo de hoje, assim como
daqueles que irão nascer.

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Gestão da Ética empresarial 131

A finalidade social da empresa ética


O terceiro pilar dos objetivos de uma empresa ética encontra-
-se nos aspectos sociais de sua atuação. Eles se somam aos aspec-
tos econômicos e ambientais para formar a tríplice finalidade da
empresa ética.
O mundo em que vivemos possui problemas sociais graves.
Mas talvez você esteja pensando: se tivemos um crescimento eco-
nômico tão elevado nas últimas décadas e as tecnologias progredi-
ram tanto, não seria razoável pensar que todas as pessoas estariam
usufruindo de uma melhor qualidade de vida?
O problema que enfrentamos passa por uma questão que ain-
da não abordamos: o crescimento demográfico mundial. No ano
de 1950, o planeta era habitado por 2.5 bilhões de pessoas. Esse
número dobrou no ano 2000! Ao mesmo tempo em que a taxa de
natalidade humana global está aumentando (WORLDOMETERS,
2012), a expectativa de vida também cresceu muito. Somados, te-
mos um cenário de crescimento no número de pessoas que vivem
no planeta (PATRUS-PENA; CASTRO, 2010).
Esse grande contingente de pessoas que habitam o planeta vive
em condições de extrema desigualdade. Um grupo pequeno detém
a maior parte dos recursos financeiros disponíveis, enquanto uma
quantidade imensa vive em condições miseráveis de existência.
Com isso, crescem de maneira exponencial os problemas sociais
em todo o mundo. O alto nível de migração internacional de pes-
soas de países em desenvolvimento para regiões mais prósperas
financeiramente fez com que a desigualdade social atingisse pra-
ticamente todas as regiões do planeta. Assim, mesmo nos países
mais ricos, o Estado já não consegue oferecer benefícios como
apoio aos aposentados e aos desempregados, saúde e educação,
como conseguiam no passado.
Nesse cenário, o crescimento do poder empresarial coloca na
figura das organizações empresariais uma expectativa até então
inexistente. Diante de um mundo com fortes carências sociais e
de empresas que possuem mais riquezas e poder do que muitos
países, cresceu a expectativa de que as empresas desenvolvam
ações sociais pelas quais elas repartam uma fatia de seu lucro com
parcelas mais carentes da sociedade.

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132 Filosofia e ética

Com isso, diversas empresas têm investido em programas de


educação infantil em comunidades carentes, de capacitação
para jovens estudantes e de oferecimento de bolsas e em prê-
mios para estudantes de desempenho superior. Algumas empresas
atuam também no incentivo à cultura, patrocinando eventos, artis-
tas e esportistas, visando promover sua marca ao associá-la com
causas admiradas na sociedade. Outra forma de ação social é o
apoio ao desenvolvimento da economia da região onde a empresa
se situa, oferecendo cursos de capacitação e apoio a comunidades
de pescadores, bordadeiras, agricultores e outros profissionais.
Adotar os comportamentos esperados de uma empresa ética
significa agir de forma a conciliar a responsabilidade em relação
ao meio ambiente e às necessidades sociais da população mun-
dial com o desempenho financeiro e econômico satisfatórios. A
empresa que consegue equilibrar adequadamente esses requisitos
pode ser considerada ética.

O modelo da empresa ética


Não é de hoje que os teóricos da administração defendem que
o que ocorre no ambiente externo à organização afeta a estrutura
organizacional. A Teoria dos Sistemas Abertos trouxe esse con-
ceito para a administração durante as décadas de 1950 e 1960. A
discussão sobre a interação entre os ambientes externo e interno
das organizações desembarcou no terreno da ética e esse é o tema
que vamos explorar nos próximos parágrafos.

Saiba mais
A Teoria dos Sistemas Abertos tem origem na Teoria Geral dos Sistemas,
formulada pelo biólogo austríaco Luwig von Bertalanffy. Ao aplicar os
preceitos das ideias de Bertalanffy no contexto organizacional, essa teoria
defende que as empresas são por definição sistemas abertos, pois não
podem ser corretamente compreendidas de forma isolada, mas em sua
relação de interdependência em relação ao ambiente externo. Segundo essa
teoria, ambientes mais competitivos e dinâmicos exigem que as empresas se
tornem mais flexíveis e adaptáveis (MOT TA; VASCONCELOS, 2006).

PB Filosofia e Etica Book.indb 132 11/1/12 2:23 PM


Gestão da Ética empresarial 133

Toda empresa é formada a partir de seus elementos de estrutura


social, participantes, objetivos, tecnologias e do entorno (SCOTT,
1988). No caso específico da empresa ética, a necessidade de con-
ciliar objetivos financeiros, ambientais e sociais demanda uma
reestruturação interna em todos esses aspectos.
Em termos de estrutura, toda empresa ética precisa refletir suas
preocupações com os stakeholders em sua composição interna. Se
a empresa possui ênfase no cliente, é natural que ela crie um Ser-
viço de Atendimento ao Cliente, o que demanda a contratação de
gestores específicos para esse fim e de funcionários com a desig-
nação de escutar atentamente e buscar satisfazer as necessidades
do consumidor. Ao se preocupar com os impactos ambientais de
suas atividades sobre o entorno, as empresas devem instituir um
departamento de meio ambiente ou uma central de relacionamen-
to com a comunidade. Portanto, a empresa cria um canal de co-
municação pelo qual terá acesso às diferentes vozes da sociedade.
Assim, notamos que a adoção de um modelo de gestão ético gera
alterações na estrutura formal da organização.
A estrutura informal das empresas também sofre alterações
quando se decide adotar um modelo ético. Enquanto a estrutura
formal se manifesta nos departamentos internos de uma empresa,
sua estrutura informal se manifesta em seus valores e cultura. A
empresa ética deve igualmente desenvolver um conjunto de valo-
res que seja coerente com seu discurso moral.
Os objetivos de uma empresa ética são diferentes daqueles que
orientam a ação de uma empresa não ética. Eles indicam o que a
organização deseja realizar no futuro. Se uma empresa ética deve
conciliar objetivos econômicos, ambientais e sociais, os objetivos
desse tipo de empresa devem, formalmente e por escrito, registrar
esse interesse. Dessa forma, diversas empresas adotam atualmente
em seus quadros de indicadores de desempenho não somente a
dimensão financeira, mas também objetivos de caráter social e
ambiental.
Os participantes da empresa ética, por sua vez, são diferentes
dos da empresa não ética. Se uma empresa deseja desenvolver uma
cultura ética e alcançar resultados que reflitam sua preocupação
com a sustentabilidade, ela deve selecionar no mercado pessoas
que possuam valores individuais alinhados a esse desejo. Assim,
os processos de seleção e treinamento da empresa ética devem

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134 Filosofia e ética

contemplar requisitos do trabalhador com princípios morais que o


qualifiquem para ajudar a empresa a alcançar seus objetivos éticos.
O tipo de empresa que aqui discutimos também precisa de-
senvolver características de tecnologia que a permitam tornar-se
ética. Por exemplo: realizar um tratamento adequado do ciclo de
vida de um produto, desde a escolha da matéria-prima a ser uti-
lizada até o tratamento dos resíduos, demanda que a empresa in-
vista em pesquisa e desenvolvimento ou em compra de tecnologia
capaz de reduzir os impactos ambientais de um produto.
Em termos do entorno da empresa ética, faz-se necessário
igualmente o desenvolvimento de ações que minimizem o impac-
to ambiental de suas ações na região imediatamente próxima à
sede da organização. Em alguns casos, empresas que estavam ha-
bituadas a depositar substâncias tóxicas em rios, por exemplo, de-
vem alterar a forma de lidar com essas substâncias. Assim, vemos
que a adoção de um modelo ético altera até mesmo fisicamen-
te a maneira como a empresa lida com o seu entorno. Podemos
perceber que a empresa ética, ao integrar elementos financeiros,
ambientais e sociais, demanda alterações em sua estrutura, desde
o interior até as instalações físicas ao seu redor. Dá trabalho, mas
vale a pena, não é mesmo?

A dinâmica da empresa ética


Conforme vimos, a empresa ética possui uma forma de funcio-
namento que é distinto do encontrado em empresas não éticas. As
tecnologias que são usadas para a realização dos produtos ou ofe-
recimento dos serviços é diferente. A estrutura de relacionamento
entre a empresa e o seu entorno também são distintos. Diversos
outros elementos, como os valores, a estrutura departamental e o
processo de tomada de decisão são diversos em empresas éticas
e não éticas.

Desafios para a implantação da dinâmica da


empresa ética
A empresa ética é aquela em que seus participantes apresen-
tam virtudes, que são manifestadas coletivamente. Ela designa
um conjunto de políticas e práticas virtuosas aos seus integran-
tes, que formam uma cultura baseada em valores organizacionais

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Gestão da Ética empresarial 135

éticos. A organização ética valoriza seus costumes e se caracteri-


za como educativa e dedicada ao apoiar as condutas virtuosas de
seus participantes.
Apesar da importância de adotar uma dinâmica de atuação que
permite o florescer das ações e hábitos virtuosos nos indivíduos
e nas culturas organizacionais, precisamos reconhecer que esse
não é um processo fácil. A empresa ética, que equilibra as dimen-
sões econômica, social e ambiental, é um conceito razoavelmente
novo no mundo organizacional. Ele representa uma mudança na
maneira de fazer negócios e, como toda mudança, provoca um
movimento de resistência. Nenhuma empresa atua com base em
valores totalmente formados por seus organizadores, assim como
nenhuma pessoa veste determinadas roupas por uma questão de
escolha totalmente pessoal. Todos nós estamos inseridos no espa-
ço e no tempo e herdamos das pessoas com quem nos relaciona-
mos um mundo classificado.
Assim, o conceito de beleza que temos está associado ao que
vimos ser chamado de bonito ao longo da vida. O que chamamos
de velho, novo ou arrojado também recebe o mesmo adjetivo por
parte de uma grande quantidade de pessoas. Por que isso ocorre?
Uma resposta está no fato de que vivemos em um mundo classi-
ficado por pessoas que o habitaram antes de nós e aprendemos
quais são as classificações atribuídas historicamente a determi-
nados elementos concretos ou abstratos. Obviamente, embora
todas as pessoas reproduzam muitos desses conceitos definidos
anteriormente, sempre há espaço para a ação individual. Mas não
podemos negar que boa parte dos nossos discursos é mera repro-
dução de conceitos formados no passado.
Experimente perguntar para algumas pessoas como deve ser
a dinâmica de uma empresa de sucesso. Você escutará algumas
respostas em comum. É provável que as ouça dizendo que esse
tipo de empresa deva ser ousada, focada no cliente, inovadora,
organizada e com ênfase no desempenho. Entre essas possíveis
respostas, encontra-se a de que a empresa de sucesso deve prio-
rizar o lucro acima de qualquer valor. Essa é a crença que está na
mente de grande parte das pessoas, inclusive de algumas que de-
fendem publicamente valores éticos nos negócios. A maior prova
disso é a quantidade de casos de corrupção e atos desrespeitosos
de empresas com clientes, comunidades, fornecedores e outros

PB Filosofia e Etica Book.indb 135 11/1/12 2:23 PM


136 Filosofia e ética

stakeholders. Sendo assim, quando os profissionais atuam em


uma empresa ética, é completamente natural que eles estranhem e
até resistam às práticas e políticas desse tipo de organização.
A dinâmica da empresa ética foge da ação instintiva das pes-
soas. O caráter é a capacidade de não agir por instinto, mas com
o controle que nos leva a ações mais desejáveis moralmente. Se
alguém não possui caráter, isso se deve à ausência de fatores edu-
cacionais e sociais ou à dificuldade em ser disciplinado ao agir
segundo os valores morais aos quais fomos expostos ao longo da
vida. Fazendo um paralelo com a vida organizacional, a empresa
que possui um caráter ético é a que, em sua dinâmica, apresenta
uma estrutura que reflete os valores morais desejados nesse novo
cenário de negócios e que é capaz de estabelecer políticas e práti-
cas que coloquem um freio nas tradições e elementos culturais da
empresa não ética.

O papel da estrutura na dinâmica da empresa ética


A estrutura é o meio pelo qual a empresa ética apoia os indiví-
duos na adoção de condutas éticas. É dever da empresa ética ga-
rantir que os processos de decisão que ocorrem em seu ambiente
não sejam espontâneos. As ações, para serem éticas, devem pas-
sar por um processo de reflexão que possibilite ao homem refrear
seus impulsos egoístas e adotar cursos de ação que o levem aos
valores morais assumidos e compartilhados pelos componentes de
uma empresa.
No entanto, estabelecer uma estrutura empresarial que facilite
o desenvolvimento do comportamento ético é um processo que
também demanda esforço. É preciso que os desenvolvedores da
arquitetura de uma organização que pretenda ser ética façam uso
da memória, da vontade e da lógica.
A memória é um elemento importante na criação da estrutura
da empresa ética, uma vez que as pessoas que projetam tal estrutu-
ra devem documentar e tornar visíveis ações éticas desejáveis. Se
houver um caso de um vendedor que tenha recusado uma oferta
de recebimento de propina, por exemplo, a empresa poderá tornar
essa história pública, facilitando a criação de histórias comparti-
lhadas e heróis culturais que inspirem o comportamento moral.
Da mesma forma, as ações pontuais tomadas por funcionários
que contradizem os valores morais da organização devem ser do­
cumen­tadas e usadas como reflexão para ações futuras. A pergunta

PB Filosofia e Etica Book.indb 136 11/1/12 2:23 PM


Gestão da Ética empresarial 137

é: “Poderíamos ter feito algo para que esse funcionário não tivesse
sido submetido à possibilidade de cometer essa ação antiética?”. A
empresa nunca controlará totalmente a ação dos empregados, mas
deve buscar minimizar o espaço para o erro.
A vontade é outro elemento essencial para a criação de uma
estrutura organizacional que incentive a prática da conduta ética.
Criar esse tipo de estrutura envolve desafios como resistência, per-
da de oportunidades de obter ganhos financeiros por meio de ati-
vidades moralmente questionáveis ou cobranças de stakeholders­.
A empresa ética deve persistir em sua intenção de permanecer
dessa forma e não se transformar em uma empresa não ética. É
a vontade de ser ética que determinará se a empresa sucumbirá
diante do primeiro desafio ou não. Assim como no caso de um
indivíduo que deseja abandonar um hábito indesejado, os gestores
da empresa ética precisam realizar um esforço contínuo de longo
prazo para efetivar a mudança de valores em direção à ética no
ambiente dos negócios.
Apesar da importância da memória e da vontade para o proces-
so de criar uma estrutura organizacional que leve a empresa a uma
dinâmica ética, esses elementos não são suficientes. Os arquitetos
organizacionais devem também desenhar processos firmados na
lógica. Por exemplo, muitas empresas, quando conduzem proces-
sos seletivos, entregam um documento com o título “Declaração
de Conflito de Interesses” aos candidatos. Nesse documento, cada
candidato deve declarar se possui alguma relação ou se desem-
penha alguma atividade que possa caracterizar, em um momento
futuro, um conflito que coloque em xeque a ética de seu processo
seletivo de admissão na empresa.
Se esse funcionário for primo de outro empregado, pode ser
que essa relação de parentesco em nada tenha influenciado no
processo seletivo. No entanto, em uma situação hipotética futura
em que um primo conceda uma promoção ao outro, alguém, ao
descobrir a relação de parentesco, poderá argumentar que hou-
ve favorecimento pessoal na contratação ou na promoção. Para
evitar esse problema, a lógica manda que a empresa exija que o
funcionário declare no momento de sua admissão qualquer pos-
sível conflito de interesses. Isso significa que a pessoa perderá o
direito de concorrer à vaga? Não necessariamente. Pode ser que
a empresa simplesmente determine que os primos não trabalha-
rão em um mesmo departamento. Se a empresa estiver ciente do

PB Filosofia e Etica Book.indb 137 11/1/12 2:23 PM


138 Filosofia e ética

vínculo existente, ela poderá administrar a situação e evitar futu-


ros problemas.
Criando uma memória organizacional que registra os compor-
tamentos moralmente desejados e indesejados, mostrando conti-
nuamente a vontade de estimular o comportamento ético e, por
último, planejando processos lógicos de trabalho que evitam ex-
por as pessoas a dilemas morais, os gestores poderão criar uma
dinâmica de trabalho que se fundamenta nos princípios da ética.

Instrumentos de gestão da Ética


Saiba mais
empresarial
Henri Fayol foi um
Henri Fayol, um dos pensadores mais destacados da Escola
engenheiro francês
Clássica da Administração, afirmou que a gestão pode ser enten-
que se tornou um dos
dida como o processo de planejar, organizar, dirigir e controlar o
principais teóricos da
uso de recursos para o alcance de metas. Hoje, as empresas ado-
gestão empresarial,
tam instrumentos para a gestão de marketing, pessoas, produção e
sendo considerado
um dos fundadores
finanças. Uma vez que a ética é um atributo cujo desenvolvimento
da Escola Clássica da
tem sido cada vez mais valorizado pelas organizações, não é de se
Administração. A ênfase admirar que os administradores estejam usando instrumentos para
do seu pensamento a gestão da ética empresarial.
situava-se nos princípios Ao desenvolver a sua estratégia empresarial, as empresas de-
que deveriam orientar finem sua missão, sua visão e seus valores. A missão é a razão de
a atuação dos líderes ser da empresa. A visão indica em que a empresa deseja tornar-
empresariais. Fayol -se dentro de um determinado tempo. Já os valores significam os
propôs princípios ainda princípios e crenças que os gestores esperam que os empregados
amplamente utilizados desenvolvam em uma organização. Sendo assim, se uma empresa
na administração atual, define que em seus valores devem incluir princípios como respei-
como a divisão do to, honestidade e transparência, podemos dizer que estamos falan-
trabalho, a punição à do de uma empresa ética. Correto?
violação de normas de Não necessariamente. O fato de declarar determinados valores
conduta, a equidade como característicos de uma empresa não os torna efetivamente o
no tratamento de norte pelo qual os componentes/colaboradores internos de uma or-
funcionários e o ganização agem. Há uma diferença entre valores declarados e pra-
estabelecimento ticados. Para se assegurar de que um grupo de valores desejados
de hierarquias e seja colocado em prática e formem a cultura da empresa, faz-se
linhas de autoridade
necessário realizar uma gestão da ética. Conforme ressaltamos,
claras, de forma que
o comportamento ético não é natural, precisa ser incentivado por
cada empregado
meio da estrutura organizacional. No entanto, a empresa não deve
respondesse a um
parar aí: além de criar uma estrutura propícia à conduta moral,
único chefe.
deve-se usar instrumentos de gestão da ética.

PB Filosofia e Etica Book.indb 138 11/1/12 2:23 PM


Gestão da Ética empresarial 139

A importância dos códigos de ética


O principal instrumento para esse fim são os códigos de ética,
que é uma declaração oficial das expectativas da empresa com
relação às condutas que são desejadas e esperadas por parte de
seus empregados. Quando uma empresa implementa um código
de ética, ela não tem a expectativa de que a simples elaboração
desse texto altere a maneira de agir das pessoas. A intenção é for-
malizar as expectativas de comportamento por meio de critérios
ou diretrizes que conduzam ao caráter ético.
A adoção de um código de ética é a etapa final da implantação
dos programas de gestão da ética empresarial. Esses planos são
geralmente divididos em algumas etapas:
Sensibilização – antes de iniciar a apresentação do programa
em si, os gestores devem realizar uma etapa de sensibilização,
Saiba mais
que pode ocorrer por meio de atividades informais, pequenas Endomarketing
menções ao tema em eventos da empresa ou por uma campa- é uma atividade
nha de endomarketing. Nessa etapa, a intenção é despertar o razoavelmente recente
interesse ou a curiosidade das pessoas pelo assunto. na administração.
Conscientização – nessa etapa, deve-se buscar estimular a Consiste na adaptação
reflexão do empregado com relação à questão da ética em- de estratégias e
presarial. Casos de sucesso de empresas que adotam condutas características do

morais elevadas podem ser úteis nesse processo. Da mesma marketing tradicional,
geralmente usados no
forma, casos de problemas enfrentados por empresas não éti-
relacionamento com
cas também podem ser muito úteis no sentido de provocar a
clientes e consumidores
reflexão do colaborador e a conscientização a respeito da ética
em geral, para uso
no trabalho.
no relacionamento
Motivação – “por que eu e essa empresa devemos ser éticos?”
interno, ou seja, com
Essa é a pergunta que deve ser respondida nesse estágio do
empregados, nas
programa. A empresa precisa apresentar motivos que levem as empresas.
pessoas a agir de acordo com as expectativas desse programa.
Embora a motivação seja intrínseca e ninguém seja capaz de
motivar outra pessoa, a empresa deve colocar as pessoas diante
de situações e argumentos que possam aflorar seu desejo por
agir de forma ética.
Capacitação – uma mudança de paradigma na dinâmica de
atuação profissional dessa magnitude demanda treinamentos.
Por isso, a empresa deve providenciar um programa de capaci-
tação à conduta ética. Os gestores devem aprender a lidar com
conflitos éticos vivenciados por seus subordinados. Devem

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140 Filosofia e ética

também aprender, se for o caso, a reestruturar o desenho orga-


nizacional de forma a melhor estimular a conduta moral.
Adoção do Código de Conduta Ética – nessa fase, a empresa
deve implementar o código de ética criado com base na sua
memória organizacional e na definição estratégica dos valores
declarados. O código deve ser apresentado formalmente para
funcionários e ser levado a sério principalmente pelos líderes.
Nesse momento, a vontade dos gestores de levar a cabo a mu-
dança necessária é essencial para o sucesso do programa.
Acompanhamento – de tempos em tempos, a empresa deve
planejar reavaliações a respeito do andamento da implemen-
tação do código de ética. Uma abordagem comum para esse
processo de acompanhamento é o registro de incidentes crí-
ticos com casos de sucesso e transgressões ao código e de
situações éticas não previstas nele. Esse procedimento se deve
à identificação da necessidade de novos ciclos de conscien-
tização, motivação, capacitação, e alterações no código e na
estrutura organizacional.
Os códigos de ética devem incluir situações e contextos que
sejam compatíveis com os da empresa em questão. Em uma em-
presa do ramo de bebidas, no qual os vendedores realizam vendas
em bares, é necessário destacar aspectos importantes, por exem-
plo, quais comportamentos do vendedor, quando está visitando o
bar de um cliente, são considerados indesejados. Em uma funerá-
ria, o código de ética deve incluir diretrizes com relação à forma
de lidar com os sentimentos da família para a qual ela presta servi-
ços. Já um banco de investimento deve desenvolver diretrizes que
visem proteger o sigilo das informações privadas de seus clientes.
Códigos de ética de empresas são distintos dos de profissões.
Enquanto os primeiros estão focados em determinar condutas es-
peradas pelos colaboradores internos de uma empresa, que podem
possuir diferentes profissões, os códigos de ética profissionais
enfatizam aspectos relacionados à natureza de uma profissão
específica.

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Gestão da Ética empresarial 141

Exercícios de fixação
1. A prosperidade econômica pode ser enten- ética nas empresas. Você concorda com
dida como um dos objetivos da empresa essa afirmação? Justifique.
ética? Explique. 8. Identifique e resuma o código de ética de
2. Explique a relação entre ética nas empresas uma empresa. Para realizar essa atividade, vi-
e responsabilidade ambiental. site o website de várias organizações empre-
3. Como uma empresa pode agir de maneira sariais até encontrar alguma que apresente
ética em termos sociais? nesse canal seu código de ética.
4. Exemplifique três aspectos estruturais em que 9. Qual é a diferença entre o código de ética
a empresa ética difere da empresa não ética. de uma empresa e o de uma profissão?
5. Cite dois desafios que uma empresa enfren- 10. Se você fosse contratado para implantar um
ta ao buscar adotar uma cultura ética? código de ética em uma empresa, como
6. O que é um código de ética empresarial? você procederia?
7. A implantação de um código de ética em-
presarial garante o sucesso na gestão da

Panorama
A Papel Bom Ltda. é uma empresa que produz e problema que está levando a Papel Bom Ltda. a
vende papel e que, dada a sua natureza de ope- perder mercado. As duas principais empresas con-
ração produtiva, busca desenvolver valores de correntes da Papel Bom têm praticado ações não
sustentabilidade social e ambiental. Nas unidades éticas em seus processos produtivos. Elas divul-
de manejo florestal onde se desenvolve o proces- gam publicamente que contribuem para a redu-
so de produção da Papel Bom, há quase uma ob- ção do aquecimento global e para a conservação
sessão pela preservação do meio ambiente e pela do solo e da água. No entanto, investem apenas
realização de ações sociais que promovam o bem- 30% do montante que a Papel Bom dedica a esses
-estar do entorno da empresa. objetivos. O resultado é que esses concorrentes
Recentemente, a Papel Bom Ltda. tem passado acabam sendo mais citados pelo consumidor em
por uma crise financeira. O lucro da empresa tem pesquisas de marketing sobre empresas éticas no
caído ano após ano, o que levou seus acionistas a ramo de papéis. Embora invista mais e faça um
um grande descontentamento. O conselho dire- trabalho ambiental e social muito mais sério que
tivo da empresa decidiu demitir o antigo geren- o de seus concorrentes, a Papel Bom é a empresa
te de planejamento e contratar um novo. Jorge menos lembrada em termos de ética no seu ramo
Alves, experiente executivo de planejamento, é de negócios.
o novo ocupante do cargo. Após algumas sema- Ao tomar conhecimento dessa situação, Jorge Alves­,
nas de ambientação, ele identificou que há um o novo gerente de planejamento, decide mudar a

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142 Filosofia e ética

política de sustentabilidade ambiental, reduzin- Diante do caso exposto, responda:


do drasticamente o volume de investimentos em 1. Você concorda com a decisão de Jorge?
conservação do solo e da água e em ações que Justifique.
reduzem o aquecimento global. Agora, a Papel 2. Como você avalia as ações da Papel Bom
Bom Ltda. irá adotar uma política de investimentos Ltda. antes e após a chegada de Jorge?
semelhante à de seus concorrentes. Jorge acredita Responda a essa questão segundo a tríplice
que, dessa forma, a empresa poderá ser mais com- finalidade da empresa ética.
petitiva e recuperar sua posição de mercado.

Recapitulando

V
amos recordar algumas coisas que estu- moralmente elevada demanda. Deve ser feita
damos nesta unidade? Nós começamos uma remodelação na engenharia organizacio-
pelas características da empresa ética. É nal em termos de estrutura social, participantes,
normal que as pessoas tenham uma visão razoa- objetivos, tecnologias e do entorno. Ao adotar
velmente romântica e idealista da empresa ética, uma estrutura que possibilita a expressão dos
mas nesta unidade você viu que devemos manter valores morais característicos da empresa ética,
os pés no chão ao buscarmos elevar as condutas é natural que a empresa assuma uma dinâmica
de uma empresa a um nível moral mais elevado. diferente. As pessoas podem estar acostumadas
A empresa ética só é viabilizada caso todos os a trabalhar com base em valores organizacionais
componentes de sua tríplice finalidade estiverem que partem de pressupostos distintos dos da
presentes: a empresa precisa ser lucrativa e pos- empresa ética.
suir responsabilidade social e ambiental. Geral- Um dos principais recursos para a realização des-
mente, as pessoas falam muito das características se objetivo é a adoção de um código de ética da
sociais e ambientais quando se referem à em- empresa. Esse código deve explicitar as expec-
presa ética. No entanto, mostramos que se não tativas da empresa com relação aos comporta-
houver sustentabilidade econômica e financeira, mentos de seus empregados e refletir os dilemas
a empresa não conseguirá honrar seus compro- comumente encontrados pelos integrantes da
missos com clientes, fornecedores, empregados, empresa em sua atividade de rotina.
governo ou algum outro stakeholder. Quando Chegamos ao fim deste livro. Agora você tem
isso ocorre, por mais que a empresa não agrida o conhecimentos que não possuía até começar
meio ambiente e pratique ações de responsabili- a lê-lo. A ética é essencial para a vida em cole-
dade social, não podemos dizer que temos uma tividade. As empresas tornaram-se instituições
empresa ética. poderosas. Assim, se você trabalha em uma de-
Para alcançar a tríplice finalidade, a empresa las, espero que tenha entendido o recado: pode
ética deve realizar uma reestruturação interna contribuir para a criação de um mundo mais éti-
que reflita as necessidades que uma conduta co! O sinal está aberto para a ética nas empresas!

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