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A sexualidade entre o poder

disciplinar e o biopoder: pistas


para uma reterritorialização
subversiva do processo de
subjetivação
Por: Mênade Anastácio Eduardo, em 2022.

A sexualidade entre o poder disciplinar e o biopoder: pistas para uma reterritorialização subversiva do processo de 1
subjetivação
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Do início da era clássica à modernidade surgem novas modalidades do exercício de
dominação que, progressivamente, se afastam do poder tradicional. O poder disciplinar
e a biopolítica buscam assegurar o atrelamento mais eficiente das massas
populacionais aos processos econômicos orientados para a produção capitalista.

O corpo se torna objeto e alvo de poder na era clássica, porém é após o séc. XVIII que
esse processo se intensifica, ganha uma nova forma e uma centralidade nas relações
de dominação. Isso se deve ao desenvolvimento de diversos investimentos
estratégicos visando o controle do corpo social e a produção de saberes, gestados em
boa medida dentro de espaços institucionais como colégios, quartéis e prisões. A
observação e gestão minuciosa da sociedade levada a cabo por essas instituições
conseguem colocar em funcionamento um investimento do poder no que há de mais
íntimo em nós: o nosso corpo.
O poder é, por excelência, construtor de realidades. Dessa maneira, não deve ser 
simplesmente descrito em termos negativos de exclusão, repressão, mascaramento da
realidade, etc.

Um frutífero debate surge dessa noção de poder. Dessa maneira, seria interessante
pensar em como a sexualidade encontra-se disposta nessa trama de poderes e
discursos.

O poder, nessa nova configuração, portanto, assumiu a função de gerir a vida. É sobre
a vida e seu desenvolvimento que o poder estabelece seu domínio. O poder tradicional
de morte do soberano é recoberto pelo poder administrativo sobre os corpos.  O bio-
poder, de espírito analítico e administrador, foi um elemento crucial para o
desenvolvimento do capitalismo, pois a consolidação dele só pôde ser assegurada
graças a incidências diretas de controle da população que garantiu uma inserção de
corpos-dóceis ao trabalho e atrelou de maneira mais efetiva os fenômenos
populacionais aos processos econômicos. O bio-poder no capitalismo é dotado de
tanta importância na analítica foucaultiana que o autor sugere que a repartição
diferencial do lucro e a gestão da sociedade relativamente à expansão das forças
produtivas só se tornou possível sob a sua égide.

Nesse aspecto, a prevalência de uma nova modalidade de poder cujo cerne está na
produção ativa de realidade e não mais na dominação tradicional, pode nos deslocar
para uma visão “menos repressiva” do que concerne a sexualidade.
Ao traçar um debate com concepções sobre a relação entre sexo e poder, Michel
Foucault rejeita o que chama de “hipósetese repressiva” que considerava que a

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sociedade Ocidental entrara em um grande processo de repressão sexual iniciada no
séc. XVII e arrastada, em boa medida, até o séc. XX. Não que, de fato, não houvesse
repressão das práticas sexuais na sociedade moderna; o que Foucault busca é, na
verdade, reinserir o discurso da repressão em todo um complexo encadeamento de
práticas discursivas, de poder-saber que se desenvolveram ao redor do sexo
historicamente e que não se reduzem apenas à repressão. É que ao buscar a
libertação da sexualidade das investidas do poder social dominante da burguesia, a
hipótese repressiva acaba pressupondo uma verdade que diria respeito à natureza
humana, uma verdade contida no sujeito que, de fora, seria obstruída pelo poder e se
revelada poderia libertar o indivíduo. Foucault argumenta que a produção de verdade,
antes de estar fora das relações poder-saber, está inscrita de maneira imanente a elas.

Dessa maneira, o “dispositivo de sexualidade” seria fruto do investimento de técnicas


de poder. A analítica do sexo surgiu da necessidade da burguesia em se auto-afirmar
enquanto classe e criar um campo de conhecimento e gestão da vida centralizados no
sexo.  A forma de poder dominante da sociedade moderna antes de limitar, proibir ou
punir o sexo, concede-o um lugar central de investimento do poder, constrói a
“sexualidade”. Inscrito dentro de uma enorme vontade de saber, o sexo se torna, nas
palavras do francês: incandescente. Essas práticas discursivas modernas não se
resumem a um grande não. Trata-se da cadeia de sentido necessária à conformação e
construção, de maneira produtiva, do sujeito ao seu contexto histórico e social.

Um dispositivo, para Foucault, se trata do conjunto de estratégias, procedimentos e


técnicas – geralmente coesas com estratégias globais de dominação – que funcionam
de maneira a gerir corpos em um determinado território e controlar multiplicidades para
atender a demandas históricas, sociais, políticas, etc. Para o autor, a sexualidade
também se trata de um dispositivo histórico. Não se trata de uma verdade obscura, de
um fundo dionisíaco do qual se emergiria a sexualidade, mas antes, uma rede
estimulante de corpos, uma tábua de valores discursivos, uma produção de
conhecimento funcionais e combináveis com grandes estratégias de dominação social
que estão sempre sendo gestadas ou atuando em resistência ao próprio poder que a
gerou.

Diferentemente do dispositivo de aliança que é responsável pela manutenção da lei, do


que é lícito e ilícito e da reprodução das tramas das relações sociais entre os parceiros
sexuais – cujo momento decisivo se dá na reprodução –, o dispositivo de sexualidade
atua na extensão permanente dos domínios e das formas de controle do sexo. Sua
atenção é voltada para as sensações do corpo, prazeres. Sua ligação à economia se

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dá através do controle minucioso dos corpos. E sua razão de ser não está na
reprodução, mas sim, na difusão dentro do corpo social, da produção de saberes e da
construção de um controle cada vez mais global e minucioso das populações.

Não sem razão, no fim do séc. XVIII, o sexo passa do campo leigo ao negócio de
Estado. A pedagogia se encarrega de analisar o sexo da criança: atenção ao “pecado
de juventude”. O hospital medicaliza o sexo da mulher transformando-as em histéricas
e cria um campo de domínio epistêmico das “doenças dos nervos”. Perversos passam
a ser especificados. A economia, por sua vez, nutrida de ideais malthusianos incide
sobre o sexo da população a fim de regular a demografia.

Cabe ressaltar que, inicialmente, as tecnologias do sexo se voltam para a


autodeterminação da burguesia enquanto classe. Seu corpo deveria, em sua
consolidação enquanto classe dominante, ser preservado e sua vida maximizada.
Antes da centralidade da morte e do castigo – característica central do tratamento do
sexo nas sociedades tradicionais –, o sexo passa a ser questão de vida e doença.
Antes do sangue aristocrático que garantiria privilégios, tem-se o sexo sadio burguês.
Intensifica-se o corpo e problematiza-se a doença. Tais práticas passam a ser
difundidas no corpo social a partir do momento em que a necessidade da
instrumentalização delas para o controle das grandes massas se faz necessário. O
poder então visa o controle da natalidade; a moralização dos pobres para  a
manutenção da "família canônica” e o controle jurídico e médico do “perverso” visando
assegurar a ordem social.

Um sexo cientificizado, observado, construído, normalizado, discursivamente elaborado


constituem o efeito do dispositivo de sexualidade para a gestão da vida em uma
sociedade capitalista.

E qual seria o lugar do sujeito nessa história? Vimos até agora técnicas minuciosas de
dominação que se atrelam a estratégias globais, sempre em concordância com aqueles
que conseguem exercer o poder ativamente e subjugar indivíduos. Porém, o poder só
se efetiva em pura imanência com o corpo. E o subalterno? A “bicha”? As desviantes?
Cabe a nós pensarmos nas técnicas de si. Como, construímos a nós mesmos em meio
às normas, sendo atravessados por poderes institucionais, forças culturais e sociais
que pressupõem certas normas gerais.
Em seu comentário sobre Foucault em “A vida psíquica do poder”, Judith Butler afirma
que, por mais que ele use a subjetivação do prisioneiro em suas análises, o francês se
utiliza da metáfora da prisão visando teorizar sobre o processo de subjetivação do

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corpo. O ideal que o “prisioneiro” deve seguir para se atrelar a norma estabelecida
constitui-se como a “alma”.

É nesse processo de descrição-construção de identidade que é possível submeter o


indivíduo de maneira fundamental, em como ele guia sua própria vida e se entende,
para torná-lo um prisioneiro.
Dessa maneira, o reino interior oriundo de uma psique, na verdade, poderia ser
maleável e plástico. Essa maleabilidade pode tender às normas já estabelecidas e
opressivas. Porém, a subjetividade aqui, aparece enquanto um processo. Nunca está
dada imediatamente e sem esforço. O sujeito é produzido repetidamente e possui uma
“metaestabilidade” que nunca cessa de percorrer todos os objetos que o cerca para se
consolidar enquanto um Eu. De certa maneira, experimentamos diariamente
descontinuidades em nossa subjetividade dos princípios que não cessam de tentar
guiá-la para a égide do controle social. No exemplo da homossexualidade, analisado
por Foucault, vê-se como de uma “descrição” do sujeito homossexual, primeiramente
enquanto patologia pela medicina, pôde servir de maneira contrária pelos
homossexuais, enquanto resistência à própria patologização e normalização de seu
comportamento. Vemos nesse caso, o poder gerando sua resistência. Ou melhor, uma
reterritorialização subversiva do processo de subjetivação. O termo “queer” é um
exemplo disso. Inicialmente utilizado como ofensa, passa agora a ter um caráter
contestador. É nesse processo de reterritorialização que se utiliza de uma fonte
reacionária para criar seu próprio contrapoder.

Porém, não é por estabelecer-se enquanto identidade que a emancipação está


garantida. Na verdade, Butler em seu comentário sobre Foucault aponta como o autor
viu a construção de identidades, no atual contexto político, em boa medida, sendo
submetida aos requisitos do Estado liberal. É assim que o campo jurídico descreve-
constrói sujeitos políticos.

A questão que se coloca é como podemos nos livrar dessa prisão que é a identidade.
Foucault aponta para uma reconstrução subjetiva fora dos grilhões jurídicos. Essa
política identitária ocorre, pois o Estado opera no reconhecimento e garantia de direitos
apenas a sujeitos totalizados e normalizados, mesmo que possua uma identidade
específica. Não se trata de dar vazão a uma individualidade reprimida, mas sim criar
uma nova constituição de subjetividade. Não se trata de descobrir o que somos em
nossa interioridade profunda, mas antes, negarmos o que fomos até agora.

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Reconhecer em nós o processo de subjetificação atrelado à técnicas de dominação
social e destruí-lo em nosso seio para, assim, nos guiarmos de maneira insubmissa.

Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes,
1987

FOUCAULT, Michel. (1980) História da Sexualidade I: a vontade de saber.

Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 3ª ed.


Rio de Janeiro: Graal.

BUTLER, Judith. A vida psíquica do poder: teorias da sujeição. Autêntica, 2017.

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